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Criminologia e Psicanálise: possibilidades de aproximação

Article · April 2008

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Salo Carvalho
Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ); Unilasalle (RS)
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CRIMINOLOGIA E PSICANÁLISE:
POSSIBILIDADES DE APROXIMAÇÃO
S ALO DE C ARVALHO *

Resumo: O artigo procura encontrar pontos de intersecção entre


a psicanálise e a criminologia (crítica) e sua harmonização na
qualidade de discursos de desconstrução da pureza do projeto
civilizatório delineado na Modernidade. O espaço de
aproximação é construído a partir do entendimento que em
ambas há radical ruptura com a figura angelical do humano
civilizado a partir da contundente afirmação da permanência
latente do bárbaro, obtendo, como efeito deste processo a
humanização da figura do criminoso, visto apontar sua
presença em todos nós.
Palavras-Chave: Criminologia – Psicanálise – Modernidade –
Civilização – Barbárie

1. As investigações que realizam aproximações entre os campos do


Direito e da Psicanálise vêm ganhando espaço na academia nacional. Nos
últimos anos, inúmeras coletâneas e monografias foram publicadas –
grande parte fruto de trabalhos de pós-graduação (dissertações de
mestrado, teses de doutoramento e ensaios pós-doutorais) –, grupos de
pesquisa foram formados e vários seminários realizados, fato que denota
evidente interesse da comunidade de cientistas (KHUN) pelo diálogo
interdisciplinar.
A reflexão de JACINTO COUTINHO parece sintetizar os motivos deste
affaire: “sigo com uma grande preocupação em relação à intersecção Direito-
Psicanálise, e não pelo imenso prazer que as novas fronteiras abrem, passo a
passo, dando sabor e cor àquilo que, desgastado, tem-se mostrado ‘sem-

*
Professor Titular de Direito Penal (Graduação) e Criminologia (Mestrado em Ciências Criminais)
da PUCRS.

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tudo’, mas porque cada vez mais é possível afirmar que o Direito não tem
salvação sem as luzes do discurso psicanalítico”1.
Se o direito e a psicanálise possuem discursos evidentemente diversos
e qualquer aproximação deve ser realizada com extremo cuidado
(COUTINHO), a criminologia, ao realizar este desafio, não se inscreve no
universo das disciplinas propriamente jurídicas; sequer poderia ser referida
desde o ponto de vista dos modelos integrados de ciências criminais
tradicionais (ROCCO e LISZT) ou críticos (HASSEMER, FERRAJOLI e
ZAFFARONI).
É que a criminologia, diferentemente da dogmática do direito (penal),
possui natureza interdisciplinar, logo inegável a facilidade em promover
diálogos não ortodoxos, distantes da rigidez formal do jurídico. Se no plano
epistemológico, apesar das dificuldades, é possível identificar o local da
ciência jurídica e estabelecer os horizontes de discussão possíveis com a
psicanálise, no que diz respeito à criminologia as imprecisões são
amplificadas. Sobretudo porque a criminologia, a partir de séria
problematização sobre questões epistemológicas, passa a ser percebida
como locus de fala e de escuta no qual se encontram inúmeros e distintos
saberes acerca do crime, da violência, do criminoso, da vítima, da
criminalidade, dos processos de criminalização e das formas de controle
social. Assim, a própria identificação da criminologia como ciência resta
prejudicada ou, no mínimo, seriamente questionada.
A constituição da criminologia como espaço de convergência de
discursos não apenas possibilita o encontro de olhares plurais – inclusive
não científicos, como o olhar artístico –, mas fomenta a abertura e a
autocrítica destes saberes interseccionados. Trata-se, pois, de local de
encontro e de (auto)reflexão.
A história das idéias criminológicas permite verificar empiricamente
esta construção ímpar, mormente se a criminologia for pensada como
disciplina jurídico-penal. Em sua formulação primeira (criminologia
etiológica), estabelecida no campo jurídico como ciência auxiliar, ganha
autonomia e identidade própria ao se aproximar da medicina (em especial
da psiquiatria), da psicologia, da antropologia e da sociologia, ciências que
passam a ser adjetivadas pelo rótulo criminal. O processo de autonomização
objetivou, inegavelmente, a identificação da criminologia como ciência.

1
COUTINHO, O Estrangeiro do Juiz ou o Juiz é o Estrangeiro?, p. 69.

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Todavia sua consolidação restou inconclusa, face aos desdobramentos


das pesquisas e à pluralidade dos discursos (criminológicos) produzidos. A
explicação possível para a interrupção do primeiro projeto científico foi a
sua marcante interdisciplinaridade, situação que inviabilizou qualquer
amarra epistemológica, apesar de renovadas tentativas de enclausuramento
através do adestramento proposto por disciplinas que reproduzem a
imagem e o rótulo da auxiliaridade do discurso criminológico.
2. Na atualidade podem ser apresentadas duas distintas versões da
criminologia. A primeira, denominada criminologia dramática, de perspectiva
idealista e metafísica, buscaria associar-se a outros saberes, na condição de
saber menor, para qualificar-se como ciência, e, inserida no ideal cientificista
moderno, fragmentar o estudo do seu objeto para melhor conhecê-lo e
alcançar suas finalidades – v.g. erradicação da criminalidade, regeneração
dos delinqüentes, etc. Esta perspectiva, contudo, acaba por reproduzir o
antigo estigma da auxiliaridade, confundindo a criminologia com o próprio
saber ao qual se propõe auxiliar, possibilitando seja colonizada por
discursos alienígenas. Veja-se, a título de exemplificação, o que ocorre com a
neurocriminologia – versão criminológica das neurociências voltada ao
estudo da etiologia individual – e a sociologia criminal – saber criminológico
capacitado pelas ciências sociais que direciona o estudo do delito para as
técnicas de controle social (formal ou informal).
A segunda, intitulada criminologia trágica, intentaria romper com a
tradição idealizadora das ciências e, ao abdicar de quaisquer pretensões
epistemológicas, procuraria produzir discursos problematizadores dos
sintomas sociais contemporâneos, com a específica perspectiva de reduzir
os danos e os sofrimentos provocados pelas violências, públicas
(institucionais) ou privadas (interindividuais).
Neste ponto é que se entende possível o diálogo entre psicanálise e
criminologia, ou seja, na convergência dos discursos para a análise crítica do
mal-estar contemporâneo que se traduz de inúmeras formas na reprodução
das violências. Note-se que não se está procurando criar novo discurso,
disciplinar e totalizador, a partir da compilação de categorias da
criminologia e da psicanálise. O desejo é apenas possibilitar o encontro
entre os saberes, porque tanto criminologia como psicanálise carecem de
identidade epistemológica. E talvez esta seja a principal circunstância que
lhes possibilita dialogar.

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A condição de possibilidade da criminologia trágica passa, portanto,


por assumir e identificar dois predicados diagnosticados por BIRMAN que
sustentam a psicanálise, neste espaço devidamente adaptado ao problema
criminológico: a) abdicar do ideal cientificista e b) eximir-se da narcísica
tarefa de reforma do homo (criminalis). BIRMAN ensina que o discurso
freudiano somente conseguiu certa organicidade como discurso crítico da
cultura quando primeiramente se desgarrou da pretensão científica2 e,
posteriormente, quando rejeitou projetos moralizadores de salvação ou de
conversão dos sofredores.
Nesta linha de argumentação, da mesma forma que o analista não
tem condições de manejar a terapêutica das enfermidades, o criminólogo
não é capaz de gerir e de controlar, como se manuseasse fármacos, o
comportamento delitivo. A primeira reflexão possível deste incipiente
diálogo, portanto, é sobre as possibilidades de ação do criminólogo e a
consciência dos seus limites frente ao fenômeno crime. Neste aspecto as
figuras do criminólogo e do analista se aproximam: “(...) é necessário que o
analista [criminólogo] não tenha a pretensão e a arrogância de universalizar
seus ideais, mesmo suas escolhas no campo psicanalítico [criminológico],
para empreender a conversão e a salvação das almas dos sofredores
[criminosos] que lhe demandam cuidados por não suportar a dor de existir.
A figura do analista [criminólogo] não é, pois, um remédio, tampouco um
fármaco capaz de promover a salvação das almas sofrentes. Isto porque a
psicanálise [criminologia] não é um saber médico [jurídico, sociológico,
psiquiátrico] capaz de gerir a terapêutica das enfermidades”3.
3. No interior do discurso jurídico, regulador da ordem e o garantidor
da segurança, ao civilizado é concedido estatuto que lhe permite gozar
licitamente dos bens da vida: o Código Civil. No entanto ao bárbaro, que
usurpa o gozo alheio ou que reivindica a possibilidade de transformar em
ato o desejo latente, são resguardadas as esferas de ilicitude regradas pelo
Código Penal, cuja gestão das sanções será exercida pelas agências
inquisitórias de punitividade. O direito penal, representado pela estrutura
normalizadora e moralizadora do Código, e os aparelhos repressivos,

2
“Somente quando o discurso freudiano se desgarrou do ideal cientificista – promovendo o luto
trágico de não pretender mais ser uma ciência – é que se constituiu a condição de possibilidade
para que uma leitura crítica do mal-estar da modernidade pudesse ser realizada com
radicalidade. Somente então a psicanálise pôde se apresentar como discurso crítico sistemático
sobre a cultura” (BIRMAN, Mal-Estar na Atualidade, p. 40).
3
BIRMAN, Mal-Estar..., p. 46.

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visualizados nos sujeitos que exercem diretamente a coação repressiva


(agências policiais, judiciárias e carcerárias), instrumentalizam os processos
formais de culpabilização.
O sistema de justiça criminal, ao adquirir a qualidade de sujeito
externo de exposição dos sentimentos individuais de culpa, reforça e
reproduz o ressentimento, motivo pelo qual se institui como tipo ideal de
justiça vindicativa. Desta forma, constata NIETZSCHE que não surpreende
ver surgir tentativas sempre renovadas de “(...) sacralizar a vingança sob o
nome de justiça – como se no fundo a justiça fosse apenas uma evolução do
sentimento de estar-ferido (...)”4.
Os discursos críticos ao projeto civilizatório como ápice da evolução
do homem, presentes na literatura (SADE), na filosofia (NIETZSCHE) e na
psicanálise (FREUD), desnudaram não apenas a pretensão asséptica do agir
humano civilizado mas a natureza ressentida do sistema de (in)justiça
criminal.
Assim, se a cultura vê a violência como transgressiva aos valores
morais civilizados e como conduta inerente ao ser do homo criminalis, os
discursos de ruptura demonstrarão exatamente o oposto, ou seja, que a
violência não é qualidade intrínseca de seres bárbaros, pré-civilizados, que
tende a ser suprimida pelo gradual e constante desenvolvimento das ordens
sociais. Ademais, evidenciarão que as agências de punitividade não se
constituem como sistemas racionais e puros que, ao atuar de forma
homogênea, operam na proporcional distribuição dos castigos aos sujeitos
que cometeram faltas.
No âmbito da criminologia, se a hipótese do causalismo etiológico
está harmonizada à perspectiva moderna e ilustrada de evolução social do
humano à plenitude da espécie (criminologia positivista), apenas a partir
dos resultados das investigações advindas da sociologia do desvio poderão
ser recepcionadas, e posteriormente reforçadas e densificadas, as críticas
contraculturais realizadas por SADE, NIETZSCHE e FREUD.
Conforme sustenta BARATTA, as teorias sociológicas interacionistas
estadunidenses, a partir dos anos 30 do século passado, estabelecem série
de premissas que possibilitará a ruptura com o modelo determinista da
criminologia biopsicológica. Embora desenvolvido sob a orientação teórica
do positivismo científico, ou seja, apesar de não ser propriamente estudos

4
NIETZSCHE, Genealogia da Moral, p. 62.

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de cisão com o paradigma científico da modernidade, o resultado das


teorias estrutural-funcionalistas da anomia de DURKHEIM e de MERTON, das
teorias das subculturas criminais de SUTHERLAND e de COHEN e das teorias
das técnicas de neutralização de SYKER e de MATZA prepara de forma
consistente a viragem criminológica (criminological turn) que ocorrerá com o
Labeling Approach.
Ao se constatar que o delito e/ou o desvio são fenômenos normais (e
inclusive necessários) em todas as estruturas sociais, e que o
comportamento desviante não é expressão de conduta dirigida contra
valores universalmente aceitos, pois nas sociedades plurais coexistem
inúmeros valores, o problema central da criminologia é redefinido.
DURKHEIM demonstra ser o delinqüente não membro doente no interior de
sociedade sã, mas elemento catalizador e agregador, agente regulador da
vida social. Assim, “o delito faz parte, enquanto elemento funcional, da
fisiologia e não da patologia da vida social”5.
Portanto o crime, o desvio e a violência, em sentido amplo, não são
restos bárbaros da ordem primeva em vias de extinção ou de supressão pelo
processo civilizatório, mas constantes do agir demasiado humano, presentes
em sua primeira natureza e mantidas na cultura.
Neste quadro, o determinismo causal que sustenta a criminologia
positivista sofre sua primeira e mais profunda ofensa. E agregada à
perspectiva de DURKHEIM, as conclusões de SUTHERLAND sobre os white
collar crimes destitui da criminologia tradicional seu objeto mais precioso: a
patologização do delito e do delinqüente – “(...) las hipótesis de que el delito
es debido a patologías personales y sociales no se aplica a los delitos de
‘cuello blanco’, y si las patologías no explican estos delitos no son factores
esenciales en los delitos en general, y, por lo tanto, no son factores
esenciales en los delitos que ordinariamente confrontan los departamentos
policiales y los tribunales penales y juveniles”6.
Se as condutas adjetivadas como delitos possuem diferenças
significativas decorrentes dos distintos resultados lesivos e da pluralidade
dos personagens (autores e vítimas), e se as hipóteses de determinação
biológica, psicológica, sociológica ou antropológica não se aplicam ao
universo dos fenômenos definidos como crime, conseqüentemente não são

5
BARATTA, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, p. 60.
6
SUTHERLAND, El Delito de Cuello Blanco, p. 307.

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estas patologias fatores fundamentais para identificar, sob o mesmo rótulo


(delitos), condutas assimétricas.
Outrossim, como variável das conclusões da sociologia criminal, a
criminologia demonstra o equívoco da leitura conjugada entre os
fenômenos crime e violência, estabelecendo a necessária desvinculação.
A mania classificatória e a obsessão pela origem (causal), heranças
nosológicas do conhecimento psiquiátrico do Século XIX, apropriadas do
modelo da Botânica7, demonstram-se, definitivamente, inadequadas para
análise do crime, não apenas em decorrência da ausência de
comprovabilidade das hipóteses etiológicas, mas, sobretudo, pela redução
da complexidade das condutas delitivas à simplicidade dos vínculos causais
definidos em patologias individuais ou sociais.
4. Possível concluir, portanto, de forma preliminar, que a psicanálise e
a criminologia (crítica) podem ser harmonizadas na qualidade de discursos
de desconstrução da pureza do projeto civilizatório delineado na
Modernidade. Em ambas há radical ruptura com a figura angelical do
humano civilizado a partir da contundente afirmação da permanência
latente do bárbaro. A importante conseqüência deste processo é a
humanização da figura do criminoso, visto apontar sua presença em todos
nós.
Todavia, além de conjuntamente densificar a crítica à cultura, a
psicanálise proporcionará importante análise das estruturas do direito
penal, fundamentalmente em relação ao sistema de culpabilizações. Desde
este local estranho ao saber dogmático alinha-se novamente à criminologia
na qualidade de referencial externo.

R EFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan,
1997.
BIRMAN, Joel. A Psiquiatria como Discurso da Moralidade. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
__________. Mal-estar na Atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
COUTINHO, Jacinto. O Estrangeiro do Juiz ou o Juiz é o Estrangeiro?. in Direito e
Psicanálise: intersecções a partir de ‘O Estrangeiro’ de Albert Camus. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006.

7
BIRMAN, A Psiquiatria como Discurso da Moralidade, p. 28.

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NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral (uma Polêmica). São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
SUTHERLAND, Edwin. H. El Delito de Cuello Blanco. Madrid: La Piqueta, 1999.

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