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ARTIGO 26 Original

TRAVESTIS E TRANSEXUAIS: DESPINDO


AS PERCEPÇÕES ACERCA DO ACESSO E
ASSISTÊNCIA EM SAÚDE
Robson Lovison1 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8266-8105
Tania Maria Ascari1 ORCID:https://orcid.org/0000-0002-8762-1082
Denise Antunes de Azambuja Zocche1 ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4754-8439
Michelle Kuntz Durand1 ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3660-6859
Rosana Amora Ascari1 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2281-8642

Objetivo: conhecer a percepção de travestis e transexuais residentes em Chapecó, Santa Catarina, acerca do acesso e assistência em
saúde. Metodologia: pesquisa descritiva, exploratória e qualitativa, realizada por meio de entrevista semiestruturada com cinco travestis e
transgêneros, aplicadas entre novembro/2017 e março/2018. Resultados: o estudo revelou que a discriminação a travestis e transexuais
ainda ocorre e se revela especialmente no não reconhecimento ao nome social. Conclusão: a conduta de acesso e acolhimento não
atende aos critérios de acesso e assistência em saúde preconizados pelo Sistema Único de Saúde. A Enfermagem tem papel fundamental
na construção de uma nova cultura de acolhimento, em que a discriminação e o preconceito sejam banidos das práticas de acesso e
assistência em saúde.
Descritores: Travestis; Transexuais; Serviços de saúde; Enfermagem, Equidade no Acesso aos Serviços de Saúde.

TRANSVESTITES AND TRANSSEXUALS: STRIPPING PERCEPTIONS ABOUT ACCESS AND HEALTH CARE
Objective: to know the perception of transvestites and transsexuals living in Chapecó, Santa Catarina, about access and health care.
Methodology: descriptive, exploratory and qualitative research, conducted through a semi - structured interview with five transvestites
and transgender, applied between November/2017 and March/2018. Results: The study revealed that discrimination against transvestites
and transsexuals still occurs and is especially evident in the non-recognition of the social name. Conclusion: the approach to access and
reception does not meet the criteria of access and health care recommended by the Unified Health System. Nursing plays a fundamental
role in the construction of a new reception culture, in which discrimination and prejudice are banned from practices access and health
care.
Descriptores: Transvestism; Transgender Persons; Health Services; Nursing, Equity in Access to Health Services.

TRAVESTIS Y TRANSEXUALES: DESPIENDO LAS PERCEPCIONES ACERCA DEL ACCESO Y ASISTENCIA EN SALUD
Objetivo: conocer la percepción de los travestis y transexuales que viven en Chapecó, Santa Catarina, sobre el acceso y la atención de
salud. Metodología: investigación descriptiva, exploratoria y cualitativa, realizada a través de una entrevista semiestructurada con cinco
travestis y transexuales, aplicada entre noviembre/2017 y marzo/2018. Resultados: El estudio reveló que la discriminación contra los
travestis y transexuales todavía ocurre y es especialmente evidente en el no reconocimiento del nombre social. Conclusión: el enfoque de
acceso y recepción no cumple con los criterios de acceso y atención médica recomendados por el Sistema Único de Salud. La enfermería
juega un papel fundamental en la construcción de una nueva cultura de recepción, en la que la discriminación y los prejuicios están
prohibidos de las prácticas. Acceso y asistencia sanitaria.
Descriptores: Travestismo; Personas Transgénero; Servicios de Salud; Enfermería; Equidad en el Acceso a los Servicios de Salud

Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC/CEO.


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Autor Correspondente: Robson Lovison - Email: robson0910q@gmail.com

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ARTIGO 26 TRAVESTIS E TRANSEXUAIS: DESPINDO AS PERCEPÇÕES ACERCA DO ACESSO E ASSISTÊNCIA EM SAÚDE
Robson Lovison, Tania Maria Ascari, Denise Antunes de Azambuja Zocche, Michelle Kuntz Durand, Rosana Amora Ascari

INTRODUÇÃO OBJETIVO
O acesso à saúde é direito de todos incluindo Lésbicas, Conhecer a percepção das travestis e transexuais de
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais (LGBT) e, ainda Chapecó, estado de Santa Catarina (SC), acerca do acesso e
que se reconheçam os avanços relativos aos direitos, as assistência em saúde.
manifestações de homofobia, transfobia e o preconceito estão
presentes na sociedade brasileira, alimentam e agravam o já METODOLOGIA
deficitário sistema de saúde, indo na contramão das políticas Tipo de estudo
de cuidado humanizado preconizados pelo Sistema Único de Trata-se de um estudo transversal, descritivo exploratório
Saúde (SUS)1. de abordagem qualitativa.
Fomentada pela cultura de valores heteronormativos
historicamente produzidos, que sustentam o heterossexismo, Participantes da pesquisa
permanece até hoje nas sociedades e suas instituições, A seleção das participantes foi intencional, com indicação
o estímulo à homofobia que se caracteriza pelo “desdém do presidente da UNA-LGBT/ Chapecó, atendendo aos
e pela segregação das sexualidades que fogem da seguintes critérios de inclusão: ser transexual ou travesti,
heterossexualidade e seus padrões”2. residir ou ser trabalhadora no município de Chapecó, SC
É fundamental quebrar os conceitos de sexo e gênero, o e maior de 18 anos. Das oito convidadas, cinco aceitaram
que não implica eliminá-los, mas utilizá-los como prospectos participar da pesquisa.
políticos, “que provocam, que interrogam, permanentemente,
[...], como uma forma de quebrar seus próprios significados Local do estudo
substantivos e prescritivos, de prover um lugar de abertura O estudo teve como cenário a cidade de Chapecó,
para uma permanente ressignificação”3. localizada na região Oeste de Santa Catarina, que tem
A aprovação em 2009 e regulamentação em 2011 da população estimada em 183.530 habitantes9 e que não
Política Nacional de Saúde Integral da População Lésbica, apresenta dados oficiais sobre a população de travestis e
Gay, Bissexual, Travesti e Transexual (PNSI-LGBT), atende aos transexuais.
princípios constitucionais e define que é responsabilidade
do SUS a promoção da saúde integral da população LGBT, Coleta dos dados
eliminando a discriminação e o preconceito institucional e Utilizou-se como técnica de coleta de dados a entrevista
promovendo o acesso de travestis e transexuais aos serviços semiestruturada com questões disparadoras, que serviram
de saúde4. como orientadoras para o diálogo e as narrativas desejadas, as
Lentamente, a evolução legislativa acontece, porém como, quais foram realizadas em local, período e tempo determinado
“entre a lei e as práticas cotidianas há um considerável espaço por cada entrevistada, de acordo com sua disponibilidade e
de contradições e violências”5, pouco se tem visto de efetivo do entrevistador.
na área da saúde, onde se mantém o constrangimento e a As falas foram gravadas em dispositivo adequado
exclusão. Muitas pesquisas apontam para a estigmatização que, conforme Minayo10, está entre os mais fidedignos
e discriminação por parte dos serviços de saúde e de seus instrumentos de registros de entrevistas, e posteriormente
profissionais que, a partir da identificação da usuária como transcritas primando pelo respeito aos princípios éticos que
travesti ou transexual, passam a ofertar um modo de permeiam a pesquisa com seres humanos.
assistência precário6. As entrevistas, aplicadas entre novembro/2017 e
O resultado dessa conduta é o afastamento das março/2018, duraram entre 30 e 120 minutos. Os depoimentos
transexuais e travestis do sistema de saúde, especialmente foram identificados pela letra ‘E’ (entrevistada) e números
no contexto da prevenção, procurando as redes de atenção sequências (E1, E2, E3...), preservando assim a identidade das
somente em situações graves e sem outra alternativa. participantes.
Atender com respeito implica também em não relacionar
de forma discriminatória algumas doenças e infecções Procedimentos de análise dos dados qualitativos
sexualmente transmissíveis e ainda problemas com o uso de A categorização das informações coletadas foi realizada
silicone industrial7. por meio da técnica de análise temática, de forma a se
Na área de enfermagem o cuidado é a base de todas levantar os pontos convergentes e divergentes nas falas das
as atividades técnicas e este, para ser efetivo, deve ser participantes e conhecer sua percepção acerca do acesso e
compreendido e apreendido na relação intrínseca com a assistência em saúde11.
cultura, valorizando a individualidade, a subjetividade e a visão
de mundo8.

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Procedimentos éticos Quadro 1: Compilação dos resultados das entrevistas de


Seguiu-se as diretrizes éticas dispostas nas Resoluções acordo com a categoria temática
nº 466/ 2012 e nº 510/ 2016 do Conselho Nacional de Saúde
e foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Categoria temática Resultados Falas
Humanos da Universidade do Estado de Santa Catarina “Nas situações que
preciso, sempre que
(UDESC) sob parecer nº 2.291.714 de 22 de setembro de 2017. • Usa plano de saúde estou doente” (E1).
Os direitos das participantes foram preservados ao longo do privado e o sistema de “Quando eu preciso de
saúde apenas para o algum atendimento em
estudo, respeitando o anonimato, garantindo a ausência de processo transexua- saúde eu vou na UPA
lizador. e, as vezes no hospital”
riscos ou prejuízos de qualquer natureza e esclarecido sobre • Três entrevistadas (E3).
A percepção de traves-
a possibilidade de desistir a qualquer momento da pesquisa. tis e transexuais sobre
procuram o sistema de “Quando eu estou
saúde sempre que têm realmente na pior,
o acesso e acolhimento
necessidade. quando realmente eu
no sistema público de
RESULTADOS • Uma entrevistada vejo que não tenho
saúde
somente procura alternativa de auto-
Quanto aos dados sócio-demográficos constatou-se que o sistema de saúde medicação. Que daí eu
quando sente que não vejo que é algo mais
as participantes são adultas jovens com média de idade de 34 consegue reverter a complexo, daí sim, mas
anos; quatro se auto definem transexuais e uma travesti, todas situação por meio da só em últimos casos eu
automedicação. procuro a unidade de
são solteiras e tem profissões ou atividades profissionais saúde” (E2).
variadas. Quanto a escolaridade duas tem ensino médio e três
são estudantes de graduação. “Eu tomei conhecimen-
to através da minha
Os dados foram classificados segundo a afinidade graduação, a gente
tem uma matéria ex-
temática. As unidades de sentido foram identificadas e clusiva sobre políticas
• Conhece as Leis pela
agrupadas proporcionando o desvelamento de três categorias UNA, Universidade e
públicas, sobre políti-
O conhecimento sobre cas sociais e eu acabei
temáticas a saber: A percepção de travestis e transexuais Amigos
seus direitos e o que estudando sobre a
sobre o acesso e acolhimento no sistema público de saúde; oferecem as políticas política nacional de
de saúde voltadas aos LGBT. (E5)”.
• Não receberam in-
o conhecimento sobre seus direitos e o que oferecem as LGBT.
formações acerca dos
“Eu conheci (a política
LGBT) através da UNA,
políticas de saúde voltadas aos LGBT e (Des) atendimento seus direitos no SUS
[...] eles trouxeram as
dos profissionais de saúde frente às necessidades de saúde leis e apresentaram
para nós, então foi o
das travestis. O Quadro a seguir apresenta os resultados primeiro contato [...]”
(E1).
compilados das entrevistas de acordo com cada categoria
“A partir do momento
temática. que o Estado reco-
nhece o meu nome
civil, digo, o meu nome
social, então por que
o profissional se nega
a colocar na triagem
o meu nome social?
Me chamar pelo nome
social? Então esse é o
• Não atendimento ao
problema das unidades
(Des) atendimento dos nome social
de saúde” [E2].
profissionais de saúde
“Eu sou franca em
frente às necessidades • Profissionais não têm
dizer que teve uma vez
de saúde das travestis. conhecimento sobre as
que fui no sistema de
políticas e leis
saúde da cidade, [...],
e eu perguntei se ela
podia me chamar pelo
nome social e aí ela
falou que não tinha
como colocar no siste-
ma, mas ela disse que
não me preocupasse
que iria me chamar
pelo nome social” (E4).

Em linhas gerais, os resultados apontam para a procura


de informação e de ter seus direitos atendidos por parte
das travestis e transexuais, incluindo o acesso e assistência
no sistema de saúde pública. De outra parte, a pesquisa
sinaliza que os profissionais que atendem no sistema de

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saúde carecem de maior conhecimento acerca das políticas preconceituosas, alimentam o já deficitário sistema
públicas voltadas à população LGBT, elementos discutidos na de saúde, indo na contramão das políticas de cuidado
sequência. humanizado preconizados pelo SUS. Nesse contexto pode-se
compreender que o acolhimento somente se efetiva quando
DISCUSSÃO há um “compromisso coletivo em cultivar vínculos” de forma
O atendimento discriminatório e as condutas responsável e considerando as diferenças, e estímulo a
constrangedoras estão entre as principais causas das autonomia4. Acolher não significa apenas receber bem as
travestis e transexuais se afastarem dos serviços de saúde, se pessoas e tratá-las com respeito, mas estabelecer relações,
automedicarem e não adotarem cuidados preventivos12, o que produzir encontros, conhecer a realidade de cada parte,
propicia o aparecimento de agravos a saúde, com consequente respeitar ritmos, fluxos, tempos e modos de vida de cada
busca por unidades de urgência e emergência, muitas vezes sujeito.
consideradas a porta de entrada no sistema13. Neste sentido Para que haja efetivamente o acolhimento desse segmento
destaca-se a hormonioterapia, utilizada por travestis e da população, uma das primeiras mudanças práticas que
transgêneros para o processo de transformação e, na grande devem ser realizadas é com relação ao tratamento dado
maioria, sem prescrição e conhecimento (automedicação), no atendimento e em todo o processo, iniciando com o
em função, entre outros fatores, da discriminação e da reconhecimento do nome social, que tem sido uma das
dificuldade de acesso ao sistema de saúde12. lutas mais importantes para travestis e transexuais, por
Em linhas gerais parece não haver muita resistência da significar a identificação social e legal do gênero adequado a
maior parcela das entrevistadas em buscar o SUS quando elas e se apresenta como um dos entraves importantes ao
sentem necessidade, o que difere em parte de outra pesquisa14 atendimento em saúde1;7.
em que travestis e transexuais afirmam que evitam procurar o O contexto discriminador tem relação também, e é preciso
sistema público de saúde e até são radicais em expressar sua considerar, com o tabu social acerca do tema sexualidade,
negativa em procurar o SUS, em função do preconceito. arraigado na sociedade e na família e perpassado por valores
Em relação ao nome social, apesar do acolhimento, a e significados há várias gerações, influenciando diretamente
informação de que não é possível incluir o nome social no na conduta dos profissionais e sentido com mais ênfase
sistema é incorreta dado que, essa possibilidade existe pelas pessoas que fogem às regras e padrões definidos como
conforme a Portaria 675/MS/GM /200615 e a PNSI-LGBT16, normais19.
que, entre tantas outras considerações, definem o registro Hoje, a luta de transexuais e LGBT em geral pelo acesso
do nome social no sistema, independente do processo à saúde não significa somente ter atendimento às suas
transexualizador, e coloca como dever do servidor chamar a mazelas físicas e psíquicas, mas se encaixar em um gênero
pessoa pelo nome que for indicado pelo usuário. adequado a si e aceito pela ainda sociedade discriminadora,
O constrangimento nesses casos é efetivo e a falta pois, a humanidade contextualizada socialmente “só existe
de preparo do profissional ou mesmo o não interesse e o em gêneros, e o gênero só é reconhecível, só ganha vida e
desrespeito se sobrepõem a ética, à legislação e aos princípios adquire inteligibilidade, segundo as normas de gênero, em
do SUS de universalidade, integralidade e equidade e de suas corpos-homens e corpos-mulheres. Ou seja, a reivindicação
diretrizes de acolhimento e política de humanização16. última dos/das transexuais é o reconhecimento social de sua
Negar-se cadastrar o nome social ou insistir em chamar o condição humana”20.
usuário pelo nome civil, implica em não respeitar a identidade Há que se considerar, portanto, questões práticas que
autodeclarada, independente da aparência corporal, pois, o envolvem leis, normas, condutas, formação, treinamento
nome social é uma transformação incorporal, que ultrapassa e desenvolvimento profissional, mas também, questões
a questão física. Ainda que uma incita a outra, nome social e filosóficas, culturais e educacionais, para se promover
aparência corporal não podem ser confundidas ou exigirem- efetivamente uma quebra de paradigmas.
se necessariamente17. No contexto prático, torna-se imperiosa a necessidade
Não são raras as manifestações literárias4;7;18 que de legislação geral, federal e que efetivamente regulamente e
demonstram que o sistema de saúde, por meio de seus ajude a normalizar o uso do nome social, pois micro legislações
profissionais, tem reproduzido as discriminações observadas e orientações políticas de alguns órgãos não tratam o tema
na sociedade. Rompe-se assim com o princípio basilar de todo com a amplitude necessária para a disseminação de uma
o sistema de saúde: o acolhimento. cultura social de aceitação da identidade de gênero e do
Com relação a identidade de gênero, o que se observa na nome social15.
realidade social e do sistema de saúde é que manifestações Nesse contexto, destacamos o papel educador da
enfermagem que, especialmente na atenção primária à

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saúde pode atuar, amparado pelas legislações e políticas do cultural. As legislações e políticas podem ser um processo,
SUS, junto as equipes de saúde, usuários e comunidade em dentro de um amplo contexto, que podem auxiliar a quebrar
geral. Ao enfermeiro cabe realizar ações junto as pessoas paradigmas, a dar um “passo em frente”, mas que não são, por
e grupos LGBT, com informações relativas a promoção da si só, resolutivas22.
saúde, incluindo os direitos que lhe cabem dentro do sistema, Limitações do estudo
de forma humanizada e especializada, garantindo assim uma Como limitação pode-se apontar o número reduzido
assistência digna e humanizada, desde a atenção básica de de entrevistadas, o que abre espaço para continuidade da
saúde, até a média e alta complexidade, ações fundamentais investigação, ampliando a amostragem e foco temático.
para uma promoção integral da saúde de forma efetiva e de Contribuição do estudo para a prática
qualidade21. Os resultados do estudo contribuíram para a compreensão
É dessa forma, que a enfermagem, as equipes da realidade de acesso e acolhimento em saúde de LGBT
multiprofissionais,
REFERÊNCIAS os usuários e a comunidade, ao fomentar e, pode servir de base para que os profissionais de saúde,
relações, podem promover o respeito, a atenção à compreendam seu papel na aplicação dos princípios basilares
integralidade e o acolhimento democrático, mas também com da saúde pública.
suas condutas indicar os caminhos que as políticas públicas
devem trilhar para atender as necessidades e os direitos e CONCLUSÃO
ainda definir deveres para os envolvidos. O acesso à saúde, pelas falas das travestis e transexuais
No campo dos estudos e debates sociológicos e participantes do estudo, ainda está distante do ideal. Tanto
filosóficos é fundamental aprofundar o debate, tanto em no âmbito geral com uma demanda que impede que o número
termos de políticas e legislações, quanto nos caminhos para de profissionais e de unidades de saúde, atenda com agilidade
se quebrar os paradigmas culturais. As políticas se fundam na e competência, quanto pelos aspectos específicos desse
ideia da igualdade e na afirmação da identidade o que significa segmento da população que não é tratado com a dignidade
dizer que todas as pessoas são iguais e assim tem direitos que merece, que não tem seus direitos básicos atendidos, não
iguais. Ocorre que nessa construção conceitual acaba por recebe informações sobres os processos e procedimentos
se perpetuar alguns paradigmas perigosos: criam-se altas em saúde e sobre seus direitos e que também sofre com a
expectativas em torno dos marcos legais, como se pudessem discriminação de profissionais e outros usuários, afetando,
resolver as questões relativas a identidade de gênero por si portanto, a assistência em saúde e o acolhimento, princípios
só, quando podem apenas institucionalizar alguns conceitos basilares do sistema de saúde.
e definir direitos e deveres a partir de entendimentos teóricos À enfermagem, cabe um papel relevante de acolhimento
vigentes22. nas redes de atenção em saúde, bem como, o dever de atuar
As políticas e leis, para além disso, não tem conseguido na aplicação integral das políticas públicas, na informação
organizar ações articuladas com o campo da cultura para às usuárias da saúde e na construção de novas ações
disseminar informações, derrubar barreiras e preconceitos que auxiliem na eliminação da discriminação e em prol do
perpetuados na sociedade e fomentar transformações direito de todas ao acesso humanizado e integral em saúde,
efetivas. Definem a sexualidade e a identidade de gênero ponderando as singularidades e necessidades individuais.
como dados naturais, biológicos ou genéticos de maneira Para além das ações específicas, voltadas a áreas do
reduzida e binária (masculino/feminino, heterossexual/ sistema público e profissionais é fundamental o trabalho
homossexual) e, devido à afirmação de identidades ditas integrado e amplo que atue efetivamente na desmistificação
coletivas, essencialistas e universalizantes, forçam as acerca da pluralidade humana, pois, essa deficiência no
pessoas não heterossexuais a se enquadrar nas identidades acolhimento em saúde se revela mais profunda e se concentra
LGBT, sendo que essas identidades possuem elementos pré- no escopo do paradigma cultural, ou seja, o preconceito está
definidos fixos e rígidos, quando na realidade, especialmente de tal forma arraigado na cultura da sociedade que a ética e
de travestis e transexuais não há uma definição identitária. Há a humanização que são princípios do atendimento em saúde,
sim, um processo de autoconhecimento que pode, em algum não conseguem sobrepor-se a discriminação instalada na
momento se afirmar em algum gênero ou não22. conduta de muitos profissionais.
E, finalmente, a luta política é concentrada na A incoerência entre as Leis e políticas elaboradas e sua
defesa da homossexualidade ignorando uma necessária efetivação prática, é resultado, principalmente da dificuldade
problematização da ordem cultural e política hegemônica. em se quebrar os paradigmas culturais, ou seja, se avançou
Esse formato estimula o desenvolvimento da tolerância, que um pouco na construção legal para garantia dos direitos, mas
pode ser considerado um paliativo mas não transformação quase nada na quebra de preconceitos que se sobrepõem

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às leis no cotidiano da sociedade e seus grupos, incluindo a Contribuição dos autores:


saúde. Todos são aspectos que devem preocupar e ser tema Concepção e desenho, análise e interpretação de dados,
de debates não somente nos Movimentos LGBT, mas no redação do artigo: Robson Lovison, Tania Maria Ascari; revisão
campo político, social e cultural. crítica e revisão final: Robson Lovison, Tania Maria Ascari
Denise Antunes de Azambuja Zocche, Michelle Kuntz Durand,
Rosana Amora Ascari.

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