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A PRISÃO PORTUGUESA DE ANAFÉ

A Mesquita Hassan II em Casablanca . autor desconhecido


No ano de 1468 uma armada portuguesa aportava em Anafé para uma missão punitiva.
Anafé era uma base de corsários mouros particularmente activos em ataques a navios de
Portugal e incursões de saque nas costas do Algarve. Os resultados da intervenção
portuguesa foram devastadores para a cidade, que foi arrasada e assim permaneceu por
mais de três séculos.
Durante esse período Anafé teve uma ocupação precária e esporádica, sendo utilizada
por tribos nómadas que nas suas ruínas procuravam abrigo sazonal e por corsários
oriundos de Salé, que a utilizavam como base para as suas operações de pirataria e para
“acolhimento” de cativos europeus. Nas colunas da sua prisão, conhecida por “Prisão
Portuguesa”, foram encontradas inscrições com caracteres latinos, testemunhos desse
período de guerra naval que opôs europeus e norte-africanos, e que escravizou milhares
de indivíduos de ambos os lados.
 
Planta de Casablanca de Weisgerber de 1889
Apesar de existirem muitas versões contraditórias sobre as acções realizadas pelos
portugueses contra Casablanca durante o período daocupação da costa de Marrocos, parece ponto
assente que Portugal de facto nunca ocupou a cidade nem nunca realizou nela qualquer
construção.
Anafé é um termo que na sua origem assumiu diferentes formas, aparecendo escrito
pelos cartógrafos dos séculos XIV e XV com as designações Anfa, Anafé, Niffe, Anife,
Anafa ou Nafé. Deriva do Árabe “Anf”, que significa nariz, bico ou promontório, ou do
Amazigh “Anfa”, que significa colina, outeiro ou cume. O nome Anfa é ainda hoje em dia
o de um importante bairro da cidade. A designação Anafé foi utilizada até ao século
XVIII, altura em que os portugueses lhe passaram a chamar Casa Branca, nome que
seria adaptado para Casablanca por comerciantes espanhóis, que nela se fixaram período
da reconstrução da cidade, durante o reinado do Sultão Sidi Mohammed ben Abdellah. O
nome Árabe é Dar Al-Beida, que significa precisamente casa branca, e os seus habitantes
são normalmente conhecidos em Marrocos comoBidaouis ou Casaouis.
 
A “doca dos portugueses” e a torre da Mesquita El-Hamra
Mas voltemos ao ataque punitivo contra Anafé. Segundo Garcia de Resende, “o ataque
foi meticulosamente preparado, com o envio prévio de um fidalgo espião, Estevão da
Gama, disfarçado de mercador de figos, que recolheu preciosas informações sobre a
cidade”. Foi organizada uma esquadra de 50 navios e 10.000 soldados, comandada por
D. Fernando, irmão do Rei D. Afonso V. Anafé foi totalmente arrasada.
Leão “O Africano” diz que a cidade, após o ataque da artilharia portuguesa, ficou “num
tal estado que não havia esperança que voltasse a ser de novo habitada”. A população
que conseguiu fugir refugiou-se em Rabat e Salé, a partir de onde se intensificaram os
ataques contra as costas de Portugal. Leão diz também que “…no interior de Anfa,
numerosos edifícios eram templos, belíssimas lojas, altos palácios, tal como se pode ver
presentemente pelos restos que encontramos”.
 

Marabu de Sidi Belyout


Um aspecto importante das descrições de El-Hassan Ben Mohammed el-Ouazzan, o
famoso Leão “O Africano”, é o da riqueza que a cidade tinha antes da destruição pelos
portugueses. “Os habitantes de Anfa vestiam-se muito bem devido às suas estreitas
relações com os comerciantes portugueses e ingleses. Havia entre eles homens muito
instruídos”. E refere também que tinha muitos jardins que davam frutos que eram
vendidos até em Fez.
David Lopes põe em dúvida se o ataque terá ocorrido em 1468 ou em 1469 e afirma
que “D. Fernando, irmão de D. Afonso V, foi contra ela, mas encontrou-a despovoada,
receosos os seus moradores das intenções dos nossos. Pareceu grande a sua cerca, para
ser defendida convenientemente, e os portugueses resolveram retirar-se, depois de
derrubados os seus muros”.
Um esclarecimento sobre a dimensão de Anafé nesta altura. Tinha um perímetro
muralhado de cerca de 3.000 metros, encerrando uma área de cerca de 40 hectares. A
título de comparação, Évora tem um perímetro de cerca de 3.500 metros e uma área de
cerca de 100 hectares e Lagos um perímetro de 1.500 metros e uma área de 30
hectares.
 

A doca pequena (no canto inferior direito, o terraço da Prisão Portuguesa)


 

Não é claro quanto tempo os portugueses permaneceram em Anafé após o ataque, mas
não terá sido por muito. Apenas o tempo suficiente para consumar o saque e aprisionar
os que ficaram para trás. Sabe-se que em 1472 a cidade é doada a D. João, Duque de
Beja e Viseu. Doada para ser conquistada, presumimos.
Esta obsessão por Anafé explica-se em grande parte pela riqueza em trigo da sua região,
denominada Chaouia-Ouardigha, a Enxovia dos textos portugueses, num período de
grande crise na agricultura em Portugal, agravada pelos surtos de peste negra que
dizimavam a mão-de-obra nos campos.
 
Um “aduar” nos arredores de Casablanca
No ano de 1487 D. João II organiza uma incursão a Marrocos que ficou conhecida como a
“Expedição aos Aduares”.
Como escreve Fernando Marques “As crónicas referem que a armada era composta por
30 navios, com uma guarnição de 150 cavaleiros da Casa do Rei e mil homens de pé, os
mais besteiros, e espingardeiros. (…) Alguns nomes da alta nobreza da época iam na
expedição. A comandar a armada estava D. Diogo de Almeida e, como segundo capitão,
D. João de Ataíde”. Segundo consta, o objectivo da expedição era ajudar um rei mouro
aliado da coroa portuguesa chamado Muley Belijabe na sua guerra com outras tribos. No
entanto, quando a armada chegou a Marrocos, junto à cidade de Anafé, já o assunto
estava resolvido e os portugueses, para não darem a expedição como “em vão”, fizeram
uma incursão a várias aldeias nos campos ao seu redor. “Decidiu, então, o capitão com a
mais gente que pode atacar aqueles aduares da enxovia, que mais não eram que
acampamentos moveis de mouros, formados por grupos de tendas que constituíam
povoações temporárias. Desbaratados os mouros, conta-se o saque, com um saldo
deveras positivo: cativeiro de 400 homens e mulheres destinados à escravatura, muitos
cavalos e ainda outro muito despojo, onde se destacam os alambéis.”
A “Expedição dos Aduares” não terá realizado nenhum ataque a Anafé pelo facto de o
meios de que os portugueses dispunham, cavalaria e infantaria, serem mais propícios a
ataques em campo aberto e contra pequenos grupos de combate.
 
Bab El Marsa, ou Porta do Porto
Alguns autores defendem que os portugueses voltaram a atacar a cidade em 1515, altura
em que teriam construído uma fortaleza no local. Esta versão é desmentida por David
Lopes, que afirma categoricamente que após a tentativa falhada de construção da
Fortaleza de S. João da Mamora de 1515, os portugueses não construiriam mais
nenhuma fortificação em Marrocos:
“De facto, D. Manuel determinara que, feita aquela fortaleza, se fizesse a de Anafé _ hoje
Casa Branca. D. Nuno Mascarenhas devia ir fazê-la com uma parte da armada da
Mamora e 3.000 homens de desembarque e ficar por capitão dela, logo que feita. Aquele
desastre impediu a execução deste plano; seria a oitava fortaleza naquela costa”.
Esta afirmação de David Lopes, ao referir que D. Nuno de Mascarenhas construiria a
fortaleza de Anafé com apenas uma guarnição de 3.000 homens confirma que a cidade
não se encontrava habitada à data, ou seria necessária uma força militar muito maior
para a conquistar. Assim sendo, de facto Anafé teria ficado abandonada desde o ataque
de D. Fernando.
 
A Sqala, revelim construído no século XVIII . autor desconhecido
É precisamente sobre este aspecto da ocupação ou abandono da cidade no período entre
o ataque de 1468 e o terramoto de 1755 que as opiniões mais se dividem.
Existem referências que descrevem a cidade como tendo ficado abandonada durante três
séculos, sendo reedificada em 1770 pelo Sultão Sidi Mohammed Ben Abdellah, altura em
que é construída a famosa Sqala, revelim abaluartado que dominava o porto. Outros
autores defendem que os portugueses ocuparam Anafé em 1515 e apenas a
abandonaram após o terramoto de 1755, afirmação em relação à qual não encontrámos
qualquer confirmação e que não é de todo credível.
Mas existem fontes que relatam uma ocupação parcial e precária da Anafé dos séculos
XVI e XVII. Por um lado, por tribos nómadas que encontravam refúgio temporário nas
suas ruínas, mas principalmente por corsários que voltaram a fazer dela um centro de
pirataria e lugar de cativos. A cidade funcionaria na dependência de Salé, onde vigorava
a República Corsária do Bouregreg. Muitos desses cativos eram portugueses, situação que se
comprova pelo facto de a sua prisão se chamar “Prisão Portuguesa” e o nome do seu
porto ser “Doca dos Portugueses”, como ainda hoje é conhecida a doca-seca do porto de
Casablanca.
 

Gravura de Anafé no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarumde Braun e


Hogenberg, 1572
A gravura de Gravura de Anafé 1572 da obra Civitates Orbis Terrarumde Braun e
Hogenberg é ilucidativa da sua situação catastrófica no século XVI. Mostra uma cidade
destruída, com as suas muralhas parcialmente derrubadas, os minaretes com os
coroamentos arrasados, a área intra-muros com as poucas casas existentes em situação
de ruína.
Um aspecto interessante da gravura é o da altura aparentemente exagerada da torre
situada frente ao porto, que corrobora a descrição do geógrafo português Duarte
Pacheco, que no século XVI afirma que Anafé vista do mar é facilmente
reconhecível “pela sua grande torre”.
Outro aspecto que merece uma referência é o da representação da zona ribeirinha, com
as suas duas docas naturais, a “Doca Pequena” do lado esquerdo e a “Doca dos
Portugueses” do lado direito, nos locais em que os afloramentos rochosos que
caracterizam a costa de Casablanca são naturalmente interrompidos. O tramo das
muralhas é de traçado irregular, cuja couraça se projecta até ao mar separando as duas
docas, tem uma porta com entrada “em sifão”, a Bab Marsa, ou Porta do Porto, e a
“qasbah” situa-se no seu extremo Poente. Nas duas enseadas estão atracados dois
navios, como que indicando que a vida ali não acabara.
 
A Prisão Portuguesa
Jean-Luc Pierre, confirma que Casablanca nunca esteve de facto totalmente abandonada.
De acordo com as suas investigações, o Almirante Holandês Laurens Reael descreve
assim a cidade em 1627:
“El-Anfa é uma cidade morta que parece no entanto ter sido pujante (…) nós chegamos
lá no momento em que uma tribo de Árabes acampava nos seus arredores. Gente sem
morada fixa, que deambulam através do país (…) estavam em grande número na praia,
por detrás das muralhas e sobre as torres”. E continua: “Existe uma mesquita, alguns
edifícios são mantidos como alojamentos sazonais (…) os corsários de Salé têm aqui uma
enseada secundária e uma prisão acolhe cativos europeus.”
Segundo Jean-Luc Pierre, foram encontradas inscrições com caracteres latinos nas
colunas da prisão, a tal prisão denominada “Prisão Portuguesa”.
 
Planta da zona a demolir para prolongamento do “Boulevard du 4ème Zouaves”,
na qual se localiza a Prisão Portuguesa . Planta existente nos Archives
Nationales, encontrada por Neiger Emmanuel
A reconstrução de Casablanca é iniciada pelo Sultão Sidi Mohammed Ben Abdellah a
partir de 1770, tarefa que se prolonga até aos finais do século XIX. O Sultão governa
num período particularmente complicado da vida de Marrocos, já que toma o poder dois
anos depois do terramoto de 1755, promovendo obras de reconstrução nas principais
cidades do país.
Em meados do século XIX, M. Rey, na sua obra “Souvenirs d’un voyage au Maroc”
descreve Casablanca como uma cidade ainda muito pouco reconstruída, chamando-lhe
uma “inundação de escombros (…) com grupos de cabanas escuras e ruínas de forma
estranha”. Um aspecto que este autor refere e que é comum à maioria das descrições da
Anafé destruída, é a presença no seu interior e arredores de muitos rebanhos.
A chamada “Prisão Portuguesa” ou “Prisão de Anfa”, como também é conhecida, cuja
construção se atribui ao século XV ou XVI, situava-se no interior do ângulo Nordeste das
muralhas da actual “Ville Ancienne”, num local em que o Oued Bouskoura, que bordejava
todo o pano Nascente, fazia uma inflexão para contornar um pequeno outeiro. Era uma
construção de forma rectangular, adossada ao pano Norte da muralha. Apresentava uma
nave de dimensões apreciáveis, com uma estrutura interior constituída por um conjunto
de arcos apoiados em colunas, em pedra calcária, suportando uma cobertura plana.
No final desse século é construído o Marabu de Sidi Belyout, adossado à muralha pelo
seu lado exterior.
 
Localização da Prisão Portuguesa
No período do protectorado francês, Casablanca é um autêntico laboratório de
arquitectura e urbanismo, onde os arquitectos franceses dão largas à sua criatividade e
projectam imóveis nos estilos art déco e néo-mouriscos, patentes nos “boulevards” que o
urbanismo colonial rasgava pela mão de Henri Prost, nomeado “Directeur du service
spécial d’architecture et des plans des villes” em 1914.
“Henri Prost, que fica 8 anos em Marrocos, apresenta o seu primeiro plano director em
1915. Ele vai inscrever definitivamente Casablanca na história das cidades modernas,
implementando para a capital económica, dotada de um grande porto pelo General
Lyautey, uma regulamentação original e inovadora em matéria de urbanismo”.
(Casamemoire)
Segundo o investigador Pascal Plaza, a planta do quarteirão que Neiger Emmanuel
encontrou nos Archives Nationales integra-se no primeiro projecto desenvolvido por Prost
em Casablanca, o projecto do então “Boulevard du 4ème Zouaves”, e teve como
objectivo concretizar as expropriações realizadas no seu âmbito.
 
O Boulevard Felix Houphouet-Boigny, antigo Boulevard du 4ème Zouaves,
ligando a então Place de France ao Porto de Casablanca
A área situada em torno da “Ville Ancienne” foi particularmente transformada neste
período e o Boulevard du 4ème Zouaves, hoje Boulevard Felix Houphouet-Boigny,
conhecido vulgarmente pelos Bidaouis como Charia’ Al-Bazarat, pela quantidade de
bazares que contém, teve um papel importante na estratégia delineada por Prost. Essa
avenida, rasgada para estabelecer a ligação entre a então Place de France e o Porto de
Casablanca, foi implantada ao longo do pano Nascente da muralha da “Ville Ancienne”,
sobre o antigo leito do Oued Bouskoura. No seu extremo Norte “encontrou” a “Prisão
Portuguesa”, que demoliu, separando o Marabu de Sidi Belyout da cidade antiga e
deixando-o isolado.
Pascal Plaza é um investigador que se tem dedicado a estudar a área da antiga prisão,
encontrando uma relação entre o imóvel e outros que lhe eram vizinhos, como o do
antigo Consulado Português e outras representações diplomáticas ali situadas. Os seus
estudos incluem a implantação da Prisão de Anfa em várias fotos aéreas e postais
antigos, que posteriormente a planta encotrada por Neiger veio confirmar.
 
A pérgola de Laprade
A demolição da prisão em 1916 foi acompanhada do desmonte e transporte das suas
colunas e arcos para o então Parc Lyautey, actual Parc de la Ligue Arabe. Segundo Pascal
Plaza “os arcos e as colunas da prisão foram desmantelados e transferidos para a
entrada do estádio militar em 1916 e posteriormente integrados por Laprade no desenho
e criação do parque que hoje conhecemos”.
As colunas e os arcos da prisão transformados em pérgola permanecem anónimos no
Parc de la Ligue Arabe, lembrando aos poucos Bidaouis que conhecem história da Prisão
Portuguesa, que em tempos idos, prisioneiros portugueses sofreram o castigo do
cativeiro à sua sombra.

As colunas e arcos no Parc de la Ligue Arabe . foto Mosbah Abdallah

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