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especialmente da primeira, quando foi levado por seu pai, quando tinha mais ou
menos catorze anos. Seu destino foi Lagos, hoje a capital da Nigéria, mas, àquela
época, uma colônia que centralizava a crescente expansão colonial inglesa sobre os
povos iorubás e seus vizinhos. Martiniano, segundo sua entrevista a Pierson, ficou
em Lagos "onze anos e nove meses, de 1875 até 1886". Mais tarde, retornaria à
África - para ele, "África" era Lagos, eram os nagôs/iorubás, sua nação - onde
esteve por mais um ano. Três anos depois, tornaria a voltar "para vender coral, lã
grossa e fina e comprou pano-da-Costa para vender aqui".
Martiniano Eliseu do Bonfim, também conhecido como Ojé L’adê, foi o grande precursor do
retorno às raízes africanas e da busca de elementos capazes de fortificar as práticas religiosas
dos negros ex-escravos.
Tendo por volta dos 14 anos de idade (aproximadamente em 1875), Martiniano do Bonfim fez
uma viagem com o pai à África e aí aperfeiçoou seu iorubá e inglês, que aprendeu numa escola
de missionários ingleses.
Quando voltou ao Brasil, 11 anos depois, Martiniano já era um babalaô. As leituras de
Martiniano em Lagos sobre as tradições yorubás, além de vasto corpo de tradição oral, que
sem dúvida se familiarizara, é que lhe permitiram recriar os títulos de Obá de Xangô.
Essas mesmas afirmações reaparecem em diversos escritos de Verger, por exemplo, na introdução ao volume VERGER, Pierre. Dieux
d’Afrique. Préfaces de Théodore Monod et Roger Bastide. Cent- soixante photographies de l’auteur. Paris: Éditions Revue Noire, 1995
[1954]. p. 33. “Na África, a apresentação de fotografias dos cultos brasileiros e a comunicação de textos das canções rituais e de certos
Oriki (forma de saudação, em que são enunciadas louvações aos orixás, exaltando o seu poder e proezas) inteligíveis facilitaram as
primeiras relações e criaram um laço imediato”. Em 1957, na Introdução a Notas sobre o culto dos orixás e voduns. Trad. Carlos Eugênio
Marcondes de Moura. São Paulo: Edusp, 1998 [1957]. p. 14, reafirma: “De volta ao Brasil, o conjunto de elementos trazidos da África –
informações, fotos, certos objetos carregados de ase (força sagrada), entregues aos fiéis dos Orisa na Bahia – deu um pouco de crédito a
quem, do ponto de vista da seita, ainda era um ‘clandestino’ e foi admitido a se incluir entre aqueles que os Orisa protegem”. Em 1982,
volta a insistir: “Alafin Oyó, rei dos Iorubás recebeu-me com afabilidade e ficou feliz em saber que o culto de Xangô, seu ancestral, era
popular no Brasil, em Cuba e em Trinidade. Ofereci-lhe um retrato de Senhora e lhe disse que era ela descendente em quinta geração de
uma Iyanaso Oyó. Ora, Iyanaso é o título outorgado a sacerdotisa do templo de Xangô que existe no palácio real. Ele mandou chamar a
Iyanaso atual para que eu a fotografasse e poder (sic) mostrar seu retrato à Senhora”. VERGER, Pierre. 50 anos de fotografia. op. cit., p.
258.
Como quer que tenha sido, contudo, a ida à África de africanos libertos e de seus filhos, pelos
fins do século XIX, era, naquele tempo, um importante elemento legitimador de prestígio e
gerador de conhecimentos e poder econômico. Enquanto negociavam várias mercadorias
trazidas da Costa e levadas do Brasil, também, como hoje se diz, reciclavam o saber da tradição
religiosa aprendida com "os antigos", nos terreiros da Bahia. Assim foi com Martiniano, que
voltou de Lagos "cheio de saber e razão", para integrar-se pelo resto da vida na comunidade
baiana que permeava com naturalidade e orgulho.
[...] Nem mesmo visito os terreiros desde que dona Aninha - descanse em paz! - se foi.
Considero-a a'última das mães [...] Sinto saudades dela agora. Acho que toda a Bahia sente.
Não faço questão de pisar em nenhum dos outros templos, mesmo que me convidem.
Nenhum deles faz as coisas direito como ela fazia. Não acredito que saibam falar com os
santos e trazê-los para dançar nos terreiros dos templos.
Eduardo Ijexá. O velho pai-de-santo, nos seus oitenta anos já completados,
queixou-se longamente, a mim, da ligeireza dos costumes, da improvisação dos
rituais e das cantigas, do desconhecimento da língua sagrada do povo-de-santo
daqueles dias
...". Este tom de laudator temporis acti domina a memória dos pais e mães-de-
santo da Bahia, que estão sempre evocando "os mitos pretéritos" da tradição de
suas casas, de uma forma valorativa e discriminatória.
Minha seita é puramente nagô, como o Engenho Velho. Mas eu tenho ressuscitado
grande parte da tradição africana que mesmo o Engenho Velho tinha esquecido.
Eles têm uma cerimônia para os doze ministros de Xangô? Não! Mas eu tenho!
Somos tão cristãos como os católicos. Mas seguimos também a lei de Moisés. Ele
ordenou que os sacrifícios fossem feitos com carneiros, cabras, bois, galinhas,
pombos e assim por diante. Não é verdade? Nós apenas obedecemos a seus
mandamentos. Existem duas partes na Bíblia, não é assim? Velho e o Novo
Testamento. Nós seguimos o Velho tanto quanto o Novo. Antes de Cristo, o povo
adorava deus com cantos e danças. Não é verdade? Davi tocava harpa, cantava
salmos e dançava ante o Senhor. Nós temos nossos cantos também e cada um
deles tem uma significação especial. Assim como os católicos têm imagens para
seus santos, nós temos alguma coisa para lembrar os nossos orixás. Mas não
adoramos imagens feitas pelas mãos dos homens como eles fazem. Adoramos a
natureza.
Essa negra alta, disposta, falando claro e corretamente, o beiço inferior avançando
em ponta, era bem o expoente da raça negra do Brasil, síntese feliz da soma de
conhecimentos da velha Maria Bada e da agilidade intelectual de Martiniano do
Bonfim.
Muito fez pela preservação das tradições africanas no candomblé da Bahia. Darei
apenas dois exemplos. Em quarto guardado à vista dos curiosos e de estranhos,
prestava culto a Yá, a deusa das águas dos negros galinhas (grunces), uma
tradição já, então, desaparecida. E foi Aninha quem, no ano passado (1937), trouxe
para o Opô Afonjá a festa africana dos obás de Xangô, empossando os seus doze
ministros com o rito próprio, há muito esquecido pelos chefes e pelos aderentes das
religiões populares.
O culto da "deusa das águas dos negros galinhas", a que se refere Carneiro, é
também mencionado por D. M. Santos, ao falar sobre a implantação do terreiro de
São Gonçalo por Aninha
[...] Daí, Iyá Obá Biyi, com sua boa vontade, seu espírito batalhador e a ajuda de
todos que acompanhavam, continuou a construir o Axé, fazendo casas nos assentos
já existentes para Exu, para Oxalá, está com um quarto para as Ayabás, para a
Iemanjá denominado Ilê Iyá, onde Mãe Aninha adorava Iya n'ilé Gruncis (a mãe da
terra de Gruncis, na África), outra para Obaluaiê, a de Oxossi e a casa de Ilê Ibô
Iku (casa de veneração aos mortos) [...]
Nesse quarto, uma extensão da casa de Oxalá, mas dela independente pela
fachada voltada para a casa de Xangô, não se acende luz elétrica e até hoje se
mantém, no ciclo das festas da Casa, uma obrigação especial para a santa da terra
dos pais de Aninha. Esta misteriosa e preservada santa, a Iyá dos grunces -
remanescente de um panteão para sempre perdido, é assim identificada com a
Iemanjá nagô, também uma santa das águas, dos rios. Pode-se, até supor que
talvez fossem semelhantes em suas epifanias originais. Ambas divindades das
águas, dos rios. A Ia dos grunces, quem sabe de que afluente do rio Volta e a
Iemanjá nagô, do rio Ogun que corta a terra dos egbás. Foi, aliás, na casa de Iá,
que Aninha - como conta D. M. Santos - quis morrer, num retorno definitivo à terra
africana de seus pais, Aniió e Azambriió:
[...] Pediu que a levassem para a casa de Iyá, onde, depois de ter feito alguns
preceitos com o cuidado e o auxílio da maior parte das suas filhas-de-santo, que lá
se encontravam, alguns Obás e Ogans também presentes, perdeu a fala e veio a
falecer, às quinze horas, na presença de seu médico assistente, dr. Rafael Menezes
que ainda chegou a tempo de vê-la dar o último suspiro
Vejamos alguns dos cargos mais importantes da corte de Oió e sua correspondência
com a hierarquia do candomblé de nação nagô.
Basorun – primeiro ministro e presidente do conselho real, que tinha mais poder que o
próprio rei, exercendo também a função de regente quando da morte do rei até a
ascensão do sucessor. No candomblé é título dado a homem que ajuda na administração
do terreiro, um dos membros do corpo de ministros em terreiros dedicados a Xangô.
Alààpínní – chefe do culto de egungum. No Brasil, igualmente alto sacerdote do culto
dos ancestrais.
Lágùnnòn – embaixador do rei que tinha como encargo o culto ao orixá Ocô, divindade
da agricultura. No candomblé, espécie de ajudante do pai-de-santo na provisão do
terreiro.
Akinikú – chefe dos rituais fúnebres. No Brasil, oficial do axexê, que pode ser um
babalorixá ou ialorixá ou algum ebômi ou ogã especializado nos ritos mortuários.
Ìyá-nàsó – mãe do culto do Xangô do rei (divindade pessoal). No Brasil, nome de uma
das fundadoras do candomblé e título feminino.
Ìyá mondè ou bàbá – Mulher que cultua os espíritos dos reis mortos. Chamam-na
também de Bàbá. O alafim dirige-se a ela como “pai”, pois elas detêm a autoridade do
“pai”, como as dirigentes da umbanda brasileira, também chamadas de babá.
Ìyá-le-agbò – prepara os banhos rituais do rei. No candomblé, mulher que cuida dos
potes de amassi.
Ìyá-kèré – chefe das mulheres ilaris; é ela quem coroa o rei no ato de sua entronização.
A atribuição, mantida, é hoje no candomblé da competência de pais e mães-de-santo
que colocam no trono o novo chefe do terreiro nas ocasiões de sucessão.
Muitos outros títulos do candomblé foram tomados de outras cidades e instituições que
não a corte de Oió, mas é inescondível a importância da cidade de Xangô na
estruturação dos terreiros brasileiros de origem iorubá. De toda sorte, são variadas as
adaptações, muitas vezes esvaziando-se o cargo de suas funções originais.
O conjunto dos obás da direita criados por mãe Aninha é constituído dos seguintes
cargos: Abíódún (nome que designa aquele nascido no dia da festa); Àre (título que se
dá a uma pessoa proeminente da corte); Àrólu (o eleito da cidade); Tèla (nome
masculino da realeza de Oió); Odofun (cargo da sociedade Ogboni); Kakanfò (título do
general do exército). Os da esquerda são: Onansòkun (pai oficial do obá de Oió); Aressá
(título do obá de Aresá); Eleryin (título do obá de Erin); Oni Koyí (título do obá de
Ikoyi); Olugbòn (título do obá de Igbon); e Sòrun (chefe do conselho do rei de Oió).
Estes nomes designam hoje postos sacerdotais, dignidades religiosas; na África
designavam cargos de homens poderosos que controlavam a sociedade ioruba e suas
cidades.
Um rei africano era, antes de mais nada, um guerreiro. Guerras, conquistas, povoamento
de novas terras, escravidão, descoberta e renascimento, tudo isso faz parte da história de
Xangô, rei e guerreiro, como faz parte das memórias de nossa própria civilização de
brasileiros. Mas Xangô é mais que história da África e mais que história do Brasil. Seu
duplo machado visa a justiça para cada um dos dois lados que se opõem na contenda,
suas pedras-de-raio são o santuário guardião das esperanças de tanta gente que padece
em conseqüência das mazelas de nossa sociedade: desemprego, falta de oportunidades,
incompreensão e dificuldade no trabalho, escassez de meios de sobrevivência,
perseguição e disputas insanas, inveja, complicações legais de toda sorte, e tantas outras
coisas ruins. Apelar a Xangô, para o devoto, é buscar alento, realimentar esperanças,
prover-se de forças para a difícil aventura da vida.
Armando Vallado
Resumo:
Partindo do relato mítico do orixá do trovão na história dos povos iorubás, o texto trata da importância do culto
africano de Xangô na formação de ritos e cargos do candomblé instituído no Brasil. Apresenta principais variações
rituais inscritas nos avatares do orixá e nos arquétipos de personalidade de seus filhos. Mostra também como muitos
postos e títulos usados no candomblé correspondem a adaptações feitas a partir da estrutura administrativa da cidade
de Oió, da qual Xangô teria sido um dos primeiros governantes e da qual é o grande patrono.
Reginaldo Prandi:
Professor Titular de Sociologia da Universidade de São Paulo, é autor de Os candomblés de São Paulo (1991),
Herdeiras do axé (1996), Mitologia dos orixás (2000), Encantaria brasileira (organizador, 2001), Segredos
guardados (2005), e dos infanto-juvenis Os príncipes do destino (2001), Ifá, o Adivinho (2002), Xangô, o Trovão
(2003), Oxumarê, o Arco-Íris (2005), Minha querida assombração (2003), entre outros livros.
Armando Vallado:
Mestre e Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, é babalorixá do candomblé Casa das Águas, e autor
do livro Iemanjá, a grande mãe africana do Brasil (2002).
(4)A confirma~ão num iposto qualquer nas casas-de-santo é uma cerimônia que
ratifica o irtatus do membro do grupo na categoria a que ascendeu, Depuas de escm
Ihido, o candidato é confirmado, e, s6 então é que adquire todos os direitos atribuídos
à sua posição.
(63) Alafin, o titulo do Obá, do Rei dos iorubás. Alafin significa "o Dono do
Afk", "o Senhor do Palácio". Abraham: "aafin palace.. . Alaaafin, Title of the Ruler
o£ Oyo". S6bre o Alafim Abiodum e seu reinado, ver Johnwn, ob. cit., pp. 182-7.
da cidade"; de iya, mXe e ilu, cidade = lyalu. Vale lembrar que êste pôsto é
conhecido na Bahia associado ao culto de Ifá. A Ialorixá Olga de Iansá, Oiá Funmi.
tlo antigo Candomble do Alaqueto, no Matatu de Brotas em Salvador, possui também
o titulo d,e Ialíi 1fá. D