Prevenção de doenças cardiovasculares e Em nosso país, iniciou-se nos primeiros anos
promoção da saúde de 1970, no Rio Grande do Sul, um programa voltado para a prevenção de doença cardiovascu- Prevention of Cardiovascular Diseases and lar com base comunitária, o que coincidiu com o the Promotion of Health interesse da OPAS/OMS, e oportunizou a primei- ra reunião internacional com representantes de Aloyzio Achutti 1 países sul-americanos em Porto Alegre, em 1975. Rapidamente se evoluiu para a anexação de ou- Não há o que discutir sobre a oportunidade do tros problemas de saúde e seus fatores de risco, e tema tendo em vista a mobilização mundial para em seguida para sua abordagem integrada1. a reunião de alto nível das Nações Unidas, em Nova Até que o conceito de Promoção da Saúde York, em setembro passado, quando será debati- ficasse consagrado houve um período muito pro- da a inclusão, entre os objetivos do milênio, do dutivo de discussões, estudo, pesquisa e projetos importante conjunto de doenças omitido na vira- de intervenção com participação progressiva. da do século. Para esse conjunto, do qual faz parte Foram programas com base comunitária, de ser- o capítulo das enfermidades do aparelho circula- viços e, mais amplamente, de saúde pública: pre- tório, cogita-se num rótulo alternativo, pela insa- venção da cardiopatia reumática, da doença hi- tisfação já denunciada quanto às mudanças de pertensiva, do tabagismo, das doenças isquêmi- designações utilizadas, separadamente ou associ- cas, da obesidade, do diabete melito, das doen- adas: doenças crônicas, degenerativas, ou não- ças respiratórias crônicas, do sedentarismo e dos transmissíveis. São doenças com características co- cânceres de pulmão e ginecológico, logo em se- muns, frequentemente superpostas, quanto a seus guida tudo foi integrado, inclusive com saúde fatores de risco, e determinantes. mental. Atrás do interesse do Ministério da Saú- O domínio da saúde não está isento de pre- de (MS) seguiram-se os demais Estados e países conceitos. Há meio século essas doenças eram con- vizinhos. A pesquisa epidemiológica da pressão sideradas como mazelas exclusivas de indivíduos arterial e fatores de risco na população adulta do ricos, até se reconhecer sua presença e importân- RS, em 1978, e a do tabagismo em escolares de cia também em populações de países que se cha- 1980-1988; e em nível de OPAS, o controle da mavam do terceiro mundo ou em desenvolvimen- cardiopatia reumática e da hipertensão na co- to, cujos problemas prioritários eram as doenças munidade; o Projeto MORE, nova pesquisa com infecciosas e parasitárias, desnutrição e mortali- base populacional sobre fatores de risco em ci- dade infantil. Tais preconceitos não foram de todo dades da América Latina em 1989, e outros2. superados, a ver pelos “objetivos do milênio”, e Isso e mais, em outras partes do mundo, con- pela submissão à literatura científica como sendo fluiu para projetos mais recentes bem represen- exclusividade dos mais desenvolvidos. tados no artigo. Certamente esses passos iniciais Sem dúvida, foram importantes as contri- foram decisivos na preparação do que veio de- buições científicas e aplicações tão bem analisa- pois, na disposição de uma atitude favorável à das no artigo, mas fica-se com a impressão que mudança, às lideranças comunitárias, às decisões o resto do mundo ficou esperando para se espe- políticas e na formação de uma cultura que ain- lhar naquelas experiências de sucesso. da precisa muito progredir. Como testemunha ocular e protagonista da Para servir como exemplo, vou apenas citar caminhada conceitual e de abordagem prática trechos de documento para discussão de uma das que se fez a partir de 1970 - aqui e pelo mundo três reuniões do comitê orientador da unidade afora - sinto-me no dever de acrescentar algu- das doenças cardiovasculares da OMS (WHO/ mas contribuições mesmo não podendo desen- CVD-UNIT-Steering committee) dos quais par- volvê-las no formato desta discussão. Podem ticipei como membro, antes que se extinguisse por servir como estímulo para pesquisar além das reformas estruturais da organização. bases de dados acessíveis pela Internet; o que me lembra as discussões que levaram a coleções como as da Bireme, construídas neste meio tem- po para permitir o acesso a publicações valiosas cuja memória vai se perdendo por não estarem no fluxo central da literatura. É pena que os fil- tros existentes nem sempre satisfaçam para se- parar o “joio do trigo”. 1 Sociedade Brasileira de Cargiologia. achutti@gmail.com 19
Ciência & Saúde Coletiva, 17 (1):18-22, 2012
Abordagem integrada O mesmo movimento que leva a considerar dos problemas de saúde não somente um órgão doente, mas todo o ser humano, deve levar também a inserir os proble- A primeira estratégia de abordagem dos pro- mas das doenças cardiovasculares dentro do con- blemas cardiológicos como objeto da Saúde Pú- texto global de saúde, num mundo onde não são blica tentou reunir em programas específicos as fronteiras políticas que discriminam as popu- (Prevenção da Doença Reumática, da Doença lações, mas as condições sociais nas quais esses Hipertensiva) conhecimentos adquiridos na prá- mesmos grupos de seres humanos estão situa- tica de especialistas, apenas dando ênfase àqueles dos, isto é, entre os privilegiados ou entre os soci- aspectos mais aplicáveis em serviços básicos de almente oprimidos, independentemente de longi- saúde (de menor complexidade organizacional). tude, latitude, país, estado ou bairro onde vivam. Na mesma linha, procurando abordar pro- Relendo estes documentos tenho a grata sa- blemas de saúde cada vez mais precocemente, tisfação de reconhecer os primeiros passos de uma surge um terceiro momento de preocupação com jornada bem sucedida3. Eram pouco mais de 15 os fatores de risco comuns a muitas doenças crô- anos de experiência que me arrogavam a falar nicas e também intimamente associados em ní- num foro mundial em 1986. Agora entendo por- vel populacional. Tenta-se aplicar experiências que estas ideias, embora não estejam flutuando bem-sucedidas em países desenvolvidos, com na corrente central da literatura médica - fácil de populações mais homogêneas e com necessida- se encontrar em bases de dados4-5 tenham sido des básicas mais bem atendidas em países com reproduzidas em Genebra, em Sidney e aqui pelos condições diferentes. Arquivos Brasileiros de Cardiologia. Fica-me ain- da na memória o encontro com nosso saudoso Planejamento Estratégico Sir William Richard Shaboe Doll , na “London School of Hygiene and Tropical Diseases”, que ao O que faz com que certos planos dêem resulta- me encontrar encorajou-me por ter lido meu tex- dos e outros, aparentemente contando com todos to onde se esboçava o caminho da prevenção des- os elementos técnicos necessários, estejam fadados de doenças específicas, de indivíduos isolados, em à frustração? Pode-se rapidamente deduzir que o direção à promoção global da saúde. que está faltando para garantir o sucesso não se Ao participar de encontros ditos de promo- encontra facilmente no domínio das ciências médi- ção de saúde cardiovascular, nunca me convenci cas ou biológicas, mas esteja mais acessível no do- de que fosse possível pensar na promoção da mínio das ciências políticas e sociais. Um dos as- saúde de um órgão, ou focada somente num sis- pectos importantes no planejamento deve ser o da tema. Saltando de antes para agora, na esteira da mobilização da comunidade, não somente por cau- promoção da saúde, chegamos à saúde urbana, sa das raízes relativamente inacessíveis dos fatores na qual os indivíduos que compõe a população de risco, conforme já foi discutido, mas também estão irremediavelmente inseridos no contexto para obter mais recursos para o setor saúde, sem o onde nascem, vivem, trabalham e morrem; pre- qual “saúde para todos no ano 2000” não passará sos às estruturas físicas e às relações de poder, de um “slogan”. Além disso, parece necessário re- em contínua construção e modelagem, resultan- considerar as inseparáveis ligações entre a saúde e a do em desigualdades que sonhamos em reduzir. dimensão social, reativando discussão antiga, po- rém relevante, concernente ao conceito de saúde Referências que não se pode restringir aos limites dos serviços de assistência médica. Este tema é cada vez mais 1. Achutti A. Cardiologia e saúde pública: considera- relevante na medida em que fica evidente em nossa ções sobre a abordagem das doenças cardiovascu- lares em saúde pública. Arq. Bras. Cardiol. [perió- sociedade atual a existência de forças que levam dico na Internet]. 1987 Maio [acessado 2011 jun populações inteiras a se exporem, em intensidade e 12];48(5): 271-274. Disponível em: http://www. duração cada vez maiores, não somente a riscos arquivosonline.com.br/pesquisartigos/Pdfs/1987/ com consequências de longo termo (sedentaris- v48n5/48050002.pdf mo, tabagismo, etc...), mas também a riscos de 2. Schmidt MI, Duncan BB, Achutti A, Victora C, Bar- retto AM. Social Inequalitites and distribution of consequências mais ostensivas e imediatas (vio- Smoking, Obesity, Leisure Time Physical Activity and lência urbana, acidentes e outros), acrescidos de Daily Alcohol Consumption in Porto Alegre, Brazil. uma progressiva acomodação com ideias de 2nd. International Conference on Cardiovascular Disea- consequências muito mais extensamente destruti- ses Prevention; 1989 jun18. Washington; 1989. vas como a opressão e a guerra... 20 Achutti A et al.
3. Costa EA, Rose G, Klein CH, Achutti A. Diastolic
pressure as na índex of salt sensitivity. J. Human Hypertension 1994; 8(9):703-709. 4. Achutti A. Grupos de Analisis del modelo de pres- tación de servicios de salud. Educación Médica y Salud. 1992; 26(3):349-425. 5. Bassanesi S L, Azambuja MIR, Achutti A. Prematu- re Mortality due to Cardiovascular Disease and Social Inequalities in Porto Alegre: From Evidence to Action. Arq Bras Cardiol. [periódico na Inter- net]. 2008 [acessado 2011 jun 12];90(6): 370-379. Disponível em: http://www.arquivosonline.com.br/ english/2008/9006/PDF/i9006004.pdf