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TRANSIÇÃO DE GÉNERO E ACESSO À SAÚDE

Filipe Couto Gomes

Cada pessoa é chamada a posicionar-se, pessoal e socialmente, face às atuais normas culturais
hegemónicas relativas ao género e à anatomia. Para algumas, isso implica um significativo
desacordo com essas normas, que as leva a processos de afirmação ou transição de género. Em
anos recentes, estes percursos de transição de género têm tido maior visibilidade no nosso país, a
par de outros temas de género, de acesso a tecnologia médica e de reconhecimento civil. Podem
apontar-se, como marcos desta maior visibilidade pública das questões trans*, o homicídio
'multifóbico' de Gisberta Salce Júnior (em 2006, no Porto), e a aprovação da lei 7/2011, relativa à
adequação do nome e anatomia civis. Por seu lado, vem emergindo um novo paradigma de
cuidados nesta área. O protocolo Standards of Care, da Associação Internacional de
Profissionais de Saúde Trans (WPATH), constitui-se neste momento como referência
internacional, e padrão segundo o qual são avaliados os cuidados disponibilizados nesta área. A
sua última versão, publicada em Setembro de 2011, afirma que as identidades e expressões fora
da norma social hegemónica do género integram a diversidade humana e não têm caráter
patológico. Tal posição é próxima à de parte do ativismo social, literatura e prática clínica
recentes, que tem produzido propostas de cuidados baseados em consentimento informado,
respeito pela autonomia, perspetivas não patológicas das experiências e identidades de género
não normativas, redução de riscos e participação de quem trabalho em Saúde no combate ao
estigma social (inclusive, o estigma encontrado nos próprios Serviços de Saúde).

A transição de género é tema habitualmente ausente dos currículos académicos e formação


contínua em Saúde. Assim, quem trabalha em Saúde tem poucas oportunidades para se
familiarizar com esta área. Em tal contexto, é frequente que os cuidados prestados sejam
comprometidos por atitudes estigmatizantes e de desrespeito pelas necessidades e objetivos
indicados por quem está em posição de utente, muitas vezes motivadas por estereótipos ligados
ao género e à sexualidade. Esta comunicação refere-se a dados de um trabalho de revisão, que
teve por objetivo sistematizar o conhecimento disponível sobre características destas populações,
suas necessidades de Saúde e práticas recomendadas nesta área, de modo a colmatar as atuais
lacunas no acesso a esta informação e sua aplicação às rotinas médicas. Como limitações deste
trabalho, aponta-se, por um lado, o fato de a maior parte da literatura não referir explicitamente
pessoas fora da dicotomia de género mulher-homem, que podem assim estar ou não incluídas
quando é usado o termo 'transgénero'. Por outro lado, a pesquisa não gerou, para as populações
trans* portuguesas, indicadores atualizados de Saúde, como sejam a prevalência do complexo
VIH/SIDA, a esperança média de vida e a prevalência de doença cardiovascular.

A literatura descreve as populações trans* como medicamente subassistidas em termos de


cuidados triviais e preventivos, algo que decorrerá frequentemente da não procura dos serviços
de Saúde, motivada por experiências prévias de discriminação e violência, ou de contacto com
profissionais com falta de competências nesta área. Confidencialidade e uso das formas de
tratamento preferidas são competências reveladoras de respeito, transversais à relação com
qualquer utente de um serviço de Saúde. É também importante que quem trabalha em Saúde
compreenda a diversidade e fluidez associadas a identidades e a expressões de género, de que é
exemplo frequente uma aparente incongruência entre a identidade que a pessoa refere e a sua
apresentação. O aspeto na consulta pode ter a influência de contextos sociais, como o ambiente
laboral e a recetividade familiar, e de contextos pessoais, particularmente o caráter individual dos
processos de transição/afirmação de género. Por último, a discordância pode não estar entre a
aparência e a identidade da pessoa trans*, e sim, na forma como utente e profissional entendem o
género. Estas competências são essenciais para a construção de uma relação de confiança, em
que possam ser prestados cuidados de acordo com a história de género e de reconstrução sexual,
nomeadamente na redução de riscos associados, por exemplo, à terapia hormonal, a práticas
mecânicas de modificação do sexo aparente, e particularmente, à injeção de silicone livre.
A comunicação sobre sexualidade é frequentemente tida como desconfortável, por exemplo, por
algumas práticas ou partes do corpo serem sentidas como incongruentes com expectativas sobre
a própria identidade. A evocação de alguns estereótipos ligados à orientação afetiva e sexual,
número de parceiros e exercício de prostituição é outro fator dificultante. Contudo, falar de
sexualidade na consulta pode ajudar a pessoa trans* a abordar o toque e as práticas sexuais com
as pessoas com quem estabelece parcerias afetivas e sexuais, negociando uma sexualidade mais
segura e confortável. Os serviços psicoeducacionais serão tanto mais eficazes quanto mais
adaptados à pessoa, tendo em conta a sua perceção do próprio corpo e linguagem que a traduz,
informação de cariz psicossocial e a variedade individual de práticas e riscos.

Os protocolos farmacológicos e cirúrgicos atuais estabelecem padrões de 'feminização' e


'masculinização', mas é de notar que nem toda a gente procura uma feminização ou
masculinização segundo estes padrões, recomendando-se, assim, o enquadramento e
individualização da terapêutica de acordo com cada utente. Um destes aspetos é a existência de
contraindicações absolutas possivelmente permanentes à terapia com estrogénios (trombofilia)
ou testosterona (angina instável; hematócrito superior a 55%). Estes casos requerem a procura de
alternativas à suspensão do processo de reconstrução farmacológica, dado o possível recurso à
reconstrução sexual farmacológica não acompanhada, ou mesmo à injeção de silicone livre (ou
outras substâncias, como óleo de cozinha...). As cirurgias de reconstrução sexual,
particularmente as cirurgias de reconstrução genital, são procedimentos complexos e com risco
cumulativo de complicações dado o número de intervenções necessário. Frequentemente,
apresentam limitações de técnica. Estes são aspetos importantes no aconselhamento sobre
cirurgias e nos vários períodos pós-operatórios. Adicionalmente, o aconselhamento sobre
procriação é um passo importante na preparação para reconstrução sexual farmacológica e/ou
cirúrgica, dados os seus efeitos, reversíveis ou não, sobre a fertilidade. Os projetos parentais após
a reconstrução sexual e a parentalidade prévia à reconstrução são outros aspetos a ter em conta.
A estigmatização das pessoas trans* é muito frequente na sociedade portuguesa. As pessoas
trans* convivem com obstáculos quotidianos no acesso a espaços e serviços públicos, não só
pelas dificuldades de documentação civil e de respeito social, como também pela organização de
muitos destes espaços e serviços, como por exemplo, as casas de banho e as enfermarias,
segundo uma dicotomia anatómica. A família e outras relações afetivas podem ter um papel
importante na vida das pessoas trans*, nomeadamente de apoio psicossocial e económico, ajuda
na procura de cuidados de Saúde, ou mesmo a informar outras pessoas sobre a
transição/afirmação de género. Pares e comunidades lésbicas, gais, bissexuais, transexuais e
transgénero (LGBT) podem ser fonte complementar ou alternativa de ajuda, e é possível a inter-
referenciação com quem trabalha em Saúde, a partir de uma relação de cooperação. Algumas
organizações podem potenciar o exercício de cidadania e autonomia, e apoiar face a
marginalização social, precariedade laboral, pobreza ou desalojamento. Contudo, há utentes que
evitam a identificação como trans*, por receio de discriminação ou porque não se vêem como
trans*, e que recusam o contacto com pessoas trans*. São utentes que podem preferir outro tipo
de estruturas e grupos, que prestem apoio económico e psicossocial não específico para pessoas
trans*, e em que se possa não assumir uma identidade trans*.

Pode apontar-se, em jeito de conclusão, que as atuais dificuldades de acesso à Saúde por parte de
populações trans* poderiam ser minoradas pela integração, na formação de quem trabalha em
Saúde, de competências básicas nesta área. Por outro lado, para além do aumento da investigação
específica a esta área, é premente que os estudos de indicadores de Saúde na população geral
portuguesa discriminem dados sobre as populações trans*. O acesso a cuidados primários
adaptados às necessidades é um fator de reconhecida importância no desenvolvimento das
populações, através da redução da prevalência e morbimortalidade de várias doenças. Assim, é
de admitir que cuidados mais acessíveis, específicos e qualificados poderão diminuir as carências
e riscos atuais na Saúde das populações trans*, permitindo que estas pessoas obtenham ganhos
significativos em qualidade e esperança de vida, beneficiando assim de um maior usufruto da
cidadania.

Este texto resume os principais pontos da comunicação apresentada no Simpósio Identidade de


Género e Transexualidade, em 2012, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

A comunicação partiu da monografia de Mestrado Integrado em Medicina do autor, submetida à


Faculdade de Medicina da Universidade do Porto sob orientação da Professor Irene Palmares
Carvalho em 2011.

O autor era, à data desta comunicação, médico interno do ano comum no Centro Hospitalar de
São João.
Bibliografia de referência:

BUTLER Judith. Bodies That Matter. Routledge: 1993.

FELDMAN JL, GOLDBERG J: Transgender Primary Medical Care: Suggested Guidelines for
Clinicans in British Columbia. Vancouver Coastal Health, Transcend Transgender Support &
Education Society, Canadian Rainboe Health Coalition: 2006. Disponível em linha.

MISSÉ Miquel, COLL-PLANAS Gerard. El Género Desordenado. Críticas en torno a la


patologización de la transexualidad. Egales Editorial: 2010.

NOGUEIRA Conceição, DE OLIVEIRA, João Manuel (organizadores). Estudo sobre a


discriminação em função da orientação sexual e da identidade de género. CIG: 2010.

RAJ Rupert. Towards a Transpositive Therapeutic Model: Developing Clinical Sensitivity and
Cultural Competence in the Effective Support of Transsexual and Transgendered Clients.
International Journal of Transgenderism 2002; 6. Disponível em linha.

RED POR LA DESPATOLOGIZACIÓN DE LAS IDENTIDADES TRANS DEL ESTADO


ESPAÑOL. Guía de Buenas Prácticas para la Atención Sanitária a Personas Trans en el Marco
del Sistema Nacional de Salud. 2010. Disponível em linha.

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