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A proposta deste ensaio é tratar acerca das raízes da intolerância religiosa no Brasil a partir de
um breve panorama histórico da criminalização da prática do culto de matriz africana como
um subproduto da escravidão. Deste modo, será feita uma breve abordagem sobre a adaptação
da fé africana trazia em diáspora ao Brasil. Chamo o conjunto de crenças trazidas de África de
Religiões de Matrizes Africanas, fazendo uso também, ao longo do texto, do termo
candomblé, umbanda, terreiros, mas sempre tendo este termo como norte, por entender que
esta concepção possui melhor compreensão da diversidade religiosa trazida e adaptada ao
Brasil sob diferentes tradições. Este termo tem sido constantemente adotado por
pesquisadores da área e tem como base o Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável de
Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana promulgado pelo Governo Brasileiro
em 2013. Nele se concebe:
Podemos dizer que o candomblé é uma das principais manifestações de culto de Matriz
Africana, sendo evidenciado na sociedade e em diversos estudos. Contudo, partilham também
destas raízes a Umbanda, o Batuque, o Tambor de Mina, o Catimbó… Tradições estas que
também agregam elementos da espiritualidade indígena.
O período compreendido entre os Séculos XVI e XIX o qual trouxe ao Brasil homens e
mulheres oriundos do continente africanos, arrancados à força de sua terra, chamamos aqui de
Diáspora Africana. É neste período que africanos dos atuais territórios de Angola, Congo,
Benin, Nigéria, Moçambique e Senegal trouxeram consigo suas práticas rituais de fé,
renegadas pelos senhores e pela Igreja. Identificamos nos povos africanos para cá trazidos três
principais matrizes culturais as quais sua cosmovisão e saberes se condensam em novos
sistemas religiosos, tratam-se dos povos Bantu, Fon e Iorubá.
Um dos estudos pioneiros sobre a origem do candomblé no Brasil foi publicado pelo etnólogo
Pierre Verger que, ao ter contato com o candomblé, adquire verdadeiro fascínio que o leva a
pesquisar as raízes do culto em África e por isso viaja ao Daomé (atual Benin) e à Nigéria a
fim de compreender melhor o sistema de crenças que dá origem ao candomblé no Brasil. Sua
primeira publicação se dá em 1954 com a obra “Dieux d’Afrique. Culte des Orishas et
Vodouns à l’ancienne Côte des Esclaves en Afrique et à Bahia, la Baie de Tous les Saints au
Brésil.” e em 1968 publica “Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a
Baía de Todos os Santos, dos séculos XVII a XIX.”
Verger divide em quatro fases o fluxo da diáspora africana para o Brasil entre os séculos XVI
e XIX, sendo esta divisão uma das principais referências de temporalidade na maioria dos
estudos posteriormente desenvolvidos. São eles: Ciclo da Guiné, Angola e Congo, entre os
séculos XVI – XVII, responsável pelo tráfico do Povo Bantu; o Ciclo Costa da Mina e Benin,
compreendido entre os séculos XVII e XVIII, o qual para cá trouxe o Povo Fon; e por fim o
Ciclo da Baía do Benin, entre os séculos XVIII – XIX, tendo como povo traficado o Povo
Iorubá. Estes ciclos são fundamentais na compreensão da formação do candomblé, pois é da
interação das culturas e divindades destes povos que se forma o candomblé que concebemos
hoje.
Os terreiros de candomblé de tradição Jeje, com influência das culturas Fon e Ewê
encontradas no atual Benin, se organizam também a partir de meados do século XIX com a
Casa das Minas, no Maranhão, com data de fundação incerta, cuja escritura do imóvel data de
1847, e a Roça do Ventura (Kwé Sèjáhundé), localizada em Cachoeira de São Félix, Bahia,
fundada por Ludovina, africana do Daomé, trazida na condição de escravizada. Também o
candomblé de Angola tem seu primeiro terreiro fundado na Bahia em 1850, a Inzo Tumbessí,
fundada por Roberto Barros Reis (Tata Kimbanda Kinunga), angolano escravizado no Brasil
pela família Barros Reis. A tradição Efon, também de raiz iorubá, tem seu primeiro terreiro
fundado por volta de 1860 por Tio Firmo e Maria Bernarda da Paixão, a princesa Adebolú,
da região de Ekiti-Efon, Nigéria. Juntos, os dois fundam o Asé Yangba Oloroke ti Efon,
popularmente conhecido como Asé Olorokê, no bairro do Engenho Velho de Brotas em
Salvador.
Em que pese o fato do Império Português encontrar-se em plena expansão no Séc XV, a
conquista de terras e domínios sobre os povos africanos por meio da escravidão são
legitimados pela Igreja através de documentos como as Bulas Papais Dum Diversas e Rex
Regnun promulgadas em 1452 e 1455 respectivamente. Os documentos emitidos pela Igreja
não deixam dúvidas que o modelo escravista adotado neste processo seria diferente da
concepção de escravidão adotada na Antiguidade:
“[…] Nós lhe concedemos, por estes presentes documentos, com nossa
Autoridade Apostólica, plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e
subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de
Cristo, onde quer que estejam […] e reduzir suas pessoas à perpétua
escravidão, e apropriar e converter em seu uso e proveito e de seus
sucessores, os reis de Portugal, em perpétuo […]
Deste modo, o africano escravizado era submetido à fé cristã, ainda em África na maioria dos
casos, era batizado e ganhava um nome cristão. No entanto, os valores e crenças vindos de
além-mar perpetuaram-se no Brasil, adaptados è realidade das senzalas, de modo que não é
incomum que em diversos momentos houvesse certa permissividade dos senhores em relação
às festas e batuques empreendidos por negros, em homenagem às suas divindades; desde que
o catolicismo fosse a profissão de fé oficial destes.1
É importante ressaltar que o elemento central da escravidão no Brasil baseia-se nas exigências
do sistema capitalista emergente, a fim de sua consolidação. Conforme nos indica Caio Prado
Jr em sua obra “Formação do Brasil Contemporâneo”, o Brasil se forma a partir da lógica do
capitalismo mercantil e este processo propicia o acúmulo de Capital necessário para o
desenvolvimento deste novo modelo político e econômico em seu processo embrionário.
Deste modo, a escravidão é legitimada pelas vias econômicas.
Do ponto de vista religioso já havia legitimidade, uma vez que a Igreja manifestara sua
posição em favor do domínio e escravidão de povos africanos. Somado a este argumento,
forjou-se o argumento pseudocientífico com ideia de diferenciação a partir de padrões
fenótipos e biológicos que conferiram aos povos africanos e indígenas o status de inferior ao
europeu. Deste modo, a negação e criminalização do negro e sua cultura se apresentam como
raiz do racismo e da discriminação racial na sociedade brasileira que se estendem aos dias
atuais.
Tais ideias ganham dimensão teórica entre a segunda metade do Século XIX e início do
Século XX, de modo que podemos destacar Cesare Lombroso, Arthur de Gobineau e Thomas
Buckle. Estes teóricos que servem de base para que Nina Rodrigues desenvolva o primeiro
estudo sobre a religiosidade africana no Brasil sob o título “O animismo fetichista do negro
baiano”, originalmente publicado em 1896, que teoriza o processo sincrético entre a fé
africana e a fé católica no Brasil. Em sua concepção, os africanos limitavam-se a justapor os
santos católicos aos Orixás africanos, considerando-os paralelos, mas distintos, enquanto que
para os descendentes dos negros africanos a mitologia africana perdera a sua pureza inicial e a
adoração “fetichista” transportara-se para os santos católicos.
3 Decretales d. Gregorii papae IX (Liber Extra). Decretais de Gregório IX. Tradução com notas e introdução/
Cassiano Malacarne; orientação de Prof. Dr. Alfredo Storck e Prof. Dr. José Rivair Macedo. – Porto Alegre,
2016
“… morte natural com crueldade, morte pelo fogo até ser feito o condenado
em pó para que não tivesse sepultura ou memória, açoites, com ou sem
baraço, pregão pela cidade e vila, degredo […] mutilações ou cortes das
mãos, da língua, queimadura com tenazes ardentes […]”
Com o fim o tráfico negreiro em 1850, era comum que as punições aos negros escravizados
fossem limitadas para que se preservasse a capacidade produtiva do indivíduo, de modo que
não gerasse prejuízo aos senhores, uma vez que houve significativo encarecimento no
mercado. Deste modo, Marcos Luiz Bretas demonstra em seu estudo “O Crime na
Historiografia Brasileira: Uma Revisão na Pesquisa Recente”:
Um estudo realizado pela antropóloga Yvonne Maggie nos anos 1990 revela que a prática
religiosa de matriz africana era constantemente associada à concepção de malefícios, de modo
que a figura do “feiticeiro” e “curandeiro” alçou o patamar pejorativo e criminoso. Podemos
tomar como base para isto o reestabelecimento do feitiço na categoria de crime quando se
promulga, sob a República, o Código Penal de 1890. O artigo 157 não deixava dúvida sobre o
teor da criminalização:
“[…] Daí o ritual semi-bárbaro sob o qual foi a Umbanda conhecida entre
nós, e por muitos considerada magia negra ou candomblé. É preciso
considerar, porém, o fenômeno mesológico peculiar às nações africanas
donde procederam os negros escravos, a ausência completa de qualquer
forma rudimentar de cultura entre eles, para chegarmos à evidência de que a
Umbanda não pode ter sido originada no Continente Negro, mas ali existente
e praticada sob um ritual que pode ser tido como a degradação de suas
velhas formas iniciáticas.
Conclusão
Como vimos neste ensaio, a Intolerância Religiosa no Brasil está diretamente ligada ao
processo de escravidão e estigmatização da cultura negra ao longo de cinco séculos, uma vez
que as religiões de matriz africanas representam a maioria ampla dos casos de intolerância no
país. Trata-se de um processo que ainda tipifica a cultura negra e a herança africana como
inferiores.
Deste modo, convém lançarmos um novo olhar sobre o conceito de Intolerância Religiosa,
tipificando-a como Racismo Religioso, posto que o racismo é a base deste fenômeno social
Referências Bibliográficas
Bibliografia do Curso:
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014. Terceira
Parte: capítulo III
Consulta Livre:
SOUZA, Rafael Pereira de. Desvendando mistérios: repressão e resistência dos cultos afro-
brasileiros nas páginas policiais. ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA
– Fortaleza, 2009
MAURÍCIO, George. O candomblé bem explicado: Nações Bantu, Iorubá e Fon. Rio de
Janeiro: Pallas, 2009
MONTERO, Paula. (2006), “Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil: Novos Estudos”
CEBRAP, n. 74: 47-65.
RAMOS, Artur. O negro brasileiro: etnografia religiosa. São Paulo: Nacional, 1951.
VERGER, Pierre. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo mundo. Salvador: Corrupio,
1981