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N° 18 | Setembro de 2012 U rdimento

Fatzer e o espectro
Fernando Kinas1

«Eu gostaria de fazer uma arte que abordasse as coisas mais profundas e
importantes e durasse mil anos: e que não fosse tão séria.»
(BRECHT, Bertolt. Anotações autobiográficas, 1927)
«Nós, geração leviana, vivemos em casas supostamente eternas.»
(BRECHT, Bertolt. Sobre o pobre B.B.)

Resumo

Fatzer, texto inacabado escrito por Bertolt Brecht na


década de 1920, é um material fecundo tanto para avaliar
um momento chave do percurso artístico e político de
Brecht, como para fomentar discussões contemporâneas em
torno do teatro épico e dialético e das representações da
revolução através de recursos dramatúrgicos e cênicos.

PALAVRAS-CHAVE: Fatzer, peça didática, teatro brechtiano.

Abstract

Fatzer, unfinished text written by Bertolt Brecht in the


1920s, is a fertile material for assessing a key moment of
the artistic and political life of Brecht, such as to promote
contemporary discussions around the epic and dialectic
theater and the revolution representations through
dramaturgical and scenic resources.

KEYWORDS : Fatzer, didactic play, brechtian theater.

1 Diretor e pesquisador teatral. Doutor em Teatro pela Sorbonne Nouvelle e Universidade de São Paulo.

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1. UM ACIDENTE DE TRABALHO e Na selva das cidades. Tanto O casamento indicando tanto a submissão à lógica pós- Para o Brecht do final da década de 1920,
do pequeno burguês, como Um homem é um moderna da impossibilidade de construção o sujeito é fruto de uma construção social.
homem, além de A pequena Mahagonny do sentido, quanto seu exato oposto, Nas famosas notas sobre Mahagonny esta
Em uma anotação autobiográfica de
(primeira parceria com Kurt Weill), escritas a rejeição crítica do fluxo de imagens ideia ganha forma: o ser social determina a
1935, Brecht escreveu:
na época do «acidente», também podem ficcionais banalizadas pela indústria consciência. E não o contrário. Livrando-se,
ser incluídas nesta conta (não sabemos ao cultural. em grande medida, da metafísica hegeliana
Quando já fazia anos que eu era um escritor
certo quais são as quatro peças às quais A primeira publicação de Decadência e do niilismo, Brecht adota uma perspectiva
de renome, nada sabia de política e não tinha
visto nenhum livro ou ensaio de Marx ou Brecht se refere). O importante é que do egoísta Johann Fatzer se deu nos cadernos marxista, esforçando-se, entretanto, para
sobre Marx. Já havia escrito quatro dramas e Brecht situa na segunda metade da década de ensaios (Versuche), em 1930, incluindo evitar platitudes filosóficas, políticas ou
uma ópera que eram representados em muitos de 1920 uma virada fundamental na sua uma pequena parte do material, que na estéticas.
teatros, tinha ganho prêmios literários e nas maneira de compreender a sociedade totalidade contém cerca de 500 folhas Fatzer, exemplar sob este ponto de
entrevistas onde se perguntava a opinião de
e no modo de escrever sobre ela. Não manuscritas. Foram publicadas a cena «O vista, é um exercício de liberdade radical
intelectuais progressistas, podia-se ler com
frequência também a minha. Mas continuava casualmente, estes são anos intensos passeio de Fatzer pela cidade de Mülheim», com múltiplas inspirações, do Woyzeck
sem compreender o ABC da política e tinha de produção dramatúrgica. Intensos na duas outras cenas curtas e alguns textos de Büchner, ao agitprop, passando pelas
tão pouca noção do funcionamento dos quantidade de obras e na experimentação para coro.4 Até a morte de Brecht, em 1956, atrações populares de sua época (como
assuntos públicos de meu país quanto qualquer de formas e conteúdos. São os anos dos nada mais veio a público e o texto não o boxe e o circo) e pelo classicismo
simples camponês de um vilarejo deserto.
lehrstücke, conhecidos no Brasil como foi encenado. A redescoberta aconteceu alemão. Os versos iâmbicos, os esboços
[...] Ao começar com a literatura, nunca
fui além de uma crítica bastante niilista da «peças didáticas», embora seja preferível somente nos anos 1970 e Heiner Müller nunca finalizados, a coexistência de
sociedade burguesa. Nem mesmo os grandes a expressão «peças de aprendizagem» ou desempenhou papel importante ao propor cenas com comentários teóricos e
filmes de Eisenstein que exerceram em mim «peças pedagógicas». Ambas as expressões uma forma aos fragmentos do Material indicações cênicas, revelam um intenso
uma tremenda influência, e as primeiras têm a vantagem de evitar a interpretação Fatzer.5 procedimento exploratório que se afasta
apresentações teatrais de Piscator pelas quais
redutora segunda a qual estaria em jogo Não se trata, no entanto, de caricaturar da tradicional realização estética para dar
minha admiração não era menor, me levaram
ao estudo do marxismo. [...] Então, fui ajudado um voluntário didatismo simplificador da a transição de Brecht, imaginando uma lugar à autoinformação ou autoconhecimento.
por uma espécie de acidente de trabalho.2 realidade. passagem mecânica do associal Baal ao Segundo Francine Maier-Schaeffer, «o

O
Fatzer inscreve-se, justamente, nesta Fatzer propagandista da revolução. Fatzer, fragmento de Brecht dá ao fragmento
acidente de trabalho é a pesquisa linhagem do Lehrstück. O material foi inclusive, mostra-se pouco disposto a abrir tradicional seu sentido moderno: a busca
para Jan der Fleischhacker, peça sendo trabalhado – é o que nos indicam mão da liberdade individual, de uma certa não concluída de uma forma acabada
que não chegou a ser escrita anotações e registros de diversas fontes, independência materializada pela recusa (inédita) se transforma progressivamente,
(“em vez disso, comecei a ler incluindo os diários de Brecht –, entre em renunciar aos prazeres do corpo, como sob a resistência do material, em um tipo
Marx”, diz Brecht). Para enten- 1926 e 1930 (ou 1931), e não chegou a ser a comida e o sexo. A realidade é complexa o de fragmento que, no processo de produção,
der o funcionamento da Bolsa de Trigo concluído. Ele corresponde à efervescência suficiente para que não se reduza o debate toma valor de Selbstverständigung».6
de Chicago, Brecht acabou se debruçando artística europeia que levou, por exemplo, à transição do jovem Brecht impetuoso e Esta questão é capital para a
sobre os mecanismos e o funcionamento a explorações teatrais pouco convencionais, mais ou menos anarquista para o Brecht compreensão dos lehrstücke. Uma citação
da sociedade capitalista. E as respostas es- inclusive com a utilização de materiais marxista da maturidade. No entanto, extraída do próprio Fatzer reforça a ideia:
tavam no marxismo. A compreensão da considerados não dramáticos. Tanto na o período de enorme agitação política
(ir)racionalidade capitalista, do mundo da Alemanha (Piscator), como na União que vai do início da Primeira Guerra «O propósito de um trabalho não
especulação e da exploração de classe não Soviética (Meyerhold), o fenômeno foi Mundial à instauração da República de é idêntico ao propósito ao qual deve
dependia mais das intuições nascidas da particularmente importante. Embora não Weimar, exerceu influência inegável ser utilizado. Assim antes de tudo, o
prática rebelde do jovem Brecht. Em 1935, seja possível desenvolver aqui este aspecto, sobre sua produção. À visão rebelde, mas documento Fatzer serve principalmente ao
aos 37 anos, Brecht avalia seu percurso de que mais tarde ganhou importância politicamente ingênua e subjetivista, que aprendizado de quem escreve. Se depois
aprendizagem para dimensionar uma obra com o chamado «teatro documentário» vai até meados dos anos 20, substitui- servir como material de estudo, os alunos
já extensa e em constante evolução. Atra- (Peter Weiss é a principal referência), é se uma visão claramente materialista e aprendem dele de maneira completamente
vés desse exercício retrospectivo ele identi- fácil concordar com a hipótese de Judith marxista, que utiliza um método de análise diversa do que quem escreveu. Eu, o
fica as características das peças do período Wilke, segundo a qual «o documento é uma da realidade muito mais consistente, escritor, não preciso concluir nada. Basta
(1918-1926), destacando suas qualidades e construção, mais do que uma descrição».3 ainda que Brecht preserve o espaço para que tenha servido para me ensinar. Eu
limitações. Debate contemporâneo, a utilização do liberdades que a deformação dogmática do simplesmente conduzo a análise e é o
As peças niilistas a que se refere Brecht, documento – ou a reivindicação do real em marxismo dificilmente tolerava. método que eu utilizo para este fim que o
quando ainda não compreendia “o ABC cena – é objeto de análises contraditórias,
4 Cf. a edição brasileira em Brecht, Bertolt. Teatro completo nº 12, Rio
da política”, são Baal, Tambores na noite 3 Wilke, de janeiro, Civilização Brasileira, 1995, pp. 205-223. 6
Judith. The Making of a Document: An Approach to Brecht’s Maier-Schaeffer, Francine. Le Méchant Baal, l’asocial et la poétique
Fatzer Fragment, TDR: The Drama Review - Volume 43, Number 4 (T 5 Cf. a edição brasileira: Brecht, Bertolt. O declínio do egoísta Johann des genres chez Brecht. Fragment, pièce didactique, théâtre épique,
2 Brecht, Bertolt, Diários de Brecht, São Paulo, L&PM, 1998, pp. 159-160. 164), Winter 1999, pp. 122-128. Fatzer (org. Heiner Müller), São Paulo, Cosac Naify, 2002. Revue de littérature comparée 2004/2, N°310, p. 193.

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espectador poderá analisar.7 » Portanto, não é casual que nos últimos acordo (Einverständnis)! Mas mesmo estas mesmo que a revolução, propriamente
trinta ou quarenta anos tenha ressurgido oposições, este mecanismo antitético, não dita, seja a grande ausente do fragmento,
Fatzer não poderá ser, então, o interesse por estes trabalhos de Brecht. é tão transparente quanto pode parecer. que se organiza em torno da deserção
segundo Brecht, um Schaustück, uma peça Embalados por teorias sobre o suposto fim Somente na quarta fase de trabalho sobre e da espera, da fome e do medo. Mas a
tradicional. Com a liberdade que a nova da história e das ideologias; ou seduzidos o Fatzer, Brecht parece desenvolver de indagação permanece: em que momento a
forma lhe permite, mantendo a ambição de por teorias extravagantes, sintetizadas nos maneira mais clara este conflito, sem, no revolução passa a se alimentar dela mesma,
fazer tanto a análise social quanto a da ação cultural studies e na chamada french theory, entanto, resolvê-lo completamente. E a esquecendo o horizonte que forneceu seu
artística, duas questões se destacam e são enfim, aproveitando um ambiente de não resolução se explica para além da sentido original, sua razão de ser? Mauser,
desenvolvidas sem os condicionantes que desilusão política e ambições intelectuais incompletude da peça. Esta não resolução de Heiner Müller, que dialoga criticamente
o formato posterior da peça épica ou dialética rebaixadas, pensadores e artistas se parece ser um princípio dramatúrgico com Fatzer, faz, a seu modo, interrogação
imporiam: 1. a tensão entre indivíduo socorreram na tábua de salvação disponível e conceitual inerente ao trabalho. A semelhante:
e coletivo; 2. a violência no ambiente e conveniente. No lugar de projetos «dramatização da dialética», segundo
revolucionário. Dito isto, valeria a pena coletivos e da inteligibilidade, desejos expressão de Fredric Jameson, não admite «Você lutou no front da guerra civil
lembrar das ressalvas que Bernard Dort ritualizantes, aporias e relativismos. simplificações.10 O inimigo não encontrou fraqueza alguma
faz às chamadas peças didáticas. Segundo O pavor da totalidade (confundida, Uma montagem contemporânea do em você
Nós não havíamos encontrado fraqueza
o ensaísta francês, Brecht ainda estaria propositalmente ou não, com totalitarismo) Fatzer pode aproveitar tanto a riqueza
alguma em você
preso a uma análise moral da realidade. abriu a porta para o «vale tudo» pós- deste método de investigação proposto Agora você mesmo é uma fraqueza
Seu marxismo, até o começo dos anos moderno, aos modismos teóricos e a todo por Brecht, quanto suas dúvidas sobre Que o inimigo não pode encontrar em nós.
1930, não levaria em conta o conteúdo tipo de confusão conceitual. Esta situação o próprio método e o arsenal teórico Você aplicou a morte na cidade de Vitebsk
concreto das situações cujas mudanças permitiu um adesismo cínico ao status que ele mobilizou, confrontando-os com Aos inimigos da revolução, por nosso encargo
Sabendo que o pão de cada dia da revolução
eram reivindicadas. A necessidade de quo, travestido de sofisticação intelectual. leituras contemporâneas. Ao escolher
Na cidade de Vitebsk como em outras cidades
transformar o mundo «continua abstrata», O fragmento, brechtiano ou outro, serviu outras vias (jogos de referências, lirismos, É a morte dos seus inimigos, sabendo ainda que
diz Dort. A ação seria concebida de maneira como uma luva para aqueles que negavam instabilidades irresolvíveis, pragmatismo Precisamos arrancar a relva para que o verde
muito geral, «ela não é deduzida da (ou negam) a possibilidade de um exame resignado etc.), o risco mais evidente é o de permaneça
situação real de um país em um momento razoável do mundo. A operação lembra transformar a ambiguidade e a contradição Nós os matamos com a sua mão.
Mas certa manhã na cidade de Vitebsk
preciso, tendo levado em conta a relação de Margaret Thatcher negando a existência produtivas de Brecht, em experiência
Você mesmo matou com a sua mão
forças existente».8 da sociedade… Mas é preciso se dar conta, estética estéril, reproduzindo cacoetes pós- Não os nossos inimigos, não de acordo com
como faz muito bem Terry Eagleton, que a modernos como se fossem experiências a instrução
política pós-moderna «significou ao mesmo críticas. E agora você precisa ser morto, você mesmo
2. INDIVÍDUO E COLETIVO tempo enriquecimento e evasão».9 Raymond Fatzer, em princípio, não cabe no é agora um inimigo.
Cumpra sua tarefa no posto derradeiro
Willians, para citar um caso no campo figurino do «teatro culinário» denunciado,
Onde a revolução te colocou
O primeiro tema pode ser visto do marxismo, seria exemplar, segundo exatamente, por Brecht; nem tampouco De onde não haverá de sair sobre seus
como um passo adiante daquele dado em Eagleton, no quesito «enriquecimento». no teatro que recusa a rica dialética entre próprios pés
Baal, peça expressionista da juventude. O Muitos outros, entretanto, enquadram-se matéria social e opções formais. No paredão, que haverá de ser o seu último
exame do binômio «liberdade individual/ na rubrica «evasão». Assim como cumpriu sua outra tarefa
Sabendo que o pão de cada dia da revolução
interesse comum» consumiu muita reflexão No Fatzer, Koch/Keuner (Brecht
usou os dois nomes, em momentos
3. O PREÇO DA REVOLUÇÃO Na cidade de Vitebsk como em outras cidades
de Brecht e foi traduzido em várias peças É a morte de seus inimigos, sabendo ainda que
desse período, como Aquele que diz sim/ diferentes da composição do texto, para a Precisamos arrancar a relva para que o verde
Aquele que diz não e A decisão, mas também mesma figura ou personagem), representa Associado ao tema da renúncia do permaneça.11 »
em fragmentos como o próprio Fatzer e A a ideia do coletivo, do funcionário aplicado, indivíduo (da abdicação de si mesmo), há em
padaria. A relação entre indivíduo e coletivo do burocrata que aplica o programa Fatzer uma investigação sobre a necessidade Ancorados na história, tanto Brecht
expressa tanto a crise política dos anos 1920 ou do militante que segue a linha do da revolução. Ou sobre o preço da revolução. quanto Müller investigaram as entranhas
(é preciso lembrar que a Alemanha esteve partido (disciplina e terror associados, O papel da violência revolucionária, da política revolucionária do século vinte.
à beira do colapso em 1923 e às voltas com dirá Heiner Müller). Já Fatzer expressa a sobretudo quando escapa ao controle, ou Müller usa Vitebsk e a revolução russa
uma hiperinflação de proporções surreais energia incontrolada do rebelde, indivíduo quando está submetida a uma força política com o olho no tempo presente.12 Brecht
no final desta década), como uma indagação insubmisso, às voltas com o conflito entre que funciona, ela mesma, sem regulação situa a ação de Fatzer no final da Primeira
mais profunda sobre a crise do sujeito. ordem e anarquia, disciplina e liberdade. externa (o processo de retroalimentação Guerra Mundial, mas mira a situação
O tema é aprender, ou não, a estar de é potencialmente entrópico), percorre
7 Brecht, Bertolt. Fatzer, traduzido por Christine Röerig, não publicado, o fragmento. Esta conclusão é válida 11 Müller, Heiner. Mauser, São Paulo, Hucitec, 1987, p. 3.
p. 108 (tradução ligeiramente modificada). 9 Eagleton, Terry. As ilusões do pós-modernismo, Rio de Janeiro, 12 “A cidade de Vitebsk localiza-se em todos os lugares onde a
8 Dort, Bernard. Lecture de Brecht, Paris, Arche, 1993, p. 89. Zahar, 1998, p. 33. 10 Jameson, Frederic. O método Brecht, Petrópolis, Vozes, 1999, p. 98. revolução foi e será obrigada a matar os seus inimigos”. Ibidem, p. 21.

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especialíssima da Alemanha na segunda processo revolucionário russo confirmam REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


metade dos anos 1920. É preciso lembrar a existência de um complexo e explosivo
que entre 1923 e 1925 o Ruhr foi ocupado quadro político na época.
BRECHT, Bertolt. Diários de Brecht. São Paulo: L&PM, 1998.
por forças francesas e belgas sob a alegação Não é negligenciável o fato de que
de que reparações referentes à Guerra a Baviera, tão cara a Brecht (que nasceu ________ Fatzer (trad. de Christine Roerig). Não publicado.
de 14-18 não teriam sido cumpridas pela em Augsburgo e estudou filosofia em ________ Teatro completo nº 12. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
Alemanha. Mülheim, onde se passa a Munique), tenha se tornado um lugar ________ Écrits sur le théâtre, v. 2, Paris, Arche, 1979
história de Fatzer e seus três companheiros, privilegiado para as organizações fascistas
________ O declínio do egoísta Johann Fatzer (org. Heiner Müller). São Paulo: Cosac Naify, 2002.
está localizada nesta região. após as repressões contrarrevolucionárias.
Este confronto de posições políticas tinha CLARK, T. J. «Será que Benjamin devia ter lido Marx?», in Modernismos. São Paulo: Cosac
Além do processo pré-revolucionário
de 1918/1919, marcado tragicamente pelos também sua expressão estética. É neste Naify, 2007.
assassinatos, em janeiro de 1919, de Rosa caldeirão que Brecht gesta e experimenta DORT, Bernard. Lecture de Brecht. Paris: Arche, 1993.
Luxemburgo e Karl Liebknecht, outra grave sua visão de mundo. Nela não cabem
EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
crise política, quatro anos mais tarde, foi facilidades típicas do sectarismo ideológico,
mas tampouco omissões políticas. Por isso, JAMESON, Fredric. O método Brecht. Petrópolis: Vozes, 1999.
igualmente controlada pela reação social-
democrata e de direita. Brecht, nos anos de ao utilizar Fatzer para a discussão sobre MAIER-SCHAEFFER, Francine. «Le Méchant Baal, l’asocial et la poétique des genres chez
elaboração do Fatzer, não era indiferente a o preço (ou a necessidade) da revolução, Brecht. Fragment, pièce didactique», in: Théâtre épique, Revue de littérature comparée, 2004/2,
estes acontecimentos, entre os quais estava deve-se levar em conta que há nele uma
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a proclamação da República dos Conselhos tomada de posição clara, ainda que não
se possa aplicar a esta atitude rótulos e MÜLLER, Heiner. Mauser. São Paulo: Hucitec, 1987.
da Baviera, em 7 de abril de 1919 (na qual
explicações simplistas. Isto não significa WILKE, Judith. «The Making of a Document: An Approach to Brecht’s Fatzer Fragment», in:
se envolveu diretamente). O debate entre
dizer que o processo de «desmarxização» TDR: The Drama Review - Volume 43, Number 4 (T 164), Winter 1999, pp. 122-128.
a visão conselhista (baseada nos soviets)
de Brecht (semelhante ao que aconteceu com
e a que defendia o caminho parlamentar
Benjamin13) tenha alguma credibilidade.
da Assembleia Constituinte não podia lhe
Descobrir um «outro Brecht», via de regra,
deixar alheio.
não passa de revisionismo de segunda
Tambores na noite é a tradução teatral
categoria. Parte da riqueza do pensamento
de Brecht para esta situação política,
brechtiano desta época é explicada
especialmente em relação ao movimento
exatamente pela leitura atenta que ele fez
espartaquista (o soldado pequeno-
da obra de Marx.
burguês Kragler anuncia, em alguma
O legado de Brecht – submetido a
medida, o desertor egoísta Fatzer). A intempéries dialéticas produtivas – parece
duríssima repressão sofrida pelas forças corresponder de perto às características que
políticas da esquerda revolucionária ele, pouco antes de sua morte, recomendou
e o enfraquecimento do KPD (Partido ao Berliner Ensemble, que se preparava
Comunista Alemão, criado em 1919) para uma turnê inglesa. Contra a arte
durante a década de 1920 é um material «terrivelmente pesada, lenta, laboriosa e
valioso para Brecht, assim como o estudo pedestre», disse ele, é preciso ser «rápido,
da obra de Büchner, especialmente A morte leve e forte».14
de Danton. Esta época, excepcionalmente
rica em debates e em agitação social,
coincide com os anos de formação política
de Brecht. Observador ativo do panorama
político alemão, que ia do SPD (partido
que defendia a política conservadora da
República de Weimar), ao KAPD (Partido
Comunista Operário da Alemanha, criado
em 1920, que representava posições
consideradas esquerdistas), Brecht viveu 13 Cf. Clark, T. J. «Será que Benjamin devia ter lido Marx?», in
um momento de efervescência política rara. Modernismos, São Paulo, Cosac Naify, 2007, pp. 281-305.
A criação da 3ª Internacional em 1919 e o 14 Brecht, Bertolt. Écrits sur le théâtre, v. 2, Paris, Arche, 1979, p. 595.

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