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47192020 1015
Abstract This study aims to understand the Resumo Este estudo tem por objetivo compre-
movements of the Urgency and Emergency Care ender os movimentos de produção da Rede de
Network production in two health regions. It is Atenção às Urgências e Emergências (RUE) em
characterized as a qualitative multiple case stu- duas regiões de saúde. É caracterizado como es-
dy and was developed through open interviews tudo de casos múltiplos, de caráter qualitativo, e
with managers of the Brazilian Health System, foi desenvolvido por meio de entrevistas abertas
SUS (Sistema Único de Saúde), in two Brazilian com gestores do Sistema Único de Saúde (SUS)
states. The empirical material was organized and em dois estados brasileiros. O material empírico
discussed through identified categories adopting foi organizado e discutido por meio de categorias
the analytical scheme of the fields of organiza- identificadas, adotando o esquema analítico dos
tional interventions which were: the multiplicity campos das intervenções organizacionais, que fo-
of movements in the production of the RUE, the ram: a multiplicidade de movimentos na produ-
power of the hospitals; and, the weakness of gover- ção da RUE; o poder dos hospitais; e a fragilidade
nment regulation. Despite the different times and da regulação governamental. Apesar dos momen-
contexts in these states, both processes emphasized tos e contextos diferentes nesses estados, ambos os
organizational aspects and financing, with low processos deram ênfase aos aspectos organizativos
inputs in the production of different modes of he- e ao financiamento, havendo baixo investimento
alth care production. Regional governance is, the- na produção de diferentes modos de produção do
refore, produced in the complex relations between cuidado em saúde. A governança regional é, por-
national policy and local action. The RUE as a tanto, produzida nas complexas relações entre a
public policy induced nationally by the Ministry política nacional e a ação local. A RUE, enquanto
of Health becomes a singular production in the política pública induzida nacionalmente pelo Mi-
field of regional management. nistério da Saúde, torna-se uma produção singu-
Key words Health Care Network, Emergency, Re- lar no campo da gestão regional.
1
Departamento de
Medicina Preventiva, Escola gionalization, Health management, Micropolitics Palavras-chave Rede de Atenção à Saúde, Emer-
Paulista de Medicina, gência, Regionalização, Gestão em saúde, Micro-
Universidade Federal de São política
Paulo. R. Botucatu 740, Vila
Clementino. 04023-062 São
Paulo SP Brasil.
luis.tofani@gmail.com
2
Faculdade Meridional.
Passo Fundo RS Brasil.
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Tofani LFN et al.
Quadro 2. Gestores entrevistados por região, função e categoria profissional. Região de Saúde de Campinas – SP.
Região de Saúde Planalto – RS. 2018-2019.
Região Entrevistado Função Categoria profissional
Região de Saúde GEC1 Gestora estadual regional Terapeuta ocupacional
de Campinas – SP GEC2 Gestora estadual regional Fonoaudióloga
GEC3 Gestora estadual regional Psicóloga
GEC4 Gestora estadual regional Cirurgiã-dentista
GMC1 Gestor municipal de Saúde Médico
GMC2 Gestora municipal de Saúde Assistente social
GMC3 Gestora municipal de Saúde Terapeuta ocupacional
Região de Saúde GEP1 Gestora estadual regional Enfermeira
Planalto – RS GEP2 Gestora estadual regional Assistente social
GMP1 Gestor municipal de Saúde Enfermeira
GMP2 Gestor municipal de Saúde Psicóloga
GMP3 Gestor municipal de Saúde Farmacêutica
GMP4 Gestor municipal de Saúde Enfermeira
GMP5 Gestor municipal de Saúde Professor de história
GMP6 Gestor municipal de Saúde Enfermeira
GMP7 Gestor municipal de Saúde Agente administrativo
Fonte: Autores.
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Tofani LFN et al.
anônimas necessárias para atingir determinada ção, considerando que adiante de cada núcleo de
finalidade, a institucionalização. poder há contrapoderes com os quais há de se re-
No contexto brasileiro de organização federa- lacionar em esquemas de luta e negociação28. As-
tiva, a implantação de redes no SUS traz desafios sim, compreende-se a CIR não como um espaço
ímpares. Assim, a forte indução nacional de po- idealizado, mas como um campo onde conflitos,
líticas de saúde pelo MS, como a RUE, não pode disputas e forças tornam-se centrais. Como defi-
ser caracterizada como uma intervenção organi- ne Bourdieu29, os campos são espaços da prática
zacional universalista, uma vez que depende da criados ou impulsionados por atores com posi-
articulação intergestores interfederativa6, além de ções definidas por maior ou menor poder, legi-
ações locais nos municípios. timidade, posturas, comportamentos, valores e
Neste estudo, observa-se a micropolítica ope- conhecimentos.
rando nos espaços regionais, evidenciada por Tanto na CIR da RSC quanto na da RSP, em-
disputas, movimentos e interesses dos gestores e bora em tempos e contextos diferentes, foram
atores presentes ou que influenciaram o cenário observadas ações de atores que mobilizaram seus
de planejamento da RUE. Para Deleuze e Guatta- poderes no campo da pactuação da RUE. Na
ri20, a micropolítica opera no detalhe, por meio RSP, há relatos de um processo cartorial e cen-
de fluxos de intensidades, que podem ser exten- tralizado, coordenado pela equipe da Secretaria
sivos ao conjunto do corpo social mas possuem de Estado, com baixo protagonismo dos gestores
um caráter de imprevisibilidade. Em especial no municipais e com influência dos serviços hospi-
campo da saúde, são comuns estudos que explici- talares. Já na RSC, apesar de um processo par-
tam a micropolítica pela ação dos trabalhadores ticipativo, há o reconhecimento das limitações
enquanto portadores de relativa autonomia fren- da equipe do órgão regional estadual, da atuação
te às determinações da gestão15,21,22, pela relação expressiva de membros do MS, da potência das
entre profissionais de saúde e usuários na pro- equipes técnicas de alguns municípios, da fragili-
dução do cuidado em saúde23-26, ou pelo agir dos dade de alguns gestores frente aos prestadores de
usuários na produção de mapas de cuidados18 e serviços e da participação ativa de representantes
de seus itinerários terapêuticos27. de hospitais de ensino.
Nesta pesquisa, o que se procura observar e Para a implementação da RUE, houve forte
analisar é a ação micropolítica no espaço da ges- indução federal, por meio da ampliação do fi-
tão, na relação interfederativa e na governança nanciamento, com liberação de recursos ime-
regional. Partindo desses pressupostos, a discus- diatos e para custeio de novos serviços9. A busca
são dos resultados será feita por meio das ques- pelo financiamento emerge, embora em tempos e
tões: “a gestão regional como campo de interesses momentos distintos devido aos contextos locais,
e disputas” e “a reconfiguração locorregional da como o principal interesse para a pactuação da
política nacional”. RUE nas duas regiões de saúde.
O conhecimento e domínio técnico de alguns
A gestão regional como campo de interesses participantes oriundos de municípios, órgãos
e disputas estaduais e serviços universitários contribuíram
para ampliar seus poderes nas negociações. Na
Nos casos em estudo, as relações assimétricas acepção de Testa30, o poder técnico em saúde é
de poder para negociação da RUE e a heteroge- a capacidade de gerar, aceder, lidar com a infor-
neidade entre municípios, além da atuação de mação de características diferentes, podendo ser
prestadores de serviços hospitalares e das secreta- médicas, sanitárias, administrativas ou marcos
rias de estado, estiveram presentes e tiveram forte teóricos. Em estudo sobre a governança regional
influência na produção dos PAR. da RUE, Padilha et al.8 observaram o poder técni-
A Comissão Intergestores Regional (CIR) é co presente nas relações entre profissionais, entre
definida como instância de pactuação entre os unidades de um mesmo serviço, entre serviços,
entes federativos para definição das regras da entre estruturas de gestão e de atenção à saúde,
gestão compartilhada do SUS, sua organização e entre esferas de governo e entre todos esses e os
seu funcionamento em redes de atenção à saú- usuários.
de6. A integração entre as três esferas de gestão O capital real e simbólico dos hospitais
do SUS é imprescindível para que a RUE possa também lhes conferiu centralidade no proces-
ser implementada9. A cogestão se dá pela cons- so. A participação de gestores de hospitais uni-
trução de espaços coletivos e pela constituição de versitários na RSC e a força dos prestadores de
sujeitos com capacidade de análise e de interven- serviços privados na RSP levaram à hegemonia
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uma intervenção de caráter universalista, em que a regulação é ainda mais incipiente, centrada nos
a organização é vista como um sistema que tende serviços, marcadamente profissional e realizada
à homeostase pela determinação de um eixo ra- na informalidade por meio de aplicativos. Para
cional/legal16. Jorge e colaboradores9, observa-se a falta de deci-
A não adesão ao modelo definido pela políti- são política, em boa parte dos gestores, de regular,
ca nacional não significa necessariamente a des- e tem sido regra o funcionamento das redes sem
qualificação da RUE, pois os processos singulares regulação.
de construção das políticas nos territórios po- Uma observação importante nos processos de
dem produzir arranjos mais potentes e coeren- implementação da RUE nas regiões, e que expres-
tes com as necessidades. Por outro lado, também sam a relação entre universal, particular e singu-
não podemos compreender a RUE como uma lar, foi a pequena ênfase dada às transformações
intervenção particularista. O campo de inter- propostas nas práticas de cuidado em saúde. Para
venções particularistas é definido pela ação/li- Reis et al.7, a construção de redes vivas de cuidado,
berdade dos sujeitos para redefinir a estrutura da que coloquem em conexão os vários serviços exis-
organização16. Mesmo que planejada, pactuada tentes nos territórios, é um dos objetivos centrais
e executada no espaço locorregional por atores da governança regional. A pactuação feita “por
com autonomia formal e atravessados por mui- cima” não foi internalizada para os serviços, seus
tas disputas, a RUE é uma política que provém gestores e trabalhadores, que operam cotidiana-
de uma forte indução central. Assim, o que se ob- mente a política “de fato”. Essa percepção é cor-
serva é que práticas já instituídas e que operam roborada por estudos que identificam que a im-
nos espaços de gestão regional e municipal, bem plantação do conjunto dos componentes da RUE
como dos próprios serviços, tendem a se manter não se fez acompanhada do processo de modifi-
ou podem se transformar mediante as possíveis cação do modelo assistencial em direção a uma
ações instituintes desencadeadas pelos atores lo- atenção integral, resolutiva, qualificada e centrada
cais. A implementação de uma nova política pú- no usuário8,9,32. Para que isso pudesse ocorrer, se-
blica pressupõe transformações. Em estudo que ria preciso aproximar e estimular o protagonismo
analisa o processo de implementação do sistema dos trabalhadores32, reinventar os arranjos inter-
de saúde britânico, Klein38 o descreveu como um nos na produção do cuidado8 e avaliar a implan-
modelo de “exortação e esperança”, em que o tação dos dispositivos de qualificação previstos9.
governo central exortava e tinha a esperança de Assim, a RUE se torna uma produção singu-
que as medidas seriam adotadas no nível local. lar ao entrar no campo organizacional da gestão
As políticas de saúde implementadas no Brasil regional, sendo atravessada pela ação micropolí-
parecem se basear nesse modelo. tica de atores que a conformam de acordo com a
Um elemento central é a percepção de que relação de interesses e poderes que operam. Para
não se deu necessariamente a conformação de os institucionalistas, no momento singular a so-
redes integradas, mas um investimento maior no ciedade funciona porque as normas universais,
componente hospitalar e nos serviços de pronto admitidas como tais, não se encarnam diretamen-
atendimento, em detrimento dos outros pontos te nos indivíduos, mas passam pela mediação de
de atenção, pautado sempre pela busca de mais formas sociais singulares, de modos de organiza-
financiamento em um sistema brutalmente des- ção adaptados19. Nos casos em estudo, percebe-se
financiado33. O SAMU, concebido como um ele- uma relação complexa entre a política em ação
mento de articulação da rede, apresenta-se como – o processo – e a política oficial – o modelo –,
nó crítico nas duas regiões estudadas. A atenção produzindo no contexto de práticas uma política
básica, com o atributo da horizontalidade do cui- singular.
dado, foi apartada e negligenciada em ambas as Para Lorau19, a ação dos sujeitos particulares
regiões. em relação ao universal se desencadeia mediada
Outra questão que evidencia o instituído e organizada pela dimensão singular. Segundo
operando na RUE é a regulação, em especial a Lins e Cecílio16, no campo das intervenções or-
fragilidade da regulação governamental. Cecílio ganizacionais singulares o projeto oficial da or-
et al.18 identificam diferentes regimes de regula- ganização concretiza o discurso da instituição à
ção – governamental, profissional, clientelístico e qual se vincula, representando o grande eixo nor-
leiga – indicando que este é um campo em per- malizador, “transversalizado” por diversos outros
manente disputa, uma produção social. Nos ca- projetos disputados por grupos protagonistas
sos em estudo, observa-se na RSC uma regulação que demonstram habilidades na manipulação de
governamental centralizada pelo estado. Na RSP, recursos por sua autonomia.
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