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DOI: 10.1590/1413-81232022271.

19662021 151

População em situação de rua:

artigo article
estigmas, preconceitos e estratégias de cuidado em saúde

Unhoused people: stigma, prejudice, and health care strategies

Cláudia Brito (https://orcid.org/0000-0002-7982-6918) 1


Lenir Nascimento da Silva (https://orcid.org/0000-0002-9483-2873) 1

Abstract Historical, social representations about Resumo Representações sociais históricas sobre
stigma and prejudice related to unhoused people estigma e preconceito relacionado à População em
cause psychological distress, feeling of shame, and Situação de Rua (PSR) provocam sofrimento psí-
withdrawal from family and social relationships. quico, sentimento de vergonha, afastamento das
This paper aimed to understand how unhoused relações familiares e sociais. Esse artigo objetivou
people and health professionals perceive, repro- entender como a PSR e os profissionais de saúde
duce, elaborate, and address the representations percebem, reproduzem, elaboram e lidam as re-
produced by their social conditions. This quali- presentações produzidas por suas condições so-
tative research employed participant observation, ciais. Pesquisa qualitativa, que envolve Observa-
interviews with 24 unhoused people, and a focus ção Participante; Entrevistas com 24 PSR e Grupo
group with professionals from the services provid- Focal com profissionais dos serviços que prestam
ing care to the unhoused people. The study was cuidado à PSR. O estudo foi realizado no municí-
conducted in Rio de Janeiro, Brazil, where crack pio do Rio de Janeiro em local onde o uso do crack
use is very prevalent. An analysis was performed tem prevalência importante. Análise foi realiza-
using the phenomenological narrative method. da pelo método da narrativa fenomenológica. O
Stereotyping conjures the self-image of an un- estereótipo provoca uma autoimagem de pessoa
worthy, unwanted person, which justifies daily indigna, indesejada, que justifica discriminações
discrimination and, above all, the loss of the most cotidianas e, sobretudo, a perda da condição mais
critical condition of all beings, namely, their hu- importante de todos os seres: sua condição huma-
man condition, besides legitimizing the lack of na, além de legitimar desassistência e violência
care and violence against them. Deepening the contra elas. Aprofundar as relações entre precon-
1
Programa de Pós- relationship between prejudice and discrimina- ceitos e discriminações em contexto de população
Graduação em Saúde tion in the context of vulnerable populations and vulnerável e serviços de saúde, pode auxiliar pro-
Pública, Departamento health services can assist therapeutic projects that jetos terapêuticos que promovam diminuição do
de Administração e
Planejamento em Saúde, promote the reduction of psychological distress, sofrimento psíquico, melhor assistência e reconhe-
Escola Nacional de Saúde better care, and social recognition of citizenship of cimento social de cidadania da PSR.
Pública Sergio Arouca, the unhoused people. Palavras-chave Pessoas em situação de rua, Pre-
Fundação Oswaldo Cruz.
R. Leopoldo Bulhões 1480, Key words Homeless people, Prejudice, Social dis- conceito, Discriminação social, Assistência à saú-
Manguinhos. 21041-210 Rio crimination, Health care, Health services de, Serviços de saúde
de Janeiro RJ Brasil. Rio de
Janeiro RJ Brasil.
cbrito@ensp.fiocruz.br
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Brito C, Silva LN

Introdução Outra consequência negativa é a internaliza-


ção e a reprodução destes preconceitos pela pró-
A história de vida da população em situação de pria PSR, refletindo processo de identificação das
rua (PSR) é marcada por perdas de vínculos, representações sociais dirigidas contra ela3, seja
rupturas, desemprego, exclusão social e envolvi- pela família, pela sociedade, pela mídia, fruto de
mento, como produtora ou alvo, com atos vio- uma construção social histórica.
lentos e criminosos1. Na sociedade, é rotineiro a O efeito do neoliberalismo na descontinui-
tipificação da PSR como vagabunda, suja, louca, dade de políticas sociais vem impactando nega-
perigosa e coitada, o que contribui para legitimar tivamente nas condições de vida e trabalho, com
a violência contra ela e servir de referência para evidências inequívocas no agravamento dos indi-
suas identidades pessoais2 como pessoas com cadores sociais. Em quatro anos, cresceu em 13,5
péssimas condições de vida, visíveis descuidos, milhões o número de brasileiros em situação de
odor desagradável3. Essas acepções alimentam pobreza, além dos 52,5 milhões já existentes8. O
barreiras e distanciamento entre PSR e popula- aumento de pessoas vivendo na rua é perceptí-
ção em geral, aumentando desconhecimento e vel, e, nas regiões metropolitanas, esta população
atitudes de preconceito, desprezo, hostilidade e ganha uma nova visibilidade em decorrência da
perversidade contra ela, conforme noticiado re- forte associação com o uso do crack e sua relação
correntemente pela mídia. Apesar de viverem em com aumento da criminalidade e violência ur-
situações de violência elevada, pobreza extrema e bana. Esse processo amplia a visão da PRS como
uso abusivo de álcool e outras drogas1, a maioria pessoas incapazes de conviver, colocando-as con-
não é coberta por programas de inclusão social4 tinuamente como um risco para a sociedade e
e políticas públicas voltadas para populações vul- reforçando argumentos a favor da adoção de po-
neráveis são implementadas de forma isolada e líticas públicas repressivas e arbitrárias.
fragmentada, com importantes limitações na sua A Política Nacional para inclusão social da
prática3. PSR9, criada em 2009, representou um grande
Sob o ponto de vista da saúde, é alta a pre- avanço pela adoção de ações intersetoriais para
valência de doenças como Tuberculose, HIV/ reintegração às redes familiares e comunitárias e
Aids, dermatites, comorbidades psiquiátricas5 e ampliação do acesso aos direitos constitucionais
uso abusivo de drogas1. O alcoolismo e outras de cidadania, respeitando relações e vivência no
drogas geralmente estão relacionados tanto com espaço público da rua. Todavia, no Rio de Janei-
a manutenção das pessoas na rua, quanto com a ro, pode-se dizer que os poderes públicos têm
exposição delas à violência. tratado essa questão na lógica da “limpeza ur-
A caracterização da PSR na literatura cientí- bana” e da “revitalização” dos espaços públicos.
fica, em prontuários médicos, nas representações Alicerçados no discurso de “defesa da sociedade”,
midiáticas e no senso comum perpassa por um promovem remoção, exclusão, criminalização e
conjunto de simbolismos sociais altamente es- internação compulsória dos usuários de drogas e
tigmatizantes – extrema pobreza, desemprego, violação de direitos10. Temos ainda uma crescen-
Tuberculose, Aids, doenças psiquiátricas, uso de te radicalização do debate sobre drogas balizada
drogas, “cracudo”, pessoa violenta – o que impli- por um neoconservadorismo recente, que recru-
ca em dificuldades de reintegração familiares e desce o aumento de ações como o recolhimento
sociais. compulsório11.
Além destas representações depreciativas, Diante deste universo simbólico perverso ao
recaem sobre a PSR os mesmos preconceitos e qual a PSR está submetida, esse artigo objetivou
estigmas dos usuários de saúde mental, que res- entender como a PSR e os profissionais de saúde
tringem a reinserção na vida familiar, social e cul- percebem, reproduzem, elaboram e lidam com
tural6, com perda do direito à cidade e à condição as representações produzidas por suas condições
de cidadania7. sociais.
Nos espaços urbanos, a PSR é frequentemen- Aprofundar entendimento sobre construção
te impedida de entrar em locais como transporte de identidade no contexto de uma população
coletivo, serviços de saúde, outros órgãos públi- vulnerável pode auxiliar projetos terapêuticos
cos4. Também é recorrente a tendência de res- singulares que promovam diminuição do sofri-
ponsabilizá-la por seus próprios problemas, sem mento psíquico e aumento da autoestima e do
levar em conta os contextos que os produziram. reconhecimento social de cidadania da PSR.
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Método Para análise, utilizou-se a transcrição dos áu-
dios das entrevistas e dos grupos focais e anota-
A pesquisa que dá origem ao artigo teve aborda- ções do diário de campo. O material transcrito
gem qualitativa, de perspectiva compreensiva e foi tratado com o pressuposto de que a narrativa
fenomenológica e postura reflexiva sobre o modo é tudo o que se tem, visto que não há acesso aos
de vida e cuidado de saúde à PSR. O estudo foi “fatos” e, portanto, não foram feitos julgamen-
desenvolvido no âmbito da Rede de Atenção à tos sobre a veracidade ou não dos relatos. Nesse
Saúde (RAS), prioritariamente junto ao Consul- tocante, adotamos a abordagem etnográfica13 de
tório na Rua (CnaR), em uma área programática “levar a sério” os entrevistados, estabelecendo as
do município do Rio de Janeiro, com alta preva- categorias que fazem sentido para eles. Com o
lência de cracolândias, no período de março de método da narrativa fenomenológica, foi reali-
2017 a julho de 2019. zado agrupamento do material em unidades de
O CnaR é composto por uma equipe multi- sentido e, posteriormente, fez-se uma descrição
profissional e representa a modalidade da Aten- dialógica entre os sujeitos, tornando-a histórica,
ção Primária em Saúde (APS) que presta cuidado singular e coletiva.
de saúde à PSR de fora itinerante, visando am- A condução das entrevistas de forma fluida,
pliar a oferta de cuidado integral e adequado às atendendo aos objetivos da pesquisa por meio
suas demandas e necessidades12. das histórias de vida, possibilitou a emersão de
A operacionalização da pesquisa foi cons- categorias empíricas sobre uma imagem de si,
truída por meio da combinação de três técnicas preconceitos, medos e sofrimentos percebidos
de investigação: (1) observação participante da pela PSR. Essas categorias puderam ser reveladas
prestação de cuidado de saúde; (2) entrevista mesmo na ausência de uma pergunta direta, po-
com os pacientes do CnaR maiores de 18 anos e tencializando uma narrativa mais inconsciente e
(3) grupo focal com os profissionais de saúde da menos arrumada. Da mesma forma, a partir do
RAS que atendem a PSR. material analisado, também afloraram percep-
A observação participante ocorreu nos espa- ções dos profissionais de saúde sobre precon-
ços de recepção e espera da PSR (para consulta ceitos e estigmas vividos pela PSR, bem como
e procedimentos, alimentação, banho, doação de estratégias de cuidado para mitigar esses efeitos
roupas ou itens de higiene); de atendimentos di- danosos. Fragmentos das narrativas ipsi literis
versos (consulta, procedimento, curativo, resul- estão assinaladas com aspas para auxiliar na des-
tado de exames); cenas no território (barracos, crição das análises.
cenas de uso de drogas, ruas, Unidades de Pronto Esta pesquisa teve aprovação dos Comitês de
-Atendimento, Hospitais, equipamentos sociais, Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde
outros) e reuniões de equipe do CnaR. Pública Sergio Arouca e da Secretaria Municipal
As observações foram realizadas de forma de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro.
exclusiva nos primeiros 18 meses da pesquisa,
em alguns turnos por semana, seguindo de for-
ma mais flexível, por mais seis meses, durante o Resultado
período das entrevistas. O entrevistado foi abor-
dado no espaço de espera, mencionado acima, e Caracterização dos entrevistados
a entrevista realizada em sala com privacidade. e impressões dos pesquisadores
Não houve critério de seleção para participação,
visando atender a pluralidade de pessoas. Os No panorama sociodemográfico geral, as
excluídos foram exclusivamente por contraindi- pessoas entrevistadas eram majoritariamente do
cação clínica (Tuberculose infectante ou atendi- sexo masculino (N = 14); na faixa etária entre 30
mento de urgência). As questões das entrevistas e 60 anos; de raça negra, com 1/3 de raça branca;
partiram de um roteiro prévio, mas foram con- metade tinha Ensino Médio ou Superior Com-
duzidas de forma aberta, com possibilidade de o pleto e 1/3 era analfabeto ou tinha estudado até
livre fluir do relato, permitindo que o fenômeno o primeiro seguimento do Ensino Fundamental;
se mostrasse na própria linguagem. Foram entre- todos eram naturais da Região Sudeste. Metade
vistadas 24 pessoas em situação de rua e realiza- dos entrevistados estava por mais de 5 anos na
dos três encontros de grupo focal com profissio- rua e todos já haviam usado ou estavam em uso
nais de saúde de diversos dispositivos da RAS que de drogas, sendo que metade mencionou uso do
prestam cuidado de saúde da PSR no território crack. Embora a maior parte fosse oriunda da
estudado. classe baixa, um terço dos entrevistados era pro-
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veniente das classes média e média-alta, o que nos Sexta-feira todas delegacias têm um dinheiro
causou certa surpresa e reflexão acerca da ideia por fora, [...] A contravenção existe porque tem pro-
preconcebida, também em nós, de que quase a pina, senão, não existiria. Se tem ladrão de carro é
totalidade da PSR era nativo da classe social baixa. porque tem ferro velho. Mas não é jogo acabar com
Desde o início das entrevistas ficamos sur- ferro velho. Se todo mundo andar direito, ninguém
presos com a revelação de uma grande parte quer ser polícia porque não tem propina. Cê vai
dos entrevistados com uma visão preconceituo- querer ganhar um salário mínimo pra de repente
sa de si, em especial ligada à droga ou ao crack, tomar um tiro aí na rua? Não vai, vai?! [...] O sa-
mas também ligada às doenças psiquiátricas e ao lário da PM não chega quatro, cinco mil, você che-
trabalho de “catação”. Também foi observado o ga no estacionamento da PM e vê carro importado
preconceito que a PSR sofre e sente “nos olhares” de cento e cinquenta mil. Fala tu, como é que vai
do cidadão comum ou de profissionais de servi- comprar? Se o cara tem que pagar escola particular
ços públicos, bem como reações e estratégias que pro filho, pra filha, aluguel, que ele não vai morar
ambos (PSR e profissionais de saúde) recorrem dentro de favela. [...] Ele é polícia, se ele morar ne-
para mitigá-lo, tendo em vista o longo caminho guinho vai matar ele. E como ele consegue ainda ter
até sua superação. um carro no valor de cem, cento e cinquenta mil? É
Se o preconceito se manifesta por ações ver- a propina. Se todo mundo andasse certo, meu filho,
bais e não-verbais, essas também podem produ- porra, o cara não queria nem ser Presidente da Re-
zir potência do cuidado subjetivo, por meio do pública, porque não ia arrumar nada.
toque acolhedor, do olhar interessado, da escuta O entrevistado que se mostrava orgulhoso de
atenta, da atuação contínua no território e da não se parecer com “morador de rua” e da cai-
produção de acolhida e vínculo. xa de isopor destinada à venda de salgados que
Pode-se observar sinais de autopreconceito portava, desvela seus valores sobre o mundo do
na surpresa e “felicidade” que essas pessoas de- trabalho enquanto símbolo de reconhecimento
monstravam ao receber um abraço dos pesquisa- social e dignidade humana. Em contrapartida,
dores, assim como em falas do tipo: “pode abra- avalia atividades de sustento e sobrevivência co-
çar [de novo], porque eu não tenho piolho não”. mum da PSR (catação, garimpo, reciclagem) com
reprovação, fazendo analogia a um comporta-
Expressões de preconceito mento animalesco. A “catação”, relacionada pela
nas narrativas da PSR provável doença psiquiátrica do irmão, é deno-
minada de “espírito ruim”, termo recorrente nos
A partir das narrativas sobre modo e história discursos das igrejas neopentecostais, mostra que
de vida da PSR foi possível perceber preconceitos portadores de doenças mentais em situação de
vividos e (re)produzidos por ela, sendo os mais rua são alvos de preconceito exacerbado.
expressivos aqueles relacionados à forma de sus- Por outro lado, a narrativa também desve-
tento (catação, prostituição), à doença (psíquica, la o cinismo do mundo corporativo e das ins-
Tuberculose, HIV), ao uso abusivo de crack e à tituições. O alto poder de observação e lucidez
imagem de si. do entrevistado carece de autocrítica e serve de
Homem, 56 anos, trabalhador orgulhoso, fala justificativa, reforçando valores capitalistas que
sobre o irmão falecido: determinam que “tudo pode”, para tudo há uma
[...] eu tinha um irmão que era problemático, desculpa. Assim, instituições não têm o “espírito
que não trabalhava. Ele era usuário também de ruim”, mesmo que apresentem um comporta-
droga e... pegou um espírito... ruim, de andar todo mento reprovável.
sujo na rua, catando essas coisa, é garrafa, é lata, O relato também ilustra ambiguidade, no
essas coisa toda. Isso é espírito ruim que entra na qual “catação” tem tom pejorativo, depreciativo
pessoa. Porque não é normal a pessoa sair catando e preconceituoso, enquanto atenua e normaliza
aquilo ali e andar todo sujo no meio da rua. Aí eles recebimento de propinas por policiais. De certo,
vão na força da droga catando tudo, mete a mão esses preconceitos por vezes são contraditórios,
em tudo que é lugar. Em lixeira, em tudo. [...] Só mostrando que o peso do julgamento da PSR é
vive assim fuçando igual cachorro dentro do lixo. mais cruel com ela do que com a população em
Isso é espírito ruim que entrou no meu irmão e tem geral, reproduzindo o status quo da sociedade.
um montão deles na rua, aí, você vê. Homem, de 54 anos, foi para rua pelo medo
Em outro momento, o entrevistado discorre de assassinar o próprio filho, como consequên-
sobre a prática de propina no local que costuma cia de surtos psicóticos, fala da dificuldade com
trabalhar como vendedor ambulante: diagnóstico psiquiátrico:
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O remédio me incomoda, me incomoda. Por- Falam aí que eu sou viado só porque eu não pego
que me dá essa sensação de loucura, sabe? [...] cracuda. É cracudinha, na verdade cracuda, pego
Essas vozes, ... pra mim seria mais fácil, eu queria mesmo não, já não chega eu sujo. Ah! É mulher, mas
ouvir tanto que isso [esquizofrenia] era espiritual, a pessoa não toma um banho, o que é isso?! [...] To-
entendeu? Tinha tanta vontade de alguém, nessa dos nós sabemos que a mulher que é limpa é normal.
internação que eu tô, é religiosa, ela é católica, né. (Homem, 29 anos, usuário de crack).
Eu tinha muita vontade de que eles falassem pra O meu irmão, que é crente há quarenta anos,
mim que era espiritual. Queria tanto ouvir isso, falou que o desejo dele é me ver morto dentro do
mas eles falaram que isso é, isso é mental. Isso é mi- caixão. [...] Por causa do crack. Porque ele é pre-
nha mente. Confirmaram o que eu já sabia, enten- conceituoso. [...] O crack pra mim é como Rispe-
deu? [...]que a minha mente é que cria isso tudo. ridona, Clorpromazina, Ácido valpróico, Diaze-
Depois de perder as esperanças sobre seu pam... Faz parte. Eu uso toda hora. Eu dependo do
diagnóstico não ser de cunho espiritual, busca crack também e da maconha, junto com os remé-
uma nova causa para sua doença, mesmo que dios, esses que eu falei [...] para conseguir estabili-
não faça mais uso do crack: zar mais essa coisa que é a minha cabeça, porque
o crack me deixou com algumas sequelas, de você não tem ideia do que é viver com todos esses
ouvir vozes... pensamentos [esquizofrênicos]. E quando todos
O relato mostra os desdobramentos para- eles vêm numa porrada só? Quando eu uso crack
doxais da doença mental: vivenciar sofrimento, eu fico assim, do jeito que eu estou, normal. Não há
discriminação, estigma, medicalização da vida e diferença. Sem crack complica, porque aí eu vou ter
seus efeitos colaterais. Para o entrevistado, mes- que aumentar muito as medicações legais, e aí eu
mo que a medicação aliviasse as alucinações, de vou virar um ve-ge-tal. (Homem, 47 anos, viciado
certo modo, ela era a prova incontestável da sua em ler).
situação psiquiátrica, da qual deseja se livrar. A Além dos relatos em destaque, diversos en-
busca de um culpado externo (medicação, “en- trevistados deixaram entrever preconceitos con-
costo”, energia negativa, crack) para uma doença tra usuários de drogas (“viciados”, “não gosto de
crônica, representa alívio e perspectiva de “cura” adictos”, “cracudos”), mesmo que eles próprios
para uma condição que é inaceitável para o pa- fizessem uso compulsivo do crack.
ciente, tendo em vista que essas condições são O crack, além das consequências deletérias
passíveis de tratamento. Loucura para o entre- físicas e psíquicas relacionadas ao seu uso e das
vistado representa dois motivos de sofrimento: dificuldades de abstinência, também é motivo de
sintomas (alucinações) e preconceito com ela. sofrimentos decorrentes do sentimento de vergo-
Mulher, 38 anos, graduação em História, Psi- nha e rupturas familiares. Entre os dependentes
cologia e Terapia Ocupacional de drogas, o crack é tido como o pior dos mun-
O motivo que eu vim pra cá é que eu tenho o dos, estendendo esse estereótipo aos seus usuá-
maior preconceito com tratamento de Tuberculose rios. A condição de ser mulher, moradora de rua
... e aí, eu confio na [profissional de saúde]. Eu tô e usuária de crack personifica a combinação de
com Tuberculose, começo tratamento e paro, come- triplo preconceito decorrente dos valores conser-
ço e paro. vadores e sexistas ainda presentes na sociedade
A entrevistada mostra o autopreconceito por em geral, que se reproduzem também em quem
outra doença estigmatizada socialmente e, igual- vive na rua.
mente, a prática de interrupção de tratamento Um entrevistado mostra sofrimento tanto
para doenças contra as quais se tem preconceito pela falta de controle dos sintomas psiquiátri-
ou não-aceitação. Salienta, ainda, que vínculo e cos, quanto pelo efeito colateral alienante das
relação de confiança favorecem o tratamento de medicações psiquiátricas e argumenta que não
doenças estigmatizantes. vê distinção entre uso de drogas lícitas (prescri-
Outros entrevistados mostraram diversas ex- tas pela medicina) e ilícitas para o controle dos
pressões de estigma e preconceito por causa do pensamentos alucinógenos e paranoicos que so-
uso do crack: fre. Tenciona um tema ainda tabu na sociedade,
Eu uso crack, eu tô usando pedra, mas eu não e com fortes entraves da ideologia conservadora,
fico em cracolândia, eu tenho vergonha de ficar em para aprofundar essa discussão.
cracolândia, entendeu? (Homem, 45 anos, evan- Outras narrativas abrigaram preconceitos de
gélico e entregador). alguns moradores de rua contra a própria PSR,
O problema não é a droga, é ser pego; o crack é percebidos pelas expressões: “bandos”, “malo-
problema pra família, pelo preconceito. (Homem, queiros”, “pessoal que não toma banho”. Alguns
35 anos, sofre de solidão). mostraram preconceitos em relação às doenças/
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condições comuns nesses grupos (dependência uma coisa, estar precisando daquilo, nem tchum,
química, Transtorno Mental, HIV/Tuberculo- não atender.
se: “não aceito”, “não mereço”) e ainda contra Os relatos mostram os receios da PSR fren-
a prostituição, percebida pelo uso de termos te às ações motivadas por preconceitos durante
ambíguos, como: “troca”, “dinheiro que cai do atendimento de saúde nos serviços da RAS. A
céu”. O “autopreconceito” fica evidente quando representação de “sujeito sem documento, não
o próprio sujeito de certo grupo ou atividade domiciliado, usuário de droga” constrói uma au-
(uso de crack) julga moralmente o semelhante. toimagem negativa nessas pessoas, que passam
Isso mostra que, de algum modo, tais pessoas se a se sentir indignas e indesejadas. Esse processo
veem “dentro” e também “fora” desses grupos. O contínuo pode levar à perda do atributo mais im-
preconceito representa o esforço que o sujeito faz portante de todos seres: sua condição humana. A
para se diferenciar e não pertencer àquele grupo. pessoa que é constantemente colocada no lugar
É notório também a reprodução de preconceitos do indesejado perde o direito à cidadania e à vida.
e discriminação da sociedade em geral pela pró- Muitas vezes, a estratégia utilizada pela PSR
pria PSR. para reverter a discriminação e ser cuidada pelos
A negação como medida para se afastar da- serviços de saúde é reagindo dentro das suas pos-
quilo que se tem preconceito mostra o grau de sibilidades: sendo comunicativa, pegando amiza-
sofrimento psíquico ao qual essas pessoas estão de e priorizando serviços de confiança. Em suma,
expostas e sentem em decorrência de estigmas e mostrando que ali tem um ser humano capaz de
discriminação. agir, interagir e reagir.

Expressão de preconceitos e discriminação Percepções de profissionais de saúde sobre


no contexto do cuidado de saúde preconceito e discriminação contra a PSR

Diversos entrevistados relatam casos em que Os profissionais de saúde participantes da


se percebem serem alvos de preconceitos dos ou- pesquisa compartilharam a mesma preocupa-
tros, principalmente em serviços de saúde. ção com o preconceito e a discriminação que a
Mulher, 43 anos, usuária de crack, HIV+, so- PSR enfrenta nos serviços de saúde, seja vindo
nho de ser mãe de profissionais, de outros pacientes, ou mesmo
Porque eu gosto de vim aqui [CnaR], porque na priorização de condutas mais autoritárias ou
aqui eu sou tratada bem. Nos outros, eles olham a restritivas de autonomia, exclusivamente por se
gente assim, com cara de nojo. Às vezes dá sorte de tratar de PSR. Foi unanime o reconhecimento de
pegar ... um médico legal, que te trata como um ser que dependente químico em situação de rua tem
humano, mas eu vou falar uma coisa pra você. Eu uma dupla carga de preconceito e discriminação
tenho o maior medo, sabe por causa de quê? Eu te- na relação com os serviços de saúde.
nho medo de chegar lá, e tem gente que tem ódio de De acordo com esses profissionais, as discri-
cracudo. [...] Aí vem o meu medo. [...] Ah! a cracu- minações no cotidiano dos serviços podem ser
da aí, vai ficar ocupando espaço de gente doente, dá distintas:
logo uma injeção na veia dela, mata logo ...”. “Ah! já um olhar discriminatório; não atendimento
tem HIV memo”... Até eu fazer ... a beópsia de não quando acionado por ser PSR; coloca diagnóstico
sei o quê, eu já morri ‘situação de rua’ ou ‘social’ e nem escuta o pacien-
[Quando] chego no hospital, eu já chego assim, te; induz o Conselho Tutelar a tirar a guarda da
“Oi, tudo bem? Prazer, meu nome é [...], eu sou criança que nasce de moradora de rua drogada;
usuária de crack, mas não sou... “. Já chego me co- profissionais que só pensam na proteção da criança
municando, pegando amizade, porque eu não sou e desprezam a mãe. É a prática da Assistente Social
boba, tenho medo de eles me darem uma injeção... da mão pesada; às vezes, por acreditar que a PSR
e eu morrer. não vai dar conta dos desdobramentos do procedi-
Mulher, 32 anos, na rua desde os 17 anos. mento, optam por procedimentos menos indicados,
Nos outros lugares eu fui atendida mais ou como por exemplo uso do gesso ao invés de cirur-
menos. Nem quando eu fiquei internada [...] teve gia porque não sabem como faria o pós-operató-
também lá... preconceito, desmerecimento de uns rio; quando é usuário [de drogas] existe sempre a
enfermeiros, de uns médicos [...] por não ter en- preleção do tratamento da droga em detrimento de
dereço fixo, ser usuária. Porque eu não escondo, eu qualquer outro diagnóstico.
sou usuária mesmo, eu vou esconder pra quê? Aí Além da desassistência, os relatos mostram a
houve aquela discriminação, às vezes de... eu pedir prática de cuidado negligente ou inapropriado,
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seja pelo hipercuidado ou subcuidado, motivado A reflexão mostra o contraste da visão de
pelo simples fato de o profissional de saúde des- quem vê a cena da rodovia, de dentro de um au-
conhecer as condições e redes de apoio da PRS e tomóvel, e de quem entra na cena. O desconhe-
sequer perguntar por suas preferências. Pacientes cimento da realidade projeta uma situação bem
em situação de rua, tratados como sujeitos des- mais perigosa do que a sentida na experiência.
providos de desejos e escolhas, ficam à mercê dos Desta forma, o conhecimento é mais uma possi-
valores, crenças e prioridades dos profissionais bilidade de atenuar preconceitos, de quebrar bar-
em relação ao cuidado de saúde, reiterando a re- reiras e diminuir indiferenças com a PSR.
lação de exclusão da PSR consigo e com o mundo.
Além disso, foi mencionado comportamento
discriminatório de outros pacientes com mora- Discussão
dores de rua nos serviços de saúde: “tem pacientes
que não aceitam ser atendidos depois da população Esse artigo objetivou identificar como preconcei-
de rua, mesmo que tenha chegado depois dela”. to e estigma atingem a PSR e destacar formas de
O preconceito no cuidado de saúde da PSR ultrapassar as barreiras sociais inseridas dentro
escancara a prática em que a “vida” da pessoa não dos serviços de saúde. A existência de represen-
depende da sua condição de saúde, mas da con- tações sociais pejorativas em relação à PSR, que
duta de cada profissional, agravando ainda mais se materializam nas relações sociais não é algo
a vulnerabilidade desta população. novo na literatura acadêmica1-4,6,9. Todavia, pou-
Para minimizar os efeitos deletérios da atua- cos abordam o autopreconceito ou seus efeitos
ção dos serviços de saúde, profissionais do CnaR produzidos no âmbito do cuidado de saúde.
compartilharam suas estratégias para combater Um olhar de “repugnância” dirigido ao seme-
discriminação e prover cuidado, seja por meio do lhante representa regras e valores da sociedade
constrangimento, da vigília dos serviços de saú- vigente internalizadas pelas pessoas que vivem na
de para evitar alta precoce ou desassistência, seja rua, como pode ser visto na depreciação de ativi-
pelo atendimento do paciente, independente da dades como catação e prostituição, além da opi-
forma como ele atue para obtenção do cuidado. nião de que mulher tem que ser limpa (homem
Às vezes a gente leva na van a Portaria [que não). Esse processo propicia que a PSR utilize
institui] do cartão do SUS, [...] não tá falando de rótulos depreciativos como referência para con-
CPF [na portaria] no Cartão SUS, [...] pergunta o figurarem suas próprias identidades2. Por conse-
nome da mãe e o nome todo da pessoa.... Aí rola o guinte, a incorporação de uma visão pejorativa
constrangimento [...] pra aquilo ser efetivado.” de si, propicia, pouco a pouco, a construção de
“Precisa ter algum profissional que se sensi- uma identidade de “caídos, inúteis, fracassados”14.
biliza com a PSR para que ela seja tratada como Essas construções sociais implicam em maiores
outro qualquer. dificuldades na reinserção familiar e social2, in-
A equipe tomou conta, né? O dentista não ar- clusive com irmão preferindo a morte do entre-
redou mais o pé, a [profissional de saúde] também vistado por vergonha dele ser usuário de crack.
não arredou mais de perto da UPA enquanto o Sobre preconceito e Tuberculose, Snowden15
[paciente] não saiu de lá, do caso estar resolvido, salienta que existem patologias com maior pre-
de estar na emergência. É assim que funciona o valência nas condições de pobreza, doenças com
consultório da rua. poder histórico de mobilizar a opinião pública
Quando ele chega [...] vai naquele impacto do contra pobres, reforçando mecanismos de es-
terror mesmo ou ele vai de “sou coitadinho” [...] só tigmatização que promovem a exclusão social15.
que com o tempo, ele vai entendendo que a gente tá Acerca desse fato, a PSR demonstra preconceito
ali independente de qual história ele tem pra con- justamente com doenças relacionadas social-
tar, e que a gente vai atender ele de qualquer forma. mente com a pobreza. Além disso, a pesquisa
Outra forma de reduzir preconceito é por mostrou que a “não-aceitação” e o preconceito
meio da aproximação da realidade. Residente com diagnósticos estigmatizantes interfere na
compartilha sua reflexão sobre uma cracolândia, continuidade do tratamento de doenças com
durante o trajeto até o cuidado itinerante. graves consequências para a saúde e vida do pa-
Quando você entra realmente na cena, você ciente e seu grupo de convívio.
vê que não tem nada daquilo, não vai ter ninguém A reprodução dos preconceitos da socieda-
te atacando, ninguém sendo violento com você, te de pela PSR mostra convergência de valores e
roubando com arma. Você vê pessoas sofrendo em crenças e levanta o questionamento se a PSR está
condições desumanas que estão carentes de afeto. mesmo à margem da sociedade, ou se ela é con-
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Brito C, Silva LN

siderada marginal apenas na garantia ao direito De forma análoga, Gofman17 descreve o pro-
constitucional, como expresso no artigo quinto: cesso de “mortificação do eu” como produção
“Todos são iguais perante a lei”. Desassistência e de tensão psicológica aguda, com degradações
negligência por parte de profissionais de saúde e humilhações, sobre o indivíduo desiludido do
e pacientes demandando passar à frente da PSR mundo ou sentimento de culpa, de modo que a
nos serviços de saúde, apenas por sua condição mortificação pode provocar alívio psicológico.
social e não de saúde, são exemplos de violação As práticas que destituem a pessoa de sua
destes direitos. cidadania16 repercutem em diversos aspectos da
A pesquisa mostra a relação entre precon- vida de um indivíduo, produzindo sentimentos
ceito e temas tabus, como uso de drogas ilícitas, de vergonha e humilhação, provocando afasta-
prostituição e alerta que a falta de conhecimen- mento familiar, isolamento ou formação de gru-
to e diálogo sobre esses conteúdos interditados pos que lhe confira uma identidade estável2.
alimentam o sofrimento psíquico, limitando Preconceito, discriminação e desassistência
possibilidades nos cuidados de saúde, tais como: têm uma atuação direta nesse processo. Essas
tratamento da droga em detrimento de qualquer vivências somadas – na família, nos serviços e
outro diagnóstico, prática da Assistente Social da na sociedade – atuam na transformação do ci-
mão pesada, dentre outros. Ademais, a dimensão dadão em “morto-vivo” ou na “mortificação do
religiosa na reprodução de preconceitos e “jar- eu”, afetando a autoimagem e autoestima da PSR,
gões” pela PSR, sobretudo oriundos de religiões provocando descaso no atendimento de pessoas
neopentecostais, expõe a relação de competição justamente com as maiores necessidades sociais.
entre saúde e práticas religiosas, que pode ser Escorel18 fala de pessoas que “vivem de tei-
prejudicial para a terapêutica dos usuários6. mosas”, visto que mesmo com a redução dos seus
A Reforma Psiquiátrica Brasileira, mesmo campos de possibilidades, rompem com estas
enquanto campo em construção, trouxe avan- restrições, criam novas oportunidades de consti-
ços inestimáveis no discurso e prática para lidar tuir-se enquanto protagonistas ativos da mesma
com a loucura e o sofrimento mental, aversa à sociedade que lhes nega oportunidades.
institucionalização da loucura7. Contudo, apesar De forma não intencional, a pesquisa pôde
da imbricada relação entre PSR e Saúde Mental, refletir sobre estigmas, preconceitos, vergonhas,
pessoas em situação de rua não se beneficiaram medos e sobre formas inconscientes de supera-
de suas conquistas como poderiam. Além disso, ção, como possibilidades de transformação de
a Política para inclusão da PSR9 é recente e não realidades desprovidas de esperança.
alcançou o movimento revolucionário e os avan- A priorização de estudar a PSR a partir de
ços da Reforma Psiquiátrica. Asilos, Hospitais e sua história de vida objetivou a sua valorização
abrigos parecem produzir um processo de insti- como sujeitos ativos e protagonistas de histórias,
tucionalização e desfiguração da subjetividade, trajetórias, valores, em contraponto com a marca
tal como a rua – uma institucionalização sem de invisibilidade, desconhecimento e preconceito
instituição. que é frequentemente caracterizada.
Arendt16, a partir de reflexões sobre campos Quanto às limitações do artigo, destaca-se o
de concentração, detalha o processo de transfor- fato de a população de estudo ter alta prevalência
mação de cidadãos de direito em “mortos-vivos” de uso de drogas, sobretudo o crack, o que pode
– sujeitos indesejados, considerados sem valor, ter colocado em evidência essa questão, além de
sem pertencimento, supérfluos. Para ela16, “mor- a pesquisa originária não ter tido intuito direto
to-vivo” é aquele tratado como se não existisse, de estudar preconceito e discriminação, podendo
como se os acontecimentos de sua vida não inte- ter limitado esse tema. Contudo, o fato do pre-
ressassem a ninguém, como se estivesse morto16. conceito ter sido tão evidenciado, tanto pela PSR
Os métodos de preparação dessa condição são e por profissionais de saúde, em uma pesqui-
histórica e politicamente explicáveis, distinguin- sa sem essa finalidade, mostra a latência dessas
do-se pelas práticas de eliminar sistematicamente questões e o sofrimento que isso traz, para quem
o direito, a moral e a singularidade das pessoas16. é cuidado e quem cuida. Nesse sentido, reforça-
O abandono de si e a perda da espontaneidade se a importância de novos estudos investigativos
são consequências dessas práticas e foram obser- sobre preconceito e mulheres em situação de rua,
vadas nessa pesquisa16. preconceitos e interrupção de tratamento de saú-
de e estratégias para enfrentá-lo.
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Ciência & Saúde Coletiva, 27(1):151-160, 2022


Conclusão drogas, e esse estereótipo justifica desassistência
e cerceamento do direito, da cidadania e da vida.
Resultados mostram que, de forma contraditória, Ciente de sua condição enquanto ser prete-
os principais preconceitos (re)produzidos pela rível e indesejado, a PSR tentar driblar sua des-
PSR contra si, são também aqueles que represen- vantagem e se manter viva sendo comunicativa,
tam a sua identidade no imaginário da sociedade, pegando amizade, e priorizando serviços de con-
relacionando-se com sua aparência descuidada e fiança, mostrando que a Política para inclusão da
malcheirosa, sua forma de sustento, doenças mais PSR9 e a instituição dos CnaR12 foram grandes
prevalentes (Transtorno Mental, Tuberculose, avanços da vida, do respeito à diversidade e dos
HIV) e ao uso de drogas, sobretudo crack. Direitos Humanos. A equipe do CnaR e outros
De forma similar ao status quo, ser mulher profissionais sensíveis às agressões não-verbais
em situação de rua e usuária de drogas mostrou- sofridas pela PSR somam forças e adotam estra-
se como uma importante combinação discrimi- tégias de combate à discriminação em prol da
natória, somando-se aos preconceitos sexistas e vida, ora por meio de constrangimento, vigília
aos sociais. Do mesmo modo, sofrer de transtor- dos serviços de saúde para evitar desassistência,
no mental e estar em situação de rua aumentam ora por meio de atitudes sensíveis do profissio-
estigmas e, consequentemente, sofrimento psí- nal, olhar interessado, escuta atenta ou busca
quico dos sujeitos. A PSR coloca em evidência o incessante do sujeito pelo território. A relação
tabu social e a resistência ao debate sobre drogas de vínculo e confiança com serviços de saúde fa-
prescritas pela medicina e ilícitas, implicando em vorece a persistência do tratamento de doenças
consequências no âmbito da saúde e da violência. que produzem efeitos importantes quando des-
Todo esse processo discriminatório mostrou continuadas. Cuidar em favor da vida começa
que ele não é inócuo, e produz sim, muitos efeitos por um cuidado empático. Ações solidárias tem
deletérios, como: sofrimento, baixa autoestima, o potencial de atenuar sofrimentos e desigulda-
rupturas familiares e exclusões sociais, destitui- des e produzir subjetividades, desejos e projetos
ção da condição de direito e cidadania, abandono de autonomia19.
de tratamento e desassistência. Refletir sobre ações reproduzidas de forma
Em contrapartida, estratégias para lidar com mecanizadas e efeitos desastrosos dos preconcei-
o sofrimento frente aos preconceitos sofridos tos, além de conhecer a realidade sob julgamento,
são: não se parecer com ‘morador de rua’, ficar auxilia a descontruir barreiras, aproximar diálo-
longe de cracolândias; autonegação e abandono gos e contribuir para uma vida mais equilibrada
do tratamento de doenças estigmatizantes. e equitativa. Estudos nessa área podem contri-
Nos serviços de saúde, evidencia-se a discri- buir para aprimorar as políticas públicas e dimi-
minação da qual a PSR é alvo, seja pela aparência, nuir a distância que coabita espaços urbanos com
falta de documentos, de domicílio ou pelo uso de tamanha disparidade social.

Colaboradores

C Brito e LN Silva participaram da concepção,


análise, redação e revisão crítica do manuscrito.
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Brito C, Silva LN

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