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Promoção da Saúde

Saúde e Pesquisa DOI: 10.17765/2176-9206.2022v15n4.e11088

“Viver na rua é a minha doença”: o processo saúde-doença sob a ótica de


pessoas em situação de rua

"My disease is living on the streets": The health-disease process from the
perspective of homeless people

Gabriel Vinícius Reis de Queiroz1, Tatiane Bahia do Vale Silva2, Rosália do Socorro da
Silva Corrêa3, Marília Jesus Batista de Brito Mota4, Ana Claudia Camargo Gonçalves
Germani5, Mayra Hermínia Simões Hamad Farias do Couto3
1
Departamento de Saúde, Programa de Pós-graduação Mestrado em Ciências da Saúde, Faculdade de Medicina
de Jundiaí (FMJ), Jundiaí (SP), Brasil; 2Departamento de Epidemiologia, Doutora pelo Programa de Pós-
graduação em Epidemiologia em Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Rio de Janeiro (RJ),
Brasil; 3Departamento de Planejamento Urbano e Regional, Docente do Programa de Pós-graduação em
Desenvolvimento e Meio Ambiente Urbano, Universidade da Amazônia (UNAMA), Belém (PA), Brasil;
4
Departamento de Saúde Coletiva, Docente do Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde, Faculdade de
Medicina de Jundiaí (FMJ), Jundiaí (SP), Brasil; 5Departamento de Medicina Preventiva, Docente do Programa
de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), Brasil.

Autor correspondente: Gabriel Vinícius Reis de Queiroz – E-mail: ra2103001@g.fmj.br

RESUMO
Analisar a percepção de pessoas em situação de rua sobre o processo saúde-doença, cobertas
pelo Plano Emergencial de Atendimentos. Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, que
realizou coleta de dados com entrevista semiestruturada envolvendo pessoas em situação de rua
do município de Castanhal, no estado do Pará. A amostra foi por saturação. Adotou-se como
técnica de análise dos dados o método de interpretação hermenêutico-dialética. Participaram 11
pessoas em situação de rua. Nas narrativas, constataram-se dificuldades vivenciadas na rua que
interferem no processo saúde-doença, tais como: atenção às necessidades básicas (higiene,
comida, água) e psicossociais, trabalho, saúde e os desafios diante da pandemia de COVID-19.
É necessário o fortalecimento do sistema de garantia de direitos para a população em situação de
rua, visando melhorar as condições de vida e saúde desse público. O estudo revela a importância
de construções científicas para favorecer a redução das iniquidades em saúde.

Palavras-chave: Pessoas em situação de rua. Processo saúde-doença. Vulnerabilidade social.

ABSTRACT
To analyze the perception of homeless people about the health-disease process, covered by the
Emergency Care Plan. This is a study with a qualitative approach, which carried out data
collection with a semi-structured interview involving homeless people in the municipality of
Castanhal, in the state of Pará. The sample was by saturation. The method of hermeneutic-
dialectical interpretation was adopted as a data analysis technique. Eleven homeless people
participated. It was found in the narratives, difficulties experienced on the streets that interfere
in the health-disease process, such as: attention to basic needs (hygiene, food, water),
psychosocial, work, health and the challenges facing the COVID-19 pandemic. It is necessary to
strengthen the system of guaranteeing rights for the homeless population, aiming to improve the
living and health conditions of this public. The study reveals the importance of scientific
constructions to favor the reduction of health inequities.

Keywords: Homeless people. Health-disease process. Social vulnerability.

Recebido em Agosto 06, 2022


Aceito em Novembro 09, 2022

Saud Pesq. 2022;15(4):e-11088 - e-ISSN 2176-9206


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INTRODUÇÃO a Região Norte possui cerca de 5.414


PSRs5.
A presença de pessoas em situação O processo de rualização é um
de rua (PSR) no cenário urbano da maioria fenômeno antigo e de cunho social6. Desde
das cidades brasileiras é uma realidade a criação de condições necessárias à
1
incontestável . É considerada uma produção capitalista na Europa, com o
manifestação escancarada de diversas aparecimento de sociedades pré-industriais,
problemáticas sociais oriundas da pessoas perambularam pelas ruas, uma vez
supervalorização do capital e da que os camponeses foram expulsos de suas
desigualdade social em detrimento dos terras, ficando sem rumo e sem serem
direitos do ser humano2. De acordo com a absorvidos pelo setor industrial2. Nesse
Política Nacional para a População em sentido, as pessoas em situação de rua
3
Situação de Rua (PNPSR) , instituída em sofrem a marginalização causada pelo
2009, esse grupo populacional é capital, tornando-se socialmente inúteis e
heterogêneo, mas assemelha-se na situação extremamente vulneráveis7.
de extrema pobreza, fragilidade e/ou quebra A vulnerabilidade é uma perspectiva
dos vínculos familiares, sem moradia complexa, que pode ser compreendida
convencional regular, favorecendo o como o cruzamento de condições materiais,
adoecimento. políticas, culturais, jurídicas e subjetivas, o
Em 2020, o Instituto de Pesquisa qual resulta em danos coletivos e/ou
Econômica Aplicada (IPEA), por meio do individuais e suscetibilidades ao
censo do Sistema Único de Assistência adoecimento, cuja solução são matéria dos
Social (SUAS), dos Registros Mensais de saberes e práticas em saúde8. Logo, a
Atendimento Socioassistencial (RMAs) e situação de vulnerabilidade em que as PSRs
da base de dados do Cadastro Único para se encontram é resultado da exposição de
Programas Sociais do Governo Federal múltiplos fatores, os quais promovem
(CadÚnico), constatou que há 221.869 dificuldades de enfrentamento das
pessoas em situação de rua no Brasil4. adversidades do cotidiano, resultando em
Ademais, estimativa apresentada no discriminação e violações de direitos, entre
Relatório Técnico-Científico elaborado eles a violação, em muitos casos, do acesso
pelo Programa Transdisciplinar Polos de à saúde9.
Cidadania da Universidade Federal de O binômio “saúde-doença” possui
Minas Gerais (UFMG) demonstrou, com conceituações que variam de acordo com o
base nos dados do CadÚnico em 2021, que contexto em que são enunciados. A saúde
representa o reflexo da conjuntura política,

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social, cultural e econômica. Desse modo, a políticas públicas15. Dessa forma,


saúde não se evidencia na mesma percepção o objetivo desta pesquisa foi analisar a
para todos os indivíduos. O mesmo, a percepção sobre o processo saúde-doença
propósito, ocorre com a doença10. Portanto, das pessoas em situação de rua do
as condições de vida e as vulnerabilidades município de Castanhal, estado do Pará
das PSRs devem ser levadas em (PA), abrigadas emergencialmente durante
consideração na elaboração de políticas a pandemia de COVID-19.
públicas em saúde direcionadas a esse
grupo populacional11. METODOLOGIA
Sob essa ótica, torna-se relevante
compreender o entendimento das PSRs Trata-se de um estudo de abordagem
sobre a saúde e processo de adoecimento, já qualitativa, alicerçado nos princípios da
que os fatores sociais e culturais inseridos hermenêutica-dialética. Optou-se pela
no contexto de vivência nas ruas, como as referida perspectiva por ela trabalhar com o
condições de vida e as interações sociais, universo de significados, motivos,
são determinantes na singularidade do aspirações, crenças, valores e atitudes, o
conhecimento de saúde. Logo, todas as que corresponde a um espaço mais
ações e/ou políticas de saúde devem profundo das relações, dos processos e dos
considerar as crenças, valores e atitudes dos fenômenos irredutíveis à operacionalização
agentes sociais a quem se destinam12. de variáveis16.
Segundo o sociólogo e filósofo A pesquisa foi realizada com
Pierre Bourdieu, os modos de pensar, de pessoas em situação de rua do município de
perceber, de sentir e de fazer são produtos Castanhal, no estado do Pará, no ano de
da experiência biográfica individual, da 2020, coincidindo com o período da
experiência histórica coletiva e da interação pandemia de COVID-19. Houve o apoio
13
entre essas experiências . O agir e pensar técnico da equipe psicossocial do Serviço
de uma população diante dos problemas de Especializado de Abordagem Social
saúde, incluindo a utilização dos serviços da (SEAS), destinado à população em situação
rede de cuidado, são elaborados com base de rua. Esse serviço pertence ao Centro de
na percepção de saúde e doença dessa Referência Especializado de Assistência
população, que está intimamente ligada ao Social (CREAS) e atuou como mediador
contexto sociocultural14. entre o pesquisador e o público-alvo para a
Com o cenário da pandemia de realização da coleta de dados.
COVID-19, agravaram-se as mazelas O município supracitado apresentou
sociais das PSRs, até então, invisíveis, média mensal de 29 abordagens de PSRs
sendo acentuadas com a inoperância das pelo SEAS no ano de 2014 e teve um

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acréscimo de 179% nos atendimentos, com mínima de 1,5 m interpessoal, disposição de


17
81 abordagens em 2015 . Ressalta-se que o álcool 70% para higienização das mãos e
aspecto histórico da construção dessa utilização de máscaras e/ou protetores
cidade a torna um espaço de oportunidades faciais18. A técnica de produção de dados
de trabalho devido ao povoamento por utilizada foi a entrevista individual
imigrantes e ao intenso fluxo destes, o que semiestruturada, que permite ao
até os dias atuais caracteriza boa parte da participante explanar sobre a temática
população em situação de rua no abordada sem se prender a uma única
território17. questão, além de favorecer a abordagem de
Em 30 de janeiro de 2020, a pontos fundamentais para o objeto de
Organização Mundial da Saúde (OMS) estudo com intervenções pontuais do
declarou Emergência de Saúde Pública de entrevistador19.
Importância Internacional (ESPII) em Foi elaborado um roteiro de
decorrência da infecção humana pelo novo entrevista composto dos itens: história
coronavírus (COVID-19). Por isso, a pessoal; percepção de saúde e doença;
Secretaria Municipal de Assistência Social formas de cuidado; necessidades em saúde
(SEMAS) de Castanhal construiu o Plano e fatores da vivência na rua que interfiram
de Ação Emergencial de Atendimento a no processo saúde-doença; e acesso aos
PSR, abrigando esse público no Ginásio serviços de saúde. O roteiro foi submetido
Municipal Poliesportivo Loiola Passarinho, ao pré-teste com população em situação de
o qual serviu como campo de investigação rua atendida pelo SEAS, quando foi
para o estudo. confirmado que a linguagem era acessível e
No momento da coleta de dados foram implementadas questões referentes à
(maio e junho de 2020), estavam abrigadas alimentação nas ruas bem como ao acesso
26 PSRs, sendo 23 homens, 1 mulher e 2 aos serviços de saúde pela rede intersetorial.
crianças. Entretanto, durante a realização do Vale dizer que o intuito do pré-teste é
estudo, esse número foi reduzindo, porque assegurar validade, clareza dos termos e
o sentimento de liberdade, a não aceitação precisão20.
do cumprimento das regras de isolamento Os participantes foram esclarecidos
social e a abstinência de álcool e/ou drogas acerca dos objetivos, métodos, riscos e
fomentaram a desistência desses atores benefícios, e outras informações pertinentes
sociais. da pesquisa mediante apresentação do
A coleta de dados foi realizada Termo de Consentimento Livre e
respeitando todas as recomendações Esclarecido (TCLE), seguindo-se da
preventivas da OMS no enfrentamento à assinatura. Foram incluídas pessoas em
propagação da COVID-19, como: distância situação de rua de Castanhal, de ambos os

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sexos, com idade igual ou superior a estabelecendo questionamentos para


18 anos. Excluiu-se uma pessoa, por estar constatar fatores relevantes que nortearam a
em trânsito, ou seja, não se encontrar no categorização. Ao final, procurou-se
território de Castanhal. articular os dados com os referenciais,
Utilizou-se a amostragem por promovendo conexão com a conjuntura
saturação para estabelecer a quantidade de socioeconômica e política na qual os atores
participantes. A saturação teórica configura sociais estavam inseridos.
a constatação do momento de interromper a Objetivando assegurar o anonimato
captação de informações importantes e humanizar os relatos, os atores sociais
quando os dados passam a apresentar certa foram identificados como pedras preciosas
21
redundância ou repetição . Dessa maneira, ao longo do texto. Nesse sentido,
foram entrevistadas 11 pessoas em situação participaram deste estudo a Ágata,
de rua, sendo 10 homens e 1 mulher. Ametista, Esmeralda, Jade, Topázio,
Salienta-se que não houve recusa dos Turquesa, Diamante, Azurita, Âmbar, Rubi
participantes. e Safira.
O método de análise de dados foi a O presente trabalho seguiu os
hermenêutica-dialética. A hermenêutica aspectos éticos preconizados na Declaração
busca a compreensão, e a dialética de Helsinki e nas normas de pesquisa que
estabelece a criticidade. Assim, esse envolva seres humanos no Brasil, segundo
método foi escolhido por enquadrar o objeto a Resolução nº 466/12 do Conselho
deste estudo e por provocar Nacional de Saúde (CNS). O projeto de
questionamentos quanto à capacidade do pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética
tecnicismo de compreender a realidade, em Pesquisa (CEP) do Instituto
indo para além do conhecimento teórico, ou Campinense de Ensino Superior, sendo
seja, valorizando a práxis22. aprovado sob o número de parecer
As entrevistas foram registradas em 4.521.783.
gravador digital da marca Sony, modelo
ICD-PX240, sendo transcritas RESULTADOS E DISCUSSÃO
posteriormente. Realizou-se a leitura
compreensiva das narrativas, a fim de Entre os entrevistados houve o
organizá-las e de identificar vivências predomínio de homens com idade entre 25
singulares nas ruas, por meio dos e 61 anos, da raça/cor autodeclarada parda,
significados subjacentes às ideias relatadas. com nível de escolaridade de ensino
Na sequência, foram classificados os dados fundamental incompleto. Os conflitos
com base na fundamentação teórica e na familiares, abandono do grupo familiar,
leitura exaustiva e repetida dos textos, perda de bens patrimoniais e emprego,

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tragédias pessoais e uso de substâncias Na análise compreensiva dos


psicoativas estiveram como principais discursos dos depoentes, destacaram-se as
motivos para ida às ruas. Todos os dificuldades vivenciadas na rua que
interlocutores referiram não possuir renda, interferem no processo saúde-doença, as
nem qualquer tipo de benefício de quais são representadas pelos recortes das
transferência de renda. O período de narrativas interligadas a esses desafios,
vivência nas ruas variou de 1 a 16 anos. contidas no Quadro 1.

Quadro 1. Desafios da vivência na rua que interferem no processo saúde-doença — Castanhal, 2022
TIPOS DE DIFICULDADES TRECHOS DAS NARRATIVAS
Desafios relacionados às - Fome “Comer, tomar banho e dormir são as maiores
necessidades básicas - Sede dificuldades. […] não temos garantia de onde
- Dormir vamos dormir, ou tomar banho, entendeu?”
- Higiene pessoal (Ágata)
“É um modo triste da gente sobreviver… já tomei
água do esgoto, já comi comida estragada de uns
dois dias… estava muito azeda! […]com fome, a
única solução era essa.” (Ametista)
Desafios relacionados aos - Preconceito “Já passei muita humilhação… chegar no
aspectos psicológicos e sociais - Estigmatização ambiente e falarem que não posso dormir, com
- Dificuldade para medo da gente mexer nas coisas deles. […] a
frequentar alguns pessoa que mora na rua é mal vista.” (Topázio)
espaços sociais “Às vezes você está deitado numa calçada, e o
- Violência morador daquela casa não gosta, aí ele joga até
- Uso de álcool e urina na pessoa, entendeu? Quando não, jogam os
drogas cachorros para morder… tudo isso acontece.”
(Ametista)
Desafios relacionados ao - Dificuldade de “[…] vontade de arrumar um emprego e sair dessa
trabalho acesso ao trabalho lama. Quando eu ia atrás disso, nunca consegui
formal e informal porque todo mundo pede documento e eu não
tenho.” (Jade)
“Se for pedir um serviço, um bico, ninguém quer
ajudar. […] eu consigo um trocado sem ter que
mexer nas coisas dos outros, trabalhando como
flanelinha.” (Azurita)
Desafios com a saúde - Dificuldade com o “As pessoas que vivem nas ruas não têm um
acesso aos serviços atendimento igual as outras pessoas. […]sente
- Medo de passar mal preconceito… a gente sabe que é assim.” (Topázio)
na rua e não ser “Quando se chega no posto de saúde tem que ter o
socorrido cartão do SUS… aí você não é atendido se não
tiver um papel de luz [comprovante de residência].
[…]morando na rua você nunca vai ter esse
papel.” (Safira)
Enfrentamento da pandemia de - Medo de voltar para “Não sei o que vai ser da gente quando isso
COVID-19 as ruas após a acabar, sofri muito e não quero voltar para as
pandemia ruas.” (Esmeralda)
- Perspectiva positiva “O pessoal daqui [abrigamento] ajudou a gente
para mudança de vida com o auxílio [emergencial], e tá muito bom
conseguir minhas coisas. […] vou me organizar
para alugar uma casa e dar um lar para meus
filhos, tudo vai melhorar.” (Rubi)
Fonte: Elaboração própria.

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A Lei Orgânica de Segurança ao corpo um direito básico de ser cidadão24.


Alimentar e Nutricional (LOSAN), do ano Quando as necessidades básicas não são
de 2006, destaca que é de responsabilidade ofertadas, os indivíduos sofrem grandes
do Estado fornecer regularmente alimentos prejuízos relacionados a descaracterização
com qualidade de quantidade suficiente aos enquanto atores sociais, afetando a
indivíduos, sendo a alimentação um direito capacidade crítica e dificultando a
humano social fundamental23. O não participação social. A PNPSR estabelece
cumprimento dessas medidas provoca a que as pessoas em situação de rua tenham
insegurança alimentar e nutricional, muitas acesso a segurança alimentar e nutricional.
vezes manifestada pela sensação cruel de Contudo, a garantia desse direito ainda é um
fome, prejudicando a saúde e denegrindo a grande desafio.
dignidade humana. As narrativas das PSRs Ainda no âmbito das necessidades
demonstram a violação do direito à básicas, constatou-se a dificuldade do
alimentação adequada: acesso à água potável, bem como a locais
para a realização da higiene pessoal e
“A alimentação na rua é
limpeza de roupas. Sob a ótica do
complicada; muitas vezes alguém
do coração bom te dá um almoço, Comentário Geral nº 15, construído em
muitas vezes nem esse almoço você
2002 pelo Comitê das Nações Unidas sobre
consegue, às vezes te dão uma
farinha e você bebe um xibé [água os Direitos Econômicos, Sociais e
com farinha de mandioca]. […]
Culturais, a água deve ser disponibilizada
quando não se tem nada… você
avista um camburão [lixeira]… em qualidade e quantidade suficiente para
uma comida velha, já estragada,
uso doméstico e pessoal e não representar
tem que meter a mão porque
precisa passar a fome, né?” risco à saúde25. O acesso à água e ao
(Safira)
esgotamento sanitário foi considerado um
“Eu não como direito na rua… direito humano em 2010, por meio da
[choro]…passo muita fome. A
Resolução A/RES/64/29226 da Assembleia
gente vai pedir comida na casa das
pessoas, e tratam a gente mal, Geral da Organização das Nações Unidas.
falam: “Sai daqui! Sai daqui!
Entretanto, as falas das PSRs fortalecem, de
Senão eu vou chamar a polícia,
seu cachorro!”. […] uma vez maneira incisiva, a existência dessas
jogaram comida estragada na
privações:
minha cara… é triste. Eu pegava e
ia pedir na outra casa, até que eu
conseguia, porque tem pessoas “A sede não tem medida. […] é
que são boas.” (Diamante) muito difícil até para beber uma
água, você vai ter que beber
O alimento vai muito além do nutrir: caçando uma torneira. […]
chegar, pedir uma água e não ter
ele possui um significado social que permite naquele momento, então você olha

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um pouco de água, no esgoto… aí


um círculo vicioso, e a pessoa não se acha
tem que beber.” (Ametista)
mais capaz de romper isso e sair dessa vida
“Assim, a gente passa horas, às
precária de rua” (Ágata).
vezes não tem um lugar para tomar
banho, às vezes a roupa da gente O termo “situação de rua”
passa uns três a quatro dias suja,
demonstra claramente a condição de
porque não tem onde lavar, fica
com aquele cheiro horrível, né?” imprecisão, transitoriedade, precariedade e
(Safira)
vulnerabilidade que esses indivíduos

A dificuldade de acesso a esses vivenciam28. Em confronto com esses

recursos afeta tanto a saúde quanto a aspectos, existe o processo de produção

qualidade de vida desses indivíduos. A social e a determinação do lugar de cada

precarização da sobrevivência e a ausência pessoa no ambiente social por meio da

de serviços de higiene, como banheiros e afirmação de identidade. As PSRs são

lavanderias públicas, ocasionam a enquadradas em uma identidade subversiva,

ampliação de problemas em saúde, como as carregada de depreciação, frustrando as

dermatoses27. Existe uma relação resistente expectativas da sociedade normal29. Assim,

da sociedade em decorrência da baixa esse público é intensamente estigmatizado,

manutenção da higiene pessoal e a sofrendo opressão e marginalização com

discriminação contra o corpo e aparência reconhecimento de inferioridade perante os

física das PSRs, já que a sujeira e o forte demais.

cheiro exalado não condizem com o modelo Conforme Goffman30, o estigma é “a

ideal de sociedade limpa e capitalista, situação do indivíduo que está inabilitado

promovendo o processo de desfiliação para aceitação social plena”. Nessa

social. perspectiva, as PSRs carregam símbolos

A desfiliação ou invalidação social que compõem o estigma, como: pele

impossibilita o indivíduo de participar de desgastada, corpo sujo, sacolas carregadas,

qualquer atividade produtiva e provoca o odor forte, loucura e o fato de morar no


sentimento de inutilidade por não seguir o espaço público30. A estigmatização foi

padrão social adequado, fortalecendo a perceptível nas falas: “[…] você é ladrão, é

insegurança e deixando a resolução dessa bandido, é um viciado, você é isso, é aquilo.

problemática cada vez mais complexa aos Então isso aí vai dando uma dor no coração

desfiliados28. Esse processo aprisiona o da gente, que a gente não consegue

indivíduo, proporcionando a naturalização esquecer” (Turquesa), ou “Uma mulher lá


da precarização da vida, conforme o no centro… eu queria uma cadeira

depoimento: “Essa vida de rua vai deixando emprestada para dar sopa para as
a pessoa afetada, ao ponto de não ter mais crianças, estava chovendo muito… ela me

força para reagir, e acaba preso. […] vira esculachou, me chamou de suja, de fedida,

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me humilhou muito e falou que não iria diversas formas de violência: desde a
emprestar nada” (Rubi). simbólica, que pode ser compreendida
As incessantes humilhações como o meio mais sutil de dominação e
provocam sentimentos de desprezo e exclusão social, até a violência física, que
fortalecem a exclusão social. “É como se as abrange pauladas, envenenamento,
pessoas da rua fossem os leprosos de espancamento, entre outras formas
32
antigamente, que se exclui do meio da brutais . O medo de sofrer agressões
sociedade. Embora vivendo no meio deles, demonstrou afetar diretamente o sono das
é como se não existissem” (Safira). Trata-se PSRs.
de uma triste realidade, que provoca a
“Às vezes, nem durmo com medo
invisibilidade desses indivíduos por conta
de chegar uma pessoa e fazer algo
da intensa agressividade do estigma: de ruim comigo. Eu não devo, né?
Mas as pessoas de briga,
simplesmente a sociedade apaga esse
transformada com uso de droga
público do seu campo de visão. fazem de tudo. Uma vez, um rapaz
que dormia com a gente no
Nos achados, foram notórias
terminalzinho foi esfaqueado no
inquietações constantes quanto à banco enquanto dormia.” (Jade)
precariedade da vida na rua que repercutem
intensamente na saúde mental. “A gente fica Esses indivíduos estão submetidos à
angustiado, o coração fica fechado, né? A violência que emerge de diversos setores
mente já não funciona normal, sabe?” sociais, como: agentes de segurança
(Jade). Sob a luz da hermenêutica, pública; gestão pública e suas ineficientes
a angústia revela a procura de uma nova políticas, com violação direta de direitos; e
finalidade da existência. De acordo com a própria sociedade que se apropria da
Heidegger, a angústia demonstra que o desassistência para estigmatizar33. Um caso
mundo mudou seus significados, e as marcante de violência urbana nesse
relações interpessoais perderam sua contexto foi a “Chacina da Praça da Sé”,
essência, permitindo o acesso à ocorrida em 19 de agosto de 2004, em São
autorreflexão31. “Quando eu fico Paulo, com o ataque cruel de golpes na
preocupado com essa vida de miséria, eu cabeça a 15 pessoas em situação de rua que
me sinto no inferno. Eu sofri tanto, tanto, estavam dormindo, o que resultou na morte
tanto que eu cheguei a escutar até vozes. O de sete desses indivíduos. Tal fato
sofrimento afeta muito a saúde da gente” revoltante teve grande repercussão, e a data
(Diamante). foi adotada como o Dia Nacional de Luta da
A violência foi constatada como População de Rua33. A criação de canais de
uma das maiores preocupações da vida nas denúncia de violência e a implantação de
ruas. Esse grupo populacional vivencia

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defesa dos direitos humanos são alguns dos quatro anos que travei uma luta, mas ainda
3
objetivos da PNPSR . não consegui vencer essa barreira de
O uso de álcool e/ou outras drogas libertação total, mas eu saí de uma zona que
esteve presente nos discursos das PSRs, era praticamente todos os dias usando”
associado ao reconhecimento do consumo (Ágata).
dessas substâncias como prejudiciais à Outro achado foi a impossibilidade
saúde e um grande obstáculo em suas vidas. de acesso ao mercado de trabalho formal
Prevaleceu a utilização do crack e do oxy devido à ausência de documentação e ao
pelo fácil acesso e por serem utilizados preconceito relacionados à higiene e à
como estratégia para perder a fome. “Se aparência física. “Tenho muita dificuldade
você for usar o crack, o oxy ou a pasta, você para trabalhar, eu quero e não consigo. O
vai ficar sem vontade de comer. É difícil que eu tenho para matar minha fome é
conseguir alimentação, mas a droga se capinar o quintal das casas. Nunca me
consegue rápido” (Safira). É perceptível deram uma oportunidade porque sou da
que a utilização de substâncias psicoativas rua, nunca trabalhei de carteira assinada…
está imbricada ao significado de fuga da nem carteira de trabalho eu tenho”
realidade, criando barreiras momentâneas (Diamante).
contra o sofrimento humano e A Política Nacional para Inclusão
proporcionando a insensibilidade à Social da População em Situação de Rua
desgraça34. estabelece como prioridade a inserção
O recurso aos tóxicos é uma maneira desses atores sociais no mercado de
grosseira e eficaz que constitui meios para trabalho por meio da articulação dos
amenizar o sofrimento e suportar a equipamentos sociais, além da capacitação
precarização da vida, muitas vezes profissional, com realização de cursos e
resultado do desconforto com a oficinas, bem como a garantia dos direitos
35
civilização . Assim, existe diferença entre trabalhistas36. Entretanto, de acordo com
“emprego de veículos intoxicantes” e a alguns entrevistados, o trabalho informal é
“intoxicação crônica”, quebrando a ideia da uma necessidade para sobrevivência,
similaridade entre usar drogas e ser mesmo que precário por não possuir
dependente químico. Enquanto o primeiro proteção social nem condições apropriadas.
faz referência à busca da felicidade e ao A idade e o fato de viver nas ruas são fatores
afastamento do sofrimento, a segunda é desafiadores para o acesso à atividade
uma forma extrema de fuga da realidade informal, pois “uma pessoa de cabeça
para aqueles indivíduos que desacreditam branca, que vive nas ruas… se for pedir
da felicidade e não possuem perspectiva de para trabalhar, sem carteira mesmo,
vida. “São 34 anos de drogadição. Tem

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ninguém quer ajudar, ficam só julgando” Partindo desse pressuposto,


(Azurita). melhores condições de vida, com o acesso
Quanto à concepção de saúde, os aos direitos básicos, como moradia,
depoimentos apresentaram duas vertentes: a trabalho, alimentação, entre outros, são
primeira carrega a presença do modelo componentes da compreensão de saúde das
biomédico sobre saúde, estabelecendo-a PSRs. Conforme Gadamer, a saúde não
como a simples ausência de doença: “saúde pode ser mensurada, pois visa ao equilíbrio
é uma pessoa saudável, sem doença, sem e harmonia de cada indivíduo de forma
nada, né?” (Jade), “saúde é não estar integral, motivo pelo qual é perguntado se
sentindo dor, se eu estiver sem dor eu tô as pessoas se sentem doentes38.
bem.” (Ágata), ou “saúde é sem doença, Já a concepção sobre doença nos
certo?” (Âmbar). Nessa perspectiva, o depoimentos das PSRs carrega o
homem é visto como uma máquina, um significado de agregação dos fatores da
sistema mecânico; portanto, quando doente, precarização da dignidade humana e da
compreende-se que seu sistema está vida. De acordo com esses atores sociais, a
avariado37. Esse modelo é arcaico, mas vivência nas ruas configura o adoecimento:
ainda possui resquícios nos atendimentos “estar nessa situação [de rua] é uma
em saúde, determinando apenas os sinais e doença, pelo fato de não ter um lugar para
sintomas para o reestabelecimento do descansar, você tem que perambular dia e
indivíduo. noite, né?” (Azurita), “doença é o jeito
A segunda diz respeito a cansativo de viver nessa vida, viver jogado
significados positivos das necessidades para pela rua, dormindo pelas calçadas, sem o
sair das ruas: “saúde é ter pessoas ali pra apoio de alguém” (Esmeralda) ou
poder ajudar, entendeu? A gente supera simplesmente “viver na rua é a minha
muita coisa na rua, […] a gente não tem doença, e eu quero ser curado, sabe?”
ninguém” (Turquesa), “saúde pra mim é ter (Diamante).
uma vida melhor, feliz, com minha casa, A doença na perspectiva das
minha família, trabalhar” (Topázio), ciências sociais e da antropologia pode ser
“saúde é ter a cabeça com tudo no lugar, ter compreendida como um produto
alimentação saudável, fazer exercício […] culturalmente determinado. Sob a visão
as pessoas da rua não têm isso” (Rubi). Na antropológica, a cultura constitui-se na
ótica antropológica, a percepção sobre união de comportamentos, ideias e regras
saúde de um indivíduo está relacionada com inseridas em um grupo social (aqui
a cultura da sociedade e com o representado pela população em situação de
31
pertencimento a um grupo social . rua); ela se dá enquanto experiência
diferenciada, visto que redes simbólicas,

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metáforas e outras figuras associadas à doutrinários de equidade e universalidade


31
doença são originadas pela cultura . Nesse do atendimento, na Atenção Primária à
sentido, a percepção de doença dessas Saúde (APS) os atendimentos necessitam
pessoas está atrelada às fragilidades e de apresentação do documento de
vulnerabilidades vivenciadas nas ruas. identificação pessoal e do comprovante de
Por meio das narrativas, constatou- moradia dos seus usuários por conta da
se que as PSRs buscam os serviços de saúde definição de base territorial39. O SUS, após
em casos de extrema urgência. “Enquanto a constatação dessa dificuldade com a
gente está aguentando, a gente fica. Agora documentação, promoveu a melhoria do
quando percebe que a dor está demais a acesso à saúde com as Equipes de
gente tem que buscar o serviço, né?” Consultórios na Rua (eCR) para a
(Safira). Porém verifica-se que, de acordo população em situação de rua. Entretanto,
com os depoentes, o grande problema está nem todas as cidades aderiram, como é o
relacionado com a qualidade do caso do município de Castanhal.
atendimento, pois o preconceito impera nos
“Eu chegava no posto de saúde e
espaços sociais, inclusive nos serviços de
dizia que estava me sentindo muito
saúde, desde a portaria até o atendimento ruim, que queria um atendimento.
Pediram meu cartão do SUS e meu
com os profissionais da saúde,
endereço… falei que não tenho, eu
demonstrando falta de preparo de alguns moro na rua, e acabava não sendo
atendido. Eu me senti mal por
deles em lidar com essa população:
conta disso. Falaram que eu tinha
que procurar algum conhecido e
“Uma vez, aqui em Castanhal, eu pegar um papel de luz
passei mal e me levaram para a [comprovante de residência],
UPA. A enfermeira disse: ‘Rapaz porque, se acontecer alguma coisa
você está bem.’ Eu disse: aqui, quem é que vai se
‘Doutora, eu não estou bem, meu responsabilizar… vai ser
coração está acelerado demais.’ enterrado como indigente. Eu saía
Ela falou: ‘Você está bem.’ Me deu triste, né?” (Safira)
um remédio e disse que eu tinha
que ir embora, porque morador de
rua não é muito bem-vindo. Eu Os obstáculos no acesso aos
disse: ‘Amém, Deus te abençoe
serviços públicos estão intimamente ligados
por isso, que Deus vai me curar lá
na frente.’” (Turquesa) à violação do direito à cidade, o qual
constitui a vida urbana renovada, sendo a
A burocratização dos serviços de cidade um lugar de realizações que garante
saúde é um fator determinante para o acesso a qualidade de vida urbana de sua
das PSRs na busca do cuidado, pois, na população. É necessário a equidade do
organização do Sistema Único de Saúde acesso da população aos bens e recursos
(SUS), embora haja os princípios urbanos, bem como a qualidade ambiental e

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sustentabilidade do desenvolvimento emergencial, as PSRs tiveram seus direitos


urbano para designar se a cidade é saudável sociais básicos garantidos pelo poder
e, consequentemente, tem qualidade de público por meio do abrigamento, com
vida40. intuito de estabelecer o isolamento social
Isso representa um olhar desse grupo e enfrentar a propagação do
humanitário para toda a coletividade, mas, coronavírus. “O fato de eu tá na rua, no
quando nos deparamos com a realidade meio agora dessa doença [COVID-19],
vivida pelas PSRs, percebemos que esse você tá circulando já é um problema. Ainda
direito está longe de ser garantido40. O fato bem que colocaram a gente aqui
de esses indivíduos estarem perambulando [abrigamento]” (Azurita).
pelas ruas como estratégia de A associação de desigualdades
sobrevivência, ficando expostos a privação sociais e morbidades para COVID-19 é
de necessidades básicas como alimentação, intensificada no contexto de condições
água e realização da higiene pessoal, respiratórias crônicas42. “Eu estava na rua
corresponde à subtração do direito à cidade. com tuberculose e não sabia, descobri aqui
A cidade deve ser um espaço com [abrigamento] quando passei na triagem da
garantia de direitos, pautados na justiça saúde e me passaram remédio” (Turquesa).
social e na igualdade, onde todos seus Assim, o abrigo oportunizou acesso aos
habitantes, independentemente de classe serviços de saúde e tratamento
social, desfrutem da oferta de condições especializado aos indivíduos com sintomas
para o bem-estar40. Nesse sentido, o direito da COVID-19.
à cidade deve nortear a formulação de “Esse espaço de isolamento está
políticas públicas para a elaboração de sendo tudo que a gente não tinha: aqui eu
cidades sustentáveis, que proporcionem a almoço na hora certa, jogo dominó, assisto
inclusão social, o respeito à dignidade das filme e ainda consigo dormir em paz”
pessoas, a equidade e a democracia. (Diamante). Sob essa ótica, houve
Em geral, o acesso reduzido a estranhamento na mudança repentina de
cuidados de saúde e saneamento básico, uso vida provocada pela pandemia, na qual
de substâncias, entre outros determinantes situações que deveriam ser normais por
sociais, colocam as PSRs teoricamente em estarem garantidas em lei, como acesso ao
maior risco de morbimortalidade por lazer, cultura, saúde e segurança, foram
COVID-1941,42. Verificou-se que, durante percebidas como tudo que até então foi
essa pandemia, houve um aumento dos negado.
casos de mortalidade intrinsicamente As PSRs necessitam do
relacionados com os fatores de fortalecimento da rede de garantia de
vulnerabilidade social43. Em caráter direitos para melhorar suas condições de

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vida e saúde, não somente em períodos situação de rua, inclusive de assegurar as


pandêmicos. “Se o pessoal em situação de necessidades básicas do ser humano, como
rua tivesse o que é de direito, talvez o alimentação, higiene pessoal, entre outras.
mundo seria melhor, né? Pelo menos para Aponta a necessidade científica de
a gente da rua” (Âmbar). As violações ou explorações constantes para o
falta de atenção aos direitos humanos favorecimento da redução de iniquidades
proporcionam o crescimento dos problemas em saúde.
de saúde na população, principalmente nos
mais vulneráveis44. A pandemia ressalta a AGRADECIMENTOS
relevância de ampliar o acesso à saúde e ao
cuidado da pessoa em situação de rua; À Secretaria Municipal de
ademais, merece atenção o fato de essa Assistência Social de Castanhal por
população estar aumentando no contexto possibilitar a realização deste estudo; à
45
pandêmico segundo estudos da Fiocruz . População em Situação de Rua que aceitou
compartilhar suas vivências; e à equipe
CONCLUSÃO psicossocial do Serviço de Abordagem
Social do Centro de Referência
A pesquisa realizou um recorte no Especializado de Assistência Social de
cenário da Região Norte, que guarda Castanhal.
semelhança com as outras regiões no
tocante às características das PSRs. Foi REFERÊNCIAS

relevante a identificação da percepção de 1. Pinho RJ, Pereira APFB, Lussi IAO.


População em situação de rua, mundo
saúde das PSRs no cenário pandêmico
do trabalho e os centros de referência
estando intimamente ligada aos desafios especializados para população em
que o contexto social de privação de direitos situação de rua (centro pop):
perspectivas acerca das ações para
lhes impõe. Desse modo, dificuldades, inclusão produtiva. Cad Bras Ter
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