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ARTIGO ARTICLE
complexos: uma cartografia com mulheres em situação de rua
Abstract This paper discusses the low power of Resumo O presente artigo problematiza a baixa
traditional care offers for so-called complex users potência das ofertas tradicionais para o cuidado
in the health sector. It aims to show, from the nar- de usuários ditos complexos no campo da saúde. A
ratives of two guiding-users, that professionals, partir das narrativas de duas usuárias-guia bus-
services, and policies disregard the multiple singu- cou-se mostrar que profissionais, serviços e políti-
larities involved in the care and attempt to overlap cas que desconsideram singularidades envolvidas
their knowledge in asymmetrical relationships. no cuidado, apoiados em relações assimétricas são,
They are often put at stake in their ability to gene- frequentemente, questionados na sua capacidade
rate interesting and more life-producing offers. In de produzir ofertas significativas. Duas pesqui-
this sense, this work built on two qualitative, car- sas qualitativas de ethos cartográfico buscaram
tographic studies that aimed to reflect, based on refletir com base em duas usuárias-guia em seus
two guiding-users, promoting considerations on territórios e que no encontro com pesquisadores
how contact with the field/territory and the mee- e profissionais de saúde, estes experimentaram
ting with these two women (guiding-users) deter- o impacto da desterritorialização de si e de seus
ritorialized concepts and affected researchers and conceitos. O processo cartográfico permitiu a pro-
research. The results indicate that cartography dução de um “comum”, ou um modo de operar o
allows the production of the common, understood trabalho em saúde. Sai de cena a doença como
1
Programa de Pós- as a way of operating health work. Here, one seeks guia, a vulnerabilidade como impotência, para
Graduação em Saúde
Coletiva, Faculdade to consider each subject’s unique individual power dar lugar à “defesa de uma vida que vale a pena
de Ciências Médicas, as a fundamental issue for the production of care. ser vivida” como guia. Vidas possíveis que os usu-
Universidade Estadual de The disease leaves the scenario as a guide, vulne- ários engendram, estejam ou não em situação de
Campinas. R. Tessália Vieira
de Camargo 126, Cidade rability as fragility or impotence, to make way for rua ou qualquer vulnerabilidade.
Universitária, 13083- the “defense of a life worth living” as a guide. Pos- Palavras-chave Cartografia, Comum, Pessoas em
887. Campinas SP Brasil. sible lives that users generate, whether or not they situação de rua, Casos complexos; Pesquisa qua-
arianegoimrios@
yahoo.com.br are in the streets and a vulnerable condition. litativa
2
Faculdade de Enfermagem, Key words Cartography, Common, People living
Universidade do Estado in the streets, Complex cases, Qualitative research
do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro RJ Brasil.
3
Faculdade de Medicina,
Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro
RJ Brasil.
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Rios AG et al.
de sua casa: Não sou cobaia! Qual(is) a(s) expe- Poliana, cena 4: outra Poliana aparece
riência(s) anterior(es) de Poliana com profissio- Algumas semanas depois, Poliana retorna
nais de saúde que permitissem justificar essa fala com boa aparência ao serviço de saúde, mais for-
e esse comportamento arredio? te, física e emocionalmente e, pela primeira vez,
conseguimos acesso direto a ela, sem a presença
Poliana, cena 2: angústias, barreiras de Beto que agora some e precisa ser “tirado da
administrativas e conflitos morais rua” por Poliana, por se exceder na ingesta de
Nessas conversas com a enfermeira, vai se álcool. Poliana mostra o desejo, não manifesto
evidenciando que a relação de Beto e Poliana até aquele momento, de fazer o tratamento do
tem vários complicadores que parecem indicar a HIV: Quero ficar boa! Saímos com a usuária para
presença de uma relação incestuosa, o que muito apoiá-la na obtenção da segunda via de sua do-
afetava a maioria dos trabalhadores da unidade cumentação e, neste périplo, descobrimos que
de saúde, que se perguntava, por exemplo: Até seus documentos originais haviam sido confisca-
onde chega o ser humano?!. dos pelo irmão sob a justificativa - internalizada
A equipe de pesquisa, por sua vez, se colocava pela própria Poliana - de que ela seria incapaz de
outras questões: que ligação poderia existir en- guardá-los em segurança, assim como de sair de
tre aquela suposta relação e a prostituição, o uso casa sozinha, inclusive para fazer exames ou pro-
de drogas, a preferência/escolha/inevitabilidade curar emprego; que sem ele, se perderia.
pela vida nas ruas? Estamos operando como pes- E é neste momento que a violência se torna
quisadores morais no julgamento das escolhas do mais palpável para nós, o sentimento de insegu-
outro para sua vida? Como a lógica da redução rança e a dependência emocional que Beto há
de danos poderia contribuir, neste caso? tempos produzia em Poliana. Naquele momento
compartilhamos, entre muitas dúvidas em nós,
Poliana, cena 3: o sumiço que intensificou o sentimento de que a rua, as drogas e a prosti-
a presença tuição talvez fossem, para Poliana, uma forma de
Poliana desapareceu! É o que descobrimos operar uma certa “redução de danos” em si.
quando fazemos contato com a enfermeira, ainda
à distância, alguns dias antes do retorno ao cam- Rosa, cena 1: redução de danos viva em
po. Ela está na rua, e ele [Beto] não quer nem falar ato (encontro com o Consultório na Rua)
dela! Havia um sentimento geral de desistência, Encontramos Rosa por intermédio do Con-
de fracasso. sultório na Rua (CnaRua), em um território de
Já na unidade de saúde, em conversa com a concentração de usuários de drogas, em um bair-
enfermeira e com a gerente, vai se desenhando ro periférico de um município próximo à uma
o acontecimento: Beto contara que nas semanas grande capital do Sudeste. A caminho de lá, um
anteriores Poliana já vinha passando mais tempo breve resumo do caso: Mulher, 40 anos, usuária
na rua do que em casa, consumindo muito álco- de crack, álcool e outras drogas desde os 18 anos,
ol e crack, voltando quando piorava, com febre e com intensa vivência de rua. Mãe de nove filhos,
tosse. Havia tentado interná-la para tratar uma estando grávida do décimo. Nenhum dos filhos es-
pneumonia com derrame pleural, mas ela não tava com ela. Rompida com a família. Sem com-
aceitara e, em uma discussão acalorada, Poliana o panheiro atual e sem acompanhamento pré-natal.
rejeitou e criticou. Teria dito: Não quero nada de Quando chegamos, Rosa, à distância, já nos
você, você não me serve pra nada...você não passa alertava que tinha ficado esperando pela equipe
de mais um cachorro na minha vida! Beto se mos- do CnaRua no dia anterior sem usar drogas, mas
trara ofendido, não desejando mais cuidar dela. hoje não dá, hoje eu já usei. Nos aproximamos e
Eis que a ausência finalmente coloca à equi- começamos a conversar.
pe de pesquisa outras questões: por que estamos Seguimos conversando e Rosa foi nos con-
falando que ela “fugiu”? Estaria ela “presa”? Por tando um pouco de sua história de vida, como
que Poliana, apesar de estar sendo “cuidada” pelo mãe de seus filhos, como mulher, como usuária
irmão, parece não suportar viver naquela casa? de drogas e vivente da rua. Emocionou-se ao fa-
Que outra vida ou casa ela procurava para si? lar dos filhos, falou mais deles do que das drogas.
Que vida estava rejeitando? Tratava-se de uma Disse que desejava ficar com a criança que agora
típica situação de violência de gênero, ou não tão carregava no ventre.
“típica”? Que “intervenções” ainda podiam ser Recusou-se a ir até a maternidade para a rea-
feitas pela rede de cuidados? lização dos exames de pré-natal, ou ao Centro de
Atenção Psicossocial para Álcool e Outras Dro-
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estranhas e cujas perspectivas de mundo eram a concepção de “vida adequada” parece passar
tão distintas das suas, que dificultavam o manejo. necessariamente por abstinência / casa / trabalho
Entendiam serem vidas marcadas pela violência / consumo de bens. Temos um longo caminho a
de várias ordens e pela exclusão e que por isso navegar em direção a este continente da diversi-
precisavam de ações intersetoriais, o que justi- dade, do outro, desses mundos-outros.
ficava o envolvimento de várias instituições da
rede de saúde, assistência social, segurança, edu- Os movimentos dos usuários complexos:
cação, comunidade, ONGs, justiça etc. Julgavam “encontros e desencontros com os
ter realizado um grande investimento e, mesmo profissionais”
assim, tinham alcançado pouca resolutividade3
(p. 220). É a partir desta referência que anali- Nas cenas é possível captar a movimentação
samos as usuárias Poliana e Rosa como “casos das duas usuárias-guia que inquietam os profis-
complexos”. As cenas confirmam os desafios do sionais, por serem elas mesmas redes vivas de si
trabalho assistencial e apresentam a multiplicida- próprias e que estão o tempo inteiro inventan-
de das existências destas duas usuárias: mulheres do saídas para suas existências, ao seu modo. Ao
que vão desenhando seus caminhares pela vida, viverem nas ruas, lugares marcados por códigos
construindo potências em territórios que deno- específicos e plurais - a solidariedade, os compar-
minamos “rua” e elas, “casa”. tilhamentos, as disputas e as desavenças - com fre-
Tantas semelhanças entre as histórias de Polia- quência estranhos aos trabalhadores, colocam em
nas e Rosas. Como os olhares dos profissionais de xeque os saberes institucionais e as práticas reali-
saúde enxergam as vidas vividas por tais mulheres? zadas nos serviços para lidar com suas existências
Como lidar com a lente da precariedade e da falta: “incomuns” e para construir uma proposta de
o morar na rua (falta de teto), a pobreza (falta de cuidado comum, isto é, de forma compartilhada
dinheiro), a negritude (valor negativo da raça), a entre trabalhadores e usuárias.
baixa escolaridade (falta de estudo), o feminino Como entender, por exemplo, a situação de
coagido? São vidas que tendem a serem classifica- Poliana, que sempre que melhorava “fugia” de
das a partir de parâmetros arbitrários que a socie- casa? A visibilidade de um movimento ativo de
dade elege e que costumam rotular essas usuárias Poliana para escapar de algo (uma vida que lhe
como desprovidas da capacidade de governarem era insuportável?), deu lugar a outras vistas do
a si próprias, agravando sua grande desvantagem ponto18. O que pensava / sentia Poliana sobre tudo
social. Assim, o viver na rua, o uso de drogas e a isso? O que acontecia naquela casa que lhe era in-
gestação em tais situações são escolhas julgadas suportável? Que tipo de relações se estabeleciam
como impróprias, irresponsáveis, insanas, e fre- entre eles? O que este movimento de Poliana nos
quentemente reverberam para a sociedade como ensinava sobre ela? Talvez, como se vislumbrou
uma impotência, incapaz de enxergá-las por um em conversas posteriores, nem sempre a melhor
outro vértice: o da potência outra e desconhecida. vida ou o melhor cuidado estão o tempo todo no
Rosas e Polianas “fogem” dessas capturas. espaço da casa, da família, das instituições.
Para mais além, muito do que consumimos e Todavia, foi evidente a nossa surpresa, certo
do que nos compõe são subjetividades expressas dia, ao reencontrar Poliana muito bem, segura
nas maneiras de compreender e de viver a vida15 de si, fazendo planos, em nada lembrando aque-
e estas composições estão inscritas também nos la Poliana no limite da existência que se conhecia
trabalhadores da saúde e da assistência social em até então. Uma boa desorganização coloca então
geral, que tendem a rejeitar modos-outros de a equipe em outro modo de escuta, naquele mo-
organizar a vida, muitas vezes insuportáveis ou mento, uma escuta agora apta a ressoar potências
apenas toleráveis para profissionais que produ- para existir, múltiplas possibilidades de recone-
zem suas práticas de forma prescritiva (o modo xão existencial. Poliana nos ensinou que sempre
correto de viver a vida) e classificatória (vida que há potência no existir e nos faz pensar que tal
merece ser vivida ou não)16. A diferença operada potência nunca pode ser decretada como extinta,
como assimetria, impossibilitando a compreen- enquanto houver vida.
são dos distintos modos de viver como potência17. No caso de Rosa, sua referência de casa ou lar
Enquanto profissionais, também podemos não era o CAPS-ad ou o abrigo da Assistência So-
nos questionar sobre o que seria o “bom desfe- cial, mas o território da rua, local inóspito para
cho” desses trechos narrativos. Como enxergar alguns, mas promotor de segurança e acolhida
potência nas vidas vividas por tais mulheres? para ela naqueles momentos de vida e de espera
No entanto, o que as cenas nos mostram é que angustiante.
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um poder de afetar e de ser afetado. Um comum busca-se lapsos de “tempo comum” nos quais as
não somente como “conjugação de individuali- ações mais significativas possam ocorrer: o tempo
dades”, mas como espaço produtivo por excelên- dos acontecimentos. A partir da discussão tem-
cia, como um fundo virtual, como vitalidade social po-espaço, trazemos o que é o tempo comum e
pré-individual, como pura heterogeneidade não o espaço comum, compondo um território para
totalizável, ele nada tem a ver com unidade6 (p. 4). o encontro desses interlocutores: Com Poliana e
A questão que se apresenta é saber se esse en- Rosa, o esforço permanente na investigação foi o
contro das equipes de saúde e usuárias podem se de construção desses planos ou espaços-tempo co-
compor em afetabilidade para esse espaço produ- muns, talvez uma empreitada ainda mais difícil em
tivo. Trata-se de como um ser pode receber um uma abordagem metodológica diferente da que foi
outro no seu mundo, mas respeitando as relações utilizada.
e os mundos de cada qual, e este “receber o outro” Além disso, a cartografia como construto-
significando estrangeiramento, partilha de novos ra de planos comuns, compartilhados, encontra
modos de vida e existência. ressonância, por exemplo, na proposta da redu-
ção de danos, que não é a ausência de desejo de
A potência da cartografia intervenção da equipe técnica, mas a construção
com o usuário do que é possível para seguir vi-
Uma questão que sempre volta é a da pouca vendo a vida em cada espaço-tempo, mediante
oferta de alternativas construídas de forma copar- outra configuração de responsabilização20. Enfim,
ticipativa com os usuários, pelos serviços de saúde nos apresenta um modo de pesquisar e de ver o
ou de assistência social, uma fragilidade que rever- outro de forma simétrica, construindo um saber
bera na falta de potência das equipes e na fragilida- compartilhado que pode germinar em ações mais
de dos vínculos que se estabelecem. A escuta car- significativas do que as que temos produzido, es-
tográfica dá visibilidade tanto à dissonância dessas pecialmente para os usuários de substâncias em
ofertas com a realidade, demandas e desejos dos situação de rua.
usuários, como à falta de ferramentas que auxiliem
a mudar o curso de casos em que um desfecho ne-
gativo já é esperado. Considerações finais
Mas, o que é esperado de sucesso ou fracasso
nas equipes não dá conta da multiplicidade da vida Nesta travessia, que aqui relatamos, nos depa-
que acontece no exterior dos serviços de saúde e ramos com os desafios para se estabelecer um
outros. Incorporar o desenho da multiplicidade conceito de comum que efetivamente aposte
de vidas aos projetos de abordagem e cuidado dos na multiplicação de potências em um compar-
diferentes sujeitos é tecnologia / saber / prática a tilhamento de singularidades que só é possível
ser incorporada pelos profissionais das políticas pela permissão das afecções que esses encontros
sociais. promovem, superando um pseudo-comum que
Tomando-se a cartografia como estratégia para se satisfaz com o “conviver com as diferenças”,
experienciar os operadores da aproximação, inter- ainda que, mesmo este último não seja assim tão
cessores da relação, a doença cede a sua “função- frequente nas redes nas quais temos pesquisado.
guia” à vida vivida nos seus diferentes modos de As interrogações e implicações profissionais
produção e inventividade das diferentes formas de existentes em campo quando trabalhamos com
existência. Não a uma certa vida idealizada por um casos complexos impõe às equipes uma desterri-
setor que se coloca como exclusivamente técnico, torialização. A questão que se apresenta é inves-
seja ele da saúde, social ou mesmo jurídico, mas tir para que esse encontro das equipes e usuárias
o faz para uma vida possível e até mesmo dese- possa se compor de alto grau de afetabilidade
jada pelos sujeitos que a engendram, estejam eles para esse espaço produtivo, formando uma nova
em situação de rua ou não, em situação de grande relação, agora mais estendida, ampliada, uma po-
vulnerabilidade social ou não. Que outros convites tência que é de todos, mas é de cada um e que
então poderiam ser feitos pelas políticas públicas? está colocada para as equipes de saúde a todo
Que novas conexões existenciais germinais seriam momento. Já não é o se reterritorializar no mes-
possíveis para a produção de mais vida? mo, mas num outro espaço-tempo amplificado e
Outra questão significativa para a cartografia produtor demais vida, para si e para o outro. Um
é o tempo: trabalha-se em dimensões de tempo acontecer biopotente.
negociadas entre o tempo técnico, o da pesquisa No aspecto metodológico do trabalho com
e o das vidas dos usuários-guia, entre outros. Mas, casos complexos, observamos que é importante
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Colaboradores
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