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REVISÃO DE LITERATURA

Construção do conhecimento e do fazer


enfermagem e os modelos assistenciais*

HEALTH CARE MODELS AND THE BUILDING OF NURSING KNOWLEDGE AND PRACTICE

CONSTRUCCIÓN DEL CONOCIMIENTO Y DEL QUEHACER EN ENFERMERÍA


Y LOS MODELOS ASISTENCIALES

Amália de Fátima Lucena1, Lisiane Manganelli Girardi Paskulin2,


Mariana Fernandes de Souza3, Maria Gaby Rivero de Gutiérrez4

* Artigo desenvolvido RESUMO ABSTRACT RESUMEN


durante a realização Artigo de reflexão que enfoca as This is a reflective paper focused El presente artículo de reflexión
da Disciplina “Cons-
trução do Conheci- origens e as principais caracterís- on the origins and main characte- enfoca los orígenes y las prin-
mento em Enferma- ticas dos modelos clínico e epide- ristics of the epidemiological and cipales características de los mo-
gem, do curso de miológico, seus nexos com os mo- clinical models, their connections delos clínico y epidemiológico,
Doutorado em Enfer-
magem/UNIFESP/ delos assistenciais vigentes no sis- with the health care models sus nexos con los modelos asis-
EPM, sob a orienta- ]tema de saúde brasileiro, e a cons- currently adopted in Brazil, tenciales vigentes en el sistema
ção das Professoras trução do conhecimento da enfer- and the construction of Nursing de salud brasileño, y la cons-
Dras. Mariana Fernan-
des de Souza e magem nesse contexto. Nessa knowledge in this context. From trucción del conocimiento de la
Maria Gaby Rivero perspectiva, as autoras propõem this perspective, the authors enfermería en ese contexto. Bajo
Gutiérrez esa perspectiva, las autoras pro-
1 Professora Assis-
um repensar acerca do saber/fazer propose a re-thinking of Nursing
tente da Escola de da enfermagem, apontando knowledge and practice, pointing ponen un repensar acerca del
Enfermagem da possibilidades de expansão do seu out possibilities for expanding saber/hacer de la enfermería,
Universidade Fede-
ral do Rio Grande do
campo de atuação, bem como dos the Nursing field, as well as apuntando posibilidades de
Sul (UFRGS). limites e desafios a serem venci- the boundaries and challenges expansión de su campo de actua-
Doutoranda em dos pelos profissionais da área. to be overcome by the area ción, así como de los límites y
Enfermagem pela
UNIFESP/EPM.
professionals. desafíos a ser vencidos por los
fatimalucena@ profesionales del área.
terra.com.br;
2 Professora Assis-
tente da Escola de DESCRITORES KEY WORDS DESCRIPTORES
Enfermagem da Conhecimento. Knowledge. Conocimiento.
UFRGS. Doutoranda Modelos organizacionais. Models, organizational. Modelos organizacionales.
em Enfermagem
pela UNIFESP/EPM. Prestação de cuidados de saúde. Delivery of health care. Prestación de cuidados de salud.
paskulin@orion.ufrgs.br Enfermagem. Nursing. Enfermería.
3 Professor Titular do
Departamento de
Enfermagem da
UNIFESP/EPM. ujeres.
4 Professor Adjunto do
Departamento de
Enfermagem da
UNIFESP/EPM.

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Rev Esc Enferm USP Construção doRecebido: 03/06/2004
conhecimento e do fazer
2006; 40(2):292-8. Aprovado:
enfermagem e os 27/06/2005
modelos assistenciais
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Souza MF, Gutierrez MGR.
INTRODUÇÃO canismos capazes de possibilitar essa tarefa, com vistas a
um projeto maior, ou seja, a produção.
A motivação em desenvolver esta reflexão surge do coti- A partir disso o modelo clínico vai se delineando, atra-
diano das autoras, enquanto enfermeiras assistenciais e vés de seu instrumento e objeto de trabalho, quais sejam, o
docentes, atuando em instituições públicas nas áreas de saber anátomo-fisiológico e o corpo doente. A finalidade
atenção básica à saúde, ambulatorial e hospitalar. Nestes neste modelo é a recuperação do corpo individual, sendo o
espaços, convivendo com os clientes, estudantes e pares médico a sua figura central, que através do saber clínico em
profissionais, deparam-se com as contradições do fazer/edu- suas ações de diagnóstico e terapêutica produz a recupera-
car evidenciadas por uma prática que, ao mesmo tempo em ção deste corpo. Inicialmente, o médico desempenha sozi-
que procura a transformação do modelo assistencial nho todas as etapas do processo de trabalho, no entanto, a
hegemônico, o confirma ou mantém na própria ação. Surge complexidade do conhecimento e a ampliação da infra-es-
então, o desafio de se (re)pensar o conhecimento da enfer- trutura hospitalar levam à necessidade de agregar outros
magem, durante uma das disciplinas do curso de doutora- trabalhadores e, conseqüentemente, separar o trabalho em
do/UNIFESP, em que as autoras deste trabalho propõem momentos intelectuais e manuais, cabendo ao médico a apro-
aproximar os referenciais dos modelos assistenciais à cons- priação do intelectual, o que lhe confere um espaço de po-
trução do conhecimento da enfermagem, abordando seus der sobre os demais trabalhadores em saúde. Nesta pers-
nexos e possibilidades de mudança. pectiva, coube à enfermagem o trabalho manual e esta apa-
rece como parte do trabalho médico, sendo a sua ação um
OS MODELOS ASSISTENCIAIS instrumento que cuida ou faz cuidar do corpo doente(4).
E A CONSTRUÇÃO DO
CONHECIMENTO DA ENFERMAGEM O poder sobre a vida desenvolve-se a partir do século
XVII nas disciplinas anátomo-políticas centradas no corpo
Modelo assistencial é uma construção histórica, política humano como máquina, ocupando-se do seu adestramento,
e social, organizada num contexto dinâmico, para atender ampliação de aptidões e extorsão de suas forças, integrados
aos interesses de grupos sociais. É uma forma de organiza- em sistemas de controle e econômicos(5).
ção do Estado e da sociedade civil, instituições de saúde, O corpo humano é visto como uma máquina e suas peças,
trabalhadores e empresas que atuam no setor para produzir sendo a doença o mau funcionamento de mecanismos bioló-
serviços de saúde(1). gicos e, o papel dos médicos a intervenção para consertar o
defeito de um determinado mecanismo danificado. Nessa pers-
Modelos assistenciais são ainda descritos como uma
pectiva, perde-se de vista o indivíduo como ser humano e
racionalidade, um modo de combinar tecnologias materiais e
essa análise reducionista não fornece a compreensão com-
não materiais utilizadas nos serviços de saúde, visando o
pleta e profunda dos seus problemas(6).
enfrentamento de problemas individuais e coletivos, num
determinado território para determinadas populações(2-3). Nesse contexto, os progressos da biologia no século
XIX foram acompanhados pela tecnologia médica, com no-
As conceituações de modelo assistencial permitem vis-
vos instrumentos de diagnóstico e tratamento, ao mesmo
lumbrar diferentes formas de intervenção sobre a realidade
tempo em que a atenção do médico se transferia do paciente
de saúde. Para isto, considera-se pertinente analisar o con-
para a doença, iniciando-se assim as especializações, as
texto histórico e porque não dizer a gênese do surgimento
quais atingem seu auge no século XX(6).
destes modelos, bem como a inserção da enfermagem en-
quanto profissão de saúde, que desempenha importante Desse modo, é junto ao surgimento do modelo clínico e
papel, não só na construção, mas também na implantação e o movimento capitalista, como resultado de transformações
manutenção destes modelos. sociais, modo de vida e concepções políticas e econômicas
da época, que emergem as idéias de Florence Nightingale.
Para tanto, utiliza-se da perspectiva político-econômica Neste período, durante sua atuação na Guerra da Criméia,
referida por Almeida e Rocha(4), que descrevem em seu estu- ela buscou maneiras de organizar o trabalho de enfermagem
do o nascimento do modelo clínico no final do século XVIII, e de estabelecer intervenções capazes de melhorar a quali-
paralelo ao surgimento do capitalismo, num movimento so- dade dos cuidados prestados, bem como, contribuir para
cial de transformação do hospital, enquanto local e instru- garantir a vida de muitos(7).
mento de cura. As transformações sociais advindas do capi-
talismo fizeram com que o corpo humano passasse a ser Esse fato marcante caracteriza o surgimento da Enferma-
visto como uma fonte de lucro, tanto para quem cuidava gem Moderna e o rápido abandono da enfermagem domici-
como para quem era cuidado, pois se constituía numa força liar, anteriormente predominante, para o ambiente hospita-
de trabalho. Este contexto, onde o controle a esta força apa- lar. A partir disso, a enfermagem passa organizar-se no sen-
rece como necessário, utiliza-se da saúde como um dos me- tido de, também, buscar maneiras para desenvolver um cor-

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po de conhecimentos próprios que, ainda hoje, sofre a influ- res que a diferenciam dos seus subordinados, reproduzindo
ência do modelo clínico. um modo de ação delineado pelo modelo tradicional(10).

A influência desse modelo à enfermagem enquanto dis- Conforme visto, embora o modelo clínico tenha fortes
ciplina, deu-se em seus instrumentos e objeto de trabalho, influências na enfermagem, cabe colocar que outra vertente
conforme afirmado por alguns autores, que reforçam as idéi- que emergiu, com o capitalismo, para dar conta das necessi-
as de que o corpo individual, objeto de trabalho do proces- dades de saúde das sociedades foi o modelo epidemiológico.
so de trabalho médico, passa conseqüentemente também a Neste, a concepção da doença não é o fenômeno individual
ser o objeto da atividade de cuidar da enfermagem, que uti- centrado no corpo doente, mas a doença como fenômeno
liza instrumentos de trabalho também semelhantes para sua coletivo. A necessidade de controlar estes fenômenos se
ação de cuidar. Do mesmo modo que o objeto, a finalidade deu historicamente na Europa Ocidental nos séculos XVII,
deste cuidar é a mesma do trabalho médico, ou seja, curar XVIII e XIX, quando as epidemias assolaram os países com
corpos individuais(4-8). muitas mortes. Nesta época, desenvolveu-se na Alemanha,
França e Inglaterra o movimento da medicina social, que
As influências desse modelo na enfermagem ainda são visou o controle da doença na população. Para isto foram
descritas, de certa forma, pela interpretação e trajetória do utilizados como instrumentos o saneamento, a higiene soci-
cuidado na enfermagem, que aqui se pode traduzir como al, a política médica, a quarentena, as estatísticas de morta-
uma forma de conhecimento. Esse é abordado sob diversos lidade, entre outros. A enfermagem neste modelo é uma par-
prismas, dentre eles as questões históricas, as influências cela do trabalho em saúde em nível coletivo, é também um
do capitalismo, bem como, do próprio modelo de saúde. instrumento de trabalho, porém não mais do trabalho médi-
Por influência do capitalismo e, por conseguinte, do co, mas sim um dos instrumentos de saúde onde todos os
modelo clínico, a enfermagem brasileira, assim como a de saberes e práticas subordinam-se às necessidades sociais
outros países, passa a desvalorizar o cui- de saúde da população(4).
dado, atendendo a uma ideologia de cura, Na enfermagem brasileira
Os princípios desse modelo seriam a ou-
deixando-se ocupar por ações curativas, uti-
há outro aspecto tra forma de poder sobre a vida denominada
lizando-se de tecnologias cada vez mais so-
diferencial a ser de bio-política da população, centrado no
fisticadas. O ensino é realizado com ênfase
corpo como espécie, controlando os pro-
nas técnicas de enfermagem, onde a habili- considerado, já que as
cessos da vida, tais como, a proliferação de
dade manual, a capacidade de memorização, enfermeiras afastam-se
dos pacientes e do doenças, a natalidade e mortalidade. Inicia-
a postura e a mecânica corporal no desen-
se assim, a era do bio-poder, onde pela pri-
volvimento das técnicas são imprescindí- cuidado direto
meira vez, na história do homem, o biológi-
veis, além do capricho, organização e per-
co relaciona-se com o político e os saberes
feição. O objeto da enfermagem deixa de ser
sobre o corpo individual e em relação às populações deter-
o cuidado centrado no paciente, para centrar-se na tarefa a
minarão o domínio sobre a vida(5).
ser executada(9).

Na enfermagem brasileira há outro aspecto diferencial a Diante do exposto sobre os modelos clínico e epide-
ser considerado, já que as enfermeiras afastam-se dos paci- miológico concorda-se com a idéia de que, ao analisá-los
entes e do cuidado direto ao serem solicitadas, por sua for- não se verifica incompatibilidade de caráter essencial entre
mação universitária e ao reduzido número, para tarefas de ambos no plano do conhecimento, mas sim que devem ser
liderança de equipe, organização e planejamento(9). apreendidos dialeticamente como unidade de contrários. No
campo prático, quando se determinam enquanto tecnologia,
Sobre esse ponto, outros autores(4) colocam que o admi- necessariamente serão pólos contrários, nas dimensões do
nistrar, que é realizado apenas pela enfermeira e não pelas individual e do coletivo, não devendo esta oposição
demais categorias de enfermagem, utiliza-se de instrumentos tendencial ser compreendida como insolúvel, mas como
como os modelos de administração, normas e rotinas, força complementariedade do movimento(11).
de trabalho dos auxiliares, equipamentos e materiais. Sua fina-
lidade imediata é a organização e o controle do processo de Embora os dois modelos descritos não sejam excluden-
trabalho e a mediata a de favorecer o cuidar para a cura. tes, observa-se que na prática ainda existe, mesmo nos dias
de hoje, um predomínio do modelo clínico em relação ao
Reforçando a idéia de controle do processo de trabalho epidemiológico. Ao falar disto, reporta-se à experiência pro-
na enfermagem, encontra-se descrito, que assim como o fissional de duas das autoras do presente estudo que, no
médico está em posição central e dominante sobre os demais contexto hospitalar como enfermeiras assistenciais em uni-
profissionais de saúde no modelo clínico, a enfermeira tam- dades de tratamento intensivo e pronto-atendimento, verifi-
bém desenvolve uma relação de dominação sobre os auxilia- cam a grande influência dos princípios do modelo clínico.
res, através da divisão técnica e social do trabalho, com pode- Esses serviços, que têm por finalidade tratar pacientes en-

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fermos, dispõem de organização própria, funcionando A construção do conhecimento vem acontecendo no
como ilhas dentro do sistema de saúde, contando com processo de trabalho da enfermagem, através de várias for-
tecnologia avançada e tratamento altamente especializa- mas, aonde o improviso e a criatividade têm sido preponde-
do, o que talvez colabore para que o trabalho de enferma- rantes. No entanto, é preciso que esta construção seja
gem seja, muitas vezes, orientado numa única direção, a potencializada pelo posicionamento crítico diante do conhe-
cura de corpos doentes, enfocando predominantemente cimento produzido. Assim, a produção do conhecimento na
o aspecto biológico e individual, desconsiderando o con- enfermagem pode se dar no cotidiano de trabalho, decorren-
texto psicossocial e político, em que estão inseridos os do de interesses e necessidades práticas do dia-a-dia(12).
indivíduos que cuidamos.
Em consonância a essas idéias, acredita-se que a produ-
Ainda sobre as experiências, das autoras referidas no ção gerada no cotidiano da enfermagem necessita ir além do
parágrafo anterior, em saúde coletiva se observa, também, a improviso e ser documentada, para que assim contribua com
influência da perspectiva biomédica no saber/fazer da enfer- o crescimento da profissão, pois a ciência emerge do discur-
magem nesta área de atenção. Exemplificando-se, pode-se so do cotidiano e/ou artesanal(13).
dizer que, muitas vezes, as ações desenvolvidas seguem
sendo realizadas com maior enfoque na perspectiva indivi- A partir dessa revisão quanto à gênese dos modelos
dual: a doença e o tratamento médico, o fornecimento das clínico e epidemiológico e suas influências na construção
medicações, a triagem dos mais graves, a referência para do conhecimento da enfermagem, verifica-se que estes são
especialistas e emergências. Desse modo, o enfoque se centra também, a base para a conceituação dos modelos assis-
na prevenção/tratamento/reabilitação da doença tenciais vigentes que, por sua vez, apontam para uma tenta-
desconsiderando-a como fenômeno coletivo. tiva de ruptura de saberes já estabelecidos na construção
de novos modelos.
Nas vivências de ensino em saúde cole-
tiva, observa-se que os alunos, recém in- Os Modelos Assistenciais Vigentes no
Os modelos assistenciais Contexto da Saúde Brasileira
gressos no curso de graduação de enferma-
gem, relatam suas preferências em desen-
alternativos vêm
volver atividades relacionadas a procedimen- sendo pensados e Os modelos assistenciais vigentes, no
tos, em conhecer a fisiopatologia e tratamen- experienciados visando contexto atual da saúde brasileira, são apre-
to das doenças em detrimento das ativida- uma mudança de lógica sentados como hegemônicos e alternativos.
des educativas, dos contatos com as pes- de atenção, baseada nas O primeiro está representado fundamental-
soas da comunidade, do contexto onde a necessidades de mente pela concepção médica assistencial
comunidade está inserida, de participar de saúde da população privatista e o segundo por propostas alter-
reuniões comunitárias, de realizar ações de nativas que contemplem os princípios do
escuta, entre outros. Alguns alunos chegam Sistema Único de Saúde - SUS (3)
.
a relatar que estas últimas atividades poderiam ser executa-
Dentre os modelos hegemônicos, encontra-se o médico-
das pelos agentes comunitários, ficando as ações mais no-
assistencial privatista, o qual se baseia na organização dos
bres, dentro do posto, para os profissionais de nível superi-
serviços em conformidade com a demanda espontânea, onde
or. Sabe-se que estas posições são reforçadas pelas repre-
o usuário procura o atendimento de acordo com o seu sofri-
sentações sociais que os estudantes trazem consigo, refor-
mento e/ou conhecimento quanto às questões de saúde/
çadas pelas experiências pessoais e familiares, enquanto
doença. É um modelo que se volta essencialmente para a
usuários do sistema e na convivência com alguns profissio-
cura do corpo doente(3).
nais. Há de se considerar também, o enfoque biológico das
demais disciplinas iniciais do curso tais como anatomia, fisi- É abordado ainda, a concepção de que o modelo
ologia, patologia, entre outras. Através deste relato, fica cla- assistencial sanitarista é uma forma complementar ao anteri-
ro a necessidade do compromisso das instituições de ensi- or, onde as instituições públicas atendem às necessidades
no em modificar estas representações, sem contudo despre- de saúde da população, através de campanhas sanitárias e
zar o aspecto biológico. O desafio é encontrar o ponto de programas de saúde pública. E, tanto as campanhas sanitá-
equilíbrio, propiciando a transformação destes referenciais rias como os programas de saúde se desenvolvem através
na prática profissional. de administração única e verticalizada(3).

Assim, ao se abordar as questões do cotidiano na enfer- Por outro lado, os modelos assistenciais alternativos vêm
magem, identifica-se que este é um dos espaços que, por sendo pensados e experienciados visando uma mudança de
excelência, necessita ser utilizado não apenas para o uso e a lógica de atenção, baseada nas necessidades de saúde da
socialização do conhecimento já posto, mas também para a população, as quais são identificadas mediante estudos
sua (re)construção. epidemiológicos, com uma oferta organizada de serviços
planejados, a partir dos referenciais de territorialização,

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integralidade de atenção e impacto epidemiológico. Ao con- No contexto da saúde brasileira, mais especificamente
trário do modelo anterior, o planejamento das ações envolve no que diz respeito às suas políticas norteadoras, observa-
um processo descentralizado onde as instituições de saúde se uma proposta de mudança de paradigma relacionada aos
devem garantir certa racionalidade na utilização dos recur- modelos assistenciais, com o advento da Reforma Sanitária,
sos disponíveis, o alcance dos objetivos definidos e a parti- a qual propôs novos conceitos que foram firmados na Cons-
cipação de segmentos sociais interessados. As idéias desse tituição Federal de 1988, através do Sistema Único de Saúde
modelo são ilustradas pelas experiências de vigilância em (SUS), em seus princípios de integralidade, universalidade e
saúde, ações programáticas em saúde e cidades saudáveis, equidade.
entre outras(3).
Nesse sentido, as intervenções em saúde coletiva de-
O Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) vem enfocar as relações dos sujeitos no seu cotidiano, su-
e o Programa de Saúde da Família (PSF), apesar de serem perando a visão da coletividade como uma coleção de indi-
modelos de atenção hegemônicos, propõem uma oferta or- víduos homogêneos, e onde o objeto da ação deixa de ser o
ganizada de atenção à saúde e não apenas o atendimento da corpo biológico para ser os corpos sociais no processo
demanda espontânea(3). Esses, poderão reorientar o sistema saúde-doença(15).
de saúde, à medida em que deixarem de ter uma gestão
verticalizada e aproximarem-se do modelo de intervenção da Atualmente, os modelos assistenciais que contemplam
vigilância à saúde. os preceitos da Reforma Sanitária e do SUS são os definidos
como alternativos(3). Nesta perspectiva observa-se que os
Esses programas, embora tenham sido propostos numa enfermeiros dispõem de uma oportunidade ímpar para a cons-
perspectiva de mudança de modelo assistencial, são inca- trução de novas tecnologias de trabalho. Assim, alia-se à
pazes de atingir este objetivo. Pois, a inversão do modelo proposição de que o desafio da enfermagem é o de concre-
assistencial exige mudanças estruturais muito mais abran- tizar, na prática técnica, social e política, a ideologização e
gentes do que a intervenção dos profissionais(14). institucionalização de novos fundamentos para a práxis da
enfermagem, como o cuidar para uma vida plena e digna,
A despeito desses problemas há de se considerar a valo- direito de todo o cidadão(14).
rização dos profissionais enfermeiros na estrutura e funcio-
namento desses programas e as possibilidades de utilizarem Dessa forma, acredita-se que um dos caminhos a serem
este espaço para a construção de novos saberes/fazeres na trilhados pela enfermagem seria assumir esse novo desafio
enfermagem brasileira. na sua prática cotidiana, superando a utilização predomi-
nante dos conceitos do modelo biomédico e de sua tecno-
OS MODELOS ASSISTENCIAIS logia no tratamento da doença, no cuidado de enfermagem
ALTERNATIVOS E A CONSTRUÇÃO dispensado aos usuários dos serviços de saúde. É claro que
DO CONHECIMENTO DA ENFERMAGEM as representações hegemônicas pesam nesta opção, onde
muitos enfermeiros têm se sentido valorizados ao serem res-
ponsáveis por tomadas de decisões com a clientela, no que
O nascimento de uma disciplina científica é uma nova
tange às abordagens clínicas. Mas será por aí o caminho?
maneira de considerar o mundo, que se estrutura em resso-
Ou estar-se-á assim, a reforçar o modelo tradicional?
nância com as condições culturais, econômicas e sociais de
cada época. Em torno de cada disciplina científica existem Legalmente e operacionalmente os princípios estão pos-
regras, princípios, estruturas mentais, instrumentos, normas tos, mas tem-se que ter a coragem de enfrentar esse desafio,
culturais e/ou práticas, que organizam o mundo antes de seu de colocar em prática o que, muitas vezes, vê-se ser dito
estudo mais aprofundado(13). Desta forma, existem momen- como teoria, de inovar em processos já instituídos e propor
tos em que as evidências de um paradigma são colocadas em rupturas no saber já estruturado. Pois, não existe saber aca-
questão, de acordo com o tempo e o momento vividos. bado e definitivo(16) e o conhecimento na enfermagem não é
limitado por fronteiras, mas necessário é saber aplicá-lo,
O paradigma norteador da medicina científica ocidental
considerando variáveis e historicidade do contexto.
se caracteriza, historicamente, por privilegiar o diagnósti-
co da doença e, em conseqüência, o profissional da equipe Além de considerar as possibilidades de ruptura e cons-
de saúde mais próximo, o médico, com uma tendência em trução de novos conhecimentos, deve-se levar em conside-
menosprezar o trabalho de outros profissionais como os ração o compromisso social do profissional, já que qualquer
enfermeiros. Nesta lógica do atendimento da doença, o saber expressivo e produtivo deve ser o que tenha um com-
paradigma veicula uma série de escolhas de prioridade, promisso e o empenho em fazer diferença significante nas
como por exemplo, a da cura sobre a higiene e o bem viver, vidas dos clientes e comunidades a quem servimos(16).
do corpo sobre a psicologia, das especializações sobre a
medicina geral, e assim por diante, determinando escolhas O momento proporciona trabalhar com a comunidade e
políticas e econômicas(13). com a promoção da saúde, construindo-se novos saberes

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de enfermagem não menos qualificados, mas pautados numa seu conhecimento e autonomia profissional junto à clientela
ótica diversa da prevalente. Também para a área hospitalar onde a resolutividade não deve ser entendida apenas na
estes conhecimentos podem ser transpostos, de modo a perspectiva da doença, mas também no sentido de promo-
permitir uma mudança na lógica de atenção, onde o enfoque ção de saúde.
pode deixar de ser apenas o tratamento da doença, para
contemplar uma questão mais abrangente em que o indiví- Retomando a idéia da valorização dos espaços
duo, que se encontra momentaneamente doente, após interseçores se acredita, entretanto, que esta alternativa não
retornará para o contexto social do qual faz parte. deve significar a migração para o polo contrário, ao negar-
se ou menosprezar-se o conhecimento clínico(11). Pensa-se
Nessa direção, utiliza-se a proposta de desenvolvimento ser necessário poder se movimentar entre os dois campos,
de tecnologias leves e, a importância em construirmos espa- valorizando as questões objetivas e subjetivas do andar da
ços interseçores entre o usuário e o trabalhador produtor do vida. Esta perspectiva não deve se dar apenas no contexto
ato. Processo este, que pode ser construído para além da da atenção básica, mas também nos cenários dos demais
carência e falta de algo, mas na dimensão de um sujeito que níveis de atenção, guardadas as suas especificidades.
deseja positivamente existir. Isto tudo, pautado numa ótica O saber da enfermagem, aliado aos modelos assistenciais
pela ética do compromisso com a vida e expressas em ato alternativos existe de alguma forma, pois em suas práticas
nas dimensões assistenciais do trabalho em saúde, como a cotidianas, muitos profissionais desenvolvem ações que
relação de acolhimento, a criação do vínculo, a produção da contemplam as idéias norteadoras dos mesmos, porém, ain-
resolutividade e a criação de maiores graus de autonomia, da não se encontram legitimadas para a construção do sa-
no modo das pessoas andarem a vida(17). ber. Deste modo, ao questionar-se quanto a existência de
um saber específico da enfermagem reporta-
Assim sendo, estratégias como o acolhi-
se às idéias de que o objeto de uma discipli-
mento que, muitas vezes, é relegado apenas É necessário que a na não existe antes da existência da própria
aos auxiliares de enfermagem das unidades
enfermagem se questione disciplina, mas é construído por ela. E ainda,
de saúde, ou que representam uma mera con-
tinuidade nas atividades de triagem sobre o impacto de suas que uma disciplina científica não é definida
ações e assuma na pelo objeto que estuda, mas sim, é ela que o
travestidas de um nome atualizado, pode re-
construção de uma determina(13) e, na sua evolução este poderá
presentar uma oportunidade de vínculo en-
tre o enfermeiro e a clientela, para além da prática interdisciplinar, variar e se transformar.
queixa da doença, favorecendo o estabele- o seu núcleo de
cimento de sentimentos de confiança e de competência e CONSIDERAÇÕES FINAIS
sentir-se ouvido em suas necessidades e ex- responsabilidade,
pectativas(18). Do mesmo modo, a enfermei- o cuidado. Esta reflexão enfoca as origens e princi-
ra deve estar inserida na equipe de saúde, pais características dos modelos clínico e
assumindo sua parcela de responsabilidade epidemiológico e seus nexos com os mode-
na atenção direta à clientela, realizando atividades junto a los assistenciais vigentes, no sistema de saúde brasileiro, e a
grupos de apoio, visitas domiciliares e consultas de enfer- inserção da construção do conhecimento da enfermagem neste
magem (nem pré, nem pós-consulta médica). Pode ainda, contexto. Nesta perspectiva, as autoras propõem um repen-
tomar frente nas ações de promoção da saúde, invertendo sar quanto ao saber/fazer da enfermagem, indo além do co-
as prioridades em relação às atividades burocráticas e a pre- nhecimento preestabelecido pelos modelos tradicionais. Pen-
dominância do papel administrativo(19) que, muitas vezes, sam que a ampliação do campo das ações de enfermagem à
os enfermeiros assumem para si, porque não há quem os saúde passa necessariamente por assumir os referenciais da
faça. Por que o enfermeiro é quem deve assumir estes encar- Reforma Sanitária nesta construção, assumindo estrategica-
gos? A mesma justificativa de que não há pessoal, também mente este espaço colocado, apoiado tanto nestes referenciais
é utilizada pelos profissionais da área da saúde, para que as como nos princípios legais que o apóiam. Para isto, cabe à
ações de promoção não possam ser feitas, porém estas são enfermagem valorizar e buscar o saber popular, o controle
muito mais resolutivas e propiciam mais reconhecimento social, a promoção da saúde do sujeito individual e coletivo,
profissional do que tomar para si os encargos burocráticos. sem romper com suas conexões sociais, (re)definindo assim,
seus instrumentos e objeto de trabalho.
É necessário que a enfermagem se questione sobre o
impacto de suas ações e assuma na construção de uma Apreender essas necessidades das quais tanto se fala,
prática interdisciplinar, o seu núcleo de competência e res- mas que ainda não se consegue transitar efetivamente no
ponsabilidade, o cuidado . (15) sentido de atendê-las, provavelmente, por ser um caminho
difícil, tanto em relação a clientela como aos profissionais
A busca de estratégias resolutivas passa necessariamente (principalmente), é que talvez seja o maior desafio, exigindo
pela forma de atuação do enfermeiro, que necessita usar o consciência, comprometimento e vontade de mudar.

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Rev Esc Enferm USP Correspondência:
Construção do conhecimento
Amália de Fátima
e do
Lucena
fazer
2006; 40(2):292-8. Rua Eça
enfermagem
de Queiroz,e819
os modelos
- Ap. 801 assistenciais
www.ee.usp.br/reeusp/ Lucena AF, -Paslulin
CEP 90670-020 LMG, - RS
Porto Alegre
Souza MF, Gutierrez MGR.

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