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“MARIDO DE BICHA”: PERFORMANCES DE GÊNERO & OUTRAS TROCAS

Dorinaldo dos Santos Nascimento [1]

RESUMO
Neste capítulo, analisaremos performances de gênero de personagens masculinos que
intercambiam favorecimentos e/ou vantagens financeiras por sexo configurando novos
arranjos relacionais na obra Os solteirões (1975), de Gasparino Damata.

Introdução
Este trabalho encontra-se “num entrelugar epistemológico” (SOUZA JÚNIOR, 2007,

p. 120) enquanto crítica literária em cruzamento aos Estudos Culturais. À luz disso, segundo

Silva e Fernandes (2011, p. 134) “Essa episteme nasce da emergência de tantos sujeitos nas

sociedades que reivindicam lugares antes inexistentes, negados ou em processo de tolerância e

aceitabilidade”. Em que pese, também, sublinharmos a inserção deste estudo no amplo e

complexo universo da sexualidade, termo de uso recente na cultura Ocidental para denominar

um dispositivo histórico em que “a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a

incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das

resistências encadeiam-se uns com os outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e

poder” (FOUCAULT, 2015, p. 115).

Em face de novos arranjos relacionais homoeróticos constituídos por “amizades” e

conjugalidades configuradas entre parcerias que intercambiam obtenção de vantagens e

oferecimento de sexo, objetivamos, nesta pesquisa, analisar as performances de gênero de

personagens aderentes a essas relações de troca. Compreendendo que “o gênero é a

construção cultural varável do sexo, uma miríade de possibilidades abertas de significados

culturais ocasionados pelo corpo sexuado” (BUTLER, 2016, p. 194). Em consonância à

perspectiva de sexualidade proposta por Giddens (1993, p. 10) que a concebe como “uma
1
[ ] Prof. de Literatura Brasileira no Colégio Estadual Flaviano Dantas do Nascimento. Mestre em
Letras (PROFLETRAS) pela Universidade Federal de Sergipe.
elaboração social”, bem como assinala a respeito da emergência de uma “sexualidade

plástica” descentralizada que não serve às necessidades de reprodução.

Neste capítulo, a coletânea de contos em escopo Os solteirões (1975), de Gasparino

Damata interpela performances masculinas que hibridizam drama e prazer, experimentados

por homens, que em sua performatividade de gênero veem-se numa encruzilhada por conflitos

de orientação sexual, tendo em vista disponibilizarem seus corpos para intercâmbios a outros

homens, conforme análise do corpus, por meio das narrativas A desforra e O voluntário.

Por dar evidência, sem tangenciamentos à subcultura e identidade gays, a obra

supracitada inscreve-se enquanto “literatura de subjetivação” em contraposição à “literatura

de representação”, essencialmente produzida sob estereótipos em torno da figura do

homossexual (LUGARINHO, 2008, p. 19-20). Enfatizamos, também, que a compilação de

contos foi fabulada no período de emergência de movimentos de militância e discursos

afirmativos gay no Brasil. Convém assinalar que Gasparino Damata atuou como jornalista

colaborando com o simbólico jornal “Lampião da Esquina” (1978-1981) - resultado de

esforço intelectual do ativismo gay na imprensa alternativa brasileira durante o período de

abrandamento da Ditadura Militar.

1 Arranjos relacionais homoeróticos e performances de gênero


O termo ‘relacionamento’ como indicativo de vínculo emocional próximo e

continuado com outra pessoa é de uso corrente em um período relativamente recente.

Segundo Giddens (1993, p. 69), atualmente, vivencia-se de modo recorrente o fenômeno do

‘relacionamento puro’ em referência a situações em que se entra em uma relação social

apenas pela própria relação, “pelo que pode ser derivado por cada pessoa da manutenção de

uma associação com outra”, e que só continua enquanto ambas as partes considerarem que

extraem dela satisfações suficientes, para cada um individualmente permanecerem nela.


Isso é decorrente da transformação da intimidade nas sociedades modernas, cujo

amálgama de sexualidade, amor e erotismo, também converge para uma diferenciação entre o

amor romântico e o ‘amor confluente’, este não é necessariamente monogâmico, no sentido da

exclusividade sexual:

O amor confluente é um amor ativo, contingente, e por isso entra em choque com as
categorias ‘para sempre’ e ‘único’ da ideia de amor romântico[...]o amor confluente
pela primeira vez introduz a ars erotica no cerne do relacionamento conjugal e
transforma a realização do prazer sexual recíproco em um elemento-chave na
manutenção ou dissolução do relacionamento (GIDDENS, 1993, p. 72-74, grifo do
autor).

Sublinhamos que nesse contexto de mudanças ocorridas na intimidade Ocidental, a

condição pós-moderna capitalista tem exibido a exacerbação da erotização e expansão da

pornografia em coexistência crescente às práticas de intercâmbios econômico-sexuais por

meio da prostituição em suas várias modalidades (PERLONGHER, 1987). Nesse estudo,

abordaremos a prostituição masculina envolvendo desde processos de troca para obtenção de

vantagem/favorecimento até às práticas exclusivamente mercantis do sexo pago, ambos

interconectados ao universo da subcultura gay possibilitando arranjos relacionais

homoeróticos, e desdobrado-se em performances de gênero sob intensa negociação pelos seus

parceiros a partir de uma espécie de contrato informal.

Em vista disso, pensemos, então, na definição contemporânea de contrato de locação

como aquele em uma das partes (locador) se obriga a ceder à outra (locatário), por um

determinado tempo, o uso e gozo de coisas não fungíveis, mediante retribuição. Podemos

transpor esse conceito para o contexto das práticas sexuais configuradas pelo/no mercado da

prostituição masculina envolvendo trocas econômico-sexuais. Desse modo, em analogia ao

contrato de locação, a comercialização do sexo calcado na perspectiva da prestação de

serviços ocorre mediante negociação, numa espécie de contrato informal entre o locador,

sujeito que se prostitui, oferta seu corpo, objeto de consumo, para aluguel temporário ao outro

(cliente) que efetiva o pagamento pelo uso do corpo, satisfação de fantasias e desejos sexuais.
Em tal transação que culmina com o ato sexual, há o relevante aspecto monetário

conforme acerto do preço em face de cada uma das práticas, por exemplo, felação, cunete,

ejaculação, beijo, etc., ou pelo conjunto delas. Decorre disso uma multiplicidade de arranjos

de gênero-erotismo por parte dos clientes criando um contexto mais amplo, “que pede, do

outro lado, homens negociando outras práticas que não apenas aquela inferida por alguém

menos afeito à dinâmica do campo pela performance pública dos boys de programa”

(VIANA, 2010, p. 80-81).

Assim, na interação com clientes, a construção dos papeis de gênero na perspectiva

daqueles que se prostituem converge para as variações de performances sexuais e condutas

eróticas. As posições assumidas, disseminadas como “ativo”, “passivo”, “100% ativo”, “ativo

liberal”, “ativo e passivo” trazem como questão subjacente:

a centralidade do ânus [foco de tensões e conflitos], no negócio do boy. Se para o


boy o ato de penetrar o cliente lhe garante a supremacia de sua masculinidade,
inversamente, para o cliente, o fato de penetrar o boy destitui este último da posição
de macho viril e dominador [...]sob o peso simbólico de significado sócio-
culturalmente construído, o ânus enquanto ‘zona proibida’ para muitos boys de
programa deve ser resguardado, a fim de garantir o reconhecimento público de sua
masculinidade [...]é neste sentido que a região anal se configura enquanto símbolo
de força e cobiça. No universo da prostituição masculina, o boy, muitas vezes, cobra
e ganha mais para ser penetrado. Socialmente para os boys de programa, o sexo
assume uma representação valorativa estabelecida e justificável pela relação de troca
e ganho econômico, onde a honra, muitas vezes, parece se concentrar única e
exclusivamente no ânus (SOUZA NETO, 2009, p. 7).

Corrobora o pensamento de Perlongher (1987, p. 66-67):

Das transações entre a hipervalorização de uma virilidade convencional que


proscreve discursivamente o ânus como zona erógena e o envolvimento em relações,
cujo eixo gira precisamente em torno da sensibilidade anal, dessa tortuosidade de
claro-escuros, de falsas poses, de simulacros e paixões subterrâneas, contraditórias,
encontradas, pode derivar, em alguma medida, o halo de sordidez que impregna o
negócio do michê.

No âmbito do discurso, os prostitutos hipervalorizam sua masculinidade, embora suas

performances sexuais, quase invariavelmente, sejam negociadas com os clientes.

“Claramente, essa maneira de pensar as trocas de desejo marcadas pelo gênero permite uma

complexidade muito maior, pois a interação entre masculino e feminino, pode constituir uma

produção altamente complexa e estruturada do desejo” (BUTLER, 2016, p. 214).


Por isso, no âmbito de tais transações abre-se a perspectiva de negociar-se não

somente os prazeres do corpo, mas também as identidades subjetivas, essencialmente,

atreladas à atividade e passividade, respectivamente, de masculinidade e feminilidade. “O

privilégio masculino é também uma cilada e encontra sua contrapartida na tensão e na

contensão permanentes, levadas por vezes ao absurdo, que impõe a todo homem o dever de

afirmar, em toda e qualquer circunstância, sua virilidade” (BOURDIEU, 2014, p. 31).

Isso posto, Souza Neto (2009) salienta que para muitos prostitutos ser “ativo” não

corresponde somente e simplesmente a uma categoria de performance sexual, mas, de

identidade sexual, sustentada no falocentrismo e heterossexualidade compulsória, apesar da

manutenção sexual constante com outros homens. Assim, “A homossexualidade masculina

renegada culmina numa masculinidade acentuada ou consolidada, que mantém o feminino

como impensável e inominável” (BUTLER, 2016, p. 126). Sem perdemos de horizonte o fato

de “O dinheiro torna-se então o fator de permissividade para as possibilidades de

transitoriedade flexibilidade exigida as performances sexuais durante o coito, sem com isso,

interferir ou ameaçar sua própria identidade” (SOUZA NETO, 2009, p. 68). Considerando

que sob o perímetro do privado, a imagem estereotipada de ‘macho’ construída socialmente

não corresponde ao imaginário, justificado pela relação mercantil.

2 Toy boy no mercado do sexo e conjugalidades entre militares: ‘Fazer papel de mulher’
No conto A desforra o personagem de meia idade, Ferreira, dentista, amante das artes

plásticas com poder aquisitivo considerável e uma rede de amigos da alta sociedade carioca,

mantém constantemente arranjos relacionais com garotos que se prostituem, de preferência

morenos, sustentando-os em sua residência. Ele não sente pudor por estabelecer sempre

relações calcadas no contexto da prostituição. Para ele, ‘todo garoto tinha um preço’:

Em matéria de amor, só acreditava no prazer comprado, isto é, no garoto que topava


exclusivamente por dinheiro, ou vantagens altas, que sabia tirar partido da situação,
tudo feito com o máximo de sinceridade, sem hipocrisias para não deixar ninguém
iludido; nada de “eu te amo” e coisa parecidas; garoto que se apaixonava não servia,
era bicha em potencial (DAMATA, 1975, p. 141-142, grifo nosso).

Segundo Perlongher (1987, p. 238), o horizonte conjugal para muitos prostitutos

significa uma espécie de ‘enclausuramento’, bem como impedimento ao estilo de vida errante,

baseado no nomadismo, no gosto pela aventura, no interesse pelo imprevisível, conforme

ocorre na narrativa em tela com o jovem Laércio:

Sua vida com Ferreira, nos primeiros meses, se por um lado foi um mar-de-rosas –
pois o dentista o cobria de presentes, levava-o a jantar em restaurantes caros, ao
teatro e a bons cinemas -, por outro lado tornou-se em pouco tempo, rotineira,
sufocante, por vezes intolerável, verdadeira prisão de luxo [...]Sem ter o que fazer,
distraía-se lendo Grande Hotel e livrinhos de sacanagem...deitado no sumiê da
saleta, exibindo as belas coxas lisas e bem torneadas, o sexo volumoso, como um
bicho de estimação preso em casa para não sair à rua e não se misturar com outros,
da raça inferior [...]Ferreira e os três parceiros jogavam até altas horas da noite,
deixando-o de lado, sem se preocupar, como se ele fosse um embrulho que a pessoa
deixa num canto e que depois volta para apanhar, certa de que ninguém tocou ou
levou para casa (DAMATA, 1975, p. 113-134, grifos nossos).

Depreendemos, também, por meio do excerto que o personagem é uma espécie de

toy boy – expressão inglesa de uso contemporâneo em referência a homens geralmente muito

jovens e considerados atraentes pela beleza física, os quais atualizam a figura do gigolô, posto

que seu mantenedor ao possuir poder monetário elevado os tratam como ‘brinquedo’

moldável aos seus desejos/fantasias quase unilaterais, além de compor uma parceria ‘feliz’

perante à vida social. É pertinente enfatizar que no âmbito da prostituição masculina, esta se

caracteriza por ofertar o corpo do homem que se prostitui como moeda de troca. “Importante

destacar isso, porque implica desfazer uma comum associação entre a venda de favores

corporais e feminilidade, e perceber a inserção do homem como objeto no mundo da

prostituição” (BARRETO, 2012, p. 62).

Os toys boys financiados por Ferreira, além de terem a tez mulata e muitos jovens,

deveriam, também, atender às suas preferências de performance sexual, o garoto passivo e ele

como ativo dentro de um esquema de fantasia específico em que se tem a sensação de

penetrar (de ‘comer’) um homem másculo:


[...]embora só gostasse de comer, não suportava garoto que ao chegar na cama
virava logo, preferia o tipo que dava com menos facilidade, que botava antes uma
certa banca, pois lhe proporcionava um prazer maior, já que para ele não existia
satisfação completa no ato (DAMATA, 1975, p. 142, grifo nosso).

No caso do jovem michê Laércio, apesar de ser passivo nas interações sexuais com

Ferreira, tal performance não é bem equacionada por ele que sente o peso da

heterossexualidade compulsória sob o fantasma de se transformar em “marido de viado”,

conforme pensa consigo após discussão com a ex-namorada por quem ele abandona Ferreira,

que em meio a um diálogo de intensa briga insinua feminização do jovem michê diante do

relacionamento com um homossexual. Em virtude disso, em outra discussão com Ferreira,

este possesso com ele após ter sido permutado por uma mulher, Laércio revela a necessidade

de autoafirmação heterossexual e mais à frente a incerteza perturbadora quanto à orientação

sexual dele:

Mas sou homem, sou macho, e quem quiser que acredite, só me meti com veado
uma vez, e assim mesmo porque estava numa merda fodida. O que eu gosto mesmo,
meu irmão, é de mulher, de uma boceta, morou [...]Porra! Estou ficando
maluco[...]já não sei mais o que porra sou. Se sou homem ou se sou veado, ou o que
porra sou (DAMATA, 1975, p. 154, grifo nosso).

Esse conflito do personagem nos remete ao que Giddens (1993, p. 70) lança como

questão contemporânea de que “Pelo menos na cultura ocidental, a época atual é o primeiro

período em que os homens estão descobrindo que eles próprios são homens, ou seja, possuem

uma “masculinidade” problemática”.

Para o personagem Laércio, cujo “modo falsamente viril de garoto que só fala em

mulher mas toma dentro como vaca nova” (DAMATA, 1975, p. 149), segundo Ferreira - um

sujeito reconhecido como “homem de verdade”, ter sua performance avaliada como feminina

implica perda do capital erótico. “É possível que a intensa preocupação que os homens

externam quanto ao risco de feminização esteja também articulada a táticas de preservação do

volátil capital erótico que é associado à masculinidade nesse contexto” (OLIVEIRA, 2010, p.

255).
No conto O voluntário que se passa centralmente em um Corpo de Fuzileiros Navais,

após algum tempo na corporação e assédios precedentes, o recruta Ivo procura o sargento

Leocádio, um inveterado aliciador de jovens no quartel, em busca de favorecimento e

proteção no propósito de conseguir um emprego através do sargento. Tal pedido lança os dois

para o momento de intercambiarem suas moedas de troca. Um com a utilização de seu poder

para angariar com seus superiores um emprego e o outro oferecendo seu corpo durante uma

noite de sexo. Vejamos uma fala do diálogo entre entres eles “Se você quiser se encontrar

comigo logo mais à noite...Já tenho uma resposta certa sobre seu emprego” (DAMATA, p.

93).

Sob efeitos etílicos em um bar, o recruta Ivo negocia o posterior ato sexual com

Leocádio dando ênfase à proscrição do sexo anal, tendo em vista ter conhecimento das

preferências de seu parceiro como ativo. Observemos uma passagem da interlocução deles:

“Só não topa o quê, porra? Fazer papel de mulher, sargento” (p. 98). Diante disso,

depreendemos que:

o gênero pesa nas trocas sexuais – na mesma medida, talvez em que as trocas
sexuais sedimentam a materialidade do gênero. A performance de gênero pode
agregar prestígio e valor erótico aos agentes sociais [...]As trocas eróticas, por sua
vez são elas próprias gestos generificados que comparecem na constituição da
subjetividade e corporalidade do sujeito (OLIVEIRA, 2010, p. 250).

Em continuidade às performances negociadas entre os militares, vejamos: “Ora,

sargento, o senhor sabe...Uma sacanagem de homem para homem; abraçar, beijar na boca,

fazer punheta um no outro” (DAMATA, 1975, p. 99). Mais à frente os limites impostos: “Nas

coxas eu deixo, não pega nada...Por trás não, sargento; não dá pé. Só pela frente” (p. 99). Esse

diálogo é elucidativo, pois, segundo Butler (2016, p. 127) “Algumas partes do corpo tornam-

se focos concebíveis de prazer precisamente porque correspondem a um ideal normativo de

um corpo já portador de um gênero específico” (BUTLER, p. 127).


Observemos a cena em que os personagens consumam os papeis de gênero, cujo temor

de efeminação por meio do ato da penetração é repelido e proposto outros arranjos

performativos sexuais similares ao binarismo macho/fêmea (relação dominador/dominado),

mas não idênticos:

[...]se estirou de pernas abertas e ficou aguardando que ele viesse e consumasse o
ato na maneira pré-combinada; os braços em forma de cruz cobriam-lhe os olhos e
parte do rosto bronzeado, lavado de suor, numa espécie de defesa contra a claridade,
que de resto era quase nenhuma, mas podia estar também querendo esconder a
vergonha que sentia por concordar em uma situação tão humilhante, contrária à sua
natureza. Sem se cansar de contemplar aquele corpo jovem e sadio que desejara com
loucura, Leocádio curvou-se sobre os joelhos, apoiado nos braços fortes, vigorosos,
que tremiam; e beijou delicadamente a penugem dourada do peito e os mamilos
rosados de Ivo, que não se mexia. Em seguida desceu os lábios até o umbigo, onde o
calção de banho deixara a marca, e os flancos alvos; depois colocou o sexo
enlouquecido entre as duas coxas roliças e glabras que tinha à sua frente
(DAMATA, 1975, p. 101-102).

Após esse episódio, os dois passam a morar juntos sob compromisso mútuo de

fidelidade, Leocádio já oficial reformado e Ivo fuzileiro naval. Simultaneamente à

conjugalidade com o ex-sargento, o fuzileiro mantém um relacionamento às escondidas com

uma mulher. Contudo, é descoberto pelo parceiro mais velho que se enfurece, inclusive,

agredindo-o fisicamente. No momento de briga após chegar tarde da noite em casa, Ivo

revela: “Foram dizer para ela que eu vivia amigado com o senhor, era seu garoto. Servia de

mulher para o senhor, sargento” (DAMATA, 1975, p. 111, grifo nosso).

Diante disso, Ivo sai de casa com juramento de não se envolver mais com nenhum

outro homem. Há o temor de decretar publicamente o fim de sua heterossexualidade

compulsória ao estabelecer uma relação marital com um homossexual (“virar marido de

bicha”). Notamos que o personagem dramatiza o jogo de ambivalências entre o modelo

heterossexual e suas atitudes convergentes à homo/bissexualidade. O que remete a uma

flutuação por categorias sexuais diferentes que dependem do contexto e momento em que se

encontra. Depreendemos que “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes


momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente” (HALL, 2015,

p. 12).

Considerações finais
As discussões empreendidas indicam o desprestígio da feminização como ponto

nevrálgico de sujeitos que negociam performances de gênero dependentes do contexto e

momento em que se encontram. Como fenômeno inconstante e contextual, “o gênero não

denota um ser substantivo, mas um ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos

de relações, cultural e historicamente convergentes” (BUTLER, 2016, p. 32).

Tal constructo social, cultural e histórico no âmbito das sexualidades aparecem

fabulados nos dois contos analisados. Temos personagens masculinos que protagonizam

novos arranjos relacionais homoeróticos sob intercâmbios, cuja moeda de troca preeminente

são corpos negociados por meio dos quais forjam-se performances de gênero que reproduzem

o binarismo masculino/feminino em polarizações envolvendo ativo/passivo,

dominador/dominado, e por conseguinte, superior/inferior, por isso, a repulsa ou não

aceitação do penetração anal entre os personagens analisados. Posto que deixar-se penetrar

por outro homem equivale à feminização tão desvalorizada socialmente.

Em que pese aqui as performatividades negociadas trazerem subjacentes os papeis de

gênero tão arraigados na incoerente e contraditória heterossexualidade compulsória que

impele sujeitos adotarem discursos e práticas ambivalentes, conforme evidenciamos nos

personagens objeto desse estudo, que em suma alimentam uma vida dupla sem assunção de

orientação sexual mais explícita, ao contrário, não há cogitação nem mesmo de uma possível

bissexualidade.

Referências
BARRETO, Victor Hugo de Souza. “Vamos fazer uma sacanagem gostosa”: Uma etnografia
do desejo e das práticas da prostituição masculina carioca. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em Antropologia, UFF, 2012.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. 2 ed. Rio de
Janeiro: BestBolso, 2014.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 10. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
DAMATA, Garparino. Os solteirões. Rio de Janeiro: Pallas, 1975.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da
C. Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
GIDDENS, Antony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas
sociedades modernas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1993.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro. 12. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.
LUGARINHO, Mário César. Nasce a literatura gay no Brasil: reflexões para Luís Capucho.
In: SILVA, Antonio de Pádua Dias da. (Org.). Aspectos da literatura gay. Joao Pessoa:
Editora da UEPB, 2008.
OLIVEIRA, Leandro. Entre discursos, jeitos e gestos: performances de gênero e sexualidade
no mercado erótico de travestis e cross-dressers. In: LOPES, Luiz Paulo da Moita.; BASTOS,
Liliana Cabral (org.). Para além da identidade: fluxos, movimentos e trânsitos. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2010.
PERLONGHER, Néstor Osvaldo. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. 2. ed.
São Paulo:/ Editora Brasiliense, 1987.
SILVA, Antonio de Pádua Dias da; FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque. Crítica
Literária ou Cultural? Caminhos críticos da literatura de temática gay. Crítica Cultural
(Critic), Palhoça, SC, v. 6, n. 1, p. 129-141, jan. /jul. 2011.
SOUZA JÚNIOR, José Luiz Foureaux de. Literatura e homoerotismo: entre os Estudos
Literários e os Estudos Culturais. In: Herdeiros de Sísifo: teoria da literatura e homoerotismo.
Marina: Aldrava Letras e Artes, 2007.
VIANA, Nornando José Queiroz. “É tudo psicológico! Dinheiro...pruuu! Fica logo duro!”:
desejo, excitação e prazer entre boys de programa com práticas homossexuais em Recife.
Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, UFPE, 2010.

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