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Uma Agenda para a Saúde - Eugênio Vilaça Mendes.

São Paulo: Ed. Hucitec, 1996


300 páginas

Carmen Fontes Teixeira


Instituto de Saúde Coletiva - UFBA

O novo livro de Eugênio da crise da saúde, destacan- junto de medidas de conten-


Vilaça Mendes, lançado apro- do seu caráter universal, sis- ção de custos do sistema Em
priadamente durante a X Con- tematizando as correntes ex- seguida, analisa a reforma do
ferência Nacional de Saúde, plicativas e as propostas de sistema de saúde e dos ser-
é um convite à reflexão e à reforma do setor que cada viços sociais no Canadá, des-
prática em torno de uma uma destas correntes funda- tacando suas particularidades
agenda de questões que es- menta. Nessa perspectiva, técnicas e políticas, como: o
truturam os desafios e opor- discute as reformas sanitári- reconhecimento e respeito
tunidades para a consolida- as na Europa, caracterizando aos direitos dos cidadãos; a
ção do Sistema Único de os modelos e tendências que reorganização dos serviços de
Saúde. Resultado da obser- se estão configurando em modo a adaptá-los às neces-
vação e análise de experiên- vários países, quais sejam: a sidades dos usuários; a ga-
cias internacionais e, princi- introdução de princípios de rantia de serviços próximos
palmente, de uma extraordi- mercado no Sistema de Saú- às residências; a melhoria da
nária vivência da realidade de, com o objetivo de indu- atenção por meio do acolhi-
brasileira, durante os onze zir a competitividade e au- mento, da ajuda e do trata-
anos em que o Autor traba- mentar a eficiência e eficácia; mento personalizado por
lhou na OrganizaçãoPanamericanaode deslocamento da ênfase so-
Saúde, o livro pessoal dedicado; a aproxi-
reúne informações, sistema- bre o controle de recursos e mação do processo decisório
tiza estudos e apresenta pro- processos para a preocupa- à ação, colocando-se o cida-
ção comsem
postas cujo significadopolítico-estratégicocontribui, resultados; a articu- dão no centro das decisões
lugar a dúvidas, para a am- lação entre os níveis de aten- sobre saúde e bem-estar co-
pliação e enriquecimento do ção primária, os serviços letivos e a garantia do finan-
debate em torno dos rumos ambulatoriais e hospitalares; ciamento público. Em tercei-
da Saúde no país. a opção pela descentraliza- ro lugar, examina as propos-
ção e a busca de autonomia tas de reforma setorial que
de gestão de unidades mais vem sendo difundidas no con-
Dividido em quatro ca- complexas, transformando-as texto latino-americano, parti-
pítulos, o livro contém, em em entes públicos não-estatais e a aplicação de um con-
cularmente a formulada pela
primeiro lugar, uma análise CEPAL-OPS, na qual se enfa-
tiza a necessidade de desen- antecedentes nos últimos 20 não terem surgido em conse-
volvimento de açõesintersetoriais
anos
e o desenho
e discute e oimple-
significado qüência do SUS, sendo pro-
mentação de uma "cesta bá- estratégico do que vem ocor- blemas históricos que expres-
sica" de serviços de saúde e rendo no Setor Saúde para o sam a crise do Estado brasi-
estratégias específicas de desencadeamento de uma re- leiro e, particularmente, a cri-
mudança institucional no se- forma do aparelho de Estado se do paradigma flexeneriano
tor saúde, incluindo a des- que não se limite à redução da atenção médica. Contra-
centralização, a regulação es- do seu tamanho, implicando pondo-se aos "fatóides" exi-
tatal do mix público-privado o fortalecimento da sua ca- bidos pela mídia, que explo-
de produção de serviços, a pacidade de regulação e con- ra o "aqui e agora" sanitário,
criação de mercados internos dução das políticas econômi- o Autor apresenta os resulta-
ao setor e a proposta de au- cas e sociais. Conquanto con- dos favoráveis do SUS, exem-
tonomia de gestão das enti- sidere que "a reforma do Es- plificando-os com a erradica-
dades estatais. tado é muito mais ampla do ção da poliomielite, a redu-
que o que está acontecendo ção dos coeficientes de inci-
A revisão das experiên- no setor saúde", aponta como dência do sarampo, difteria,
cias e propostas implementa- fatos significativos da direção coqueluche e tétano neona-
das no âmbito internacional que esta reforma pode vir a tal, o controle vetorial da
tem como objetivo a identifi- tomar, a extinção do INAMPS doença de Chagas, as mu-
cação de algumas "lições" e o processo demunicipalizaçãodas ações
danças
e serviços
significativas
de na assis-
para o processo brasileiro. saúde. Além disso, acumula tência à saúde mental, os re-
Este é analisado no segundo argumentos em prol do SUS, sultados alcançados na área
capítulo, tomando como explicitando sua importância de saúde materno-infantil e
pressuposto a defesa do SUS, para a construção de um outros. Conclui, assinalando
fundamentada em uma série paradigma de atenção à saú- que quem ganhou com o SUS
de evidências de caráter po- de que supere o modeloflexneriano,
forambem
60 milhões
como seude brasilei-
sig-
lítico, social e econômico. nificado, enquanto espaço so- ros que anteriormente esta-
Nas palavras do Autor, "o cial de construção da cidada- vam submetidos a uma aten-
SUS é uma proposta que me- nia, problematizando a expe- ção estatal de medicina
rece ser continuada porque riência dos Conselhos de simplificada ou à filantropia.
vem se constituindo em espa- Saúde. Com a firmeza que caracteri-
ço de reforma do aparelho de za as argumentações formu-
Estado e de formação de ci- ladas ao longo do capítulo,
dadania, porque tem apresen- Um dos trechos mais in- finaliza: "A contradição está
tado resultados favoráveis em teressantes desse segundo em que esses b r a s i l e i r o s que
diversos campos, porque signi- capítulo é o item intitulado ganharam com o SUS não
ficou ganhos reais para milhões "O SUS na prática", no qual estão socialmente organizados
de brasileiros mais pobres e por- o Autor trata de desconstruir e s ã o d e s t i t u í d o s d e voz polí-
que atende melhor às necessi- as críticas que se fazem ao t i c a . Em o u t r o s t e r m o s , os g a -
dades de saúde de nossa po- SUS, chamando a atenção n h a d o r e s d o SUS são maioria
pulação do que algumas pro- para o fato de que os pro- silenciosa q u e conta p o u c o no
postas liberais que se apresen- blemas que se verificam nos jogo político e na formação
tam como alternativas" (p. 13).
serviços de atenção médica - de opinião. Alcançaram, com
Partindo do pressuposto filas, atendimentodesumanizado,pacientes
o S U Snos
, c i corredo-
dadania, na saúde,
de que "o SUS é um proces- res, grevismo crônico etc. - mas permanecem sub-cida-
so", o Autor recupera seus dãos políticos".
O terceiro capítulo, que titucional do Ministério da cos e a atenção a grupos e
ocupa a maior parte do li- Saúde e, especialmente, das indivíduos, segundo a lógica
vro, aborda a racionalização Secretarias Estaduais de Saú- das necessidades e demandas
do SUS, tratando, em primei- de. Ainda neste capítulo abor- sociais de saúde, e não se-
ro lugar, de justificar a ne- da as novas formas de ges- gundo a lógica econômico-
cessidade de se introduzir um tão do serviço público, a administrativa que rege a
problemática
conjunto de medidasracionalizadoras,destinadas do financiamen-
a garan- oferta de serviços; d) a trans-
tir a viabilidade do sistema. to e a busca de racionalida- formação da ordem governa-
Inicialmente o Autor discute de no gerenciamento dos re- tiva da cidade, com o trânsi-
as especificidades dos espa- cursos e dos serviços. Desse to de uma gestão médica do
ços sociais da saúde, distin- modo, o Autor incursiona por sistema de saúde para uma
guindo o espaço público do temas críticos como a polê- gestão propriamente da Saú-
estritamente estatal, após o mica em torno do nível de de, que pense a saúde da
que apresenta um conjunto gasto com a saúde no país, população como objetivo
de propostas que implica- defendendo a necessidade de primeiro e último dos go-
riam, no seu entender, a não só aumentar o volume vernos que se pretendem
constituição do SUS como sis- de recursos como, fundamen- democráticos e comprome-
tema efetivamente público. talmente, implementar formas tidos com o bem-estar dos
Nessa perspectiva, discute a de distribuição e alocação cidadãos.
que estatal",
necessidade de"desprivatizaçãodo espaço impliquem
comuma elevação Além de apresentar, em
a ruptura dos anéis burocrá- da "eficiência alocativa". linhas gerais, uma construção
ticos que articulam os inte- Finalmente, no quarto teórica que estrutura o "novo
resses do Estado aos do se- capítulo, Eugênio Mendes paradigma", este último capí-
tor privado contratado econveniado; analisaa síntese
apresenta a necessá-
da sua re- tulo traz propostas concretas
ria "publicização" do espaço flexão em torno das estraté- para a implementação de pro-
privado, quer aquele contra- gias de construção social de cessos de mudança institucio-
tado pelo SUS, quer o que um novo sistema de saúde, nal, organizacional e opera-
se organiza à margem do SUS, baseado em quatro pilares cional no âmbito do SUS, es-
isto é, a atenção médica su- fundamentais: a) a concreti- pecialmente dos sistemas mu-
pletiva, que teria de ser re- zação de uma concepção nicipais e locais. O Autor, fiel
gulada pelo Estado; proces- positiva da saúde, em oposi- à sua trajetóriapolítico-institucional,marcada pela inser-
so que incluiria a eliminação ção à concepção negativa que ção em situações concretas,
de subsídios cruzados e re- fundamenta a maior parte das onde se mesclam distintas
núncias fiscais, mecanismos práticas de saúde em nosso políticas, programas e proje-
através dos quais o próprio meio; b) a superação do tos, sugere, habilmente, que
Estado vem favorecendo a modelo flexneriano, através se articulem as concepções e
expansão desse subsistema. da implementação de proces- práticas derivadas das pro-
Em seguida, analisa a crise sos que impliquem a "produ- postas de constituição de "ci-
institucional do SUS, chaman- ção social da saúde"; c) a dades saudáveis", cuja matriz
do a atenção para a necessi- substituição da ênfase na se inspira na experiência ca-
dade de articulação de um atenção médica individual nadense, com as experiências
"novo pacto federativo", que pela prática de vigilância da latino-americanas, e brasilei-
implicaria um redesenho ins- saúde, estruturada em uma ra em particular, de constru-
perspectiva integral, articu- ção de distritos sanitários, es-
lando a promoção da saúde, paços no âmbito dos quais
a prevenção de danos e ris-
se pode reorientar a propos- organização dos serviços, dos Eugênio Vilaça Mendes es-
ta de implantação de progra- projetos em curso, indepen- creveu este livro reproduzir-
mas de "Saúde da Família", dentemente de suas origens se-á no debate de idéias e
assumida como estratégia de e intenções originárias. Nes- proposições políticas que a
reorganização da atenção se sentido, o livro inteiro e, leitura certamente desperta-
primária de saúde, comple- especialmente, os seus capí- rá nos distintos sujeitos que
mentada pela organização de tulos 3 e 4 podem ser lidos lutam em defesa do SUS;
consórcios intermunicipais, como fruto de um trabalho debate mais que nunca ne-
enquanto estratégia de reor- profundamente engajado, cessário para que os rumos
ganização da atenção secun- quiçá impaciente, de um da Política de Saúde no país
dária e terciária. Como se Autor que não quer esperar, não se pautem pelo receitu-
pode perceber, Eugênio Men- quer "fazer acontecer" dentro ário liberal, nem tampouco
des propõe a articulação, na do possível. Não tenho dúvi- que as propostas alternativas
prática cotidiana da gestão e das de que a paixão com que se esterilizem em ortodoxias.

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