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ÉTICA NA ABORDAGEM DA DEPENDÊNCIA QUÍMICA

DIREITOS E LEGISLAÇÃO

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Sumário
INTRODUÇÃO................................................................................................. 3

ABORDAGEM ÉTICA AO ADOLESCENTE USUÁRIO DE DROGAS ............ 4

NOSSO OLHAR PERANTE O SUJEITO: A ABORDAGEM CENTRADA NA


PESSOA .................................................................................................................. 10

AS DROGAS E A PSICANÁLISE .................................................................. 15

ÉTICA CLÍNICA ............................................................................................. 20

ÉTICA FILOSÓFICA ...................................................................................... 22

A ÉTICA NO ACONSELHAMENTO EM DEPENDÊNCIA QUÍMICA ............. 24

BIOÉTICA NO ACOLHIMENTO A DEPENDENTES DE DROGAS


PSICOATIVAS ......................................................................................................... 30

BIOÉTICA: ALGUNS PRINCÍPIOS E REFERENCIAIS ................................. 30

A AUTONOMIA DO ACOLHIDO.................................................................... 30

A PRIVACIDADE E A CONFIDENCIALIDADE .............................................. 32

O REFERENCIAL BIOÉTICO DA ALTERIDADE .......................................... 33

A ESPIRITUALIDADE COMO REFERENCIAL DA BIOÉTICA ...................... 33

A SOLIDARIEDADE COMO REFERENCIAL BIOÉTICO .............................. 35

O CUIDADO RESPEITOSO – NOVO REFERENCIAL BIOÉTICO ................ 36

A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA E SUAS VARIÁVEIS: REFLEXÕES ÉTICAS


E SOCIOCULTURAIS NO TRATAMENTO E REINSERÇÃO DO PACIENTE NA
SOCIEDADE ............................................................................................................ 38

A LEI ANTIDROGAS: UMA PROPOSTA DE REDUÇÃO DE DANOS .......... 43

DIREITO À SAÚDE/DEVER DO ESTADO .................................................... 53

REFERÊNCIAS ............................................................................................. 56

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NOSSA HISTÓRIA

A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de empresários,


em atender à crescente demanda de alunos para cursos de Graduação e Pós-
Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como entidade oferecendo
serviços educacionais em nível superior.

A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de


conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação
no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua.
Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que
constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de
publicação ou outras normas de comunicação.

A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma


confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base
profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições
modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica,
excelência no atendimento e valor do serviço oferecido.

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INTRODUÇÃO
Nos tempos atuais, o uso indiscriminado de drogas lícitas e ilícitas cresce
progressivamente no Brasil e no mundo, entre os jovens das mais diversas classes
sociais. Trata-se de uma questão complexa com enormes danos nos âmbitos
privados e públicos, que tem motivado diversos estudos na América Latina sobre seus
impactos na saúde e na sociedade contemporânea.

O problema da dependência dos tóxicos, da droga, ou, como sugere a


Organização Mundial da Saúde (OMS), do consumo de substâncias que gera
dependência de substâncias psicoativas, é complexo, qualquer que seja o ponto de
vista para essa questão: para os médicos e psicólogos, para os políticos e sociólogos.
Entendemos como drogas aquelas substâncias que geram drogadição, ou seja,
intoxicação e hábito e/ou dependência química, e que, por seus efeitos sobre o
psíquico e sobre o comportamento, são nocivas ao indivíduo e à sociedade.

Em um estudo multicêntrico, foram recrutados em sete países da América


Latina (Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala, Honduras e México)
familiares e pessoas próximas a usuários de drogas ilícitas que expuseram seu ponto
de vista sobre fatores de risco e proteção, serviços de tratamento, políticas e leis
relacionadas ao uso de drogas ilícitas. A maioria dos participantes escolheu fatores
psicossociais, e não fatores genéticos ou biológicos, para explicar a causa dos
problemas do uso de drogas, considerando familiares e governantes como principais
responsáveis pela prevenção do uso de drogas. As instituições religiosas foram
mencionadas com frequência dentro do contexto de acesso ao tratamento aos
usuários de drogas, tendo como principais barreiras ao tratamento à vergonha sobre
o uso de drogas, o custo e as opções insuficientes de terapêuticas.

Foi realizado um estudo nas 107 maiores cidades do Brasil, com o objetivo de
estimar a prevalência do uso de drogas ilícitas, álcool, tabaco e o uso não médico de
medicamentos psicotrópicos. O uso na vida de álcool, com 68,7%, foi próximo aos
70,8% do Chile; o de tabaco foi de 41,1%, inferior aos EUA (70,5%); o de maconha
foi de 6,9% próximo ao da Colômbia (5,4%) e abaixo dos EUA (34,2%).

O uso na vida de cocaína foi 2,3%, inferior aos EUA (11,2%) e o de solventes
foi de 5,8%, bem menor que no Reino Unido (20,0%). Os estimulantes tiveram 1,5%
de uso na vida e os benzodiazepínicos, 3,3%.

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Os resultados dessa pesquisa mostraram que as drogas legais, como o álcool
e o tabaco, são os problemas de saúde pública mais proeminente no Brasil. A
realidade brasileira do consumo de drogas, embora semelhante à de outros países,
tem particularidades que precisam ser respeitadas na elaboração de programas de
prevenção e na implantação de políticas públicas adequadas no campo das drogas
psicotrópicas.

A partir desses estudos, podemos perceber que a problemática das drogas


lícitas e ilícitas envolve a participação da família, organizações religiosas, escolas,
Estado e sociedade, como um todo, tendo como principais desafios à elaboração de
estratégias eficazes de prevenção ao uso e a ampliação do acesso aos tratamentos
de recuperação de dependentes químicos.

ABORDAGEM ÉTICA AO ADOLESCENTE USUÁRIO DE


DROGAS

A dimensão ética envolve todo o processo da droga: difusão, consumo,


prevenção, empenho terapêutico e de reabilitação. Para além da dimensão ética,
existem outras dimensões igualmente importantes
(socioeconômicas, psicológicas, médico/farmacológica,
políticas e legislativas) e inter-relacionadas. Considerando
o lucro ilícito e imoral como o alimento da droga, exige-se
para reprimi-lo e desencorajá-lo um compromisso de
responsabilidade ética, de campos particulares, educativos
e institucionais. Assim, o problema ético une todas as
outras dimensões e fases de um itinerário de recuperação.
Figura: Consumo de drogas entre os
adolescentes. Fonte: Jus Brasil
Tendo em vista que a droga, por seu caráter ilícito e
destrutivo, é imoral por ferir os valores sobre a vida humana, consideramos imperativa
a reflexão ética sobre seu impacto e influência na sociedade e na humanidade. Nesta
perspectiva, corresponsabilidades, nos planos individuais e coletivos,
complementam-se em um compromisso solidário entre as diversas nações e pessoas
do mundo voltado para a mudança.

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A drogadição não pode ser extirpada sem o compromisso de todos os
cidadãos, e das instituições civis e religiosas, das famílias, da escola e da mídia para
uma educação para os valores, sobretudo, os valores da vida, da saúde e da pessoa.
Não se pode vencer o consumo das drogas de abuso alimentando uma cultura
hedonista, individualista e desprovida de solidariedade e valores transcendentes.
Sem o cultivo do sentido da santidade e da inviolabilidade e transcendência da vida
na família e na escola, a vida descamba para a desordem e o desespero.

Por outro lado, não se pode continuar a combater as causas de todo o mal-
estar social apelando para a integração afetiva, a co-presença educadora dos pais na
família e caminhar as políticas em uma direção diferente que favoreça a
desagregação e a dissolução dos compromissos conjugais e familiares. Não se pode
empregar na luta contra a droga o mero controle do cotidiano, sem vinculá-lo às
motivações de amplo fôlego que se inspiram nos valores da vida, da responsabilidade
e da solidariedade em uma óptica do divino que está no homem, o Homo sacer.

Homo sapiens sapiens sacer é uma expressão em


língua latina que, literalmente significa 'homem
sagrado', isto é, 'homem a ser julgado pelos deuses'

A vida do Homo sacer situa-se no cruzamento entre uma matabilidade e uma


insacrificabilidade: a vida insacrificável e matável é a vida sacra.

A separação entre humanitário e político, hoje vivida, é a fase extrema do


descolamento entre os direitos do homem e os
direitos do cidadão.

No imaginário social, político e midiático do


mundo ocidental, o paradoxo estabelecido entre
culto ao hedonismo e ao homem sagrado
transcendental, assim como o paradoxo entre a
integração familiar e o estímulo ao
descompromisso conjugal, interferem

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negativamente no avanço para a mudança no painel global estabelecido pela droga
pela desvalorização da inviolabilidade da vida humana.

Logo, a erradicação dos conflitos relacionados à droga consubstancia-se na


ausência de motivações frágeis, pontuais e egoístas de pessoas, no plano individual,
e de Estados-nação, no plano coletivo; e no alvorecer de uma dimensão ética global,
na qual o Homo sapiens, intelectivo, não pode ultrapassar o Homo sacer, para não
profanar sua divindade.

Imersos nessa discussão ética, alguns desafios devem ser vencidos na


atenção integral à saúde do adolescente em seus aspectos operacionais, tais como:
o reconhecimento de suas necessidades de saúde específicas; uma atuação da
equipe sobre a saúde do adolescente com enfoque na família; além das questões
éticas na atenção a essa fase da vida.

Os referenciais para a avaliação das questões éticas na atenção à saúde do


adolescente contemplam o desenvolvimento moral do adolescente e da equipe; a
capacidade cognitiva; a autonomia e os valores do adolescente, dos profissionais e
da família.

O adolescente, no que diz respeito à tomada de decisão, é visto de maneira


distinta, de acordo com a maturidade moral, a maioridade sanitária e a capacidade
jurídica.

Ele é competente para decidir sobre sua saúde, se compreender as


informações recebidas; analisar as consequências das possíveis escolhas; e julgar
as informações de acordo com os seus valores, crenças e projetos.

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Deste modo, as questões éticas do adolescente estão relacionadas com a sua
interação e capacidade de tomada de decisão, sofrendo adequações em decorrência
das transformações cognitivas e comportamentais por ele vividas e subsidiadas por
valores morais e competência. De igual modo, a abordagem da equipe ampara-se
nos documentos técnico/científicos, ministeriais e jurídicos.

Figura: O psicólogo e pedagogo G. Stanley Hall acreditava que “a adolescência é um novo nascimento, já
que com ela nascem as características humanas mais completas”. Fonte: https://amenteemaravilhosa.com.br

Imerso na configuração de sua identidade, muitas vezes vivendo situações


dramáticas, o adolescente precisa ser acolhido na saúde coletiva, de modo que as
ações da equipe devem estar pautadas por um processo que ofereça espaço para
manter diálogo, tanto com o grupo quanto com o profissional, enquanto educador para
o autocuidado. É fundamental que o profissional que trabalha com essa fase da vida
em sua prática cotidiana atente para a importância da atenção à saúde em uma
perspectiva integral, considerando não apenas as transformações físicas dos
adolescentes, mas também seus anseios enquanto indivíduos em maturação.

Na adolescência, são fundamentais as reflexões, por parte do profissional,


acerca do sigilo profissional e da real autonomia do adolescente, em função da
dependência química, que pode indicar condição clínica comprometida e alterar sua
competência em decidir sobre o tratamento de recuperação.

Quanto maior o grau de dependência química, mais afetada estará a tomada


de decisão consciente e, por conseguinte, a autonomia do indivíduo.

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Você é um educador para a conscientização dos agravos do uso das drogas
para a Saúde e deve respeitar e cuidar da humanidade, priorizando o trabalho de
prevenção, em uma atenção capaz de ultrapassar os estabelecimentos de saúde.

Para isso, precisa intervir junto a instituições para promover a saúde dos
adolescentes e prevenir o uso de drogas lícitas e ilícitas; atuar com outras profissões
da saúde e instâncias sociais; sensibilizar para as causas e consequências do uso de
substâncias psicoativas.

Nosso desafio reside em desenvolver atividades educativas e de


conscientização que recobrem a valorização do sentido da vida por esses
adolescentes.

Neste sentido, o profissional deve atuar com uma abordagem ao adolescente


usuário de drogas pautada na integralidade e na ética, compreendendo-o como
pessoa integrada em uma conjuntura social, familiar e educativa. Essa abordagem,
que considera a subjetividade desse indivíduo em maturação e em uma condição de
fragilidade pessoal e moral, causada pelo uso da droga, deve envolver família,
escolas, instituições de tratamento reabilitador e comunidade.

Como educador, o profissional deve priorizar a promoção da saúde do


adolescente em uma perspectiva emancipatória que ressalta a sua
corresponsabilidade e participação na luta e prevenção do uso de drogas.

Para exercer esse papel abrangente, é necessário articular a intersetorialidade


e a transdisciplinaridade.

 CONCLUSÃO

O consumo de drogas por adolescentes precisa ser compreendido em sua


totalidade, considerando aspectos sociais, econômicos, culturas, familiares e éticos.

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Nesse sentido, o presente estudo constatou que a responsabilidade por esses
indivíduos não deve ser atribuída apenas ao Estado ou à família.

A dependência de substâncias psicoativas entre os adolescentes é um sério


problema de saúde pública na contemporaneidade, associando-se e agravando
outros conflitos dessa fase, tais como violência, delinquência, gravidez não planejada,
sexo inseguro e disseminação de DST/AIDS.

Para o combate da expansão das drogas deve haver um intercâmbio entre os


mais variados setores da sociedade, os quais possam promover ações no campo da
prevenção e promoção da saúde por meio de políticas públicas; da colaboração
internacional entre países com a finalidade de promover uma dinâmica capaz de
controlar as redes internacionais que distribuem os entorpecentes por todo o mundo;
e o amparo a famílias que enfrentam esse tipo de problema com seus jovens.

Nesta perspectiva, a reflexão acerca da abordagem ética do profissional na


atenção a adolescentes usuários de drogas lícitas e ilícitas é salutar para o auxílio a
uma conscientização ou ao desenvolvimento de um pensamento crítico, capaz de
superar possíveis entraves encontrados por profissionais dessa categoria diante de
questões complexas envolvendo o uso de drogas. Nessa abordagem ética, sobressai
o resgate de valores morais e pessoais e a competência do adolescente para decidir
sobre seu tratamento de recuperação, envolvendo a intersetorialidade e a
transdisciplinaridade.

Figura: Nessa abordagem ética, sobressai o resgate de valores morais e pessoais e a


competência do adolescente para decidir sobre seu tratamento de recuperação, envolvendo a
intersetorialidade e a transdisciplinaridade. Fonte: https://amenteemaravilhosa.com.br

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NOSSO OLHAR PERANTE O SUJEITO: A ABORDAGEM
CENTRADA NA PESSOA

A Abordagem Centrada na Pessoa foi criada pelo norte-americano Carl


Rogers, que desenvolveu sua teoria de 1940 a 1987. Durante mais de 40 anos,
Rogers presenciou e escreveu sobre o crescimento humano. Sua teoria teve como
ponto de partida a não-diretividade, quando Carl Rogers propõe que o terapeuta saia
da posição de especialista e deixe o cliente guiar
o próprio processo. A partir dos anos 50, Carl
Rogers passa a privilegiar uma atitude mais ativa
do psicólogo, que deveria ter o cliente, e não o
problema, como foco. Já em sua última fase,
ligada à psicoterapia, antes de voltar-se para
atividades de grandes grupos, o autor propõe que
o foco seja dado à relação terapêutica, dando ênfase à experiência vivida pelo cliente
na relação com o terapeuta.

A Abordagem Centrada na Pessoa se fundamenta na valorização do indivíduo


que busca ajuda. A ideia central da abordagem se apoia no conceito de Tendência
Atualizante que é uma tendência inata de todo organismo ao crescimento,
maturidade e atualização de suas potencialidades. Rogers tinha, então, uma visão
positiva do homem. Seu foco eram as potencialidades, e não a doença de seus
pacientes. Ele acreditava que, se fossem dadas as condições necessárias para o
indivíduo se desenvolver, este caminharia no sentido da maturidade e da
socialização.

A outra base de crescimento do indivíduo seria sua Noção do Eu: a


experiência que todo indivíduo possui de si mesmo, como se vê, quais
potencialidades e defeitos julga possuir. Segundo a teoria Rogeriana, a
TENDÊNCIA ATUALIZANTE é a energia, e a NOÇÃO DO EU é a direção que
determina o comportamento do indivíduo. A Tendência Atualizante busca a

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conservação, a adaptação e o enriquecimento do eu, mas isso dependerá de como o
indivíduo vivencia determinada situação. Podemos concluir que a tendência à
atualização terá maior eficácia quanto mais realista for a Noção do Eu, ou seja, quanto
mais próxima esta for da experiência do indivíduo. O processo psicoterapêutico deve
fornecer os meios necessários para que o indivíduo realize seu crescimento pessoal
da forma mais autêntica possível.

Figura: O processo psicoterapêutico deve fornecer os meios necessários para que o indivíduo
realize seu crescimento pessoal da forma mais autêntica possível. Fonte: jrmcoaching

O papel do psicólogo, dentro desta abordagem, seria o de fornecer estas


condições para o crescimento humano e, confiando na capacidade de todo ser
humano para descobrir os melhores caminhos para si, colocar-se na posição de um
companheiro nesta busca, e não de um guia que direciona o cliente. Este pensamento
foi bastante inovador em uma época em que os médicos e psicólogos eram
detentores do saber e julgavam conhecer o que era melhor para seus clientes.
Rogers, ao contrário, acreditava que o cliente é a maior autoridade sobre si mesmo e
este poderia desenvolver suas potencialidades se lhe fossem dadas as condições
facilitadoras do crescimento.

As condições necessárias e suficientes que Rogers propõe para um bom


processo terapêutico, que promova a mudança de personalidade, são:

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A) EMPATIA: significa penetrar no campo vivencial do outro e perceber sua
realidade como ele a percebe, sendo capaz de compreender seus sentimentos,
diferenciando a experiência do terapeuta da do cliente. O terapeuta deve suspender
os próprios pontos de vista e valores, para entrar no mundo do outro sem
preconceitos. Ser empático é mergulhar no mundo interno do outro, percebendo os
significados que ele percebe e os que ele quase não percebe, ao mesmo tempo em
que se comunica essa compreensão ao cliente;

B) CONGRUÊNCIA: ser congruente significa ser autêntico na relação, ser


capaz de experimentar e tomar consciência dos sentimentos que o cliente e aquela
relação provocam no terapeuta, podendo expressá-los se achar construtivo para o
processo. A congruência se dá quando o terapeuta, como pessoa, consegue
encontrar-se efetivamente com o cliente, sem resistências ou temores; e

C) ACEITAÇÃO POSITIVA INCONDICIONAL: é uma consideração integral


por tudo o que o cliente é e traz para a terapia, sem qualquer tipo de julgamento. É
uma abertura à diferença do outro. Sentindo-se aceito, o cliente é capaz de expressar
livremente todos seus sentimentos, apropriando-se melhor deles.

Rogers acredita que agindo segundo estas três condições, o psicoterapeuta


oferece uma atmosfera de calor e segurança que favorece a exploração do cliente e
de seus questionamentos. O terapeuta deve acompanhar o fluxo da experiência do
cliente e devolver o sentimento implícito no conteúdo que ele expressa, para que o
cliente se aproxime cada vez mais de sua experiência. Deve, portanto, refletir sobre
os sentimentos que empaticamente percebeu que o cliente exprime, fazendo ressoar
sua experiência, sem cair em uma atitude interpretativa. Esta resposta reflexiva, além
de fazer com que o cliente se aproxime de sua experiência, faz com que este se sinta
compreendido ou, às vezes pela primeira vez, que sinta que é digno de importância,
apreço e interesse. O cliente sente-se, então, livre para mergulhar em sua

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experiência. E é, assim, que descobrirá seu poder pessoal e as respostas que,
inicialmente, esperava do terapeuta.

Destarte, segundo Rogers:

“Quanto mais o cliente percebe o terapeuta como uma pessoa


verdadeira ou autêntica, capaz de empatia, tendo para com ele uma
consideração incondicional, mais ele se afastará de um modo de
funcionamento estático, fixo, insensível e impessoal, e se encaminhará no
sentido de um funcionamento marcado por uma experiência fluida, em
mudança e plenamente receptiva dos sentimentos pessoais diferenciados. A
consequência desse movimento é uma alteração na personalidade e no
comportamento no sentido da saúde e da maturidade psíquicas e de relações
mais realistas para com o eu, os outros e o mundo circundante.”

 ALGUMAS CONCLUSÕES
o A relevância deste trabalho diz respeito ao grave contexto da dependência
química que o Brasil vem enfrentando durante os últimos anos. Esta é uma realidade
para a qual a Universidade pouco nos prepara para atuar. Por isso, importância de se
compartilhar metodologias e experiências entre profissionais interessados ou que
atuam na área, para que possamos, cada vez mais, expandir nossa atuação para
além dos consultórios particulares e levar nosso saber para outros espaços de
cuidado em saúde mental.
o Rogers, porém, não propôs a assistência para ser usada com um público
específico, ou em um setting específico, acreditando que esta se tratava muito mais
de uma atitude do que de uma metodologia. Rogers utilizou-se da ACP para trabalhar
não só na psicoterapia, mas na educação, em grandes e pequenos grupos, e,
inclusive, em conflitos globais.
o Os atendimentos deverão estar inseridos dentro de uma dinâmica maior, um
trabalho interdisciplinar, em que o psicólogo trabalha em parceria com outros
profissionais, visando à melhora do interno.

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o É importante lembrar que, mesmo na clínica tradicional, o psicoterapeuta é,
em alguns casos, convidado a dialogar com o psiquiatra que também atende seu
cliente que faz uso de medicamentos, com a escola onde estuda a criança ou com a
família de um cliente com ideação suicida, por exemplo. Nesses casos, o psicólogo
se vê frente ao desafio de conversar sobre o seu cliente com pessoas de outras áreas
da vida deste, sem desrespeitar a ética e a confiança, próprias da relação terapêutica.
o A respeito do objetivo preexistente que a psicoterapia em uma Comunidade
Terapêutica carrega e a subsequente necessidade de convidar o indivíduo a explorar
os temas relacionados a esse fim, é importante notar que a fase "não-diretiva" foi a
primeira fase da teorização de Carl Rogers, tornando-se o psicólogo, ao longo das
fases seguintes, cada vez menos passivo e mais participativo no processo, o que
nunca justificou uma postura desrespeitosa para com a liberdade e os limites do
cliente. O fato de a psicoterapia servir ao tratamento da dependência química não
exclui que o cliente explore outros campos de sua vida, como suas relações familiares
ou como outras experiências significativas que não tenham relação com a substância
química. O psicólogo não deve estar fechado a nada que o indivíduo traga.
o Porém, se perdermos de vista os objetivos da instituição em que
trabalhamos, nosso trabalho perde também o sentido. Por outro lado, o indivíduo que
está em tratamento pode chegar a conclusões diferentes das que os profissionais
esperavam. Podem decidir interromper o tratamento antes do tempo indicado (ou por
não suportarem mais, ou por já se julgarem recuperados), podem optar pela redução
de danos e não pela abstinência completa da substância, podem, até mesmo, decidir
sair da instituição e voltar a usar substâncias psicoativas. Tomados os cuidados para
que essas decisões não sejam precipitadas, oferecendo o suporte para aqueles que
tentam desistir em um momento de raiva e desespero, é respeitada a decisão de cada
um, mesmo que esta vá de encontro ao objetivo da instituição. Afinal, a maior
contribuição de Carl Rogers para nosso trabalho é a crença de que cada indivíduo é
capaz de escolher seus próprios caminhos.
o Uma prática baseada na crença na tendência atualizante do sujeito e em
sua capacidade de desenvolver suas potencialidades é de desvendar seus próprios
caminhos, se lhe for dada a atmosfera necessária, formada pelas condições
facilitadoras (empatia, consideração positiva incondicional e congruência).
o Para além do diálogo acerca da dependência psicológica, do lugar que a
droga ocupa na vida do usuário e de outras questões diretamente relacionadas à

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droga, a psicoterapia é um ambiente seguro de escuta, que oferece ao recuperando
a oportunidade de se revisar e reinventar.
o Parar de usar drogas envolve muito mais que o ato de não usar a substância.
É uma mudança de vida como um todo, que envolve uma mudança de concepções,
percepção da realidade, formas de se relacionar e prioridades de vida. É um momento
de descobertas de novas possibilidades e desconstruções de antigos padrões de vida
e existência.
o Dessa forma, a psicoterapia se faz importante como um espaço de recriação
e fortalecimento do sujeito.

o Vemos a Abordagem Centrada na Pessoa como potente postura


terapêutica, que nos possibilita estar plenamente com o outro e lhe ajudar em sua
batalha contra a dependência química, por se tratar de um enfoque que permite o
contrário do que a substância psicoativa vinha fazendo na vida da pessoa: aproximá-
lo de si e dos outros.

AS DROGAS E A PSICANÁLISE
De forma geral houve uma concordância no campo psicanalítico nos últimos
anos, salvo algumas exceções, sobre alguns aspectos da toxicodependência, um
deles é: "a toxicomania não é um sintoma freudiano, isto é, não é produto do retorno
simbólico do recalcado e caracteriza-se como uma prática que não produz saber”.

Outro aspecto seria que embora as três estruturas clínicas sejam capazes de
possuir traços distintos na constituição da relação de dependência com uma droga,
não há uma predileção pelo vício, seja o sujeito submetido à estrutura neurótica,
psicótica ou perversa. A toxicomania deve ser interpretada como um dado novo, isto
é, por mais que seja imprescindível trabalhar as questões históricas do paciente que
o levaram ao atual estado de vivência e que uma das três estruturas esteja
concomitantemente presente aos sintomas toxicomaníacos, é preciso compreender
que a droga é capaz de intervir no Real do corpo de um modo que não está aludido
no passado do sujeito. Seguindo a construção teórica de Nogueira Filho (1999), a
toxicomania ao torcer a relação do sujeito com a linguagem e a sua condição erógena,

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constituiria para ele um novo desempenho pulsional e uma maneira diferente de se
situar diante do Outro, ou seja, a droga em uma situação de

dependência não poderia ser concebida dentro da teoria psicanalítica como um


objeto a serviço da satisfação pulsional.

Tal proposição se deve à capacidade de uma substância química causar


prazer para além dos encadeamentos significantes de um sujeito e pelo fato da droga
não ser um objeto causa de desejo a priori. Desta maneira, um consumo constante
de substâncias químicas poderia fazer emergir um novo Real pulsional que aspiraria
somente pelo objeto droga, sendo que a partir das experiências de repetições
gozosas dos encontros com a substância, o sujeito estabeleceria um constructo
imaginário de sua soberania e saber, sustentando a ilusão de que dispõe controle
desta nova demanda. A consequência desta nova posição do sujeito é, devido à
ausência de necessidade, a recusa do Outro e a exclusão do exercício Simbólico, de
modo que assim cessa o domínio do desejo inconsciente, trocando o sujeito
barrado/castrado ávido por satisfação por um indivíduo com impulsos ao consumo,
que se não estiver atrelado ao prazer, pelo menos possuirá um gozo certo. Em suma:
"Se a pulsão veio marcar a necessidade com o erótico, a droga vem marcar o erótico
com o necessário".

O psicanalista francês Charles Melman também tentou tratar a toxicomania a


partir da psicanálise e assim como a maioria dos outros analistas não dispensou
questões políticas e éticas imersas no debate. Refletindo sobre como o consumo de
drogas agiria no aparelho psíquico proposto pela psicanálise, ele apresenta que a
totalidade do pensamento é sempre negada ao homem, pois ele está continuamente
aprisionado a um pequeno lapso de consciência, sendo capaz de conceber a
grandeza de suas próprias edificações simbólicas somente em contato com os
chistes, os sonhos, os jogos de palavra, a arte... A droga aparentemente libertaria o

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pensamento dos limites da repetição e ordenação, porém, independente dos ganhos
e perdas desta incisão, o consumo contemporâneo, por estar desvinculado de
qualquer movimento ideológico próprio, apenas reproduz o gozo ideal do discurso
capitalista de maneira alienada e autoerótica. Nisto há um sofrimento sintomático, já
que como afirmou Nogueira Filho, não há produção de saber. Sobre as relações
vividas pelo sujeito que se encontra compulsoriamente gozando de sua dependência
química, C. Melman (1992) destaca a erotização do dependente com as figuras da lei
e a interdição.

Desta forma, aponta que o terapeuta, assim como os representantes dos


poderes públicos que instigam a abstinência, faz as tensões e satisfações do jogo
existente entre o sujeito e o objeto droga somente aumentarem. Relembra também
que os psicanalistas deveriam ser totalmente contrários à proibição do consumo de
substâncias químicas se quiserem obter resultados favoráveis com os dependentes,
pois o discurso psicanalítico, assim como algumas leituras artísticas e filosóficas,
demonstra claramente que um objeto interditado é não somente o índice dos objetos
permitidos, mas também um possuidor de uma gama de gozo suplementar devido à
possibilidade de transgressão. O gozo está nos momentos de falta do objeto, e não
no momento final do consumo que encerra a tensão. Como proposta de “cura”
Melman (1992) defende que a proibição nos aspectos econômicos, sociais e afetivos
em nada traz ganhos e que seria mais interessante medicalizar a droga ao invés de
apenas liberar o consumo. Isto significa fornecer a droga de maneira legal, porém
medicamentosa, em uma tentativa de deserotizar o consumo. Charles Melman (1992)
também trata a questão do alcoolismo em seu trabalho, contudo, ele a separa das
outras toxicomanias, pois a adicção à bebida alcoólica constituiria um sintoma de uma
determinada classe social (a proletária) e se refere somente à sexualidade masculina.
Este ponto de vista aparentemente preconceituoso é baseado na repetição de um
discurso que não se confunde com a fala em torno das outras drogas ou de outros
usos do álcool na clínica.

Outra tentativa de analisar o consumo é de Zafiropoulos (1994) ao


empreender uma fenomenologia da experiência toxicomaníaca a partir da clínica
psicanalítica. Ele propõe que em alguns casos de consumo a droga vem a fazer um
apelo tirânico à repetição de um lugar que se localiza fora do corpo e fora do discurso,

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ou seja, ocorrerá com o tempo a cessação das possibilidades de laço social, algo
muito próximo da proposta de Nogueira Filho sobre a recusa do Outro e do Simbólico
como característicos da adicção. O autor recusa a identificação entre substâncias
químicas e efeitos determinados, enfatizando a singularidade de cada sujeito no seu
consumo e em sua entrada no mundo das drogas, ou seja, não há univocidade no
início de um percurso que finaliza em uma suposta adicção química.

Portanto, tão pouco existiria o toxicômano, um significante ou imagem capaz


de ser o modelo que delimita o grupo de indivíduos que consomem droga de uma
determinada maneira, já que cada sujeito possui uma história, fantasia e gozo
atrelados ao consumo que são únicos. Os efeitos do consumo de substâncias
psicoativas são muitas vezes referidos como uma “viagem” pelos usuários.

O psicanalista Jésus Santiago (1994), que possui um trabalho extenso a


respeito do consumo de drogas e a teoria lacaniana, adere ao posicionamento da
maioria dos psicanalistas lacanianos, afirmando que a toxicomania não deve ser
considerada à parte das estruturas clássicas da psicanálise. Entretanto, enfatiza que
no início do tratamento clínico existe uma peculiaridade nestes casos, pelo menos no
que se refere à neurose os analisandos apresentam acting-outs e passagens ao ato
repetidamente, ao invés de impasses entre a palavra e a linguagem. Desta maneira,
o toxicômano faria uso da droga como “contra-sintoma”, isto é, o ato de se drogar
suprimiria a indeterminação subjetiva da palavra, e em um aparente exercer da
vontade, o sujeito cria um impasse no Outro, ou segundo as palavras do autor: “Nessa
antinomia entre o ato e o pensamento, justifica-se o caráter não interpretável do ato
de se drogar, no sentido de que o sujeito, na certeza de sua busca de felicidade, se
apresenta separado do Outro”. (SANTIAGO, 1994a, p.34).

A repetição do ato na drogadição cria um imaginário dos efeitos e rituais de


uso que sempre desencadeiam a satisfação esperada, esta configuração exclui a
necessidade da palavra, o que resulta na transposição da divisão do sujeito para uma
divisão no Outro. Isto tem efeitos na relação com o saber que podem ser nitidamente
apreciados quando se ouve as comuns descrições do efeito de algumas drogas que
se referem a não necessidade de palavras ou mesmo às compreensões súbitas sobre
o cosmos e o sentido da vida humana, assim como já foi descrito acima.

18
Outro psicanalista que escreveu sobre o tema é Éric Laurent (2014) e ele
partiu de uma das poucas proposições de Jacques Lacan sobre as drogas: “A droga,
única forma de romper o matrimônio do corpo com o pequeno-pipi”. (LACAN, 1970,
citado por LAURENT, 2014, p. 20).

Para Laurent (2014) em casos de consumo em estruturas não psicóticas, a


droga pode romper com o Nome-do-Pai, portanto, também com a castração que
delimitaria um objeto de gozo através da fantasia. O vício não constituiria uma
neurose ou perversão por não possuir um caminho até satisfação que se faz através
da fantasia, constitui de fato, um curto-circuito de gozo sem particularidades ditadas
pelo Outro, e assim, desvinculado do falo (o pequeno-pipi).

Segundo o autor a droga possibilita um gozo “uno”, pois não é um gozo sexual
fragmentado pelo corpo ou pela fantasia. Laurent (2014) ainda afirma que se trata de
um “gozo do futuro”, pois na pós modernidade um dos meios de sofrimento
sintomático acontece pelo temor do gozo do Outro, ou seja, é insuportável para o
sujeito, diante das suas próprias injunções superegóicas, a possibilidade de que o
“vizinho” tenha mais satisfação ou obtenha algum gozo proveniente de um lugar não
presumido como permitido. Este tipo de configuração só pode se estabelecer em um
ideal de eu pautado no “se dar bem”.

Em suma, o consumo compulsivo de drogas reduz as singularidades e assim


forma um gozo uno, ideal aos medos, criadores de preconceito e racismo, de que o
Outro esteja se dando bem pelas nossas costas. Se o gozo toxicomaníaco é um gozo
do futuro, seu discurso, enquanto constituinte de um gozo uno, se produz hoje.

Antônio Beneti (2014) relembra que a maioria dos discursos que almejam
gerar um saber sobre a dependência química contemporânea enfatizam unicamente
as vicissitudes e características do objeto, e ao reduzir a importância das
contribuições perpetuadas pelo sujeito nesta relação, criam um apagamento das
questões ligadas à subjetividade do consumo e da adicção. O discurso pautado no
objeto é segregacionista por excluir a riqueza da subjetividade inconsciente, enquanto
a psicanálise, por outro lado, deve sempre ser composta em torno da premissa de
que é o toxicômano quem faz a droga. Isto significa pensar o sujeito inconsciente no
lugar do vazio deixado por um discurso fatalista e interrogar o desejo implicado no
consumo.

19
Como demarca o autor: “O que ele quer com esse objeto e não o porquê do
uso de drogas. Qual a importância desse objeto, qual o lugar desse objeto, qual a
função desse objeto droga”. (BENETI, 2014, p. 32).

Em sua leitura sobre os movimentos históricos da drogadição Beneti (2014),


assim como Nogueira Filho (1999) e Melman (1992), comenta que a relação com as
substâncias químicas na sociedade Ocidental moderna até cerca de algumas
décadas atrás se dava pela transgressão dos ideais vigentes na cultura, entretanto,
atualmente as drogas são mais um dos objetos oferecidos ao gozo pelo saber
científico dentro da lógica capitalista.

Antes a transgressão era a do ideal vigente, hoje a transgressão é muito mais


violenta, pois é a do próprio corpo, do laço social e dos próprios limites. E ainda
poderíamos adicionar os casos em que o consumo não é cometido a partir da tentativa
de transgressão, mas, por uma resposta à demanda de integração ou adequação ao
meio, como por exemplo a necessidade de aceitação Outro, do amor de um indivíduo,
do aumento de desempenho físico ou mental.

ÉTICA CLÍNICA

Diversos pontos de vista se repetem nas elaborações dos psicanalistas


consultados e apresentados até aqui, algumas opiniões são explicitamente
semelhantes e convergentes, enquanto que outras não coincidem tão diretamente,
porém, numa leitura mais atenta é possível perceber que na maioria dos casos se
trata apenas de formulações diferentes de uma interpretação muito próxima do
fenômeno, algo que ocorre devido à competência da utilização da teoria lacaniana,
pelos analistas examinados, como instrumento de leitura clínica.

Pode-se concluir com base nos textos consultados que não existe uma maneira
de ser toxicômano, isto é, não há nenhuma patologia ou estrutura capaz de nomear
o suposto grupo composto por aqueles que são considerados dependentes químicos,
visto que cada um deles possui uma relação única com a droga.

20
A adicção é o nome dado ao sofrimento causado pela repetição de um mesmo
ato, e no caso apresentado, ocorre devido aos desvios que a droga é capaz de
propiciar a fim de evitar o encontro com os embaraços do desejo e a falta constitutiva
do sujeito.

A falha desta estratégia para conviver com o mal-estar é que uma substância
química que sirva como meio único de satisfação a um indivíduo, será também com
o tempo o único objeto demandado por ele, e não menos demandado do que os
últimos que o antecederam. O regime de gozo que se encontra no momento em que
a droga se tornou o objeto causa de desejo dispensa a necessidade de articulação
simbólica, pois a castração do sujeito está camuflada por uma nova falta (a “fissura”)
e ela já possui um objeto obturador (a droga). As operações efetuadas pelo
“toxicômano” só são possíveis nas sociedades contemporâneas ocidentais (ou
ocidentalizadas), já que elas se encontram, em sua maioria, imersas numa lógica de
que a natureza e o corpo podem ser cifrados e domados. Somente a ciência possibilita
a “crença” de que determinada substância, se consumida, propiciará determinados
efeitos e de que a repetição do mesmo método fornecerá os mesmos resultados.

Logo, a drogadição é sempre uma alternativa que foi escolhida para evitar o
adoecimento neurótico ou sintomas psicóticos. Na clínica o psicanalista seguirá na
contramão dos outros discursos antidrogas, pois jamais colocará o sujeito na posição
de vítima de algo que ele não é responsável, como acontece constantemente na mídia
quando ela comunica os perigos da droga ou o invencível vício propiciado por elas.
Em termos mais específicos, é preciso desconstruir as identificações que o sujeito faz
com a droga ou com a suposta existência da maneira de ser drogadicto, além de
cercar a especificidade de sua história com a drogadição, no intuito de fazê-lo se
reconhecer nela. Em relatos clínicos se torna evidente que alguns analisandos são
capazes de construir um vício em um significante que sustenta seu sintoma, de modo
que o que menos possui importância em sua drogadição são os efeitos bioquímicos
da substância.

Talvez o único ponto de determinação irredutível que pode ser utilizado como
referência ao trabalho clínico seja a dicotomia entre o drogar-se sintomaticamente e

21
o consumo da droga como antissintoma, ou seja, diferenciar as situações em que a
drogadição não é nada mais do que uma espécie de atuação, na qual a droga entra
como um dos artifícios que compõe o cenário fantasmático de gozo do paciente, das
situações em que os efeitos da droga no corpo evitam que o sujeito se encontre com
o mal-estar.

Esta divisão é a mesma que permite diferenciar a toxicomania das outras


manias, pois unicamente no caso das drogas existe a possibilidade de antissintoma,
algo impensável nos casos de pacientes que se dirigem à análise devido ao vício em
outros objetos, como jogos, sexo, comida...

A conclusão do discurso psicanalítico é ética, visto que o saber proposto faz


emergir interrogações a respeito dos ideais do consumismo, dos efeitos inesperados
do discurso científico e do limite da liberdade do sujeito de gozar à sua revelia e
(des)prazer. Se os sujeitos que preferem consumir drogas a se dedicar a qualquer
outra atividade comparecem invariavelmente na clínica, é porque eles concluem que
esta prática causa mais sofrimento do que satisfação. O conhecimento que a
psicanálise sugere se parece tão distante de uma leitura biológica porque os objetos
de estudo não são os mesmos, em um campo de estudos encontramos um organismo
e um princípio ativo e no outro um corpo sexual e um objeto de satisfação. Se estas
diferenças resultam de uma real heterogeneidade dos objetos de estudo ou se o que
aparece como divergente é apenas um efeito paralático, trata-se de uma discussão
epistemológica que não cabe ao fim deste artigo.

ÉTICA FILOSÓFICA
Dedicando-se agora a um discurso de teor mais filosófico podemos dizer que
os discursos que repetem incessantemente as regras sobre o consumo de drogas,
desde incentivo ao consumo de alguns medicamentos, bebidas ou drogas ilícitas, até
a mais completa recusa diante de algumas substâncias, revela uma preocupação em
controlar as práticas com o corpo.

De acordo com a filósofa Marcia Tiburi (2013) a repetição e veiculação de


determinados discursos com intuito de abarcar a verdade última sobre um assunto
(quase um tabu neste caso), se insere naquilo que Foucault chamou de “sociedade

22
de segurança”, entendida por ela como aquela que: “[...] reedita a estrutura da lei e
da disciplina (com o apoio do direito e da ciência) e que sustenta na penalidade ou
nos procedimentos relativos à vida biológica, como mecanismos de controle social”.

Portanto, a maneira como são veiculados os discursos sobre as substâncias


químicas demonstram práticas que se inserem naquilo que Foucault chamou de
biopoder. De acordo com Tiburi (2013) caso seja aceito a existência das fissuras da
sociedade contemporânea e as fissuras atemporais da cultura e do corpo, a
autodestruição pela via do vício não é uma alternativa que está em oposição ao bem-
estar da vida. Dito de outra forma, assim como uma banda de Moebius em que se
anda ao outro lado estando no mesmo lugar, o consumo de drogas é justaposto a
vida humana, está em total acordo com nossas atividades que sempre envolvem um
gozo transgressor, mortífero e autodestrutivo.

Como ela propõe: “E que a questão da fissura possa nos apresentar mais do
que o sintoma, do que a causa ou do que o efeito, o modo de ser do vazio do
pensamento característico do nosso tempo”. (TIBURI, 2013, p. 16). Poderíamos dizer
que nos casos em que há sofrimento por causa da necessidade de consumir drogas,
a dor se deve mais ao fato de um objeto supostamente capaz de obturar a falta
humana estar disponível do que por ele estar ausente.

O filósofo esloveno Slavoj Zizek (2008) descreve o mecanismo de alienação


ideológica como uma confusão, decorrente de posições de gozo dos sujeitos, entre o
elemento e a estrutura. Como exemplo ele cita uma situação hipotética, baseada nos
escritos de Karl Marx, em que as pessoas de um determinado vilarejo fantasiem que
seu rei é rei por alguma qualidade intrínseca a ele, e não sejam capazes de conceber
que seu rei reina por causa das relações sociais do vilarejo que o colocaram neste
lugar.

Como conclusão deste primeiro movimento de discussão sobre a toxicomania


e as drogas a partir da psicanálise e da ética, pode dizer que conceber a droga ou o
drogadicto como fonte do mal é uma alienação ideológica.

Ambos são produtos das relações humanas e obviamente não são a sua
causa. O horror difundido diante da imagem do dependente químico é na verdade um
mero mecanismo de defesa, que neste caso, eleva a imagem do drogadicto a

23
representante dos pontos traumáticos da sociedade contemporânea. Escolha
apropriada se relembrarmos sua relação com a ciência e com o capital.

A ÉTICA NO ACONSELHAMENTO EM DEPENDÊNCIA


QUÍMICA

I - INTRODUÇÃO:

A razão do trabalho de um Conselheiro em Dependência Química é o paciente.


Portanto, uma série de cuidados o Conselheiro deve ter para proteger a sua relação
com o paciente. É bom lembrar que o Conselheiro é apenas parte de uma Equipe
Multidisciplinar de um Centro de Recuperação ou de uma Clínica, que oferece
tratamento a pessoas dependentes de substâncias psicoativas e seus familiares,
entre outros O que nós iremos abordar nesta aula, poderia ser aplicado, por extensão,
a todos os membros da Equipe e funcionários do Centro de Recuperação ou Clínica,
mas nós focalizaremos o Conselheiro, por ser ele, muitas vezes, o elo principal de
ligação do paciente para com o tratamento / recuperação. Neste sentido, para que
esta ligação seja mais saudável e proveitosa faz-se necessário que haja um código
de valores e condutas, que damos o nome de Código de Ética.

II - DEFINIÇÃO:

Ética é a ciência de uma conduta moral correta, oriunda de uma analise da


natureza humana à luz da razão. Constitui as regras de conduta com relação a uma
classe específica da ação humana, e engloba princípios morais, incluindo a ciência
do bem estar e a natureza do direito. Uma definição mais simples seria de “ter o habito
da coragem moral”.

A Ética esta ligada, segundo os gregos, à filosofia moral e à ciência dos


costumes. Filosofia moral, que expressa um modo de ser, aquilo que o homem traz
dentro de si na sua relação consigo, com o outro e o mundo. Como Ciência dos
Costumes, a Ética trata dos deveres sociais do homem e de suas obrigações entre si
na sociedade.

24
III - OBJETIVO:

O objetivo principal de um código de ética é de guiar os profissionais a ajudar


os pacientes e suas famílias, mantendo um comportamento justo e decente para com
seus colegas de profissão, bem como para aqueles que estão sob os cuidados destes
profissionais. Ser ético supõe a boa conduta de ações, a felicidade pela ação feita, e
o prêmio ou a beatitude da alegria da auto-aprovação diante do bem-feito.

IV - O TRABALHO DE ACONSELHAMENTO:

Aconselhamento é um método de trabalho terapêutico, baseado numa relação


de ajuda, onde existe um que procura ajuda e alguém que está preparado e disposto
a ajudar.

 Cabe ao Conselheiro:

- Estimular a tomada de consciência do cliente e de sua realidade.

- Refletir com o paciente e esclarecer suas demandas

- Acolher a experiência do paciente

-Não julgar, nem impor soluções

 Cabe ao paciente:

- Compreender/ Reorganizar o seu mundo interior

- Procurar soluções apropriadas/ adequadas para as suas demandas

25
- Iniciar o processo de auto- conhecimento, auto- confiança, crescimento e
autonomia.

V- OBJETIVOS DO ACONSELHAMENTO:

- Proporcionar a mudança do
comportamento, dos valores sociais,
conhecimento e habilidades para tomar
decisões e a capacidade de ser bem
sucedido por parte do paciente.

 NORMAS DE UM CONSELHEIRO:

Existem algumas normas básicas que devem ser respeitadas e seguidas para
que a postura ética de um Conselheiro seja um caminho de coerência e retidão na
sua vida profissional:

1) Evitar ou recusar qualquer empreendimento comercial com o paciente e/ou


seus familiares;

2) Evitar colocar-se política - ideologicamente nas sessões de aconselhamento


(Grupos, Palestras, Terapias Individuais);

3) Manter a coerência na sua relação com o paciente, quer dizer: praticar aquilo
que fala, Ter um comportamento coerente com a prática da Programação dos 12
Passos, ou seja, frequentar grupos de mútua-ajuda, além disso, ter seu próprio
espaço terapêutico;

4) Evitar o “apadrinhamento”. Orientar o paciente a buscar ajuda entre os


membros de NA/AA/NAR ANON/ NAL ANON. Alguém em que ele possa construir
uma relação de ajuda, baseada na confiança;

5) Evitar o envolvimento sexual/afetivo com o paciente e seus familiares:

26
 Quando o paciente tentar seduzir ou se apaixonar pelo Conselheiro, este
deve trabalhar isso numa supervisão com os outros membros da Equipe;

 Quando o Terapeuta se sentir atraído por seu paciente, deve trabalhar isso
numa supervisão, na sua terapia e em alguns casos, discretamente, esse paciente
deve ser encaminhado para outro Terapeuta.

Resumindo: Algumas vezes o Terapeuta deve se afastar do caso.

III - LEMBRE-SE:

É preciso lembrar que na grande maioria dos casos, os pacientes internados


num Centro de Recuperação estão com uma auto-estima muito baixa, vulneráveis e
inconscientemente, buscam um romance para fugir ou amenizar suas
dores/sofrimento. Um Conselheiro em D.Q. deve estar praticando o programa
constantemente, dando continuidade ao seu próprio processo de auto-conhecimento,
através dos Grupos de Mútua-Ajuda e de uma Psicoterapia.

Um Conselheiro não pode deixar que os seus “barulhos internos”


interfiram na relação de ajuda. Quando em dúvida, faça a você mesmo as
seguintes perguntas;

a) Qual é o meu dever ético-profissional em relação a este paciente?

b) O que eu gostaria que fizessem comigo ou para alguém importante para


mim se eu estivesse no lugar desta pessoa?

IV - A ÉTICA PERMITE:

Não negar sua natureza humana e permitir-se expor seus sentimentos sempre
que perceber que isso irá ajudar seu paciente. Um Conselheiro não teme seus
sentimentos, aprende a expressá-los com habilidade. Um Conselheiro não teme seus
sentimentos, aprende a expressá-los com habilidade.

27
V – CÓDIGO DE ÉTICA:

No Brasil, a profissão de Conselheiro em Dependência Química, encontra-se


em fase de regulamentação, não havendo por enquanto um Código de Ética
estabelecido e aplicado.

Abaixo, lemos o Código de Ética da Sociedade Americana de Medicina da


Adicção (ASAM), em que se pode demonstrar uma serie de objetivos que devem
nortear a atuação ética de um Conselheiro em Dependência Química, e de pessoas
envolvidas num Centro de Recuperação para Dependentes Químicos.

1. Como membro do grupo de funcionários ou de diretoria da Clínica, colocarei


sempre acima o bem estar de nossos pacientes e de suas famílias em assuntos que
os afetem.

2. Para esta finalidade, eu fornecerei um tratamento gentil e humano para todos


aqueles sob minha responsabilidade, independente da raça, credo, sexo, idade,
opção sexual, capacitação física, classe social e orientação política.

3. Eu não agredirei de forma deliberada o paciente, seja verbal, fisicamente,


ou psicologicamente. Eu não o atacarei verbalmente, ridicularizá-lo, tentar subjugá-
lo, ou colocar em perigo o paciente, ou deixar que outros pacientes ou membros da
Equipe façam o mesmo.

4. Eu procurarei promover mudanças na vida do paciente, somente em seu


benefício e no interesse de promover a recuperação da doença de que nos fomos
incumbidos de tratar. Eu não procurarei de outra forma força-lo a adotar crenças e
comportamentos que reflitam meu sistema de valores em vez do seu próprio.

5. Eu me manterei consciente de minhas limitações e capacidades. A partir do


momento em que os pacientes e ex-pacientes me vêem como uma autoridade e,
portanto supervalorizam as minhas opiniões, eu nunca tentarei opinar em assuntos
que não sejam da área de meu trabalho. Eu estarei pronto a reconhecer quando for
do melhor interesse dos meus pacientes a encaminhar ou indicar os mesmos a um
outro programa ou a um outro profissional.

28
6. Eu não me engajarei em atividades que possam ser usadas como
exploração dos pacientes para se obter ganhos pessoais sejam eles, sexuais,
financeiros ou sociais.

7. Eu não tentarei usar minha autoridade sobre o paciente de uma forma


coercitiva para atingir meus objetivos. Eu não estimularei a dependência a mim, mas
sim, ajudarei aos pacientes a se fortalecerem.

8. Eu não nomearei nem darei informações sobre o paciente, um ex-paciente,


ou membro da família, exceto para outro membro da Equipe, conforme as
especificações do tratamento ou quando autorizado pelo paciente.

9. Eu compreendo e concordo em defender a filosofia da política de respeito


em relação aos direitos dos pacientes, e de respeitar os direitos e opiniões de outros
profissionais.

10. Como profissional e pessoa que cuida do outro ser humano, eu


compreendo que uma relação terapêutica não termina quando o paciente deixa a
Clínica. Eu reconhecerei a necessidade de se conduzir qualquer relação posterior
com antigos pacientes com os mesmos cuidados para com seu bem estar como os
colocados nos itens anteriores. Envolvimento sexual com antigos pacientes é
antiético. Envolvimento sexual com um paciente antigo explora emoções derivadas
do tratamento e é, portanto quase sempre antiético.

11. Com relação ao meu uso de álcool e drogas alteradoras de humor, eu


deverei ser um parâmetro para os pacientes, equipe e a comunidade. Se eu sou um
dependente químico, me manterei em abstinência total enquanto empregado na
Clínica.

12. Eu demonstrarei uma postura responsável pelo bem estar dos meus
colegas e da Clínica como um todo, não ignorando as manifestações de doença ou
condutas antiéticas dos colegas.

13. Eu assumirei a responsabilidade pela continuidade da minha formação


educacional e crescimento profissional como parte do meu compromisso para
fornecer tratamento de qualidade para aqueles que procuram pela minha ajuda.

29
BIOÉTICA NO ACOLHIMENTO A DEPENDENTES DE
DROGAS PSICOATIVAS
O abuso de substâncias psicoativas é problema mundial e extremamente difícil
em todos os seus aspectos, requerendo a oferta de serviços para grandes
contingentes de dependentes, nem sempre atendidos pelos setores públicos
responsáveis. Isso exige a participação complementar de instituições privadas sem
fins lucrativos, como as comunidades terapêuticas. Essas comunidades são
instituições de diferentes origens, adotam metodologias distintas e recebem pessoas
hipervulneráveis, o que exige dos voluntários e profissionais de saúde acolhimento
ético e torna essa área campo em que a bioética pode contribuir para solucionar
conflitos durante a atenção residencial transitória. Pela escassa abordagem ética de
comunidades terapêuticas na literatura mundial, em especial na brasileira, este artigo
enfatiza alguns princípios e referenciais bioéticos, como autonomia, sigilo e
confidencialidade, alteridade, espiritualidade, solidariedade e cuidado respeitoso. Por
fim, estimula a comunidade acadêmica a contribuir para enriquecer a reflexão bioética
sobre o cuidado às pessoas nessas instituições.

BIOÉTICA: ALGUNS PRINCÍPIOS E REFERENCIAIS

A AUTONOMIA DO ACOLHIDO

A autonomia, um dos quatro princípios fundamentais da corrente anglo-


saxônica da bioética, pode ser compreendida como a capacidade de o indivíduo tomar
decisões que afetem sua vida, sua autodeterminação, seu autogoverno. Ou seja, é o
poder de decidir o que é bom, ter liberdade de expressão, de optar diante dos dilemas
de sua vida. Em outras palavras, o respeito à autonomia traduz-se no respeito à
dignidade do ser humano que, por sua vez, está diretamente ligado ao livre
consentimento, uma vez que ele deve ser sempre informado. O respeito às pessoas
inclui, pelo menos, duas convicções éticas: todos devem ser tratados como agentes

30
autônomos e, se houver, por alguma razão, redução da autonomia, todos têm o direito
de ser protegidos.

Sobre o exercício da autonomia, pode-se acrescentar, ao menos, duas


situações éticas importantes nas Comunidades Terapêuticas:

1) aqueles que são capazes de deliberar sobre seus objetivos pessoais e agir
sob a orientação dessa deliberação;

2) aqueles que têm sua autonomia diminuída ou forem incapazes de decidir


por si próprios (hipervulneráveis) e que deverão ter ampliada sua proteção.

Para outros, no entanto, o tratamento compulsório é grave restrição ética .


Childress situa a proteção de pessoas com autonomia reduzida dentro dos princípios
da beneficência e justiça, e Beauchamp e Childress destacam que:

1) se não houver entendimento da situação, não haverá autonomia;

2) a incapacidade mental limita a autonomia dos portadores de deficiência;

3) a institucionalização coercitiva restringe a autonomia dos internados.

Complementando, Durand refere como elementos essenciais para o exercício


da autonomia o direito de ser informado, de decidir e de escolher, mas exigindo-se
aptidão do indivíduo para exercer:

1) a capacidade de compreender as explicações fornecidas e as implicações


do ato;

2) a capacidade de deliberar sobre escolhas possíveis de acordo com seus


valores e metas que persegue;

3) a capacidade de expressar claramente a própria escolha.

O fundamento ético do consentimento informado, além da autonomia e da


beneficência, baseia-se também nos valores de lealdade, veracidade e respeito .

Dessa forma, tendo em conta que as internações nas Comunidades


Terapêuticas não são coercitivas, mas relacionadas à própria vontade dos

31
dependentes e, portanto, considerando que são capazes de ter consciência e
governabilidade sobre suas decisões, espera-se que se tenha respeito à autonomia
dos acolhidos na perspectiva das condutas éticas referidas. Cabe reportar aqui ao
valor “respeito” como o mais citado pelos dirigentes das CT catarinenses , pois vai ao
encontro da responsabilidade moral dessas instituições de preservar a dignidade, a
autonomia e respeitar os valores do acolhido. Estando presente este valor na prática
diária das CT, será possível conquistar a confiança dos acolhidos para estabelecer o
cuidado necessário.

A PRIVACIDADE E A CONFIDENCIALIDADE
A garantia da preservação de informações, relacionada ao diagnóstico, exame
complementar ou ao tratamento é dever prima facie (uma obrigação que se deve
cumprir) de todos os profissionais e também das instituições . Por sua vez, esse
aspecto pode ser abordado tanto pela questão da privacidade quanto pela da
confidencialidade.

A privacidade é a limitação do acesso às informações de uma pessoa e a ela


própria, à sua intimidade, e garante a preservação de seu anonimato. Isso é
particularmente importante, pois nas Comunidades Terapêuticas essa visão do
respeito à privacidade é mais complexa, já que se vive coletiva e diariamente em
espaço limitado durante alguns meses. Portanto, as informações sobre os
dependentes devem se limitar às funções próprias de cada acolhedor e regidas pelo
princípio da responsabilidade ética sobre as consequências de cada ação , mesmo no
caso daqueles cujas profissões não sejam subordinadas a códigos deontológicos .

Por sua vez, a confidencialidade, como pilar ético da relação entre acolhedor
e acolhido, é a garantia do resguardo das informações dadas pessoalmente em
confiança e a proteção contra a sua revelação não autorizada. Os pacientes ou os

32
dependentes são os proprietários de suas informações, enquanto os profissionais e
as instituições são apenas seus fiéis depositários – todos que entram em contato com
as informações por necessidade profissional têm apenas autorização para acessá-
las, mas não o direito de usá-las livremente .

O REFERENCIAL BIOÉTICO DA ALTERIDADE


A face do Outro, a importância do Outro e que a cada um de nós cabe a tarefa
de ser responsável pelo Outro, especialmente àqueles socialmente mais vulneráveis.
E esse movimento de encontro ao Outro exige generosidade radical que deve ser
oferecida sem se esperar qualquer recompensa ou gratidão, pois essa ação deve ser
encarada como um ato altruísta de mão única .

Se o altruísta é aquele que pensa nos outros antes de pensar em si próprio, o


exercício de se encontrar ou se relacionar com a alteridade seria a representação
mais cabal.

Conhecer o Outro implica levar em conta sua “biografia” de forma abrangente,


incluindo sua espiritualidade e sua vulnerabilidade (como outro referencial). Respeitar
o Outro, isto é, a alteridade, implica respeitar a autodeterminação, vale dizer, o
referencial da autonomia. (…)

A ESPIRITUALIDADE COMO REFERENCIAL DA BIOÉTICA


A espiritualidade constitui uma força para a transformação dos dependentes,
uma vez que pode levá-los a reconhecer e atribuir sentido à própria vida. A
espiritualidade entra não exatamente como “o tratamento”, mas parte dele: algo que
dará um tipo de sustentação ética para que as pessoas se recuperem tanto no interior
da Comunidade Terapêutica quanto em sua vida posterior. Fica claro, portanto, que
a dimensão da espiritualidade é fator de bem-estar, conforto, esperança e saúde,
sendo preciso que as instituições de saúde se organizem para incluir esse aspecto
da necessidade humana .

Quanto à saúde mental dos dependentes químicos, a espiritualidade vem


sendo cada vez mais trabalhada em situação clínica, como ressaltada em

33
documentos internacionais que valorizam essa dimensão no âmbito dos cuidados e
da assistência à saúde (Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos,
Declaração de Lisboa sobre os Direitos dos Pacientes) e a Carta dos Direitos dos
Usuários da Saúde no Brasil, que reconhecem a importância do cuidado espiritual o
direito à assistência religiosa do usuário .

A literatura científica deixa clara a importância da espiritualidade na saúde


mental, uma vez que as evidências têm mostrado a relação geralmente positiva entre
ambas, o que, per se, justifica ser este referencial importante instrumento de reflexão
bioética no âmbito das CT .

Outra pesquisa sobre o tema indica que aproximadamente 80% dos estudos
sobre religião/espiritualidade e saúde são sobre saúde mental e que a maioria deles
apresenta relações significativas entre essas esferas e para a melhora da saúde . Ao
enfatizar o papel da educação espiritual, foi constatado que 100 das 141 faculdades
de medicina dos EUA e Canadá têm cursos sobre este tema e que 70% deles são
curriculares .

É a espiritualidade que une, liga e re-liga e integra. Ela e não a religião ajuda
a compor as alternativas de um novo paradigma civilizatório . Por sua vez, como
acentua De Leon , os dependentes não estão apenas tratando sua doença ou
mudando seus comportamentos e atitudes, mas sendo forjados para mudar a si
mesmos. A CT, além de contemplar o residente em sua integralidade de espírito, alma
e corpo, é, por natureza, um modelo (re)educativo por preparar o residente para o
regresso à vida social . Dessa forma, cabe concluir que estudar cientificamente a
espiritualidade é uma empreitada muito entusiasmante e perigosa.

34
A SOLIDARIEDADE COMO REFERENCIAL BIOÉTICO
Do ponto de vista humano, a solidariedade assume valor social que nos une
uns aos outros, formando uma comunidade que deve defender os mesmos
interesses, e sua inclusão como referencial da bioética visa utilizá-la nas deliberações
acerca de valores . A solidariedade poderia subsidiar as resoluções bioéticas, pois seu
objetivo principal é permitir a caracterização do referencial tendo em vista ações
éticas mais adequadas.

O conceito de solidariedade pode ser visto como conjunto de laços que une os
indivíduos na constituição de um grupo social , que tem como função primordial
manter a coesão do grupo e conservar a vida , expressões que nos permitem entender
sua adequação às vivências nas Comunidades Terapêuticas. A solidariedade foi
ignorada até início deste século diante do predomínio da visão individualista e
autonômica. No entanto, com o surgimento de abordagens sociais e políticas, passou
a ser mais valorizada na perspectiva bioética .

A solidariedade transmite, entre outras, a seguinte mensagem: você não está


só, afaste a solidão, estamos juntos com você. Assim, trata-se não apenas de noção
ou conceito, mas principalmente de prática ou modo de vida, o que permite que passe
de marca ética das relações humanas no sentido universal para o nível da conduta
individual, nos vários aspectos da existência .

Por causa do crescente interesse e aplicações, o sentido universal da


solidariedade foca os interesses das comunidades como um todo, tendo em vista que,
nos últimos tempos, seu conceito tem sido ligado a quatro novas áreas de reflexão da
bioética:

1) o âmbito da saúde pública;

2) o contexto de justiça e equidade dos sistemas de saúde;

3) o paradigma da saúde global (bioética global);

4) a ligação com os processos que levam ao bem-estar da


sociedade .

35
A solidariedade deve ser entendida como a capacidade de o agente discernir
as dimensões sociais e políticas que estão indissociavelmente presentes na ação
solidária .

Nas CT a solidariedade induz obrigações mútuas, razão de estar incorporada


no método de tratamento, pois todos são parceiros e dependem uns dos outros.
Ressalta-se, portanto, que ajudar os demais é algo profundamente enraizado no
dever natural da solidariedade existente no coletivo humano, como ocorre nas CT,
local onde os residentes permanecem juntos por alguns meses.

O CUIDADO RESPEITOSO – NOVO REFERENCIAL


BIOÉTICO
Os dicionários identificam “cuidado” como atenção, zelo, dedicação, carinho
e, sobretudo, empatia gratuita e prazerosa. Fenomenologicamente, “cuidado” é um
modo de ser, maneira de existir das pessoas que gera comportamentos e atitudes
permanentes, que se tornam a base de uma nova ética geral, a ética da atenção
especial com os mais fracos.

Concluindo esta conceituação, o cuidado respeitoso: trata-se de um novo olhar


para o cuidado, que se refere a uma atitude considerada fundamental para a bioética
atual. Para muitos eticistas e filósofos morais contemporâneos, tanto cuidar quanto
respeitar são atitudes que expressam formas de valorizar indivíduos vulneráveis,
como ocorre, por exemplo, nas Comunidades Terapêuticas.

O cuidado, em geral, é entendido como forma de preservar ou incrementar o


bem-estar do indivíduo vulnerável. Porém, pode se transformar em paternalismo
quando o cuidador deseja impor valores, algum procedimento específico ou certa
concepção de bem que não é partilhada pelo indivíduo
vulnerável , algo que deve ser evitado nessa relação. O
devido respeito é capaz de limitar o cuidado e evitar que
degenere em ações paternalistas. Porém, o próprio
respeito pode se tornar atitude negativa se não for
adequadamente dosado, o que permite concluir que o
respeito sem o cuidado pode levar à indiferença e ao

36
individualismo, ou seja, reforçando a teoria do cuidar respeitoso.

Nesse aspecto, a simpatia seria ingrediente fundamental, entendida como a


capacidade de compartilhar alegrias ou tristezas, dores e sofrimentos dos outros.
Deve-se dizer ainda que a ética do cuidado se baseia numa relação individual, única,
entre cuidador e indivíduo vulnerável e, desse modo, o primeiro deveria preservar ou
aumentar o bem-estar do indivíduo vulnerável, expandindo a situação para uma
relação mais ampla e coletiva como ocorre nas CT, por exemplo.

Em síntese, o cuidado é entendido como forma de cuidar e incrementar o bem-


estar de indivíduos vulneráveis. Nesse sentido, um princípio bioético fundamental
deve ser o do respeito pela pessoa e não simplesmente o respeito pela autonomia
da pessoa consciente, tendo em conta que o respeito é um dos valores mais
importantes do ser humano e muito relevante nas relações sociais.

Pode-se entender que essa forma de cuidado se concretiza plenamente


quando se estabelece laço de confiança e respeito entre as partes. Para conquistar
essa confiança, o cuidador deve demonstrar responsabilidade, competência, respeito
e sensibilidade, exteriorizados nas relações pessoais. Deve-se relembrar que o
acolhido, por sua condição clínica, encontra-se sempre em situação de
vulnerabilidade, mas, não obstante, deve ser respeitado em sua condição de ser
humano digno e detentor de direitos fundamentais.

Portanto, deve-se voltar a atenção para a necessidade de repensar e reanalisar


o cuidado e o respeito no contexto mais amplo da bioética geral, de maneira digna,
ética e humana (a importância da escuta nas relações), já que são direitos
fundamentais do vulnerável. Por último, enfatiza-se que o cuidado respeitoso é novo
conceito bioético e sua aplicação ética nas relações interpessoais das CT é muito

37
significante, razão para se concluir que somente o cuidado respeitoso constitui-se
numa atitude verdadeiramente moral e, por conseguinte, é absolutamente necessário
para a bioética atual.

A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA E SUAS VARIÁVEIS:


REFLEXÕES ÉTICAS E SOCIOCULTURAIS NO
TRATAMENTO E REINSERÇÃO DO PACIENTE NA
SOCIEDADE

A drogadição e suas consequências, após muitas tentativas de enfrentamento,


ainda remetem um desafio quanto ao melhor tipo de tratamento a ser destinado aos
dependentes químicos. A questão emerge perante a sociedade e não é possível
solucionar somente com medidas paliativas.

Este artigo pretende analisar as questões éticas e socioculturais interpostas na


utilização da internação compulsória no tratamento da dependência química. Para
tanto, o recurso utilizado foi de revisão bibliográfica para enfatizar a medida de
intervenção obrigatória na saúde do drogodependente, reformulada pela Lei n.
10.216/01, por ser realizada sem a submissão do paciente.

O artigo faz um breve apanhado histórico acerca das legislações que


regulamentam as drogas desde o proibicionismo da segunda metade do século XX
até a atual Lei n. 11.343/06. O artigo discute as responsabilidades de cada ente social,
bem como a do próprio usuário de drogas frente a sua capacidade de decisão.
Ademais, evidencia a necessidade da construção de estruturas adequadas para tratar
da drogadição, elemento fundamental para a reinserção social.

38
 INTRODUÇÃO

A discussão sobre o tratamento dispensado às drogas sofreu modificações em


todo o mundo desde que seu consumo, fabricação e comercialização, começaram a
ser restringidos. O proibicionismo, tão proclamado desde os anos de 1920, significou
por muito tempo o modelo oficial de combate às substâncias ilícitas.

Ao oposto do que almejava, a proibição não conseguiu romper com a


proliferação das drogas no cenário mundial, e nem eliminar de vez sua utilização.
Logo, com as consequências do vício, atingindo todas as camadas da sociedade, era
preciso fazer alguma coisa, em reposta, surgiram as internações.

Consideradas simplesmente um modelo de exclusão, de reclusão e


asilamento, as internações foram – até a o advento da Reforma Psiquiátrica, alvos de
intensas críticas dos defensores dos direitos humanos, devido às denúncias de maus
tratos e por constituírem apenas uma forma de recolhimento daqueles julgados como
desajustados para conviver em sociedade.

Como afirmado acima, com a Reforma Psiquiátrica embasada pela Lei


n.10.216/01, a dignidade e os direitos do paciente vieram à tona, por meio da
regulamentação dos diversos serviços em assistência psiquiátrica, dentre estes, as
internações voluntária, involuntária e compulsória. O resultado desta reformulação
contribuiu em muito para que o doente mental, neste artigo representado pela figura
do dependente químico, fosse visto de forma humanizada.

Entretanto, no debate sobre a melhor forma de tratamento da dependência, os


tipos de internação, principalmente a compulsória, continuam a dividir opiniões. Pois,
para alguns, a imposição da obrigatoriedade em saúde, serve tão somente para
camuflar os problemas sociais, enquanto fere o direito de liberdade, para outros
significa proteger a vida de acordo com a Constituição da Republica Federativa do
Brasil de 1988.

39
Figura: Internação compulsória. Por Mauricio Vlamir Ferreira.

Dadas às circunstâncias, este artigo pretende analisar alguns pressupostos


acerca da utilização da internação compulsória, tal como o envolvimento dos diversos
órgãos da sociedade ante a problemática da dependência, a importância da
participação e do apoio da família e o agravante do abandono e descaso, pois, tem-
se a legislação preocupada em reforçar e restaurar os vínculos familiares, mas, e
quantos aos desassistidos quem pode decidir por eles?

A pesquisa aqui relatada tem o intuito de discorrer sobre o tratamento


obrigatório em dependência química, mais particularmente sobre a internação
compulsória, para tanto optou-se pela revisão bibliográfica.

 ASPECTOS LEGAIS E DE SAÚDE ACERCA DA DEPENDÊNCIA QUÍMICA

Antes de entrar no mérito da internação compulsória e a possibilidade de sua


utilização no tratamento da dependência química, faz-se necessária à compreensão
da importância da Reforma Psiquiátrica.

Num breve resumo, a referida norma representou um avanço no contexto da


saúde mental, pois significou uma reformulação do modelo psiquiátrico até então
vigente sob um histórico de recorrentes denúncias de violência e descaso aos direitos
humanos. A desinstitucionalização era o principal objetivo do movimento, juntamente
com o resgate da cidadania e do respeito à singularidade e subjetividade do doente
mental.

40
Em síntese, a Reforma Psiquiátrica contribuiu na mudança por dispor sobre os
direitos do portador do transtorno mental, relacionar as obrigações do Estado, definir
e regulamentar os tipos de internações, tratar das pesquisas envolvendo esses
pacientes e colocar a encargo do Conselho Nacional de Saúde, a criação da
Comissão Nacional para o acompanhamento da implementação da lei.

As disposições acima estão presentes no corpo da Lei n. 10.216 de 06 de abril


de 2001, de proposição do Senador Sebastião Rocha, composta por 13 artigos, os
quais prezam a questão de proteção do portador de transtorno mental e o
redirecionamento do modelo assistencial, a extinção dos manicômios e a
regulamentação da internação psiquiátrica compulsória. Nesse sentido, a
dependência decorrente do uso de substâncias psicoativas encontra respaldo nesta
legislação, pois ela é considerada uma síndrome, apresenta um quadro clínico, e está
classificada no Código Internacional de Doenças ( CID) e no Manual Estatístico de
Doenças (DSM), sendo portanto, entendida como um transtorno mental passível de
alterações no funcionamento mental, determinantes para prejudicar o desempenho
do individuo globalmente.

 Tratamento obrigatório: principais critérios para sua ocorrência

A redação da Lei n. 10.216/2001 prevê como recurso de tratamento a


internação compulsória, conforme estabelecido no artigo 6º, Inciso III:

“INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA: É aquela determinada pela Justiça diante da


falha dos meios de tratamento alternativos e com um laudo médico que prescreva tal
tipo de tratamento, desde que inexista um familiar que possa se responsabilizar pelo
dependente químico. Com isso, a internação compulsória deve ser tratada como
exceção da exceção, visto que a prioridade é pelo tratamento voluntário e em meio
aberto.

Ainda que haja um laudo que determine a internação, ela deve ocorrer no
menor tempo possível, de acordo com a necessidade, e a família deve ser procurada
até mesmo como forma de responsabilizar-se pelo pós-internação e participar de
todas as etapas do tratamento.

A internação compulsória deve ser vista sempre como última medida, dentro
de um projeto terapêutico singular, ou seja, deve haver um acompanhamento anterior,

41
em que o médico constatou a necessidade de internar a pessoa e não há familiares
que poderiam solicitar tal medida, sempre com vistas a proteger o paciente e
terceiros. O grande problema é que como tal determinação é sempre judicial, a alta
geralmente é condicionada a uma outra ordem judicial, o que gera demora, às vezes
de semanas, para a alta efetiva mesmo quando o dependente já teve alta médica.

De acordo com a legislação citada, a internação involuntária – e voluntária


neste caso, deve obedecer alguns critérios para sua ocasião, conforme determinada
no artigo 8°,

“será autorizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de


Medicina (CRM) do Estado onde se localize o estabelecimento” (Brasil, 2001) e, no
primeiro parágrafo fica estipulado que a ocorrência da internação bem como a sua
alta devem ser comunicadas ao Ministério Público Estadual, no devido prazo de
setenta e duas horas.

A Internação Involuntária deve preencher alguns critérios:

A e B:

A - Doença mental, exceto transtorno de personalidade antissocial.

B - No mínimo um dos seguintes: Risco de autoagressão; Risco de


heteroagressão; Risco de agressão à ordem pública; Risco de exposição social;
Incapacidade grave de autocuidados.

O professor e doutor Ileno Izídio da Costa (2013) é categórico ao afirmar que


a internação compulsória, verdadeiramente aceita para o âmbito jurídico, é aquela
determinada nos casos de processos criminais, na qual o réu sofre medida de
segurança, com base em relatório médico-pericial e sob a existência de riscos para o
paciente e terceiros.

42
No segundo parágrafo do mesmo artigo, o término da internação involuntária
é definido por meio de solicitação formal do familiar ou, responsável legal do
internando. Nesse sentido, a Lei de
2001 aborda “a universalidade de
acesso e direito a assistência,
valorizando a territorialização do
atendimento, edificando redes
assistenciais com vistas à
reinserção social e ressocialização
dos usuários”.

A LEI ANTIDROGAS: UMA PROPOSTA DE REDUÇÃO DE


DANOS

Até meados do ano de 2003, conforme explicam Correia e Ventura (2013), dois
diplomas legais, a Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976 – conhecida como lei
antitóxicos e, sua substituta a Lei nº 10.409 de 2002, eram as normas responsáveis
por regulamentar os aspectos relacionados às drogas, seguindo o viés proibicionista.

Após esse período, diversas alterações ocorrem com intuito de priorizar a


dignidade humana e derrubar este panorama de controle repressor. Tem inicio os
projetos visando à redução de danos ao invés de redução de oferta. Nesse sentido,
foi criada a Lei n. 11.343/2006 que instituiu o Sistema Nacional de Políticas
Públicas sobre Drogas (Sisnad) com objetivos, conforme descritos no texto da
legislação de articulação, integração, organização e coordenação das atividades de
prevenção, tratamento e reinserção social de usuários e dependentes de drogas
(Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas [Senad], 2010).

Essa perspectiva com enfoque na diminuição dos riscos trabalha com a


questão de liberdade e o modelo pode ser traduzido como o que “defende o direito de
escolhas individuais, livres de qualquer imposição do Estado ou de outras instituições”
(Alessandra Diehl et al. as cited in França, 2012).

43
Ainda segundo a Equipe Médica da Unidade de Psiquiatria de Adição do
Hospital de Clínicas de Porto Alegre (Instituto Crack Nem pensar, 2014) a redução
de danos pode ser entendida como:

[...] uma das modalidades de tratamento usadas principalmente para prevenir


complicações maiores relacionadas ao uso de drogas naqueles usuários que não
desejam a abstinência total.

Foi desenvolvida na Inglaterra, em 1920, para abordar usuários de heroína e


foi sendo modificada ao longo dos anos.

Alguns dos exemplos de estratégias são:

o Distribuição de seringas para usuários de drogas injetáveis;


o Distribuição de preservativos;
o Distribuição de cachimbos a usuários de crack, a fim de reduzir a
disseminação de doenças infecciosas.

Diretrizes como as destacadas anteriormente, são bases do programa


intitulado “Crack, é possível vencer”, do Governo Federal, lançado em 2011,
referência atual no Brasil em termos de enfrentamento e tratamento da drogadição,
cujas metas, presentes numa cartilha de mesmo nome do programa, têm por prazo
até o final do ano de 2014, a ampliação de redes de atendimento e atenção em saúde,
o fortalecimento da prevenção e da assistência social aos usuários de drogas entre
outros (Portal Brasil, 2013).
A entrada da Lei n.11.343/06, de acordo com alguns estudiosos, serviu para
abrandar a punição ao usuário de entorpecente e agravar a situação penal dos
traficantes e agentes responsáveis pela disseminação de substâncias ilícitas. Tal
legislação distanciou em termos legais o que faz uso de drogas ocasionalmente ou
esporadicamente com aquele que comercializa, a diferenciação entre ambos lançou
novas concepções de intervenções, com a inserção de medidas educativas e
exclusão da pena privativa de liberdade, não dispondo de qualquer previsão de
internação de usuários. No entanto, essa lei continua a criminalizar a conduta, o que
gera diversas controvérsias a respeito de sua eficácia, pois, o doente necessita de
tratamento e não de punição (França, 2012).
Essas penas podem ser observadas no artigo 28 da citada lei ,como segue:

44
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

A Lei n. 11.343/06, conhecida como Antidrogas é paradoxal, pois em parte


se mostra sensível à questão da redução de danos, com vários artigos enfatizando a
relação das políticas públicas de drogas com a saúde pública, assim como a inclusão
do sujeito, respeitando sua autonomia e vontade, mas, por outro lado a partir do artigo
33, volta a legitimar a política repressiva e bélica do combate às drogas. Sem
aprofundar no mérito das principais falibilidades encontradas na Lei, apontadas em
pesquisas e, retomando o contexto da internação compulsória, para Correia Junior e
Ventura (2013), as consequências de não se permitir a coerção do individuo a um
tratamento ou intervenção médica, faz com que as autoridades fiquem limitadas em
seu poder repressivo e preventivo, pois não podem ir além do que a norma autoriza.
E, admoestações e advertências, por si só, como garantidas na Lei n.
11.343/06, não só desgastam o trabalho do judiciário e sua equipe, como o usuário
em seu ciclo de vício, prevendo a impunidade, não será somente uma vez
surpreendido se drogando. Diante de tais afirmações, denota-se que, em sintonia com
os objetivos da referida legislação, de atenção e reinserção do usuário, é
inquestionável sua importância na fomentação de diversos programas em todo o
Brasil, considerando outros meios de encarar a drogadição, sem somente recorrer à
institucionalização, mas a outros eixos, como o cuidado, prevenção e autoridade.

45
Figura: Usuários de crack foram levados para instituição de reabilitação em São Paulo em
2013. Para senadora Rose de Freitas, autora do projeto, nessa situação, Estado deve prover a
proteção que as pessoas precisam. Fonte: Agência Senado

Do direito à autonomia da escolha A utilização da internação compulsória (por


ordem judicial) ou involuntária (por ordem médica e sem o consentimento do
internando), como estratégia no tratamento da dependência química, alçou um
patamar de tabu perante a sociedade, pois, quando se trata desta modalidade de
intervenção, seja para o combate às drogas ou qualquer outra finalidade, observa-se
um paradoxo em sua fundamentação, na qual é configurada para proteger o individuo
de danos que possa oferecer a si próprio e a outrem, bem como possibilitar um meio
de acesso aos serviços de saúde, mas, é criticada por indicar punição ao invés de
tratamento e ferir o direito de liberdade, o de ir e vir.
A efetivação de um tratamento obrigatório dentre as diretrizes que envolvem
esforços para controlar o uso e o tráfico ilícito de drogas, neste trabalho representado
pelo instituto da internação compulsória, tropeça no questionamento acerca da
autonomia do paciente, no que tange ao reconhecimento intrapessoal deste individuo
da necessidade de se obter ajuda.
Segundo o Guia para a Família, publicado pela Secretaria Nacional de Políticas
sobre Drogas, a violação do direito a escolha e a institucionalização não consensual,
pode ser insatisfatória, resultando inclusive num efeito oposto, ou seja, no aumento
do consumo de substâncias ilícitas e por conseguintes outros problemas conhecidos,
tais como reafirmar a organização do tráfico, à violência e criminalidade.

46
Dessa forma, ao mesmo tempo em que o Principio da Legalidade garante no
artigo 5º, inciso II da Constituição Federal (1988) que “ninguém será obrigado a fazer
ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, permanece a questão sobre
a capacidade de discernimento do drogodependente, pois, considerando as variações
individuais de vício, sabe-se que o individuo se encontra numa situação, de autonomia
reduzida, sob constante influência das drogas .
A iniciativa da submissão voluntária ao tratamento por parte do dependente,
por diversas vezes não se concretiza devido à presença de sintomas compulsivos
característicos do abuso destas substâncias psicoativas, essas alterações
decorrentes de uma ingestão contínua são classificadas como cognitivas,
comportamentais e fisiológicas. Conforme explica Ballone (2013), a existência de um
ciclo de consumo repetitivo favorece o estabelecimento de três fatores normativos da
dependência: tolerância, abstinência e compulsão.
Seguindo tal pensamento, o deputado federal Osmar Terra (as cited in Correia
Junior e Ventura, 2013) argumenta que “aquele que está intoxicado não tem a
capacidade de discernir o que é certo do que é errado, pois as drogas, a exemplo do
crack, comprometem o funcionamento do cérebro”. Reitera ainda que o uso
desencadeia um estado irracional, provocado pelo vicio, no qual o individuo vende
todos os seus bens, envolve-se em brigas com amigos e familiares, passa a dormir
no relento, alimenta-se precariamente e não consegue estabelecer qualquer
compromisso com trabalho e estudo.

 RELAÇÕES SOCIAIS
Sabe-se que o uso compulsivo de substâncias ilícitas, após desestabilizar o
indivíduo, provoca a ruptura dos laços de convivência e vínculos afetivos outrora

47
firmados, este enfraquecimento qualitativo e quantitativo da rede social do
dependente químico interfere, desde a primeira relação social disponível que é o
núcleo familiar.
As demandas apresentadas por estes familiares afetados pelas consequências
do vício são das mais variadas ordens, face a este problema, dentre elas, dificuldade
para lidarem com as crises e conflitos emergentes, com a culpa, com o isolamento
social a que ficam sujeitos e a desesperança, além do desgaste físico e emocional
provocado por consequentes insucessos no relacionamento com o dependente
químico, bem como pelo desconhecimento da doença propriamente dita, dentre
tantas outras insatisfações.
Desta forma, a família não deve ficar à margem dos conflitos relacionados às
drogas e, deve receber atenção especial no que tange a elaboração de políticas e
programas sociais que atendam os contornos e suas especificidades, tanto nas
questões materiais e financeiras, quanto no que se refere aos problemas cotidianos
estabelecidos em suas relações sociais.
Portanto, a compreensão desses aspectos é fundamental no sentido de se
discutir quais as estratégias de intervenções eficazes e coerentes, em sintonia com a
posição do dependente químico na atualidade e a forma de como a droga vem
evoluindo ao longo dos anos. Assim, é correto afirmar que a drogadição, progrediu
em conjunto com as culturas, com os padrões, a frequência de utilização e os tipos
de drogas consumidos mudam de uma época para outra de acordo com as condições
socioculturais existentes.
Diante do exposto, percebeu-se ao falar sobre internação compulsória ou
involuntária que, não é um assunto simples do qual todos os estudiosos concordam
quanto às formas de lidar, uma vez que a dependência química começou a ser
trabalhada sob outra ótica, principalmente no final do século XX, novas abordagens
a respeito do usuário ou do dependente ganharam força contra as de cunho
assistencialistas psiquiátricas.
Justamente porque a droga tornou-se mais que um problema social,
contribuindo diretamente para o aumento dos índices de criminalidade em todos os
estados brasileiros. Esses sujeitos formam um grupo vulnerável a estigmatização e a
exclusão, devido à estreita correlação entre estar nas ruas e usar drogas, ser vítima
e estar sujeito à violência.

48
 DROGODEPENDENTE E CRIMINOSO

Durante três décadas, o que se observou em termos enfrentamento às drogas,


conforme explicam Correia Júnior e Ventura (2013), era uma notória guerra declarada
às substâncias, sob o prisma de associação entre o dependente químico e o
criminoso, de estigmatização do uso e a institucionalização relegada ao papel de
protagonista, enquanto a saúde e o devido tratamento para a dependência ficavam
num segundo plano, sem a merecida atenção.
Os discursos políticos e midiáticos, de caráter imediatista, utilizam da
internação como artifício de repressão e controle, por julgarem mais eficazes e
significativos na intenção de demonstrar agilidade, sem considerar o uso da droga
como um sintoma social carente de inclusão e responsabilidade conjunta.
No entanto, privilegiar este recurso na forma de tratar o drogodependente,
justificado apenas pela necessidade de um controle sobre os riscos sociais
decorrentes da dependência e sem considerar a que droga se está referindo, ou em
que contextos esta drogadição se estabeleceu, é eximir da responsabilidade outros
atores fundamentais do contexto: a família, a comunidade e o próprio estado.

Em observância do artigo 196 da Constituição de 1988:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas


sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e
ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação.

Como consequência, na maioria dos casos, a internação compulsória acaba


por ser o primeiro recurso utilizado.

Alguns estudos sugerem diversas práticas quanto ao cuidado


relacionado à recaída, dentre elas a associação com uma religião, independente de
qual seja, é indicada como facilitadora da recuperação da dependência e está
relacionada a um menor consumo de drogas, para tanto, o usuário deve recorrer a
orações nos momentos de abstinência.

Observa-se que esta intervenção baseada nos princípios de religiosidade


próprios de cada grupo, propõe a reclusão do drogodependente em instalações, na

49
sua maioria, rurais de difícil acesso. Essas unidades de tratamento são conhecidas
como Comunidades Terapêuticas e, de acordo com George de Leon (2003):

“surgiram em 1979. Possuem registros necessários para funcionamento e


não podem executar o tratamento involuntário, ou seja, elas não podem fazer a
remoção do paciente e levá-lo para a clinica”.

Ao contrário desta afirmação, a realidade dessas comunidades evidencia um


sistema de funcionamento e de regras que remetem à internação involuntária, assim
como foi exposto no relatório proposto pela Comissão Nacional de Direitos Humanos
do Conselho Federal de Psicologia, denominada como 4ª Inspeção Nacional de
Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas (CFP, 2011, p. 190):
Há claros indícios de violação de direitos humanos em todos os relatos. De forma
acintosa ou sutil, esta prática social tem como pilar a banalização dos direitos dos
internos.

Exemplificando a afirmativa, registramos: interceptação e violação de


correspondências, violência física, castigos, torturas, exposição a situações de
humilhação, imposição de credo, exigência de exames clínicos, como o teste de HIV
− exigência esta inconstitucional −, intimidações, desrespeito à orientação sexual,
revista vexatória de familiares, violação de privacidade, entre outras, são ocorrências
registradas em todos os lugares.

Na lógica dos serviços oferecidos por essas comunidades, baseadas numa


promoção de desintoxicação total por meio da exposição às violentas crises de
abstinência em sua maioria sem o devido acompanhamento de um profissional, “o
sujeito é mais que passivo, ele é convertido em objeto sobre o qual recai a ação
definida por terceiros” (Vargas, 2012). Frente a essa situação, pode-se compreender
que a internação, apenas com o objetivo de retirar o sujeito das ruas, ainda que em
sua essência promovida com “boas intenções”, sem o trabalho de uma equipe
multidisciplinar especializada em dependência química, carente de fiscalização e
métodos flexíveis, não simboliza um tratamento, mas sim uma medida crua de
repressão e reclusão.

 CONSIDERAÇÕES FINAIS

50
Neste estudo buscou-se fazer uma reflexão acerca da proposta da internação
compulsória, em virtude da problemática relacionada ao consumo e ao comércio de
drogas, não ter retrocedido em todos esses anos de enfrentamento, apesar das
alterações jurídicas e sociais. De acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre
Drogas e Crime a prevalência do uso de substâncias ilícitas no mundo é estável.

Portanto, é possível perceber quão equivocada é a ideologia de acabar de vez


com as drogas, uma vez que seu uso pode estar atrelado a questões socioculturais e
geográficas. O objetivo traçado foi o de analisar, por meio de pressupostos teóricos,
como a internação compulsória e a involuntária, ambas aplicadas sem levar em conta
a vontade do paciente, podem coexistir em conjunto com a nova posição do
drogodependente no cenário mundial e em harmonia com a reformulação da
assistência psiquiátrica, introduzida pela Lei n. 10.216 de 2001.

Essa legislação foi responsável por trazer um tratamento mais humano aos
pacientes, em consonância com os direitos humanos, no campo da cidadania e da
inclusão. Seu objetivo foi o de romper com o longo histórico de internações
compulsórias de doentes mentais, acompanhadas do registro de denúncias terríveis
acerca de maus tratos, superlotação, mortes, permanências vitalícias em manicômios
e similares.

A lei também definiu os tipos de internação:

 Voluntária,
 Involuntária e
 Compulsória e, regulamentou os critérios de sua ocorrência.

A partir do desenvolvimento da pesquisa, foi possível constatar a existência de


uma preocupação em todas as esferas da sociedade no que tange às drogas,
entretanto, há de se concordar que o Brasil não possui estrutura equivalente as
apresentadas na redação da Lei n.10.216 de 2001, sendo que esta deixou a desejar
em orientações e roteiros para execução de suas propostas. Evidentemente houve
um avanço, mas este tem acontecido a passos curtos.

51
A internação foi criada para intervir na crise, especificamente quando o
individuo estiver colocando em risco a sua vida e a de outras pessoas. Não são
encontradas ressalvas quando se refere à internação voluntaria, porém, é
amplamente questionável a aplicabilidade dos tratamentos obrigatórios ao
dependente químico. As criticas são por conta do paradoxo que apresentam, por um
ângulo intentam proteger a vida, mas, por outro constituem violação da liberdade e
punição. Sobre esses aspectos, foi discutida a capacidade do drogodependente em
decidir ou não sobre a intervenção de terceiros em sua saúde.

Além de contribuir para mudar o


paradigma, no qual o dependente químico
é apenas um marginal que incomoda por
oferecer perigo e, por isso deve ser
afastado do convívio com os demais. O
estereótipo construído em torno do usuário
de drogas favorece a ruptura dos vínculos,
já que o medo, vergonha e o fato não saber
lidar com a drogadição faz com que a rede social do individuo procure responsabilizar
terceiros pelo vício e, na maioria das vezes os abandone a própria sorte.

Concluiu-se que nem o drogodependente e nem outro ente deve ser


responsabilizado sozinho pela questão das drogas.

A dependência química surge de um conjunto de fatores não isolados. Para


reunir todos os setores da sociedade em prol do enfrentamento às drogas, tem-se a
nova proposta de redução de danos, ampliada e fixada por intermédio da Lei n.
11.343/06.

Este diploma legal diferenciou o usuário do traficante, traçou aplicações penais


a determinadas condutas e tem sido importante na discussão da inserção do usuário
na sociedade. Entretanto, não concilia internação em nenhuma de suas propostas, o
que é falível segundo diversas linhas de pensamento. Por fim, este estudo entende
que a aplicabilidade da internação compulsória, só é possível, se acompanhada do
monitoramento de uma equipe multidisciplinar capacitada, pronta a respeitar os
variados níveis de dependência e os direitos constitucionais do paciente. Integrada a

52
outras propostas de intervenção, mediante locais adequados e fiscalizações
permanentes.

DIREITO À SAÚDE/DEVER DO ESTADO


Preceitua o art. 196 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
(CRFB/88) acerca do direito à saúde nos seguintes termos:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e


econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Gilmar Mendes (2013, p. 622-623) considera que, do direito à saúde, pelo fato
de o mesmo ter sido qualificado pelo constituinte originário como um “direito de todos”,
decorre uma relação jurídica obrigacional a envolver, de um lado, todos os indivíduos,
singularmente considerados e, de outro, o Estado; para aquele, o direito a saúde
reveste-se do caráter de direito subjetivo a políticas públicas sociais e econômicas,
pautadas por escolhas alocativas, objetivando a redução de doenças, a promoção, a
proteção e a recuperação da saúde, enquanto que, para este, enseja sua atuação do
sentido de garanti-lo.

No entendimento jurisprudencial, tal relação constrange a entidade estatal a


formular políticas públicas sociais e econômicas visando a redução de doenças,
promoção, proteção e a recuperação da saúde.

Conforme depreende-se do exposto, faz-se necessário que o Estado brasileiro


adote uma medida que melhor privilegie o direito à saúde dos dependentes químicos.

Quanto a isso, deve-se levar em consideração que o consumo de substâncias


psicoativas estimula a produção do neurotransmissor denominado dopamina, o qual
é responsável por causar uma sensação de prazer no indivíduo e, diante disso, a
questão que se impõe é: teria o dependente químico autonomia suficiente para
exercer o controle do consumo da substância psicoativa, tal como pressupõe a atual
Política de Saúde Mental do Estado brasileiro, vez que baseada no conceito de
redução de danos?

Ocorre que o que vai legitimar a instituição da internação compulsória de


dependentes químicos ser elevada ao patamar de política pública é a sua maior

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eficácia em relação ao tratamento baseado na redução de danos e, por isso, faz-se
necessário que haja um debate científico, o que impõe o diálogo do Direito com as
outras ciências.

Ainda, o principal argumento contrário à instituição da internação compulsória


como uma política pública do Estado brasileiro consubstancia-se no fato dos
massacres ocorridos em sede dos hospitais psiquiátricos antes do advento da Lei n.°
10.216/2001.

Ocorre que, conforme a inspeção realizada pelo Conselho Federal de


Psicologia, no ano de 2011, nas comunidades Terapêuticas, que são um dos atuais
recursos ao tratamento da dependência química, instituída após a consolidação da
Reforma Psiquiátrica, constatou-se a vulgarização da violação dos direitos humanos
dos pacientes em sede de tais instituições. Diante desse fato, é possível concluir que
o problema consiste, de maneira primordial, na falta de fiscalização por parte do
Estado brasileiro relativamente às instituições destinadas à internação; portanto,
independentemente de o debate científico concluir pela maior eficácia do
internamento compulsório ou do tratamento baseado na redução de danos, faz-se
imprescindível a instituição de uma rigorosa política de fiscalização das instituições
destinadas ao internamento.

Assim, cabe à população exigir tanto a instituição de uma política pública que
melhor privilegie o direito à saúde dos dependentes químicos bem como uma política
fiscalizatória das instituições destinadas à internação, com fundamento no fato de que
o direito à saúde exige prestações positivas por parte do Estado para ser concretizado
e é dotado do caráter de fundamentalidade em sentido formal, o que significa que,
pelo fato de estar positivado no “Título II”, denominado “Dos direitos e garantias
fundamentais”, na CRFB/88, que é o documento supremo do país, em se
considerando a estrutura escalonada do ordenamento jurídico, bem como pelo fato
de que se trata de um documento rígido e dotado de força normativa, o direito à saúde,
em última análise, vincula as ações dos Poderes Constituídos.

E, relativamente aos custos inerentes ao implemento de tais políticas públicas,


depreende-se que o direito à saúde deve prevalecer em detrimento do argumento da
reserva do possível, vez que ele integra o mínimo existencial e, por estar positivado

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no documento constitucional, deve gozar, antes de mais, de primazia em sede da
elaboração orçamentária.

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