Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
HABITO
Apoio: Capes/UNIRIO
Resumo: Através da análise da personagem transexual Vera, presente no
filme A pele que habito, de Almodóvar, procura-se pensar a feminilidade como
resistência política. Se, a partir das ideias de Michel Foucault, a feminilidade
pode ser considerada uma construção social produzida pelas relações de poder
apresentadas em dado período histórico - um comportamento moldado por meio
de uma política de controle e disciplina dos corpos -, a psicanálise nos mostra
que os mesmos elementos usados para delinear corpos femininos podem
também, em contrapartida, dobrar as estruturas tradicionais de poder, permitindo
uma forma de resistência criativa ligada à produção de si.
Como é costume nas obras de Pedro Almodóvar, A pele que habito apresenta já
em sua primeira sequência de imagens – assim como nas que se seguem - uma extrema
carga de elementos simbólicos. Na primeira tomada, em primeiro plano, uma grade de
ferro através da qual é possível ver a paisagem de uma estrada de terra em estilo
bucólico. Na tomada seguinte, uma nova grade e uma janela, também gradeada, por
onde vê-se em desfoque uma figura humana movimentar-se. A terceira cena traz uma
pequena câmera de vigilância arredondada na parede num close que gradualmente se
abre, revelando uma sala minimalista, cujas únicas presenças são uma mulher vestida
em um colã bege e um sofá verde-musgo.
A sensação de vigilância é elemento constante na estrutura narrativa do filme.
Câmeras estão alocadas na entrada da casa de Robert e no quarto de Vera. Telas de
controle aparecem na cozinha, sob olhar atento da governanta, e no quarto do médico.
As grades, as portas trancadas, o dia a dia de Vera, a rigidez dos empregados, a
meticulosidade profissional de Robert, a higiene e a organização excessiva da casa.
Nada está fora do lugar. Sentimos no filme que estamos em um ambiente controlado em
seus mais insignificantes detalhes. A rotina impecável de Vera começa desde o café da
manhã, quando recebe sua primeira refeição por um sistema arquitetônico que permite
sua entrega de modo a evitar todo e qualquer contato. Sua comida é calórica, nutritiva e
hormonalmente calculada. Tudo que Vera utiliza é pedido e previamente autorizado.
Tudo o que produz e o modo como passa seus dias, constantemente observados. O que
lê, o que assiste na televisão, as roupas que veste, o que come, como dorme. Sua
existência é um verdadeiro projeto, seus movimentos, ininterruptamente avaliados.
O angustiante cenário remete a um tipo estrutural de poder que Michel Foucault
denomina sociedade disciplinar. Para ele, o processo que deu origem ao modelo de
sociedade moderna trouxe consigo novos paradigmas, antes inexistentes nas sociedades
medievais e absolutistas. Modelo comum aos déspotas e monarcas da Europa entre os
séculos XV e XVIII, o poder de soberania característico da época pré-moderna previa
sua manifestação através de mecanismos de força e de violência preponderantemente
física. O poder era, assim, exercido e representado na forma de punições - através de
suplícios e condenações - e no ato de “deixar morrer”, de maneira centralizada e
delimitada à figura do soberano.
Com as novas concepções filosóficas iluministas e as revoluções liberais,
Foucault percebe no século XVIII uma transição de eixos, em que o poder, na figura do
Estado e das instituições, passou a se manifestar de forma diferenciada. Menos
corpóreo, um poder de ordem imaterial – mais velado e sutil que o anterior –
apresentava-se constante e ininterrupto em meio ao cotidiano dos indivíduos, e
revelava-se no processo de “garantir, sustentar, reforçar, multiplicar e pôr em ordem a
vida”1. Se antes, ele era evidenciado pelo direito de vida e de morte, Foucault sugere
que na modernidade a velha potência em que se simbolizava o poder soberano foi,
cuidadosamente, recoberta pelo que ele analisa como a administração dos corpos e a
gestão calculista da vida.
É exatamente o que ocorre na vida de Vera, com sua rotina diária, seus
programas de tv, suas leituras, todos os elementos de seu cotidiano direcionados para a
construção e manutenção de uma subjetividade feminina. Uma anátomo-política do
corpo. Porém, a lógica que Robert utiliza para a construção de uma mulher perfeita
ultrapassa os limites corporais. Ela também se instaura na tentativa de construção de um
comportamento, de uma memória a partir da uma adequação contínua da existência. Ao
mesmo tempo, seu corpo é controlado a partir de uma dieta definida e uma cartela diária
de hormônios. A cientificidade dada pela figura de Robert reforça a idéia na medida em
que ele constrói o físico de Vera, na medida em que aplica sua pesquisa em sua
superfície, nos testes em relação à sua pele transgênica.
Assim como no filme, para Foucault a lógica característica da ciência e da
indústria invade o ambiente social e subjetivo na regulação dos seres humanos e em
suas formas de vida, num movimento que ele denomina de “biopoder”. O autor
relaciona tal evento a concepções intrinsecamente ligadas ao conceito de
“administração”. A visão do corpo como uma máquina e como um suporte de processos
biológicos possibilitou a idéia do desenvolvimento de habilidades e do adestramento;
concebeu-o, em última análise, como um elemento passível de ser calculado e
controlado tecnicamente. Assim como Vera, o indivíduo passa a ser algo condicionável,
capaz de ser submetido a técnicas científicas e industriais, que, interiorizadas, o
disciplinam3.
5
G. Deleuze, Conversações. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 219.
6
G. Deleuze, ops. cit., p. 221.
A partir de Gilles Deleuze7, pode-se considerar três modulações distintas na
forma de compreender o poder presentes na trajetória de pensamento de Foucault,
modulações essas marcadas por três grandes temas: o saber, o poder e as práticas de si.
Assim, sua obra apresenta um primeiro momento em que o autor centra-se no problema
da produção de saberes, estudando e desnaturalizando práticas e discursos que
produzem objetos de saber; um segundo momento em que estuda os exercícios de
poder, incluindo relações de força, domínio e sujeição; e um terceiro e último momento
em que, resgatando a ética, a erótica, a dialética e a estética gregas, compreende as
relações de si como uma forma possível de resistência frente às sociedades compostas
pelo modelo disciplinar.
Mas o que seriam as práticas de si? E por que motivo Foucault finaliza com elas
seu pensamento? As respostas para essas perguntas desenrolam-se a partir do segundo
movimento teórico foucaultiano, momento em que vislumbra o poder em seus diversos
domínios, não somente em seu exercício enquanto opressão de uma classe sobre outra,
ou concentrado e localizado em uma esfera específica, no Estado, por exemplo.
Seguindo por outro caminho, o filósofo percebe o poder presente em todas as relações,
efetuando-se nas instituições e infiltrando-se nos tecidos sociais, apresentando-se tanto
em escala macro quanto em escala micro, gerando não somente por repressão, como
também produção de subjetividade. Essa constatação, entretanto, leva-o a um impasse.
Se o poder está em todo o lugar, como resistir a ele? Como ter liberdade em um sistema
onde não há lugar possível fora do poder?
Em uma lógica na qual o poder encontra-se em todos os lugares, a possibilidade
de resistência exterior a ele se torna inviável. A única solução nesse caso teórico seria,
assim, a produção de uma contra-memória. Aqui, podemos nos servir do trabalho de Jô
Gondar8 sobre a questão da memória no pensamento de Foucault. Essa contra-memória
trabalharia “no sentido de recuperar, resgatar, lembrar a violência de uma escolha
7
G. Deleuze, Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005.
8
J. Gondar, “Memória, poder e resistência”, in: J. Gondar & M. Barrenecha, Memória e espaço: trilhas
do contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003, p. 32-43.
imposta como ‘neutra’, denunciando as relações de dominação e submissão que, de
outro modo, ficariam escamoteadas”9. Apesar de resolver o problema da resistência, a
contra-memória leva, em contrapartida, a outro impasse.
9
J. Gondar, op. cit., p. 34.
10
J. Gondar, op. cit., p. 34.
11
J. Gondar, op. cit., p. 35.
12
J. Gondar, op. cit., p. 34.
Aqui, voltamos ao nosso objeto. Em A pele que habito, Vera, ou Vicente, tem
um corpo perfeito de mulher. Sua pele, suas curvas, seu cabelo, a maquiagem e as
roupas que usa. Tudo remete ao universo feminino. Mas ele – ou ela – se sente
verdadeiramente mulher? A dúvida não parece ser só do espectador. Em diversas
passagens do filme, sentimos que esse questionamento é atravessado em diversos
momentos pela própria personagem, que oscila numa postura nunca sabida se real ou
forjada. Não é à toa que Robert, médico que durante toda trama mantém um semblante
profissional e distante, comete no fim seu maior erro: apaixonar-se por Vera.
Seus trejeitos são absolutamente femininos, e sua aparência muito fiel ao ideal
estético do que se define socialmente como mulher. Sua aparência é tão perfeita que, de
tão perfeita, não é real. Seu aspecto nos confunde, e por vezes nos faz esquecer da
verdade de seu passado. Vera não é transexual porque quer. Sua mudança de sexo foi
imposta por um ente externo, à sua revelia. Estaria Vera conseguindo manter alguma
autonomia subjetiva mesmo que, de acordo com o que é previsto pelos códigos,
apresente uma identidade feminina? De que mecanismos ela se utiliza para resistir ao
poder disciplinar de Robert? A situação lembra uma passagem do texto O que é uma
mulher?, da psicanalista Marie-Hélène Brousse13, que conta uma anedota a respeito do
psicanalista Antonio Di Ciaccia. Nela, uma mulher o procura pedindo análise sob a
justificativa de Antonio ser “um homem”. Ele, então, pergunta o que ela saberia sobre
isso – ser um homem -, ao passo que ela responde: pelo menos, Antonio se parecia com
um.
Mesmo que para o autor o foco sejam as mulheres, o que ele tematiza é a
identidade sexual como fantasia. “Fantasia”, aqui, não é uma denúncia: não é
uma acusação de que ali se encarna algo falso, cuja essência estaria em outro
lugar. O que se pode interpretar de seus filmes é que a aparência é a própria
essência da identidade: não há nada que se sustente “por trás”, ou mais
profundo: nem natureza corpórea, nem uma suposta transcendência abstrata. 17
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Brousse M. (2012). “O que é uma mulher?”, Latusa digital, ano 9, n. 49.