Você está na página 1de 3

REPORTAGEM DE CAPA

Um novo olhar sobre a local onde funcionava o Cemitério


dos Pretos Novos. No final de 2016,
um grupo de trabalho formado por
história do Cais do Valongo pesquisadores ligados à prefeitura
do Rio e ao Instituto do Patrimô-
Para o arquiteto e historiador Nireu nio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan) lançou a candidatura do
Cavalcanti, local jamais teria sido usado Cais do Valongo como patrimônio
mundial da humanidade. Em julho
para o desembarque de escravos, mas deste ano, o ancoradouro recebeu
o título de Patrimônio Histórico da
apenas para o comércio negreiro Humanidade pela Organização das
Nações Unidas para a Educação, a
Débora Motta (UFF). Depois de anos debruçado Ciência e a Cultura (Unesco).
sobre documentos e mapas históri- “O tombamento da região do Va-

A
história é uma ciência viva, cos da cidade, ele afirma que o Cais longo é mais do que recomendável,
construída a partir de cons- do Valongo, redescoberto em 2011 por ter sido uma zona de comércio
tantes descobertas e releitu- durante as escavações realizadas negreiro e abrigo do campo santo –
ras. Uma nova versão para o papel como parte das obras de revitali- como também eram chamados os
do Cais do Valongo – localizado na zação da zona portuária do Rio de cemitérios – dos escravos novos.
Zona Portuária do Rio e tradicional- Janeiro, não era utilizado para a O cemitério se encontra sob várias
mente apontado pela historiografia chegada no Brasil dos escravos afri- construções da Rua Pedro Ernesto –
como um local de desembarque de canos, transportados nos insalubres a antiga Rua do Cemitério –, além
escravos no período colonial – é navios negreiros. da região ter sido o cenário vivo da
defendida pelo pesquisador e ar-
Segundo Cavalcanti, a importân- união das nobrezas europeias, os
quiteto Nireu Oliveira Cavalcanti,
cia histórica da região é inegável, Bourbon e os Bragança, nos trópi-
doutor em História Social pela Uni-
mas, sim, pelo fato de ela sediar, cos”, destaca Nireu. No entanto, ele
versidade Federal do Rio de Janeiro
na época, pontos de comércio de considera que aqueles que afirmam
(UFRJ) e ex-professor associado
escravos – que eram expostos ao ter existido um cais para o desem-
do Departamento de Arquitetura da
público como mercadorias nos barque de escravos no Valongo se
Universidade Federal Fluminense
chamados armazéns – e por ser o baseiam em “achismo”. “Não foram
apresentados documentos, registros,
desenhos, mapas ou qualquer outra
fonte histórica que comprove essa
tese”, completa.

Aquarela de Thomas Ender (1818) mostra a


Pedra do Sal ainda em processo de corte e a
praia do Valongo-Valonguinho sem cais

24 | Rio Pesquisa - nº 39 - Ano IX


REPORTAGEM DE CAPA

O Valongo era o nome de uma


antiga enseada, aterrada posterior-
mente com a urbanização da região,
no século XIX, e que passou a
denominar toda a extensão da área
no entorno, onde hoje está locali-
zado o bairro da Saúde. Na época
do Brasil colonial, a enseada era
formada por duas praias: Valongo
e Valonguinho. A praia do Valongo
estendia-se entre o sopé do morro
do Livramento e o morro da Saúde,
enquanto a praia do Valonguinho
correspondia a um pequeno trecho
de areia no sopé do morro da Con-
ceição. Trata-se da região onde está
localizada a Pedra do Sal, reduto da
formação do samba carioca perto
do Largo da Prainha, tombado pelo
Instituto Estadual do Patrimônio Boutique de la rue du Val-Longo: a obra de Debret ilustra o infame comércio em um dos
Cultural (Inepac). mercados de negros estabelecidos ao longo da Rua do Valongo, atual Rua Camerino

De acordo com Cavalcanti, o cais


que existia no Valongo era utilizado No mês de julho, a região do Valongo devido à inicia-
tiva da Câmara de Vereadores, dos
durante o período joanino para o de-
sembarque de navios não negreiros. Unesco concedeu o comerciantes não envolvidos com
o comércio negreiro, de médicos
O ponto de chegada dos escravos
continuou a ser o antigo cais ins-
título de Patrimônio e profissionais de engenharia e
talado na altura da atual Rua da Histórico da arquitetura, a partir de 1758. Eles
Alfândega, nas imediações da Praça suspeitavam que as epidemias
XV, onde D. João e a família real Humanidade ao que ganhavam espaço na cidade
estavam relacionadas às más con-
habitavam, no Paço Imperial. “Dom sítio arqueológico dições de higiene encontradas nos
João, em 1809, resolveu fazer um
cais do Largo da Prainha até o Mor- do Cais do Valongo armazéns do entorno da Praça XV.
ro da Saúde. Foi feito o projeto, mas Foi assim que o comércio negreiro
o Tesouro não tinha recursos para seus respectivos impostos pagos
realizado nos armazéns se mudou
arcar com essa despesa, principal- na Alfândega, como registrou o
para a então distante região do
mente para fazer o corte na Pedra pintor alemão Rugendas, em 1828”,
Valongo. Alguns comerciantes
do Sal, que avançava sobre o mar, e explica.
protestaram contra a decisão e en-
indenizar todos os proprietários de O arquiteto conta que a região traram com recurso no Tribunal da
trapiches ou de moradias ao longo do entorno da Rua da Alfândega Relação, que era a maior instância
desse trecho. A obra se arrastou até concentrava inicialmente os arma- jurídica na colônia e já estava ins-
1821 e já há citação documental de zéns voltados para o comércio de talado no Rio, mas não obtiveram
que foram construídos parte do cais, escravos, pela proximidade com sucesso. “Por decisão do vice-rei
com uma muralha, algumas rampas esse primeiro cais. Lá, os escravos Marquês do Lavradio, esses comer-
e degraus. É importante destacar desembarcavam seminus, tomavam ciantes negreiros foram obrigados,
que esse cais joanino destinava-se banho nas praias e eram levados aos definitivamente, a se deslocarem
aos navios mercantes, não aos ne- pontos de venda. No entanto, esse para a nova região demarcada pela
greiros. Os escravos continuavam a comércio – mas não o desembar- Câmara, no Valonguinho e no Va-
desembarcar, ser cadastrados e ter que – foi transferido depois para a longo”, diz Cavalcanti.

Rio Pesquisa - nº 39 - Ano IX | 25


REPORTAGEM DE CAPA Foto: Lécio Augusto Ramos

Dados encontrados pelo pesqui- dentes, vetou essa proposta, pois a


sador – catalogados em diversas construção de um novo cais no Va-
instituições, como nos arquivos longo incentivaria o contrabando,
Nacional e o Geral da Cidade, na principalmente de escravos, já que
Biblioteca Nacional e no Arquivo era uma região longe do controle
Histórico Ultramarino, em Lisboa da Alfândega. Essa documentação
– apontam que o comércio negreiro está no Arquivo Nacional. A Alfân-
no Valongo ocorreu de 1760 até dega continuou a ser o único ponto
1831. Vale lembrar que dois anos de desembarque de escravos no
após a chegada da Corte, em 1810, Rio”, destaca. Depois, uma grande
ocorreu a assinatura do Tratado obra de ampliação e embelezamen-
de Aliança e Amizade com a In- to do Cais do Valongo foi realizada
glaterra, que estabeleceu, entre os durante os preparativos para o de-
diversos compromissos, o da Coroa sembarque da imperatriz Theresa
portuguesa iniciar a extinção gra- Cristina, esposa de D. Pedro II.
dual do infame comércio negreiro Nireu Cavalcanti: obra do arquiteto inclui Especialista em historiografia ca-
em seus domínios. mapa rico em detalhes do Rio colonial rioca, Nireu Cavalcanti é autor do
Em 1831, o tráfico negreiro estava livro Rio de Janeiro: Centro Histó-
muito reduzido. Porém, depois de do tráfico negreiro. “Em primeiro rico Colonial (Ed. Andrea Jakobs-
uma série de negociações, esta- lugar, não houve desembarque son Estúdio, 2016, 148 p.), publi-
beleceu-se que a partir desse ano negreiro no Valongo. Na verdade, cado com apoio de edital lançado
seria permitido o tráfico realizado esse número se refere ao total de pela FAPERJ em comemoração aos
por navios portugueses registrados escravos comercializados em toda 450 anos da capital fluminense, e
em Lisboa, mas unicamente com o a cidade do Rio de Janeiro, desde o da obra O Rio de Janeiro Setecen-
objetivo de resgatar escravos em final do século XVI até 1831”, afir- tista (Ed. Zahar, 2003, 456 p.). Na
alguns portos do continente africa- ma. No caso do comércio de negros primeira obra, ele apresenta um
no. O comércio negreiro tornou-se no Valongo, que ocorreu de 1760 a panorama do centro histórico do
muito controlado por navios de 1831, o número máximo, segundo Rio no período colonial – a cidade
guerra de Portugal e da Inglaterra, ele, pode ser calculado em cerca de que a família real conheceu quando
em busca de contrabando. “Nesse 900 mil. “Para alcançar esse núme- chegou à Baía de Guanabara em
período em que a proibição total do ro de 1,5 milhão de escravos, seria 7 de março de 1808, instalando-
tráfico estava próxima, os comer- necessário que entrassem mais de -se a Corte do reino de Portugal
ciantes negreiros se apressaram em 14 mil escravos por ano, de 1760 a no Brasil. São listados e feitos
trazer mais escravos. Registros na 1831. Os livros da Alfândega para verbetes de cada logradouro, com
Alfândega para os anos de 1810 e esse período registram, em média, sua história, nomes que tiveram
1811 mostram a chegada de cerca a entrada de no máximo 11 mil desde sua abertura e as edificações
de 20 mil escravos, em cada ano”, escravos por ano”, diz. existentes em 1809. A publicação
conta. Após 1831, o comércio acompanha um mapa com a região
O pesquisador também cita que, do centro histórico colonial e uma
de escravos, submetido a tantas
no final do século XVIII, houve a superposição da mesma região em
restrições e fiscalização, passou a
proposta de construção de um cais 2008, ano da comemoração de 200
ser pouco rentável, sendo abolido
no Valongo – não para o comércio anos da chegada da família real.
definitivamente, no Brasil, com a
de escravos, mas para o escoamento
Lei Eusébio de Queirós, de 4 de Pesquisador: Nireu Oliveira
de outros produtos, internos, como
setembro de 1850. Cavalcanti
aqueles vindos das Minas Gerais.
Instituição: Universidade Federal
Cavalcanti discorda dos historia- Afinal, o comércio ganhava maio- Fluminense (UFF)
dores que acreditam que a região res proporções e os comerciantes Fomento: Apoio à Produção e
do Valongo teria sido o ponto de desejavam expandir seus negócios. Publicação de Livros e DVDs
desembarque de cerca de 1,5 mi- “O vice-rei Conde de Resende, que, visando à celebração dos 450 anos
lhão de escravos, durante o período por sinal, mandou enforcar Tira- da cidade do Rio de Janeiro

26 | Rio Pesquisa - nº 39 - Ano IX

Você também pode gostar