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Um socialista hermético

Sobre a polêmica baudclairiana entre


Waltcr Benjamin e Bert Breehtl

The niehrinoale. if-<he should sine by day,


When e'·c')· Boo,<eis ",cHina, wouid be rhouoht
No beucr a musicían than the wren.
How m<.lnyIhinos ~v .<casonsea.<on'dare
To Ihdr riehr pmi<c and Irue pe!Jection!

Shakespeare, O mer<:"ddorde Vcne;w

I.

Pouco antcs da eclosão da guerra, ainda em seu exílio dinamar-


quês, Bert Brecht discutiu com Walter Benjamin sobre o signifi-
cado político das F/ores do Mal. Benjamin trabalhava numa recons-
trução histórico-filosófica do século XIX, concebida como uma
monumental "obra exegética total" [cxc9ctüchcs Gcsamtkunstwerk),
em cujo centro estaria uma rcinterpretação da poesia de Charles
Baudelaire. Reintcrpretação na medida em que Benjamin fazia de
Baudelaire - supostamente artista puro c reaciollilrio em política
- uma testemunha de acusação no "processo histórico que o pro-
letariado move à classe burguesa". 1 Baudelaire seria, na verdade,
cúmplice incognito da conspiração de BJanqui, o líder dos traba-
lhadores revolucionarias franceses entre I 830 C I 871. Benj amin
H. Daumier, "l'antique est toujours beau" [18)"01 identifica a "ação", a gue um dos poemas do ciclo Revo/ra quer

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irmanar o "sonho", à ação subversiva de Blanqui. 1 Brecht mostrou- Ela deixa escapar o conteúdo da obra, exatamente à maneira das
se cético, mas de qualquer modo retomou a leitura das Flores do efusões sentimentais da recepção burguesa, que toma ao pé da
Mal; começou mesmo uma tradução de As velhinhas, que logo letra os apelos baudelairianos à fraternidade, e, como fez o falecido
interrompe: o poema, anota Brecht, "mais que mostrar a demago- presidente Pompidou, procura estilizar a mais intlexível recusa de
gia do falso Napoleão (Napoleão m), vive dela. É característico uma sociedade corrompida até a raiz dos cabelos como pura pose
que eu não tenha afinal de contas conseguido chegar à parte em edificante, como lamúria pequeno-burguesa sobre o divórcio de
que se fala do mármore com que se farão os bustos das velhas. teoria e prática. ~ Se lembrarmos que são exatamente os versos em
Hoje em dia qualquer pequeno-burguês caga em mármore, os toa- questão - "Ccru.ç, je soltirai, quant à moi, sariifait / D' Ull mOllde ou
letes são feitos de mármore".~ As notas sobre "A beleza na poesia l' <1ction Il' est pa.~ Ia soeur Ju rêve"7 - que sugeriram a Benjamin a
de Baudelaire" deixam transparecer irritação, até mesmo amargura. aproximação entre Baudclaire e Blanqui, torna-se fácil intuir a raiz
Elas culminam no seguinte veredito: "Baudelaire é a punhalada e a justificativa dos desacertos interpretativos da esquerda, como
final nas costas de Blanqui. A derrota de Blanqui é sua vitória de no caso de Brecht: ele {:ondena, na figura de Baudelaire, um clássico
Pirro".·\ Essa inversão crassa da posição de Benjamin não deixa bureuês. Uma vez que o socialismo partiu da interpretação estabe-
entretanto de confirmar a "apologia" benjaminiana, ao menos no lecida da obra de Baudclaire, chegou-se a uma homologia entre
que diz respeito ao teor eminentemente político dessa poesia lírica; mal-entendidos (e ('ondena~'ões, ao menos no período inicial, de
mas a idéia de uma tal "punhalada final" parece ainda mais arbitrá- [ 8" o a I 88 o) de direita e de esquerda. Benjamin é possi vclmente
ria, mais grotesca do que a idéia de uma cumplicidade entre o o único leitol' marxista que, livre do conformismo, consegue deci-
poeta e o revolucionário. Não teria Brecht exagerado a periculosi- frar Baudelaire e desfazer a teia de mentiras das leituras afirma-
dade desse voluminho de poemas mal e mal compreensíveis? Difi- tivas. Também Brecht sai a rasgá-Ia - mas toma a teia pela obra.
cilmente - com o reparo de que a punhalada não é desferida na Mesmo Benjamin, que ignora consistentemente esse véu, volta e
direção que Brecht supõe: o ataque a Blanqui é apenas simulação. mcia não tem mais que fragmentos dele entre as mãos, quando
Baudelaire não encontrou muita simpatia ou compreensão da acreditava tocar ° próprio corpo. É por isso que ele se equivoca na
parte da esquerda. De Jules Vales - que em 1867 assinou um avaliação da teoria das correspondances, assim como lhe escapa a
cruel obituário do "atorzinho de segunda" -, passando por Rosa essência utópica da memória em Baudelaire. ~Em conseqüência, as
Luxemburg - que o põe ao lado de D' Annunzio - e Lukács - hesitações em suas análises têm alguma responsabilidade pelo
que reprova, a ele e a Flaubert, a representação da problemática entusiasmo algo embaraçado da filologia baudelairiana, que não foi
pessoal à exclusão da problemática social do artista -, até Lu além de declarações vazias sobre a importância e a atualidade de
Hsün - para quem Baudelaire é o protótipo do revolucionário Benjamin. Mais vale, para honrar sua tentativa de reabilitar como
blasé -, a recepção socialista é uma longa série de mal-entendidos. militante mente anti-burguesa uma posição estética abandonada

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sem luta pelo realismo socialista, empreender aquelas concretiza- o poema termina assim:
ções conteudísticas que Benjamin não teve tempo de concluir.
Trata-se de expôr Baudelaire - c muito daquilo que marcha sob Ah! ma' d'Abel, ta charCJ[Jne
o estandarte de l'aa pour l'art - à leitura histórico- politica. Talvez EnWaissera Ie sol.fumantl
as discussões baudelairianas entre Brecht e Benjamin, centradas
sobre o valor da arte surrealista em sentido amplo, provem ter mais Race de CaiiJ, ta besogne
valor para a formação de uma estética socialista, livre de elementos N'est pasjàire sl.'ifisammcnr;
pequeno-burgueses, do que a prestidigitação anacrônica de Lukács
e outros com o fetiche do "realismo". Race d'Abe!, voiei ta honre:
Os três poemas do ciclo Revolta jamais figuram nas antolo- Le.fá est vainclI par I' épicu I
gias francesas para uso de escolares e admiradores. Decerto que
esses textos não são de modo algum poésie pure, nem oferecem Race de (aiiJ, au de! monte
acesso confortável ao conjunto da obra (pelo contrário!). São três Er sur la terre jeue Dicll! I[)

apelos revolucionários, publicados durante o curto período, entre


a revolução de fevereiro de 18<j.8 e dezembro de 185"1, livre de Versos tão crus assim estão infinitamente mais próximos do mar-
censura à imprensa. Contrapondo-se à idéia de um "pecado origi- xismo do que as insossas canções repuhlicanas de Béranger ou os
nai econômico" (Marx), versão liberal da gênese da desigualdade, poetastros sociais à maneira de Pierre Dupont, que se exaltam com
e voltando-o contra seus autores, Bauclelairc distingue entre a a idéia de uma (·onciliação entre ricos e pohres. Baudelaire não caiu
raça de Abel, cara a Deus, e a raça condenada de Caim: na "trapaça da fraternidade universal" (Marx) por ocasião da revo-
Iw;'ão de fevereiro de 18+8 e por toda a vida refugou diante da fia-
Rasse J'Abel, Jars, bois et manae; temiti burguesa, atitude que se expressa com o mesmo eufemismo
Dieu te sourir complaisamment. irônico tanto na famosa apóstrofe final de Au Lecreur - Hypocrite
Iecteur, - men semblabIe, - monfiere! - quanto em certos poemas
Race de Cain, dans laJange em prosa tardios. "Ajraterniré, a fraternidade das classes adversá-
Rarope ct meurs misérablement. 9 rias, das quais uma explora a outra [... ] é na verdade a guerra civil,
a guerra civil em suas terríveis feições, a guerra do trabalho e do
A raça de Abel prospera e estripa tudo à volta como um parasita, capital", II escreve Marx após a sangrenta repressão da primeira
enquanto seu dinheiro se multiplica e os filhos de Caim morrem revolução proletária da história, em junho de I 848. Abel e Caim não
à míngua pelas ruas. diz outra coisa - o mesmo valendo, em forma cifrada, para toda a

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obra de Baudelaire. O poema citado implica l:Juea fraternidade será que já se tomou por prova das opinilws reacionárias do poeta:
ainda e sempre homicida enl:Juanto o princípio da desigualdade - "Cbaque jour vers l'Erger nous desccndom J'un pns", lê-se no poema

metaforicamente falando: o Deus de Abel; {'onnetamen te: a introdutório, e no último, A vinaem, encontramos
propriedade privada - não for superado. É por isso que o ciclo
Rel'olta concentra-se naquele Deus que a burguesia criou à sua L'Humanitc! bavarde, ivre de son oénie,

imagem e semelham.'a; está assim respondida uma pergunta de Et.JoIle maintcnant eomme eIle étnit jadís.
Benjamin: "o que forçava Baudelaire a dar a forma de uma teolo- Criant à Dieu, dans sajuribonde aaonie:
gia radical à sua recusa radical da dominação"?12 "Ô mon semb/ab/e, Ô mon maítre, je te maudis!,17

Qu' est-cc que Dieu Jait done de eeflot J'Qnatbemcs Surge aqui o problema das contradições de Baudelaire, l:Jue até
Qui monte tous les jours vers ses chers Sc!raphins? agora representaram enigmas insolúveis para a filologia. Como
Comme un tyran gorgl! de viande et de vins, não supor uma mudança de posição para explicar, por exemplo,
11 s'endort au JOl/X bruit de nos '!fJreux bla~phemcs. 1\ que por volta de 185"0 o poeta condame ao assassinato de Deus e,
nove anos mais tarde, ria-se da humanidade híbrida que gostaria
Temos aqui, dirigidas com ironia perversa a um "primeiro motor" de igualar-se a Deus? Esse gênero de questão deixa de considerar
nada metafísico, caricaturas da corpulenta burguesia financeira do o valor contextual dos trechos contraditórios, que pode não ser o
reinado burguês, tais como se encontram na obra do republicano mesmo - não será justamente o valor contextual diverso que dá
militante Daumier.1+ Uma das conclamações lans'adas pelos líde- a impressão de contradição? É o que se pode mostrar em todos os
res da Sociedade das Esrações - Barbes, Blanqui etc - ao povo casos de contradição. Abel e Caim dirige-se ao povo; o Deus a ser
durante a insurreição de maio de I 839 começa com imagem derrubado é o Deus da gente de posses. A viaeem, ao contrário,

semelhante: "Às armas, cidadãos! Soou a hora final dos opresso- fala da vertigem da burguesia do Segundo Império, cuja auto-con-
res. O tirano covarde dasTulherias ri da fome que assola as entra- fiança titânica não é, segundo o poema, senão a euforia que pre-
nhas do povo [... J". 1 S E Baudelaire evoca a mesma imagem no cede uma luta de morte. Muita coisa muda se é o povo exasperado,
final de OsjaróJs, poema que interpreta a história da arte a partir e não a águia do terceiro Napoleão, que assalta os céus. O Deus
do Renascimento como protesto apaixonadamente desesperado que os filhos de Caim desejam derrubar não tem quall:Juer traço
da humanidade maltratada contra os desmandos do progresso cristão; ele é um senhor sádico e arbitrário, é bem verdade l:Jue
burguês. Esse conceito de progresso é próximo ao conceito ben- sob a máscara do filho do homem. Esse duplo metafísico de Luís
jaminiano de um progredir da catástrofe. In As Flores do Mal denun- Filipe, de Napoleão III, ou simplesmente do burguês, lançou ao
ciam incansavelmente o vazio do otimismo histórico liberal, coisa mar o "bom Deus" ideal. Simetricamente, Satã é ora adversário do

lO)"
Deus dos ricos e militante da revolução (Litanias de Satã), IS ora o Afécondé soudaín ma mémoireftrrilc,
demônio clássico, que dirige o teatro de marionetes do capita- [omme je travcrsais le nouveau [ano useI.
lismo (Ao leitor, verso 13) Iq e zela pela punição dos exploradores Le vieu Paris n'est plus (laforme d'une ville
(O imprevisto). 10 Chanae plus vite, hélas! que le coeur d'un moreeI);
"Contradições" dessa cs~cie dificultam a leitura nas Florcs do
Mal, mas resolvem-se tão logo captemos o método que subjaz a Je ne vois qu'eo esprit tout ce camp de baraques,
tais variações contextuais, a tática dessa luta de guerrilha que o Ces tas de chapiteaux ébauchés et defuts,
autor move à burguesia oitocentista - a seu público, portanto. Les hcrbes, les Bros blocs verdis par l'cau desftaques,
Muitos poemas são indccifravelmente herméticos sem conheci- Et, brillant aux cancaux, Ie bric-à-brac coifus,
mento histórico detalhado; na maior parte dos casos, o confor-
mismo preferiu contabilizá-los como poesia pura. E decerto são Lei s',:talait jadü' une ménaBerie,'
poesia pura, mas noutro sentido, não no sentido de poésic purc. É Là je vis, un matin, à l'heure ou sous lcs deu.\:
o que uma leitura de O Cisne pode tornar daro, Froids et c1ain le Travail s',:veille, ou la voirie
Pousse un sombre ouraean dans rair silendeux,

11. Un cyone qui s'était évadé de sa caBe,


Et, de ses picds palm,:s frottant lc pavé .w:,
11
Le Cyone Sur lc sol raboteux traínait son blanc plumagc.
IA Victor Huno] Pres d'un ruisseau sam eau la bête ouvrant le bec

Baíanait ncrveuscmcnt ses ailes dam la poudre,


Et disait,le coeur plein de son bcau lac natal:
Andromaque, jr pense à vaus! Cc petit fteuve, ~Eau, quand donc pleuvras-tu? quand tonneras-tu.joudre?
Pauvre et triste miroir ou jadis resplendit Je vois cc malheureux, mythe étranac etfatal,
L'immense majesté de vos douleurs de veuve,
Ce Simois menteur qui par vos pleurs arandit, VcrsIr cid quelquifois, comme l'homme d'Ovide,
Ven Ic deI ironique et crucl1ement bleu,
Sur son cou convulsif tendant sa têu avide,
Commc s'il adrcssait des reproches à Dicu!

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II Ainsi dans IaJorêr ou mon esprit .I·'exile
Un vieux Souvenir sonne à plein sorljfte du cor!
Paris chanae! mais rien dans ma mélancolie Je pense aux matelors oub/iés dans une l1e,
N'a bouaé! palais nelif.·, échqaudaaes, blocs, Aux capt!ft, aux vaincus! ... à bien d'Qutres encor!
Vieuxfaubouras, tout pour moi devienr alléaorie,
Et mes chers souvenirs som plus Iourds que des roes. Benjamin não sabia por onde começar com O cisne, como provam
suas anotações mais específicas sobre poemas das Flores do Mal. n
Aussi derant ce Louvre une imaae m'opprime: De modo que o conformismo dos comentários entre formalistas
Je pense à mon arand 'fone, avee ses oestes 10us, e sentimentais sobre a "maturidade" desse "poema tardio" não
Comme Tesexilés, ridicule er sublime, encontrou oposição. As divagações sobre a antítese entre "realida-
Et ronaé d'un désir sans trêve! er puis à rous, de banal" e "o mundo do belo", sobre "modernidade", "idealidade
vazia", "platonismo" ou "anti-platonismo", "exotismo", "classicismo"
Andromaque, des bras d'un arand époux tombée, e coisa~ que tais não conseguem esconder certo cinismo involun-
Vil bétail, sous Ia main du superbe Pyrrhus, tário, como se percebe com alarme quando um crítico tenta classi-
Aupres d'un tombeau vide en exra.\·ccourbée; ficar a estrofe sobre a negra tísica sob a rubrica de "realidade
Veuve d'Hector, hé/as! etJemme d'Hé/énus! banal". Não há "idealidade vazia" em Baudclaire, mas sim na poe-
sia de segunda mão que lhe atribui tal vazio - cuja conexão com
Je pense à /a néateSse, amaisrie et phrisique, o "horizonte de expectativas" desta última é fácil de perceber.2J
Piétinanr dans la boue, et cherchant, /'oeil haoard,
Les cocotiers absents de la superbe ;lfTique Sobre a parte I

Derricre la murailIe immense du brouillard;


No poema, a rememoração poética empreende uma reconstrução
À quiconque a perdu cc qui ne se retrouve da velha Paris ao mesmo tempo que dissolve a nova como ilusão.
Jamais, jamais! à ceux qui s'abreuvent de p/eurs Ela dá as costas à visão presente e recorda uma imagem da sua
Er terent Ia Dou/eur comme une bonne loure! própria experiência (o cisne) e uma outra de origem mitológica
Aux maiores orphe1ins séchanr comme desJ/curs! (Andrômaca), familiar ao humanista e corrente na literatura clás-
sica de Eurípides e Virgílio a Racine. Comum a ambas é a discre-
pância entre o ambiente dado e o ambiente almejado, entre liber-
dade real e liberdade ilusória. Também o eu do poema sofre da

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mesma discrepância. O dc~gosto com a nova Paris e a nostalgia da capital do Segundo Império. Mas daro está que essas largas vias
cidade destruída preparam seu estado de espírito para as recorda- pomposas eram parte de uma profilaxia anti-revolucionária. Nelas
ções, as correspondances. Adormecidas na "mélancolie" (v. 29), as ana- a cavalaria e a artilharia não encontrariam obstáculos contra o
logias são despertadas pelo passeio na nova praça do Carrousel, povo insurreto. enquanto que uma topografia indevassável de ruclas
encaram de frente o poeta e arrancam-lhe o "ardent sanalot" com e esquinas - como a da região em torno à rue du Doyenné, junto
quc começa o poema: a invocação de Andrômaca, irmã e amada. à praça do Carrouscl-, um verdadeiro "bric-à-brac coifus" (v. 12),
Diante dos olhos da mente do poeta, cercado pelo Louvre, as não podia deixar de criar problemas para os militares.
Tulherias e o Arco do Triunfo de Napoleão I, surge "ce Simoi:~ mcn- Já a dedicatória a Victor Hugo, o poeta de Lcs ChJtimcnts, que
teu,' (v. 4), o riacho artificial de que se servia Andrômaca , viúva de de seu exílio nas ilhas do Canal da Mancha não cessava de menos-
Heitor e exilada no Épiro, para lembrar a pátria. É a visão do com- cahar em prosa e verso o imperador Napoleão 11I, 1e Perir, fornece
plexo do Louvre que dispara a primeira associação e destampa a um terminus ante quem: o encontro com o cisne deve ser situado
fonte das memórias - não é difícil pensar aqui no modo de fun- antes do golpe de Estado de Louis-Napoléon, em 2 de dezembro
cionamento da mémoirc involontairc de Proust -; a rememoração de I 851 . O verso J4 informa ainda que o encontro foi no começo
imperiosa, falsa e forçada da glória napoleônica desperta a reme- do dia, quando desperta o Trabalho. A maiúscula de "le Travail"-
moração autêntica. Essa relação dialética entre opressão e liberta- Benjamin observou, que as alegorias com iniciais maiúsculas for-
ção, al1rmada desde a primeira estrofe, constitui o cerne de O mam "centros da estratégia poética" de Baudelairel+ - sugere
cisne. Mas prossigamos com a leitura: a evocação de Andrômaea dá uma leitura alegórica: mas como, em se tratando de um despertar
logo ensejo a uma segunda, mais próxima do tema do poema - e histórico? Le Travail era também por então a denominação corrente
por isso mesmo mais sujeita à repressão, de ordem antes coletiva do trabalho assalariado, do proletariado; Blanqui, por exemplo,
que individual, como logo veremos. Uma vez invocada, essa ima- falava da oposição imuperável entre /e Travai] c /e Capital. A conta-
gem da memória só fará ganhar relevância e dinâmica, por sua vez minação entre cisne e trabalho, introduzida por essa precisão tem-
dando inicio a uma enxurrada que só amaina no I1nal do poema. A poral subreptícia, concretiza nossa suspeita. Tal como o trabalho, o
experiência-chave é portanto o encontro com o cisne na praça do cisne está desde cedo na rua; como os varredores de ruas ele
Caroussel. Será possível fixá-lo temporalmente?Tentemos! Ele se levanta a poeira ao passar; e, como o trabalho o cisne está ligado à
deu quando ainda estavam em pé, em pleno centro urbano, os imagem da tempestade. Complementarmente, há momcntos his-
bairros pobres, angulosos e indevassáveis, antes portanto que o tóricos cm que a conduta do cisne corresponde à do trabalho
Barão Haussmann empreendcsse seu "cmbelezamento estratégico" assalariado - as revoluções. 2>

(no dizer irônico de seus contemporâneos) c traçasse os arrogan- Baudelaire viveu duas revoluções, e em ambas as vezes
tes bulevares que tanto contribuíram para a fama e o bem-estar da esteve ao lado dos revoltosos. Em fevereiro de 1848 estevc entre

110 III
os vitoriosos; em junho do mesmo ano, entre os derrotados. As vespertino, v. 10 - e se torna homem (v. 25"; vale lembrar do "so-
correspondências entre o cisne e a revolução remetem inequivo- cialismo de cara erguida"), volta-se para as estrelas e percebe no
camente às lutas fracassadas de junho de I 848. A ave fugira de sua céu ... o Deus da burguesia. Pois o verso 28 (Comme s'j! (ldrCS5(lit
Jes
gaiola (v. 17) - o mais-que-perfeito assegura que a auto-libcr- reproche.l· à Dieuf) corresponde perfeitamente àqueles de Abel e
ta'lão do povo já se dera; o cisne se arrasta pelas pedras do "pové" Caim, já citados:" R(lce de Cain, (lUdei monte / Et surla tefte jetle Dicu!".
(v. I 8), aq ucla.~ "pedras mágicas" que serviram à construção de Mas O dsne já não é poesia de agitação como os poemas dos
barricadas; e se arrasta sobre suas patas, pil:d palmé, o que remete tempos heróicos da luta de classes. A revolução fracassou, e o uso
à palma da mão, la paumc, e sugere a contrario uma associação com do adynacon, figura retórica da impossibilidade, funciona como
as "mãos calosas" dos trabalhadares;frottcr (O:::: esfregar, atritar) perífrase do absurdo inescapável daquele heroísmo.
implica prazer e agressão, uma atmosfera explosiva. O animal
banha-se num riacho (ruisscau, v. 20) de pó (pous~·jcrc, v. 21); tem Sobre a parte 11

sede! Em junho de 184-8, o proletariado via-se ameaçado pela


fome em conseqüência do fechamento, por inRuência burguesa, Da absorção, por obra do choque, das transformações de Paris nas-
das oficinas nacionais, criadas após fevereiro para dar trabalho a cem as visões do cisne e de Andrômaca; da contemplação destas
todos; être SUl le pavé, tomba au ruisseau eram locuções que designa- emanam todas as outras alegorias e tem início a enxurrada de asso-
vam a miséria crescente. "Pão ou Morte!" foi o grito de guerra ciações de que falamos mais acima, ao mesmo tempo em que na.~ce
com que o povo pegou em armas na manhã de 23 de junho. Tal a auto-consciência titânica de que não há que temer pela própria
como o cisne, o povo buscava purificação por meio do pó das ruas identidade em meio às metamorfoses dos tempos enquanto estiver
- mas também da pólvora; ambas são la poudrc em francês. Tal à mão o perigosíssimo arsenal de "chers .wuvenils" (v. 32). Diante de
como o cisne, o povo clamava, com os olhos postos em suas origens cc Louvte (v. 33), como diz com menosprezo, o poeta passa suas
(revolucionárias, v. 21), pelos proverbiais "relâmpagos de feve- recordações em revista. As imagens monádicas do cisne e de Andrô-
reiro", pela tempestade purificadora de uma nova revolução (v. 23). maca surgem agora como partes de uma série de estandartes e
Quase todos os historiadores, e também Flaubert em sua emblemas revolucionarios; só mesmo aos olhos da superficialidade
Educação sentimental, recordam o céu cruel c ironicamente azul acadêmica elas persistirão como "signo indecifrável do mundo das
daqueles dias de junho (v. 26), testemunha calada dos quatro dias coisas" (Jauss). Por trás do cisne passa o cortejo dos exilados·~ e
de "luta heróica do proletariado parisiense" (Marx) e do mortici- não dos antibonapartistas à la Hugo, que em junho de I 848 teme-
nia finaL Também a última estrofe da primeira parte, o desafio a ram pela dvili$(1tion, mas dos milhares de insurretos das barricadas
Deus (vv. 25"-28), tem sua contrapartida nas idéias e ações revolu- que, após o triunfo da reação, foram deportados e mesmo nas pri-
cionárias: o "trabalhador recurvo" se ergue -leia-se O crepúsculo sões continuaram convocando ao recomeço da luta. n E quanto a

112 li)
Andrômaca? Baudelaire fala em várias ocasiõ('~ da exatidão mate- canos e socialistas do Segundo Império, para quem a ostentação de
mática das metáforas poéticas - que se realiza em notável medida pompa do regime se fazia às custas da população.
em sua própria lírica. A viúva de Heitor torna-se parte do butim de Para tornar mais nítida a metamorfose la France / la Répu-
guerra de Pirro (v. 18), que por sua vez lega-a como herança a blique I Andromaque, considerem-se algWls materiais suplementares.
Heleno; este último, entretanto, fora seu cunhado, na condição de "Não se perdoa a uma nação e a uma mulher o instante de des-
irmão caçula de Heitor. A seqüência faz pensar na genealogia do cuido em que um aventureiro qualquer lhes faz violência", declara
bonapartismo. Marx não é o único que destrata o terceiro Napoleão o Dezoiro Brumário de Luís Bonaparte.28 Em 185"1, Daumier exibe
como "sobrinho de seu tio". Com sua brilhante vitória de 10 de Bonaparte-Ratapoil galantemente oferecendo o braço à república,
de'Z.emhro de 1 84-8, quando seis milhões de pessoas lhe deram seus com um porrete escondido atrás das costas;:>" um pouco mais
votos na eleição presidencial, Louis Napoléon arranca a republica à.~ tarde naquele mesmo ano, na,>Physioonomies traoiqucs (uma apre-
mãos do general Cavaignac. Este, conhecido por sua arrogância e de sentação codificada do destino da França após os massacres de
fato um superbe Pyrrhus (v. 38), teria chamado os massacrados de jWlho), é a vez de Cavaignac-Polyphonte, que ambiciona a mão e
junho de vil bétail (v. 38) ou vile CQnaille. 17 La République figurava nas a riqueza de Mérope: "Um soldado como eu tem o direito de
representações alegóricas como uma mulher majestosa. O cisne querer I Reger o Estado que soube salvar"; lO por último, vem a
representa a parte banida da França, o proletariado parisiense mili- França-Andrômaca, que censura seu pretendente Cavaignac-
tante, que fora às barricadas pela República, pela Liberdade - outra Pirro: "Vi como minha família foi morta e como meu esposo
figura alegórica, muitas vezes identificada à Republica, ou com a ensangüentado foi arrastado pelo pó". li Falta um passo apenas
França, ou ainda com Marianne -, ao passo que Andrômaca é a para o cisne de junho, que arrasta suas plumas brancas pelo chão
mulher forçada a se casar - é notável, aliás, a semelhança entre a empocirado, e menos que um passo para a Andrômaca de Baude-
cadência e a fonética de Répub/ique e Andromaque. O brilho da corte laire. Sua transformação poética representa a dissolução e a supe-
imperial, o brilho dos novos monumentos, a nova Paris não logram ração do classicismo burguês por meio de uma arte surnacuralisra,
esconder o tamanho da queda que sofreu Andrômaca/ França. Pelo em cujo centro está a emancipação do proletariado.
contrário: o brilho só faz refletir o infortúnio, e na verdade se deve As memórias parecem saltar sem motivação determinada do
a este último, tanto na origem quanto em seu persistir - pois o cisne para Andrômaca, desta para a imagem "realista" de uma
tempo do verso 4- ("Cc SimoiS menteur qui par vos pleurs arandit") pode negra moribunda que se arrasta pelo lamaçal das ruas de Paris; o
ser tanto pretérito perfeito quanto presente. Temos então que o rio poema ganha assim colorido diferente a cada estrofe, e mesmo a
falso ou mendaz "surgiu de vossas lágrimas" (por ocasião da catás- cada verso. Mas a constante não é apenas um sentimento de exí-
trofe nacional de 184-8) ou que "cresce com vossas lágrimas". A lio ou uma compaixão abstrata por aqueles que "sofrem sob o
hipérbole poética vem confirmar as críticas dos opositores republi- sol". A imagem da negra recorda o destino de um outro postulado

1[4 115'
da revolução de I 848: a igualdade universal e a abolição da escra- 24, H-36)~, impunham-se antes as experiências do longo cati-
vidão. A magreza e a tuberculose foram as penas dos explorados, veiro, da labuta pesada, da nostalgia frustrada, da dura opressão,
que, conforme a estrofe seguinte (vv. 45"-48), tiveram que se em suma, impunha-se o sofrimento coletivo para criar situações
saciar com suas lágrimas, mamando às tetas da dor como se fosse revolucionárias, nas quais a libertação é mais que ohra do acaso e
uma loba e, órraos emagrecidos, murcharam como flores. Os fruto da ocasião (v. I 7). Para usar a imagem do poema, a corren-
grandes romances de Zola sobre a situação das classes trabalhadoras teza começou a crescer quando a água acabou. A derrota de junho
no Segundo Império são a contraprova desses versos. Também a foi o começo da verdadeira revolução, e o cisne lê uma profecia
negra está entre os órfãos da república, também ela é filha de em suas memórias. Pois a separação entre nostalgia e realidade é
Andrômaca, e também para ela, como para todos os órfãos da finalmente superada - a dor é forte o bastante para anular a rea-
França, a dor foi mãe adotiva ~ após a derrota de junho, mas lidade presente. O elemento da revolução é o scfri mcnto das massas
especialmente após o golpe de Estado de I 85"1 . jJ Também ela - não as massas em si mesmas -, invocado no final do poema.
anseia por sua pátria, como a viúva de Heitor, como o cisne de Proust engana-se ao supor que à bicn d'autrcs cncor (v. 5"2) seja
junho. Negros e brancos são igualmente vítimas das ondas reacio- resultado de uma queda de inspiração li: o verso dá expressão à
nárias de junho e dezembro, bem como de todas as outras até a invisibilidade dos oponentes do belo e novo mundo de Bonaparte
proclamação do Império, em dezembro de I 85"2; vitimas ainda do 11I, sob forma de uma atenuação tática (mciosis).
colonialismo que Napoleão III promove em grande estilo: os pri- O verso 49 é de dificil compreensão. De que floresta está
sioneiros políticos foram deportados para a África ~ milhares falando Baudclaire?Trata-se da tloresta do soneto Correspondances,
morreram em Lambessa ~ e os negros foram trazidos para a um templo de SIgnificações, no qual o poeta se exila após o golpe
metrópole como força de trabalho barata. de Estado. Ali ele pode estar seguro da solidariedade dos vencidos
As duas estrofes finais, com suas enumerações anafóricas, e do efeito revolucionário de seu sofrimento. A velha recordação
exibem o percurso dilacerante da inamovível melancolia baude- que ressoa alto diante do Louvre é o chamado às armas;
lairiana; o triste córrego em que a dor de Andrômaca se refletia
atinge, por força da experiência visionária da dor universal dos C cst un cri répété par mil1es sentinel1~,
vencidos, as proporções de uma correnteza ~ mais precisamente, Un ordrc renvQyé par mille porte-voix;
já não é o Louvre que serve de espelho, mas as lágrimas que sua Ccst un phare allumé sur mi1le citadelles,
reconstrução custou ~, uma correnteza que, noutro momento Un appel de chasseurs perdus dans les arands boiS! H
histórico, teria sido a salvação do cisne. Mas essa correnteza não
poderia surgir sem mais nem menos ~ com um trovão dos céus, como se lê na estrofe análoga de Les Phares, que chama atenção
como desejaria o cisne em sua súplica ridícula e sublime (vv. 23- para a continuidade histórica (e artística) da resistência, ao passo

116
"7
que nosso poema destaca o cosmopolitismo do movimento revo- Se não, leia-se a descrição que Buffon, muito estimado por Baude-
lucionário, cujo centro está em Paris, capital do século XIX. laire, oferece do nosso animal:
O procedimento hermético de Baudelaire não era inteira-
mente novo. O mascaramento de conteúdos políticos sob formas O leão e o tigre em terra, a águia e o abutre nos céus gover-
mitológicas ou zoológicas é parte do metodo da retórica republi- nam tão-somente por meio da guerra, dominam tão-só pelo
cano-socialista, que se refinou continuamente depois das leis de abuso da violência e da crueldade, ao passo que o cisne con-
censura mais estritas que Louis-Philippe baixara em setembro de trola as águas por obra dos títulos de direito que fundam o
18H. O mais das vezes, essas metamorfoses tinham intenção sati- império da paz, por obra da grandeza, da majestade e da
rica: em Daumier, que vestia seus burgueses em trajes clássicos, as gentileza; com o poder, com a força, com a coragem e com
intenções políticas são em geral evidentes; em A viJa .~o(jal eJami- a vontade de não fazer mau uso delas, de pô-Ias a serviço da
liar dos animais (184-2), de Grandville, elas são menos inequívocas, defesa, o cisne consegue lutar e vencer sem jamais atacar: rei
mas não por conta de uma codificação mais complicada, e sim por padfico das águas, ele se impõe aos tiranos do ar;.fica à espera
causa de certo arbítrio fantástico no estabelecimento das analogias, Ja águia, .~emprovocá-la, sem temê-la [... l. É esta, de resto,
como Baudelaire apontou com justeza. Baudelaire é obscuro como sua única inimiga arrogante; todos os pássaros combativos
Grandville, mas sempre exato e certeiro como Daumier (de resto, temem-no, e ele vive em paz com toda a natureza: é mais um
encontram-se em Fourier, Blanqui, Heine e no historiador Karl amioo que um rei entre os numerosos bandos de pássaros
Marx várias caricaturas dessa espécie, que nada ficam a dever às aquáticos que ~e submetem à sua lei; ele é apenas a cabeça, o
de Daumier). A codificação dupla de O cisne supera a sátira para primeiro habitante de uma república tranqüila, na qual os cida-
tornar-se elegia heróica. Da comedia da "invocação dos mortos dãos não têm nada a temer de seu senhor, que só lhes exige
ilustres" (Marx) em 1848 resta apenas o hélas! (v. 40) dirigido a o que ele mesmo lhes concede, e que não quer outra coisa
Bonaparte-Heleno - Marx chamava-o de "Cavaleiro Krapulinski" senão paz c liberdade.'>
- e o ridicule et sublime, suma melancólica da insurreição de junho.
Folheando a lírica militante proletária daquele ano, nota-se Enquanto Pierre Dupont compara desajeitadamente o socialismo a
que Baudelaire funde essa matéria bruta no cadinho de sua fanta- um pássaro cujas asas são os trabalhadores e os estudantes (Canção
sia, a partir daí forjando in lj'rannos uma nova e inquebrantável dos estudantes) - uma ilusão, aliás, pois os estudantes foram apenas
espada artística. Assim, o oalo oaulês, cujo cantar despertou os o "enfeite poético" da revolta (Marx),.\6 lutando em junho do lado
povos da Europa em 1848, transforma-se no cisne, emblema pro- da ordem -, falando como todo mundo da coragem de leão do
letário mais profundo e mais livre da escória nacionalista. Supo- povo faminto, de ·sua diligência de abelhas, de sua inocência de
nho que o cisne tenha tido certo lugar na iconografia republicana. cordeiro ou de pomba, Baudclaire prefere, melhor poeta e socialista

118 119
que é, reunir tudo isso na imagem do cisne. Na simbologia zooló- na Cu/erie uu borJ de l'eau, abaixo dasTulherias. Quem redamava
gica clássica, fixada pela primeira vez por Aristóteles, o cisne é da dieta de pão e água era fuzilado, como se vê na Edu(uçiio senti-
imagem sensível de sin(erítas, (On(ordia,fiJes, e ainda de paixão, mental. \9 Nessa mesma praça do Carrousel, a Guarda Nacional foi
suavidade, tranqüilidade, coragem, majestade, refinamento. Que responsável por uma matança de prisioneiros que deviam supos"
outro animal serviria melhor de emblema para as classes oprimi- tamellte ser levados para o banho de so1.40
das? Também o nome e a biografia de Blan<Jui (blan(::: branco), o Diante da fàlsa continuidade histórica da águia imperial
então lendário Ergermé -"cabeça e ('oração do partido proletário renascida - a águia é o único inimigo do cisne -, <Jue na ver-
na França" (Marx) -, cujo novo cativeiro em Belle-Isle e na dade não passa de um corvo, como se zomhava por então, já que
Córsega é aludido no penúltimo verso - ainda que Hugo deva o seu vôo se chama roubo Cle vol" significa as duas coisas), é por
têlo ('omo referência a seu exilio - estão inseridos no emblema. baixo que a história vem ao encolltro do poeta, por via dos
Água, maré, relâmpago, tempestade e trovão pertencem milhões de miseráveis que jazem no pó. Uma estátua no portal do
ainda ao campo metafórico da revolução (são inúmeros os textos novo setor norte do Louvre (erigido entre 185"0 e 185"6) oferece
que o provam). Daniel Stern narra que, em 24 de fevereiro de a versão l1apoletmka de socialismo - uma vez que o imperador
1848, o patife Thiers irrompe esbaforido na Câmara dos Depu- gabava-se de sua simpatia pelas classes trabalhadorasj o Baedeker
tados, conta já sem fôlego e de chapéu na mão a notícia do avanço de 185"8 descreve-a assim: uUm grupo de esculturas adorna o por-
do povo, exclama" A maré sobe, sobe, sobe. Nada a fazer J" e desa- tal: a lnte/igênciu e o Trabalho, a primeira desenrolando o projeto
parece no tumulto. H Nas Lutas de classe na França de Marx lê-se do Louvre, a outra com uma corl1ucópiaj sob as duas uma estátua
<Jueo processo em Bourges contra Blanqui, Barbes, Albert, Raspail da Franç<1 apoiada sobre um cetro; por trás de tudo, o nome impe-
e seus camaradas deu aos "revolucionários reais o aspecto de cria- rial".41 Vale notar que o trabalho não entorna a cornucópia para
turas primevas, que só um dilúvio poderia depositar na superfície gozo próprio, mas para a inteligência, ou seja, curto e grosso,
da sociedade, e que por sua vez não podem deixar de preceder para o capital. Baudelaire opõe a uma tal alegoria a sua imagem da
um dilúvio social". IH A justaposição das duas citações esclarece a doulcur, em cujo seio definham os órfãos da república. A esperança
dialética histórica de maré alta e maré baixa entre fevereiro e depositada nos filhos dos vencidos e das vítimas, invertendo (vv.
junho de 1 848. Em fevereiro vogavam pela praça do Carrousel as 45"-48) a imagem da famosa tela de Daumier (A República nutre e
ondas de povo: a festa revolucionária nas Tulherias foi o clímax educa seusfilhos; a tela permaneceu inacabada em conseqüência da
orgiástico das jornadas de fevereiro. Em jtmho, essa maré parecia curta duração da Segunda República), articula mais do que uma
uma fantasmagoria; tampouco veio a tempestade redentora. A necessidade de auto-confiança: trata-se aqui, uma vez mais, da
reação campeava por onde o júbilo dominara em fevereiro, e dialética da revolução, da escola do sofrimento, cuja gênese e
milhares de prisioneiros foram amontoados e deixados à mingua desenrolar o poema acompanha em detalhe. No final dessa elegia

120 T 11
heróica, um drculo magko de memórias impõe"se à nova cidade explicações",4~ dizia Brecht. A réplica de Benjamin está numa
de fachada, e salta aos olhos aquilo que Benjamin denominou, carta a Horkheimer: "Isso acontece porque é necessário ter dei-
algo abstratamente, "a fragilidade das grandes cidades". xado para trás os quadros do pensamento burguês, certos modos
Baudelaire anunciara para o primeiro aniversario da revolução burgueses de reagir - não para apreciar este ou aquele poema,
de fevereiro (24.02.1849) o lançamento das futuras Flores da Alal, mas para aclimatar-se às FIares da Mal [ ... l. Nada fácil, mesmo que
sob o titulo de Os limbOI; em 18~0, um novo anúncio precisa que os fosse c.~saa única pré-condição (... ]."41> Ou ainda mais precisa-
poemas tencionam "apresentar les agitation.\· eles mélancolies da mente, Iluma passagem de Parque Central: "A dificuldade inaudita
juventude moderna".4' Em 18~ I saem as primeiras onze peps, de se aproximar da poesia de Baudelaire está, para usar uma fór-
com a observação de que o poeta gostaria de "esboçar a história das mula, em que nada nessa poesia envclheceu."47
agitações espirituais da juventude moderna".H Eis ai sua essência:
elas formam uma biografia íntima da.'!lutas de classe na França -
à qual não é estranha a idéia de que o ataque fora prematuro, for-
Notas
mulada em outro poema zoológico, Les Hiboux - e seu "ponto de
vista filosófico" é o de espera, atitude que O cisne vem aprofundar e
I As teses exposta.~aqui baseiam-se em minha dissertação Die antibol1r-
concretizar em I 8~8/ 9. Nosso poema revisita as aporias de junho eeoiIc .ti:'thctik de,' jl1neen Bol1delaire - Untersuchuneen zum Sa/on de /846
ao captar o absurdo de uma revolu(;ão precoçe por meio de um (Frankfurt, r 9H). O parentesco entre os procedimentos de distancia-
mento irônico de Brecht e os procedimentos de Baudelaireé demons·
absurdo espacial: o cisne imerso na poeira de uma sarjeta pari-
trado em meu ensaio ".t<sommons les pau,·reI! - Dialektik der Befrcitmg
siense. A profunda visão histórica de Baudelaire, da qual também hei Baudelaire",in Gcrmanisch-10manische Monat5."hr!F 4 (1975).
suas cartas dão mostras, faz da sua lírica o pcndant visionário da pra- ~ Walter Benjamin, (bar/e,' Bal1delairc. Ein Lyrikcr im Zeitalter des H<><:bka-
pua/isml1_', ed. de RolfTiedemann (Frankfurt, 1974), pp. r 92S8.
xis de Blanqui ou da historiografia de Marx. Já o título de Os limbos
l /Jem, p. 100.
deixa transparecer simpatias pelo socialismo utópico de um 4 Bert Breeht, GesammeIJe Werke (Frankfurt, 19(7), V. VIII, p. 409.
Fourier. Mas seu utopismo é saturado da experiência histórica do 5" [demo
6 "Allomtion de M. George.~Pompidou, Premiu Ministre", in Bal1delaire.
fracasso de junho. Uma frase de Marx resume sua mensagem: "Mas
Actes du c"lloquc de Nice (2S-27 mai 19(7), Annales de la Faeulré des Let-
a revolução é exigente. Ainda terá que atravessar o purgatório. Ela fres Cf 5dences Humaines d. Nic., 1968, mim. 4' S, pp. 21 S - 217.
executa sua tarefa com método".++ O mesmo método que Baude- 7 QDeminha parte, abandonarei com satisfação / um mundo em que a
laire exige como político e demonstra como poeta lírico. açào não é irmã do sonho."[N. T. J
8 Benjamin, Baud./aiu ... , pp. 13 sss: QAs corrcspondances são dados da
remem()ra~,ão.Não são dados historicos, pertencem à pré-história [Vor-
"Ele não expressa sua época, nem sequer dez anos dela. Logo não ~scbicbte]". Vide também Oskar Sahlberg,QBenjaminsWidersprüche",
será mais compreensível, mesmo hoje já são necessárias muitas in Ncue Rl.lndschal.l 3 (1974), pp. 464-487.

122 12 ~
'l "Raça de Abel - dorme, bcbt' e come; I Deus te sorri com compla- fugira da gaiula / E, calcando com suas pata< () pavimento seco, I Arras-
cênda. 1I Raça de Caim - que na lama I lu rastejes" morras mise- tava sua plumagem branca sobre o chão a.~pcru. I Junto a um t'órrego
ravelmente." [N. T.] .'em água o animal, abrindo o bico, I1 Banhava nervosamente suas a'as
10 "Raça de Abel, leu cadÁver I servirá de esterco na tara fumegante. II no pó I E dizia, o coração ansiando por seu belo lago natal; I "Água,
Ra,;a de Caim, tua tarefa I ainda não é finda. II Raça de Abel, eis aqui quando choverá.~? Trovão, quando ressoarás?" I Vejo o infeliz, mito
tua vergonha: I a c:,pada vencida pela chu.,:a! 11 Raça de Caim, sobe estranho c fatal, I Virar-se volta e meia para o céu, como o homem de
aos céus I e joga Deus por terra." [N. T. J Ovídio, I Para o céu irônico e e cruelmente azul, I Voltando sua cabe-
I) Marx, Marx-Engcll- Werke (\lEI!), v. 5, p. )34. ça ávida sobre o pescoço convulso, I Como se dirigbse censuras a
12 Benjamin, &udelaire. , ., p. 2o. Deus! 1I 11. Paris transforma-se! mas nada em minha melancolia I
I] "Que fim dará Deus a essa vaga de anátemas I Que lodos os dias sobe Mudou! novos paIados, andaimes, blocos, I Velhos subúrbios - tudo
até seus queridos serafins? Como um tirano empanturrado de carne " para mim torna"se alegoria, I E minhas lembranças são mai~ peMda<
vinho, I Ele adormece ao doee rumor de nossas terriveis hlasfêmias." que rOl,has. !Ilàmbérn diante deste Louvre uma imagem me oprime:
)4 louys Dclteil, Le Peintre-Of<1wur il1u,ltrc, Daumicr (Nova York, ,,)69), I Penso em meu grande cisne, com seus gestos desvairados, I Ridículo
númcros 268 e 269. e suhlime como os exilados, e r<>ídopor um desejo sem trégua; ma<
J 5 Auguste Blanqui, Te.YW choisis, ed. Volguine (Parb, )955), p. J 07. também penso em ti, 11 Andrômaca, arrancada aos bra.,n< de um gran-
)6 Vide W Benjamin, Tesessobrc a.fila."Jia da hi.<tôria, IX. de esposo, I Gado vil nas mãos du soberbo Pirro, ! Curvada em êxta-
17 "A humanidade falastrona, ébria de sua própria genialidade, I E tão ~e sobre um túmulo vazio; I Viúva de Heitor e, ai!, mulher de Helena!
louca hoje como outrora, I Grita a Deus em sua furibunda agonia: I II Penso na negra, magra e tíska, I Patinando na lama e bu.~can<:locum
"6 meu semelhante, ó meu senhor, eu te amaldi.,·ôo!" [N.T.] o olhar esgazeado I Os coqueiros ausentes da soberba África I Por trás
18 Litanics, verso 4]55: "PCreadopt!fde (Cus 'lu 'cu 'a noite eolere I Du p"roJü da muralha imensa do nevoeiro; I1 Penso em todos que perderam "
ferrestre a chassc Dicu 1e PCre"I"Pai adotivo daqueles que, em sua negra que não se encontra I Nunca, nunca mais! penso na{[ucies que bebem
cólera, I Deus-Pai expulsou do paralso terrestrc".] suas lágrimas I E mamam a Dor como se fosse uma loba bondosa! !
19 "Cc"t lc Diable qui tienr Ic,I.ftls 'lui nous remueutr Penso nos órfãos magros fenccendo como as tlOrt's! II Assim, na f1o)"{'~-
20 L'!mpréru, versos 29- J2: "Arez-I'ous Jone pu ao;re, hypocrires surpris, I ta em que se exila meu espírito, I Uma velha Lembrança re~soa a ple-
03" oU .<Cm0'luc du maiue, et 'lu 'arec fui On trichc I EI 'lu 'il ,>ci! natu,e! Je nos pulmões! I Penso nos marujos esquecidos numa ilha, I Nos cati-
re(C"oir deus prix / D'aJJerau cieI el J'être riche?" vos, nos vencidos! ... e em tantos outros mais!" [N. T.]
2) () Cisne: " I. Andrômaca, penso em ti! Este córrego, I Pobre c triste 22 Benjamin, Gesammdre Sehr!fteu, v. l.1, ed. Rolf Tiedemann e H.
espelho no qual outrora resplandeceu I A imensa majestade de teus St'hweppenhauser (Frankfurt, )974), p. ) [42, c ainda B..Juddaire ... , pp.
sofrimentos de viúva, I Este Simeonte mendaz que cresce com lu~~ 81 ss.
lágrimas, l/De súbito fecundou minha memória fértil I Quando eu 21 Vide por exemplo Hugo Friedrich, Struktur der modernen Lyrik e H.-R.
cruzava o novo Carrousel. I A velha Pari~ não existe mais (a forma de Jaus,~,"Zur Frage der'Struktureinheit' alterer und moderner lyrik", in
uma cidade / Tran.~forma-sc mais rapidamente que o cura."ão de um GIIF 10, )960, pp. 231-266. A filologia baudelairiana alemã não consti-

mortal); II Vejo tão-só em espírito esse campo de barracas, I Esses tui exceção no quesito de nebulosidade.
capiteis e cornija.~ esboçadas, I A erva daninha, as pedras esverdeadas 24 Benjamin, Baudelaire ..• , p. 99.
pela água das poças I E a confusão refletida nas vidraças. I1 Havia ali 25 Comparem-se oS versos 15sS e 23 de O cisne com a oonclamação da
outrora uma venda de animais; I Ali eu vi, certa manhã, na hora em que Sociedade das Estações, já citada mais acima, onde se lê: "levanta-te,
sob os céus I Frios e claros o Trabalho desperta, quando os varredores povo! e teus inimigos desaparecerão como o pó diante da tempestade"
I Levantam uma sombria tormenta no ar silen.cioso, / I Um cime que - vide Blanqui, op. eit., p. J 07.
26 Comparem-se os poemas pos-junho de Gustav,-, Ll'l"0Y (Les SolJ,m du
DésespOir), Charles GilIe (Les Tombeau.1 de fuin) , Adrkn Delaire (Le Ch<lnr
des Maro/f,1 defuin), in Le P<lmphletdu Pauvre, 00. P. Brochon (Paris, 191j7).
27 Há menções à sua arrogância em todas as can~'ões republicanas sobre o
general; vide idem, p. 191: Et sUr le prop]', celte conojl/e, / J.'fis dJcharoer
ma mitmil/c [E sobre o povo, esta canalha, / Mandei disparar a mctr.l-
lha]. 28 Marx, ,1IEII,v. VIlI, pp. [19-120.
29 Delteil, op. cit., número 21 S 3.
30 Idem, número 2176.
31 Idem, numero 2180.
32 A idéia de que os órfãos dos insurretos de junho de 1848 formariam
uma gera~"ào de vingadores pertence ao acervo comum da lírica fl.'VO-
lucionaria proletaria; vide as can~'ões citadas na nota 2 o.
33 Marcel Proust, uÜber Baudelaire", in hJoe des Lesen.<.Drei Es"O)'s(Frank-
furt, 1963), p. 108: "Esses finais tão fkeis são talvez propositais. Ainda
assim, parece havcr ndes algo de abreviado, algo (te pouco inspirado."
Não será decerto por acaso que O cisne termina no verso S 2: pruva de
que a memória poétka não tem mais nada para rec{}rdar depois de [8S2.
34 "E um grito repetido por mil sentinelas, / Uma ordem enviada por mil Mitologia parisiense
porta-vozes, I Um farol aC';'SQem mil dtadclas, / Um chamado de
caçadores perdidos nos grandes bosquesl" [N.T.}
H Buffon, Oeuvrcs CompUtes, v. V (Paris, 1830), p. 441; os grifos são meus.
}6 Marx, -IIEIr,v. VII, p. 61. [TRADUo;;'ÀO Samue1Titan J r·1
37 D. Stern, Hi.<wire de la rél"olution de 18.J-8, v. I (Paris, 1862), p. 271.
}8 Marx, ,I/EII,v. VII, p. fi,
39 Flau6ert, Lehrjohre Jes Hef1.en<[A cJucoçiío sentimenwll (Munique, [9P),
pp.44-1-44J·
40 Como narra o amigo de Baudclaire, Louis Ménard, em ProloBue d'une
rél'olutÍon (Paris, '9P), p. 55.
41 K. Baedeker, Poris und Umgebuno"n (Koblcnz, 18~ 8), p. 84_
42 Baudelaire, Les fleurs Ju Mal, ed. Crépet/Pichois, 1'. I (Paris, 1968), pp.

SH-B6.
4I Idem.
44 Marx, .tIEII',vol ViU, p. 196.
4~ Brecht, op. cit., p, 408.
46 Benjamin, Briife, ed. Adorno I Schol em (Frankfurt a IM, 1966), p. 742.
47 Benjamin, Baudelaíre ... , p. 168.

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