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SUS, MODELOS ASSISTENCIAIS E VIGILÂNCIA

DA SAÚDE*

Carmem Fontes Teixeira1, Jairnilson Silva Paim 2, Ana Luiza Vilasbôas3

Resumo
O processo de construção do Sistema Único de Saúde no Brasil tem contemplado a implementação de um
conjunto de estratégias de mudança do financiamento, gestão e organização da produção de serviços. Nesse
contexto ganha importância o debate sobre a municipalização da gestão do sistema e as alternativas da
redefinição do(s) modelo(s) assistencial(ais) do SUS. Este artigo apresenta uma sistematização teórico-
conceitual e metodológica sobre a Vigilância da Saúde, entendida como um enfoque que pode contribuir
para a atualização das concepções que orientam a reorganização das práticas de saúde ao nível municipal
e revisam os principais métodos e técnicas que podem ser utilizados nesse processo. Enfatiza o uso da
epidemiologia e das ciências sociais em saúde na análise da situação de saúde da população, no planejamento
e programação local e na organização de operações dirigidas ao enfrentamento de problemas específicos, em
territórios delimitados, com ênfase nas ações intersetoriais e setoriais de promoção da saúde, prevenção de
riscos e agravos, e reorganização da assistência médico-ambulatorial e hospitalar.
Palavras-Chave: Vigilância da Saúde; Modelos Assistenciais; Epidemiologia em Serviços de Saúde;
Planejamento e Programação Local em Saúde; Processo de Trabalho em Saúde.
Summary
The organizational process of the Brazilian National Health System has implemented strategic changes in
its financing and management as well as in the health care services. In this context, the debate on the
municipalization of the system management and on alternative assistance models is extremely important.
The objective of this article is to present a theoretical and methodological systematization of the health
surveillance concept, in order to contribute to the reorganization process in health practice at the municipal
level. The text emphasizes the use of epidemiology and social sciences in the analysis of the population´s
health situation and in the planning and organization of activities to confront specific problems in defined
areas. Emphasis is given to intersectorial and sectorial actions in health promotion, disease prevention, and
medical assistance at ambulatory and hospital levels.
Key-Words: Health Surveillance; Assistance Models; Epidemiology the Health Service; Local Health
Planning; Health Pratices.

*
Texto elaborado para a Oficina de Vigilância em Saúde do IV Congresso Brasileiro de Epidemiologia.
1
Professora do Instituto de Saúde Coletiva da UFBa.
2
Professor do Instituto de Saúde Coletiva da UFBa.
3
Mestranda em Saúde Comunitária - ISC/UFBa.
Endereço para correspondência: Instituto de Saúde Coletiva. Universidade Federal da Bahia. Rua Padre Feijó, 29.
Salvador/BA. CEP: 40.110-170
Carmem Fontes Teixeira e cols

Introdução tentativas de articular ações de promoção,


prevenção, recuperação e reabilitação, em uma
O processo de construção do Sistema
dupla dimensão, individual e coletiva, que
Único de Saúde (SUS) vem sendo marcado pela
elaboração e implementação de instrumentos passaram a ser operacionalizadas no processo
legais e normativos, cujo propósito central é a de distritalização dos serviços de saúde
racionalização das formas de financiamento e desencadeado a partir do Sistema Único e
gestão dos sistemas estaduais e municipais de Descentralizado de Saúde - SUDS (87-89) e
saúde, fundamentados em uma proposta de desenvolvido, posteriormente, em alguns
ampliação da autonomia política dos municípios do país. 3,5,6 Desse modo, ao nível
municípios, enquanto base da estrutura político- micro, vem se acumulando experiência na
administrativa do Estado. construção de “modelos alternativos” ao modelo
assistencial hegemônico, incorporando, de certa
Nesse contexto, o debate político- forma, métodos, técnicas e instrumentos
institucional tem privilegiado os “componentes” provindos da epidemiologia, do planejamento e
financiamento e gestão do SUS.1 Também tem das ciências sociais em saúde. Estas experiências
sido discutida, a partir do processo de apontam possibilidades concretas de construção
descentralização, a questão da “organização do
de um “modelo de atenção à saúde voltado para
sistema”, especialmente no que diz respeito à
a qualidade de vida”, 7 tal como proposto no
redefinição de funções e competências do
temário da 10ª Conferência Nacional de Saúde.8
Ministério da Saúde (MS), das Secretarias
Estaduais de Saúde (SES) e das Secretarias Essas possibilidades foram reconhecidas
Municipais de Saúde (SMS), à reestruturação no Encontro de Secretários Municipais de Saúde
da Fundação Nacional de Saúde (FNS) e à realizado no Ceará, em 1995, no qual foi
redefinição das relações com o setor privado, elaborada a “Carta de Fortaleza”,9 documento
esta última em função das propostas do que reconhece as conferências de Alma-Ata,
Ministério da Administração e Reforma do em 1978, Ottawa, em 1986, e Bogotá, em 1992
Estado, sugerindo a criação das chamadas como “marcos referenciais do conceito de saúde para
“organizações sociais”. 2 todos como direito fundamental do ser humano”.
O debate das macropolíticas no setor Ao considerar, também, as experiências em
saúde, portanto, não tem privilegiado a questão curso, explicitou a seguinte posição:
dos modelos assistenciais, isto é, das formas de “A crise do financiamento do modelo de saúde
organização tecnológica do processo de centrado na doença exige o estabelecimento de novas
prestação de serviços de saúde. O sistema de estratégias que recuperem o paradigma da saúde
saúde brasileiro é hoje, assim, palco da disputa centrado na qualidade de vida e desenvolvimento
entre modelos assistenciais diversos, com a global das comunidades com participação dos
tendência de reprodução conflitiva dos modelos cidadãos. (...) é possível vislumbrar metas comuns
hegemônicos, ou seja, o modelo médico- que valorizem a importância das ações intersetoriais
assistencial privatista (ênfase na assistência
e de promoção da saúde ao mesmo tempo que seguir
médico-hospitalar e nos serviços de apoio
buscando formas autônomas e criativas para a
diagnóstico e terapêutico) e o modelo assistencial
atenção integral à saúde. (...) O exemplo brasileiro
sanitarista (campanhas, programas especiais e
neste campo demonstra que é possível a construção
ações de vigilância epidemiológica e sanitária),
de um novo paradigma em saúde em nível municipal
ao lado dos esforços de construção de “modelos”
a partir de um processo integrado, participativo e
alternativos.3,4
criativo que dependa fundamentalmente da decisão
Esse processo tem contemplado política das autoridades locais.”

8 IESUS, VII(2), Abr/Jun, 1998.


SUS, Modelos Assistenciais e Vigilância da Saúde

Para além do intercâmbio de experiências Embora a preocupação central naquele


e da elaboração de princípios e diretrizes gerais momento fosse com a descentralização da gestão
que norteiem as diversas iniciativas da rede de serviços de prestação direta a pessoas
desencadeadas nos municípios, consideramos (assistência médico-ambulatorial), na forma de
necessária a sistematização de elementos “gestão parcial”, buscava-se induzir o município
conceituais, metodológicos e instrumentais que a assumir as ações de vigilância epidemiológica
contribuam para a adoção de decisões e e sanitária, predominantemente sob a órbita das
implementação de ações no âmbito municipal, Secretarias Estaduais de Saúde e, em várias
tendo como propósito a construção do(s) regiões e microrregiões, sob controle da
modelo(s) assistencial (ais) coerentes com a Fundação Nacional de Saúde. Somente quando
problemática de cada município e viáveis do atingia o estágio de “gestão semiplena” é que o
ponto de vista da disponibilidade de recursos e município passava a atuar como gestor do
da capacidade técnica, gerencial e política dos sistema como um todo, assumindo a
sistemas municipais de saúde. responsabilidade também sobre a atenção
hospitalar, de maior complexidade e maior custo.
Nessa perspectiva é que nos propomos,
no presente texto, a apresentar uma A implementação da NOB 001/93, 11
sistematização preliminar, com o objetivo central além de não ter sido completada em todos os
de contribuir para o debate que se trava hoje municípios do país, resultou em uma relativa
em torno da Vigilância da Saúde, entendida reconcentração de recursos financeiros em
como eixo de um processo de reorientação do(s) regiões, estados e municípios, em função,
modelo(s) assistencial (ais) do SUS. Para isso, principalmente, da manutenção dos critérios de
procuramos discutir o significado da Vigilância repasse de recursos financeiros, que se baseavam
da Saúde no contexto da municipalização para, fundamentalmente na capacidade de produção
em seguida, revisar o debate conceitual sobre de serviços. Ora, por esta lógica, os municípios
Vigilância da Saúde. Por último, sistematizamos dotados de maior infra-estrutura e capacidade
algumas propostas para a operacionalização das gerencial passaram a disputar uma parcela mais
práticas de Vigilância da Saúde no âmbito significativa dos recursos federais para a saúde.
municipal. Em um contexto no qual estes recursos foram
reduzidos, o conflito redistributivo acirrou-se,
A Vigilância da Saúde no contexto da
passando a constituir o tema central da agenda
municipalização
política.
O processo de municipalização, na
medida em que venha a significar uma efetiva Paralelamente a este debate em torno
redefinição de funções e competências entre os do financiamento e gestão do SUS, o Ministério
níveis de governo do SUS, implica a constituição da Saúde desenvolveu a “estratégia” de Saúde
de “sistemas municipais de saúde”, nos da Família, 12 cujos resultados positivos em
quais se pode identificar o modelo de gestão e termos do impacto sobre alguns indicadores de
de atenção à saúde ou “modelo assistencial”.10 saúde vêm contribuindo para legitimá-la, a ponto
Antes do SUS e especificamente antes da de ser considerada hoje o eixo do processo de
implementação da NOB 001/93, não se poderia reorganização dos serviços básicos no SUS. Do
considerar que os municípios brasileiros tivessem mesmo modo, esforços mais recentes no âmbito
“sistemas municipais”. Os municípios tinham do Centro Nacional de Epidemiologia –
serviços de saúde municipais, porém não tinham CENEPI, acenam com a possibilidade de apoio
capacidade de gestão do conjunto das instituições financeiro e técnico para a implementação de
e unidades de prestação de serviços de saúde sistemas de “vigilância da saúde”, aí entendidos
localizadas em seus territórios. como vigilância epidemiológica, sanitária e

IESUS, VII(2), Abr/Jun, 1998. 9


Carmem Fontes Teixeira e cols

ambiental, em um amplo programa denominado Pelo contrário, levando em conta a


VIGISUS.13 existência de instrumentos financeiros como o
Piso Assistencial Básico (PAB fixo e variável),
Durante a elaboração da NOB 001/9614,
além da tentativa de definir um critério gerenciais e técnico-operacionais a exemplo da
populacional padrão para a definição do volume Programação Pactuada Integrada (PPI), do
de recursos financeiros que caberia a cada Programa de Agentes Comunitários de Saúde
município habilitado para as ações básicas, foram (PACS), do PSF e do VIGISUS, que podem ser
introduzidos diversos “fatores de estímulo” à utilizados para a criação de uma proposta que
implementação de inovações, entre as quais o aponta em outra direção, o município pode
Programa de Saúde da Família (PSF) e as ações caminhar para a construção de um modelo
de vigilância epidemiológica e sanitária. fundamentado na Vigilância da Saúde.

O que importa ressaltar é que, nesse A Figura 1 sintetiza essa possibilidade


contexto, o município tem condições de articular de atuação do município, articulando, para cada
o conjunto das propostas, programas e estratégias um dos níveis de atenção, as distintas propostas
que vêm sendo definidas no nível federal e em e “projetos estruturantes” que se encontram em
vários estados para desencadear, em seu âmbito, debate na presente conjuntura.16 Neste esquema,
um processo de reorientação do “modelo porém, o distrito sanitário abrange os três níveis
assistencial” do SUS que não signifique a mera de atenção e o PSF não está confinado na
reprodução do “modelo médico-assistencial Atenção Primária à Saúde (APS). A saúde da
privatista”, subordinando o “modelo sanitarista”, família “invade” os níveis de atenção secundária
ou seja, a chamada “inampização”do SUS.15 e terciária na medida em que sua equipe,

Figura 1 - Vigilância da Saúde

VIGILÂNCIA DA SAÚDE

POLÍTICAS PÚBLICAS
CIDADE SAUDÁVEL
PROMOÇÃO À SAÚDE

ATENÇÃO PRIMÁRIA SAÚDE DA FAMÍLIA


CONSÓRCIO

(PACS / PSF)
MUNICIPAL

ATENÇÃO
SECUNDÁRIA CONSÓRCIO
E TERCIÁRIA INTERMUNICIPAL

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SUS, Modelos Assistenciais e Vigilância da Saúde

particularmente o médico e a enfermeira, pode algumas doenças, base das propostas de


se responsabilizar pelo paciente e pelo apoio à “controle”, originadas do combate à malária e à
sua família, acompanhando-o na atenção tuberculose em meados do século XX, até a
especializada, inclusive na assistência hospitalar. assimilação da noção de “vigilância
Haveria situações em que o médico de família, epidemiológica”, que passou a ser usada mais
respeitados os preceitos éticos em relação aos amplamente a partir dos anos 50.19
seus colegas do hospital, discutiria O desenvolvimento da Epidemiologia,
procedimentos diagnósticos e terapêuticos, além já nas primeiras décadas deste século, registra
de proceder visitas hospitalares durante a tentativas de expansão do seu objeto para além
internação do seu paciente. das doenças infecto-contagiosas, desenvolvendo-
Vigilância em saúde e Vigilância da Saúde se, nas décadas de 30 e 40, esforços de
sistematização teórica do conceito de “risco”.
1. A vigilância no campo da Saúde Só a partir dos anos 60, porém, com o
Pública extraordinário desenvolvimento das técnicas de
Em um trabalho elaborado na segunda computação de dados, é que esta disciplina
metade dos anos 70, Juan César Garcia chamava adquire a autonomia que a caracteriza atualmente
a atenção para a evolução dos enfoques que se como eixo da produção de conhecimentos sobre
desenvolveram ao longo da história da Saúde problemas de saúde em uma perspectiva
Pública, comentando sua similitude com a coletiva. 20
evolução da “arte da guerra” que partia da idéia A incorporação da noção de “risco” e
inicial de “eliminação do inimigo” , oriunda da especialmente a busca de identificação dos
“guerra de movimento”, traduzida no campo “fatores de risco” envolvidos na determinação
da Saúde Pública com a noção de “erradicação”, das doenças, não só as infecto-contagiosas mas
passando pela idéia de “controle”, provinda da principalmente as crônico-degenerativas, que
“guerra de posição”, até a noção de “vigilância” passavam a ocupar um lugar predominante no
que corresponderia ao período da “guerra fria”.17 perfil epidemiológico das populações em
De fato, o desenvolvimento conceitual, sociedades industriais, 21 vem provocando a
metodológico e instrumental da Saúde Pública modernização das estratégias de ação no campo
contemporânea corresponde aos avanços da da Saúde Pública, tanto pela ampliação e
bacteriologia e parasitologia, a partir do final diversificação do seu objeto quanto pela
do Século XIX, com as descobertas que incorporação de novas técnicas e instrumentos
possibilitaram o estabelecimento de estratégias de geração de informações e organização das
de combate às doenças infeciosas e parasitárias, intervenções sobre “danos”, “indícios de danos”,
através, basicamente, de práticas que, tomando “riscos” e “condicionantes e determinantes” dos
como objeto os “modos de transmissão”, 18 problemas de saúde. 22
utilizam técnicas de controle de vetores,
Desse modo, além da ampliação do
saneamento ambiental e educação sanitária das
objeto dos “programas de controle” que tendem
populações.
a ultrapassar o limite estreito das doenças
Do ponto de vista operacional, essas infecciosas e parasitárias, dirigindo-se a grupos
estratégias apresentaram uma mutação em suas populacionais expostos a riscos diferenciados de
finalidades, dos objetivos iniciais de adoecer e morrer, a exemplo dos programas de
“erradicação” de determinadas doenças, como “saúde materno-infantil”, “saúde do
aliás veio a acontecer com a varíola e trabalhador”, “saúde do idoso”, etc., vêm se
presentemente com a poliomielite, para a observando, notadamente a partir dos anos 70,
constatação das dificuldades de erradicação de a formulação e implementação de propostas

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Carmem Fontes Teixeira e cols

dirigidas à montagem de “sistemas de difundiu a concepção sistêmica, foi proposta a


vigilância epidemiológica”, cuja tradução criação do SNVE – Sistema Nacional de
operacional pretende ser uma ampla rede de Vigilância Epidemiológica, estabelecendo-se as
unidades geradoras de dados que permitam a bases legais (Lei n° 6.259) e promovendo-se
adoção de decisões e a execução de ações de uma certa desconcentração das ações para as
investigação e controle. Secretarias de Saúde dos estados. 24 Nos anos
O desenvolvimento institucional da 80, especialmente com o SUDS, dinamizou-se
Saúde Pública no Brasil, ilustra, com algumas o debate sobre a ampliação do objeto da
particularidades, a evolução conceitual e a vigilância epidemiológica, 25 ao tempo em que
modernização tecnológica e operacional que se desencadeou uma reflexão sobre a vigilância
apontamos acima. Das campanhas sanitárias do sanitária, a partir da constatação da fragilidade
início do século (sanitarismo campanhista), aos dos órgãos nacional e estaduais responsáveis por
sistemas de vigilância epidemiológica propostos estas práticas. Isto gerou, inclusive, a reflexão
em meados dos anos 70, no contexto das políticas sobre os limites e possibilidades de “integração”
racionalizadoras desencadeadas com os institucional das “vigilâncias”, debate ainda
chamados Programas de Extensão de Cobertura- atual, na medida em que se avance para a
PECS, até o debate sobre a integração” entre a formulação e implementação de um sistema de
vigilância epidemiológica e a vigilância sanitária Vigilância da Saúde como proposto, inclusive,
na segunda metade dos anos 80, na época da em uma oficina de trabalho realizado no
implantação do SUDS. Congresso Brasileiro de Epidemiologia
realizado em 1995.26
De fato, a institucionalização dos
programas de erradicação e controle e a A fundamentação dessa proposta se
implantação da vigilância no Brasil, ao longo baseia, de um lado, nos avanços conceituais,
dos últimos 90 anos, implicou, do ponto de vista metodológicos e instrumentais no campo da
político-institucional, a organização centralizada Epidemiologia Crítica18 e, de outro, na análise
(federal) de órgãos e departamentos responsáveis do contexto político-institucional decorrente do
pelas campanhas e programas, ao tempo em que processo de construção do SUS, especialmente
se cristalizava uma distinção entre a vigilância no que se refere à descentralização das ações de
epidemiológica, voltada para o controle de vigilância da saúde para os municípios. Para
“casos” e “contatos”, e a vigilância sanitária, discutir esse processo, na perspectiva do
voltada para o controle de “ambientes, produtos município, é importante revisar, brevemente, o
e serviços”. debate atual na área, identificando as vertentes
Embora se possa considerar que do conceituais e as propostas metodológicas
ponto de vista técnico-operacional há existentes.
especificidades que justificam a existência dessas
“vigilâncias”, a primeira, a epidemiológica, 2. O debate sobre Vigilância da Saúde
obedecendo a uma racionalidade técnico- na América Latina
sanitária fundada na clínica e na epidemiologia, As distintas vertentes do debate em
e a segunda, obedecendo a uma racionalidade torno da Vigilância se expressam na utilização
político-jurídica, fundada nas normas que de variações terminológicas como “Vigilância
regulamentam a produção, distribuição e da Saúde”, “Vigilância à Saúde” e “Vigilância
consumo de bens e serviços,23 não se justificaria em Saúde”. O eixo comum é a abertura para a
a sua institucionalização como órgãos
epidemiologia,27 tanto no que diz respeito à
separados, particularmente no âmbito
sua contribuição para a análise dos problemas
municipal.
de saúde que transcenda a mera sistematização
Em meados dos anos 70, quando se de indicadores gerais, quanto no âmbito do

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SUS, Modelos Assistenciais e Vigilância da Saúde

debate sobre planejamento e organização enorme potencial que hoje encerram as técnicas
de sistemas e serviços, 28 isto é, na quantitativas para a avaliação de riscos e associações
implantação de novas práticas e novos “modelos causais, a fim de se alcançar um maior impacto na
assistenciais”. planificação e gestão dos serviços de saúde, será
necessário que a epidemiologia recupere, como espaço
As tentativas de aproximação entre a
privilegiado de investigação causal, a explicação da
epidemiologia, o planejamento e a organização
situação de saúde de grupos específicos da população
dos serviços, enquanto um “movimento”,
e avaliação de relações causais mais complexas e
organizado institucionalmente que transcende
menos lineares que as de causa-efeito”.31
o interesse e a iniciativa singular de um ou outro
pesquisador, dirigente ou técnico, ganharam Castellanos desenvolve várias
força nos anos 80, a partir dos eventos realizados considerações sobre a difusão que vinha sendo
após o Seminário sobre “Usos e perspectivas feita das “estratégias de alto risco”, derivadas
da Epidemiologia”, 29 realizado em Buenos de conhecimentos sobre os fatores de risco de
Aires. As duas temáticas, porém, ainda casos individuais de uma enfermidade, em
apareciam separadas: de um lado, a planificação contraposição à chamada “estratégia
e programação de sistemas de serviços; de outro, populacional” ou de “saúde pública”, na
a elaboração de programas dirigidos ao controle conformação dos modelos assistenciais dos
de doenças específicas, ou programas dirigidos países latino-americanos. Ainda que reconheça
a grupos populacionais específicos, nos quais certas vantagens das estratégias de “alto risco”,
se incluíam ações de promoção da saúde, chama a atenção para que estas tendem a
prevenção de agravos e recuperação. estimular o desenvolvimento de modelos
assistenciais verticais ou específicos para alguma
Já na Conferência da ALAESP - enfermidade, tais como os programas de
Associação Latinoamericana e do Caribe de erradicação e controle de doenças transmissíveis
Educação em Saúde Pública, realizada no fomentados pelas agências internacionais desde
México em l987, aparece explicitada uma análise o início do século. Entre suas deficiências, o
crítica dos processos desencadeados a partir do autor aponta que este tipo de programa contribui
Seminário de l983 , identificando-se limitações muito pouco para o desenvolvimento de serviços
no exercício da capacidade analítica da situação permanentes de saúde para a população geral,
de saúde prevalente nos países da região, ademais de ser pouco estimulante da
apontando-se a necessidade de que “ a participação popular.31
investigação e análise sistemática da situação de
saúde deve reforçar nos países a capacidade para A temática que emergiu e passou a
um maior e melhor uso dos dados de mortalidade e interessar crescentemente tanto planificadores
morbidade na identificação de prioridades e na quanto epidemiólogos interessados nas
avaliação dos resultados das ações dos programas e questões relacionadas com os serviços, na
serviços “.30 segunda metade dos anos 80, foi a dos “modelos
assistenciais”. No final da década de 80 e início
Um dos documentos básicos do da de 90, a OPS desencadeou uma reflexão
encontro abordava especificamente a coletiva em torno do MPPS - Modelo de
“Epidemiologia e organização de serviços” Prestação de Serviços de Saúde, promovendo
apontando o interesse renascente, sobretudo em reuniões específicas sobre os distintos
centros de investigação e ensino, no “componentes” deste modelo segundo a
desenvolvimento de estudos de grupos concepção já clássica dos níveis de prevenção
específicos de população, buscando-se oriundos da Medicina Preventiva: Promoção da
evidenciar as relações entre condições de vida e Saúde (julho de 1990), Prevenção de
trabalho com a situação de saúde. O autor, Pedro Enfermidades (fevereiro de 1990) e
Luis Castellanos, sugere que “para recuperar o Recuperação (setembro de 1989). Uma das

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conclusões mais importantes desses encontros de serviços viesse a suplantar as ações dirigidas
foi a constatação de quão pouco desenvolvidos ao atendimento da chamada “demanda
se encontravam, nos diversos países, os espontânea”, bem como as ações realizadas a
componentes de Promoção (praticamente partir da implantação dos chamados “programas
inexistente) e o de Prevenção (restrito na especiais” dirigidos a grupo populacionais
maioria das vezes aos programas tradicionais específicos (Figura 2). 4 A “organização da
da Saúde Pública, inclusive as ações de oferta” ou “oferta programada” seria o espaço
Vigilância epidemiológica e sanitária).32 de articulação do enfoque epidemiológico, na
3. As vertentes do debate sobre medida em que a programação e execução das
Vigilância da Saúde no Brasil ações e serviços deveria partir da identificação
dos problemas e necessidades da população em
No Brasil, o debate sobre a articulação territórios delimitados, a exemplo do que vinha
entre a epidemiologia, o planejamento e a ocorrendo em vários Distritos Sanitários em
organização dos serviços foi contemplado
processo de implantação.
durante o II Congresso Brasileiro de
Epidemiologia realizado em Belo Horizonte, A preocupação com a construção de um
em 1992. Nesta ocasião, Guilherme Rodrigues modelo assistencial que articulasse os
da Silva chamou a atenção para a importância conhecimentos e técnicas provindos da
do modelo proposto por Castellanos (1992) para epidemiologia, do planejamento e das ciências
a análise da situação de saúde e suas tendências sociais em saúde se expressou na utilização do
na população, destacando a ênfase concedida
termo “vigilância à saúde”, definindo-se que esta
pelo autor à reprodução social das condições de
“trabalha com conceituação ampla do papel da
vida e seu reflexo como problemas de saúde.
Acrescenta que “seria da maior conveniência a epidemiologia nos serviços de saúde, incluindo
sua ampliação na análise da implementação de avaliação e pesquisa.” (...) e, “em suas propostas
programas e reformas dos sistemas de serviços, numa de ação, deve apreender a desigualdade social e
perspectiva diferente daquela predominante nas portanto a distribuição desigual de agravos à saúde.
análises da realidade nacional”.33 Essa apreensão representa um deslocamento da sua
base conceitual, do exclusivo controle e/ou
A possibilidade de que análises mais
erradicação dos agentes para a compreensão das
abrangentes da situação de saúde conduzissem
a propostas de reorganização dos serviços é relações sociais que definem a desigualdade”.34
discutida por Paim, com base em um diagrama Já no terceiro Congresso de
que ilustra o processo de transição para um novo Epidemiologia, aparece a distinção entre uma
modelo assistencial, no qual a oferta organizada concepção "ampla" e outra "restrita" da
Figura 2 - Diagrama de transição para o novo modelo assistencial
Modelo anterior Novo modelo
ao SUDS assistencial

OFERTA ORGANIZADA

DEMANDA ESPONTÂNEA

PROGRAMAS ESPECIAIS

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SUS, Modelos Assistenciais e Vigilância da Saúde

Vigilância da Saúde.26 A concepção "restrita" com as características da situação epidemiológica


entende por Vigilância à Saúde, um conjunto de do agravo ou da doença objeto de vigilância e
ações voltadas para o conhecimento, previsão, também de acordo com o grau de desenvolvimento,
prevenção e enfrentamento continuado de problemas disponibilidade de recursos e capacidade técnico-
de saúde, selecionados e relativos aos fatores e operacional das diferentes áreas geográficas".
condições de risco, atuais e potenciais, e aos acidentes, Percebe-se, portanto, a emergência de uma
incapacidades, doenças- incluindo as zoonoses, e concepção flexível, heterogênea, baseada na
outros agravos à saúde de uma população num própria heterogeneidade epidemiológica e
território determinado”, significando, portanto, sanitária existente no país.25
uma ampliação da vigilância epidemiológica,
A proposta de descentralização das
com incorporação da vigilância sanitária, sem,
ações de vigilância, partindo da análise crítica
entretanto, prever a reorganização do conjunto
do sistema vigente, considerado "burocratizado",
das ações e serviços de atenção à saúde, aí
ganha forma na primeira metade dos anos 90,
incluídas a intervenção sobre determinantes
quando se chegou a formular, inclusive, uma
sociais, de um lado, e a assistência médico-
proposta de criação de "Centros de
hospitalar, de outro.
Epidemiologia a nível local/regional" bem como
Por seu turno, a concepção ampliada a constituição de uma " estrutura estadual de
fundamentar-se-ia no diagrama proposto por controle de vetores e ações sobre o meio", devendo
Paim (Figura 3) , “resgatando o desenvolvimento " ser buscado o objetivo de promover a
conceitual e metodológico que se vem verificando a municipalização das ações, através do estímulo ao
partir de uma visão ampliada de Saúde e da desenvolvimento, nos municípios, de capacidade
formulação de modelos de interpretação dos técnica e operacional de controle de vetores e ações
determinantes, riscos, agravos e danos, à luz da sobre o ambiente".35
moderna Epidemiologia, articulando-os em um
esquema operacional que resgata e amplia o modelo Em 1995, a proposta de organização
clássico da História Natural das Doenças, de um "subsistema de Vigilância da Saúde no
incorporando desde as ações sociais organizadas pelos SUS" ganha contornos mais definidos, com o
distintos atores até as ações específicas de prevenção debate em torno de um anteprojeto de lei que
de riscos e agravos, bem como as de recuperação e define os objetivos e atribuições de cada nível
reabilitação de doentes.” do SUS. Cabe ressaltar que a proposta suscitou
questionamentos sobre "os riscos de se reduzir um
Paralelamente ao debate conceitual e rico e dinâmico processo social, que envolve múltiplos
metodológico, desenvolveu-se uma reflexão
atores, em contextos diferenciados, com
sobre a organização das ações de vigilância no
experimentação de métodos, técnicas e instrumentos
âmbito do SUS, contemplando aspectos
diversificados, necessariamente aberto e pouco
político-institucionais e operativos. 25,35 Já em
previsível, a um "sistema" que pode tender a se colocar
1990, discutia-se que “ a reorganização das
como uma "camisa-de-força".26
atividades de vigilância epidemiológica no país, na
perspectiva de um sistema único de saúde, deve levar Pelo exposto até aqui, percebe-se que o
em consideração a redefinição das funções próprias debate atual sobre a Vigilância da Saúde
de cada um dos três níveis básicos deste sistema: o apresenta algumas vertentes, que poderiam ser
nível local, abrangendo um ou mais municípios, sintetizadas como segue:
parte de um município e compreendendo um
a) Vigilância da Saúde equivalendo a
conjunto de unidades prestadoras de serviços; o
Análise de Situações de Saúde. Ainda que
intermediário ou estadual e o nível nacional.”
ampliando e redefinindo o objeto de análise -
Chamava-se a atenção, inclusive, para situações de saúde de grupos populacionais
que “o papel de cada nível poderá variar de acordo definidos em função de suas condições de vida,

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Figura 3 - Diagrama de Vigilância da Saúde

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esta acepção restringe o alcance da proposta ao “uma prática que organiza processos de trabalho
monitoramento da situação de saúde, não em saúde sob a forma de operações, para confrontar
incorporando as ações voltadas ao problemas de enfrentamento contínuo, num
enfrentamento dos problemas. Do ponto de vista território delimitado (...) através de operações
da prática epidemiológica em serviços tem montadas sobre os problemas em seus diferentes
significado uma ampliação dos objetos de períodos do processo saúde-doença. 3
vigilância epidemiológica, que passam a abarcar
Percebe-se que a primeira definição chama
não apenas as doenças transmissíveis,
a atenção para o objeto da vigilância, concebido
incorporando investigações e montagem de na perspectiva das relações entre os modos de
bancos de dados sobre outros agravos como vida dos distintos grupos populacionais e as
mortalidade infantil, materna, doenças crônicas, diversas expressões do processo saúde-doença.
acidentes e violência, como também aspectos A segunda, por sua vez, destaca os meios de
relativos à organização e produção dos serviços trabalho, isto é, os métodos, técnicas e
de saúde, contribuindo para um planejamento instrumentos gerenciais necessários para a
de saúde mais abrangente.36,37 operacionalização das práticas de vigilância da
b) Vigilância da Saúde como proposta saúde. Poderíamos acrescentar que tais práticas
de “integração” institucional entre a Vigilância também diferem das ações tradicionais de
epidemiológica e a Vigilância sanitária, vigilância epidemiológica e sanitária ao
inicialmente no âmbito do processo de apontarem a possibilidade de incorporação de
descentralização das ações para os órgãos outros sujeitos, gerentes de serviços, técnicos e
estaduais (SES) e, atualmente, inserindo-se no representantes de grupos organizados da
processo de municipalização. Esta vertente se população.
concretizou em várias das reformas Comparando esta concepção de
administrativas levadas a cabo pelas Secretarias Vigilância da Saúde com os modelos assistenciais
Estaduais de Saúde na primeira metade dos anos vigentes (médico-assistencial e sanitarista,
90, com a criação de Departamentos de hegemônicos) constatam-se as diferenças com
Vigilância da Saúde, resultando, em alguns relação aos sujeitos, objeto , métodos e forma
casos, no fortalecimento das ações de vigilância de organização dos processos de trabalho
sanitária e articulação com centros de saúde do (Figura 4). Enquanto o modelo médico-
trabalhador, constituindo-se, entretanto, no assistencial privilegia o médico, tomando como
espaço privilegiado para a implementação das objeto a doença, em sua expressão
campanhas de imunização e programas de individualizada e utiliza como meios de trabalho
controle de epidemias e endemias. os conhecimentos e tecnologias que permitem
o diagnóstico e a terapêutica das diversas
c) Vigilância da Saúde como uma
patologias, o modelo sanitarista tem como
proposta de redefinição das práticas sanitárias,
sujeitos os sanitaristas, cujo trabalho toma por
havendo duas concepções, que, embora não
objeto os modos de transmissão e fatores de risco
sejam divergentes, enfatizam aspectos distintos:
das diversas doenças em uma perspectiva
uma, que privilegia a dimensão técnica, ao
epidemiológica, utilizando um conjunto de
conceber a vigilância à saúde enquanto um
meios que compõem a tecnologia sanitária
modelo assistencial alternativo conformado por
(educação em saúde, saneamento, controle de
um conjunto de práticas sanitárias que encerram
vetores, imunização, etc.)
combinações tecnológicas distintas, destinadas
a controlar determinantes, riscos e danos4; outra A Vigilância da Saúde, todavia, propõe
que privilegia a dimensão gerencial da noção a incorporação de novos sujeitos, extrapolando
de vigilância à saúde, caracterizando-a como o conjunto de profissionais e trabalhadores de

IESUS, VII(2), Abr/Jun, 1998. 17


Carmem Fontes Teixeira e cols

Figura 4 - Modelos Assistenciais e Vigilância da Saúde

Modelo Sujeito O b jet o Meios de Trabalho Formas de Organização


Modelo Médico Doença Tecnologia médica Rede de serviços de saúde
médico- . especialização (patologia e outras) (indivíduo) Hospital
assistencial . complementariedade Doentes
privatista (paramédicos) (clínica e cirurgia)

Modelo Sanitarista Modos de Tecnologia sanitária Campanhas sanitárias


sanitarista - auxiliares transmissão Programas especiais
Fatores de risco Sistemas de vigilância
epidemiológica e sanitária
Vigilância Equipe de saúde Danos, riscos, Tecnologias de Políticas públicas saudáveis
da saúde População (cidadãos) necessidades e comunicação social, de Ações intersetoriais
determinantes dos planejamento e Intervenções específicas
modos de vida e programação local (promoção, prevenção e
saúde (condições de situacional e recuperação)
vida e trabalho) tecnologias médico- Operações sobre problemas e
sanitárias grupos populacionais

saúde ao envolver a população organizada, o Em síntese, a Vigilância da Saúde


que corresponde à ampliação do objeto, que apresenta sete características básicas:
abarca, além das determinações clínico- a) Intervenção sobre problemas de saúde,
epidemiológicas no âmbito individual e coletivo, (danos, riscos e/ ou determinantes); b) Ênfase
as determinações sociais que afetam os distintos em problemas que requerem atenção e
grupos populacionais em função de suas acompanhamento contínuos; c) Opera-
condições de vida. Nessa perspectiva, a cionalização do conceito de risco; d) Articulação
intervenção também extrapola o uso dos entre ações promocionais, preventivas e
conhecimentos e tecnologias médico-sanitárias curativas; e) Atuação intersetorial; f) Ações sobre
e inclui tecnologias de comunicação social que o território; g) Intervenção sob a forma de
estimulam a mobilização, organização e atuação operações.
dos diversos grupos na promoção e na defesa
A Vigilância da Saúde corresponderia,
das condições de vida e saúde.
assim, a um modelo assistencial que incorpora
As formas de organização dos processos e supera os modelos vigentes, implicando a
de trabalho envolvidas em cada um desses redefinição do objeto, dos meios de trabalho,
modelos são diversas. Do trabalho intensivo das atividades, das relações técnicas e sociais,
condensado na rede de prestação de serviços de bem como das organizações de saúde e da cultura
saúde, cujo locus privilegiado no modelo médico- sanitária. Nessa perspectiva, aponta na direção
assistencial é o hospital, passa-se, no modelo da superação da dicotomia entre as chamadas
sanitarista, para as unidades de saúde, a partir práticas coletivas (vigilância epidemiológica e
das quais se operacionalizam as campanhas, sanitária) e as práticas individuais (assistência
programas e ações de vigilância epidemiológica ambulatorial e hospitalar) através da
e sanitária. A proposta de Vigilância da Saúde, incorporação das contribuições da nova
entretanto, transcende os espaços institu- geografia, do planejamento urbano, da
cionalizados do “sistema de serviços de saúde” epidemiologia, da administração estratégica e
e se expande a outros setores e órgãos de ação das ciências sociais em saúde, tendo como
governamental e não governamental, envolvendo suporte político-institucional o processo de
uma trama complexa de entidades representativas descentralização e de reorganização dos serviços
dos interesses de diversos grupos sociais. e das práticas de saúde ao nível local.

18 IESUS, VII(2), Abr/Jun, 1998.


SUS, Modelos Assistenciais e Vigilância da Saúde

A operacionalização da vigilância da capacitação de pessoal e cooperação técnica


saúde no município previstas no VIGISUS, a possibilidade de
Várias propostas e recomendações assessoria por parte das SES e instituições
específicas visando à criação de condições para acadêmicas, o município é posto diante do
a operacionalização da vigilância da saúde têm desafio de reorientar o conjunto de ações e
sido feitas em vários encontros, seminários e serviços desenvolvidos no sistema municipal de
congressos realizados nos últimos anos, valendo saúde, quais sejam: a) Assumir e consolidar a
a pena ressaltar duas questões centrais: a Vigilância epidemiológica; b) Assumir e
capacitação de pessoal para o exercício das consolidar a Vigilância sanitária; c) Assumir e
atividades de vigilância, na perspectiva ampliada implementar os programas de saúde da família;
que foi sendo construída, e o aperfeiçoamento d) Reorganizar o perfil de oferta das unidades
dos sistemas de informação visando à expansão básicas, considerando os programas especiais e
das bases de dados, à qualidade das informações o perfil epidemiológico da população;
e à articulação entre os diversos subsistemas, e) Articular a atenção de média e alta
inclusive os derivados da atenção médico- complexidade, fortalecendo a rede pública e
hospitalar. renegociando a compra de serviços ao setor
privado; f) Redefinir a assistência laboratorial e
A primeira questão foi objeto de uma
farmacêutica.
proposta elaborada sob patrocínio do CENEPI,
tratando de superar o modelo pedagógico dos Levando em conta a heterogeneidade
cursos de epidemiologia realizados no início dos das situações dos municípios, mais do que
anos 90 e incorporando a metodologia de implementar as propostas e diretrizes emanadas
planejamento estratégico situacional, para a do nível federal e estadual, o desafio maior para
formação e capacitação em vigilância da saúde.38 os prefeitos e secretários municipais de saúde é
A segunda questão foi objeto das duas definir a linha com que vão conduzir a política
outras Oficinas de Trabalho realizadas em de saúde municipal articulando distintos
Congressos de Epidemiologia, nas quais foram elementos gerenciais, financeiros,
sistematizadas várias recomendações: programáticos, organizativos e operacionais.
a) elaboração de propostas de padronização e
Adotar a concepção ampliada de
compatibilização dos principais bancos de dados
Vigilância da Saúde, visando à transformação
nacionais; b) elaboração de estratégia para a
do modelo de atenção à saúde ao nível
capacitação em larga escala de recursos humanos
em nível municipal, estadual e federal, para a municipal, implica, em primeiro lugar, avançar
utilização dos bancos de dados existentes no processo de municipalização da gestão do
preparando-os para análise, planejamento e sistema e da gerência das unidades de saúde
avaliação de saúde, com a finalidade de utilizar localizadas no território dos municípios. Em
a informação para a tomada de decisões; segundo lugar, implica investir na articulação
c) construção de uma Base Mínima de Dados intersetorial, na reorganização da atenção
Municipais (BMIM), integrando na mesma primária (oferta organizada e ações de promoção
unidade geográfica informações demográficas, da saúde e prevenção de riscos e agravos,
socioeconômicas e epidemiológicas necessárias partindo dos territórios da “saúde da família”,
para o gerenciamento do SUS.39,40 aos territórios distrital e municipal) e no
fortalecimento do controle social sobre a gestão
No momento atual, a elaboração de
do sistema de saúde.
propostas de operacionalização da vigilância
toma como eixo central o processo de Trata-se, portanto, de desencadear um
municipalização. Considerando os incentivos processo de construção das práticas de Vigilância
financeiros previstos na NOB 96, as ações de da Saúde, tendo como eixo central o trinômio

IESUS, VII(2), Abr/Jun, 1998. 19


Carmem Fontes Teixeira e cols

"informação-decisão-ação",41 que se traduz através de "estimativa rápida" com "informantes-


do ponto de vista técnico-operacional, no uso chave", cruzando estas informações com os
de métodos/técnicas de planejamento que dêem mapas elaborados anteriormente. 45
suporte ao processo de identificação e
O processamento das informações e a
priorização de problemas de grupos
sua projeção em mapas permite a identificação
populacionais de territórios delimitados e à
de vários territórios superpostos no âmbito do
articulação de operações integradas de
município. Assim é que as experiências de
promoção, prevenção, recuperação e
distritalização em curso permitiram que se
reabilitação destinadas ao enfrentamento
avançasse para a identificação do "território
contínuo dos problemas selecionados. distrito" (ou município, caso este corresponda
O ponto de partida para o a um DS), cuja base é geográfico-populacional,
desencadeamento do processo de planejamento configurada segundo a distribuição da
da vigilância à saúde é a Territorialização população nos vários aglomerados urbanos
do sistema municipal de saúde, isto é, o (bairros, favelas, invasões, etc.), ao qual se
reconhecimento e o esquadrinhamento do superpõe o "território área de abrangência das
território do município segundo a lógica das unidades de saúde", delimitadas em função da
relações entre condições de vida, saúde e acesso demanda aos serviços. Em seguida, é possível
às ações e serviços de saúde. Isto implica um delimitar as "microáreas" em função das
processo de coleta e sistematização de dados condições de vida e mapear os principais
demográficos, socioeconômicos, político- problemas que atingem grupos populacionais e
culturais, epidemiológicos e sanitários que, até grupos de famílias específicos em
posteriormente, devem ser sistematizados de determinadas ruas e bairros (Figura 5).
modo a se construírem o mapa básico e os O propósito fundamental desse processo
mapas temáticos do município.42,43,44,45 de territorialização é permitir a definição de
Um mapa básico contém a delimitação prioridades em termos de problemas e grupos,
territorial do município, com o desenho da o mais aproximadamente possível, o que se
configuração urbano-rural, ou seja, a refletirá na definição das ações mais adequadas,
delimitação dos distritos, bairros, ruas, de acordo com a natureza dos problemas
contemplando o adensamento demográfico da identificados, bem como na concentração de
população. Os mapas temáticos implicam, em intervenções sobre grupos priorizados e,
primeiro lugar, localização espacial dos seviços conseqüentemente, em um maior impacto
de saúde e outros equipamentos sociais, como positivo sobre os níveis de saúde e as condições
creches, escolas, igrejas, etc., com a delimitação de vida. Trata-se do uso inteligente da
das vias de acesso da população aos serviços, o epidemiologia, através da "microlocalização dos
que já dá uma idéia dos fluxos de demanda às problemas de saúde, a intervenção no âmbito
diversas unidades de saúde do município. Em populacional pautada no saber epidemiológico
segundo lugar, deve-se fazer a caracterização e a apropriação de informações acerca do
dos diversos grupos populacionais do município território-processo, visando à integralidade, à
segundo suas condições de vida, o que intersetorialidade, à efetividade e à eqüidade".3
permitirá a justaposição do mapa básico com o Uma vez que se conte com a
mapa temático dos serviços de saúde e o mapa territorialização do município em função das
temático das condições de vida. Finalmente, é condições de vida e saúde, enquanto parte da
necessário fazer a distribuição espacial dos análise da situação de saúde, é possível dar
principais problemas de saúde, identificados em seguimento ao processo de planejamento e
função de informações epidemiológicas programação local que não se esgota na mera
extraídas de bancos de dados oficiais ou obtidas racionalização da oferta de serviços

20 IESUS, VII(2), Abr/Jun, 1998.


SUS, Modelos Assistenciais e Vigilância da Saúde

Figura 5 - Territorialização dos Problemas e das Ações de Saúde no Município

ambulatoriais e hospitalares, tal como ocorreu localizam famílias em condições de vida


na maioria dos estados durante o primeiro precárias, em uma área de abrangência de uma
movimento da Programação Pactuada Integrada Unidade de Saúde ou no município como um
– PPI. Sem negar a importância da utilização todo.
do planejamento como instrumento de
racionalização, a construção da Vigilância da Planejar a partir da identificação,
Saúde exige a utilização de um enfoque mais descrição e análise dos determinantes sociais dos
abrangente, situacional, que incorpore como problemas de saúde implica a definição dos
objeto de intervenção os problemas de saúde e objetivos, metas, ações e atividades que serão
seus determinantes.46,47 realizadas para o enfrentamento dos problemas
de saúde identificados e priorizados na área,
Nessa perspectiva, o planejamento e a com o estabelecimento dos responsáveis, prazos
programação não se resumem a uma simples e recursos envolvidos.Do ponto de vista
técnica que pode ser reproduzida em qualquer
metodológico, o planejamento e programação
circunstância de tempo ou lugar, senão que
situacional em saúde tem-se fundamentado na
envolve sujeitos dotados de vontade política, o
chamada “trilogia matusiana” – o PES, o MAPP
que significa dizer que podem ser não apenas
e o ZOOP, 49,50 originando propostas de
instrumentos de manutenção de uma
determinada situação, mas também podem ser Planejamento e programação local – PPLS
instrumentos de mudança e de transformação orientadas para a operacionalização da
desta situação.48 Não se trata de fazer tudo que Vigilância da Saúde.
é possível tecnicamente, e sim aquilo que é O que importa ressaltar é que, com a
necessário para dar conta dos Problemas reais utilização desse enfoque, o município pode
existentes na população de um determinado construir uma “árvore de problemas” ou um
território, seja este uma microárea onde se “fluxograma situacional” para sistematizar as

IESUS, VII(2), Abr/Jun, 1998. 21


Carmem Fontes Teixeira e cols

informações acerca dos problemas de saúde, dos municípios e da elevação da sua capacidade
subsidiando assim um processo de tomada de técnico-operacional de planejamento,
decisões com relação ao “que fazer” para programação, controle gerencial e
enfrentá-los. Essa decisões contemplam uma operacionalização de ações voltadas ao
“árvore de objetivos” dos quais derivam as enfrentamento dos problemas de saúde em seu
ações a serem realizadas nos territórios território faz parte, sem dúvida, do processo de
considerados em uma perspectiva intersetorial. reconstrução do Estado no momento atual. Para
Ou seja, as ações e serviços a serem os municípios significa, concretamente, a
desenvolvidos não se restringem àqueles que já possibilidade de, a partir das iniciativas em
são tradicionalmente ofertados pelas unidades Saúde, reestruturarem a gestão Municipal em
de saúde, envolvendo um esforço adicional de seu conjunto, em uma perspectiva democrática,
mobilização e articulação de outros órgãos participativa, tecnicamente competente e
governamentais e não governamentais que gerencialmente eficiente e efetiva.
atuam na área, inclusive a mobilização e Na perspectiva técnica da
envolvimento dos indivíduos, das famílias e das implementação da vigilância da saúde, a
coletividades que vivem e trabalham neste local. metodologia do planejamento e programação
O conjunto das ações e serviços poderia ser aplicada em distintos momentos com
definidos para o enfrentamento dos problemas a seguinte seqüência lógica:
selecionados constituem as Operações a serem
a) análise da situação de saúde;
implementadas, segundo uma lógica que
b) desenho de situação-objetivo;
privilegie, não a organização de estruturas
burocráticas para administrar os recursos c) desenho das estratégias;
humanos e materiais envolvidos e sim na d) programação, acompanhamento e avaliação.
perspectiva de flexibilização gerencial (por Para os municípios pequenos e médios
projetos) que implica a reorganização de equipes que decidam apostar na construção dessa
de trabalho e gerenciamento descentralizado e proposta, alguns passos podem ser sugeridos para
modular,51,52 privilegiando-se o controle gerencial sua implantação e operacionalização:
e social do processo de implementação das ações.
a) sensibilizar técnicos para desencadear
Do ponto de vista do seu conteúdo, as a construção da proposta no âmbito
Operações definidas no âmbito do município institucional;
poderão incorporar desde ações políticas, de b) compor uma equipe mínima (dois ou
mobilização social no âmbito de organizações três técnicos) capaz de reunir material
governamentais e não governamentais, até ações bibliográfico e técnico sobre vigilância da saúde
de saúde propriamente ditas, envolvendo a e de se articular com especialistas da Secretaria
educação sanitária e comunicação social Estadual, de universidades e do Ministério da
dirigidas a grupos específicos em função da Saúde;
distribuição social dos problemas de saúde, a c) assumir esta equipe mínima enquanto
ações de vigilância epidemiológica, sanitária, um “grupo organizado para a ação” em vez de
nutricional, até serviços de assistência direta a investir, inicialmente, na organização de uma
pessoas, ao nível ambulatorial e hospitalar. Cabe estrutura ou órgão (departamento, divisão, setor,
ressaltar a necessidade de adequação das ações serviço, etc.);
propostas aos determinantes e condicionantes d) estimular o entrosamento deste grupo
dos problemas, bem como às suas expressões com técnicos responsáveis por programas e
fenomênicas (riscos e danos). serviços afins aos modelo de vigilância da saúde
O desencadeamento de um processo de no município, a exemplo do PACS/PSF,
fortalecimento da autonomia político-gerencial vigilância epidemiológica, vigilância sanitária,

22 IESUS, VII(2), Abr/Jun, 1998.


SUS, Modelos Assistenciais e Vigilância da Saúde

saúde ambiental, saúde ocupacional, programas e de atuação dos diversos órgãos


especiais de controle de doenças e agravos, etc.; governamentais e não governamentais, para que
e) garantir a capacitação e educação se possa ter “visão estratégica”, isto é,
permanente da equipe inicial e programar o clareza sobre o que é necessário e possível de
desenvolvimento de recursos humanos para a ser feito.
expansão do modelo;
Exige também uma disponibilidade e
f) reunir e sistematizar as informações
um interesse muito grande em se envolver um
disponíveis para identificar e priorizar os
uma ação comunicativa, isto é, em participar
problemas de saúde que justificam um
de um diálogo permanente com os
acompanhamento e atenção contínuos (ver
representantes destes órgãos, com os represen-
planos municipais de saúde, anuários estatísticos
tantes dos grupos sociais existentes e com as
de base municipal. Bases de dados
pessoas, de um modo geral, buscando envolvê-
disponibilizados pelo MS, etc.);
las em um trabalho coletivo cujo propósito maior
g) planejar e programar as operações
é a reestruturação da ação coletiva em defesa da
(setoriais e intersetoriais) para enfrentamento
Saúde e da melhorias das condições de vida. Os
continuado dos problemas selecionados,
saberes de planificação e a tecnologia de gestão
incluindo a montagem do sistema de
disponíveis representam ferramentas
informações em saúde;
significativas para a construção coletiva dessa
h) montar uma gerência de operações e
proposta. 53
de projetos para execução, acompanhamento e
avaliação dos mesmos. Finalmente, cabe considerar certos
limites da reorganização das práticas sanitárias
Comentários finais
na perspectiva da vigilância da saúde. O
A opção por determinado modelo de primeiro ponto a destacar é a preocupação com
atenção não está isenta de finalidades e valores, a questão da mudança das condições de saúde,
explícitas ou implícitos. Um mesmo rótulo ou de melhorar o nível de saúde da população. A
proposta pode expressar-se, concretamente, em preocupação com o impacto nas experiências
práticas distintas. De um modo ou de outro, tal de implantação do modelo assistencial da
proposta será aquilo que, em cada situação vigilância da saúde não significa apenas um viés
concreta, os sujeitos sociais, submetidos a sanitarista. É, particularmente, político. O
determinadas relações econômicas, políticas e segundo ponto a ressaltar é a necessidade de
ideológicas, conseguirem imprimir da marca contextualização, de modo que o modelo seja
dos seus projetos. entendido como racionalidade e não como
O essencial, nos parece, todavia, é que receita, prescrição normativa. Examinar,
a adoção da perspectiva da Vigilância da Saúde, concretamente, o processo político em que está
enquanto eixo da reorientação do modelo inserido. Trata-se de superar as dificuldades em
assistencial do SUS, aponta caminhos para a trazer a questão do poder ao se discutir vigilância
superação da crise do sistema de saúde que levam da saúde.
em conta a realidade de cada município, tanto
Temos a obrigação de contextualizar
do ponto de vista político e cultural, quanto do
nosso discurso, de ver o que está acontecendo
ponto de vista social, epidemiológico e sanitário.
com a realidade na qual nos inserimos. Estamos
Planejar e programar o desenvolvimento vivendo processos políticos muito importantes
da Vigilância da Saúde em um território ao nível nacional, inclusive na área de vigilância.
específico exige um conhecimento detalhado das A direção do Centro Nacional de Epidemiologia
condições de vida e trabalho das pessoas que aí tem mudado diversas vezes. Que compromissos
residem, bem como das formas de organização este centro tinha com a proposta de vigilância

IESUS, VII(2), Abr/Jun, 1998. 23


Carmem Fontes Teixeira e cols

da saúde? Quais os que pretende ter agora? preocupação com o impacto sobre o estado
Quais foram os motivos que levaram a essas de saúde da população e a situação
mudanças? Seriam técnicos? Que repercussões epidemiológica, isto é, com o impacto sobre
podem ser esperadas para a epidemiologia e para os danos, riscos e os determinantes das
o campo da Saúde Coletiva? Será que a análise necessidades sociais de saúde. Isto significa
da situação de saúde fundamenta a prioridade a possibilidade de reconceituação do objeto das
que parece se conceder a certos problemas de práticas de saúde e, por conseguinte, a
saúde? formulação de indagações sobre a pertinência,
consistência ou eficácia dos meios de trabalho
Assim, é pertinente considerar a e do trabalho propriamente dito utilizados para
questão do poder para analisar a viabilidade da a apreensão e/ou transformação desse objeto.
implantação e expansão da vigilância da saúde
nos estados e, especialmente, nos municípios. O processo de distritalização
A reorganização das práticas de saúde representa (especialmente quando os distritos sanitários
uma possibilidade teórica e um dos possíveis valorizam a dimensão técnica dos modelos
históricos da reorientação de sistemas de saúde. assistenciais) e as ações programáticas de saúde,
Insere-se na "região" dos modelos assistenciais, no âmbito local, podem alimentar, ao nível dos
entendidos como combinação de tecnologias serviços de saúde, os movimentos de redefinição
acionadas para o enfrentamento de problemas de práticas, inclusive na perspectiva da
(danos e riscos) e necessidades de saúde vigilância da saúde. Na medida em que se
(incluídas as carências e problemas, mas, processa, no âmbito dos serviços, a
também, oportunidades e projetos de vida reconceitualização do objeto das práticas de
saúde e, quando for o caso, a reorganização do
pessoal ou de classe dos sujeitos sociais).
processo de trabalho dos agentes e a readequação
Seguramente, outros projetos estão em curso,
dos instrumentos do trabalho (sejam tecnologias
competindo ou até mesmo dominando a
materiais ou não materiais), importa indagar
vigilância da saúde que formulamos,
se tais fatos, ao serem produzidos, geraram
implementamos, acreditamos ou apostamos.
acumulações que impactaram a situação de
Esta reorganização das práticas de saúde e em que tempos político e técnico.
saúde pode envolver a recomposição dos meios
Por que insistir nessas questões? Porque
de trabalho, a reestruturação das atividades
essas idéias que estamos trazendo,
(trabalho propriamente dito) dos agentes,
desenvolvendo e debatendo - que não são,
e a redefinição das relações sociais e técnicas
necessariamente, novas, têm a ver com a
sob as quais se realiza o processo de trabalho.
possibilidade de que elas se construam e se
Cada uma dessas modificações pode ser
constituam em novas realidades pela práxis dos
estimulada pela identificação de novos problemas
sujeitos sociais. A preocupação do quanto se
ou necessidades de saúde, bem como elaboração
possa ou se deva gerar poder para poder
de conceituações distintas acerca do objeto
continuar atuando é fundamental. Se não
dessas práticas. " Habitus " ou culturas
pretendemos que essas experiências
organizacionais podem também potencializar ou
permaneçam como “estudo piloto” precisamos,
neutralizar esses movimentos de reorganização
urgentemente, torná-las hegemônicas no sentido
das práticas.
gramsciano. Sermos capazes de imprimir uma
A operacionalização dessas idéias direção cultural e uma direcionalidade prática
supõe identificar novas maneiras de pensar o no cotidiano para o nosso projeto. Mesmo sem
processo de trabalho em saúde. Portanto, ser voluntaristas, temos que estar atentos para
independentemente das diversas concepções os movimentos do xadrez político no sentido
acerca da vigilância, é possível destacar a de construir viabilidade para tal projeto na

24 IESUS, VII(2), Abr/Jun, 1998.


SUS, Modelos Assistenciais e Vigilância da Saúde

perspectiva da Reforma Sanitária como resposta de São Paulo, HUVITEC/CIS, São Paulo
criativa à contra-reforma que nos estão fazendo – Salvador, 1995.
engolir como se fora a única saída. 7. Marinho de Souza MF, Kalighman AO.
Não adianta muito insistirmos nas Vigilância à Saúde: Epidemiologia,
lembranças dos espaços de trabalho conquistados Serviços e Qualidade de Vida. In :
nos governos que possibilitaram essas inovações Rouquayrol, MZ, Epidemiologia &
conceituais e técnicas. Os que chegaram depois Saúde, 4ª ed., MEDSI, Rio de Janeiro, p.
todos conhecemos, especialmente o pavor deles 467-476, 1994.
diante do novo. Estas são questões muito concretas 8. BRASIL, Ministério da Saúde. 10ª
que nós precisamos debater. Perguntarmo-nos Conferência Nacional de Saúde, Anais.
sempre em que medida essas práticas inovadoras Brasília, DF, 1996.
que estamos construindo conseguem, efetivamente,
criar poder para poder fazer melhor as coisas. 9. Carta de Fortaleza. Saúde em Debate
42:77-78, 1995.
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da Reforma do Aparelho de Estado. Brasília, Salvador, Bahia, p. 151-183, 1986.
Presidência da República, Imprensa
Nacional, 1995. 13. BRASIL, Ministério da Saúde, CENEPI.
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