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CAMPUS DE CURITIBA II – FACULDADE DE ARTES DO PARANÁ

CURSO DE BACHARELADO EM CINEMA E AUDIOVISUAL

Disciplina: Cinema japonês de fantasmas


Professor: Demian A. Garcia
Aluno: Gabriel Mont’Serrat Vieira Pinto

Seance (2000), a análise do fantasma como metáfora

Seance (Kôrei, 2000) dirigido por Kiyoshi Kurosawa, um dos mais renomados
cineastas japoneses da atualidade, conta a história de Junko Sato (Jun Fubuki) uma
médium descontente com sua própria vida como pária da sociedade por suas
habilidades desacreditadas e seu marido Koji Sato (Koji Yakusho), um engenheiro de
som aparentemente satisfeito com sua vida pacata após o desaparecimento de uma
menina da região e o apelo das autoridades locais às habilidades de Junko para a
solução do caso. Por uma coincidência bizarra a menina foge de seu sequestrador e
encontra nas caixas de equipamento de Koji, que trabalha gravando os sons de uma
floresta, uma oportunidade para se esconder, sendo levada para a casa do casal sem o
conhecimento deles. Junko “sente” a presença da menina e ao questionar o marido e
ambos encontrarem o corpo desacordado em uma mala enfrenta um difícil dilema
moral da possibilidade de fama e sucesso como médium e a necessidade de retornar a
garota às autoridades e aos seus pais. Após um trágico acidente Koji acaba matando a
menina e os dois se vêem obrigados a esconder o corpo e seguir vivendo normalmente
depois da fugaz mas poderosa possibilidade de fama e reconhecimento, agora
assombrados pelo espírito da menina assassinada, além de fugirem das suspeitas da
polícia, que rapidamente se aproxima dos culpados.
Embora Junko seja representada desde o príncipio como uma legítima médium,
coisa que não acontece nem no livro do qual foi adaptada a história para o filme de
Kurosawa nem no filme de 1964 também adaptado da mesma obra, o espírito da
menina, objeto de análise deste texto, age de maneira diferente dos espíritos que a
assombram durante o momento inicial do filme. O espírito da garota que passa a
assombrar seu cotidiano é muito mais representativo de sua tentativa falha de inserção
na sociedade como uma mulher independente, uma metáfora de sua ambição perdida
e da destruição de todos os seus sonhos de liberdade. Esse caminho de interpretação
pode ser muito bem avaliado no icônico plano onde Koji e Junko almoçam juntos em
um restaurante e, em um corte abrupto para um plano médio de Junko há um braço
infantil pairando sobre seu ombro, um peso, enquanto o rosto de Junko é tomado de
resignação, de um olhar deprimido, ciente da futilidade de seus sonhos perante o real.

Se para Junko o fantasma age como uma metáfora da ambição perdida, para
Koji, autor do assassinato, ele é a encarnação da culpa, não só dele como a de sua
mulher, que tenta puxar para si mesmo, até nisso invalidando a capacidade dela de
tomar decisões próprias. Koji não é mostrado como sendo capaz de ver espíritos ou
interagir de qualquer forma com o mundo sobrenatural em momento algum antes da
morte da menina. Toda sua experiência com fantasmas se dá depois de cometer o
assassinato, reforçando a presença do espírito em seu universo como um símbolo. Koji
sabe de sua culpa e a de sua mulher mas, carregado de seu senso de
“responsabilidade” para com seu próprio lar tenta culpar a tudo e todos e age com
violência quando confrontado pelos seus espíritos.

Kurosawa já comentou que escreve seus filmes inicialmente a partir do gênero


que deseja abordar e então procura temas e significações de seu interesse. Isso
explica seu enfoque em espíritos e no sobrenatural em uma história baseada em um
livro que pouco aborda esses temas, tratando muito mais diretamente da ganância e
das falhas completamente humanas de suas personagens. Kurosawa queria fazer um
filme de terror e o fez muito bem, deixando ainda sim escapar por trás de suas tramas
fantasmagóricas um subtexto profundo, coisa que todo filme de terror faz, mesmo que
inadvertidamente, embora nem sempre de forma tão coesa e clara. A presença dos
espíritos como realidade inclusive foi responsável por amplificar as sensações e a
“prisão interior” das personagens. Ao dar vida ao sobrenatural o espectador sente com
ainda mais força a fatalidade do destino de Koji e Junko.
Em um momento do filme Koji se vê sozinho em seu ambiente de trabalho, uma
solidão repentina e inexplicável pois o lugar é visto segundos antes lotado de pessoas
trabalhando, e, após ter de sair para procurar um cabo que precisava, encontra com o
“fantasma” (para Koji é importante a distinção através de aspas) da menina
assassinada suja de lama, proveniente da tentativa de enterrar um corpo em uma
floresta qualquer durante uma noite de tempestade. O “espírito” não age com violência,
como seria comum em outros filmes do gênero. Ela o toca, apenas, manchando sua
blusa com as duas mãozinhas marcadas em lama. Essa cena é um novo reforço à
interpretação de que esse “fantasma” não é apenas um espírito humano sedento por
vingança, mas uma materialização das angústias das personagens. Após essa visão
Koji busca a ajuda de um xamã local, que realiza um ritual de purificação do lar. Essa
tentativa obviamente não surte efeitos e não muito depois Koji vê o “espírito” da menina
e tenta “matá-la” novamente, como mostrado nas imagens anteriores. A solução para
ambas as personagens está completamente fora de suas mãos, o destino deles foi
selado após a tentativa trágica de fugir ao molde ao qual estavam presos.

O cinema de terror e especialmente o cinema de terror sobrenatural foi tratado


por grande parte da crítica e do público, principalmente dos anos 90 até hoje, como
máquina de produtos industrializados carentes de significado e valor cultural. É claro
que para a maioria dos cineastas e amantes do gênero essa visão distorcida sempre foi
irrelevante e não faltaram exemplos de filmes “carregados” durante essas décadas de
atenção especialmente comercial reservada ao terror. Seance, e muitos outros filmes
da filmografia de Kurosawa, demonstra mais uma vez (não que isso precise ser
novamente repetido) o valor do gênero como ferramenta de criação de significado. O
fantasma não só assusta, como gera questionamentos intensos quanto a moralidade
dos protagonistas e de seus desejos. O suspense não só prende o espectador como o
faz questionar suas próprias decisões caso os papéis se invertessem. Esse tipo de
engajamento é a função do cinema de gênero que é utilizado com maestria nesse
filme.

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