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Introdução

DEBATE 2006, como previsto, um comentário dos


autores do texto original a observações de
Damos seqüência neste número ao Paulo E. M. Elias; (2) acrescentando comen-
Debate iniciado no número 8(2), de junho tário de Bárbara Starfield, ainda neste nú-
de 2005, com a publicação do artigo de mero; (3) convidando dois dos organiza-
Gérvas & Pérez Fernández “El fundamen- dores do Seminário, Sandra Grisi e Paulo
to científico de la función de filtro del mé- Elias, a assumir a coordenação da continui-
dico general”. Esse debate prosseguiu nos dade do debate; (4) agendando para publi-
dois números posteriores do mesmo ano car no próximo número deste ano, em ju-
(setembro e dezembro). Já havíamos an- nho, o texto da conferência de Gérvas no
teriormente publicado trabalho de mesma mencionado Seminário, completando uma
origem autoral, no número 7(3), de setem- trilogia que seria o foco do debate na se-
bro de 2004, [Gérvas, J. “Cuidados primá- qüência. Acreditamos que essa solução for-
rios de saúde na Europa: tendências atu- talecerá e aumentará a eficácia da seção de
ais”. Rev Bras Epidemiol. 7(3): 350-369]. debates.
Realizado neste mês de março em São Ao mesmo tempo, iniciamos um novo
Paulo, na Faculdade de Medicina da USP, debate sobre tema correlato: “O que é um
o “1º Seminário sobre atenção Primária à problema de saúde pública ?”. Introduzi-
saúde: a Universidade e o Serviço de Saú- do por dois autores do Departamento de
de” contou com a presença de Gérvas que Medicina Social da Universidade Federal
pronunciou conferência sobre “Atenção de Pelotas, no Rio Grande da Sul, Juvenal
primária: um espaço em desenvolvimen- Soares Dias da Costa e César G. Victora,
to”. Contou, ainda, com a notável partici- este último um dos Editores Associados da
pação de Bárbara Starfield, da Universida- RBE a quem atribuímos a óbvia missão de
de John’s Hopkins, nos EUA. conduzi-lo.
A Editoria da RBE propôs que a conti-
nuidade do debate tomasse um novo rumo:
(1) publicando neste número de março de O Editor

O que é “um problema de saúde pública”?


Ao introduzir no buscador Google, no podem ser caracterizados como verdadei-
dia 25.08.05, a expressão “problema de ros “problemas de saúde pública”.
saúde pública” as seguintes respostas fo- Na tentativa de encontrar definição
ram encontradas na primeira página: sobre o que constitui um “problema de
estresse, distúrbio do sono, acidentes de saúde pública” recorreu-se a uma breve
trânsito, filariose linfática, ruído, esqui- revisão de alguns textos clássicos de me-
zofrenia, infecções sexualmente transmis- dicina preventiva e de saúde pública.
síveis, sífilis e abortamento. Uma pesqui- Alguns textos consultados omitiram a
sa mais detalhada evidenciou inúmeras definição procurada 1-3 , provavelmente
outras morbidades, muitas das quais de porque não previam o amplo uso da ex-
baixa freqüência na população. Talvez na pressão.
tentativa de valorizar teses ou dissertações, O Dicionário de Epidemiologia de Last,
observa-se que muitos autores utilizam por exemplo, não inclui a expressão entre
constantemente a expressão “problema de seus inúmeros termos, porém define saú-
saúde pública” em relação ao seu tema. de pública como “um dos esforços organi-
Vale indagar se temas tão diferentes zados pela sociedade para proteger, pro-

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mover e restaurar a saúde de populações. 2. O impacto na sociedade – mortalida-
É a combinação de ciências, habilidades e de, morbidade e custos do tratamento
crenças que estão direcionadas para a para a sociedade.
manutenção e melhora dos níveis de saú- De forma semelhante, Daly et al.8 apon-
de de todas as pessoas através de ações tam como critérios definidores de proble-
coletivas ou sociais. Os programas, servi- ma de saúde pública na área de saúde bu-
ços e instituições envolvidas enfatizam a cal a prevalência da condição, o impacto da
prevenção das doenças e as necessidades condição no nível individual, seu impacto
de saúde de toda a população. As ativida- na sociedade (do ponto de vista econômi-
des de saúde pública mudam de acordo co) e se a condição pode ser prevenida ou
com as inovações tecnológicas e dos valo- se existe um tratamento efetivo disponível.
res sociais, mas os objetivos permanecem Cabe ainda salientar como possível cri-
os mesmos: reduzir na população a quan- tério para definir um problema de saúde
tidade de doença, de mortes prematuras, pública o seu potencial epidêmico. Por
de desconforto e incapacidades produzi- exemplo, a gripe aviária, embora até o
das pelas doenças”4. Tal definição pode momento em que este texto esteja sendo
ajudar na conceituação de interesse, uma escrito tenha atingido apenas um reduzi-
vez que enfatiza os aspectos preventivos do número de indivíduos, precisa ser tra-
inerentes à saúde pública, assim como va- tada como problema de saúde publica de-
loriza ações direcionadas para o controle vido a seu enorme potencial de expansão.
de mortes precoces e seqüelas evitáveis. Mais recentemente, o aumento verti-
Deve-se ressaltar que no texto de ginoso dos custos de assistência tem pro-
Leavell e Clark a definição de problema de movido a realização de estudos de econo-
saúde é expressa a partir de sua natureza, mia em saúde, com a pretensão de auxili-
extensão, severidade e significância 5. No ar a definição de investimentos e de racio-
livro de Morley verificou-se que os critéri- nalizar gastos limitados diante de neces-
os que definiriam problemas prioritários sidades ilimitadas. Em função de necessi-
seriam: o interesse da comunidade, a dades metodológicas para estudos de cus-
prevalência, a gravidade e a possibilidade to-efetividade e custo-utilidade, foi pro-
de controle6. posto o indicador denominado de QALY
Na consulta ao Oxford Textbook of (quality-adjusted life years), que leva em
Public Health 7 não foi encontrada uma conta o impacto da morbidade sobre os a
definição específica para “problema de expectativa de vida livre de doença9.
saúde pública”, entretanto chama a aten- Outro indicador similar, ainda relacio-
ção que o primeiro princípio que deve ser nado à proposta do Banco Mundial para o
atendido para implantação de qualquer investimento racional de recursos escas-
medida de rastreamento é que a condição sos, é o DALY (disability-adjusted life years)
investigada seja “um importante problema que incorporou aos anos potenciais de
de saúde pública”. O texto enfatiza que ao vida perdidos (YPLL) uma medida de tem-
se julgar sobre recomendações de rastrea- po de incapacidade. Assim, os anos de vida
mento deve-se considerar a “carga de mor- de incapacidade ajustados agregam aque-
talidade, morbidade e sofrimento causa- les perdidos pela mortalidade precoce as-
dos pela condição”. Segundo os autores sim como por morbidade ou incapacida-
esta carga é caracterizada em duas amplas de, o que permitiu o cálculo da carga glo-
áreas: bal de doenças (GBD – The Global Burden
1. O impacto no indivíduo em termos de of Disease ) 10. Sem entrar no mérito da
anos potenciais de vida perdidos, a ex- metodologia usada para tais cálculos – di-
tensão de incapacidade, dor e descon- versos autores criticam o uso de ajustes
forto, o custo do tratamento, e o impac- arbitrários e julgamentos subjetivos de
to na família do indivíduo. valores11,12 – uma metodologia deste tipo,

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se devidamente validada, pode contribuir Embora a contextualização de proble-
para a definição do que efetivamente cons- ma de saúde pública seja ampla, e uma
tituiria um problema de saúde pública. determinada condição não precise certa-
Voltando a nossa busca inicial, vale per- mente preencher ou atingir todos os crité-
guntar se distúrbios de sono, esquizofrenia rios simultaneamente, sugere-se que a uti-
ou filariose linfática podem ser efetivamen- lização desta terminologia seja resguarda-
te caracterizados como “problemas de saú- da pela análise dos princípios básicos des-
de pública”. Sem dúvida são condições im- critos acima.
portantes que precisam ser adequadamen-
te tratadas em nível individual, mas colocá- Juvenal Soares Dias da Costa
las no mesmo nível de prioridade do que, Cesar G. Victora
digamos, causas externas, câncer de mama Departamento de Medicina Social
ou tabagismo não contribui para uma efe- Universidade Federal de Pelotas
tiva priorização de ações sanitárias. jcosta@epidemio-ufpel.org.br

Referências

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