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LITERATURA INFANTIL

Esta obra intenciona esmiuçar a literatura infantil por


diversos ângulos, se não todos os possíveis, ao menos
aqueles mais relevantes para entender e trabalhar com
esse gênero. O estudo sobre a literatura infantil se esta-
belece em uma fronteira entre a Teoria da Literatura e a da
Pedagogia, uma vez que obras voltadas para as crianças
são instrumento de trabalho para o campo educacional.
Porém, mais do que auxiliar em um projeto pedagógi-
co, a literatura infantil possui outras tantas funções pecu-
liares e importantes para o desenvolvimento das crianças
enquanto sujeitos. Assim, a literatura infantil ainda se en-
caixa nos estudos da Psicologia do Desenvolvimento, que
tenta identificar como se relacionam os elementos literá-
rios com a formação do indivíduo.
Levando em consideração que a leitura é motivadora
de cidadania e que a literatura é capaz de transformar va-
lores e visões de mundo, esta obra é um ponto de partida
para expandir a visão sobre o trabalho da literatura infantil
em sala de aula e em outros espaços, transformando essa
prática pedagógica em atividade reflexiva.

TAINÁ THIES

Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-6651-3

59464 9 788538 766513


Literatura Infantil

Tainá Thies

IESDE BRASIL
2020
© 2020 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do
detentor dos direitos autorais.
Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Envato Elements

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
T369L

Thies, Tainá
Literatura infantil / Tainá Thies. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2020.
182 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6651-3

1. Literatura infantojuvenil. 2. Literatura infantojuvenil - História. I.


Título.
CDD: 028.5
20-64170
CDU: 087.5

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


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Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Tainá Thies Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade
de Brasília (UnB), especialista em Linguística pela
Universidade Gama Filho (UGF), graduada em Letras
Português pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)
e graduanda em Psicologia pela Universidade Tuiuti do
Paraná (UTP). Professora do ensino superior, atuou,
também, como consultora educacional e coordenadora
de projetos em educação. Atua na formação de
professores para o ramo editorial, como professora em
cursos de pós-graduação e como autora de materiais
didáticos para o ensino básico e superior, além de
produzir contos e histórias infantis.
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SUMÁRIO
1 Processo histórico da literatura infantil  9
1.1 Origens da literatura infantil   10
1.2 Literatura infantil do Brasil   16
1.3 Tendências atuais: do impresso ao digital   30

2 Literatura e leitor infantil  36


2.1 O papel da literatura na formação do leitor   37
2.2 Pequenos leitores   45
2.3 A linguagem na literatura infantil  54

3 Estrutura do livro infantil  64


3.1 O projeto editorial do livro infantil   64
3.2 A história contada pela ilustração   75
3.3 Gêneros textuais na literatura infantil  84

4 Temas da Literatura Infantil  94


4.1 Fantasia x realidade   94
4.2 Aventuras e heróis reais e imaginários   99
4.3 A literatura infantil e o desenvolvimento emocional da
criança   104

5 Literatura infantil no currículo  112


5.1 Literatura infantil na legislação educacional brasileira  112
5.2 BNCC e literatura infantil  119
5.3 Literatura infantil no livro didático   132

6 Trabalho pedagógico com literatura infantil  141


6.1 Papel do professor   141
6.2 Contação de história  149
6.3 Formando o leitor crítico   155

7 Literariedade e análise de obras infantis  162


7.1 Literariedade na literatura infantil   162
7.2 Análise de obras para educação infantil   172
7.3 Análise de obras para os anos iniciais do ensino fundamental  176
APRESENTAÇÃO
Esta obra intenciona esmiuçar a literatura infantil por diversos ângulos,
se não todos os possíveis, ao menos aqueles mais relevantes para entender e
trabalhar com esse gênero. O estudo sobre a literatura infantil se estabelece em
uma fronteira entre a Teoria da Literatura e a da Pedagogia, uma vez que obras
voltadas para as crianças são instrumento de trabalho para o campo educacional.
Porém, mais do que auxiliar em um projeto pedagógico, a literatura infantil
possui outras tantas funções peculiares e importantes para o desenvolvimento
das crianças enquanto sujeitos. Assim, a literatura infantil ainda se encaixa
nos estudos da Psicologia do Desenvolvimento, que tenta identificar como se
relacionam os elementos literários com a formação do indivíduo.
Para realizarmos esse objetivo, portanto, trabalharemos no capítulo inicial
com uma reconstrução das origens da literatura infantil, buscando identificar
as ligações de seu surgimento com reflexões sobre o contexto em que surge.
Também passaremos pelo histórico do gênero no Brasil, apresentando os
principais autores e identificando possibilidades de leitura em diferentes suportes.
No segundo capítulo, buscamos nos aprofundar no leitor da literatura
infantil, a criança. Tentaremos traçar um curso para encontrar respostas sobre
a influência desse gênero sobre a formação do sujeito e do leitor literário. Para
isso, é necessário identificar quem é esse leitor e como a linguagem influencia
seu processo de formação.
Uma vez que identificamos um panorama histórico e algumas
especificidades sobre o leitor, devemos partir para o suporte em si, o livro
de literatura infantil. Assim, o terceiro capítulo trabalhará a forma do livro, o
projeto editorial dos gêneros mais empregados nas obras de literatura infantil.
E para apreendermos a forma desse livro em sua totalidade, votaremos nossa
análise para a compreensão de como se estabelece a relação entre as imagens
e o texto em livros de literatura infantil.
Seguindo em frente, discutiremos então o conteúdo dos livros infantis
no quarto capítulo. Discorreremos sobre a fantasia e a criação de mundos
maravilhosos, bem como a necessidade do equilíbrio entre fantasia e
realidade, identificando uma estrutura básica que percorre todas as narrativas
de heróis. Além disso, buscaremos compreender como a literatura infantil e
seus cenários conseguem influenciar o desenvolvimento emocional do sujeito.
No quinto capítulo iniciaremos a nossa jornada para o reconhecimento da
literatura infantil no espaço escolar e, mais notadamente, nos documentos
que norteiam a educação básica brasileira. Logo, discutiremos a relevância de
obras literárias na legislação educacional brasileira, como os PCNs, as DCNs e
a BNCC. Também veremos como estão inseridas obras literárias infantis nos
livros didáticos, instrumentos tão utilizados nas escolas brasileiras.
Após vermos o lugar da literatura na educação, vamos analisar o papel do
professor na disseminação e motivação da leitura de livros literários infantis na
escola. O sexto capítulo, então, lançará luz sobre práticas possíveis de serem
desenvolvidas em sala de aula, bem como a necessidade de uma formação
para a leitura crítica.
No sétimo e último capítulo nos debruçamos sobre práticas em sala de aula
de educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, trazendo roteiros
que visam trabalhar a apreciação literária e a formação do leitor crítico, além
de verificarmos possíveis categorias de análise a serem levantadas no estudo
da literatura infantil.
Levando em consideração que a leitura é motivadora de cidadania e que a
literatura é capaz de transformar valores e visões de mundo, acreditamos que
esta obra seja um ponto de partida para expandir a visão sobre o trabalho da
literatura infantil em sala de aula e em outros espaços, transformando essa
prática pedagógica em atividade reflexiva.
1
Processo histórico da
literatura infantil
Pedrinho, na varanda, lia um jornal. De repente parou e disse à Emília,
que andava rondando por ali:
— Vá perguntar à vovó o que quer dizer folk-lore.
— Vá? Dobre a sua língua. Eu só faço coisas quando me pedem por
favor.
Pedrinho, que estava com preguiça de levantar-se, cedeu à exigência
da ex-boneca.
— Emilinha do coração — disse ele —, faça-me o maravilhoso favor de
ir perguntar à vovó que coisa significa a palavra folk-lore, sim, teteia?
Emília foi e voltou com a resposta.
— Dona Benta disse que folk quer dizer gente, povo; e lore quer dizer
sabedoria, ciência. Folclore são as coisas que o povo sabe por boca,
de um contar para o outro, de pais a filhos – os contos, as histórias, as
anedotas, as superstições, as bobagens, a sabedoria popular etc. e tal.
Monteiro Lobato, em Histórias de Tia Nastácia

Antes de pensarmos a literatura infantil enquanto forma de es-


crita para um público específico, vamos nos lembrar das histórias
que conhecemos quando crianças. Você se lembra dessas histó-
rias? Como teve contato com elas? Alguém leu para você? Teve
acesso a esses livros?
Na maior parte das vezes, as histórias que marcaram nossa
infância nos foram passadas por outra pessoa, normalmente um
adulto, seja em casa, seja na escola.
E o mais interessante é que se pensarmos, hoje, em histórias
para contar para as crianças, verificaremos que elas são as mesmas
ao longo de várias gerações e em diversos países. Mas qual a sua
origem? Como tantos povos as contam ao longo de tanto tempo?
Vamos descobrir a resposta para essas perguntas neste
capítulo!

Processo histórico da literatura infantil 9


1.1 Origens da literatura infantil
Vídeo A história da literatura infantil se confunde com a história da lite-
ratura, e elas começam com a humanidade e o desenvolvimento da
linguagem. Pode até parecer esquisito pensar que sociedades primi-
tivas possuíam literatura, mas esse pensamento só se torna inusitado
se acreditarmos que literatura é apenas aquela que está escrita, com
ilustrações bem feitas e em papel brilhante.
Saiba mais
Mas se entendermos que literatura não é uma prática ligada somen-
Temos quase certeza de que
você aprendeu na escola que,
te à escrita, fica mais compreensível sua relação com o desenvolvimen-
para se referir à literatura, usa-se to da humanidade e da cultura.
a palavra estória, em oposição à
história, que designa a disciplina Todos os fenômenos precisavam de explicação com o advento da
que estuda os acontecimentos linguagem humana e das línguas. O trovão, a chuva, o nascimento,
no tempo. Certo? Em todo caso,
a morte etc. Tudo estava ali para ser descoberto e simbolizado pela
estória é um daqueles termos
arcaicos que as pessoas ainda linguagem.
usam, mesmo anos depois de
Entretanto, como explicar tudo se ainda não havia um único ser
cair em desuso. Essa palavra foi
retirada de nossa norma culta que soubesse como as coisas aconteciam? Como dizer às crianças
em 1943, com uma deliberação que não deveriam correr sozinhas, pois se fizessem isso seriam de-
da Academia Brasileira de Letras,
e, mesmo assim, continuou voradas por grandes animais? Ou como impor os novos valores so-
sendo usada na educação até ciais e culturais, como o casamento? Pois bem, nasce aí o folclore e
pelo menos os anos 1990! suas histórias.

Em inglês, o termo folklore significa “tradição do povo”. Assim, o di-


Desafio cionário Michaelis (2015) define a palavra folclore como:

Tente lembrar com detalhes de


uma história que você ouviu ou fol·clo·re
leu quando criança e, se possível,
anote-a. Depois, procure essa sm
história para ver se sua versão 1 Costumes tradicionais, crenças, superstições, cantos, fes-
bate com a que circula hoje tas, indumentárias, lendas, artes etc., conservados no seio de
em dia. um povo; cultura popular, populário: “Heitor Villa-Lobos foi
o maior compositor erudito do Brasil, apesar da inegável in-
fluência do folclore popular brasileiro em suas composições”
(TM1).
2 Parte da antropologia cultural que estuda esses elementos.
3 FIG Sequência de acontecimentos reais ou imaginários. [...]
4 FIG Algo meramente criado pela imaginação; fantasia: Essa
história não passa de folclore.

10 Literatura Infantil
Logo, o folclore é a própria cultura feita pelo povo para explicar o mundo
a sua volta e dar cores à vida. Fazem parte do folclore as lendas, as fábulas,
os contos, os poemas, as quadrinhas, as canções e outros gêneros textuais
que versam sobre os comportamentos e os valores de uma sociedade.

Narrativas de heróis da Antiguidade já davam o tom para uma litera-


tura que traria aspectos de fantasia, mas são as fábulas e os contos popu-
lares que acompanharão a história da literatura infantil desde seu início.
Os pioneiros nesses gêneros foram Esopo, Fedro, La Fontaine e Perrault.

Esopo foi um escravo que viveu na Grécia Antiga e contava histórias


com animais personificados, isto é, animais que se comportavam como
humanos. Suas histórias, ou fábulas, traziam uma moralidade popular,
como em A cigarra e a formiga e A tartaruga e a lebre, bem conhecidas
nossas e que vêm sempre acompanhadas de uma moral sobre vícios
ou virtudes do povo. Esopo
Séculos depois, Fedro, um ex-escravo de Roma, aprimorou as fá-
bulas de Esopo, inserindo-as na sociedade romana e disseminando tal
gênero por todo o Império.

Então, já no século XVII, La Fontaine remodela a obra de Esopo, es-


crevendo novas fábulas e inserindo-as no contexto moderno, sempre
seguindo o modelo de utilizar animais personificados para criticar com-
portamentos. Sua crítica se valia, sobretudo, de misérias e injustiças
praticadas especialmente pela corte para expressar seu descontenta- La Fontaine
mento com a sociedade de sua época.

Ainda no século XVII, Charles Perrault escreveu Contos da Mamãe


Gansa (no título original, Histórias ou narrativas do tempo passado com
moralidades), abrindo caminho para uma literatura popular específica
para crianças. Assim, como o próprio título original sugere, a obra traz
contos populares com o objetivo de demonstrar comportamentos que
seriam exemplares. Há uma curiosidade aqui que devemos levar em
consideração: Charles Perrault não quis assinar a obra, para não per-
der seu prestígio, pois uma literatura que se voltasse para crianças era
considerada de menor valor diante das outras artes e de outros gêne-
Perrault
ros. Então, quando da sua escrita, Perrault coloca o nome do filho como
autor, Pierre Darmancourt, e dedica seu livro à neta do rei da França,
Luís XIV, fazendo com que a obra fosse aceita por “circular entre as
crianças”. Outro ponto muito importante de sua obra é que com ela se

Processo histórico da literatura infantil 11


Saiba mais inicia a utilização dos “contos de fadas” como forma literária infantil,
Outro gênero bastante lido (e sobre os quais discorreremos adiante nesta seção.
principalmente ouvido) por
todo o povo eram as novelas O folclore não era feito para crianças, mas para todos, e podemos
de cavalaria, muito comuns perceber em contos que perpetuamos até hoje para nossos pequenos
por toda a Europa. Aliás, há
qual era o valor dado à criança.
uma delas em particular que
todos conhecemos de alguma Vejamos o exemplo do conto João e Maria:
forma: as histórias sobre o Rei
Arthur, Merlin e os Cavaleiros da Perto de uma grande floresta, vivia um pobre lenhador com sua
Távola Redonda. Essas novelas mulher e dois filhos. O menininho chamava-se João e a meni-
exaltavam a elevação espiritual na chamava-se Maria. Nunca havia muito o que comer na casa
por meio de valores morais e deles, e, durante um período de fome, o lenhador não conseguiu
mesclavam o contexto real de
mais levar pão para casa. À noite ele ficava na cama aflito, re-
duelos e cruzadas com elemen-
tos maravilhosos. Você pode mexendo-se e revirando-se em seu desespero. Com um suspiro,
estar imaginando que nunca viu disse para sua mulher: “O que vai ser de nós? Como podemos
uma dessas novelas e, por isso, cuidar de nossos pobres filhinhos quando não há comida bas-
elas não são tão significativas tante nem para nós dois?”
para o nosso contexto. Porém, “Ouça-me”, sua mulher respondeu. “Amanhã, ao romper da au-
temos um gênero no Brasil que
rora, vamos levar as crianças até a parte mais profunda da flo-
bebe diretamente dessa fonte:
o cordel. Trata-se de uma poesia resta. Faremos uma fogueira para elas e daremos uma crosta de
oral que junta elementos reais e pão para cada uma. Depois vamos tratar dos nossos afazeres,
maravilhosos em um contexto deixando-as lá sozinhas. Nunca encontrarão o caminho de volta
de devoção e muita bravura, para casa e ficaremos livres delas.”
assim como no dos cavaleiros!
“Oh, não!” disse o marido. “Não posso fazer isso. Quem teria co-
ragem de deixar essas crianças sozinhas na mata quando ani-
mais selvagens vão com certeza encontrá-las e estraçalhá-las?”
“Seu bobo”, ela respondeu. “Nesse caso vamos os quatro morrer
Atividade 1 de fome. É melhor você começar a lixar as tábuas para os nossos
Sabendo que a literatura espe- caixões”. (TATAR, 2004, p. 52-53)
cífica para crianças só começa a
Essa versão do conto é o que podemos chamar de mais próxima
se esboçar no século XVII com
Charles Perrault, será que não do original, pois muitas outras versões suavizam a história, contando
existiam crianças antes disso? que João e Maria se perderam na floresta ao colher amoras. Assim, é
Sim, essa pergunta é absurda
mesmo, mas se as crianças possível identificar o pensamento da época nesse conto. Os mais im-
existiam, por que não havia uma portantes eram os adultos completos, e não os adultos miniaturas, as
literatura para elas? crianças. Estas poderiam ser descartadas no caso de não haver mais
comida, por exemplo. A sobrevivência falava mais alto, e o abandono
dos mais frágeis era visto como algo comum.

Compreendemos a literatura infantil também como uma represen-


tação dessas transformações sociais. Aos poucos, os mesmos contos
que são contados para todos vão sendo modificados para uma lingua-
gem que priorize a criança e seus comportamentos infantis.

12 Literatura Infantil
Assim, João e Maria passa a ser, hoje, uma história de cooperação,
de triunfo por união e de retorno feliz à casa.

Dessa forma, a literatura infantil precisou primeiro passar pelo desen- Glossário
volvimento do próprio conceito de infância para então ser pensada com es-
estética: estudo da beleza
tética, forma e conteúdo específicos. Algumas obras ou compilações são na criação artística.
vistas atualmente como iniciadoras desse processo. O que elas têm em
comum entre si é exatamente o uso de histórias capazes de moldar com-
Livro
portamentos das crianças dentro de um sistema de valores da sociedade
em que estão inseridas. Coelho (2000, p. 41, grifos do original) nos diz que:
dentre os fatores que podem ser apontados como comuns às
obras adultas que falaram (ou falam) às crianças, estão os da
popularidade e da exemplaridade. Todas as que se haviam trans-
formado em clássicos da literatura infantil nasceram no meio
popular (ou em meio culto e depois se popularizaram em adap-
tações). Portanto, antes de se perpetuarem como literatura in-
fantil, foram literatura popular. Em todas elas havia a intenção
Para conhecer um pouco
de passar determinados valores e padrões a serem respeitados sobre a evolução do
pela comunidade ou incorporados pelo indivíduo em seu com- conceito de infância, su-
portamento. Mostram as pesquisas que essa literatura inaugural gerimos a leitura do livro
História social da criança
nasceu no domínio do mito, da lenda, do maravilhoso.
e da família, de Philippe
Aries, o qual revisita a
Conforme Coelho (2000), a literatura popular, que dá origem à lite- presença da criança em
ratura infantil, nasce do domínio do “maravilhoso”, ou seja, aquilo que obras de arte para tentar
estabelecer quando ela
é gerado pela fantasia quando há presença do sobrenatural e de even- passa a ser uma figura
tos misteriosos e sem explicação possível. O elemento maravilhoso é importante na história
das famílias.
capaz de colocar em pauta uma coletividade narrativa, isto é, os fatos
ARIES, P. São Paulo: LTC, 1981.
narrados não são individuais, mas, sim, comuns a diversos povos que
compartilham mitos e lendas e, logo, valores e crenças.

É justamente por isso que, quando lemos contos de Perrault ou dos


Irmãos Grimm, as histórias tendem a ser parecidas; até se perde a no-
Saiba mais
ção de qual história é de quem.
Você sabia que muitos dos
Temos que lembrar também que essas histórias contadas por eles contos de fadas não foram
não foram, de fato, inventadas por eles. Charles Perrault e Jacob e escritos inicialmente para
crianças? Um exemplo são os
Wilhelm Grimm compilaram os contos folclóricos comuns na região em contos dos Irmãos Grimm, que
que viviam e que eram contados por camponeses nas tavernas e nas teriam surgido de uma pesquisa
acadêmica para adultos. Para
vilas. Acontece que, como já vimos aqui, povos compartilham valores e
saber mais sobre esse assunto
crenças, e também histórias, como no caso de Chapeuzinho Vermelho, acesse o link a seguir:
uma história encontrada em ambas as compilações, com algumas https://tinyurl.com/ya2ougzs
diferenças.

Processo histórico da literatura infantil 13


Histórias contadas visando o público de cada época foram sendo
revistas a cada transformação dos valores sociais. Peguemos o exem-
plo de Chapeuzinho Vermelho. Charles Perrault publicou sua adapta-
Desafio
ção do conto em 1697, e o final era aquele em que o Lobo devorava
Será que existem outras versões
Chapeuzinho e Vovó. Já a versão dos Irmãos Grimm, de 1812, coloca
de Chapeuzinho Vermelho? Você
consegue pensar em alguma? em cena o Caçador para salvar Chapeuzinho, suavizando a violência
Faça uma pesquisa para levantar presente no conto e aproximando-o muito mais do público infantil. Se
possíveis versões ou adaptações.
procurarmos, encontraremos muitas outras versões da mesma histó-
ria, produzidas ao longo dos séculos. Segundo Coelho (2010, p. 30),
essa violência ou crueldade vai desaparecendo desses contos
maravilhosos à medida que os tempos passam ou que a huma-
nidade vai refinando seus costumes. Isso é facilmente notado
nas alterações que se produzem em certos contos, ao passarem
da versão de Perrault para a de Grimm e desta para as versões
contemporâneas. Hoje, transformados em literatura infantil, per-
deram toda a agressividade original.

Assim, todos esses contos populares que vão sendo reunidos ao


longo dos séculos acabam por se tornar o que chamamos de início da
literatura infantil. Podemos ver que não foi um projeto pensado exclusi-
vamente para as crianças. Porém, como parte da cultura, contendo pa-
drões e normas de comportamentos, eram ótimas ferramentas para os
pequenos (agora já compreendidos como crianças), que precisavam se
inserir nos modelos solicitados pela sociedade dos adultos.

Bem, até aqui você já identificou que a literatura se inicia como for-
ma de transmitir valores e comportamentos de uma sociedade por ge-
rações, bem como para preservar sua identidade.

Mas como saltamos disso para uma literatura específica para crian-
ças, já que o folclore não se destinava somente aos pequenos, mas, sim,
a todo o povo?

Antes de vermos quando se inicia convencionalmente a literatu-


ra infantil, precisamos entender outro ponto: a concepção de criança
como sujeito. Isso mesmo, a criança só é vista como um sujeito, com
suas especificidades e diferenças, a partir do século XVII, quando au-
menta o interesse por representar a criança na pintura em suas formas
harmônicas e apropriadas. Se você observar pinturas da Idade Média,
verá que não são crianças representadas, e sim adultos menores, des-
proporcionais às formas de uma criança (ARIÈS, 1981).

14 Literatura Infantil
Quando ouvimos que não havia crianças na Idade Média ou em Figura 1
outras épocas, devemos entender, na verdade, que não havia a com- Ognissanti Madonna, de
Giotto di Bondone – repre-
preensão das crianças como seres especiais, as quais eram chamadas sentação da criança.
de “adultos tolos”. Exatamente isso! Adultos que ain-

Wikimedia Commons
da não tinham a capacidade de um adulto, mas que
participavam da vida adulta como se fizessem parte
dela. Então, naquela época, as crianças assistiam às
execuções em praça pública, estavam presentes du-
rante as relações sexuais dos pais (até mesmo por-
que não havia divisão de cômodos) e trabalhavam
desde muito cedo, sem questionamento por parte
da sociedade.

Somente após o século XVIII, com reflexões da fi-


losofia, da arte e da Igreja Católica, a criança passa,
gradativamente, a ser vista como especial e com a ne-
cessidade de ser protegida. Porém, essa nova visão
de criança não surge apenas do sentimento de pro-
tegê-la, mas também em decorrência da Revolução
Industrial e de novos valores trazidos à tona.

Com a Revolução Industrial no século XVIII, a bur-


guesia (donos de indústrias, profissionais liberais,
comerciantes e artesãos) se estabelece como uma
classe social forte e precisa garantir sua perpetuação BONDONE, G. di. Ognissanti Madonna. 1310. Têmpera sobre painel, color., 204 x
ao longo do tempo, ou seja, não bastava conquistar 304 cm. Galeria Uffizi, Florença, Itália.
status de classe ascendente, era necessário fazer com que seus des-
cendentes protegessem seus valores. Portanto, a burguesia passa a
olhar para a família e para a criança como pilares para sustentar uma Vídeo
nova lógica burguesa, conferindo-lhes novos papéis: ao homem era so- Para entender melhor
a evolução do conceito
licitado o sustento da família; à mulher, o cuidado da casa, bem como
de criança e de infância,
a educação dos filhos; e à criança, um novo olhar para seu desenvol- assista ao vídeo Karnal:
não existiam crianças
vimento enquanto indivíduo que poderia ser moldado pela educação
antes do século XX, do
para uma sociedade recém-formada. filósofo Leandro Karnal,
publicado pelo canal
Ainda nesse período, tanto a pedagogia quanto a psicologia se de- Band Jornalismo.

senvolvem enquanto ciências, e a escola também é solicitada a formar Disponível em: https://tinyurl.
crianças e jovens de acordo com os ideais burgueses. Nesse sentido, com/yagawo5s. Acesso em: 30
mar. 2020.
eram necessários produtos específicos para serem utilizados em am-
biente escolar e familiar com intuito educacional. O livro se torna, en-
tão, um produto que se encaixa muito bem nesse novo sistema. Assim,

Processo histórico da literatura infantil 15


o livro infantil nasce com contos folclóricos e fábulas, a fim de garantir
comportamentos exemplares, e se aprimora como uma mercadoria
Figura 2
para assegurar a passagem dos valores da classe que estava no coman-
Madone des Guidi de
Faenza, de Sandro Botticelli, do dos meios de produção.
– representação da criança
no Renascimento. A preocupação excessiva com o uso pedagógico e moral da
literatura infantil acabou por lhe conferir um título de arte com
Wikimedia Commons

menor valor, uma vez que suas características estéticas foram


sendo deixadas de lado nesse cenário.

Porém, mesmo em meio a esse contexto, algumas obras


merecem destaque por serem livros que transcenderam o pe-
dagógico e o utilitário, dando ênfase aos elementos estéticos
que produzem a literatura como forma de arte.

Como exemplo, ainda no século XVIII, temos Robinson Cru-


soé (1719), de Daniel Dafoe, e As viagens de Gulliver (1726), de
Jonathan Swift.

No século XIX, podemos encontrar Os contos dos Irmãos


Grimm (1812); Contos (1833), de Hans Christian Andersen; Alice
no País das Maravilhas (1863), de Lewis Carroll; As aventuras de
Tom Sawyer (1882), de Mark Twain; e Pinóquio (1883), de Carlo
BOTTICELLI, S. Madone des Guidi de Faenza. 1470. Têmpera
sobre painel, color., 73 x 49 cm. Museu do Louvre, Paris, França. Collodi.

Todos esses livros se consolidaram como literatura infantil (e juvenil)


de qualidade por todo o ocidente, tendo inclusive inúmeras adaptações
Desafio e versões, tanto em linguagem verbal quanto em outras linguagens,
Entre as obras citadas, como a do cinema e a dos quadrinhos. Então, não é de se espantar
pesquise a respeito daquelas que que você conheça a maioria dessas histórias, senão todas! Nossa infân-
chamarem mais a sua atenção.
cia foi povoada por personagens dos contos de fadas europeus, com
Quem sabe essa pesquisa possa
terminar em uma boa leitura! coleções que traziam adaptações e versões simplificadas para várias
idades. Mas não só de literatura estrangeira viveram as crianças brasi-
leiras! Nós também fizemos (e continuamos fazendo) muita literatura
infantil, e da boa, diga-se de passagem! Vamos ver?

1.2 Literatura infantil do Brasil


Vídeo Entre o período do estabelecimento da colônia e o século XIX, não
havia produção editorial no Brasil, assim, todos os livros eram im-
pressos em Portugal. Logo, as obras literárias que você viu na seção
anterior passavam por uma tradução para o português de Portugal,

16 Literatura Infantil
e assim vinham ao Brasil, para aqueles que podiam pagar. No caso
do povo em geral, prevaleciam ainda os contos populares da tradição
oral, vindos em sua maioria da cultura ibérica e com temáticas de ca-
valaria ou religiosas.

Com a vinda da família real para o Brasil, já no século XIX, diversos


setores se modernizaram para se adequar ao status de nova sede da
realeza. Assim, setores culturais e educacionais se desenvolveram e foi
iniciada a produção editorial brasileira, com a Imprensa Régia, implan-
tada em 1808. Em 1810, D. João VI implementou a Biblioteca Nacional,
com a importação de inúmeros volumes de Portugal.

Tal progresso continuou a avançar a passos largos com a Indepen-


dência proclamada por D. Pedro I, com a estabilidade das recentes uni-
versidades e criação de novas e com o reconhecimento da educação
como necessidade às elites. Assim, o livro infantil também se estabe-
lece enquanto necessidade pedagógica e, em especial, como artefato
para a alfabetização. As literaturas escolares, ou livros de leitura, que
passam a ser produzidas no Brasil no século XIX se firmam – assim
como na Europa do século XVIII – como utilitárias e ligadas aos valores
da sociedade brasileira da época. Conforme Coelho (2010, p. 223):
Analisadas em conjunto, essas obras pioneiras (sejam adapta-
ções, traduções ou originais) revelam facilmente a natureza da
formação ou educação recebida pelos brasileiros desde meados
do século XIX. Uma educação orientada para a consolidação dos
valores do Sistema herdado (= mescla de feudalismo, aristocra-
cismo, escravagismo, liberalismo e positivismo).

Coelho (2010) ainda salienta que os valores contidos nos livros


escolares brasileiros desse período podem ser caracterizados por
nacionalismo, intelectualismo, tradicionalismo cultural e mora-
lismo e religiosidade. Veja a seguir as características de cada um des-
ses valores:

Processo histórico da literatura infantil 17


Quadro 1
Características dos valores nos livros escolares do século XIX

Tradicionalismo Moralismo e
Nacionalismo Intelectualismo
cultural religiosidade
Maior ênfase na língua Ascensão social e econô- Cumprimento dos
Valorização de autores
falada no Brasil, diferen- mica por meio do saber preceitos cristãos de
consagrados e clássicos
ciando-se do Português proporcionado pelo caráter, honestidade e
europeus.
europeu. estudo e pelo livro. pureza.
Cultura clássica e es-
Preocupação com os trangeira a ser utilizada
símbolos da Pátria. como molde para cria-
ções nacionais.
Destaque ao amor pela
terra e pela vida no cam-
po, incompatível com a
vida urbana.

Fonte: Adaptado de Coelho, 2010, p. 224.

Podemos citar algumas obras que introduzem a literatura para


crianças enquanto artefato pedagógico. Entre elas:
Anthologia nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Um dos livros escolares
mais populares no início do século XX, sendo adotado em grandes colégios das capitais.
Era uma antologia de textos a serem trabalhados na escola, sempre dando ênfase à
produção literária nacional.

95 Coisas brasileiras, de Romão Puiggari. Sua intenção era a de trazer bom humor para
18 os livros didáticos e repensar o uso de autores e valores estrangeiros em detrimento dos
nacionais. Para ele, poemas, histórias, cenário e assuntos tratados deveriam enaltecer o
Brasil, inserindo-se, assim, no nacionalismo romântico da época.
93
18 Livros de leitura e série didática, de Felisberto de Carvalho. Essa série concorria
diretamente com a de Hilário Ribeiro e instaurava no Brasil um novo método de ensino,
com divisão por lições e exercícios de recapitulação, ditado, redação e recitação.
90
18 Série Instrutiva, de Hilário Ribeiro, foi uma coleção muito popular em diversos estados
do Brasil até a década de 1930. Era composta de quatro volumes: Cartilha nacional –
primeiro livro e silabário; Cenário infantil; Na terra, no mar e no espaço; Pátria e dever – elementos
82
18
de educação moral e cívica. Essa coleção instaura de vez o uso do método silábico para
a alfabetização nas escolas brasileiras. Conforme Coelho (2010, p. 228), “nessa Série
Instrutiva, estão bem caracterizados os valores da Sociedade-liberal-burguesa-cristã, que
alicerçam toda a produção didática e literária da época”.
77
18 O livro do nenê, de Joaquim José de Meneses Vieira, autor de vários outros livros
1
didáticos .
68
18 Método Abílio, de Abílio César Borges, Barão de Macaúba. Com base no modelo
europeu, escreveu vários livros de leitura e realizou adaptações de outros livros
europeus para que as escolas empregassem como método de alfabetização e ensino da
61
18
matemática, das ciências, das artes e da leitura.

O livro do povo, de Antônio Marques Rodrigues, traz de modo acessível a doutrina


gra cristã e os princípios de economia e ordem. Mesmo com uma literatura utilitarista, acaba
ph por ser um precursor da popularização do livro infantil no país.
ixm
an
ia/
Sh
utt
ers 1 Glossário
toc
k 20 contos morais (1880),
Manual para os jardins de método silábico: trabalho de alfa-
infância (1882) e Amiguinho
Nhonhô (1882).
betização por meio da compreensão
de estruturas maiores do que
somente as letras, as sílabas.

18 Literatura Infantil
Visualizamos nessas obras a influência incontestável de um pensa- Livro
mento positivista que estava presente em todos os setores. As palavras Para trabalhar contos
em sala, nada melhor
do escritor Francisco Vianna, autor de Leituras infantis (1900), esclare-
que utilizar compilações
cem bem o sentimento que imperava nos livros de leitura do fim do com comentários e fatos
históricos. Para isso, leia
século XIX e início do século XX. De acordo com Vianna, citado por os livros de Ângela Carter
Pfromm Neto et al. (1977): e de Maria Tatar, os quais
trazem inúmeros contos
ao escrevermos tais livros, não podemos e nem devemos subor- (conhecidos ou não) para
diná-los exclusivamente ao gosto e às tendências das crianças. você se encantar.

Toda leitura, qualquer que seja, exerce uma certa reação sobre
quem a faz, pois, como demonstrou A. Comte, nada há de indi-
ferente ao sentimento. Assim sendo, convém aproveitar em tais
lições assuntos que concorram para a formação de seus senti-
mentos e de seu caráter, em suma, de seu moral. Isto só se pode
obter desenvolvendo o altruísmo e comprimindo o egoísmo.
(apud COELHO, 2010, p. 235)
CARTER, A. 103 contos de fadas. São
Logo, podemos entender por esse trecho o quão atreladas ao ensi- Paulo: Companhia das Letras, 2005.
no de valores e da aquisição da habilidade de leitura eram tais obras.
Além disso, precisamos lembrar que o crescente interesse pelos livros
didáticos ainda está ligado ao sentimento burguês que descrevemos
anteriormente. Esses valores, já estabelecidos na Europa, chegavam
até nós com o amadurecimento de uma sociedade brasileira ainda
muito jovem. Assim, a necessidade de se educar para a formação do ca-
ráter e da moral, como citado no trecho visto anteriormente, é também TATAR, M. (ed.). Contos de fadas:
edição comentada e ilustrada. Rio
uma necessidade de perpetuar valores da classe dominante, afinal, no de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
século XIX e início do século XX, quem frequentava as escolas?

Pois é, somente pessoas com condições financeiras enviavam seus


filhos para serem educados e para perpetuarem os valores nascidos
com a burguesia europeia. Os mais pobres, as meninas e os filhos de
escravizados recém-alforriados não estavam nessa equação (LAJOLO;
ZILBERMAN, 2007).

Porém, embora o início da literatura infantil se confunda com o


dos livros didáticos, não devemos pensar que não havia literatura in-
fantil como forma de arte. Temos, sim, algumas obras que, já no sé-
culo XIX e início do século XX, podem ser consideradas por seu valor
estético. Veja algumas:

Processo histórico da literatura infantil 19


•• Contos infantis (1886), de Júlia Lopes de Almeida e Adelina Lopes
Vieira. São 60 histórias em prosa e em verso, as quais se consa-
gram como o primeiro livro destinado também à diversão, além
da instrução. Júlia Almeida ainda escreveu outros títulos que se
ligam ao nacionalismo e à pedagogia, mas sempre trazendo o
maravilhoso em suas histórias.
•• Contos da carochinha (1896), de Figueiredo Pimentel. Essa foi a
primeira coletânea de contos infantis, fábulas, lendas, parábolas
e outros gêneros traduzida para o português do Brasil, dissemi-
nando a cultura dos contos de fadas em território nacional.
•• Livro das crianças (1897), de Francisca Rolim. A poetisa escreveu
contos em historietas em versos, e seu livro foi adotado para as
escolas do estado de São Paulo.
•• Livro da infância (1899), de Francisca Júlia, poetisa parnasiana que
escreveu 40 textos em poesia e prosa, com grande influência de
escritores alemães. Sua obra também foi adotada pelo estado de
São Paulo para suas escolas.
•• O tico-tico (1905), jornal infantil que permaneceu no mercado
por muitos anos. Inaugurou no país uma cultura de histórias em
quadrinhos (HQs), trazendo inicialmente cópias de ilustrações de
HQ americana Buster Brown, que, para nossa realidade, foi trans-
formado no personagem travesso Chiquinho. Após Buster Brown
ser cancelada nos EUA, Chiquinho continuou a aparecer no jornal
infantil por intermédio de diversos artistas nacionais, que, aos
poucos, foram criando outros personagens. O jornal também
trazia quebra-cabeças, jogos e enigmas e esteve em circulação
por 53 anos. Foi por suas páginas que nós tivemos o primeiro
contato com O Gato Félix e Mickey Mouse, ambos de Walt Disney.
•• As nossas histórias (1907), de Alexina de Magalhães Pinto, é uma cole-
tânea folclórica produzida em um esforço de renovação da literatura
infantil.
•• Páginas infantis (1908), de Presciliana Duarte de Almeida, é uma
coletânea de historietas que intenta divulgar novas ideias educa-
cionais e, também, feministas.
•• Era uma vez (1908), de Viriato Correia, é uma reunião de contos
maravilhosos e folclóricos, com maior preferência pelas fábulas
e por tratar temas históricos de maneira divertida.

20 Literatura Infantil
•• Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manuel Bonfim. Um mar-
co na nossa literatura infantil, traz uma única história de aventu-
ra (uma novela), e não vários contos e pequenas histórias como
seus antecessores. Também insere o gênero de viagem pedagó-
gica, utilizado na Europa, fazendo com que seus personagens
principais viagem pelo Brasil conhecendo suas diferenças histó-
ricas, geográficas, naturais e culturais.
•• Biblioteca infantil (1915), Arnaldo de Oliveira Barreto. Foram 25
títulos de contos, como O patinho feio, Gato de Botas, O soldadi-
nho de chumbo, entre outros, todos ilustrados pelos artistas mais
consagrados da época. Tal coletânea se perpetuou por muitos
anos e chegou até nós com melhorias gráficas e adaptações.
•• Saudade (1919), de Tales de Andrade. Nos moldes da novela de
Olavo Bilac e Manuel Bonfim, abriu caminho para uma literatu-
ra infantil com temática rural, a qual foi bastante explorada nos
anos seguintes. A vida rural se insere aqui com o reconhecimen-
to de novos ideais de paz e justiça social após uma guerra que
abalou os valores de progresso e urbanização. Saudade mescla
ficção e realidade e enaltece uma vida simples e desvalorizada
pela cidade, bem como a natureza.

Tales de Andrade instaurou uma nova categoria a ser perseguida Glossário


por autores de literatura infantil no século XX, a de ruralismo, uma exal- bucolismo: temas campestres
tação à vida simples e dura do campo, com um quê de bucolismo e retratados na arte.
amor pela natureza.

E aqui estão lançadas as bases para uma literatura infantil genuinamen-


te brasileira e com ênfase em seu estado de arte. Será que você consegue
pensar em algum escritor que compreende esse cenário em que são ne-
cessários livros para a educação escolar e para o ensino de valores como o
ruralismo, mas que não deixa de lado o divertimento e o maravilhamento?

1.2.1 Monteiro Lobato e o nascimento da literatura


infantil brasileira
Como vimos, o cenário brasileiro aos poucos foi se modificando, pas-
sando de uma necessidade por copiar modelos europeus de arte e edu-

Processo histórico da literatura infantil 21


cação para encontrar um tom que fosse brasileiro, levando em conta
nossa geografia, história e natureza. Assim, a literatura infantil, a partir
dos anos 1920, leva em conta também algumas das características pro-
duzidas por novos valores da primeira fase do movimento modernista,
como a liberdade, o humor, o nacionalismo, o relato do cotidiano e uma
busca pela língua brasileira, pelos falares do povo.

Eis que então surge José Bento Renato Monteiro Lobato, figura que
inicia sua carreira no jornal O Estado de São Paulo denunciando as quei-
madas no interior do país, pois antes de ser escritor, Monteiro Lobato
era fazendeiro. Inicialmente, Lobato ficou conhecido por suas críticas
sociais na figura do Jeca, um caboclo a quem o autor via como um para-
sita, alguém preguiçoso e sem cuidado com a terra. Da mesma forma,
o escritor também criticava os governos, por estarem mais ligados à
Primeira Guerra Mundial na Europa do que às necessidades do país.

Aos poucos, Lobato alterou sua visão do homem do interior, do cabo-


clo. Percebeu que sua condição vem da falta de educação e de condições
básicas para a sobrevivência e entendeu, assim, que seu modo de vida
não é enaltecido como faziam no Romantismo. No período romântico da
literatura brasileira, o homem do interior era tido como afortunado por
poder viver em contato com a natureza; depois, passou a representar
uma cultura arcaica e simples demais, com seus contos e folclores.

À essa época, a literatura brasileira estava mergulhando no Moder-


nismo, movimento que prezava muito pelas vanguardas europeias e
por novos rumos para a cultura e sociedade brasileiras. Entretanto,
Lobato se opunha a esse pensamento modernista, pois pensava que a
literatura feita em território nacional deveria promover uma literatura
realmente brasileira – olhando para suas raízes, sua língua, seus folclo-
res –, e não importar estilos europeus de arte.

Ao criticar alguns dos preceitos do movimento modernista, identifican-


do certo vazio de significados nessas obras, Lobato foi colocado à margem
do movimento e tido como conservador e pré-modernista. O escritor le-
vantava, ainda, que uma arte que não era compreendida pelo povo não
seria popular, e sim mais um artefato produzido pela e para as elites.

Lobato defendia que era do povo que deveria surgir a arte natu-
ralista brasileira, afirmando que o povo possuía capacidade para de-
senvolver um estilo próprio com base em suas raízes. Dessa forma,

22 Literatura Infantil
contestava a arte canônica de estilo rebuscado e inacessível à popula-
ção, arte essa que vinha do tempo do Império.

O escritor também foi proprietário da Revista do Brasil – periódico


de cultura que se tornou editora, a qual, anos depois, foi rebatizada
como Monteiro Lobato & Cia Editores –, publicando seu primeiro livro,
Urupês, em 1918, com a tiragem de mil exemplares esgotada em um
mês, um fenômeno para a época, sendo um pioneiro no mercado edi-
torial brasileiro.

Para Lobato, portanto, a arte deveria ser popular, feita das raízes
do povo e para o povo. Assim, conforme o pesquisador Vitor Lacerda
(2008, p. 22), citando o pensamento de Lobato:
acreditando que o estilo nacional deveria estar em íntima conso-
nância com o povo, Lobato afirma que ele não poderia ser criado,
mas que deveria nascer naturalmente “por exigência do meio”.
Contudo, como essa exigência não estaria colocada no Brasil, ela
deveria ser provocada não pelos grandes mestres, mas sim pelo
“artista legião”, o artesão anônimo, capaz de moldar a “feição es-
tética duma cidade”: o marceneiro, o serralheiro, o entalhador,
o fundidor, o estofador e o ceramista. A formação desse artista
seria responsabilidade do Liceu de Artes e Ofícios, que deveria
incitá-lo a “olhar em torno de si e a tirar da natureza circunjacen-
te os assuntos das composições, o motivo dos ornatos, a matéria
prima, enfim, da sua arte”.
Importante
Assim, embora Monteiro Lobato tenha sido um divisor de águas da
Com uma visão de desenvolvi-
literatura infantil e elevado os padrões estéticos dessa arte, a necessi-
mento nacional, especialmente
dade de pensar a literatura para crianças enquanto formadora ainda ligado aos meios de extração,
permaneceu, porém com maior liberdade criadora e sem os preceitos como poços de petróleo e
latifúndios, Lobato acreditava
moralizantes das obras anteriores. Sua obra foi um marco, pois ultra- que as crianças seriam o futuro
passa o didatismo e a questão educacional e pedagógica para incentivar do Brasil e, assim, precisavam
uma ação leitora de liberdade criadora. Seus livros infantis permitiram ser formadas com a cultura
brasileira, e não estrangeira.
a criatividade, a curiosidade e a descoberta do mundo. Também entendia que a literatu-
ra para crianças não deveria ser
Com esse desejo, o de levar conhecimento e gosto pelo saber,
moralizante e nem rebuscada,
Lobato se colocou a favor de um novo modelo de educação, publican- porém, para ele, o processo de
do seu primeiro livro infantil, A menina do narizinho arrebitado (1920). escrita deveria ser empregado
com um fim de transmissão de
Com fins escolares, Lobato apresenta, nessa obra, um pensamento que
uma mensagem, e não apenas
mais tarde se aproxima do movimento da Escola Nova, aproximação como forma entretenimento.
dada tanto por sua afinidade com um novo projeto educacional quanto

Processo histórico da literatura infantil 23


por sua amizade com Anísio Teixeira, que travava uma batalha para a
implantação do novo sistema de ensino. Sendo assim,
Lobato, em sua obra infanto-juvenil, valoriza o dom da inteligên-
cia e o emprego de um tipo de educação que a estimule, que
a torne criadora, por meio das descobertas e das invenções,
portanto livre de restrições, repetitivismos e preconceitos. Uma
didática baseada no vital, no real, no concreto constituiria a via
para inovações e revelações. Consistiria, pois, numa pedagogia
para o progresso. (NUNES, 1998, p. 250)

Para alcançar esse intento, Lobato sentiu a necessidade de fazer


uso de fábulas e mitos brasileiros. O autor criou, então, o que se torna-
ria uma coletânea de 23 obras originais voltadas para o público infantil.
Essas obras contavam com um estilo simples, reunindo elementos da
realidade rural e suas peculiaridades com a fantasia, o imaginário fol-
clórico e a mitologia grega, abordando ensinamentos de história, ma-
temática e geografia.

Veja a linha do tempo das principais obras infantis de Monteiro


Lobato:

Reinações de
Caçadas de
Narizinho (inclui A
Pedrinho e
menina do narizinho
História do
As Aventuras arrebitado e outras
mundo para as
de Hans histórias da década
O saci crianças
Staden de 1920)
1921 1927 1931 1933

1922 1930 1932 1934


Fábulas Peter Pan Viagem ao céu Emília no
País da
Gramática

24 Literatura Infantil
Saiba mais
Entre 1952 a 1964, o programa O sítio do Pica-pau Amarelo, exibido pela TV Tupi, foi um grande sucesso tele-
visivo. A série, adaptada por Tatiana Belinky e dirigida por Júlio Gouveia, teve 360 episódios. A segunda versão
da série para a televisão foi realizada pela Rede Globo entre os anos de 1977 e 1986, com roteiros de Benedito
Ruy Barbosa, Marcos Rey, Silvan Paezzo e Wilson Rocha, e dirigida, em sua maioria, por Geraldo Casé. Em 2001,
a TV Globo realizou uma nova versão de O sítio do Pica-pau Amarelo, com inúmeros roteiristas e diretores e
trazendo uma criança para interpretar o papel de Emília. Para saber mais sobre as adaptações desse clássico da
nossa literatura infantil, visite o site disponível em: https://tinyurl.com/ybam2p6h. Acesso em 5 abr. 2020.

Atividade 2
Monteiro Lobato não é imune a críticas, em especial quando avançamos no sistema de valores vigentes. Há alguns
anos, começaram discussões a respeito do racismo presente em suas obras. Enquanto escritor, não se retira seu
peso da história da literatura infantil, mas com certeza não se pode deixar de lado tal discussão. Leia a matéria es-
crita por Adilson Miguel para a Revista Emília e reflita sobre suas impressões acerca da obra de Lobato e sua relação
com o racismo. Disponível em: https://revistaemilia.com.br/lobato-e-o-racismo/. Acesso em: 7 maio 2020.

Aritmética Serões de
da Emília; Dona Benta;
Geografia de O poço do Os doze
Dona Benta; Visconde; trabalhos de
História das Histórias de A reforma Hércules (dois
invenções Tia Nastácia da natureza volumes)

1935 1937 1941 1944

1936 1939 1942 1947


Dom Quixote O Pica-pau A chave do Histórias
das crianças; Amarelo; O tamanho diversas
Memórias da minotauro
Emília

Processo histórico da literatura infantil 25


1.2.2 Literatura infantil pós-Lobatiana até os anos
2000
Após Lobato, os governos e outras esferas sociais passaram a ter
maior preocupação com o panorama educacional, impulsionando a pro-
dução de literatura infantil. Durante as décadas de 1920, 1930 e 1940,
somente Lobato se levantou como autor de histórias literárias, e não me-
ramente educativas, com todos os outros autores do período acabando
por exagerar no tom pedagógico de suas obras infantis. Dessa forma:
o panorama dos anos de 1930-1940 mostra que, além dos livros
de Lobato e das obras clássicas traduzidas ou adaptadas, apenas
alguns escritores, entre os que escreveram na época, atingiram a
desejável literariedade. No geral, predomina o imediatismo das
informações úteis e da formação cívica. (COELHO, 2010, p. 265)

Segundo Coelho (2010), nas décadas de 1920 e 1930, com o crescen-


te interesse pela educação, instaurou-se uma briga entre a literatura de
fantasia e a literatura realista. Para a escola em geral, a literatura de fan-
tasia era fútil; a única que deveria ser pensada era a realista, aquela que
mostrava a realidade do país e preparava alunos para situações da vida
cotidiana. Assim, a habilidade de sonhar e de criar estava sendo deixada
de lado pela escola e, consequentemente, pela literatura infantil.
Enfim, nos anos 40, surge um tipo de literatura para crianças e
jovens que procura eliminar, de sua gramática narrativa, as “ir-
realidades”, o extraordinário e o maravilhoso que sempre carac-
terizaram a Literatura Infantil. Fadas, bruxas, duendes, talismãs,
gênios, gigantes, castelos, princesas ou príncipes encantados,
etc. foram sistematicamente combatidos como “mentiras”. De-
fendia-se o princípio de que os contos de fada ou maravilho-
Saiba mais
sos em geral falsificavam a realidade e seriam perigosos para a
A era de nascimento dos criança, pois poderiam provocar em seu espírito uma série de
super-heróis coincidiu com alienações como: perda de sentido do concreto, evasão do real,
a quebra da bolsa de valores
distanciamento da realidade, imaginação doentia, etc. (COELHO,
de Nova York em 1929 e o
período de recessão econômica 2010, p. 272)
que perdurou até 1933. Nesse
Enquanto diversão despretensiosa de moralidades e desarticula-
período, muitos trabalhadores
perderam seus empregos e os da do cenário didático, seguiam em alta os livros de Lobato e a revis-
índices de criminalidade se ta O Tico-Tico. Além deles, outras revistinhas, que não duraram tanto
elevaram sensivelmente. Assim,
nasceram super-heróis como o
tempo, também foram surgindo, sempre trazendo histórias divertidas
Batman para proteger cidadãos e que eram grande sucesso entre as crianças e os jovens. Com essas re-
combater o crime. vistas, iniciamos uma nova fase na literatura infantil brasileira, a dos

26 Literatura Infantil
quadrinhos, especialmente com traduções de HQs americanas de su-
per-heróis, como Batman, Superman, entre outros títulos, e a entrada
do gênero policial, em especial com Sherlock Holmes.

Se com Lobato tivemos personagens centrais femininas como Narizinho e Emília,


o que você acha que passou a acontecer a partir da década de 1930?

Você acertou se disse que os protagonistas das grandes histórias


subsequentes eram todos homens (ou meninos). Inicia-se uma divisão
de literatura para meninos e para meninas. Para meninos, logicamen-
Atividade 3
te, a diversão, o humor, as invenções e a investigação. Para meninas,
Para você, por que ainda hoje
relacionamento e valores morais ligados ao seu papel no lar. Além de
encontramos a separação de
princesas, é claro! livros para meninos e para
meninas? Qual o reflexo dessa
Vale fazermos uma leitura breve das obras para meninas na me- divisão no desenvolvimento das
tade do século XX, afinal super-heróis e contos policiais não precisam crianças?
de apresentação, pois estão aí até hoje entretendo pessoas de todas
as idades e conquistando milhões em dinheiro no cinema! Mas essa é
uma outra história.

A literatura dessa época ficou conhecida como literatura rósea, se-


gundo Coelho (2010). De fato, foi um gênero criado já no Romantismo
e que formou muitas das mulheres até quase a década de 1960 com
uma visão de mundo paternalista e dedicada à inserção da mulher na
vida familiar e doméstica. Eram normalmente coleções, das quais fa-
ziam parte: Coleção Menina e Moça (José Olympio); Biblioteca das Moças Site

(Editora Nacional); e Coleção Rosa (Livraria Acadêmica). Os sites a seguir trazem


listas de livros que
Aí você pode se perguntar: e para as crianças? Bem, para meninas, trabalham a relação de
gênero na literatura in-
assim que conquistassem a alfabetização, dado que, até aqui, a litera- fantil. É muito importante
tura infantil era pensada sempre no sentido educacional, então, antes considerarmos obras que
reflitam a respeito dos
da alfabetização, as histórias contadas eram os velhos contos de fadas papéis impostos sobre
e fábulas já tão perpetuados no imaginário coletivo, além de histórias meninos e meninas na
sociedade e sobre seu re-
com linguagem infantilizada, enfatizando as travessuras (e o preço flexo no desenvolvimento
pago por elas) e o encorajamento do respeito às ordens dos adultos emocional de cada um
e na construção de suas
(COELHO, 2010). identidades enquanto
seres sociais. Disponíveis
Nos anos seguintes (década de 1950), a maior diferença em relação em:
a décadas anteriores é que a fantasia começou (muito timidamente, https://tinyurl.com/ya3urhjj
veja bem!) a retornar aos livros infantis. Mas as obras ainda seguiam os https://tinyurl.com/yb6dgean
(Acesso em: 5 abr. 2020)
mesmos preceitos de suas antecessoras. Então, o fator mais louvável

Processo histórico da literatura infantil 27


nesse campo foi a maior disseminação dos quadrinhos (em especial de-
vido à maior abrangência dos aparelhos de televisão e do cinema), com
a introdução de Pato Donald nos jornais e nas revistinhas brasileiras.

Mas claramente essa disseminação das HQs não passaria desperce-


bida por uma sociedade tão ligada aos valores tradicionais de ensino
quanto a sociedade brasileira. Uma comissão, da Secretaria de Educa-
ção de São Paulo, atribuiu aos quadrinhos a “preguiça de ler” crescente
entre os alunos, vetando sua entrada nas bibliotecas. É claro que, como
ocorre em toda boa proibição, o mercado editorial se beneficiou mui-
tíssimo dos quadrinhos, ampliando edições, títulos e tiragens.

Na década de 1960, temos a primeira Lei de Diretrizes e Bases da


Educação Nacional (LDB de 1961), a qual promove o trabalho com li-
teratura para a aquisição da gramática, impulsionando a produção
de obras voltadas aos públicos infantil e juvenil nas décadas de 1960,
1970, 1980 e 1990. Nesse impulso, nasceram HQs brasileiras e obras de
grandes autores em prosa, verso e teatro.

Essas décadas marcaram o florescimento de uma literatura engaja-


da socialmente, em especial pelo período da ditadura militar instaurada
com o golpe de 1964. O reflexo desse movimento será percebido inclusi-
ve nos anos finais do governo ditatorial e no início da nova democracia.

A seguir, temos uma lista tímida de autores mais importantes nes-


ses 40 anos, mas que continuam em alta até hoje.

Nos quadrinhos: Ziraldo (O menino maluquinho) e Maurício de


Sousa (Turma da Mônica).

Na prosa:
•• Clarice Lispector – O mistério do coelho pensante (1967) e A
mulher que matou os peixes (1968).
•• Lygia Bojunga – A bolsa amarela (1976).
•• Ana Maria Machado – suas obras mais famosos são Bisa Bia, Bisa
Bel (uma novela de 1981) e Menina bonita do laço de fita (2000).
•• Ruth Rocha – escreveu histórias inéditas, como Marcelo, mar-
melo, martelo (1976), e adaptações como, Romeu e Julieta e A
arca de Noé.
•• Rachel de Queiroz – O menino-mágico (1969) e Cafute e
Pena-de-prata (1986).
•• Pedro Bandeira – obras como A marca de uma lágrima (1985)
e É proibido miar (1983).
•• Tatiana Belinky – Limeriques (1987).

28 Literatura Infantil
No teatro:
•• Pedro Bandeira – O fantástico mistério da Feiurinha (1985).
•• Ana Maria Machado – O rapto das cebolinhas (1954); Pluft, o
fantasminha (1955); A menina e o vento (1963); entre muitas
outras obras.

Na poesia:
•• Marina Colasanti – A centopeia.
•• Mário Quintana – Poeminha do contra.
•• Sérgio Capparelli – Canção para ninar dromedário.
•• Cecília Meireles – Ou isto ou aquilo (1964); A canção dos
tamanquinhos.
•• José Paulo Paes – Convite.
•• Vinícius de Moraes – As borboletas.

Não podemos deixar de lado um capítulo importantíssimo da lite-


ratura infantil brasileira em versos. O capítulo da Música Popular Bra-
sileira (MPB). Internacionalmente, bandas e estilos musicais diversos
surgiam, comandados pela banda The Beatles e por estilos como o
Blues e o Rock. Já no Brasil, o cenário era outro.

Com o golpe militar de 1964 e uma ditadura que acirraria as frontei-


ras da censura, a música viu o desenvolvimento da Bossa Nova, criada
anos antes, e de todo um movimento de denúncia e crítica daquele mo-
mento histórico brasileiro por meio do lirismo da MPB, a qual ganhou
os palcos televisionados dos festivais de música brasileira, podendo le-
var uma cultura ímpar para todos os cantos do país.

Compositores e cantores como Chico Buarque (“Os saltimbancos”),


Vinícius de Moraes (“A casa”), Toquinho (“Aquarela”) e Caetano Veloso
(“Leãozinho”) fizeram algumas das canções brasileiras mais conheci-
das até hoje, com diversas interpretações e adaptações para teatro e
cinema.

Nesse novo cenário da literatura infantil brasileira, deixamos para


trás (quase) todas as características das obras anteriores à década de
1960. Ao menos com grandes autores. Se espiarmos bem, encontra-
mos ainda muitas obras que servem ao didatismo mais que ao pra-
zer da leitura. Mas, no geral, talvez seja seguro dizer que, com esses e
tantos outros escritores, a literatura infantil deixou o patamar de “arte
menor”, conforme as palavras de Coelho (2010, p. 283):

Processo histórico da literatura infantil 29


A par de inúmeros “continuadores” que seguem nas trilhas bati-
das, surgiram dezenas de escritores e escritoras de “arte maior”,
sintonizados com a nova palavra de ordem: experimentalismo
com a linguagem, com a estruturação narrativa e com o visualis-
mo do texto; substituição da literatura confiante/segura por uma
literatura inquieta/questionadora, que põe em causa as relações
convencionais existentes entre a criança e o mundo em que ela
vive, questionando também os valores sobre os quais nossa so-
ciedade está assentada. (2010, p. 283)

A literatura infantil brasileira transitou entre o didatismo e a estética


para se estabelecer como uma necessidade existencial, de experiência
da realidade por meio do simbólico. Isto é, nossa história, embora cruel
e opressora, promoveu o aprimoramento de uma arte que coloca em
pauta a crítica da realidade, a fantasia e também a própria construção
do sujeito no mundo.

Nas décadas de 1980 e 1990, inúmeros títulos caíram nas graças


dos pequenos leitores e das escolas. Tanto obras brasileiras quanto
estrangeiras foram muito aclamadas, como a série Harry Potter, de J.K.
Rowling. A década de 1990 viu um mercado literário se adaptar e se
expandir para dar conta de um público novo (em idade, afinal crianças
sempre foram movidas a histórias), reconhecendo o valor artístico e de
mercado de obras para crianças.

O maior desafio (o qual ainda persiste) seria o trabalho com a litera-


tura nas escolas, pois os cursos de formação de professores não acom-
panharam tal evolução, embora atualmente vejamos um movimento
docente muito mais consciente da necessidade do bom trabalho com
literatura e arte.

Assim, com tantas obras que trazem à tona uma reflexão sobre a
realidade do leitor, adentramos o novo século. Mas não sem desafios
para a literatura infantil. Reinventar-se é preciso, então vamos desco-
brir essas reinvenções do século XXI.

1.3 Tendências atuais: do impresso ao digital


Vídeo Com o século XXI, vimos florescer o uso da tecnologia em todos os
setores, e a literatura não ficou de fora. Em primeiro lugar, vemos o uso
abundante de novos projetos gráficos, com ilustrações de diferentes
traços, fontes diversas, novos materiais e novas formas de se pensar o
design e o uso do livro infantil.

30 Literatura Infantil
Várias editoras aumentaram seus faturamentos com a publicação
Atividade 4
de livros infantis, especialmente em decorrência de programas gover-
Relate como você percebe as
namentais para a aquisição de tais obras, destinadas à escola pública, diferenças entre a literatura atual
e de novas legislações iniciadas já na década de 1990. Com uma nova e a literatura do início do século
legislação educacional, outras formas de pensar literatura e educação XX no Brasil.

surgiram. Uma delas são os chamados temas transversais, temáticas li-


gadas a outras áreas do conhecimento e que devem ser tratadas em
livros literários, como ecologia, saúde e cidadania.

Temas transversais também iniciam o movimento de uma literatura


que coloca em cena a diversidade e as minorias. Porém, com um belo
caminhar, temos hoje livros que não tratam mais essas temáticas en-
quanto transversais a outras disciplinas, e sim colocam questões de Site
gênero, raça, etnia, classe, direitos humanos e marginalização como Se fôssemos fazer uma
lista extensa com todas
centrais em suas narrativas.
as obras relevantes para
Vemos, então, o estabelecimento de uma visão que privilegia a fun- atualidade, não sairíamos
mais deste capítulo!
ção social e artística da literatura, em comparação com o grande peso Brincadeiras à parte, as
didático e instrucional dado a ela em décadas anteriores. A linguagem listas dos seguintes sites
podem lhe dar uma boa
acessível às crianças trouxe ainda a valorização das culturas brasileiras ideia de obras voltadas
e a transformação de significados da língua e da sociedade, ampliando às crianças na atualidade.
Pesquise aquelas que lhe
tanto o vocabulário quanto o arcabouço de conhecimentos e capacida- interessarem mais e faça,
de crítica. se possível, a leitura de
algumas, para ter mais
Os livros infantis atualmente deveriam ter como objetivo tanto a familiaridade com esse
universo. Disponíveis em:
imaginação, a criatividade e a fantasia quanto uma postura questio-
https://tinyurl.com/y7fqxhbh
nadora dos contextos sociais. Afinal, se ler é um ato político, isto é, a https://tinyurl.com/y9wggzx2
construção de significados capazes de nos inserir nos diferentes con- https://tinyurl.com/y7p4jnc3
https://tinyurl.com/
textos sociais e transformá-los, a literatura para crianças deve seguir y8a8l347https://tinyurl.com/
esse curso, sempre explorando uma vertente de reflexão crítica, inde- yclotqdx
(Acesso em: 4 abr. 2020)
pendentemente da linha que aderir.

E por falar em linhas, como ficam as características básicas dessa


literatura crítica e criativa para crianças? Será que para propiciar essas
discussões é obrigatório termos obras que só trabalhem com o plano
real? O que você pensa a respeito disso?

Com certeza, não! Podemos usar muitos mundos, reais e imaginá-


rios, para refletir sobre as diferenças, a sociedade e as situações que a
vida nos apresenta. Veja a seguir as tendências que marcam a literatura
infantil e juvenil na atualidade:

Processo histórico da literatura infantil 31


Quadro 2
Tendências da literatura infantojuvenil

Linha realista Linha fantástica Linha híbrida

Testemunha o cotidiano em que


Mundo fantástico, maravilho- Realismo mágico, muito utilizado na
se insere o leitor e permite o
so, criado pelo mundo das América Latina por inúmeros escrito-
contato com outras realidades
ideias. res, entre eles Monteiro Lobato.
distintas.

Personagens animais; ficção


Informa hábitos e costumes de científica; espaço atemporal Entrada de um contexto irreal, mági-
diferentes culturas. do “era uma vez”; metafísica; co, no contexto real do cotidiano.
distopias.

Trazem uma atração pelo As narrativas indígenas e africanas


Explora situações-problema como desconhecido, por situações podem ser híbridas quando misturam
a poluição e a desigualdade. que, embora irreais, pode- a história de seus povos com elemen-
riam acontecer. tos maravilhosos.

Livros que demandam interação da


Coloca em pauta dores e
criança pequena, fazendo a vez de
sofrimentos normais da vida, Aventuras que não têm lugar
livro-objeto, como no caso dos livros
preparando psicologicamente os na realidade concreta.
de borracha para banho ou de livros
leitores.
em outros suportes e formatos.

Fonte: Adaptado de Coelho 2010, p. 289-291.

Como podemos ver, as linhas realista e fantástica são nossas conhe-


cidas e caminham juntas desde a invenção da literatura. Vamos nos de-
Saiba mais
ter um pouco na linha híbrida e, mais especificamente, nas obras que
Apesar de o nome pop-up re-
meter a algo novo, esse formato promovem interações diferentes entre suporte e leitor.
de livro é bem antigo. Para saber
O livro em formato pop-up não tem nada de novo. A técnica foi in-
mais sobre o livro em formato
pop-up, acesse o link: ventada já no século XIV, porém, na atualidade, ganhou força, em es-
https://tinyurl.com/y9b65q6y pecial recontando grandes histórias. Outro formato difundido para
crianças são os livros com interações, como dedoches, cartões, peda-
ços móveis, peças com velcro, e assim por diante, sempre explorando
Glossário os sentidos de maneira interativa e lúdica.
dedoches: fantoches de dedo. Mas a maior revolução veio de fato com a tecnologia. A primeira
hipertextualidade: revolução se deu com a hipertextualidade, nova possibilidade de lei-
possibilidades de colaboração na tura que o digital nos proporciona. Com a era do hipertexto, podemos
construção do texto, com vídeos,
imagens, entre outros recursos, apresentar às crianças leituras que não acabam em si. Com os livros
além de maior contribuição digitais (e-books), a era da interação com a narrativa se amplificou, en-
do leitor para a construção dos globando diversos formatos em uma narrativa que pode ser construída
significados da narrativa.
com a ajuda do leitor.

32 Literatura Infantil
As editoras de materiais didáticos são as que mais investem atual- Vídeo
mente no formato de livro digital. Ao iniciar a leitura, uma criança (ou
Veja como fazer
seu mediador) poderá decidir se continua de modo linear, conforme dedoches no vídeo
Superfácil: Aprenda a fazer
seguem as páginas, ou se clica em vídeos, áudios e jogos atrelados à
dedoches, publicado pelo
narrativa e ocultos sob links. canal da revista Crescer.

Entre as atrações, a realidade aumentada tem sido uma febre, tanto Disponível em: https://tinyurl.com/
y7glcyme. Acesso em: 5 abr. 2020.
para a literatura quanto para conteúdos didáticos. Para essa tecnolo-
gia, as editoras utilizam o livro impresso com imagens que podem “ga-
nhar vida” em 3D ou acionar um jogo com o uso do celular ou tablet. Vídeo

Aliás, atualmente jogos também são formas literárias, pois muitos Acesse o vídeo Qual é a
diferença entre Realidade
baseiam seus mundos e personagens em uma narrativa bem formula- Virtual e Realidade Au-
da. Logo, mentada, publicado pelo
canal GCFAprendeLivre,
analisando a natureza dessa literatura, neste limiar do século para saber mais sobre
XXI, conclui-se que hoje não há um ideal absoluto de Literatura as diferenças entre rea-
lidade virtual e realidade
Infantil/Juvenil (nem de nenhuma outra espécie literária). Será aumentada.
“ideal” aquela que corresponder a uma certa necessidade do
Disponível em: https://tinyurl.com/
tipo de leitor a que ela se destina, em consonância com a época yd9yd4sp. Acesso em: 5 abr. 2020.
em que ele está vivendo... Vista em conjunto, a atual produção
de Literatura destinada a crianças e jovens, entre nós, apresen-
ta uma crescente diversidade de opções temáticas e estilísticas,
sintonizadas com a multiplicidade de visões de mundo que se Livro Eletrônico
superpõem no emaranhado da “aldeia global” em que vivemos.
O aplicativo “O rapto da vaca
(COELHO, 2010, 289) sagrada”, do Centro de Educação
e Cultura, é gratuito e foi
A próxima etapa com certeza será explorar o uso de óculos de rea- desenvolvido para ser um livro
lidade virtual para interagir com o mundo criado pelas obras infantis, interativo com atividades educa-
inserindo o leitor como um participante que construirá a história den- tivas. Baixe-o sem custo algum
pelo Google Play e navegue pela
tro do cenário. Agora é aguardar pelos próximos capítulos! E você, já história.
pensou em como será a literatura infantil do futuro?

Artigo

https://tinyurl.com/yblcqs8j

Para aprofundar seus conhecimentos sobre a literatura infantil em tempos


de avanço das mídias digitais, leia o artigo A literatura infantil digital: o design
das histórias interativas, de Douglas Luiz Menegazzi e Cristina Sylla, publicado
pela Revista de Educação, Ciência e Cultura, que trata exatamente sobre o
design de histórias que são interativas, trazendo categorias de análise para a
crítica dessas obras digitais.

Acesso em: 6 abr. 2020.

Processo histórico da literatura infantil 33


CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Esperamos que você tenha apreciado esse breve panorama históri-
co da literatura infantil. Foi apenas um resumo, pois não haveria como
descrever todas as obras em todos os momentos literários através dos
séculos. Com certeza, faltariam páginas para isso!
Porém, a intenção era a de fazer com que você identificasse como a
literatura infantil foi se moldando ao longo da história e como ela chegou
até o patamar em que está hoje.
Reveja os pontos que mais chamaram sua atenção ao longo deste ca-
pítulo e pesquise outras fontes que o auxiliem a se aprofundar no históri-
co da literatura para crianças.

REFERÊNCIAS
ARIÈS, P. História social da criança e da família. São Paulo: LTC, 1981.
COELHO, N. N. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000.
COELHO, N. N. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil: das origens indo-europeias
ao Brasil contemporâneo. Barueri: Manole, 2010.
LACERDA, V. A. Um mergulho na Hélade: mitologia e civilização grega na literatura infantil
de Monteiro Lobato. Belo Horizonte, 2008. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) –
Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais.
LAJOLO, M.; ZILBERMAN, R. Literatura Infantil brasileira: história e histórias. São Paulo:
Ática, 2007.
LOBATO, M. Histórias de Tia Nastácia. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2009.
MICHAELIS. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. 2015. Disponível em: https://
michaelis.uol.com.br/. Acesso em: 16 abr. 2020.
NUNES, C. Novos estudos sobre Monteiro Lobato. Brasília: UNB, 1998.
TATAR, M. (ed.). Contos de fadas: edição comentada e ilustrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2004.

GABARITO
1. Embora existissem crianças, não havia um entendimento delas enquanto sujeitos com
características próprias e com necessidades de cuidados específicos. As crianças eram
vistas como adultos em miniatura, pessoas ainda sem toda a capacidade intelectual
de um adulto formado. Assim, não houve literatura ou práticas pensadas para esse
público antes de ocorrer uma reflexão sobre a própria infância e suas necessidades.

2. A atividade pede uma resposta pessoal, mas deve trazer elementos que demonstrem
a compreensão da obra de Monteiro Lobato enquanto um marco na literatura infantil
brasileira ao mesmo tempo em que, mesmo assim, ela pode conter diversos elemen-

34 Literatura Infantil
tos racistas como forma de representação tanto da realidade vigente quanto do posi-
cionamento do autor. Outro ponto relevante trazido pela matéria e que é possível de
ser incorporado na resposta é que, mesmo que houvesse um cenário racista, muitos
outros escritores e artistas já questionavam as representações do negro na arte, e
talvez Lobato não tenha refletido sobre isso e continuado com práticas enraizadas em
sua construção enquanto um homem branco e da elite agrária.

3. Embora seja uma resposta de cunho pessoal, deve discorrer sobre os valores tradicio-
nais ainda vigentes na nossa sociedade, mas que encontram um cenário que cada vez
mais compreende a necessidade de desenvolvimento de novas relações de gênero
para todas as crianças. Além disso, deve demonstrar compreensão da necessidade
de se questionar os papéis impostos a meninos e meninas, pois eles engessam o ser
humano e não permitem sua plena expressão. Assim, é necessário que a literatura
proponha essas discussões para auxiliar as crianças a verem que não existem apenas
as possibilidades de papéis aceitas até aqui, mas que podem construir outras relações
emocionais e sociais.

4. A literatura do início do século XX era voltada quase que exclusivamente para o dida-
tismo da alfabetização e dos valores morais das classes dominantes que produziam
e consumiam tais obras. No Brasil, além dessas características, o ruralismo, o intelec-
tualismo, o tradicionalismo cultural e a religiosidade também estavam presentes. Já
no século XXI, estão em cena obras que privilegiam a estética literária, a diversidade
de estilos e temas, as múltiplas visões de mundo, a criatividade, a imaginação e o
questionamento da realidade.

Processo histórico da literatura infantil 35


2
Literatura e leitor infantil
As pessoas grandes aconselharam-me deixar de lado os desenhos de
jiboias abertas ou fechadas, e dedicar-me de preferência à geografia,
à história, ao cálculo, à gramática. Foi assim que abandonei, aos seis
anos, uma esplêndida carreira de pintor. Eu fora desencorajado pelo
insucesso do meu desenho número 1 e do meu desenho número 2. As
pessoas grandes não compreendem nada sozinhas, e é cansativo, para
as crianças, estar toda hora explicando.
Saint-Exupery, em O pequeno príncipe

As pessoas grandes muitas vezes tolhem os desejos e as ex-


pressões das crianças, tentando fechá-las dentro de caixinhas da-
quilo que entendem como útil, objetivo. Ainda bem que existe a
literatura para permitir à criança que abra essas caixinhas e viaje
por outros planetas, dando voz às necessidades infantis, como um
elefante dentro de uma jiboia.
Neste capítulo, vamos passear por alguns planetas, todos den-
tro de um sistema solar literário. Inicialmente, veremos qual o pa-
pel da literatura na formação de sujeitos leitores e como podemos
contribuir para o crescimento de tantos “pequenos príncipes”, me-
ninas e meninos com curiosidade para explorar o mundo e suas
possibilidades.
Na sequência, veremos a ligação entre a literatura e as fases de
desenvolvimento infantil, fazendo um diálogo com o papel da lite-
ratura em cada etapa. Por fim, vamos nos aprofundar na linguagem
infantil e em como ela é empregada pela literatura, a qual, por sua
vez, influencia na aquisição da linguagem pela criança.
Bons estudos!

36 Literatura Infantil
2.1 O papel da literatura na formação do leitor
Vídeo Quando éramos crianças, mal podíamos nos conter diante da possi-
bilidade de ouvir histórias, especialmente aquelas que se iniciam com a
expressão Era uma vez… Tínhamos (e ainda temos) a necessidade de nos
maravilhar, de usar a linguagem em favor de uma estrutura cognitiva
infantil que necessita da fantasia para simbolizar o
real em seu cérebro ainda em desenvolvimento. Desafio
Como você se sente quando
Já adentramos, então, em um dos papéis mais
uma história se inicia com
importantes da literatura na formação do leitor: “Era uma vez…”? Faça um
propiciar a simbolização do real. Na psicologia teste: procure um conto ou
livro infantil que comece com
histórico-cultural de Lev Vygotsky, a linguagem essa estrutura e, antes de con-
(pela qual se dá a comunicação) é o que nos possi- tinuar a história, pergunte-se o
bilita a existência enquanto seres humanos. Pela que essa frase lhe proporciona
– ansiedade, maravilhamento,
linguagem, somos capazes de dar significado ao curiosidade, entre tantas
mundo ao redor, à realidade. outras possibilidades.

Assim, ao atribuirmos sentido ao que nos rodeia,


damos sentido a nós mesmos, em um processo de Atividade 1
aquisição dos símbolos que produzem uma relação Qual é o papel da literatura
entre “eu” e o mundo real. Em outras palavras, a na formação do leitor e da
criança?
criança vai adquirindo, por meio da linguagem, tudo
aquilo que a constitui enquanto ser humano (cultu-
ra, valores, símbolos etc) e estabelece novas formas de relação com
esse mundo – sua forma própria de se comunicar, de interagir, de acei-
tar ou não o que lhe é imposto, e assim por diante.
Uma ideia central para a compreensão das concepções de
Vygotsky sobre o desenvolvimento humano como processo
socio-histórico é a ideia da mediação. Enquanto sujeito de co-
nhecimento o homem não tem acesso direto aos objetos, mas
um acesso mediado, isto é, feito através dos recortes do real
operados pelos sistemas simbólicos de que dispõe. […] Se por
um lado a ideia de mediação remete a processo de representa-
ção mental, por outro lado refere-se ao fato de que os sistemas
simbólicos que se interpõem entre sujeito e objeto de conheci-
mento têm origem social. Isto é, é a cultura que fornece ao indi-
víduo os sistemas simbólicos de representação da realidade e,
por meio deles, o universo de significações que permite construir
uma ordenação, uma interpretação, dos dados do mundo real.
(LA TAILLE; OLIVEIRA; DANTAS, 2016, p. 27)

Literatura e leitor infantil 37


Dessa forma, enquanto os sistemas simbólicos fazem uma media-
ção entre o leitor e o que está posto no livro infantil, é por meio da
linguagem (sistema simbólico e cultural por excelência) que a criança
interpreta o mundo e se constrói. O livro se constitui, assim, como um
objeto de auxílio para a apreensão do mundo real a um leitor que ainda
não tem competência para encontrar esse mundo em sua materialida-
de, isto é, quando a criança ainda não tem maturidade suficiente para
se deparar com as situações que a vida lhe apresenta, como o próprio
crescimento, a desigualdade ou a morte.

Ao mesmo tempo em que a linguagem nos dá a representação do


mundo real, é por meio dela que expressamos quem somos, e expres-
sar quem somos (individual ou coletivamente) é tão fundamental quan-
to o instinto natural de sobrevivência. Afinal, tudo é narração! É como
se, ao expressarmos quem somos por meio da linguagem (e das histó-
rias), pudéssemos sobreviver ao tempo. Um pouco de nós se perpetua
quando contamos uma história, seja do outro ou a nossa própria, afinal
a nossa vida também é uma narrativa, não é mesmo?

Desafio

Que tal compreender melhor a narrativa de sua própria vida? Para realizar essa atividade, vamos nos basear
em um modelo para a reconstrução de memórias e do significado dado à trajetória pessoal. Você precisará
de algumas pedras, sendo que o tamanho delas fica a seu critério, e de algumas flores. Além disso, também
precisará de barbante, papel e caneta. Pensando na narrativa da sua história, crie uma linha com o barbante,
indicando os eventos ruins/difíceis com pedras e os momentos bons/felizes com flores. Lembre-se de que os
momentos bons não são necessariamente eventos grandiosos, podendo ser aqueles em que você se sentiu feliz
consigo mesmo ou em alguma situação, como ao conseguir um trabalho ou ao tomar um banho de chuva. Aos
poucos, crie a sua linha identificando cada elemento com um pedaço de papel que descreva o evento da pedra
ou da flor. No fim, olhe para a sua linha e perceba que tanto os eventos ruins quanto os bons fazem parte da sua
história, de quem você é. Pergunte-se o que aprendeu com os momentos ruins e como pode multiplicar os bons
para continuar a escrever a sua narrativa!

Sabendo que narrativas sobrevivem ao tempo, qual seria o papel


delas na nossa história? Bem, com toda a certeza, elas se perpetuam
porque são capazes de explicar a existência do ser humano, uma vez
que, mesmo no século XXI, estamos sempre indagando qual o senti-
do da nossa existência. Assim, se continuamos a nos questionar sobre
isso, estamos sempre necessitando das explicações construídas ao lon-
go do tempo, dos mitos, das lendas e dos contos populares, mesmo
que essas explicações já estejam dentro de nós e não mais precisemos
ficar lendo todos esses textos ao longo de nossas vidas.

38 Literatura Infantil
Para entender melhor isso, vamos utilizar um conceito descrito por
Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica. Jung acreditava na
existência de um “inconsciente coletivo”, o qual guardaria traços de
uma história da humanidade e seria povoado pelos “arquétipos”, isto
é, uma “forma universal de pensamento (ideia) que contém um grande
elemento de emoção” (HALL; LINDZEY; CAMPBELL, 2000, p. 89). Filme
Logo, arquétipos seriam todas as experiências da humanidade à dis- Assista ao filme Os
Croods, uma animação da
posição da formação dos indivíduos, e esses arquétipos chegariam até
Disney, lançada em 2013,
nós por meio dos mitos, das fábulas e das lendas, perpetuando ideias que conta a história de
uma família pré-histórica
gerais sobre o que é ser humano, pai, mãe, filho etc. Não nos aprofun-
na luta pela sobrevivên-
daremos aqui em relação à sua teoria, nem iremos reelaborar as cren- cia. Preste atenção nos
momentos em que a
ças de Jung a respeito de um inconsciente coletivo que fosse biológico.
família se reúne ao longo
Mas, para a compreensão da literatura infantil, seu conceito de arquéti- do filme para compar-
tilhar histórias e tente
po cabe perfeitamente, enquanto categoria cultural que transmite atra-
depreender o significado
vés dos séculos todo o pensamento existencial do ser humano. simbólico delas para
a construção de cada
Assim, imagens que muitas vezes consideramos enraizadas em nos- personagem. Também
perceba o significado da
so instinto nada mais são do que a experiência humana contada por
construção da história
meio da cultura, isto é, o papel da mãe e do pai, o papel da natureza, contada por Guy, um jo-
vem nômade que auxilia
da criança, e assim por diante, todos inseridos nas narrativas funda-
a família.
mentais perpetuadas pela história da humanidade.
Direção: Chris Sanders; Kirk DeMicco.
A construção de uma identidade passa pela capacidade de sim- EUA: DreamWorks Animation, 2013.

bolização e é auxiliada em larga escala pela literatura infantil. Um


exemplo são as cantigas populares incansavelmente cantadas em
casa, na escola e na televisão. Analisemos uma para entender esse 1
conceito de identidade. Estrofe usualmente retirada nas
versões modernas.
Ciranda, cirandinha
Ciranda, cirandinha
Ó ciranda cirandinha
Vamos todos cirandar Vamos todos cirandar.
Atividade 2
Vamos dar a meia volta Vamos ver dona Chica,
1
Volta e meia vamos dar. Que já está pra se casar . Analise a letra da cantiga “A
barata diz que tem” com base na
O anel que tu me deste Por isso, dona Chica construção da identidade da per-
Era vidro e se quebrou Entre dentro desta roda, Diga sonagem. Como sua identidade
O amor que tu me tinhas um verso bem bonito, Diga é construída? Como a barata se
Era pouco e se acabou. adeus e vá -se embora. afirma? Para realizar a atividade,
(Cantiga popular) você pode acessar uma versão
dessa cantiga disponível no
Pode ser que você conheça essa cantiga com algumas variações,
seguinte link: https://tinyurl.
mas há de concordar que em qualquer versão ela fala de casamento, com/y94alpn4. Acesso em: 22
não é mesmo? Assim, com pequenas cantigas, já se inicia a formação maio 2020.

Literatura e leitor infantil 39


da identidade de uma criança enquanto alguém a quem a sociedade
espera que siga o curso do casamento.

A identidade construída pela literatura é tanto comunitária quanto


individual. É comunitária pois insere mitos de formação do ser huma-
no, do mundo, dos animais, dos deuses e dos costumes, e é individual
porque traz questionamentos acerca da vida de cada ser humano,
quem ser, o que se tornar, o que fazer quando crescer, como lidar com
as situações da vida.

Assim, pela simbolização do real, construímos uma identidade


tanto coletiva quanto individual, perpetuando nossas histórias
por meio de narrativas.

Outro fator fundamental da literatura para a formação dos leitores


é a humanização, a qual diz respeito à capacidade de sermos abertos
ao diferente daquilo que somos, à sociedade, à natureza e ao outro.
Porém, para nos abrirmos a realidades diferentes, é preciso ter contato
com elas de alguma forma, e a literatura promove esse encontro entre
o leitor e outros mundos, reais ou imaginários.

Às vezes, podemos pensar que mundos imaginários não serão ca-


pazes de proporcionar essa humanização, mas nenhum mundo ficcio-
nal se faz do nada, de puro fruto de uma criação sem base no que
é conhecido. Mesmo ficções científicas e futuristas têm seu ponto de
partida na realidade objetiva e se constroem em um sistema que já
contém em si todos os significados possíveis, a língua.

Entretanto, os mundos ficcionais, exatamente por serem construídos


em relação com a realidade, conseguem aproximar o leitor de outros mun-
dos. Talvez a criança nunca tenha tido contato com situações de perda dos
pais ou com o sentimento de não ter uma família, mas pode se aproximar
disso em livros como O pato, a morte e a tulipa, do escritor alemão Wolf
Erlbruch. Por meio d’O Pequeno Príncipe, ela pode experimentar a solidão.

No plano do real, é bem provável que muitos dos nossos leitores


nunca tenham estado em contato com a guerra, mas um livro como
o brasileiro Layla, a menina síria, de Cassiana Pizaia, Rima Zahra e Rosi
Vilas Boas, pode ligar dois mundos distintos.

40 Literatura Infantil
Livro
Três belos livros infantis que não podem faltar na sua prateleira
O Pato, a morte e a tulipa traz a história de um pato e seu relaciona-
mento com a morte, interligando seu ciclo de vida com os ciclos da
natureza de maneira muito poética. Além do livro, você pode conferir
uma adaptação para animação disponível no seguinte link: https://
tinyurl.com/ya6qame8. Acesso em: 15 abr. 2020.

ERLBRUCH, W. São Paulo: Cosac & Naify, 2009.

O Pequeno Príncipe é com certeza uma obra que dispensa introdu-


ções, mas que merece um lugar de destaque por suas sutilezas e
profundidade ao trabalhar a condição humana

SAINT-EXUPÉRY, A. de. Rio de Janeiro: Agir, 2009.

Layla, a menina síria conta a história de uma família que foge da


guerra da Síria para encontrar morada no Brasil, narrando todas as
dificuldades do percurso.

VILAS BOAS, R.; PIZAIA, C.; AWADA, R. Curitiba: Editora do Brasil, 2018.

Portanto, a humanização requer que o leitor tenha contato com o Desafio


maior número de realidades possíveis. No entanto, isso só se dá com
No ano de 2020, vivemos uma
acesso à literatura infantil de qualidade, nem sempre possível em nos- situação inusitada, a qual nunca
so país. Uma vez que a Declaração dos Direitos Humanos prevê o direi- antes pensamos que viveríamos
no mundo contemporâneo. Com
to universal à cultura e a suas manifestações artísticas, aí também está
o distanciamento/isolamento
posto o direito à literatura. social, foi possível perceber o
quanto precisamos da arte para
Por fim, outro grande papel da literatura infantil é propiciar o de- viver bem, não é mesmo? Tenho
senvolvimento da criatividade. Entendemos a criatividade como uma certeza que nesse período (e
capacidade que deve ser trabalhada desde a tenra infância, como for- em todos os outros) a literatura,
o cinema, a música, a pintura
ma de fazer com que o sujeito encontre soluções diferentes para seus etc. foram seus grandes compa-
problemas ao longo da vida. nheiros nas horas difíceis de um
período algumas vezes solitário,
Assim, ao estimular a criatividade, a criança constrói as ferramentas outras vezes angustiante. Assim,
para lidar com o mundo de maneira eficiente, na medida em que os com o conhecimento já adquiri-
do, questione-se como seria um
desafios lhe aparecerem. Somando-se a ela a humanização, a constru-
mundo sem arte alguma. E mais,
ção da identidade e a simbolização do real, percebemos o quanto a como seria um momento como
literatura e as artes são necessárias para a vida do ser humano pleno. o de isolamento sem nenhum
contato com arte, seja ela visual,
Logicamente, necessitamos de alimento para o corpo para vivermos, cinestésica ou auditiva?
mas precisamos de um alimento para a alma para nos desenvolvermos!

Literatura e leitor infantil 41


Desafio
Já que estamos falando de criatividade, por que não trocar um pouco os papéis e ser
um(a) escritor(a)? Veja alguns exercícios para treinar a criatividade na escrita e os
desenvolva aos poucos, treinando toda semana.
1. Escreva sua autobiografia em até 500 palavras.
2. Escreva um significado imaginário para uma palavra desconhecida (pode-se
usar um dicionário para procurar palavras diferentes).
3. Descreva o ambiente a sua volta em até 300 palavras.
4. Faça uma entrevista fictícia com um personagem de que você gosta.

Assim, a literatura acaba por ter uma função formadora, porém não
devemos confundir formadora com pedagógica. Ela é formadora por
trazer assuntos que tratam da condição humana, de sua existência,
seus desafios e suas conquistas, auxiliando na construção da própria
identidade do indivíduo.

A literatura pedagógica é utilitária e tem por objetivo principal o


ensino e uma única interpretação, sem margem para a imaginação, vi-
sando informações oficiais.
A literatura com finalidade utilitária constrói no entendimento
das crianças a noção de que ler é buscar confirmações do já per-
cebido, é reafirmar, é reproduzir sem participar. Temos, assim,
a arte transformada em ferramenta. No entanto, a literatura
propõe um texto diferenciado, cuja finalidade é mais de recusa
do utilitário e de proposta de pensamento divergente. (COSTA,
2013, p. 28, grifo do original)

De acordo com Costa, uma literatura que tenha o objetivo princi-


pal de ensinar possui uma finalidade utilitária, sem margem para o
questionamento ou a reflexão crítica. Afinal, uma vez que determinado
assunto está posto para ser aprendido é porque alguém já disse que
aquilo é a verdade, logo por que questionar? Isso é ou não correto? São
bons questionamentos para reflexão.

Hoje, vemos que os próprios materiais didáticos têm tentando mu-


dar um pouco a visão do trabalho com a literatura, mas ainda assim
eles se prestam a um objetivo pedagógico, o de aquisição da língua e
da leitura.

O pesquisador Richard Bamberger levanta quatro funções sobre a


leitura, as quais são apresentadas na Figura 1.

42 Literatura Infantil
Figura 1
Funções da leitura de acordo com Richard Bamberger

Vyacheslavikus/ MF production/AVIcon/Shutterstock
LEITURA LEITURA LEITURA LEITURA
INFORMATIVA ESCAPISTA LITERÁRIA COGNITIVA
Informações Busca de um Simbolização Função de
que dão mais prazer que não do real para conhecer e
credibilidade está na realidade construção de compreender o
quando lidas. objetiva. significados ser humano e o
internos. mundo.

Fonte: Adaptada de Costa, 2013, p. 21-22.

Embora exista a distinção de uma leitura literária, a literatura pos-


sui em si os quatro tipos de leitura, algo que outros tipos de texto não
necessariamente conseguem atingir. Um jornal produz uma leitura pri-
mariamente informativa, que pode ser acompanhada de uma leitura
cognitiva. Atualmente, poderíamos categorizar leituras sobre vidas de
famosos ou até mesmo memes dentro de uma leitura escapista, en-
quanto a filosofia, a sociologia, a psicologia e outras ciências se utiliza-
riam primordialmente da leitura cognitiva.

De acordo com Costa, tais funções da leitura podem ser descritas


em três outras funções específicas para a literatura:

Quadro 1
Funções da leitura

Relação
Abrangência Objetivos da formação de leitores
autor/mensagem/leitor

Momento de encontro
entre leitor e livro. Infundir valores e com-
Para crianças pe- Comunicar informa- experiências portamentos diversos
individual informar
quenas, é o primeiro ções com clareza. pessoais que construirão a
contato físico e visual identidade.
com o livro.

Socialização da leitura Ensinar habilidades aprendiza-


e de impressões. O ou ampliar gradativa- gem e co- Acesso ao conheci-
social contato com a história educar mente o conhecimen- nhecimento mento com formação
através de um media- to de determinado como fonte pessoal e emocional.
dor. assunto. de prazer

(Continua)

Literatura e leitor infantil 43


Objetivos da formação de
Abrangência Relação autor/mensagem/leitor
leitores

Diz respeito aos livros


individuais, de ordem de Proporcionar pra- Proporcionar prazer
privado uma biblioteca pessoal entreter zer na atividade de entreter na atividade de
que pode ser consultada leitura. leitura.
sempre.

Lidar com diferentes


Convencer o leitor realidades e textos,
Obras disponíveis na constru-
a acreditar em algo incorporando as
público escola, em bibliotecas ou persuadir ção do lei-
ou agir de determi- leituras dentro de
em outros locais públicos. tor crítico
nada forma. uma visão pessoal e
coletiva.

expressar Expôr opiniões,


uma opinião sentimentos e
ou ideia experiências.

Fonte: Adaptado de Costa, 2013, p. 23-33.

Pode-se perceber pelo esquema que o papel da literatura recai so-


bre os objetivos de formação de um leitor descritos por Costa. Assim,
Site uma literatura infantil de qualidade, isto é, que leve em consideração o

Acesse a matéria do blog da leitor em sua totalidade, e não apenas em sua dimensão de aprendiz,
Leiturinha e saiba mais sobre a deve partir do pressuposto de que é, primeiramente, uma arte (a arte
influência da literatura na forma- da palavra), a qual constrói novas realidades, próximas ou não do leitor.
ção das crianças. Disponível em:
https://tinyurl.com/y7wtesoq. Até aqui temos falado muito sobre a literatura em si. Mas e o leitor
Acesso em: 11 abr. 2020.
a quem ela se destina? Quem é esse leitor de literatura infantil? Vamos
descobrir!

Livro

Uma ótima forma de se aprofundar no assunto é lendo o livro A


formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual, de Te-
resa Colomer, uma pesquisadora espanhola que traz elementos
de análise da produção de livros para crianças e jovens.

COLOMER, T. São Paulo: Global Editora, 2003.

44 Literatura Infantil
2.2 Pequenos leitores
Vídeo Temos falado até aqui sobre obras que constituem uma literatura
infantil e o seu papel na formação de sujeitos leitores. Porém, quem
são tais leitores? Do que gostam? Que mundos habitam? Por que leem?

Para descobrirmos as respostas a essas perguntas, precisamos pri-


meiro entender que a literatura age por uma dupla de códigos, como
diria Hunt:
a experiência (ou “criação”) com o texto converge (ou causa em-
bate) entre dois conjuntos de códigos: os da “vida” (conhecimen-
to de mundo/ causalidade/ probabilidade etc.) e os do “texto”
(conhecimento de convenções, expectativa genérica, referência
intertextual etc.). Ambos são importantes para a teoria e para a
produção de textos para crianças. (HUNT, 2010, p. 116)

Assim, se pensarmos na criança pequena (até seis anos), pouco é o


conhecimento do código do texto em relação às suas convenções, ou
seja, as regras da língua e dos gêneros. Provavelmente, as referências
intertextuais não estarão ainda tão bem amadurecidas, mas com certe-
za um leitor de cinco anos já terá algumas referências de histórias e
personagens. Dessa forma, mesmo que as crianças ainda não estejam
versadas nesse código, estarão em desenvolvimento, adquirindo a fa-
miliaridade com ele.

O código da vida também está em desenvolvimento para essas


crianças. Às vezes, pensamos que as experiências infantis não têm tan-
to a agregar em uma leitura literária enquanto conhecimento de mun-
do, mas essa é uma visão que deve ser ultrapassada.
Saiba mais
A criança tem um mundo de experiências riquíssimo
O educador Paulo Freire discor-
e muito mais ativo que o dos adultos, afinal tudo é
reu muito sobre a linguagem,
novo, e novas aventuras são muito bem-vindas. além de usá-la como forma de
reinterpretar o mundo, como
A diferença está nos significados produzidos por
bem diria ele. Caso tenha
crianças e adultos em contato com um livro. E para sa- interesse, acesse uma palestra
bermos como uma criança simboliza essa experiência professada por ele na USP em
1994 para perceber as nuances
de leitura, podemos observá-la em sua interação com tanto de seu pensamento
o mundo e com o livro. Não nos esqueçamos nunca quanto de sua experiência com
que a leitura de mundo precede a leitura da palavra, a linguagem. Disponível em:
https://tinyurl.com/y7e9r77p.
como bem afirmou Paulo Freire (1989). Acesso em: 15 abr. 2020.

Literatura e leitor infantil 45


Porém, esse trabalho já foi minuciosamente descrito por inúmeros
teóricos, como Sigmund Freud, Jean Piaget, Lev Vygotsky, Donald Winni-
cott, Melanie Klein e outros. Então, vamos nos valer de alguns dos con-
ceitos desenvolvidos por eles para podermos compreender a interação
da criança com o mundo e, consequentemente, com o livro literário.

Antes de mais nada, vamos lembrar que cada um dos pesquisadores


que estudaram o desenvolvimento humano o fizeram levando em consi-
deração hipóteses dentro de suas teorias; por isso mesmo, temos tantas
variações que tentam explicar como e por que somos quem somos.

Dividimos as teorias do desenvolvimento em cinco perspectivas,


conforme é observado no Quadro 2.

Quadro 2
Perspectivas das teorias do desenvolvimento

Perspectiva Teoria Princípios Estágios Ativo/Passivo

Freud – teoria Impulsos inconscientes contro-


Psicanalítica Sim Passivo
psicossexual lam o comportamento.

Pavlov/Skinner –
O ambiente é responsável por
Aprendizagem behaviorismo (com- Não Passivo
controlar o comportamento.
portamentalismo)

O desenvolvimento é desenca-
Piaget – teoria dos
deado de maneira ativa pelas Sim Ativo
estágios cognitivos
crianças.

Cognitiva
O desenvolvimento da cog-
Vygotsky – teoria nição se dá pela interação
Não Ativo e passivo
sociocultural social e por processamento de
símbolos.

Há uma predisposição inata


para a aprendizagem, e o
Evolucionista/ Bowlby – teoria do
desenvolvimento se dá por Não Ativo
sociobiológica apego
períodos críticos em que os
mecanismos adaptativos agem.

Há cinco sistemas contextuais


Bronfenbrenner –
Contextual que interagem no desenvolvi- Não Ativo
teoria bioecológica
mento do ser humano.

Fonte: Adaptado de Papalia, Olds e Feldman, 2010, p. 30-31.

46 Literatura Infantil
Para discorrermos sobre o papel do leitor literário, iremos nos ater
às teorias que estabelecem estágios, mais especificamente na de Pia-
get. Porém, antes, vamos contextualizar um pouco melhor cada uma
das teorias vistas no Quadro 2 para compreender sua ligação com tudo
o que temos discutido até o momento.
Sigmund Freud fundou a psicanálise, linha teórica da psicologia que
compreende o desenvolvimento como sendo “moldado por forças in-
conscientes que motivam o comportamento humano” (PAPALIA; OLDS;
FELDMAN, 2010, p. 32).
Para ele, nascemos todos com impulsos biológicos que precisam ser
readequados para podermos viver na sociedade. Assim, por meio de
um conflito entre os impulsos internos (desejos, necessidades) e o que
a sociedade espera é que acontece o desenvolvimento do indivíduo e
de sua personalidade. Freud descreve, então, cinco fases de desenvol-
vimento, em que a passagem de uma zona de gratificação para outra
ocorre com o deslocamento desses impulsos.
Em outras palavras, cada fase se fixa na gratificação de desejos rela-
cionados às zonas erógenas no corpo. Para melhor compreensão, veja
na Figura 2 as cinco fases.

Figura 2
Fases de desenvolvimento de Freud

Boris Snaev/Shutterstock
2 Fálica
3 a 6 anos
Anal A fonte de prazer se transfere para os genitais,
18 meses a 3 anos em forma de conhecimento do próprio sexo e
reconhecimento das diferenças. Momento de
A fonte do prazer está em contro-
desenvolvimento das regras e da moral.
lar os esfíncteres – treinamento de
desfralde.

1
Oral
0 a 18 meses
A fonte do prazer está
4 5
na boca – alimentar-se,
sugar, experimentar o Latência Genital
mundo pela boca.
6 anos à puberdade puberdade à vida adulta
Momento de tranquilidade no de- Impulsos sexuais inseridos em
senvolvimento, com maior sociali- uma sexualidade madura.
zação e grande salto de aprendi-
zagem.

Fonte: Adaptada de Papalia, Olds e Feldman, 2010, p. 33.

Literatura e leitor infantil 47


Portanto, para Freud, as experiências infantis, o relacionamento
entre crianças e seus cuidadores e os impulsos sexuais inerentes aos
seres humanos formulam uma teoria inicial, embora ainda muito estu-
dada, acerca do desenvolvimento humano.

Passando para a perspectiva da aprendizagem, o behaviorismo é


uma corrente teórica que crê no desenvolvimento enquanto aprendiza-
gem de novos comportamentos. Para o behaviorismo, comportamentos
são tanto nossas atitudes quanto eventos privados, como sentimentos
e pensamentos. Assim, para seus teóricos, o desenvolvimento aconte-
ce quando o indivíduo consegue se adaptar ao ambiente, o que ocorre
constantemente – e por ocorrer a todo momento, não há estágios como
os indicados por outras linhas teóricas. Portanto, seres humanos apren-
dem reagindo ao ambiente (seguro ou ameaçador) ao seu redor.

As teorias evolucionistas/sociobiológicas colocam sua ênfase em


comportamentos que são adaptativos no sentido de espécie (diferente-
mente do behaviorismo). Um grande representante dessa linha é John
Bowlby, autor da teoria do apego, a qual discorre sobre a necessidade
de um apego do bebê com seu cuidador para a sobrevivência. É uma
perspectiva que leva em conta um código genético que liga todos os
seres da espécie humana.

Na perspectiva contextual, o desenvolvimento individual não pode


ser separado do ambiente e do contexto social e histórico, aproximan-
do-se de certa forma da teoria de Vygotsky. A diferença aqui é que
Bronfenbrenner identifica cinco sistemas contextuais que atuam no
desenvolvimento do indivíduo:
•• microssistema (o indivíduo);
•• mesossistema (interação de dois ou mais microssistemas – famí-
lia, escola etc.);
•• exosistema (interação entre dois sistemas não ligados diretamente
ao indivíduo – por exemplo: a empresa possibilita que a mãe saia
para amamentar em livre demanda, situação que afeta o indivíduo);
•• macrossistema (padrões culturais);
•• cronossistema (eventos e mudanças ao longo da vida).

O interessante da teoria contextual é que podemos perceber que


o desenvolvimento não depende de um ou dois fatores, mas de toda
uma inter-relação de pessoas, eventos e estruturas que interferem di-
reta ou indiretamente na vida de cada um de modo distinto e único.

48 Literatura Infantil
Figura 3
Sistemas contextuais que influenciam no desenvolvimento do indivíduo

Macrossistema Indivíduo
Individual, sexo, idade, personalidade,
Exossistema
habilidades.
Mesossistema
Microssistema
Casa, escola, trabalho, igreja, amigos.
Microssistema
Mesossistema
Interação entre dois sistemas – ex.: casa
Indivíduo interagindo entre si.

Exossistema
Governo, mídia, religião, sistema educacional.

Macrossistema
Crenças e ideologias que regem a sociedade.

Cronossistema
Mudanças pessoais, sociais, históricas,
culturais e ambientais ao longo da vida.

Fonte: Adaptada de Define..., 2020.

Chegamos por fim às teorias cognitivistas, deixadas propositalmen- Desafio


te por último para as inserirmos na discussão sobre a leitura. Embora
Pense sobre todos os sistemas
possam parecer deslocadas, as teorias detalhadas anteriormente tam- que se relacionam para
bém se ligam ao papel da literatura. Ora, se para o desenvolvimento formar quem você é. Pegue um
papel em branco e desenhe o
ocorrer são necessárias experiências diversas e contextos variados, aí mesmo esquema dos sistemas
se coloca a literatura como forma de apresentação e reflexão desses contextuais, apresentado na
contextos, não é mesmo? Figura 3, indicando quais são
os sistemas que influenciaram
Bem, em linhas muito gerais, Lev Vygotsky foca o estudo das influên- no seu desenvolvimento. Com
essa atividade, você conseguirá
cias sociais e culturais no desenvolvimento da cognição infantil. Para
compreender melhor todos os
ele, aprendemos ao interagir com o mundo, internalizando o mundo agentes envolvidos na formação
e seus símbolos. Sua teoria também estabelece que, uma vez que a de um indivíduo.
criança adquire as bases para o aprendizado por meio da mediação
de adultos, ela passará a construir o próprio aprendizado e desenvol-
vimento. Vygostky dá grande ênfase no trabalho com a linguagem em
sua interação social.

Literatura e leitor infantil 49


Porém, para esse momento, e para compreendermos as necessi-
Saiba mais dades dos leitores em cada etapa do seu desenvolvimento, vamos en-
Um conceito de Vygotsky que tender os estágios cognitivos descritos por Jean Piaget. Segundo esse
é muito difundido (mas nem teórico, o desenvolvimento é um esforço ativo do indivíduo para a com-
sempre bem compreendido) é
o de Zona de Desenvolvimento preensão do mundo, mas esse esforço vem de uma capacidade inata,
Proximal (ZDP). A ZDP é como biológica, de adquirir aprendizado e de se adaptar.
um espaço entre o que a criança
já adquiriu de conhecimento Em sua teoria, os estágios ocorrem por meio de três processos:
e o que ela ainda não tem organização, adaptação e equilíbrio. Vamos ver um pouco mais sobre
competência para fazer. É como
o “quase sabe”, mas ainda há
cada um no esquema da Figura 4.
espaço para se desenvolver. Para
Figura 4
se aprofundar nesse assunto,
Estágios cognitivos segundo Piaget
leia o artigo da pesquisadora
Andréia Zanella acerca da ZDP.
Disponível em: https://tinyurl. ORGANIZAÇÃO
com/y8tbk8wk. Acesso em: 15 A criança passa a adquirir esquemas complexos com base em suas
abr. 2020. experiências, criando um sistema de conhecimentos. Por exemplo, um
bebê tem um esquema inicial do ato de sugar, que, aos poucos, vai se
complementando, por sugar a mamadeira, sugar o peito, sugar o dedo, e
assim por diante, organizando essas realidades em esquemas.

ADAPTAÇÃO
É a forma como lidamos com novas informações com base naquilo que já
sabemos. Podemos absorver nova informação e assimilá-la à estrutura
cognitiva já existente (por exemplo: portas diferentes, com uma ou duas
folhas, mas que se enquadram na categoria de objetos que servem para
abrir passagem) e acomodar novas informações ajustando as estruturas
já existentes (por exemplo: uma porta de sanfona é diferente das portas de
uma ou duas folhas, mas ainda assim tem a função de abrir passagens, logo
entra no mesmo esquema.

EQUILIBRAÇÃO

É a passagem da assimilação para a acomodação, sendo que o equilíbrio


se dá pelo constante jogo entre incorporar e ajustar novas informações.
A busca por esse equilíbrio motiva o desenvolvimento, sempre em busca de
novas informações, mas nunca muito distantes do que a criança já conhece,
aumentando aos poucos o grau de complexidade para esse jogo entre
assimilação e acomodação.
Desafio
Desafiamos-lhe a se indagar Fonte: Adaptada de Papalia, Olds e Feldman, 2010, p. 37-38.
de forma profunda sobre o que
lhe motiva a ler alguma coisa. Já podemos começar a perceber que a literatura também precisa
Por que você escolhe um livro? corresponder a esses processos, pois se uma leitura traz muitas infor-
Que tipo de livro desperta seu
interesse e sua curiosidade? mações novas, indo além do que os esquemas infantis podem dar con-
ta, ela automaticamente se torna desinteressante. Pense em quantas

50 Literatura Infantil
vezes você já abandonou uma leitura por não ter o conhecimento intro-
Atividade 3
dutório sobre o assunto e, por isso, considerar o texto pesado demais,
A infância é um período
incompreensível!
compreendido entre 0 e 12 anos
Imagine, então, um aluno lendo algo completamente afastado de incompletos, sendo sucedida
pela adolescência. A respeito do
sua realidade, em uma linguagem que não lhe é familiar, e com temá- desenvolvimento na infância,
ticas a qual nunca teve acesso. Temos, assim, uma fórmula para minar quais perspectivas teóricas
o desejo da leitura! levam em consideração um
sujeito ativo? Qual o significado
Assim, é muito importante entendermos quem é o leitor da litera- disso para um leitor infantil?
tura infantil e conhecer os processos pelos quais ele passa em seu de-
senvolvimento. Sem levar em consideração os níveis de compreensão e
os elementos que devem fazer parte de uma literatura para diferentes
idades, corremos o risco de oferecer algo que não corresponda às ex-
pectativas e desestimule a experiência com o livro.

Desse modo, vamos ver os estágios de desenvolvimento descritos


por Piaget para identificarmos a leitura em cada uma das idades. Veja
a seguir o esquema com os quatro estágios.

Figura 5
Estágios cognitivos de desenvolvimento de Piaget

Boris Snaev/Shutterstock
2 Operações concretas
7-11 anos
Problemas lógicos e presentes no ambiente po-
Pré-operacional
dem ser resolvidos (por isso há necessidade de
2-7 anos uso de materiais para o ensino de conceitos abs-
Utiliza-se de símbolos para repre- tratos), mas com dificuldade de abstração.
sentar o mundo. Linguagem e jogo
simbólico.

1
Sensório-motor
0-2 anos
Organiza seu ambiente por
4
meio de atividades sensoriais e
motoras. Sugar, pegar, morder, Operações formais
engatinhar, andar etc. 11 anos em diante
Pensamento abstrato, situações
hipotéticas e possibilidades.

Fonte: Adaptada de: Papalia, Olds e Feldman, 2010, p. 33.

Literatura e leitor infantil 51


Embora Piaget não tenha dado ênfase ao contexto social de desenvolvi-
mento (como o fez Vygotsky), ele não o descarta completamente. Segundo
o teórico, essa é uma categoria muito ampla de análise, e a socialização é
algo adquirido e em diferentes graus. Conforme suas palavras:
se tomarmos a noção do social nos diferentes sentidos do termo,
isto é, englobando tanto as tendências hereditárias que nos
levam à vida em comum e à imitação, como as relações exterio-
res […] dos indivíduos entre eles, não se pode negar que, desde o
nascimento, o desenvolvimento intelectual é, simultaneamente,
obra da sociedade e do indivíduo. (PIAGET, 1973 apud LA TAILLE;
OLIVEIRA; DANTAS, 2016, p. 11)

Portanto, para o autor, o social não é excluído de sua teoria, mas se


torna agente em conjunto com o indivíduo.

Assim, sendo a literatura um fenômeno social e cultural, podemos


encontrar um lugar especial para ela dentro da teoria dos estágios cogni-
tivos. Vamos, então, ampliar o esquema recém-visto, descrevendo a liga-
ção entre os comportamentos e a literatura nos três primeiros estágios.

Quadro 3
Correlações entre literatura e estágios do desenvolvimento

Estágio Comportamentos Ligações com a literatura


A literatura continua chegando (pois na gesta-
Uso de reflexos – bebês de até um
ção se espera que já tenha chegado), especial-
mês. Há o exercício dos reflexos.
mente por meio das cantigas de ninar.

Reações circulares primárias – de 1 a Livros macios, de borracha, os quais já podem


4 meses. Iniciam-se o agarramento e ser colocados à disposição para o toque e para
a repetição de movimentos que foram a boca, visto que o bebê é essencialmente sen-
feitos ao acaso. sorial nessa fase.

Livros de pano, de banho e com texturas, que


Sensório- Reações circulares secundárias – dos
auxiliam no descobrimento do mundo. Tam-
4 aos 8 meses. O ambiente é mais
motor bém as histórias contadas pelos pais no reco-
interessante, e experimentá-lo é pra-
nhecimento do corpo (ex.: falar sobre os pezi-
zeroso.
nhos para que ele comece a se reconhecer).

Os mesmos livros e histórias anteriores, porém


Coordenação de esquemas secundá- com maior intenção, como uma rotina de his-
rios – dos 8 aos 12 meses. Inicia-se a tórias no banho, trabalhando a antecipação.
antecipação de eventos, e seus com- Também livros com dedoches e histórias com
portamentos são dirigidos para metas. fantoches, além de livros sonoros, em especial
com sons de animais e algumas canções.

(Continua)

52 Literatura Infantil
Estágio Comportamentos Ligações com a literatura
Reações circulares terciárias – dos
12 aos 18 meses. Há grande curio-
sidade, com tentativa e erro para so- Todos os anteriores e também livros acartona-
lucionar problemas (como colocar os dos e resistentes em tamanhos variados, com
dedinhos na tomada para ver o que muitas imagens. Livros com espaços para usar a
acontece, sendo que isso faz parte coordenação, encaixar e desencaixar.
Sensório- da exploração; nós é que devemos
motor providenciar o ambiente seguro).
Combinações mentais – dos 18 aos
Os anteriores ainda valem, mas livros de banho
24 meses. Já há maior antecipação
e somente com imagens começam aos poucos
dos eventos, sem tanta necessidade
a conter algumas palavras ou letras e números.
de tentativa e erro. A ênfase é no uso
Aumenta-se a narrativa com inserção de mais
de símbolos, como a linguagem fala-
elementos.
da e os gestos.
Há uma concentração em apenas
um aspecto da situação, gerando in-
capacidade de ver a situação como
um todo. Livros com temáticas que comecem a explorar
Há dificuldades para compreender a causalidade e o processo dedutivo com ques-
que as situações podem ser reverti- tionamentos simples sobre os personagens e
das ou desfeitas. sobre o cenário. Circunstâncias em que os per-
sonagens conseguem reverter a situação, como
Pré-operacional Não há ainda raciocínio dedutivo;
voltar para casa após se perder. Sentimentos
assim, as crianças criam uma causa
e pensamentos diferentes e próximos aos da
onde não existe.
criança, mostrando que outros sentem diferen-
O egocentrismo da fase faz com que te. Utilização de objetos animados e animais
a criança ache que todos sentem e personificados.
pensam como ela.
As crianças atribuem vida a objetos
inanimados.
Os livros para crianças a partir dos 7 anos, em
fase de alfabetização ou alfabetizadas, devem
trazer, progressivamente, possibilidades para
treino do raciocínio lógico, da criatividade e da
Habilidades maiores em: reflexão sobre os fatos do livros. Uma vez que
o pensamento abstrato ainda não se formou,
• pensamento espacial;
o melhor são as histórias que contenham os
• causa e efeito; elementos em si mesmas, isto é, sem tantas re-
Operações
• categorização; ferências a outras obras ou a um conhecimento
concretas
• raciocínio dedutivo e indutivo; de mundo muito além da faixa etária. Também
são interessantes os livros com humor e piadas,
• conservação de volumes;
para desenvolver a capacidade de abstração.
• números e matemática. Além disso, toda temática que trabalhe com
causalidade é bem vinda. Assim, temas diversos
em contos policiais, obras de fantasia, biografias,
poemas etc. podem e devem ser trabalhados,
respeitando a aquisição da linguagem escrita.

Fonte: Adaptado de Papalia, Olds e Feldman, 2010.

Literatura e leitor infantil 53


Podemos verificar, então, que na primeira e segunda infâncias
Leitura
(sensório-motor e pré-operacional) os livros precisam de grande apelo
Para ver algumas opções de
leitura para bebês, acesse o visual e sensorial para corresponder às necessidades da fase de desen-
blog da Leiturinha, que contém volvimento. Isso não significa que a história não importe, ao contrário,
indicações bem legais. mesmo com um suporte que permita maior interação com o material,
Disponível em: https://tinyurl.
com/y9sk5q53. Acesso em: 14 as histórias devem ser variadas, criando, aos poucos, o hábito de leitu-
abr. 2020. ra tanto para as crianças quanto para os cuidadores.

Por fim, na terceira infância o foco recai sobre as temáticas, o estilo,


Filme
a estética do texto e a linguagem, aumentando sua complexidade gra-
Que tal assistir a um
dativamente e inserindo novos desafios ao leitor, diminuindo-se aos
filme bem curioso sobre
o desenvolvimento dos poucos o uso de cores e de ilustrações muito grandes, passando a pre-
bebês? O documentário
dominar o texto verbal.
Bebês acompanha o nas-
cimento e crescimento de Embora tais características sejam boas diretrizes para a escolha dos
quatro bebês em diferen-
tes culturas durante seus livros infantis, elas com certeza não são uma norma, pois cada criança
dois primeiros anos de tem um ritmo de desenvolvimento próprio, e a divisão por idades se-
vida. Vale muito a pena
conferir e refletir sobre a gue um esquema que é formal/teórico e não reflete obrigatoriamente
aquisição de habilidades, o dia a dia das crianças em diferentes culturas.
a descoberta do mundo e
de si e a interação com o Então, o principal é compreender em que estágio a criança em ques-
ambiente.
tão está, independentemente da idade, e escolher livros que instiguem
Direção: Thomas Balmes. França:
Studio Canal; Chez Wam, 2010. sua vontade de interação e de mergulho na literatura!

Agora que você já compreendeu como se processa o desenvolvi-


mento infantil e sua ligação com a literatura, vamos nos aprofundar
nas especificidades da linguagem.

2.3 A linguagem na literatura infantil


Vídeo Já dissemos anteriormente que não se pode confundir literatura
apenas com os livros, com algo físico (mesmo porque a literatura passa
pela oralidade e pelas canções), especialmente em relação aos bebês.
Então, vamos entender um pouco mais sobre como se desenvolve a
linguagem em bebês e crianças, fazendo sua ligação com a literatura.

Obviamente, a linguagem não é um fenômeno distinto do proces-


so de desenvolvimento. Ela se desenvolve conjuntamente com outras
funções, seguindo uma sequência que pode variar no tempo conforme
cada criança. Mesmo que as fases de desenvolvimento descrevam algu-
mas idades, é provável que você já tenha visto bebês com 10 meses fa-
lando várias palavras; por outro lado, já deve ter visto também crianças

54 Literatura Infantil
de dois anos e meio ou três anos com um vocabulário ainda pequeno Livro
em comparação com outras. Isso é normal, cada criança tem seu tempo!

Em linhas gerais, um bebê se utiliza de uma fala pré-linguística, emi-


tindo sons por meio de choro, arrulhos, balbucios, imitação acidental e
imitação deliberada. O bebê nasce com um aparelho fonador (boca, lín-
gua, palatos, úvula, pregas vocais, laringe) capaz de produzir qualquer
som de qualquer língua! Então, o que faz o bebê perder alguns sons
pelo caminho? A especialização e a aquisição de uma língua materna
(PAPALIA; OLDS; FELDMAN, 2010). Você pode entender
melhor como funciona a
Quando o bebê começa a imitar sons produzidos pelos cuidadores aquisição de linguagem
e do processo de leitura
de forma acidental e, depois, de forma intencional, ele vai aos poucos com o livro O aprendizado
diminuindo o número de sons produzidos para a quantidade de sons da leitura.

presentes na sua língua, e por volta dos 10 meses já possui os fonemas KATO, M. 5. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
restritos à sua língua materna. Por esse motivo, depois de certa idade,
temos mais dificuldade para produzir sons de línguas muito distintas
da nossa.
Leitura
É por isso que, nesse momento, o ato de contar histórias é tão im-
Por falar em sons, você conhece
portante. Ao ouvir os diferentes sons e entonações, o bebê também algumas das línguas mais dife-
estabelece uma ligação emocional com a língua, preparando-se para rentes do mundo? Leia a matéria
da revista Superinteressante,
ser um leitor de fonemas e, posteriormente, de palavras. que traz algumas dessas línguas,
A conscientização das regras fonológicas, bem como do reconheci- com seus estalos, assovios
ou pouquíssimos fonemas.
mento de unidades silábicas na constituição da língua, vai se tornando Disponível em: https://tinyurl.
mais clara a partir dos 18 meses de idade. As palavras começam a ga- com/ybgfcucx. Acesso em: 14
abr. 2020.
nhar novas formas e passam a possuir regras.

Outra linguagem interessante que se desenvolve em conjunto com


a língua é a dos gestos simbólicos. Ao mesmo tempo em que o bebê
aprende palavras como sim e não, também aprende que existem ou-
tros símbolos para se referir a essas duas palavras, como balançar a
cabeça para cima e para baixo em sim e para os lados em não.

Aos poucos, o gestual vai dando lugar à língua falada, mas é uma lin-
guagem de apoio ao aprendizado da língua materna, pois materializa
no corpo algo que ainda não é dominado no nível da abstração.

Dito isso, você sabia que os bebês compreendem muito mais pala-
vras do que conseguem produzir? A aquisição da língua não deve ser
medida somente pela fala, pois pode ser que a via de produção de fala

Literatura e leitor infantil 55


(ativa) ainda não esteja madura, mas que o vocabulário passivo já este-
ja sendo construído com maior velocidade.

Assim, pode ser que um bebê apenas fale uma sílaba, ma, mas
essa sílaba pode ser referir à mãe presente no ambiente, à falta da
mãe (como uma pergunta: “onde está a mamãe?”) ou a um alimen-
to, entre outros contextos. Ou seja, o bebê já sabe que existem ter-
mos específicos para cada uma das situações, mas usa uma palavra
holofrase para se comunicar. A palavra holofrase é aquela que ex-
pressa um pensamento completo, como o ma citado (PAPALIA; OLDS;
FELDMAN, 2010).

Entre os 18 e 24 meses, o vocabulário dobra e a criança passa a se


comunicar com mais palavras, em geral mais substantivos que verbos.
Também se inicia o processo de junção de duas palavras para formar
uma ideia, gerando uma fala telegráfica, por exemplo: “nenê ame”, ou
“o neném está com fome”.

Já dos 24 aos 36 meses, há inferência de significados de adjetivos


pelo contexto. Ainda, a competência nas regras da sintaxe começa a
se ampliar, aumentando a capacidade de juntar sentenças com prepo-
sições, artigos, conjunções, formas verbais etc. Ao mesmo tempo, há
maior consciência do ato comunicativo da fala, conseguindo se comu-
nicar relativamente bem na língua oral.

Portanto, durante a primeira infância, a criança possui a capacidade


de compreender as relações gramaticais, embora não consiga ainda re-
produzi-las. Nessa fase, o significado das palavras é supergeneralizado;
por exemplo: a palavra papai, que se aplica a qualquer homem, pois a
palavra homem ainda não está disponível.

Como a gramática ainda não está interiorizada, as regras aca-


bam por ser universais, sem levar em conta as exceções, logo plu-
rais e conjugações verbais seguem a mesma regra. Por exemplo:
mão-mãos/mamão-mamãos; eu entro/eu cabo. As regras serão aos
poucos refinadas, consolidando-se com a alfabetização.

Segundo Papalia, Olds e Feldman (2010, p. 186, grido do original):


ler para um bebê ou para uma criança pequena oferece opor-
tunidades de intimidade emocional e promove a comunicação
entre pais e filhos. A frequência com que os pais ou cuidado-
res leem para os bebês, bem como o modo como o fazem pode
influenciar o desenvolvimento do letramento, a capacidade de

56 Literatura Infantil
ler e escrever. Crianças que aprendem a ler cedo tendem a ser
aquelas cujos pais liam para elas frequentemente quando eram
bem novas.

Então, como vimos, ouvir histórias inicia a criança no mundo da lin-


guagem e da língua, habilitando-a também para o processo de alfabe-
tização que se seguirá.

Cabe aqui fazermos uma breve distinção entre o letramento e a al-


fabetização antes de prosseguirmos. De modo abrangente, a alfabeti-
zação prevê a aquisição do código da língua, as regras e sua estrutura.
O letramento diz respeito à aquisição de competências diversas envol-
vidas na leitura e na escrita, entre elas a capacidade de reflexão e de
aplicação do que é lido.

Porém, letramento se refere a tudo o que pode ser lido: palavra,


imagem, som, relações, mundo. Assim, podemos, ainda, pensar em um
letramento literário, com a aquisição de habilidades específicas volta-
das para esse tipo de leitura.
Contudo, o letramento literário se efetiva quando acontece o
relacionamento entre um objeto material, o livro, e aquele uni-
verso ficcional, que se expressa por meio de gêneros específicos
– a narrativa e a poesia, entre outros – a que o ser humano tem
acesso graças à audição e à leitura. (ZILBERMAN, 2012, p. 130)

Dessa forma, o letramento literário prevê o trabalho com livros de


literatura desde muito cedo, para que se tenha acesso ao objeto mate-
rial que veicula as narrativas e os poemas.

Para Papalia, Olds e Feldman (2010, p. 186), há três estilos distintos


de leitura, os quais são utilizados com as crianças:

1. Descritor: descrever o que acontece nas imagens pedindo auxílio da criança.


Exemplo: “olha só esse lobo, que rabo comprido!”
2. Entendedor: ajudar o leitor a fazer inferências sobre a situação. Exemplo:
“o que você acha que o lobo vai fazer?”
3. Orientado para o desempenho: fazer a leitura completa da obra, realizan-
do um resumo no começo e perguntas no final.

A utilização dos estilos descritor e entendedor auxilia a criança a


construir a história, colocando o adulto como ouvinte ao fazer pergun-
tas que instiguem a interação das crianças. Obviamente, as perguntas

Literatura e leitor infantil 57


devem ser desafiadoras e podem se relacionar com as experiências da
própria criança. Exemplo: “você já viu um lobo? Mesmo? Como ele era?”
Desafio Passamos então às crianças na educação infantil. Como será que a
“– Joãozinho, coloca o chapéu linguagem se relaciona à literatura nessa fase?
porque o sol está muito quente!
– Ué, e vai deixar de ficar quente Se você já teve contato com uma criança entre três e cinco anos,
se eu colocar o boné?” Podemos deve ter percebido o número de questionamentos feitos por minuto
ver aí um pensamento muito
por ela! E mais, que visão de mundo peculiar e criativa elas têm, não
lógico de Joãozinho, afinal ele
não vê a ligação de algo implí- é mesmo?
cito na frase – o sol queima.
Você se lembra de uma fala sua Uma criança aos três anos tem, em média, um vocabulário de umas
ou de alguma criança que tenha 950 palavras. Aos seis, com a linguagem oral mais desenvolvida e com
esse efeito de humor sem ser contato com diversos livros e experiências, seu vocabulário pode che-
planejado? Se tiver contato com
crianças, um desafio bem legal gar em 2.600 palavras, mas com uma compreensão de mais ou menos
é anotar essas frases criativas 20.000 palavras. Com o fortalecimento dos circuitos de leitura na alfa-
e analisá-las depois, tentando
betização, esse número chegará a uma média de 80.000 palavras!
compreender qual o raciocínio
infantil por trás da fala. A facilidade maior está ainda na aquisição de substantivos, exata-
mente por se referirem a coisas concretas em sua maioria, diferen-
temente dos verbos, que são palavras que designam ações, e muitas
delas abstratas.
Atividade 4
As melhorias no uso da gramática acompanham o próprio desen-
A primeira infância é marcada
pelo uso da terceira pessoa volvimento cognitivo e também a percepção do eu. Quando uma crian-
para se referir a si mesma(o). ça nasce e começa a desenvolver a linguagem, é preciso que o outro lhe
Explique esse fenômeno.
diga quem é. Ou seja, a criança não sabe que é criança, ou ser humano,
que se chama Maria ou João. Aos poucos, a família (e a sociedade) vai
dizendo a ela quem é. Isso tem uma implicação também na linguagem.

Até por volta dos três anos, a criança ainda não tem reconhecimen-
to de si, e então se refere a si mesma na terceira pessoa, “o nenem”.
Após maior internalização da linguagem e da experiência de atuar no
mundo, ela vai construindo esse senso de ser a primeira pessoa, o “eu”
da gramática.

Assim, a segunda infância é marcada por uma explosão de aquisi-


ção de vocabulário e maior maestria na sintaxe e no uso da linguagem,
seja para comunicar um desejo ou necessidade, seja para narrar.

Até aqui, conseguimos visualizar o papel da linguagem dentro da literatura. Livros


para a segunda infância devem levar em consideração que, mesmo sem as crianças
estarem alfabetizadas, a narrativa precisa instigar perguntas e respostas, trazendo al-
guns desafios linguísticos para melhoria constante de vocabulário e gramática.

58 Literatura Infantil
Além disso, como nessa fase vemos um desejo de comunicar e nar-
rar, nada mais natural do que livros que proporcionem essa interação
com descobertas e que despertem o interesse de usar a história lida
para incrementar suas próprias histórias contadas para amigos e família.

Há ainda mais um ponto da linguagem nessa etapa: o discurso par-


ticular. Da mesma forma que a primeira infância marca o desafio de
reconhecer o “eu”, a segunda infância traz uma dificuldade de internali-
zação do discurso, que será superada em pouco tempo.
Estudo de caso
O discurso particular nada mais é do que falar em voz alta consigo
Marina tem oito anos e está
mesmo! Como essa fase se relaciona com a necessidade de concretude no 2º ano. Na aula de Ciências,
(e dificuldade de abstração), é normal que as crianças não consigam Marina está desenvolvendo uma
atividade de acompanhar o cres-
ainda pensar dentro de suas cabeças; é preciso materializar o que pen- cimento do seu feijão plantado
sam e sentem para poderem fazer uso da linguagem. no algodão. A professora pediu
aos alunos que realizassem a
Portanto, o discurso particular permite tanto a descrição do que se faz, tarefa sozinhos e em silêncio.
sem finalidade de comunicação, quanto uma tentativa de regulação do Porém, ao longo da atividade,
Marina constantemente interage
comportamento. Se não há um adulto ditando as regras naquele momen-
com os dados coletados falando
to, as regras já internalizadas serão seguidas com os comandos de sua em voz alta, mas para si mesma.
própria voz. Os sentimentos também são processados por meio desses A professora se aborrece e pede
diretamente à Marina que
discursos em voz alta, afinal, falar e se ouvir é sempre um ótimo remédio!
faça silêncio. Entendendo que
A terceira infância é marcada pelo aprendizado da leitura e da escri- possivelmente Marina ainda não
tenha internalizado o discurso,
ta e por maior desenvoltura linguística, com as crianças passando a ter qual seria a melhor postura da
domínio da voz passiva e de orações subordinadas, além de metáforas e professora?
alegorias. À medida que progridem no ensino, a capacidade de produzir
e de absorver narrativas mais longas e complexas também se amplia.

No início da alfabetização, narrativas com estruturas como “Era


uma vez…”, fábulas e pequenos contos são mais compreendidas por
já serem familiares. É nosso papel acrescentar diferentes formas e te-
máticas para que, quando alfabetizada, a criança possa compreender
contextos diferentes, múltiplos personagens, mudanças de tempo e lu-
gar, foco maior nos pensamentos do que nas ações dos personagens e
resolução de problemas trazidos pela trama.

Ainda, os livros para a terceira infância devem explorar outras rea-


lidades e levar os leitores a refletirem sobre seu próprio contexto so-
cial e cultural. Apresentação de contos de outras culturas, descobertas
de outros tempos, situações desafiadoras (como enigmas e mistérios)
e sentimentos desconhecidos (como o luto) são temáticas relevantes

Literatura e leitor infantil 59


entre muitas outras possíveis para essa etapa do desenvolvimento da
criança e de sua linguagem.

Vimos até aqui como ocorre a ligação entre a literatura e as fases de


aprendizado da linguagem na criança. Mas como se classificam as obras
infantis? Será que elas seguem o padrão de desenvolvimento infantil?
Não necessariamente. Ainda há editoras que praticam a divisão por
idade, que não reflete exatamente as necessidades infantis. Perceba
que mesmo no caso de as crianças passarem pelas mesmas fases de
desenvolvimento, o acesso a experiências que propiciem essa passa-
gem entre as etapas é decisivo.

Como bem sabemos, temos uma grande desigualdade social em


nosso país, e não podemos imaginar que uma criança que vive sem
saneamento, com pouca comida e sem muita atenção tenha o mesmo
ritmo de desenvolvimento de uma criança da mesma idade moradora
de bairro nobre, com acesso a comida, escola e um ambiente amoroso.

Sabemos então que cada criança terá seu ritmo, a depender de mui-
tos fatores, entre eles ambientais e biológicos (quando estão envolvidas
síndromes ou transtornos decorrentes da formação biológica). Logo,
precisamos de uma divisão que leve em consideração que nem todas
as crianças da mesma idade apresentam as mesmas características.

Desse modo, as editoras atualmente praticam outra forma de or-

Site ganização de seus livros infantis: a classificação por níveis de leitura.


Ela já é muito empregada em livros para aprendizado de idiomas, es-
Visite a página do Centro de
Línguas da Universidade Federal pecialmente os ligados à União Europeia, pois os europeus, possuindo
Fluminense para compreender
diversas línguas em seu bloco, estabeleceram os níveis de proficiência
melhor como funcionam os
níveis de proficiência em línguas. linguística como forma de identificar os aprendizes.
Disponível em: https://tinyurl.
com/yajkazkv. Acesso em: 22 Assim, podemos encontrar algumas classificações por níveis, con-
abr. 2020. forme a tabela a seguir. Porém, a mais utilizada hoje pelos catálogos
das editoras brasileiras é o modelo da pesquisadora Nelly Novaes
Coelho (SOARES, 2008).

60 Literatura Infantil
Quadro 4
Classificação dos níveis de leitura para livros infantis

Autores Níveis para leitura de livros infantis


Pré-leitor:
1ª infância –
15/17 meses Leitor iniciante: Leitor em pro- Leitor fluente: Leitor crítico:
Nelly Novaes
aos 3 anos; a partir dos 6/7 cesso: a partir a partir dos a partir dos
Coelho
2ª infância – a anos. dos 8/9 anos. 10/11 anos. 12/13 anos.
partir de 2/3
anos.

Pré-escolar até 3 anos: fase Pré-escolar 3-6 anos: fase mágica.


pré-mágica. Contos de fadas e histórias sobre Fase escolar
Betty Coelho
Seres personificados, animais, repetições e acumulações (senti- após os 6 anos.
brinquedos e crianças. mentos, coisas, ações).

9-12 anos:
5-8/9 anos: 14-17 anos:
histórias que
2-5/6 anos: fase dos contos 12-14/15 anos: fase em que o
Richard relatem aconte-
livros com gra- de fadas e histórias de leitor se desen-
Bamburg cimentos e
vuras e versos. do realismo aventuras. volve estetica-
ambientes
mágico. mente.
diferentes.
1ª fase: o livro
deve propiciar 2ª fase: a literatura psicológica
3ª fase: identi- 4ª fase: visão
o conhecimen- auxilia na liberação dos medos
Glória Pondé ficação com os crítica de mun-
to do mundo inconscientes – contos de fadas e
personagens. do.
ao redor da folclóricos.
criança.

Fase do pensa-
Fase do mito: 3/4-7/8 anos. Fase do conhecimento da realida-
Maria Antonieta mento racional:
Lendas, mitos, fábulas e contos de: 7/8-11/12 anos.
Antunes Cunha 11/12 anos em
de fadas. Romances de aventuras possíveis.
diante.

Não indica
contos de
2-3 anos – fase 4 anos: histó- fadas antes dos
10 meses-2 5 anos – fase
do aqui e rias de animais, 7 anos por não
Terezinha anos: livros à da curiosidade
agora: histórias crianças e apresentarem
Cassanta prova de brin- sobre fenôme-
do mundo transportes/ experiências
cadeiras. nos físicos.
concreto. viagens. próximas da
realidade
infantil.

0-2 anos: 2 anos: narrativas curtas e com 4-6 anos:


livro-brinquedo poucos personagens. Grandes 3 anos: contos lendas, narra-
Gládis Kaecher
para aproximar ilustrações que permitam que a de fadas. tivas maiores e
da leitura. criança conte a história. poesia.

Fonte: Adaptado de Debus, 2005.

Literatura e leitor infantil 61


Podemos ver pelas teorias elencadas que algu-
Livro
mas parecem se distanciar do público infantil, des-
Uma ótima leitura sobre como
desenvolver um trabalho eficaz e
considerando crianças na primeira infância. Mas
prazeroso em letramento literário como compreendemos a leitura enquanto processo
é o livro homônimo Letramento
Literário: teoria e prática, de Rildo
mais amplo, concordamos aqui com as classifica-
Cosson. É um livro com exemplos ções realizadas por Nelly Novaes Coelho e Glória
práticos de como estimular a
leitura na escola.
Pondé. Teríamos então teorias que, em sua maioria,
não pensam a divisão dos livros por idades fixas,
COSSON, R. São Paulo: Contexto, 2009.
mas por blocos maiores, em que a criança pode se
reconhecer no seu processo de desenvolvimento in-
dividual, que também auxilia àqueles que selecionarão os livros para a
leitura da criança.

Se a linguagem estrutura o pensamento infantil, nada mais natural


que livros de literatura para auxiliar o leitor nesse processo. Da mesma
forma, a linguagem está a serviço da criação do leitor, que, ao interagir
com ela, reinventa-a!

CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Este capítulo lançou uma reflexão sobre como uma criança se torna
um indivíduo e, ao mesmo tempo, um leitor. Também trabalhamos a re-
lação entre o desenvolvimento, a linguagem e a literatura, e acreditamos
que você tenha agora bases mais sólidas para continuarmos pelo mundo
dos livros infantis.
Esperamos que você tenha compreendido a importância do univer-
so da literatura para a experiência de se tornar sujeito, alguém capaz de
saber quem é e de refletir sobre a própria existência. Desejamos que em
sua próxima leitura literária você possa se construir um pouquinho mais,
sempre ampliando sua identidade a cada nova leitura!

REFERÊNCIAS
COSTA, M. M. Metodologia do ensino da literatura infantil. Curitiba: Intersaberes, 2013.
DEBUS, E. S. D. O que se dá a ler a quem dizem que não lê: as concepções de
leitura/leitor e os critérios na escolha de livros para as crianças de 0 a 6 anos. In:
CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL – COLE, 15., 2005, Campinas. Anais [...]. Campinas:
PUC-CAMPINAS; UNICAMP: 2005. Disponível em: http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_
anteriores/anais15/alfabetica/DebusElianeSantanaDias2.htm. Acesso em: 22 abr. 2020.
DEFINE these terms of bioecological model of development flashcards. ProProfsFlashcards,
4 mar. 2020. Disponível em: https://www.proprofs.com/flashcards/story.php?title=ecological-

62 Literatura Infantil
theory. Acesso em: 27 maio 2020.
FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo:
Cortez, 1989.
HALL, C. S.; LINDZEY, G.; CAMPBELL, J. B. Teorias da personalidade. Porto Alegre: Artmed,
2000.
HUNT, P. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
LA TAILLE, Y.; OLIVEIRA, M. K. de; DANTAS, H. Teorias psicogenéticas em discussão. 27. ed.
São Paulo: Summus, 2016.
PAPALIA, D. E.; OLDS, S. W.; FELDMAN, R. D. Desenvolvimento humano. 10. ed. Porto Alegre:
Artmed, 2012.
SAINT-EXUPÉRY, A. de. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro: Agir, 2009.
SOARES, M. Livros para a educação infantil: a perspectiva editorial. In: PAIVA, A.; SOARES,
M. (orgs.). Literatura infantil: políticas e concepções. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
p. 21-34.
ZILBERMAN, R. A leitura e o ensino de literatura. Curitiba: Intersaberes, 2012.

GABARITO
1. A literatura tem um papel de auxiliar na simbolização do real, na aquisição de habili-
dades de criatividade, na humanização e reflexão sobre outros contextos e na cons-
trução da identidade do sujeito.

2. A resposta deve refletir que o aluno compreende que a barata da cantiga está sempre
procurando se mostrar como algo que não é, dizendo que tem coisas que na verdade
não tem. Por exemplo: “A barata diz que tem um chinelo de veludo, é mentira da
barata, ela tem o pé peludo”, entre outras coisas que diz ter. Se analisarmos a letra,
trata-se da busca da barata por ser alguém, ser reconhecida, uma busca pela sua pró-
pria identidade. Podemos até mesmo ampliar essa discussão demonstrando o quanto
a identidade tem sido construída por “ter/possuir” algo, e não por “ser alguém”.

3. As perspectivas teóricas que acreditam que o sujeito é agente de seu desenvolvimento


são as cognitivas, a evolutiva e a contextual. A hipótese de que a criança é ativa em
seu desenvolvimento prevê que, ao interagir consigo mesma e com os outros, há uma
ação que a leva a explorar as suas habilidades, alargando suas fronteiras de limites
e promovendo, assim, o desenvolvimento. Uma teoria que crê na criança enquanto
agente engloba a exploração e a interação com a literatura, em um movimento de
descoberta e reflexão.

4. Como a criança ainda está construindo sua identidade, ela não se reconhece ainda
enquanto um ser e nem possui uma condição de referência a si mesma por meio da
língua. Embora use gestos como dar batidinhas no peito para indicar que está falando
dele mesmo, o bebê não consegue representar isso pela linguagem, pois não possui
ainda um sentido de eu, tendo como referência apenas o que os outros dizem dele,
e os outros o tratam pela terceira pessoa, logo ele também irá se referir a si mesmo
dessa maneira.

Literatura e leitor infantil 63


3
Estrutura do livro infantil
Modéstia à parte,
a bagunça que eu faço tem nome de arte.
Ziraldo, em O pequeno livro de hai-kais do Menino Maluquinho

Não só de palavras vive o ser humano! E não apenas de letras


que se faz um livro! O livro infantil é mais que uma narrativa conta-
da pelas marcas gráficas em seu miolo. Ele é um objeto complexo,
cheio de significados da capa ao número da página, da ilustração
ao espaço em branco.
Assim, neste capítulo vamos lançar um olhar sobre todos os com-
ponentes de um livro infantil. Também veremos a importância de um
projeto editorial e as relações entre livro e mercado livreiro no Brasil.
Ainda, analisaremos mais a fundo como se dá a relação entre
texto e imagens, e entre texto e gêneros textuais, compreendendo
o livro enquanto objeto formado por partes tangíveis, materiais, e
intangíveis, suas partes abstratas.

3.1 O projeto editorial do livro infantil


A primeira pergunta que você provavelmente está se fazendo é: o
Vídeo
que de fato significa projeto editorial, certo?

Veja, como o nome já diz, é um projeto, mas um projeto que tem por
objetivo produzir algo físico, material – o livro. Um projeto editorial é, en-
tão, um documento em que constam todas as características que esse li-
vro deverá apresentar. Também auxilia todos aqueles que trabalham na
produção do livro (editor, escritor, ilustrador, revisor, diagramador, prepa-
rador, encarregados de impressão, entre outros) a se manterem dentro
de uma linha de qualidade e dentro dos objetivos planejados para a obra.

Assim, toda a equipe que participa da produção do livro segue um


projeto editorial visando a qualidade e o fluxo do trabalho. E, para man-

64 Literatura Infantil
ter esse fluxo, temos o editor, profissional que coordena esse trabalho
de equipe e ajuda a estabelecer as diretrizes para o projeto, garantindo
que sejam alcançados os objetivos propostos.

Logo, dentro de um projeto editorial consta tanto o texto em si


quanto todas as características de design que auxiliarão na constru-
ção dos sentidos do texto, afinal, quando pegamos um livro, não le-
mos apenas seu miolo, mas o livro como um todo, desde a capa. Desse
modo, o design de um livro funciona como mediador entre o leitor e o
conteúdo, por isso precisa de um olhar profissional e integrador, para
que texto, ilustração e design geral não compitam entre si, retirando o
foco do leitor e da construção de sentidos do texto.

Tendemos a pensar sempre no escritor como o único autor do livro,


mas essa não é toda a verdade. Ele pode ser autor do texto e ideali-
zador do livro, pois é do texto que sairão as diretrizes para o design e
a ilustração, especialmente no livro infantil. Contudo, o ilustrador e o
diagramador também são autores. Afinal, pegar a essência do texto e
transformá-la em arte visual também é processo de autoria. Da mesma
forma, dar sentido aos espaços na diagramação é tarefa autoral, pois a
coesão entre blocos de texto, imagem e espaços vazios também funcio-
nará como mediadora da leitura.

De acordo com Bárbara Necyk (2007, p. 86):


como produto comercial, o design do livro é um fator que se
soma a uma série de condições pertencentes à cadeia produti-
va e comercial. O design do livro pode ser encarado como dife-
rencial competitivo quando se apresentam soluções inovadoras,
quando se percebe a integração do design à história, ou quando
é rompida a estética “lugar comum” das histórias infantis. Geral-
mente, livros que possuem excelente acabamento gráfico tradu-
zem na sua materialidade a preocupação e o profissionalismo
empregados pela equipe editorial e de criação.

Portanto, a forma de dispor os elementos na página ajuda a contar


a história, por isso o design é tido como mediador da leitura. De certa
maneira, ele atua como controle do leitor, afinal, quem nunca escolheu
um livro pela sua capa ou por considerar a edição bonita?

Quando você entra em uma livraria, como reconhece os livros que


são voltados para o público infantil? Pela capa! O projeto gráfico das
capas em livros infantis é sempre muito bem pensado, pois, como vi-
mos na citação anterior, o design traz elementos que também auxi-

Estrutura do livro infantil 65


Desafio liam na competição pela escolha do leitor. Entendendo que a criança (e
Se puder, vá a livrarias e faça um nós adultos também) é atraída por cores, formas e texturas, as capas
exercício (se não for possível, possibilitam um primeiro contato a distância, fazendo com que o leitor
faça pela internet mesmo). Na
queira pegar aquele livro para ler.
seção de livros infantis, observe
as capas e tente descobrir a É na capa se se encontram as promessas e expectativas para aquela
história; só depois de formular
hipóteses, olhe o resumo ou leitura e, por esse motivo, muitos livros recebem grande investimento
leia o livro para ver se a capa na capa, com imagens menos nítidas ou acabamento inferior em sua
correspondeu à história ou se te parte interna. Isso é pensado exatamente para gerar destaque do livro,
levou a acreditar em um enredo
distinto do contato pela obra. chamando a atenção do leitor (COLLARO, 2007).

A capa também antecipa a história e, juntamente com o título, pode


complementar ou não a obra. Pode, inclusive, servir como auxiliar na
narrativa, como uma ilustração que se inicie na capa e vá até a contra-
capa. Veja o exemplo na Figura 1.

Figura 1
Capa de livro que antecipa a narrativa.

N.Savranska/ Shutterstock
Mas ler com amigos é melhor ainda! Ler é bom

Tainá Thies

Observando o exemplo do livro Ler é bom, podemos ver que sua


história inicia na capa e termina na contracapa. É uma capa que inclusi-
ve traz em sua contracapa uma pista sobre o livro, com a frase mas ler
com amigos é melhor ainda. Frase que é corroborada pela ilustração de
vários amigos lendo lado a lado.

A capa funciona como um elemento de início da leitura do livro.


Como você pode ver na Figura 2, as imagens se referem a diferentes
capas de um mesmo livro – O ratinho sonhador. Antes de continuar a
leitura para a análise dessas capas, observe-as e tire suas conclusões
sobre qual pode ser a história.

66 Literatura Infantil
Figura 2
Exemplos de capas como elemento inicial de leitura do livro.

Yuliia Bahniuk/ KOSTENKO3/ Shutterstock


Uma história de Tainá Thies Uma história de Tainá

Tainá Thies Tainá Thies

Agora que você já observou com cuidado, vamos lá! A primeira capa
mostra um ratinho preparado para dormir, no que parece ser um mó-
bile de nuvem. Na segunda, o ratinho pilota um avião no céu noturno.
O que você diria de cada uma das histórias ao olhar essas capas?

A história do livro nos mostra um ratinho que gosta muito de sonhar


e que não via a hora de seu dia de trabalho acabar para preparar um
chá e poder sonhar com mundos distantes. Não há indicações de como
são esses sonhos, se são devaneios, como mostrado na segunda capa,
ou se são sonhos adormecidos, como na primeira capa. Por não haver
indicação clara é que é possível termos leituras tão diferentes para uma
mesma história.

O fato é que estilos e escolhas diferentes na ilustração da capa dão


ideias distintas sobre o conteúdo da obra. A narrativa ganha diferentes
significados com cada releitura.

Assim, na primeira capa temos um ratinho que não vê a hora de


adormecer para sonhar dormindo, enquanto na segunda temos a ideia
de que o ratinho aguarda a noite para poder bolar sonhos de futuro, de
conquistas e de, provavelmente, pilotar um avião.

Estrutura do livro infantil 67


Figura 3
Capa com relação direta
entre ilustração e título.
Agora veja esta outra capa (Figura 3). O título Cabum!!!!! está em re-
lação direta com a imagem, indicando que a história terá claramente
um cenário com fenômeno de tempestades e raios.

Logo, os títulos complementam as ilustrações para que o leitor te-


nha uma primeira experiência completa, como em Cabum!!!!!, em que o
título casa com a ilustração em grande sintonia e cooperação.

Aliás, o título deve ser bem escolhido, pois também é capaz de


cativar muitos leitores. Capa e título compõem o que o teórico fran-
cês Gerard Genette chamou de paratexto, elementos que controlam
e direcionam a recepção do texto. Para Graham Allen, estudioso de
intertextualidade:
o paratexto, para Genette, assume várias funções que guiam os
Fonte: Elaborada pela autora.. leitores do texto e podem ser pragmaticamente compreendidos
em termos de várias questões simples, todas concernentes com a
1
maneira da existência do texto: quando foi publicado? Por quem?
The paratext, for Genette, Com qual propósito? Tais elementos paratextuais também auxi-
performs various functions liam a estabelecer as intenções do texto: como ele deve ser lido,
which guide the text’s 1
como ele não deve ser lido. (2007, p.104, tradução nossa)
readers and can be understood
pragmatically in terms of various Para Genette, o paratexto é composto por título, ilustrações, notas
simple questions, all concerned
with the manner of the text’s e prefácios, guiando o leitor pela obra. Essa função de guia, nos livros
existence: when published? by infantis, pode ser mais ou menos explícita a depender da ilustração na
whom? for what purpose? Such
capa e dos títulos.
paratextual elements also help
to establish the text’s intentions: Para as pesquisadoras Maria Nikolajeva e Carole Scott podemos di-
how it should be read, how it
vidir os títulos de livros infantis em categorias.
should not be read.

Quadro 1
Categorias de títulos para livros infantis, segundo Nikolajeva e Scott.

Categoria Descrição Exemplo

Títulos que trazem o nome do persona-


Gildo – Silvana Rando
Título nominal gem principal, acompanhado ou não de
O menino do dedo verde – Maurice Druon
adjetivo ou substantivo.

Título de persona- Títulos com grupo de personagens, que


Vizinho, vizinha – Roger Mello e Graça Lima
gens coletivos podem estar ligados a um lugar.

Memórias de Emília – Monteiro Lobato


Títulos que vêm acompanhados por
Título de gênero Fábulas de Esopo – Esopo
uma caracterização do gênero.
Lendas Indígenas

(Continua)

68 Literatura Infantil
Categoria Descrição Exemplo

Títulos com objetos como personagens


Título de objetos A bolsa amarela – Lygia Bojunga
centrais.

Títulos que capturam a essência da his-


Título de narrativas Nicolau tinha uma ideia – Ruth Rocha
tória.

O menino e o mar – Lulu Ima e Lalan Bes-


Títulos topográficos Títulos que indicam lugares.
soni

Fonte: Elaborado pela autora com base em Nikolajeva; Scott, 2006, p. 242-245.

Com tal classificação, temos maior clareza de analisar um texto pelo


seu título antes mesmo de chegarmos à história. Se não conhecemos a
obra Memórias de Emília, de Monteiro Lobato, mesmo assim conseguire-
mos saber que se trata de um livro biográfico de alguém chamada Emília.
Uma vez que esse título vem acompanhado de uma ilustração na capa,
saberemos que Emília se refere a uma boneca. Então já adentramos no
universo do sítio sabendo que leremos sobre a vida de uma boneca.

Muitas vezes não prestamos atenção na forma das letras do título,


isto é, na sua tipografia, porém, geralmente ela também faz parte da
história e foi pensada dentro do projeto editorial. Temos abaixo um
exemplo da escolha da tipografia e sua relação com as imagens:

Figura 4
Exemplo de tipografia ilustrada
ann131313/ Shutterstock

Estrutura do livro infantil 69


Na imagem, vemos uma tipologia que denota uma ideia escolar, di-
retamente ligada ao título ABC, lembrando a aprendizagem do alfabeto.
A ilustração de crianças com seus livros, cadernos e mochilas também
transparece o significado escolar.

Necyk nos fala sobre o pensamento dos logocentristas, que defen-


Site diam a ideia de uma letra que tenha apenas a função de informar com
Para saber mais sobre os poemas neutralidade:
visuais e concretos, acesse o na visão desses pensadores, a letra impressa deveria espelhar
material preparado pelo site
neutralidade, transparência, na condição única de veículo do
Plataforma do Letramento. É um
material que traz explicações conteúdo textual. Hoje, em alguns contextos, vemos que a tipo-
sobre o gênero e atividades de grafia é deliberadamente utilizada para converter significado.
construção de poemas. Boa Nessas aplicações, o texto impresso transmite a mensagem codi-
leitura! ficada por meio do alfabeto, mas pode também, através do efeito
Disponível em: https://tinyurl. visual produzido, criar significados simbólicos, da mesma forma
com/ybvhjav9. Acesso em: 12 que a imagem (2007, p. 90).
maio 2020.
Encontramos diversas obras (infantis ou não) que jogam com a for-
ma das palavras para criar algo diferente.

Podemos brincar, então, com as formas das letras e das palavras, por
exemplo no caso dos poemas concretos, e isso não é diferente nos livros
infantis. A esse respeito, Necyk (2007, p. 91) afirma que:
de qualquer maneira, o livro infantil recupera a forma da letra
e o uso do alfabeto como elemento gráfico de valor semântico.
As formas de modelação da recepção da narrativa verbo-visual
através da aplicação tipográfica podem se dar em vários níveis.
Desde a leitura de um diálogo ou de uma rima até o desenho das
letras na forma de personagem da história, encontram-se várias
formas de aplicação. Em todas, observa-se a tendência de usar o
texto como imagem, de potencializar sua dimensão gráfica.

Veja, na Figura 5, como o uso da tipografia potencializa a dimensão


gráfica, conforme levantado por Necyk.

70 Literatura Infantil
Figura 5
Capa com onomatopeia ilustrada

Anci Valiart/ Shutterstock


Onomatopeias são sempre bem-vindas nos livros infantis, especial-
mente se acompanharem formas visuais que as complementem, como
no caso da Figura 5, em que o bang de uma explosão vem acompanha-
do de um balão que também lembra tal explosão.

Desse modo, o uso da tipografia transforma o texto verbal também


em uma narrativa visual, dirigindo a recepção do texto.
Chegamos, então, à diagramação do texto, responsável por dimen-
sionar os espaços ocupados nas páginas, tanto pelo texto e imagem
quanto pelos espaços em branco, pois eles também compõem uma
obra. A relação entre os espaços para cada um dos elementos também
é determinante no processo de leitura, pois se a integração entre eles
for bem planejada a leitura será muito mais fluida e integrada do que
imagens separadas de textos.

Outra etapa muito importante em um projeto editorial é a seleção


do formato do livro, isto é, se será pequeno, grande, quadrado, retan-
gular etc., bem como seus materiais.

Tanto material quanto formato provocam respostas diferentes do


leitor, mesmo que seja a mesma história em diferentes formatos. Logo,
normalmente associamos livros pequenos a um conteúdo mais sutil e
gracioso do que um livro em tamanho grande, que pode proporcionar
imagens muito maiores e com mais detalhes.

Estrutura do livro infantil 71


Livros em formato retangular são os mais comuns e, no livro infantil,
podem trazer peculiaridades relativas à ilustração. Se o retângulo for
horizontal haverá mais espaço para ilustrar o cenário e sua interação
com o personagem. Por outro lado, se o retângulo for vertical, a ênfase
maior será no personagem e não no cenário (NECYK, 2007).

Ainda, o formato quadrado traz proporções mais básicas para o re-


conhecimento infantil. Livros de cortes especiais, como redondos, em
Site
formato de casa, de animais e de outros objetos, proporcionam uma
Leia as notícias dos sites Quindim
interação do leitor com a forma do livro.
e Editoras.com para compreender
melhor o panorama do mer- Até aqui vimos muitas informações sobre quais características são
cado editorial de livros infantis
brasileiros. relevantes na produção de um livro infantil. Além desses tantos ele-
Disponível em: https://tinyurl. mentos elencados, ainda precisamos discutir a ilustração, mas deixe-
com/ydatvzo3 e https://tinyurl. mos isso para o próximo tópico, uma seção especialmente voltada à
com/y92uvq4q. Acesso em: 12
discussão sobre a relevância da ilustração na literatura infantil.
maio 2020.
Porém, antes de finalizarmos a discussão sobre as características da
produção editorial, vamos levantar a pedra sobre o mercado editorial.
Levantar e olhar rapidamente o que há lá embaixo, pois para cavarmos
precisaríamos de um tópico muito maior. Por isso mesmo, deixamos
algumas indicações de leituras ao longo deste pincelamento sobre a
relação entre livro literário infantil e mercado editorial.

Sabemos que dentre os livros infantis encontraremos aqueles com


boa qualidade editorial e outros nem tanto. Mas, em especial, o que
sabemos é que livros infantis são caros! Bem, o processo de produção
de um livro infantil, em primeiro lugar, deve considerar o público-alvo.
E não, não são as crianças!

Os primeiros destinatários do livro infantil são os avaliadores do


Site PNBE (Programa Nacional Biblioteca na Escola). Esses avaliadores sele-
cionarão os livros que serão indicados para os professores das escolas
Se o livro infantil é pensado
pelas editoras para a avaliação escolherem. Então, o público-alvo acaba sendo os professores que sele-
no PNBE, você acha que, cionarão quais livros preferem em suas bibliotecas. Somente por último
independente do governo, os
valores governamentais podem é que vem a criança, quando adultos já fizeram uma seleção por elas.
influenciar na escolha dos Assim, livros que irão para a avaliação do PNBE ganham uma aten-
temas? É com certeza algo a se
pensar! Para saber mais sobre o ção especial, com altos investimentos. Todavia, isso não significa que o
processo do PNBE, navegue pela livro sairá para as livrarias. Muitas vezes a editora produz apenas o
página do programa em https://
exemplar para que os avaliadores examinem. Caso não passe no pro-
tinyurl.com/y9pfzkw9.
cesso, a obra poderá ser descartada. Por quê? Bem, porque o maior
comprador de livros infantis no Brasil é o governo, e vender livros caros

72 Literatura Infantil
diretamente para os consumidores (pais e crianças) não traz lucro, exa-
tamente por ser um produto caro. É um círculo vicioso.

Veja o esquema na Figura 6 para com-


Figura 6
preender melhor a cadeia do livro infantil. Funcionamento da cadeia do livro infantil.

Nesse esquema, podemos ver que uma bai-


xa tiragem, isto é, um número baixo de livros im- Tiragem Preço
pressos, causa um alto preço no livro, fazendo baixa Alto
com que poucas pessoas possam comprar. E na
Maioria das
verdade, exatamente por serem poucos os que crianças só
podem adquirir um livro com alto investimento, tem acesso ao
livro na escola
como um livro bem ilustrado e com bons ma-
teriais, é que a tiragem é baixa, gerando o alto
preço, seguindo-se nesse ciclo. Isso não possi-
bilita que a maior parte das crianças brasileiras Sem
tenha acesso ao livro infantil de qualidade em compradores
suas casas, no âmbito privado.
Fonte: Elaborada pela autora.
Por outro lado, na Figura 7, vemos que a
compra governamental é o que faz com que as editoras invistam em
tiragens altas, fazendo com que o preço por livro caia, gerando maior
competitividade e maior volume de compras. Assim, com programas
como o PNBE, as crianças passam a ter acesso ao livro em meio públi-
co, na biblioteca escolar.

Figura 7
Relações envolvidas na compra governamental.

Menor
Tiragem alta
preço
(volumes
unitário
impressos)

Compra
governamental

Atividade 1

Maior Qual seria o papel do governo na


competitividade produção dos livros de literatura
infantil no Brasil?

Fonte: Elaborada pela autora.

Estrutura do livro infantil 73


Peter Hunt (2014) aponta que no percurso do livro até chegar à
criança existem três elementos: o escritor, a editora e a criança. No
Brasil, podemos acrescentar a esse percurso ainda os programas go-
vernamentais, como o PNBE. O autor nos diz que o papel principal fica
com a editora, que é quem atende ao mercado com a produção do
livro. No fim das contas, o processo de produção do livro é um exercício
de poder, seja ele inserido no próprio texto ou nas relações entre os
elementos dessa cadeia do livro, em especial governo, editora e autor.

Desafio Esse exercício de poder sofre influência, especialmente, devido a

Estamos em um momento no pressões financeiras e sociais mais do que literárias, pressões que são
qual a autopublicação de um exercidas pelos compradores, os quais possuem diferentes demandas
livro de qualquer gênero é possí-
vel com um investimento baixo. para a compra de um livro infantil. Em sua maioria, demandas educa-
Ao mesmo tempo, isso permite cionais, formadoras de valores e didáticas, muitas vezes em detrimento
que muitos autores se lancem
do prazer e do entretenimento.
no mercado sem necessitar de
uma editora. Como será que fica Porém, na contramão desse movimento vemos algumas iniciati-
a qualidade das obras literárias
para crianças nesse cenário? Se vas que tentam modificar esse fluxo. Pequenas editoras que publicam
possível, busque ler algumas verdadeiras obras de arte infantis e também a autopublicação, uma
obras autopublicadas em for-
mato e-book e tire suas próprias prática em que os próprios autores publicam suas obras e colocam di-
conclusões. Tais obras podem ser retamente no mercado para venda. Na era dos e-books, não poderia
encontradas em sites de livros e
em livros eletrônicos. haver mais facilidade.

Mas, em nosso país, é evidente que, hoje, a produção do livro infan-

Saiba mais til é particularmente governada por forças econômicas que ditam quais
livros serão impressos e quais não possuem valor de mercado (mesmo
O Centro de alfabetização, leitura
e escrita (Ceale), da Universidade que possua um valor literário inestimável). A quem então se destina o
Federal de Minas Gerais, lançou,
livro infantil? Em última análise, aos que selecionarão os livros para as
entre os anos de 1997 e 2008,
10 obras que tratam das relações crianças, que receberão algo já filtrado por olhos adultos, que primeiro
da literatura com a educação em fizeram a crítica da obra, tirando um pouquinho da cor da espontanei-
uma coleção intitulada Literatura
e Educação. São assuntos como dade infantil.
ilustrações, formação do pro-
fessor, processo de letramento, E para retomarmos essas cores perdidas no processo, vamos às
discursos literários e políticas de ilustrações!
leitura. Confira todos os títulos
na página do programa.
Disponível em: https://tinyurl.
com/yc7dfjs2. Acesso em: 12
maio 2020.

74 Literatura Infantil
3.2 A história contada pela ilustração
Vídeo A ilustração é elemento chave em uma literatura infantil, em espe-
cial nas obras voltadas para a primeira e segunda infâncias. Aliás, você
também não sente que as ilustrações atraem o seu olhar?

Ramos e Panozzo (2015, p. 64) nos falam exatamente sobre essa


atração da ilustração. Para elas,
a ilustração atrai o olhar do sujeito que se deslumbra e se volta
sobre o que vê, para interagir com o texto, ou seja, com a nova
realidade apresentada pela imagem. Em síntese, a ilustração
convida o leitor a viver uma experiência estética, não se trata
apenas de observar uma obra artisticamente executada, perce-
bendo seus materiais ou técnicas de produção, mas de recebê-la,
percebê-la, senti-la, deixar-se levar pela emoção que aquele con-
junto, artisticamente constituído, provoca.

Assim, uma obra com texto e imagem não serve apenas ao intuito
de facilitar a leitura para crianças, mas é uma experiência estética em si
mesma, uma forma de sentir a arte. Não podemos dissociar, então, a
ilustração de seu autor, o ilustrador, pois é ele quem vai dirigir
Figura 8 o olhar do leitor, criando imagens a partir do texto verbal, mos-
Ilustração em tons pastéis. trando diferentes caminhos para a leitura.

Ramos e Panozzo nos dizem ainda que a ilustração possi-


Beatrix Potter/Wikimedia Commmons

bilita “a passagem a um novo ‘estado das coisas’, o deslum-


bramento que provoca a fratura na cotidianidade e atrai o
olhar” (2015, p. 64). Logo, a imagem não pode ser apenas
um elemento acessório, ela transcende a realidade objeti-
va, dando o tom da palavra escrita.

E esse tom encontra coro no estilo do ilustrador. Se


olharmos diferentes livros infantis encontraremos
ilustrações com técnicas e nuances distintas,
como nas figuras 8 e 9.

Na Figura 8, de Beatrix Potter, vemos tons


Figura 9
Ilustração com técni- pastéis, com uso de técnicas de aquarela,
cas contemporâneas. formando um desenho muito suave. Já na
Figura 9, muito próxima de livros infantis
contemporâneos, demonstra um uso de co-
res mais vibrantes, aproximando-se de um
babenkoirusa/Shutterstock

Estrutura do livro infantil 75


mundo digital em que a luz intensa tem predominância na tela com
cores brilhantes.

Assim, o estilo e a leitura do ilustrador podem produzir histórias


completamente diferentes. Um bom exemplo são as versões do livro
Nicolau tinha uma ideia, de Ruth Rocha.

A obra conta a história de Nicolau, alguém que começou a compar-


tilhar ideias quando as pessoas só tinham uma ideia por vez na cabeça.
O texto não traz indicação de tempo ou local, por isso permite grande
liberdade nas ilustrações.

O livro teve três edições, a primeira delas com ilustrações de Walter


Ono, em 1977, pela Editora Abril. Nela podemos perceber um perso-
nagem jovem, mais próximo da realidade. As ilustrações internas tam-
bém corroboram esse estilo. Já a segunda, com ilustrações de Mariana
Massarani, foi lançada em 1998, pela Quinteto Editora, e mostra um
Nicolau no tempo das cavernas e dos homens primitivos, ainda com
muito a conhecer e inventar. Por fim, a última capa traz ilustração de
Alcy Linares, publicada em 2014, pela editora Salamandra, e coloca Ni-
colau como alguém com mais idade, com aparência sábia e acima de
uma multidão, que olha para ele como seguidores.

Saiba mais

Para visualizar as capas das diferentes versões que analisamos de Nicolau tinha uma
ideia, acesse os links a seguir e perceba as diferenças entre cada uma delas.
1ª versão: 2ª versão: 3ª versão:

https://surdohk.blogspot. https://www.amazon. https://www.salamandra.com.br/main.


com/2013/03/pensar-refle- com.br/Nicolau-Tinha-I- jsp?lumPageId=4028818B2F212E9B012F-
tir-agir.html deia-Edicao-Renovada/ 2C6BF30801C2&itemId=8A8A8A8246E-
dp/8530501969 C045D0146F7225DAE77D0

As diferentes ilustrações para uma obra, como essa da Ruth Rocha,


funcionam como catalisadoras para que a leitura flua de acordo com
a visão do ilustrador. Quando vemos um Nicolau da Idade da Pedra,
temos uma visão de que o personagem estava descobrindo coisas no-

76 Literatura Infantil
vas. Já quando vemos Nicolau jovem, em um estilo urbano, não temos
a mesma sensação, talvez ele seja alguém que está tirando as pessoas
da mesmice, mas não abrindo novos horizontes para a humanidade. Já
na última edição temos um personagem principal no oposto dos ante-
riores, alguém que está acima dos outros, pois sabe mais e pode com-
partilhar suas ideias.

Logo, o estilo não é apenas relativo a um gosto do ilustrador. Ele


ecoa todo um sistema simbólico vigente na época em que o desenho
foi realizado. O estilo não é individual, como muitas vezes pensamos,
uma marca registrada inventada do nada pelo autor (seja ele escritor
ou ilustrador). O estilo é construído no diálogo com outros estilos que
vieram antes dele, outros artistas, sua história, seu momento, seus
símbolos culturais, reproduzindo o estilo de sua própria época, como
vimos com Beatrix Potter.

Um bom exemplo é o uso de xilogravuras, um estilo que tem seus pri-


meiros registros no século V e que foi adotado pelos cordelistas brasileiros
Saiba mais
como marca de sua arte em versos. Veja abaixo um exemplo desse estilo:
Acesse o site https://tinyurl.
Figura 10 com/y7ams3xq e compreenda
Exemplo de xilogravura como é feita a xilogravura.

HST6/ Shutterstock Livro


Uma ótima leitura é o livro
Romeu e Julieta em cordel,
uma adaptação de Sebas-
tião Marinho do texto de
William Shakespeare, com
ilustrações de Murilo.

MARINHO, Sebastião; MURILO. São


Paulo: Nova Alexandria, 2011.

Vídeo
Você também pode se
deleitar com uma anima-
ção em cordel do texto de
Romeu e Julieta, adaptado
por Ariano Suassuna,
Dessa maneira, ilustradores se embasam em uma tradição já esta- e publicado pelo canal
Causos de Cordel,.
belecida, como a xilogravura, para contar histórias, como no caso da
Disponível em: https://tinyurl.com/
adaptação de Romeu e Julieta para o cordel. y8lyfccr. Acesso em: 12 maio 2020.
O ilustrador, então, em posse de um estilo permeado pelo diálo-
go com tantos outros estilos, faz seu próprio relato do texto, mas em
Estrutura do livro infantil 77
formato visual. Relato que guia o texto verbal na leitura e que pode
ampliar ou não a própria narrativa.

Assim,
mesmo que a ilustração seja proveniente da ótica do ilustrador,
assim como a palavra é organizada pelo escritor, cada uma das
linguagens tem uma função na construção discursiva, tentando
estabelecer um vínculo com o leitor. Pela sua natureza de objeto
artístico e estético, palavra e ilustração atuam como provocação
de uma lacuna no processo do leitor, cuja interferência é respon-
sável pela emoção estética do texto e da produção de sentido.
(RAMOS; PANOZZO, 2015, p. 63)
Site
Como a imagem atua no espaço entre texto escrito e leitor, median-
A Plataforma do Letramento
possui um material riquíssimo do o processo de leitura, nada mais natural que o trabalho de letra-
para o trabalho de leitura de mento para as imagens. Embora olhar uma imagem e se deleitar com
imagens. Acesse o link abaixo e
perceba as relações entre texto cores e formas seja algo inato, a sua leitura reflexiva e sua relação com
e imagem em uma plataforma o texto precisam ser ensinados.
interativa.
De acordo com Ramos e Panozzo (2015), a mediação da leitura re-
Disponível em: https://tinyurl.
com/yd48qxuf. Acesso em: 12 quer a construção de autonomia do leitor e não apenas a decodificação
maio 2020. de palavras ou imagens, pois a ilustração dá vida a algo que muitas
vezes não é material, como unicórnios e duendes, pedindo do leitor o
que o escritor Umberto Eco chamou de “pacto ficcional”.

Fazer esse pacto ficcional com a obra pode ser tanto pela capaci-
dade de imaginar/pensar o que o escritor está descrevendo no texto
quanto pela de interpretar um desenho. A linguagem visual age de
forma simbólica para materializar a criação do escritor que está intei-
ramente no mundo das ideias. Por meio dela podemos ter acesso a
criações que nos são intangíveis, como as obras sacras, que represen-
tam divindades.

Sendo capaz de descrever a ideia do texto de modo mais direto


e resumido, a imagem está estreitamente ligada aos livros infantis.
Como se dirige a um público ainda em fase de aquisição da língua,
textos infantis possuem economia de palavras, e as descrições que
não foram realizadas pelo texto em si são (na maioria das vezes) en-
globadas pelas imagens.

Entretanto, a imagem não é sempre dependente do texto para es-


tar presente nos livros infantis. Ela pode construir uma história inde-
pendente da narrativa ou vir sem nenhum acompanhamento de texto

78 Literatura Infantil
verbal. Nesse último caso, a imagem assume a função narrativa, e a
sequência das ilustrações proporciona uma estrutura básica de enredo
que deve ser preenchida pelo leitor.

Logo, podemos dividir as ilustrações nos livros infantis de acordo


com as classificações presentes na Figura 11.

Figura 11
Relações entre texto e imagem nos livros infantis.

KittyVector/Lubenica/Shutterstock
RELAÇÃO DIRETA ENTRE RELAÇÃO PÓS-PRODUZIDA
IMAGEM E TEXTO ENTRE IMAGEM E TEXTO

+
Atividade 2
Diferencie relação direta e
relação pós-produzida entre
imagem e texto.

NARRATIVA NARRATIVA NARRATIVA DE


PARALELA INTERDEPENDENTE ESTRUTURAÇÃO

Como vemos pelo esquema, a relação entre imagem e texto pode se


dar de forma direta ou pós-produzida. Vamos analisar cada uma delas.

A relação direta entre imagem e texto é dada naquelas obras que


trazem as duas mídias atuando em conjunto para formar a história.
Porém, essa relação pode ser paralela ou interdependente.

A relação paralela é aquela que conhecemos bem dos livros infantis


em que temos a imagem enquanto auxiliar do texto, sendo que a his-
tória é contada simultaneamente pelas duas formas midiáticas. Nessa
relação o que está sendo dito também é mostrado pela ilustração, em
uma tentativa de reafirmar os significados pretendidos pelo escritor.

Veja o exemplo da primeira edição de A menina do narizinho arrebi-


tado, de Monteiro Lobato, com imagens de Voltolino.
e já estava a sonhar um lindo sonho quando sentiu cocegas no
rosto. Arregalou os olhos e, com grande assombro, viu de pé na

Estrutura do livro infantil 79


ponta de seu narizinho um peixinho vestido. Vestido sim, pois
Figura 12 não! Trazia casaco vermelho, cartola na cabeça e flôr no peito: –
Ilustração utilizada no li- uma galanteza! O animalzinho olhava para o rosto della com ar
vro A menina do narizinho de quem não está comprehendendo coisa nenhuma.
arrebitado, de Monteiro
Lobato. Tão admirada ficou a menina da maravilhosa scena que rete-
ve o folego, com medo de assustar o curioso, e assim perma-

Wikimedia Commons
neceu algum tempo até que a zoada de um insecto a distrahiu.
(LOBATO, 1920, p. 5)

A imagem apoia o texto ao demonstrar como seria a cena descrita por


meio de palavras, cena em que Narizinho acorda com um peixe e um inse-
to vestidos sobre seu rosto. Conforme Necyk (2007), essa relação paralela
apresenta de certa forma um quê de teatralidade, pois acaba encenando a
história, isto é, colocando em cena (na imagem) os elementos que escritor
e ilustrador consideram relevantes na construção do cenário e das perso-
nagens, produzindo uma história duplamente contada.

Na relação interdependente temos a possibilidade de uma narrativa


que seja verbo-visual e que pode tanto ampliar os sentidos dados pelo
texto quanto contradizê-los. Muitas obras hoje seguem nessa linha,
pensando o projeto de ilustração como possibilidade de expansão do
gênero de literatura infantil.

Segundo Agosto (1999), o papel principal em uma narrativa interde-


pendente é performado pela “sinergia”, por uma coesão entre texto e ima-
gem, sem a qual a história não pode ser compreendida em sua totalidade.

Em A aranha tricoteira, é possível ver a relação de sinergia entre


texto e imagem, produzindo uma narrativa interdependente em que o
narrador ao mesmo tempo conta e conversa com a personagem.

A história traz Milla como personagem principal, uma aranha que


quer dar uma festa para os vizinhos e deixar sua teia muito arrumada,
além de estar bonita. O humor está em que o narrador não segue ini-
cialmente as imagens, contando uma história diferente, ou sua visão de
que Milla é muito habilidosa, quando, pelas ilustrações, vemos que ela
não tem lá tanto jeito assim.

80 Literatura Infantil
FireflyPict/Shutterstock
Mas Milla preparava uma surpresa
para seus vizinhos e queria ficar
bonita! Decidiu fazer um blusão bem
tricotadinho.

Como Milla era habilidosa,


logo logo estava pronto!

Ou não?

É, parece que me enganei. Talvez


Milla não fosse assim tão habilidosa,
mas com certeza era dedicada.

Essa narrativa cai, ainda, em uma subcategoria descrita por Agos-


to (1999), a de narrativas visuais que amplificam o sentido do texto. A
amplificação pode ocorrer por ironia, humor, intimação, representação
fantástica ou transferência.

Ao vermos o exemplo da aranha, percebemos que há um grau de


ironia e humor que compõe a narrativa e que leva o leitor a questionar
pelas imagens se o que o narrador está dizendo é de fato verdade. Po-
rém, essa ironia não contradiz a história, mas sim a complementa, pois
ao término da narrativa percebemos que Milla, embora desastrada pe-
las imagens, consegue dar a volta por cima e ser habilidosa.

Outra subcategoria descrita por Agosto (1999) é a de contradição


dos sentidos, que pode acontecer por ironia, humor ou revelação.

Para compreender melhor, veja o Quadro 2 com a descrição de cada


uma delas.

Estrutura do livro infantil 81


Quadro 2
Relações entre imagem e texto.

Relação direta entre imagem e texto

Relação de interdependência

Ampliação Contradição
Discrepância entre expectativa
Discrepância entre expectativa
e realidade, mas que produzem
Ironia e realidade, mas que colaboram Ironia
discrepâncias também no sentido
para ampliar o sentido do texto.
do texto.
Adição de situações engraçadas à Adição de situações engraçadas
Humor história, as quais colaboram para Humor à história, as quais contradizem o
ampliar o sentido do texto. sentido do texto.

Adição de pistas que intimam o Quando o leitor sabe de algo que


Intimação Revelação
leitor a descobrir a narrativa. o personagem não sabe.

Quando uma mídia descreve a


realidade objetiva e a outra, a
fantasia. Exemplo: texto verbal que
Representação
fala sobre o dia comum de brin-
fantástica
cadeira da criança e imagens que
mostram que o seu dia comum é
cheio de monstros fantásticos.
Quando texto ou ilustração
transforma de modo radical a his-
Transformação
tória, adicionando sentidos mais
profundos.

Fonte: Adaptado de Agosto, 1999.


Livro
Desse modo, Agosto (1999) nos diz que relações interdependentes
Veja algumas sugestões de livros
acabam fazendo com que o leitor considere ilustração e texto, sem des-
de imagens com narrativas de
estruturação. considerar um ou outro, e que essa relação auxilia no desenvolvimento
Contêiner, de Fernando Vilela. da criatividade e do raciocínio crítico, pois faz com que o leitor tenha
https://tinyurl.com/yd6f2bb6 que navegar entre as duas mídias para obter todos os sentidos do texto.
De flor em flor, de Jonarno
Lawson e Sydney Smith. A última categoria é composta pelas narrativas de estruturação, li-
https://tinyurl.com/ya9oouxv vros infantis em que as ilustrações compõem a história sem acompa-
Vai e vem, de Laurent Cardon nhamento de texto verbal. Esses livros podem ou representar histórias
https://tinyurl.com/y934uzr5
já conhecidas somente por imagens, como no caso de adaptações de
Tem lugar para todos,
de Massimo Caccia. contos de fadas e contos populares, ou também criar histórias comple-
https://tinyurl.com/y78bn9pd tamente novas.

82 Literatura Infantil
Essas narrativas de estruturação, na verdade, são muito conhecidas
por nós, em especial pelas tirinhas. Na Figura 13 apresentamos uma
tirinha que fala de liberdade, independente do uso de texto verbal.

Assim, essas histórias pós-produzidas possuem uma margem am-


pla para a interpretação do leitor, pois como o próprio nome diz, elas
são pós-produzidas por quem lê. Caberá ao leitor fechar os significados
que aquelas imagens possuem para si.

Figura 13
Tirinha como narrativa de estruturação.

sleepwalker/Shutterstock

Por fim, precisamos lembrar que é necessário ficar sempre atento


ao uso que se faz da ilustração na perpetuação de estereótipos, como Desafio

bem aponta Fanny Abramovich: Procure por tirinhas sem falas e


recorte os quadrinhos. Depois,
ficar atento aos estereótipos, estreitadores da visão das pes- como atividade divertida, você
soas e de sua forma de agir e de ser… E ajudar a criança leito- pode remontar essas histórias
ra a perceber isso. O resultado visual até pode ser bonito (e é, adicionando falas e narrações
muitas e muitas vezes), mas onde vamos parar em termos dos e até transformá-las em texto
narrativo! É um exercício bem
preconceitos transmitidos? AFINAL, PRECONCEITOS NÃO SE PAS-
interessante para se perceber os
SAM APENAS ATRAVÉS DE PALAVRAS, MAS TAMBÉM – E MUITO!! efeitos da ilustração. Você pode
– ATRAVÉS DE IMAGENS. (1997, p. 40, grifos da autora) consultar alguns quadrinhos
da Turma da Mônica pelo site:
Nas imagens, assim como no texto verbal, estão colocadas inúme- https://tinyurl.com/y6uu7t6k.
ras relações de poder. Por isso mesmo, é preciso não apenas mostrar

Estrutura do livro infantil 83


Livro a ilustração para a criança, mas fazê-la refletir sobre o que está vendo.
Amplie seus conheci- Verificar se há representatividade nos livros infantis, se não há violên-
mentos sobre o uso de
cias ou perpetuação de estereótipos da mulher, do negro, do indígena
ilustrações em livros de
literatura infantil com a e tantos outros povos e minorias que comumente são retratados como
leitura do livro A imagem
desiguais em uma relação na qual o homem branco civilizado é o herói
nos livros infantis: cami-
nhos para ler o texto visual, ou personagem bom da história.
com análises de diversos
livros infantis. Precisamos sempre estar atentos aos discursos presentes nas ima-
RAMOS, Graça. Belo Horizonte: gens, pois estamos falando da formação de um leitor, a qual se pretende
Autêntica, 2013. que seja crítica e transformadora. Logo, ilustrações que não condizem
com a diversidade e o respeito devem ser olhadas com olhos muito
reflexivos e carregados de história, não apenas de histórias literárias!

3.3 Gêneros textuais na literatura infantil


Vídeo Ouvimos falar de gêneros textuais desde a escola, mas essa é uma
categoria com inúmeras definições ao longo do tempo e estudada por
diversos pesquisadores. Por isso, vamos tratar do problema do gênero
textual em uma visão compartilhada por Luiz Antônio Marcuschi, autor
que percorre os estudos já realizados na área, afirmando que:
a análise de gêneros engloba uma análise do texto e do discurso
e uma descrição da língua e visão da sociedade, e ainda tenta res-
ponder a questões de natureza sociocultural no uso da língua de
maneira geral. O trato dos gêneros diz respeito ao trato da língua
em seu cotidiano nas suas mais diversas formas. (2008, p. 149)

O que Marcuschi diz é que estudar gêneros textuais tem ligação com
o estudo do discurso e da sociedade que o produz, ao mesmo tempo em
que esta é produzida e produtora de cultura e de uma língua, a qual, por
sua vez, regerá os gêneros que organizarão a comunicação no cotidiano
de seus falantes. É de fato um dilema saber quem veio antes, se é que há
um antes quando falamos em sociedade, cultura, texto e discurso, pois
provavelmente o berço de todos eles não tenha lá muita distinção.

De modo geral, Marcuschi (2008) levanta a possibilidade de o gêne-


ro ser muitas coisas ao mesmo tempo, dentre elas: um esquema cog-
nitivo; uma ação da retórica; uma estrutura de texto; uma categoria
cultural; uma forma de ação na sociedade ou mesmo de organização
da sociedade.

84 Literatura Infantil
Portanto, o gênero textual acontece na interação entre os indiví-
duos, visando a uma prática social. Ou seja, são atos (falados ou escri- Atividade 3

tos) que realizamos em diferentes necessidades do uso da língua. Logo, Defina gênero textual com suas
palavras.
gêneros textuais são flexíveis e podem ser inúmeros, pois, embora re-
lativamente estáveis, são reativados e reorganizados a cada novo uso
por seus emissários e interlocutores.

Porém, mais do que pela forma, o gênero textual é definido por


sua função social, pois “quando dominamos um gênero textual, não
dominamos uma forma linguística e sim uma forma de realizar lin-
guisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares”
(MARCUSCHI, 2008, p. 154). Então, ao aprendermos e dominarmos gê-
neros textuais, dominamos formas que têm por função atingir um ob-
jetivo comunicativo nas situações sociais.

Logo, a comunicação não seria possível sem gêneros textuais, pois ela
se efetiva pelo uso de estruturas para a obtenção de determinado obje-
tivo, seja ele informar, dialogar ou narrar, por exemplo. Dessa maneira,
Marcuschi levanta três conceitos importantes para o estudo do gênero:
tipo textual, gênero textual e domínio discursivo. Veja a seguir o esque-
ma com as explicações de cada um deles para compreender melhor.

Figura 14
Definições de gênero textual, tipo textual e domínio discursivo.

Construção Narração Conto; lenda;


teórica definida romance.
Outros Tipo textual por suas
Instâncias
discursos discursivas sequências Argumentação/ Artigo de opinião;
que dão linguísticas. dissertação editorial.
origem
Discurso a vários Exposições, como
político gêneros. Explicação aulas; respostas a
perguntas.
Tanto em
Discurso Gênero Descrição narrações quanto em
religioso dissertações.
Domínio
discursivo
Injunção Receitas; leis.
Discurso
HQ
acadêmico
Horóscopo; previsão
Predição do tempo.
Discurso Mito Fábula
jurídico
Todos os que
Gênero utilizam diálogos;
Dialogal
textual Receita Notícia teatro.

Teatro Carta

Formas
estáveis
Poema Outros
materializadas
no ato
comunicativo.

Fonte: Adaptada de Marcuschi, 2008, p. 154-155 e Köche; Marinello, 2015, p. 10-11.

Estrutura do livro infantil 85


Vídeo O domínio discursivo é algo maior que os textos e também mais
abstrato, embora presente em todos os gêneros, pois os discursos são
Assista a uma palestra sobre tex-
to e discurso para compreender compostos por valores, ideias e crenças dos mais diversos grupos e
melhor a distinção e a relação setores da sociedade.
entre os dois. Ela faz parte
de um Colóquio de Letras da Os gêneros textuais são a materialidade dos discursos, é por meio
Universidade Estadual do Piauí, deles que passamos o que pensamos, com o objetivo de comunicar-
proporcionado pelo grupo de
pesquisa Getexto. mos algo. Esses gêneros possuem um formato mais ou menos estável,
Disponível em: https://tinyurl. e não podemos quantificar todos os gêneros textuais do mundo, pois
com/yd6jyl9r. Acesso em: 12 dentro dessa categoria cabem tanto a fábula, o mito e o poema quanto
maio 2020.
bulas de remédio, bilhetes e memes.

Assim, para analisarmos os principais gêneros textuais empregados


na literatura infantil, precisamos compreender que, bem possivelmen-
te, não daremos conta de todos os existentes, pois precisaríamos de
muito espaço e tempo para isso. Portanto, utilizaremos como base a
classificação dos tipos textuais, levantada por Köche e Marinello (2015)
para exemplificarmos algumas obras e alguns gêneros selecionados, a
saber: conto, poema, HQ e teatro.

3.3.1 Conto
O conto é uma narração de extensão curta e com poucas personagens,
além de possuir cenário e tempo também restritos para sua estrutura nar-
rativa breve. Além disso, o conto apresenta maior unidade na linguagem e
nas técnicas empregadas, por ser breve e necessitar apresentar um estilo
mais coeso, a fim de cativar o leitor. Seu enredo também contém poucas
ações para não se perder em tão pouco espaço narrativo.

Abaixo você pode ver um trecho do livro A história do coelhinho Peter,


de Beatrix Potter, escrita e ilustrada em 1904. Ela conta a história de um
coelho levado que se mete em confusão. Perceba que há falas, porém
muita narração e também descrição.
Era uma vez quatro coelhinhos, e seus nomes eram Flopsy,
Mopsy, Rabinho de Algodão e Peter.
Eles viviam com sua mãe numa toca sob a raiz de um enorme
abeto.
“Agora, meus queridos,” disse a velha Senhora Coelha certa
manhã, “vocês podem entrar nos campos ou descer a alameda,
mas não vão ao jardim do Senhor McGregor: seu pai sofreu um
acidente lá; foi posto num pastelão pela Senhora McGregor.”
“Agora, vão, e não se metam em travessuras. Estou de saída.”

86 Literatura Infantil
Então, a velha Senhora Coelha pegou uma cesta e sua sombrinha
e foi-se pelo bosque até a padaria. Comprou um pão de centeio e
cinco bolinhos de groselha.
Flopsy, Mopsy e Rabinho de Algodão, que eram coelhinhos bon-
zinhos, desceram a alameda para colher amoras.
Mas Peter, que era muito desobediente, correu certeiro para o
jardim do Senhor McGregor, e se espremeu por baixo do portão!
POTTER, Beatrix. A história do coelhinho Peter. Recife: EX! Editora,
2016. Edição do Kindle

Podemos falar em outros gêneros que estão dentro do gênero con-


to, dentre eles contos populares, fábulas e lendas. A maior diferença
entre conto e conto popular recai em sua autoria e recepção. O conto
popular é coletivo, não possui autoria e não visa a um público específi-
co. São contos que partem de camadas populares da sociedade e que
contam causas, crendices populares e protótipos de personagens, sem
complexidade e ainda irracionais.
O maior exemplo desses contos são as cantigas de ninar populares,
como Boi da cara preta; as lendas urbanas, como a tão famosa da “loira
do banheiro”, presente em quase todas as escolas do país; e também
os contos de fadas, descendentes dos contos populares.

A fábula pode se apresentar em verso ou em prosa e traz uma ação


simples, mas com certa tensão; efetuada por animais personificados,
sem grande complexidade. Seu objetivo maior é a de uma conclusão
moral e crítica em relação aos comportamentos populares.
O rato do mato e o rato da cidade
Um ratinho da cidade foi uma vez convidado para ir à casa de um
rato do campo. Vendo que seu companheiro vivia pobremente
de raízes e ervas, o rato da cidade convidou-o a ir morar com ele:
– Tenho muita pena da pobreza em que você vive – disse. – Venha
morar comigo na cidade e você verá como lá a vida é mais fácil.
Lá se foram os dois para a cidade, onde se acomodaram numa
casa rica e bonita.
Foram logo à despensa e estavam muito bem, se empanturran-
do de comidas fartas e gostosas, quando entrou uma pessoa
com dois gatos, que pareceram enormes ao ratinho do campo.
Os dois ratos correram espavoridos para se esconder.
– Eu vou para o meu campo – disse o rato do campo quando o
perigo passou. – Prefiro minhas raízes e ervas na calma, às suas
comidas gostosas com todo esse susto.
Mais vale magro no mato que gordo na boca do gato.
MEC. Contos tradicionais fábulas lendas e mitos. Brasília: FUNDESCO-
LA/SEF-MEC, 2000. Edição do Kindle.

Estrutura do livro infantil 87


A fábula O rato do mato e o rato da cidade traz dois animais personifi-
cados em um dilema entre roubar de quem tem mais comida, mas correr
o risco de ser morto, ou passar fome com tranquilidade no campo. A es-
trutura é bem visível, trama rápida e simples, poucos personagens e uma
moral ao final da história.

A lenda por sua vez distingue-se enquanto narrativa, pois trata de


seres maravilhosos do ideário popular. Seu enredo está ligado à expli-
cação dos acontecimentos que não podem ser explicados pela lógica
ou para os quais não se sabe a explicação. É um gênero que envolve
um tempo passado, normalmente ligado a fatos históricos de uma ci-
vilização ou povo, e que não possuem autoria definida, caminhando
sempre para uma conclusão emblemática e simbólica.
História do céu
Lenda indígena
Já existia o céu. Mas ainda estava se formando. O céu ainda esta-
va se criando. Era baixo de um lado. Não era como hoje. Era igual
a uma onda, levantando só de um lado.
O povo antigo não queria o céu. E foram tentar derrubar com o
machado.
Eles batiam, abriam um buraco no céu, mas ele fechava.
Imediatamente.
Eles batiam de novo, abriam um buraco e o buraco se fecha-
va. Foram batendo, batendo com o machado e os buracos
fechando...
Iam se revezando. Cada um batia um pouco com o machado.
Iam cortando, e o céu se fechando...
Então desistiram de derrubar:
– Vamos deixar! Não estamos conseguindo cortar o céu! Foi
assim. Assim que o povo antigo tentou derrubar o céu.
Assim que se criou o céu.
MEC. Contos tradicionais fábulas lendas e mitos. Brasília: FUNDESCO-
LA/SEF-MEC, 2000. Edição do Kindle.

A lenda indígena acima demonstra essa tentativa de explicar como


a natureza surgiu, sempre com o fechamento emblemático que atesta
a criação de algo, neste caso, o céu.

3.3.2 Histórias em Quadrinhos


As Histórias em Quadrinhos, mais conhecidas como HQs, utilizam
uma linguagem objetiva e específica para seu formato. Sua narrativa
quadrinizada tem por base imagens divididas em quadros (cenas) e

88 Literatura Infantil
muitos diálogos, acompanhados de balões, legendas e grande uso de
onomatopeias. O mais marcante é a presença do elemento visual que
norteia todo o enredo, tendo o texto verbal como suporte. Aqui, tanto
o tamanho de cada quadro como a tipologia empregada surtem efeito
para a narrativa, ampliando o significado do texto verbal enxuto. Hoje
temos inúmeras adaptações de obras clássicas para quadrinhos, além
daquelas pensadas especialmente para esse formato, tanto para crian-
ças quanto para adultos.

Figura 15
Exemplo de História em Quadrinhos.

Igor Zakowski/Shutterstock
- Interessante,
- Te desejo um - Uma planta!
meu aniversário é
feliz aniversá- só em agosto. Parece estranha,
rio, amigo! como será que se
cuida dela?

- Preciso
- Planta rara e exótica, … PATOS?
descobrir.
demanda muitos cuida-
dos… se alimenta de aves
aquáticas como…

Fonte: Adapatada de Igor Zakowski. Livro


No quadrinho acima vemos um pato que recebe uma encomen- HQs não são apenas para
da que se torna, na verdade, um motivo de preocupação, pois pode crianças, veja abaixo alguns
quadrinhos muito interessantes
acabar comendo o próprio personagem. Nesse exemplo, está bem
para jovens e adultos.
visível a divisão das cenas nos quadrinhos, o uso de onomatopeias, Sandman, de Neil Gaiman.
como ding dong, e o predomínio da cena visual para a compreensão Maus, por Art Spiegelman.
da história. Persépolis, de Marjane Satrapi.

Estrutura do livro infantil 89


3.3.3 Poemas
De acordo com Neusa Sorrenti (2013), a linguagem poética tem três
características básicas que devem ser consideradas na literatura infan-
til. A primeira delas é a sonoridade das palavras, que tem importân-
cia por proporcionar uma percepção melódica e ritmada ao poema,
dando tom de brincadeira e produzindo sensações no leitor. O uso de
diversos sons e efeitos (aliteração, assonância, repetição) propicia um
equilíbrio rítmico com o qual a criança pode interagir. Veja um exemplo
Leitura
de jogo de sonoridade:
Para conhecer mais a
fundo a estrutura do Tola, catola
poema e seu uso na sovaco de mola
literatura infantil, realize
a leitura da obra A poesia
um sol no poente
vai à escola: reflexões, grudado com cola.
comentários e dicas de
atividades, um livro cheio
CAPARELLI, Sérgio. Tigres no quintal. Porto Alegre: Kuarup, 1989, p. 89.
de análises e atividades
Outra característica fundamental do poema na literatura infantil é
com poemas.
a multissignificação, pois um poema sempre permite um novo olhar e
SORRENTI, Neusa. Belo Horizonte:
Autêntica, 2013. uma nova interpretação. É uma forma com estrutura muitas vezes fixa,
mas com um conteúdo aberto à imaginação leitora e à criação, como no
exemplo abaixo, que utiliza jogo de palavras, brincando com o poema.
O sabiá laranjeira
Avisou a vizinha
Ave sou e você é avezinha
Sabe a laranjeira?
Só tem fruta azedinha
MARTINS, Cláudio. Trocadilhos. Belo Horizonte: Suplemento Literário, out 1997, p. 6.
Por fim, a terceira categoria mais relevante na análise de um poe-
ma infantil é o uso de neologismos, isto é, de palavras novas, criadas
pelo poeta para dar conta de passar os sentidos do poema. De certa
forma, a própria poesia já é uma brincadeira com as palavras na litera-
tura infantil, logo, nada mais natural que criar novas, como canfinfim e
surucubicos.
Na casa número 9, na Rua do Carrapicho,
no largo do Bricabraque,
moravam nove meninas,
sendo belas todas elas.
Com um naco de fricotes,
um pouco de canfinfim,
nadinha de piripaques e alguns surucubicos.
ASSIS. Cecy F. de. Que nem elas que nem. Formato, p. 27.

90 Literatura Infantil
3.3.4 Teatro
O teatro é representado em texto pela peça teatral, texto em que se
sobressaem os diálogos, com inserções do dramaturgo (autor da obra)
para indicações de encenação, personagens e cenário. É um texto que
tem por característica a interação em formato de ação no mundo obje-
tivo. Mesmo que utilizemos a peça teatral como leitura silenciosa, sua
função primeira é voltada à encenação. Ao ler as rubricas do autor, isto
é, as indicações de como a peça deve ser conduzida, o leitor consegue
se transportar ao cenário e aos diálogos da forma mais vívida possível.

Porém, devemos lembrar que a prática de leitura e encenação de


peças teatrais na escola ainda é muito tímida, portanto devemos im-
pulsioná-la como forma de inserção da criatividade em uma manifesta-
ção artística que acompanhará o leitor por toda a vida, seja por teatro,
televisão ou cinema. A encenação, assim como a leitura dramática de
textos em prosa ou verso, possibilita a expressão das emoções e o re-
conhecimento de leitor em outros papéis.
JOÃO GRILO - O cachorro de meu patrão está muito mal e eu
queria que o senhor benzesse o bichinho!
PADRE - De novo? Mas é possível?
JOÃO GRILO - É mais do que possível. O senhor não ia benzer o
do major Antônio Morais?
PADRE - E de quem é que você está falando?
JOÃO GRILO - De meu patrão.
PADRE - E seu patrão não é Antônio Morais?
JOÃO GRILO - Não.
PADRE - Mas você ainda agora disse isso aqui, João!
JOÃO GRILO - Eu? Quem disse isso foi Chicó.
(Chicó dá um grande salto de surpresa.)
PADRE - E quem é seu patrão?
JOÃO GRILO - O padeiro.
PADRE - E o cachorro dele também está doente?
JOÃO GRILO - Está.
PADRE - Também, oh terra para ter cachorro doente só é essa!
JOÃO GRILO - E a mania agora é benzer, benzer tudo quanto é de
bicho, (Ouvem-se, fora, grandes gritos de mulher.)
JOÃO GRILO - É a mulher, com o cachorro. Como é, o senhor
benze ou não benze?
PADRE - Pensando bem, acho melhor não benzer. O bispo está
aí e eu só benzo se ele der licença. (À esquerda aparece a mu-
lher do padeiro e o padre corre para ele.) Pare, pare! (Aparece o

Estrutura do livro infantil 91


padeiro.) Parem, parem! Um momento. Entre o senhor e entre a
senhora: o cachorro fica lá!
MULHER - Ai, padre, pelo amor de Deus, meu cachorro está mor-
rendo. É o filho que eu conheço neste mundo, padre. Não deixe
Site o cachorrinho morrer, padre.
Para ter acesso a peças teatrais e SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: AGIR, 2008,
informações de como dramatizar p. 49-51.
com as crianças, acesse o site
https://tinyurl.com/y9pu6tm7
Vemos no trecho de Suassuna as marcas distintivas do gênero. Diá-
e confira o banco de peças logos constantes e marcações para cena e personagens, configurando
disponibilizado por eles. um roteiro de peça teatral.

Assim, vimos alguns gêneros possíveis para o trabalho com a litera-


tura infantil, porém, como nos diz Marcuschi (2008, p. 158),
Livro
os gêneros textuais são dinâmicos, de complexidade variável e
Muitas vezes nos
não sabemos ao certo se é possível contá-los todos, pois como
deparamos com dúvidas
a respeito dos gêneros são sócio-históricos e variáveis, não há como fazer uma lista
textuais e suas caracte- fechada, o que dificulta ainda mais sua classificação. Por isso é
rísticas, afinal, são tantos muito difícil fazer uma classificação de gêneros. Aliás, quanto a
gêneros que é até normal
certa confusão. Para
isso, hoje não é mais uma preocupação dos estudiosos fazer ti-
desfazer qualquer dúvida, pologias. A tendência hoje é explicar como eles se constituem e
um bom livro de apoio circulam socialmente.
é o Dicionário de gêneros
textuais, que traz os Logo, mesmo que façamos tal distinção entre gêneros para uma me-
gêneros como verbetes,
explicando e contex- lhor compreensão, antes de selecionarmos um livro infantil é preciso
tualizando um grande levar em consideração sua função no desenvolvimento da criança e em
número de textos.
seu aprendizado. Também é preciso compreender que são necessários
COSTA, Sérgio Roberto. Belo
Horizonte: Autêntica, 2014. muitos gêneros para que o leitor infantil construa um arcabouço de co-
nhecimentos a respeito de como se comunicar em diferentes esferas e,
especialmente, como construir criativamente histórias literárias, sejam
elas roteirizadas, narradas ou versificadas.

CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Esperamos que esse capítulo tenha sido esclarecedor quanto à tra-
jetória do planejamento e da produção de um livro infantil, com melhor
compreensão de todo o processo envolvido.
Acreditamos que há ainda muito que você pode expandir nessa área,
especialmente no estudo das relações entre imagem e texto e sobre os
gêneros textuais. Por isso, não pare por aqui. Pesquise sempre mais,
aprofundando-se naquilo que te desperta o interesse!

92 Literatura Infantil
REFERÊNCIAS
ABRAMOVICH, F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1997.
AGOSTO, D. One and inseparable: interdependent storytelling in picture storybooks.
Children’s Literature in Education, v. 4, n. 30, 1999, p. 267-280.
ALLEN, G. Intertextuality. London and New York: Routledge, 2000.
COLLARO, A. C. Produção gráfica: arte e técnica da mídia impressa. São Paulo: Pearson
Prentice Hall, 2007.
HUNT, P. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
KÖCHE, V. S.; MARINELLO, A. F. Gêneros textuais: práticas de leitura escrita e análise
linguística. Petrópolis-RJ: Vozes, 2015.
LOBATO, M. A Menina do narizinho arrebitado. São Paulo: Revista do Brasil; Monteiro
Lobato e Cia, 1920.
MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola
Editorial, 2008.
NECYK, B. Texto e imagem: um olhar sobre o livro infantil contemporâneo. Rio de Janeiro,
2007. Dissertação (Mestrado em Design) - Departamento de Artes e Design - Centro de
Teologia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
NIKOLAJEVA, M.; SCOTT, C. How picturebooks work. New York: Routledge, 2006.
RAMOS, F. B.; PANOZZO, N. S. P. Mergulhos de leitura: a compreensão leitora da literatura
infantil. Caxias do Sul-RS: Educs, 2015.
SOARES, M. Livros para a educação infantil; a perspectiva editorial. In: PAIVA, A.; SOARES, M.
(orgs.). Literatura Infantil: políticas e concepções. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 21-34.
SORRENTI, N. A poesia vai à escola: reflexões, comentários e dicas de atividades. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013.
ZIRALDO. O pequeno livro de hai-kais do Menino Maluquinho. São Paulo: Editora
Melhoramentos, 2012.

GABARITO
1. Como o governo é o maior comprador de livros literários, ele faz uma avaliação que
seleciona títulos possíveis de serem adquiridos pelas escolas no Programa Nacional
Biblioteca na Escola – PNBE. Por isso, as editoras preparam seus livros para essas
avaliações, com foco na compra governamental.

2. A relação direta é aquela em que ambas as mídias, texto e imagem, atuam na constru-
ção da narrativa. Já a pós-produzida é uma relação que se constrói na leitura somente
de imagens, em que o leitor precisa criar o enredo a partir do que vê.

3. Gênero textual é uma forma relativamente estável por meio da qual se dá a comu-
nicação humana. São definidas em especial por sua função social e pelo objetivo co-
municativo. Eles são a materialidade de um discurso e se estruturam com auxílio de
tipos textuais.

Estrutura do livro infantil 93


4
Temas da Literatura Infantil
Gostaria de saber, disse para si mesmo, o que se passa dentro de
um livro quando ele está fechado. É claro que lá dentro só há letras
impressas em papel, mas, apesar disso, deve acontecer alguma coisa,
porque quando o abro existe ali uma história completa.
Michael Ende, em A história sem fim

Neste capítulo, vamos adentrar na fantasia e na aventura para des-


cobrir como tais narrativas são construídas e como se dá a jornada do
herói que é, intrinsecamente, a nossa própria jornada pela vida.
Também faremos uma discussão a respeito da necessidade
de a psiquê infantil utilizar a fantasia como forma de resolução de
seus conflitos no caminho para o desenvolvimento.
Boa leitura!

4.1 Fantasia x realidade


Vídeo Realidade ou fantasia? O que apresentar às crianças na literatura in-
fantil? Essa discussão acontece de tempo em tempo e coloca em pauta
o que devemos incentivar na leitura da criança. De fato, esse questio-
namento não acontece apenas na literatura infantil, e parece ser um
termômetro da época. Em alguns anos, a criação gira em torno de li-
vros que se baseiam na realidade, enquanto em outros momentos é a
fantasia que domina as obras.

É preciso equilibrar, claramente, esses dois polos, pois, por um lado,


a fantasia é um recurso psíquico para a criança, enquanto livros “reais”
não devem cair no didatismo. Assim, a escolha de livros infantis deve
levar em consideração sempre seu valor estético, variando as temá-
ticas e os mundos em que as histórias se passam – mundos reais ou
ficcionais –, para que aos poucos a criança também perceba a diferença
entre eles.

94 Literatura Infantil
Como a literatura auxilia na construção da identidade e criatividade da
criança para a resolução de problemas, ela deve compreender gradativa-
mente que existem soluções que dizem respeito exclusivamente ao uni-
verso da fantasia, e outras que podem ser aplicadas em problemas reais.

Poções mágicas que ressuscitam personagens não funcionarão com


seus entes queridos no mundo real, mas talvez a partida de alguém na
fantasia se relacione com a situação real de perder alguém. Assim, é
preciso navegar pelos dois mundos para assegurar à criança o acesso a Atividade 1
diferentes temáticas trabalhadas de diferentes formas. Acesse a matéria e leia sobre
representatividade do blog
Um ponto muito importante a ser levado em conta, especialmen-
Leiturinha. Após a leitura,
te em narrativas que se passam na realidade, é o cuidado com a ca- discorra sobre a necessidade
racterização das personagens. É preciso tomar muito cuidado com os de haver representatividade
de diferentes imagens e
estereótipos que impregnam obras infantis, seja na descrição das per-
comportamentos na literatura
sonagens e de suas situações de vida, seja nas ilustrações. infantil. Disponível em: https://
tinyurl.com/y9psdsur. Acesso
A escritora Fanny Abramovich nos lembra que contos de fadas apre- em: 26 maio 2020.
sentam, em quase todos os casos, um padrão de beleza centrado na
figura do europeu. Princesas são loiras e de olhos claros, príncipes até
podem ter cachos castanhos, mas têm pele alva e olhos azuis ou verdes.

De certa forma, sabemos que os primeiros contos de fadas chega-


ram até nós vindos de países europeus com população majoritaria-
mente branca. Porém, no século XXI e no nosso universo brasileiro,
temos o dever de reconhecer o momento histórico em que os contos
foram escritos e ultrapassá-lo. Afinal, a população brasileira é majorita-
riamente negra. Logo, onde estão nossas princesas e nossos príncipes,
Saiba mais
com a beleza e as cores nacionais?
Temos hoje obras muito
Felizmente, temos visto um movimento literário que resgata a visi- interessantes que colocam em
bilidade tanto da população negra quanto da população indígena, em- pauta a representatividade
bora esta ainda permaneça mais distante de nossas prateleiras, tendo, negra. O site Geledés fez uma
lista com 100 livros infantis para
ainda, sua maior expressão em lendas e mitos das diferentes tribos. meninas negras (e meninos
também, claro!). Acesse o site e
Da realidade sabemos bem, afinal ela nos rodeia a todo momento.
procure mais obras infantis que
Por isso mesmo, vamos entrar no mundo da fantasia e nos embrenhar, retratem nossa história e nossa
adiante, por eventos maravilhosos! gente. Disponível em: https://
tinyurl.com/y7vhm793. Acesso
Para entendermos a fantasia, precisamos, primeiro, saber que ela em: 26 maio 2020.
atua em uma narrativa autocoerente. Nesse sentido, Clute e Grant nos
dizem que:

Temas da Literatura Infantil 95


Um texto de fantasia é uma narrativa autocoerente. Quando
manifesta neste mundo, ela narra uma história que é impossí-
1 vel no mundo como o percebemos; quando manifesta em outro
mundo, este outro mundo será impossível, embora as histórias
A fantasy text is a self-coherent
narrative. When set in this world, lá manifestas possam ser possíveis em seus próprios termos.
1
it tells a story which is impossib- (CLUTE; GRANT, 1999, p. 38, tradução nossa)
le in the worlds as we perceive it;
when set in an otherworld, that Dessa forma, se voar em um tapete mágico é impossível na realida-
otherworld will be impossible, de, dentro de um mundo de fantasia – como em As mil e uma noites – é
though stories set there may be
perfeitamente verossímil. Uma obra de fantasia é coerente em si mes-
possible in its terms.
ma, pois delineia um mundo possível de acontecer na ficção, com seres
e situações sobrenaturais que logo ganham a familiaridade do leitor, o
que gera o efeito de maravilhoso.

Sabemos que a literatura de fantasia não é nova, pelo contrário, ela


está na base das histórias mais enraizadas de diferentes civilizações:
nas lendas, nos mitos e nos contos populares e de fadas. As epopeias
mais antigas a que temos acesso estão impregnadas com o elemen-
Saiba mais to maravilhoso presente na fantasia. Homens travam batalhas em um
A Ilíada, o documento mais mundo antigo povoado por monstros e deuses em obras como a Ilíada
antigo do mundo ocidental, é e a Odisseia (ambas compiladas por Homero) e Gilgamesh.
um poema épico, escrito em
versos, divididos em cantos. Aos poucos, esse elemento maravilhoso foi se convertendo em con-
Esses versos eram cantados na
tos de fadas e hoje está presente em boa parte das obras para crianças.
Grécia antiga acompanhados de
instrumentos como a lira, um Porém, há aqui uma distinção a ser feita. Nos contos de fadas, a fantasia
instrumento de cordas. Ela conta entra como um auxiliar do personagem principal, seja como a bruxa da
a história do término da guerra
de Troia e traz as intrigas dos
Branca de Neve ou como o beijo que tira uma princesa do sono eterno.
deuses em meio ao conflito. Para Na literatura tida como fantástica há uma incorporação muito maior
saber mais, assista a um resumo
disponível em: http://youtu.be/ do elemento maravilhoso. A fantasia é a base da criação de um mundo
IGnxUzpNTKU. Acesso em: 26 completamente novo e com regras próprias.
maio 2020.
Se pegarmos um conto de fadas muito conhecido como Cinderella,
Já o poema épico Gilgamesh
foi escrito pelos sumérios na teremos aí um mundo perfeitamente plausível. Uma jovem órfã, que
Mesopotâmia por volta de 2.000 fica aos cuidados de sua madrasta, torna-se empregada na casa e co-
a. C. É a história mais antiga
da humanidade a que se tem nhece um príncipe em uma festa. Perde um dos sapatos e se torna uma
conhecimento e narra a saga princesa. É uma história possível de acontecer no mundo real (mesmo
do Rei Gilgamesh para atingir a que muito distante da realidade).
imortalidade. Para saber mais
sobre essa narrativa, assista ao A entrada do elemento fantástico ocorre quando Cinderella preci-
vídeo disponível em: youtu.
sa de auxílio para (veja só) ascender a uma classe social mais alta. Ela
be/46OsbgT_xLg. Acesso em: 26
maio 2020. não poderia ir ao baile como uma empregada. E como alguém nessa
posição poderia ir a um baile em um castelo sem uma ajuda externa?

96 Literatura Infantil
Pois bem, entram em cena os animais personificados (e que, de fato,
se tornam pessoas na narrativa), como os ratinhos e cães, além da aju-
da de um ser sobrenatural que possa torná-la capaz de transitar entre
dois mundos sociais: uma fada madrinha. O resto é história, como você
bem sabe.

Ao confrontarmos, entretanto, uma narrativa dos contos de fadas com


uma história como O Hobbit, obra escrita por J. R. R. Tolkien para crianças e
jovens (de sua época claramente), percebemos grandes diferenças em re-
lação ao uso que se faz da fantasia, ou Alta Fantasia, como veremos aqui.

O Hobbit é um livro emblemático que cria todo um mundo novo, a Terra


Média, em que a lógica segue seu rumo próprio – não é uma lógica como
a de Cinderella, a fantasia não está a serviço de alguém que necessita. A
fantasia aqui toma lugar central e constrói um cosmos para criaturas não
conhecidas, como hobbits e orcs, e para aventuras impossíveis no mundo
real. Ou matar um dragão seria algo possível na realidade?

Logo, a diferença recai na “quantidade” de fantasia empregada. Em


contos de fadas temos elementos que nos levam a crer em mágica e se-
res não existentes na realidade objetiva. Em obras de fantasia, vemos
um exagero do elemento mágico ou sobrenatural. É como se obras
como essas tivessem a mesma certeza no maravilhoso que obras rea-
listas têm na materialidade do mundo real.
Importante
Podemos, portanto, dividir a fantasia em Alta Fantasia e baixa fan-
tasia, com referência à composição dos mundos fantásticos e não à Adotamos o uso distinto das ini-
ciais em maiúscula e minúscula
qualidade das obras de fantasia. Na baixa fantasia estariam as obras para as expressões Alta Fantasia
em que o sobrenatural é um mero intruso, enquanto na Alta Fantasia e baixa fantasia de acordo com
Tolkien (2006)
existiria um mundo à parte, regido por suas próprias leis.

Assim, obras como Harry Potter ou As crônicas de Nárnia são consi-


deradas Alta Fantasia. No Brasil a Alta Fantasia está mais presente na
literatura juvenil, mas podemos tomar Monteiro Lobato como repre-
sentante desses mundos ficcionais completos em si mesmos. Embora
se passe em um sítio à primeira vista, os personagens são constante-
mente transportados a mundos que desafiam a lógica do real, sejam os
mundos antigos como em O minotauro, ou embaixo d’água como em O
Reino das Águas Claras.

Segundo Boyer, Tymn e Zahorski (1979), podemos dividir a Alta Fan-


tasia em três categorias distintas, como se vê no quadro a seguir.

Temas da Literatura Infantil 97


Quadro 1
Categorias da Alta Fantasia

Um mundo criado que não


está ligado a nenhuma parte • O Hobbit – J. R. R.Tolkien.
Mundo secundário
de um mundo real. O mundo • Terramar – Ursula Le Guin.
clássico
real simplesmente não existe • Guerreiros de Darinka – Renata Cantanhede.
dentro da obra.

O mundo real não é ignora- • As crônicas de Nárnia – C.S. Lewis (o guarda-roupa


Mundo primário do e normalmente usam-se é o portal).
relacionado portais para acessar outros • Alice no país das maravilhas – Lewis Carroll (a toca
mundos. do coelho é o portal)

Não são mundos distintos à • Harry Potter – J. K. Rowling (o mundo dos bruxos
fantasia dentro da realidade, está em estreita ligação com o dos trouxas, mas
Um mundo dentro
mas um mundo escondido os trouxas não conseguem ver esse outro mundo
de outro mundo
dentro da realidade, na maior ligado ao deles).
parte das vezes. • Conexão Magia – Rosana Rios e Helena Gomes.

Fonte: Adaptado pela autora com base em Boyer; Tymn; Zahorski, 1979.

Os livros de Lobato podem ser classificados tanto na segunda cate-


goria quanto na terceira, dependendo da obra. As personagens usam
portais como o “pó-de-pirlimpimpim” e o “tchibum” para dar mergulhos
em outros mundos, mas esses mundos muitas vezes estão dentro do
próprio sítio. Assim, cada história terá uma classificação própria.

Umberto Eco, em seus seminários compilados no livro Seis Passeios


pelos Bosques da Ficção (1994), conta que um mundo ficcional é como
um parasita do mundo real, pois apresenta número certo de persona-
gens, bem como espaço e tempos limitados, além de ser produzido
pela mesma linguagem que também produz o mundo real.

Assim, mundos completamente distintos do real são impossíveis,


pois se baseiam na linguagem e na enciclopédia conhecida por cada
um, isto é, seu conhecimento prévio da própria realidade e de outras
obras que já instalaram no leitor uma aceitação do que pode ser visto
e tocado em um mundo distinto.

O autor de uma obra de fantasia é, então, para Tolkien, um


subcriador, pois essa narrativa se embasa no mundo real já criado para
ser concebida, logo, o autor faz uma criação em cima do que já temos
por conhecido. Assim, Tolkien (2006, p. 44) nos diz que:
O que acontece de fato é que o criador da narrativa demons-
tra ser um “subcriador” bem-sucedido. Ele concebe o Mundo

98 Literatura Infantil
Secundário no qual nossa mente pode entrar. Dentro dele, o
que ele relata é “verdade”: está de acordo com as leis daque-
le mundo. Portanto, acreditamos enquanto estamos, por assim
Livro
dizer, do lado de dentro. No momento em que surge a increduli-
dade, o encanto se rompe; a magia, ou melhor a arte, fracassou.
Então estamos outra vez no Mundo Primário, olhando de fora o
pequeno Mundo Secundário Malsucedido.

É necessário que o autor de fantasia mantenha ao longo da narrativa


esse encantamento que prende o leitor como crédulo dentro de suas
regras. Para isso, ele precisa de grande criatividade, referencialidade na
linguagem e clareza de enredo e do caminho percorrido pelo herói.
Em Sobre histórias de
Portanto, a fantasia nos proporciona muito mais possibilidades de fadas, Tolkien escreve um
tratado sobre as histórias
aventuras que obras embasadas no mundo real. Porém, obras realistas de fantasia que é muito
nos presenteiam com o enfrentamento da realidade de maneira crítica útil para a compreensão
do gênero. É uma leitura
e reflexiva, tornando o leitor a um leitor político, engajado com a mu- leve e também eficaz!
dança de seu próprio mundo.
TOLKIEN, J. R. R. Trad. de Ronald
Como resposta à pergunta inicial desta seção, “Realidade ou fanta- Kyrmse. São Paulo: Conrad, 2006.

sia?”, concluímos que não há nem bom, nem ruim, há apenas a literatura!

4.2 Aventuras e heróis reais e imaginários


Vídeo O encantamento proporcionado pelo elemento maravilhoso nas
narrativas de fantasia coloca em cena uma coletividade que é a base de
toda mitologia. Os mitos se constroem sobre valores ligados a um povo
e, de acordo com Campbell (2005 p. 21), têm como principal função
“fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-
-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo
para trás”.

Desafio

Por diversas vezes o cinema traduziu mitos e lendas antigos para as telas. Que tal fazer a leitura
do mito de Hércules e depois compará-la com a versão cinematográfica realizada pelos estú-
dios da Disney? Disponível em: https://tinyurl.com/ybm4m5ma. Acesso em: 26 maio 2020.
HÉRCULES. Direção: Ron Clements, John Musker. Estados Unidos: Disney; Buena Vista
Pictures, 1997.

Temas da Literatura Infantil 99


Assim, o mito é a grande narrativa, que deu origem às narrativas
de fantasia e também às de heróis. Isso porque a narrativa mitológica
apresenta uma estrutura de aventura com enredo de iniciação de um
herói e de criação de algum mundo, fictício ou real. Dessa forma, para
Mircea Eliade,
O mito conta uma história sagrada; êle relata um acontecimento
ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”.
Em outros têrmos, o mito narra como, graças às façanhas dos
Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma
realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento [...] É sem-
pre, portanto, a narrativa de uma “criação”: êle relata de que
modo algo foi produzido e começou a ser. [...] os mitos revelam,
portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou
simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma,
os mitos descrevem as diversas, e algumas vêzes dramáticas,
irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. É essa
irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o
converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos
Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal,
sexuado e cultural. (1972, p. 11)

Aos poucos, conforme Eliade (1972), os mitos sofreram um processo


de desmistificação, sendo despojados de seu conteúdo religioso ao se
tornarem contos. Assim, conforme o autor, os mitos seriam “histórias
verdadeiras”, ao contrário de fábulas e contos, que são “histórias
falsas”. Para ilustrar essa distinção, Eliade nos diz que
os Cherokees distinguem entre os mitos sagrados (cosmogonia,
criação das estrelas, origem da morte) e as histórias profanas,
que explicam, por exemplo, certas peculiaridades anatômicas
ou fisiológicas dos animais. A mesma distinção é encontrada na
África. Os Hererós consideram “verdadeiras” as histórias que re-
latam a origem dos diferentes grupos da tribo, porque narram
fatos que realmente aconteceram, enquanto que os contos mais
ou menos cômicos não têm qualquer fundamento. E os indíge-
nas de Togo consideram os seus mitos de origem “absolutamen-
te reais”. (1972, p. 14)

Ou seja, as histórias ditas “verdadeiras” por alguns povos são as liga-


das à sua religião e à formação do mundo e dos seres, enquanto todo
o resto entra no conjunto de histórias “falsas” dos contos. Assim, tudo
o que se passa nos mitos diz respeito a uma realidade sentida pelos
povos que as contam, enquanto os contos não modificam a condição

100 Literatura Infantil


humana, os personagens continuam humanos, embora de classes so-
ciais distintas, como princesas e príncipes.

Os mitos trazem em seu bojo elementos da cultura em que foram


forjados e sofrem transformações ao longo do tempo. Os deuses
e entes sobrenaturais nos mitos são agora a realeza e os heróis nos
contos maravilhosos e de fadas. Em todo caso, tanto fadas quanto
heróis possuem algo em comum, não fazem parte de nosso dia a dia.

E assim nascem os heróis e as heroínas! Com base em uma estrutu-


ra mítica na qual heróis eram semideuses, ou filhos de deuses antigos,
como Hércules e Aquiles, destinados a ajudar a humanidade. Da mes-
Atividade 2
ma forma, os super-heróis atuais também se colocam como salvado-
res dos seres humanos, só que agora contra algo mais mundano que Com suas palavras, explique
a importância do mito para a
monstros ou deuses irados: lutam contra vilões muito mais reais, frutos literatura infantil.
da própria sociedade, como o Coringa ou o Magneto.

Além da necessidade de salvar a humanidade das garras criadas


pela própria sociedade, os super-heróis também transparecem o
desejo do ser humano de ultrapassar os limites de sua condição, de
ser mais do que realmente é e se tornar um dos deuses criadores de
universos. Assim, “comportamentos míticos poderiam ser reconhecidos
na obsessão do ‘sucesso’, tão característica da sociedade moderna, e
que traduz o desejo obscuro de transcender os limites da condição
humana” (ELIADE, 1972, p. 160).

Com o desejo por sempre construir e consumir novidades, o ser


humano aos poucos tenta se colocar num panteão de deuses, enfren-
tando a própria morte. Hoje, quantos são os novos tratamentos que
possibilitam que cheguemos facilmente à casa dos 80, 90 e até dos 100
anos de vida? Isso era, de fato, um feito mítico na antiguidade, pois as
condições da ciência não permitiam que chegássemos tão longe.

Também transcendemos nossa capacidade de comunicação e de lo-


comoção, entre outras tantas áreas nas quais a civilização se desenvol-
veu, deixando para trás um passado de incapacidades. Ao mesmo tempo
que evoluímos tecnologicamente, outros setores não acompanham, em
especial, o de desenvolvimento social. Dessa forma, super-heróis são
cada vez mais necessários em um mundo onde conseguimos façanhas
incríveis, ao qual, no entanto, somente alguns têm acesso.

Os heróis representam a ponte para muitas vezes lutar contra aqui-


lo que não podemos ou não conseguimos. Permitem que tenhamos

Temas da Literatura Infantil 101


acesso a resoluções de conflitos geralmente inconscientes. Em nossa
leitura, tomamos os olhos de heroínas e heróis emprestados para fazer
seus passos pelas narrativas e resolver conflitos compartilhados por
todos os seres humanos.

Assim, todos os heróis e heroínas compartilham de uma jornada, que


traduz a própria jornada da humanidade, chamada por Campbell (2005,
p. 14) de “monomito”. Ele está presente nos mitos, nas narrativas fanta-
siosas e realistas, mas principalmente nas aventuras e nas histórias de
super-heróis. É uma estrutura que foi, inclusive, incorporada pelo cine-
ma, pois é uma estrutura reconhecida por nossa psiquê.

Então, quem é um herói? Apenas o Super-homem ou o Batman?


Campbell e Moyers nos esclarecem que:
Mesmo nos romances populares, o protagonista é um herói
ou uma heroína que descobriu ou realizou alguma coisa além
do nível normal de realizações ou de experiência. O herói é
alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo.
(CAMPBELL; MOYERS, 1988, p. 137)

Ou seja, de acordo com os autores, o herói é alguém capaz de reali-


zar proezas, físicas ou espirituais. Físicas incluem batalhas e brigas com
vilões; espirituais são aquelas proezas em que o herói precisa superar
dificuldades psíquicas ou metafísicas e retornar com uma mensagem.

Ainda,
A façanha convencional do herói começa com alguém a quem foi
usurpada alguma coisa, ou que sente estar faltando algo entre as
experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros
da sociedade. Essa pessoa então parte numa série de aventu-
ras que ultrapassam o usual, quer para recuperar o que tinha
sido perdido, quer para descobrir algum elixir doador da vida.
Normalmente, perfaz-se um círculo, com a partida e o retorno.
(CAMPBELL; MOYERS, 1988, p. 138)

Então o herói pode ser qualquer um de nós, aliás, segundo os au-


tores, os heróis apenas contam a trajetória que nós, seres humanos,
trilhamos, desde os rituais de iniciação de tribos antigas e atuais (como
enfrentar perigos na mata ou ter uma festa para marcar os 15 anos) até
a aceitação da finitude da vida e da necessidade da maturidade.
Portanto, somos todos heróis ao nascer, quando enfrentamos
uma tremenda transformação, tanto psicológica quanto física,
deixando a condição de criaturas aquáticas, vivendo no fluido

102 Literatura Infantil


amniótico, para assumirmos, daí por diante, a condição de mamí-
feros que respiram o oxigênio do ar, e que, mais tarde, precisarão
erguer-se sobre os próprios pés. É uma enorme transformação,
e seria, certamente, um ato heroico, caso fosse praticado cons-
cientemente. E existe aí também um ato heroico de parte da mãe,
responsável por tudo isso. (CAMPBELL; MOYERS, 1988, p. 138)
Saiba mais
Uma imagem muito bonita, de fato, essa de pensarmos que toda
nossa vida nos transforma em heróis, e ainda mais, que as mulheres A teoria de Campbell foi adap-
tada por Christopher Vogler, que
que dão à luz são duplamente heroínas, pois, como dizem os autores, é formulou a teoria da “Jornada
um trabalho que envolve desfazer-se de quem se é (filha) para tornar- do Herói”, muito empregada
-se outra pessoa (mãe), e isso dando ao mundo um presente material hoje na construção de obras
literárias e cinematográficas. Veja
(a criança) (CAMPBELL; MOYERS, 1988, p. 139). as etapas da Jornada do Herói,
disponíveis em: https://tinyurl.
Mas, então, como se dá a jornada do herói? Quais são as fases e
com/y87dq7v4. Acesso em: 26
como se passa pelas provações? maio 2020.
Veja a seguir o infográfico com os passos percorridos por heróis e
heroínas (reais e imaginários).

Figura 1
Etapas da Jornada do Herói

1 PARTIDA

• O chamado da aventura – convocação do


destino para algo desconhecido.
2 A INICIAÇÃO
• A recusa do chamado – recusa à
convocação e falta de sentido na vida x • O caminho de provas – sobrevivência a provações
aceitação do chamado. no caminho.
• O auxílio sobrenatural – encontro com • O encontro com a deusa – encontro com a figura
figura protetora e objetos auxiliares. mitológica da mãe, externa ou internamente; a
nutridora que protege. Teste para saber se o herói é
• A passagem pelo primeiro limiar – o capaz de receber a eternidade.
encontro com os guardiões do limiar entre o
acessível e o inacessível aos humanos. • A mulher como tentação – redescobrir sua posição
humana e deixar que sua humanidade o ajude.
• O ventre da baleia – o herói é jogado deste
limiar para dentro do desconhecido. • Sintonia com o pai – confiar no apoio dado para
suportar a crise.
• A apoteose – a libertação de todos os medos e o
enfrentamento da crise.

3 RETORNO
• A Recusa do retorno – trazer a sabedoria de volta ao reino humano.
• A fuga mágica – se houver triunfo, o herói retorna com algum elixir
necessário à sociedade fugindo dos perigos.
• O resgate com auxílio externo – auxílio do mundo para resgate do
herói.
• A passagem pelo limiar do retorno – retorno do herói ao mundo
humano.
• Senhor dos dois mundos – liberdade de ir e vir entre os mundos.
• Liberdade para viver – reconciliação entre a vontade do universo e a
consciência pessoal.

Fonte: Adaptada pela autora de acordo com Campbell, 2005.

Temas da Literatura Infantil 103


Como vemos na Figura 2, são muitas as etapas pelas quais o herói (e
Desafio
nós mesmos) passa ao longo das histórias. Porém, não quer dizer que
O livro Onde Vivem os
todos os livros terão sempre essa mesma estrutura, apresentando todas
Monstros, de Maurice
Sendak, é uma obra de as etapas. Livros para crianças muito pequenas tenderão a apresentar
arte por suas ilustrações
apenas algumas das etapas, focando, entretanto, em algumas delas.
e sua sensibilidade em
tratar da imaginação Porém, romances, também, não necessariamente utilizarão todos
infantil. A obra foi
adaptada para o cinema os estágios. A série Harry Potter, por exemplo, utiliza diversos estágios
e é um retrato de como em diferentes livros e também na obra como um todo. Já obras me-
uma criança lida com
seus medos. Assim, faça a nores como Onde Vivem os Monstros, de Maurice Sendak, utiliza-se de
comparação entre a obra etapas mais simples, e sempre de maneira breve.
literária e sua adaptação
para o cinema, se for Mito e realidade se fundem na psiquê humana, construindo obras
possível.
de arte e fantasias individuais, possibilitando que a criança se desenvol-
SENDAK, M. São Paulo: Cosac Naify,
2014. va de modo autônomo e seguro. Assim, fantasia, realidade e aventuras
ONDE Vivem os Monstros. Direção: são elementos-chave para o desenvolvimento infantil.
Spike Jonze. Estados Unidos: Warner
Bros. Pictures, 2009. Livro
Duas obras indispensáveis para quem quer entender melhor os mitos e o efeito deles nas obras de literatura
infantil são os livros O Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell e Mito e realidade, de Mircea Eliade. Ambos os
pesquisadores são nomes de peso quando se trata de mitologia e seu poder na psiquê humana.

CAMPBELL, J. Trad. de Adail ELIADE, M.


Ubirajara Sobral. São Paulo: São Paulo:
Pensamento, 2005. Perspectiva,
1972.

4.3 A literatura infantil e o desenvolvimento


emocional da criança
Vídeo
Somos seres inerentemente imaginativos, afinal, para criar algo é
preciso antes imaginá-lo, e isso faz parte do processo de adaptação do
ser humano ao mundo material. Se adaptar-se é transformar o ambien-
te para podermos habitá-lo com maior sintonia, então a imaginação se
coloca como fator essencial para a adaptação e o desenvolvimento.

104 Literatura Infantil


Porém, não nascemos com a habilidade de imaginar pronta. Ela
precisa ser construída gradativamente e seu pleno domínio depende
das condições de desenvolvimento. Não podemos negar que é muito
mais fácil desenvolver imaginação e criatividade em uma criança que
tem acesso a ferramentas que proporcionam isso, como tempo para
brincadeiras e materiais lúdicos de diversos tipos, do que em crianças
desprovidas desse acesso.

Ao mesmo tempo, só desenvolvemos a capacidade de imaginação


com a faculdade da linguagem. Logo, nada melhor que a própria litera-
tura como mediadora do processo de se tornar um criador por si mes-
mo, seja para criar mundos imaginários ou transformar o mundo real.
Portanto, a imaginação depende da forma de se enxergar o mundo e,
por isso mesmo, é preciso cultivar o acesso a diferentes realidades para
que o leitor construa uma visão de mundo particular.

Dessa forma, a criança vai aos poucos internalizando a habilidade ima-


ginativa com a literatura, com os jogos de faz de conta e com diferentes
brincadeiras e atividades. De uma forma geral, cada faixa etária apresentará
suas características em relação ao maior ou menor grau de uso da fantasia. Vídeo
Para compreender melhor a
Assim, crianças pequenas, entre o nascimento e seus 3 anos de ida-
capacidade imaginativa e sua
de, buscam a vivência sensorial mais que a imaginação, ou seja, o real relação com a realidade, assista ao
se faz mais presente, afinal, é preciso primeiro absorver o mundo ao vídeo Imaginação e criatividade,
do canal do professor Flávio
redor para depois reinventá-lo. Desse modo, as brincadeiras nessa fase Gikovate. Disponível em: https://
levam em consideração a necessidade de exploração do ambiente e www.youtube.com/watch?-
dos objetos de várias formas para alcançar maestria motora e também v=uZJud5fC2ok. Acesso em: 26
maio 2020.
linguística, ao conseguir nomear tudo o que vê.

A pesquisadora Daniele Silva nos diz que:


O conceito de mediação semiótica representa um ponto central
na obra de Vygotsky. Para o autor, a linguagem organiza a ativida-
de mental e, também, viabiliza as trocas comunicativas entre os
homens nas suas diferentes gerações. Ademais, o campo semióti-
co fia a história e a cultura, constituindo específicos modos de sen-
tir, imaginar, conhecer e agir. (SILVA, 2012, p. 19, grifos do original)

Portanto, para imaginar é preciso antes adquirir certa competência


linguística, que servirá na mediação entre a criança e os símbolos, cons-
truídos culturalmente para dar conta do mundo, como bem aponta a
pesquisa de Vygotsky.

Temas da Literatura Infantil 105


Tendo adquirido o vocabulário e a estrutura da língua, bem como
reconhecimento de vários símbolos culturais, a criança entre os 3 e os
7 anos passa a incluir a fantasia como forma de brincadeira e de reso-
lução de seus conflitos com o mundo e consigo mesma. Aqui, se desen-
volve também maior consciência emocional voltada à ressignificação
dos objetos. Assim, a boneca não é apenas boneca, mas é também
um bebê que precisa de carinhos; o carrinho não é um objeto inerte,
é aquele que apaga o fogo e salva pessoas; isso falando apenas das
brincadeiras mais generalistas.

Após os sete anos, as brincadeiras em grupo tomam maior tempo e a


Leitura socialização passa a estar sob a ótica das crianças, não sem a imaginação
Visto que a literatura possibilita desenvolvida na fase anterior. Em todas as fases, a imaginação permite
o reconhecimento de conflitos que a criança trabalhe seus desejos e caminhe para uma condição de
do desenvolvimento infantil,
a sexualidade também pode e pensamento abstrato, que será exigido dela na escola, especialmente.
deve ser tema de obras infantis. As brincadeiras vão passando de concretas, no presente, para re-
A pesquisadora Karina Souza
analisou em sua dissertação presentações do mundo adulto, com suas regras e normas, incluindo
de mestrado a ligação entre o as relacionadas ao gênero. Assim, vão do reconhecer seu corpo a ima-
trabalho de leitura de literatura
ginar mundos; mas vão, também, das relações concretas como pegar
na escola e as relações de gênero
e sexualidade. e morder os objetos às relações de representação de papéis impostos
SOUZA, K. V. L. A prática de socialmente aos homens e às mulheres que virão a se tornar no futuro.
leitura na escola e as relações de Afinal, se a literatura constrói sujeitos, também reassegura que esses
gênero e sexualidade: subsídios
para reflexão inicial e continuada mesmos sujeitos cumpram papéis que a sociedade impõe a cada um
de professores(as). São Paulo, dentro de seu sistema de valores.
2014. Dissertação (Mestrado
em Educação) - Faculdade Para Vygotsky, realidade e fantasia se ligam por meio de quatro leis.
de Educação da Universidade Vejamos a seguir cada uma delas.
de São Paulo. Disponível em:
https://teses.usp.br/teses/ 1ª Lei – o que subordina a atividade imaginativa: composição de
disponiveis/48/48134/tde- elementos emprestados da realidade.
01122014-112932/publico/.
Acesso em: 29 maio 2020. A imaginação e a criação não aparecem do nada, de algo inexisten-
te, mas sim de experiências vividas. É por meio de uma composição
entre elementos vividos e fantasiados que a imaginação cria algo novo.
Assim ocorre na criação de mitos, lendas, contos, livros de fantasia ou
de aventura (VYGOTSKY, 2012, p. 30).

Logo, a criatividade imaginativa tem relação direta com as experiên-


cias vividas, as quais se constituem como elemento primordial para a
fantasia. Assim, segundo Vygotsky (2012, p. 33):
A conclusão pedagógica que podemos tirar daqui é a seguin-
te: se queremos criar bases suficientemente sólidas para a sua

106 Literatura Infantil


atividade criativa, devemos considerar a necessidade do alar-
gamento da experiência da criança. Quanto mais a criança viu,
ouviu e experimentou, mais sabe e assimila. Quanto mais ele-
mentos da realidade a criança tiver à disposição na sua experiên-
cia mais importante e produtiva, em circunstâncias semelhantes,
maior será a sua atividade imaginativa.

Por isso, é tão importante o acesso tanto a brincadeiras que


permitam o uso da imaginação como a experiências concretas. Além
disso, vê-se a responsabilidade da escola (e do governo, no caso
brasileiro) de proporcionar o contato com livros diversos que levem a
uma consciência crítica.

2ª Lei – subordinação da imaginação a experiências alheias.


Esta lei é um tanto complexa, pois de certa forma guarda estreita
relação com a primeira. Na primeira lei, as experiências pessoais le-
vam a uma possibilidade imaginativa, derivada dos elementos reais.
Na segunda, também. A diferença entre elas está no que Vygotsky diz
ser o “resultado da imaginação”. Se na primeira temos o conto de fadas
como produto, na segunda teremos um produto real.
Um bom exemplo para ilustrar seria a capacidade de nos imaginar-
mos dentro de um momento histórico, como estarmos a bordo de uma
das naus portuguesas no período da conquista do Brasil por Portugal.
Mesmo que você já tenha experimentado estar em um barco, nunca
o fez em uma nau como as utilizadas em 1500. Tampouco esteve com
aquelas pessoas, roupas e com o pensamento da época.

Porém, a segunda lei de ligação entre realidade e imaginação nos


diz que se tivermos o conhecimento para tanto é possível imaginar,
mesmo sem uma experiência prévia. Ela se dá pela socialização do co-
nhecimento, ou pelas experiências de outra pessoa que esteve na nau
e nos contou, como na Carta de Caminha, em que Pero Vaz de Caminha
narra a conquista.

Por conseguinte, a imaginação só é possível por meio do contato


com os outros e com suas experiências. Para Vygotsky (2012, p. 35-36):
Neste sentido, a imaginação adquire uma função muito importan-
te no comportamento e no desenvolvimento humanos, transfor-
ma-se em meio para o alargamento da experiência do homem,
porque, deste modo, ele poderá imaginar o que nunca viu; po-
derá, a partir da descrição do outro, representar para si também
a descrição daquilo que na sua própria experiência pessoal não
existiu, o que não está limitado pelo círculo e fronteiras estritas da

Temas da Literatura Infantil 107


sua própria experiência, mas pode também ir para além das suas
fronteiras, assimilando, com a ajuda da imaginação, a experiência
histórica e social de outros.

Desta maneira, enquanto na primeira lei precisamos da experiência


para imaginar, na segunda, imaginar é a própria experiência.

3ª Lei – conjunção emocional.

As emoções por nós sentidas se transformam em imagens e estas


alteram nossa percepção do mundo. Se estamos tristes é bem provável
que uma situação neutra se pareça muito ruim quando em outro mo-
mento seria normal, por exemplo.

Da mesma forma a imaginação e a fantasia podem influenciar na


criação de imagens que se ligam a estados emocionais. Assim, ao ler-
mos algo, aquilo nos toca e as emoções se ligam ao que estamos lendo,
gerando uma percepção única.

É muito fácil identificar a conjunção emocional na criação de crian-


ças pequenas. O medo de monstros (criaturas fantásticas) é facilmen-
te identificado – ou o medo do próprio escuro. Assim, uma imagem
da realidade (monstro ou escuro) se liga a uma emoção gerando uma
criação imaginária.

Quantas vezes não ouvimos um barulho à noite, um estalar nos canos,


por exemplo, e nossas emoções automaticamente criam um monstro,
um espírito ou uma pessoa invadindo a casa? Da mesma maneira, rea-
lidade e emoção se combinam para formar nossos devaneios e sonhos!

4ª Lei – construção de algo completamente novo.

Por vezes a imaginação, embasada nas experiências individuais e co-


letivas bem como nas emoções, pode dar origem a elementos completa-
mente diferentes, tornando-se realidade. Assim se criam, por exemplo,
a literatura de ficção científica que, a seu modo, também influencia na
descoberta de máquinas, de processos modernos. Mas não apenas na
literatura essa imaginação funciona, ela proporciona a construção de
carros, telefones, computadores, ou até mesmo da própria roda.

Podemos perceber então que a imaginação deve ser construída e


incentivada ao longo da vida para que possa propiciar produtos reais,
como na quarta lei, sejam esses produtos objetos inovadores, contos
ou soluções para a vida diária. A imaginação para a criança, então, se
torna uma forma de interpretar o mundo, e a fantasia segue aliada a

108 Literatura Infantil


esse processo, pois sua importância “consiste em seu poder de simbo-
lizar e ‘resolver’ os conflitos psíquicos inconscientes que ainda dizem
respeito às crianças de hoje” (CORSO; CORSO, 2006, p. 16).
Os contos que aparentemente não correspondem a questões
do mundo atual interessam à criança, sempre aberta a todas as
possibilidades da existência e capaz de identificar-se com as per-
sonagens mais bizarras e as narrativas mais extravagantes. Como
a criança ainda não delimitou as fronteiras entre o existente e o
imaginoso, entre o verdadeiro e o verossímil (fronteiras estabele-
cidas, em parte, pelo recalque das representações inconscientes),
todas as possibilidades da linguagem lhe interessam para compor
Vídeo
o repertório imaginário de que ela necessita para abordar os enig-
mas do mundo e do desejo. (CORSO; CORSO, 2006, p. 17) Os contos de fadas normal-
mente não apresentam a figura
Como a criança ainda está em crescente formação, não tem ainda materna ou, se apresentam, ela
é representada pela madrasta.
seu julgamento fechado para o mundo, como os adultos. Por isso mes-
Essa situação é importante
mo a literatura age como mediadora na construção de um repertório para o desenvolvimento da
imaginário, como apontam os autores na citação acima, por meio do autonomia da criança. Sobre
esse assunto, assista ao vídeo
qual serão decifrados os enigmas do mundo e as vontades infantis.
A importância dos contos de
Algumas histórias apontam para o descobrimento do amor paren- fadas para crianças, do canal
Sua Psiquê, que explica melhor
tal, como João e Maria e O patinho feio. São narrativas que confrontam o porquê da omissão da figura
a criança com seu sentimento de “estranheza” em relação ao seu lugar, materna nos contos de fadas.
Disponível em: https://www.
auxiliando-a a redescobrir seu papel na família e no mundo.
youtube.com/watch?v=x_q3oj-
Já histórias de crianças perdidas ou expulsas de casa, como Pinó- vbYt8. Acesso em: 1 jun. 2020.
quio e Peter Pan, ilustram a difícil jornada de sair de casa em direção
ao mundo, jornada que será enfrentada pelas crianças, primeiramente
pela necessidade de ir à escola – um lugar estranho de sua casa – e,
posteriormente, à sociedade.

E não só o papel da criança, mas também o dos pais em contos Atividade 3


como Cinderella, Branca de Neve e O Mágico de Oz. São histórias que
Para você, qual é a importância
trabalham com figuras maternas e paternas, logicamente sempre este- da fantasia no desenvolvimento
reotipadas, mas que servem à psiquê infantil. emocional da criança?

Dessa forma, a literatura ajuda a criança a nomear o que antes não


conseguia, sejam sentimentos ou sejam ações a serem tomadas no ca-
minho do seu desenvolvimento.

Conforme Bettelheim (2002, p. 13),


Para que uma estória realmente prenda a atenção da criança,
deve entretê-la e despertar sua curiosidade. Mas para enriquecer
sua vida, deve estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver

Temas da Literatura Infantil 109


seu intelecto e a tornar claras suas emoções; estar harmoniza-
da com suas ansiedades e aspirações; reconhecer plenamente
suas dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir soluções para os
problemas que a perturbam. Resumindo, deve de uma só vez re-
lacionar-se com todos os aspectos de sua personalidade – e isso
sem nunca menosprezar a criança, buscando dar inteiro crédito
a seus predicamentos e, simultaneamente, promovendo a con-
fiança nela mesma e no seu futuro.

Portanto, a literatura infantil tem papel fundamental no desenvol-


vimento emocional da criança, pois possibilita de modo seguro a cria-
ção de experiências e confrontos com situações reais, ainda que não
presentes na sua vida e mesmo que embaladas em uma roupagem de
fantasia ou de aventuras.

Vivemos em um mundo complexo, mais complexo ainda para a


criança que, afinal, precisa desbravar muita coisa na vida. A literatura é
refúgio e confronto ao mesmo tempo, é porto seguro para um desen-
volvimento pleno.

Livro
Os livros A psicanálise dos contos de fadas e Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis trabalham o efeito da
fantasia e dos contos de fadas na psiquê infantil com a análise de diversas histórias. São livros de cabeceira para
quem se interessa pelo assunto!

BETTELHEIM, B. São Paulo: Paz CORSO, D.; CORSO, M. Porto


e Terra, 2002. Alegre: Artmed, 2006.

CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Com este capítulo, tentamos passar as bases de como se processa a
fantasia para o desenvolvimento da psiquê humana. Também nos embre-
nhamos em reconhecer que a estrutura mitológica permeia nossa imagi-
nação e que possui uma estrutura reconhecível em diferentes narrativas.
Dessa forma, esperamos que você aprofunde seus conhecimentos com
as leituras indicadas e se aventure cada vez mais na busca por conhecer
a importância do equilíbrio entre fantasia e realidade na literatura infantil.

110 Literatura Infantil


REFERÊNCIAS
BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
BOYER, R.; TYMN, M.; ZAHORSKI, K. Fantasy literature: a core collection and reference guide.
New Providence; New Jersey: R.R. Bowker Co., 1979.
CAMPBELL, J.; MOYERS, B. O poder do mito. São Paulo: Pallas Athena, 1988.
CAMPBELL, J. O herói de mil faces. Trad. de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento,
2005.
CLUTE, J.; GRANT, J. The encyclopedia of fantasy. New York: St. Martin’s Press, 1999.
CORSO, D.; CORSO, M. Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre:
Artmed, 2006.
ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. de Hildegard Feist. São Paulo: Cia das
Letras, 1994.
ENDE, M. A história sem fim. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.
TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. Trad. de Ronald Kyrmse. São Paulo: Conrad, 2006.
SILVA, D. N. H. Imaginação, criança e escola. São Paulo: Summus, 2012.
VYGOTSKY, L. S. Imaginação e criatividade na infância. Lisboa: Dinalivro, 2012.

GABARITO
1. A literatura infantil auxilia na formação da identidade da criança e, por isso mesmo,
se apresentamos sempre a mesma imagem e os mesmos comportamentos, a criança
crescerá identificando tais imagens e comportamentos como únicas verdades. Por
isso, é preciso colocar em cena heroínas e heróis negros e indígenas, representantes
de classes sociais mais baixas, situações e culturas distintas, para que a criança com-
preenda que vivemos em um mundo diversificado.

2. O mito é constituído das narrativas mais primordiais para os seres humanos, narrati-
vas que tentam explicar a formação do mundo e da própria espécie humana. Assim,
o mito carrega em si elementos que correspondem às situações enfrentadas para o
desenvolvimento infantil e sua entrada na vida adulta. A mitologia traz histórias de
ritos de passagem e de resolução de conflitos internos do ser humano. Por isso, é uma
estrutura muito utilizada na literatura e, em especial, na literatura infantil, pois coloca
em cena passos que são característicos da espécie humana e que estão incrustados
na nossa psiquê.

3. A fantasia permite que a criança trabalhe conteúdos relativos às suas inseguranças,


seus medos e suas dificuldades de uma forma segura, pois se vê representada na his-
tória dos personagens. Assim, ela contribui para que a criança vença as etapas de seu
desenvolvimento de maneira saudável, criando autonomia e segurança para adentrar
no mundo adulto quando chegar o momento.

Temas da Literatura Infantil 111


5
Literatura infantil
no currículo
“Bichano de Cheshire”, começou, muito tímida, pois não estava nada
certa de que esse nome iria agradá-lo; mas ele só abriu um pouco
mais o sorriso. “Bom, até agora ele está satisfeito”, pensou e continuou:
“Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora
daqui?”
“Depende bastante de para onde quer ir”, respondeu o Gato.
“Não me importa muito para onde”, disse Alice.
“Então não importa que caminho tome”, disse o Gato.
Lewis Carroll, em Alice no País das Maravilhas

A literatura infantil, durante muito tempo, foi relegada a status de


arte menor por críticos e teóricos. Esse pensamento refletiu no ensi-
no da literatura, inserindo-a como prática para aprimoramento de lei-
tura, sem muita consideração pelo fazer literário e estético das obras.
Isso foi se modificando com políticas públicas educacionais que
passam, gradualmente, a ver a necessidade da literatura e da arte
como formadoras do ser humano e digna de trabalho específico.
Assim, neste capítulo veremos as legislações educacionais bra-
sileiras que tratam do currículo e tentaremos identificar o papel
da literatura infantil nesses documentos, investigando como essas
orientações e normas se concretizam nos livros didáticos e nas ati-
vidades com a literatura.

5.1 Literatura infantil na legislação


educacional brasileira
Vídeo
Sabemos que a literatura é um instrumento de formação do leitor
e da identidade infantil. Desse modo, nada mais natural que sua inser-
ção nos currículos escolares. Porém, também sabemos que muitos não
creem na importância da literatura para a formação de um indivíduo,
que deverá trabalhar no mundo real e com funções práticas.

112 Literatura Infantil


Os que criticam muitas vezes consideram a literatura como fuga
Saiba mais
de uma realidade que deveria ser imposta à criança desde cedo, a
Somos levados a crer que a vida
verdade monetária, de que o único fim da vida é o trabalho e a geração é trabalhar para consumir cada
de lucro. Mas esse não é o fim do ser humano, não é mesmo? Temos vez mais. Você já se deu conta
mais objetivos do que meramente consumir e pagar contas – ou pelo de quantas coisas você compra
sem necessidade? Pois é, e esse
menos deveríamos ter. “treino” começa na infância! Por
isso, há iniciativas que tentam
Precisamos dar sentido à nossa vida e ao nosso mundo, tornando
combater a propaganda de
nossa existência única e completa. Entre tantos elementos que nos au- produtos para crianças, tentando
xiliam nessa completude está a arte e, consequentemente, a literatura. diminuir o consumismo infantil,
tão enfatizado pelas televisões
Então, quando falamos de um lugar para a literatura no currículo, com programação para crianças.
precisamos entender que esse lugar é também uma construção políti- Nessa esteira, a iniciativa de
monitorar a publicidade infantil
ca, pois depende de legislações que afirmem a necessidade do ensino foi levada a cabo no site Criança
dessa arte, entre outras tantas áreas. e Consumo. Lá, você encontra
guias e notícias sobre o consu-
Por isso, esse lugar foi sendo construído ao longo de diversos go- mismo na infância. Vale a pena
vernos e políticas educacionais, as quais se relacionam com a Lei de conferir. Disponível em: www.
criancaeconsumo.org.br. Acesso
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/1996) – também
em: 1 jun. 2020.
conhecida como LDB –, enquanto marco na legislação educacional
brasileira.

Em seu título primeiro, a LDB relata de modo geral o conceito de


educação que permeia a lei:
TÍTULO I
Da Educação
Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se de-
senvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho,
nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e
organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.
§ 1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, pre-
dominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.
§ 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho
e à prática social. (BRASIL, 1996)

A LDB reconhece a educação enquanto atividade que permeia todas


as esferas da sociedade, mas, logicamente, rege sobre a educação que
se passa nas instituições de ensino, indicando que ela deve estar ligada
tanto ao mundo do trabalho, quanto à prática social.

Se pensarmos, em um primeiro momento, na leitura, veremos que


ela está inserida em ambos os mundos – do trabalho e da prática social
–, pois é com a leitura que daremos sentido àquilo que nos rodeia. Já
a literatura pode estar inserida no mundo do trabalho (afinal, aqui es-

Literatura infantil no currículo 113


Saiba mais tamos discutindo literatura como forma de atividade de ensino, que é,
A educação possui diversos também, uma prática profissional), mas está primordialmente ligada à
problemas (e alguns acertos prática social.
também), mas é unânime entre
teóricos da área que o grande Assim, a LDB, logo em seu primeiro título, embora não traga a literatu-
mal dos sistemas educacionais ra explicitamente, prevê sua obrigatoriedade enquanto gênero atrelado à
de diversos países são as
avaliações padronizadas, como prática social. Seguindo em frente na Lei 9.394/1996, ainda encontraremos
o Exame Nacional do Ensino a literatura indiretamente em muitos trechos, como no artigo terceiro:
Médio (ENEM), por exemplo. O
problema dessas avaliações é TÍTULO II
que elas balizam o ensino não Dos Princípios e Fins da Educação Nacional
para o verdadeiro aprendizado e Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes
para a curiosidade cientifica- princípios:
mente embasada, mas apenas […]
para passar em uma prova.
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura,
Assim, os currículos acabam
sendo levados para o que será o pensamento, a arte e o saber;
cobrado no exame, e não para […]
o que o aluno deveria conhecer IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;
e experimentar para construir […]
um futuro que seja válido para
IX - garantia de padrão de qualidade;
si. Para se aprofundar nessa
discussão, leia a entrevista com X - valorização da experiência extra-escolar;
um professor finlandês ao site XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas
Nova Escola. Disponível em: sociais.
https://tinyurl.com/y8w2mslf. XII - consideração com a diversidade étnico-racial. (Incluído pela
Acesso em: 1 jun. 2020. Lei nº 12.796, de 2013). (BRASIL, 1996)

Por meio da literatura, o aluno tem acesso à liberdade de aprender


cultura e arte, construindo respeito para com essa liberdade e maior
tolerância em relação a diferentes culturas e formas de pensar. Ela
também é uma prática que extrapola o ambiente escolar, fazendo uma
ponte entre escola e experiências extraescolares e de práticas sociais.
Vídeo Além disso, a literatura permite ter contato com a diversidade étnico-
Um dos sistemas educacionais -racial, dentro de um sistema que garanta um padrão de qualidade.
que têm alcançado ótimos
Para a educação infantil, a literatura entra como fator de desenvol-
resultados e reconhecimento
mundial é o da Finlândia. Para vimento dos aspectos psicológicos, sociais e intelectuais, conforme o
saber mais, assista ao vídeo artigo 29:
Sistema educacional, escola na
Finlândia: uma nova visão na Seção II
educação c/ Michael Moore, no Da Educação Infantil
canal Protetores da Infância e Art. 29. A educação infantil, primeira etapa da educação básica,
Família. Disponível em: youtu. tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de
be/dHfjfIslm4s. Acesso em: 1
até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelec-
jun. 2020.
tual e social, complementando a ação da família e da comuni-
dade. (Redação dada pela Lei n. 12.796, de 2013). (BRASIL, 1996)

114 Literatura Infantil


Já para o ensino fundamental, a literatura participa tanto nos pro-
cessos de leitura e aprendizado escolares quanto na compreensão do
mundo que rodeia o aluno, seus valores e manifestações artísticas,
bem como o coloca em contato com outros mundos distantes do seu,
desenvolvendo a solidariedade e a tolerância.
Seção III
Do Ensino Fundamental
Art. 32. O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9
(nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis)
anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão,
mediante: (Redação dada pela Lei nº 11.274, de 2006)
I - o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como
meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo;
II - a compreensão do ambiente natural e social, do sistema polí-
tico, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamen-
ta a sociedade;
III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo
em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a forma-
ção de atitudes e valores;
IV - o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solida-
riedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a
vida social. (BRASIL, 1996)

Visando a qualidade do currículo e o cumprimento dos preceitos es-


tabelecidos na LDB, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para
o ensino fundamental foram redigidos em 1997, norteando a constru-
ção de currículos, bem como a produção de materiais didáticos e de
formação de professores, entre outros. Os PCNs são distribuídos em
10 volumes representando áreas e temas abrangentes, funcionando
também como orientação para a prática pedagógica.

Além dos conteúdos, dos históricos de cada área e dos objetivos


para a formação integral dos alunos, os PCNs trouxeram critérios de Vídeo
avaliação, isto é, padrões para observação da progressão do aluno,
Para compreender melhor o
sendo que a avaliação deve ser a base para se estabelecer as melhores que são os PCNs para a Língua
estratégias de ensino. Portuguesa, assista ao vídeo Re-
sumo dos Parâmetros Curriculares
Assim, os PCNs de Língua Portuguesa trouxeram a visão do trabalho de Língua Portuguesa - Anos
de alfabetização, leitura e escrita por meio de textos e da prática social, Iniciais, do canal Educação
Futuro, com um resumo dos seus
reorganizando a forma como se trabalhava a língua na escola. Nesse pontos principais. Disponível em:
documento, a literatura já passa a ter um maior destaque, ganhando youtu.be/SGLgBp_zX5Q. Acesso
uma pequena seção “A especificidade do texto literário” que, embora em: 1 jun. 2020.

tímida, amplia os holofotes sobre essa arte.

Literatura infantil no currículo 115


Nesta seção, podemos ver que o significado dado à literatura tam-
bém se atualiza, mesmo que ainda voltado ao reconhecimento da for-
ma literária como aquisição de conhecimentos, sem tocar diretamente
no valor estético e na importância dessa arte para a formação do sujei-
to, e não apenas do leitor.
A questão do ensino da literatura ou da leitura literária envolve,
portanto, esse exercício de reconhecimento das singularidades e
das propriedades compositivas que matizam um tipo particular
de escrita. Com isso, é possível afastar uma série de equívocos
que costumam estar presentes na escola em relação aos textos
literários, ou seja, tratá-los como expedientes para servir ao en-
sino das boas maneiras, dos hábitos de higiene, dos deveres do
cidadão, dos tópicos gramaticais, das receitas desgastadas do
“prazer do texto”, etc. Postos de forma descontextualizada, tais
procedimentos pouco ou nada contribuem para a formação de
leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades,
os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literá-
rias. (BRASIL, 1997, p. 30)

O interessante é notar que já existe esse movimento de compreen-


der a literatura infantil como maior do que um veículo para o ensino de
valores, maior que uma leitura paradidática, acompanhante de outro
conteúdo que possua mais valor para a educação. Com os PCNs, a lite-
ratura ganha um olhar mais acurado sobre sua composição e lingua-
gem próprias.

Além dos PCNs, ainda tivemos a construção do Referencial Curricular


Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) em 1998. O RCNEI é dividido
em 3 volumes e integra os PCNs, sendo específico para orientar a
educação infantil. Ele guia os objetivos, os conteúdos e as orientações
pedagógicas para o trabalho de qualidade nessa etapa.

Seus volumes se dividem em Introdução; Formação Pessoal e Social


e Conhecimento de Mundo. De modo específico, somente no volume
3 temos a citação da literatura como componente de trabalho na edu-
cação infantil.

Assim, para o RCNEI,


A leitura de histórias é um momento em que a criança pode co-
nhecer a forma de viver, pensar, agir e o universo de valores,
costumes e comportamentos de outras culturas situadas em
outros tempos e lugares que não o seu. A partir daí ela pode
estabelecer relações com a sua forma de pensar e o modo de

116 Literatura Infantil


ser do grupo social ao qual pertence. As instituições de educação
infantil podem resgatar o repertório de histórias que as crianças
ouvem em casa e nos ambientes que frequentam, uma vez que
essas histórias se constituem em rica fonte de informação sobre
as diversas formas culturais de lidar com as emoções e com as
questões éticas, contribuindo na construção da subjetividade e
da sensibilidade das crianças. (BRASIL, 1998, p. 143) Atividade 1
Fica clara a maior preocupação com a inserção da literatura en- Qual é a visão da LDB e dos PCNs
quanto forma de conhecer cenários diferentes de sua realidade, mas sobre o ensino de literatura?

o documento, assim como os PCNs para o ensino fundamental, ainda


não amplia o escopo de trabalho para a formação do sujeito e culti-
vo da imaginação. Ambos os documentos trabalham ainda na visão de
que a literatura é uma auxiliar no aprendizado da leitura e da escrita,
com aquisição de conhecimento de diferentes culturas.

Tantos os PCNs quanto o RCNEI trazem exemplos de práticas como


forma de orientar e nortear o trabalho dos educadores, na tentativa
de garantir um padrão de qualidade em todo o território. Porém são
documentos que não possuem obrigatoriedade de aplicação, servem
como consulta aos objetivos mais amplos pensados para a educação.

Ainda na tentativa de promover uma regularização na qualidade do


ensino ao longo de todo o território brasileiro, e utilizando a LDB, os
PCNs e o RCNEI como base, foram discutidas por vários anos e promul-
gadas em 2010 as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação
Básica, ou DCNs (Resolução CNE 04/2010).

As DCNs objetivam:
I – sistematizar os princípios e diretrizes gerais da Educação Bási-
ca contidos na Constituição, na LDB e demais dispositivos legais,
traduzindo-os em orientações que contribuam para assegurar a
formação básica comum nacional, tendo como foco os sujeitos
que dão vida ao currículo e à escola;
II – estimular a reflexão crítica e propositiva que deve subsidiar a
formulação, execução e avaliação do projeto político-pedagógico
da escola de Educação Básica;
III – orientar os cursos de formação inicial e continuada de profis-
sionais – docentes, técnicos, funcionários – da Educação Básica,
os sistemas educativos dos diferentes entes federados e as esco-
las que os integram, indistintamente da rede a que pertençam.
(BRASIL, 2013, p. 7)

Literatura infantil no currículo 117


Dessa forma, as DCNs têm por objetivo garantir o acesso igualitário
de conteúdos, mas permitindo que cada região e local faça alterações
Vídeo de acordo com suas especificidades, para que todos os cenários
possam ser contemplados.
Para compreender as diferenças
entre PCN, DCN e BNCC, acesse o Logo, as DCNs orientam quanto à construção das propostas peda-
vídeo Diferenças entre BNCC, PCN
e Diretrizes Curriculares (Papo de gógicas de cada escola ou sistema de ensino. Não prevê engessamento
Educador), do canal Tuneduc, da estrutura curricular, mas uma base para a construção de currículos
com os comentários sobre os que possam ampliar o escopo de conhecimentos do aluno e equipa-
três documentos. Disponível em:
youtu.be/T1ztHC8f2Os. Acesso rá-lo com alunos de regiões distintas da sua. Enquanto os PCNs foram
em: 1 jun. 2020. uma orientação para a elaboração curricular, as DCNs se estabelecem
como normas para um currículo mínimo.

Quanto ao trabalho com a literatura no currículo da educação infantil,


o documento já traz a necessidade de espaços específicos de comparti-
lhamento de leituras enquanto trabalho de diversidade artística e cultural.
Também é preciso haver a estruturação de espaços que facilitem
que as crianças interajam e construam sua cultura de pares, e fa-
voreçam o contato com a diversidade de produtos culturais (livros
de literatura, brinquedos, objetos e outros materiais), de manifesta-
ções artísticas e com elementos da natureza. (BRASIL, 2013, p. 91)

Em relação ao período da alfabetização, compreendido até o 3º ano


do ensino fundamental, as Diretrizes trazem a necessidade de explo-

Livro ração das linguagens artísticas, ainda voltada para o estudo de suas
formas e visando uma ampliação de repertório escolar:
Qualquer profissional que
se envolva com a educa- A escola deve adotar formas de trabalho que proporcionem maior
ção deve ter conheci-
mobilidade às crianças na sala de aula, explorar com elas mais
mento sobre a legislação
educacional. Uma ótima intensamente as diversas linguagens artísticas, a começar pela
obra para ampliar seus literatura, utilizar mais materiais que proporcionem aos alunos
conhecimentos nessa oportunidade de racionar manuseando-os, explorando as suas ca-
área é o livro Sistemas de
ensino: legislação e política
racterísticas e propriedades, ao mesmo tempo em que passa a sis-
educacional para a edu- tematizar mais os conhecimentos escolares. (BRASIL, 2013, p. 121)
cação básica. Essa obra
faz um resumo de todas Ao longo do documento, a literatura surge em relação estreita com
as políticas e legislações
o trabalho a respeito de cultura indígena e afro-brasileira, sem ainda
educacionais obrigató-
rias para compreender muita definição em relação à sua função. Entretanto, as diretrizes esta-
o sistema educacional
belecem como normas a aquisição de livros de literatura infantil pelo
brasileiro.
governo para compor acervo e possibilitar acesso a obras de qualidade.
SOARES, K. C. D. Curitiba:
Intersaberes, 2017. Assim, a LDB, juntamente à Constituição Federal de 1988, continua
sendo o documento máximo de regulação do ensino no Brasil, tendo
como auxiliares os PCNs e as DCNs na construção de currículos que

118 Literatura Infantil


garantam acesso a um número mínimo de conteúdos em todos os es-
tados e para todos os cenários brasileiros.

No entanto, as DCNs ainda são preocupações com melhorias para


a educação, em um sentido mais amplo e teórico. Assim, foi necessário
um grande esforço para a concretização da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), que operacionaliza as diretrizes para garantir a
qualidade no ensino brasileiro!

5.2 BNCC e literatura infantil


Vídeo Tentando dar materialidade aos dispostos nos DCNs, a BNCC sofreu
grandes transformações e discussões ao longo do
tempo para que fosse aprovada. Ainda assim, não Vídeo
está consolidada e poderá sofrer alterações, Assista ao vídeo Qual é o papel
especialmente em relação ao ensino médio. da BNCC?, do canal Movimento
pela Base Nacional Comum,
Entretanto, consideraremos a homologação de sobre o papel da BNCC, para
entender melhor o porquê de
2018 para analisar sua influência nos conteúdos
necessitarmos de um currículo
que trabalhem com a literatura infantil no currí- nacional comum. Disponível
culo. Afinal, essa é a versão oficial para educação em: youtu.be/0_Ou-JqbWTM.
Acesso em: 1 jun. 2020.
infantil e ensino fundamental no momento da es-
crita deste livro.

Com base na Constituição Federal e na LDB, a BNCC trabalha sobre dois grandes
pilares:
1. As competências e as diretrizes devem ser comuns a todos os alunos.
2. Os currículos podem ser diversos.

Assim, os currículos estão subordinados às competências, isto é,


deve ser dado maior peso para a aquisição das competências e das
habilidades. Dessa forma, a Base (assim como os outros documentos
norteadores) define o essencial que o aluno deve adquirir ao longo de
sua jornada escolar, em especial, quais as competências essenciais, e
não cada conteúdo específico obrigatório a ser previsto no currículo,
atendendo ao disposto no art. 26 da LDB:
os currículos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do
Ensino Médio devem ter base nacional comum, a ser comple-
mentada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento
escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características

Literatura infantil no currículo 119


regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos
educandos. (BRASIL, 1996)

Assim, a BNCC não engessa o currículo, como é muitas vezes repe-


tido por alguns estudiosos da área. O que ela faz é estabelecer a aqui-
sição mínima de competências necessárias ao aluno em cada etapa da
educação, deixando espaço para que as peculiaridades e característi-
cas locais possam ser contempladas no currículo.

No âmbito da BNCC, e para diversas instituições internacionais,


as competências aparecem como elemento central na discussão so-
bre as políticas e avaliações educacionais. Assim, a Base compreende
a competência como os saberes necessários (conhecimentos, valores,
atitudes e habilidades) além do saber fazer, isto é, a capacidade de em-
pregar esforços para mobilizar esses saberes.

A BNCC, então, atua na educação integral, compreendendo-a como


a necessidade de
visar à formação e ao desenvolvimento humano global, o que impli-
ca compreender a complexidade e a não linearidade desse desen-
volvimento, rompendo com visões reducionistas que privilegiam ou
a dimensão intelectual (cognitiva) ou a dimensão afetiva. Significa,
ainda, assumir uma visão plural, singular e integral da criança, do
adolescente, do jovem e do adulto – considerando-os como sujei-
tos de aprendizagem – e promover uma educação voltada ao seu
acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas
singularidades e diversidades. Além disso, a escola, como espaço
de aprendizagem e de democracia inclusiva, deve se fortalecer na
prática coercitiva de não discriminação, não preconceito e respeito
às diferenças e diversidades. (BRASIL, 2018a, p. 14)
Vídeo Logo, a educação integral prevê um entendimento plural do ser hu-
O vídeo Escola indígena em SP mano e da sociedade, permitindo maior inserção da literatura infantil
alia currículo regular à cultura no desenvolvimento humano global.
tradicional, do canal Instituto
Claro, traz uma visão sobre a Cada escola possui (e deve garantir), portanto, a liberdade para pro-
educação indígena e sua relação
por as atividades pedagógicas, os projetos, os espaços e as formações
com as legislações educacionais
brasileiras. Assista ao vídeo para que estejam de acordo com sua realidade cultural, social, étnica ou lin-
compreender como a escola guística, como no caso da educação indígena.
pode e deve garantir o acesso e
a proteção das culturas dentro A BNCC apresenta uma estrutura própria, subdividida entre as eta-
do território nacional. Disponível pas da educação básica. Entretanto, há 10 competências gerais, apre-
em: youtu.be/_QQFryOFl7I.
Acesso em: 1 jun. 2020. sentadas na Figura 1, que devem ser desenvolvidas ao longo de todos
os anos escolares.

120 Literatura Infantil


Figura 1
Competências gerais da BNCC

1 2 3 4 5

Tanahcon/Shutterstock
Valorizar e utilizar Exercitar a curiosidade Valorizar e fruir as Utilizar diferentes Compreender, utilizar
os conhecimentos intelectual e recorrer diversas manifestações linguagens – verbal e criar tecnologias
historicamente à abordagem própria artísticas e culturais, (oral ou visual-motora, digitais de informação
construídos sobre o das ciências, incluindo das locais às como Libras, e escrita), e comunicação
mundo físico, social, a investigação, a mundiais, e também corporal, visual, sonora de forma crítica,
cultural e digital reflexão, a análise participar de práticas e digital –, bem como significativa, reflexiva
para entender e crítica, a imaginação diversificadas da conhecimentos das e ética nas diversas
explicar a realidade, e a criatividade, para produção artístico- linguagens artística, práticas sociais
continuar aprendendo investigar causas, -cultural. matemática e científica, (incluindo as escolares)
e colaborar para elaborar e testar para se expressar e para se comunicar,
a construção de hipóteses, formular partilhar informações, acessar e disseminar
uma sociedade e resolver problemas experiências, ideias informações, produzir
justa, democrática e e criar soluções e sentimentos em conhecimentos,
inclusiva. (inclusive tecnológicas) diferentes contextos resolver problemas e
com base nos e produzir sentidos exercer protagonismo
conhecimentos das que levem ao e autoria na vida
diferentes áreas. entendimento mútuo. pessoal e coletiva.

6 7 8 9 10
Valorizar a diversidade Argumentar com base Conhecer-se, Exercitar a empatia, o Agir pessoal e
de saberes e vivências em fatos, dados e apreciar-se e cuidar diálogo, a resolução coletivamente
culturais e apropriar-se informações confiáveis, de sua saúde de conflitos e com autonomia,
de conhecimentos e para formular, negociar física e emocional, a cooperação, responsabilidade,
experiências que lhe e defender ideias, compreendendo-se na fazendo-se respeitar flexibilidade, resiliência
possibilitem entender pontos de vista e diversidade humana e promovendo o e determinação,
as relações próprias decisões comuns e reconhecendo suas respeito ao outro e tomando decisões com
do mundo do trabalho que respeitem e emoções e as dos aos direitos humanos, base em princípios
e fazer escolhas promovam os direitos outros, com autocrítica com acolhimento éticos, democráticos,
alinhadas ao exercício humanos, a consciência e capacidade para lidar e valorização da inclusivos, sustentáveis
da cidadania e ao seu socioambiental e o com elas. diversidade de e solidários.
projeto de vida, com consumo responsável indivíduos e de grupos
liberdade, autonomia, em âmbito local, sociais, seus saberes,
consciência crítica e regional e global, com identidades, culturas
responsabilidade. posicionamento ético e potencialidades,
em relação ao cuidado sem preconceitos de
de si mesmo, dos outros qualquer natureza.
e do planeta.

Fonte: Brasil, 2018a, p. 9-10.

Pelo esquema, percebemos que a literatura permeia todas as com-


petências gerais, podendo acompanhar o aluno ao longo de toda a
educação básica e de todas as competências a serem desenvolvidas.

A literatura possibilita a valorização de conhecimentos historica-


mente construídos, das manifestações artístico-culturais e de seus sa-

Literatura infantil no currículo 121


beres; o exercício da curiosidade intelectual, da empatia, da resolução
de conflitos e da cooperação; a utilização de diferentes linguagens e
tecnologias; a argumentação consciente; além de autoconhecimento,
autocuidado e consciência pessoal e coletiva.

Ou seja, a literatura infantil, de fato, não pode ser tratada apenas


como veículo para compreensão de uma linguagem artística própria,
mas como elemento propiciador de integração entre diferentes com-
petências e saberes.

Além das competências gerais, a Base traz as competências que de-


vem ser desenvolvidas em cada etapa de ensino. Assim, a educação
infantil é entendida enquanto uma etapa em que
as creches e pré-escolas, ao acolher as vivências e os conheci-
mentos construídos pelas crianças no ambiente da família e no
contexto de sua comunidade, e articulá-los em suas propostas
pedagógicas, têm o objetivo de ampliar o universo de experiên-
cias, conhecimentos e habilidades dessas crianças, diversifican-
do e consolidando novas aprendizagens, atuando de maneira
complementar à educação familiar – especialmente quando se
trata da educação dos bebês e das crianças bem pequenas, que
envolve aprendizagens muito próximas aos dois contextos (fami-
liar e escolar), como a socialização, a autonomia e a comunica-
ção. (BRASIL, 2018a, p. 36)

Desafio Portanto, a educação infantil não pode ser confundida com um tem-
O que você pensa sobre a po em que a criança será apenas cuidada/olhada por um adulto en-
importância da educação quanto os pais trabalham. Embora essa mentalidade venha mudando,
infantil no desenvolvimento
das crianças? Agora, que tal ainda é possível percebê-la tanto em pais quanto em governantes que
perguntar para pessoas que não não compreendem a necessidade dessa etapa.
sejam da área educacional e ver
o que elas pensam sobre essa A educação infantil tem grande peso no desenvolvimento da criança
etapa educacional? Para pensar e impacto nos anos escolares seguintes. Assim, como citado no trecho
o papel da etapa da educação
anterior, não é um espaço apenas de cuidado, mas de um cuidado qua-
infantil, assista ao diálogo com
a professora Maria Carmem lificado e que leva em consideração o desenvolvimento de habilidades
Barbosa. Disponível em: youtu. e competências essenciais para a criança.
be/iKD0NATbdUk. Acesso em: 1
jun. 2020.

122 Literatura Infantil


A BNCC traz, assim, 6 direitos da criança na educação infantil:

Figura 2
Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento na educação infantil

CONHECER-SE
construindo sua
CONVIVER com outras
identidade pessoal,
pessoas, linguagens,
BRINCAR com formas, social e cultural.
culturas e consigo
espaços, tempos,
mesmo.
pessoas, imaginação,
criatividade, corpo,
emoção e cognição. EXPRESSAR
necessidades,
emoções,
PARTICIPAR de sentimentos, dúvidas,
atividades e seus descobertas e
planejamentos, opiniões.
EXPLORAR a
materiais e linguagens,
cultura e a ciência
posicionando-se.
em suas diversas
manifestações.

Fonte: Adaptada pela autora com base em Brasil, 2018a, p. 38.

Dessa forma, a Base entende a criança como um ser capaz de observar,


questionar, realizar hipóteses e concluir realizando julgamentos sobre
os conhecimentos que se constroem na sua interação com o mundo.
Essa visão sobre as crianças na educação infantil pede do educador
maior intencionalidade na proposição das atividades, para que elas
possam reconhecer-se a si mesmas, e também em relação aos outros e
ao mundo. Reconhecimentos que “se traduzem nas práticas de cuidados
pessoais (alimentar-se, vestir-se, higienizar-se), nas brincadeiras, nas
experimentações com materiais variados, na aproximação com a
literatura e no encontro com as pessoas” (BRASIL, 2018a, p. 37).

Desse modo, a etapa da educação infantil é elaborada com base nos


seis Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento, e em seis Campos
de Experiência. Além disso, cada campo de experiência traz objetivos
específicos de aprendizagem e desenvolvimento para três faixas etá-
rias dentro dessa etapa. Assim, a estrutura da BNCC para a educação
infantil fica da seguinte forma:

Literatura infantil no currículo 123


Figura 3
Estrutura da Etapa de educação infantil na BNCC

EDUCAÇÃO INFANTIL

Direitos de aprendizagem e
desenvolvimento

Campos de experiências

Bebês Crianças bem pequenas Crianças pequenas


(0 – 1a6m) (1a7m – 3a11m) (4a – 5a11m)

Objetivos de aprendizagem e desenvolvimento

Fonte: BRASIL, 2018a, p. 25.

Assim, temos os direitos de aprendizagem que são categorias ma-


cro, as quais se aprofundam em cinco campos de experiência, a saber:

Figura 4
Cinco campos de experiência da aprendizagem

4
ESCUTA, FALA,

1 PENSAMENTO

O EU, O OUTRO E
3 E IMAGINAÇÃO

O NÓS
TRAÇOS, SONS,
CORES E FORMAS

2 5
CORPO, GESTOS E ESPAÇOS, TEMPOS,
MOVIMENTOS QUANTIDADES,
RELAÇÕES E
TRANSFORMAÇÕES

Fonte: BRASIL, 2018a.

124 Literatura Infantil


O primeiro campo diz respeito às interações e às relações entre os
indivíduos e também entre o indivíduo e a sociedade, construindo a
noção de coletividade. O segundo trabalha consciência corporal, sen-
sorial, espacial e rítmica. O terceiro insere a criança nas manifestações
Vídeo
artísticas e científicas. O quarto campo permite o desenvolvimento da
Para compreender melhor o pa-
comunicação e da participação oral. Por fim, o quinto campo dá compe- pel da base no ensino de Língua
tências para a compreensão do mundo físico e suas relações. Portuguesa, assista ao vídeo
intitulado Língua Portuguesa na
Assim, os campos de experiência permitem que os objetivos educa- BNCC, do canal Movimento pela
cionais possam ser divididos sem deixar nenhuma área de desenvolvi- Base Nacional Comum. Disponí-
vel em: youtu.be/xtnSjQXXnt8.
mento infantil de lado.
Acesso em: 1 jun. 2020.
Quanto aos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, vamos
nos atentar às experiências que dizem respeito à literatura infantil,
mesmo que esta possa fazer parte de todo o processo e se ligar a todos
os campos de experiência, com foco no campo de Escuta, Fala, Pensa-
mentos e Imaginação.

Os objetivos são normativas práticas para sabermos o que de fato


a criança precisa atingir em determinada idade dentro daquele campo
experiencial. Assim, a BNCC traz 93 objetivos específicos distribuídos
entre os 5 campos de experiência e as 3 faixas etárias.

Podemos selecionar, então, as seguintes habilidades a serem de-


senvolvidas pelas crianças em relação à literatura:

Quadro 1
Habilidades relacionadas com a literatura na etapa da educação infantil

Bebês Crianças bem pequenas Crianças pequenas

(EI02EF02) Identificar e criar dife- (EI03EF02) Inventar brincadei-


(EI01EF02) Demonstrar interesse
rentes sons e reconhecer rimas e ras cantadas, poemas e canções,
ao ouvir a leitura de poemas e a
aliterações em cantigas de roda e criando rimas, aliterações e rit-
apresentação de músicas.
textos poéticos. mos.

(EI02EF03) Demonstrar interesse


(EI01EF03) Demonstrar interesse e atenção ao ouvir a leitura de his-
ao ouvir histórias lidas ou conta- tórias e outros textos, diferencian- (EI03EF03) Escolher e folhear li-
das, observando ilustrações e os do escrita de ilustrações, e acom- vros, procurando orientar-se por
movimentos de leitura do adulto- panhando, com orientação do temas e ilustrações e tentando
-leitor (modo de segurar o porta- adulto-leitor, a direção da leitura identificar palavras conhecidas.
dor e de virar as páginas). (de cima para baixo, da esquerda
para a direita).

(Continua)

Literatura infantil no currículo 125


Bebês Crianças bem pequenas Crianças pequenas
(EI02EF04) Formular e responder (EI03EF04) Recontar histórias ou-
(EI01EF04) Reconhecer elemen-
perguntas sobre fatos da história vidas e planejar coletivamente ro-
tos das ilustrações de histórias,
narrada, identificando cenários, teiros de vídeos e de encenações,
apontando-os, a pedido do adul-
personagens e principais aconte- definindo os contextos, os perso-
to-leitor.
cimentos. nagens, a estrutura da história.

(EI01EF05) Imitar as variações de (EI02EF05) Relatar experiências e (EI03EF05) Recontar histórias ou-
entonação e gestos realizados fatos acontecidos, histórias ouvi- vidas para produção de reconto
pelos adultos, ao ler histórias e ao das, filmes ou peças teatrais assis- escrito, tendo o professor como
cantar. tidos etc. escriba.

(EI01EF07) Conhecer e manipular


(EI03EF06) Produzir suas próprias
materiais impressos e audiovi- (EI02EF06) Criar e contar histórias
histórias orais e escritas (escrita
suais em diferentes portadores (li- oralmente, com base em imagens
espontânea), em situações com
vro, revista, gibi, jornal, cartaz, CD, ou temas sugeridos.
função social significativa.
tablet etc.).

(EI03EF08) Selecionar livros e tex-


(EI01EF08) Participar de situações tos de gêneros conhecidos para a
de escuta de textos em diferentes (EI02EF07) Manusear diferentes leitura de um adulto e/ou para sua
gêneros textuais (poemas, fábu- portadores textuais, demonstran- própria leitura (partindo de seu re-
las, contos, receitas, quadrinhos, do reconhecer seus usos sociais. pertório sobre esses textos, como
anúncios etc.). a recuperação pela memória, pela
leitura das ilustrações etc.).

(EI02EF08) Manipular textos e


participar de situações de escu-
ta para ampliar seu contato com
diferentes gêneros textuais (par-
lendas, histórias de aventura, tiri-
nhas, cartazes de sala, cardápios,
notícias etc.).

Fonte: Adaptado pela autora com base em Brasil, 2018a, p. 49-50.

Na faixa etária de 0 a 1 ano e 6 meses, os professores devem de-


senvolver as habilidades de escuta de histórias e envolvimento com
elas, passando aos poucos ao reconhecimento de imagens ligadas à
narrativa.

Para crianças bem pequenas (de 1 ano e 7 meses até 3 anos e 11


meses), além das habilidades desenvolvidas na fase anterior, os pro-
fessores devem ampliar o interesse por ouvir histórias e estimular a
participação oral dos alunos com suas impressões, produções e ques-
tionamentos. Também devem ser estimulados a reconhecer outros gê-
neros textuais e manipular os livros físicos.

126 Literatura Infantil


Atividade 2
Crianças de 4 a 5 anos e 11 meses (crianças pequenas) necessitam
Qual é o papel da literatura
ter a atenção dos professores na produção de histórias orais, sejam infantil na educação literária
recontos ou criações, bem como estímulo à criatividade e à autonomia para o ensino fundamental 1?
de selecionar e manipular livros.
Vídeo
E assim, a criança chega ao ensino fundamental. A BNCC separa as
Compreenda como se deu a
duas fases dessa etapa e, como aqui estamos pensando a literatura construção da BNCC para a edu-
infantil, voltaremos nosso olhar apenas para a primeira fase: o ensino cação infantil. Para isso, acesse o
fundamental anos iniciais (1º a 5º ano). vídeo Educação Infantil na BNCC,
do canal Movimento pela Base
Essa fase se propõe a continuar a valorização da ludicidade na Nacional Comum. Disponível
em: youtu.be/gFU0YTvCH3c.
educação, garantindo que as experiências vividas na etapa anterior sejam
Acesso em: 1 jun. 2020.
ressignificadas e atuando progressivamente para a
sistematização do ensino. Logo, nos primeiros dois Figura 5
Estrutura da BNCC para ensino fundamental
anos, o grande destaque é a alfabetização enquanto
forma de expansão das práticas de linguagem e
EDUCAÇÃO BÁSICA
comunicação bem como de aumento da autonomia
e da sistematização da língua. COMPETÊNCIAS GERAIS DA
EDUCAÇÃO BÁSICA
No entanto, não só de alfabetização vivem os
anos iniciais do ensino fundamental. As relações
ENSINO FUNDAMENTAL
entre os sujeitos, a natureza, o mundo, as culturas,
a ciência e as manifestações culturais também se Áreas do conhecimento
ampliam e, aos poucos, devem abrir espaço para o
Componentes curriculares
ingresso nos anos finais, que solicitarão competên-
cias mais aprofundadas dos alunos, em especial, a
Anos Iniciais Anos Finais
autonomia. (1° ao 5° ano) (6° ao 9° ano)

Assim, a BNCC para o ensino fundamental se Língua Portuguesa

estrutura da forma apresentada na Figura 5.


Arte

Vemos pelo esquema que essa etapa é estru- Linguagens


Educação Física
turada em Áreas do Conhecimento (Linguagens;
Matemática; Ciências da Natureza; Ciências Hu- Língua Inglesa

manas e Ensino Religioso), as quais comportam


Matemática Matemática
os diferentes componentes curriculares. Todas
categorias com base nas 10 competências gerais Ciências da Natureza Ciências

que já vimos na Seção 5.2 deste capítulo.


Geografia

Assim, nos fixaremos na área de linguagens, Ciências Humanas


História
afunilando a busca pelo trabalho com a literatura
dentro do componente de Língua Portuguesa. Ensino Religioso Ensino Religioso

Fonte: Brasil, 2018a, p. 27.

Literatura infantil no currículo 127


Cada área do conhecimento possui competências específicas que de-
verão ser alcançadas ao longo de todo o ensino fundamental, são elas:

Figura 6
Competências específicas de linguagem para o ensino fundamental

Compreender as linguagens como construção humana, histórica, social e cultural,

1 de natureza dinâmica, reconhecendo-as e valorizando-as como formas de


significação da realidade e expressão de subjetividades e identidades sociais e
culturais.

Conhecer e explorar diversas práticas de linguagem (artísticas, corporais e linguísticas)

2 em diferentes campos da atividade humana para continuar aprendendo, ampliar suas


possibilidades de participação na vida social e colaborar para a construção de uma
sociedade mais justa, democrática e inclusiva.

Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita),

3 corporal, visual, sonora e digital – para se expressar e partilhar informações,


experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que
levem ao diálogo, à resolução de conflitos e à cooperação.

Utilizar diferentes linguagens para defender pontos de vista que respeitem o outro

4 e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo


responsável em âmbito local, regional e global, atuando criticamente frente a questões
do mundo contemporâneo.

Desenvolver o senso estético para reconhecer, fruir e respeitar as diversas

5
manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, inclusive aquelas
pertencentes ao patrimônio cultural da humanidade, bem como participar de
práticas diversificadas, individuais e coletivas, da produção artístico-cultural, com
respeito à diversidade de saberes, identidades e culturas.

Compreender e utilizar tecnologias digitais de informação e comunicação de

6 forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as
escolares), para se comunicar por meio das diferentes linguagens e mídias, produzir
conhecimentos, resolver problemas e desenvolver projetos autorais e coletivos.

Fonte: Brasil, 2018a, p. 65.

Percebe-se que as competências não são componentes ou habilida-


des específicas a serem aplicadas em sala de aula, mas que os conteú-
dos e atividades escolares devem levar à aquisição de habilidades que,
ao término da etapa de ensino fundamental, desenvolverão no aluno a
capacidade de realizar todas as competências descritas.

A Língua Portuguesa é sem dúvida o componente curricular mais


peculiar de todos, por sua especificidade e pela quantidade de conteú-
dos ligados a ele. Por isso mesmo, a BNCC a dividiu em eixos e campos
de atuação.

128 Literatura Infantil


Os eixos dizem respeito às práticas de linguagem, e são: oralidade,
leitura/escuta, produção de textos e análise linguística/semiótica. Ou
seja, temos aqui eixos que trabalharão diferentes formas de se praticar
a linguagem, seja falando e escutando, escrevendo, lendo ou interpre-
tando o código da língua.

Já os campos de atuação dizem respeito às esferas de atuação da


linguagem e da língua, sendo divididos em campo da vida pública, da
vida cotidiana, das práticas de estudo e pesquisa e artístico-literário.
Assim, a Base traz habilidades que são específicas na prática de estu-
do e pesquisa, como resumos, mapas mentais e outros, assim como
habilidades necessárias na vida pública, como notícias, legislações e
requerimentos. Passa também por habilidades do cotidiano, como re-
des sociais, receitas e brincadeiras, além de práticas artístico-literárias
e suas experiências estéticas.

Assim, vamos ver o lugar da literatura nos anos iniciais do ensino


fundamental dentro do eixo de leitura, por compreendermos que é
onde ocorrerá a maior interação com os livros infantis, embora, obvia-
mente, eles possam se relacionar com os outros eixos:

Quadro 2
Habilidades da BNCC que trazem o trabalho com literatura dentro dos anos iniciais do ensino
fundamental.

Campo 1º ano 2º ano 3º ano 4º ano 5º ano


(EF15LP01) Identificar a função social de textos que circulam em campos da vida social
dos quais participa cotidianamente (a casa, a rua, a comunidade, a escola) e nas mídias
impressa, de massa e digital, reconhecendo para que foram produzidos, onde circulam,
quem os produziu e a quem se destinam.
(EF15LP02) Estabelecer expectativas em relação ao texto que vai ler (pressuposições
antecipadoras dos sentidos, da forma e da função social do texto), apoiando-se em
seus conhecimentos prévios sobre as condições de produção e recepção desse texto, o
Todos
gênero, o suporte e o universo temático, bem como sobre saliências textuais, recursos
gráficos, imagens, dados da própria obra (índice, prefácio etc.), confirmando antecipa-
ções e inferências realizadas antes e durante a leitura de textos, checando a adequação
das hipóteses realizadas.
(EF15LP03) Localizar informações explícitas em textos.
(EF15LP04) Identificar o efeito de sentido produzido pelo uso de recursos expressivos
gráfico-visuais em textos multissemióticos.

(EF15LP14) Construir o sentido de histórias em quadrinhos e tirinhas, relacionando


Vida Cotidiana imagens e palavras e interpretando recursos gráficos (tipos de balões, de letras, onoma-
topeias).

(Continua)

Literatura infantil no currículo 129


Campo 1º ano 2º ano 3º ano 4º ano 5º ano
(EF15LP15) Reconhecer que os textos literários fazem parte do mundo do imaginário e
apresentam uma dimensão lúdica, de encantamento, valorizando-os, em sua diversidade
cultural, como patrimônio artístico da humanidade.
(EF15LP16) Ler e compreender, em colaboração com os colegas e com a ajuda do professor
Artístico-lite- e, mais tarde, de maneira autônoma, textos narrativos de maior porte como contos (popu-
rário lares, de fadas, acumulativos, de assombração etc.) e crônicas.
(EF15LP17) Apreciar poemas visuais e concretos, observando efeitos de sentido criados
pelo formato do texto na página, distribuição e diagramação das letras, pelas ilustrações e
por outros efeitos visuais.
(EF15LP18) Relacionar texto com ilustrações e outros recursos gráficos.
(EF01LP01) Reconhe- (EF35LP01) Ler e compreender, silenciosamen-
cer que textos são te e, em seguida, em voz alta, com autonomia
lidos e escritos da es- e fluência, textos curtos com nível de textuali-
querda para a direita e dade adequado.
de cima para baixo da (EF35LP02) Selecionar livros da biblioteca e/
página. ou do cantinho de leitura da sala de aula e/ou
disponíveis em meios digitais para leitura indi-
vidual, justificando a escolha e compartilhando
com os colegas sua opinião, após a leitura.
(EF35LP03) Identificar a ideia central do texto,
demonstrando compreensão global.
Todos
(EF35LP04) Inferir informações implícitas nos
(EF12LP02) Buscar, selecionar e ler,
textos lidos.
com a mediação do professor (leitura
compartilhada), textos que circulam em (EF35LP05) Inferir o sentido de palavras ou
meios impressos ou digitais, de acordo com expressões desconhecidas em textos, com
as necessidades e interesses. base no contexto da frase ou do texto.
(EF35LP06) Recuperar relações entre partes de
um texto, identificando substituições lexicais
(de substantivos por sinônimos) ou pronomi-
nais (uso de pronomes anafóricos – pessoais,
possessivos, demonstrativos) que contribuem
para a continuidade do texto.
(EF01LP16) Ler e (EF02LP12) Ler e
compreender, em compreender com (EF05LP10) Ler e
colaboração com os certa autonomia compreender, com
colegas e com a ajuda cantigas, letras de autonomia, anedo-
do professor, quadras, canção, dentre tas, piadas e cartuns,
quadrinhas, parlendas, outros gêneros dentre outros
trava-línguas, dentre do campo da vida gêneros do campo
Vida Cotidia-
outros gêneros do cotidiana, conside- da vida cotidiana, de
na
campo da vida coti- rando a situação acordo com as con-
diana, considerando a comunicativa e o venções do gênero
situação comunicativa tema/assunto do e considerando a
e o tema/assunto do texto e relacionan- situação comunica-
texto e relacionando do sua forma de tiva e a finalidade do
sua forma de organiza- organização à sua texto.
ção à sua finalidade. finalidade.
(Continua)

130 Literatura Infantil


Campo 1º ano 2º ano 3º ano 4º ano 5º ano
(EF02LP26) Ler (EF35LP21) Ler e compreender, de forma autô-
e compreen- noma, textos literários de diferentes gêneros
der, com certa e extensões, inclusive aqueles sem ilustrações,
autonomia, tex- estabelecendo preferências por gêneros, temas,
tos literários, autores.
de gêneros (EF35LP22) Perceber diálogos em textos narrati-
variados, vos, observando o efeito de sentido de verbos de
desenvolvendo enunciação e, se for o caso, o uso de variedades
Artístico-lite- o gosto pela linguísticas no discurso direto.
rário leitura.
(EF35LP23) Apreciar poemas e outros textos versi-
(EF12LP18) Apreciar poemas ficados, observando rimas, aliterações e diferentes
e outros textos versificados, modos de divisão dos versos, estrofes e refrões e
observando rimas, sonoridades, seu efeito de sentido.
jogos de palavras, reconhecendo (EF35LP24) Identificar funções do texto dramático
seu pertencimento ao mundo (escrito para ser encenado) e sua organização por
imaginário e sua dimensão de meio de diálogos entre personagens e marcadores
encantamento, jogo e fruição. das falas das personagens e de cena.

Fonte: Adaptado de Brasil, 2018a, p. 95-133.

Pelo quadro, vê-se que há habilidades que precisam ser trabalhadas Livro
ao longo de todos os anos e outras que devem ser adquiridas em uma Para aprofundar seus
ou duas séries, pois essas habilidades auxiliarão nos anos seguintes. conhecimentos a
respeito da BNCC e sua
Assim, a BNCC prevê uma progressão no grau de dificuldade e na quan- ligação com os outros
tidade dos conteúdos e dos gêneros. documentos norteadores
da educação brasileira,
Se continuássemos analisando as habilidades, veríamos que vai indicamos a obra Ensino
Fundamental: da LDB
sendo dada aos poucos maior ênfase para gêneros de outros campos à BNCC. Esse livro traz
que não o artístico-literário, como forma de letramento global do alu- discussões sobre a
necessidade e as práticas
no. Contudo, esse campo estará presente durante toda a formação es- educativas em cada
colar, sendo mais predominante na fase de alfabetização. componente curricular,
articulando essa discussão
Em todo caso, a BNCC regulamenta que as habilidades deverão ser com os documentos
educacionais.
atingidas durante o processo escolar, mas não diz quais atividades de-
VEIGA, I. P. A.; SILVA, E. F. São Paulo:
verão ser feitas para atingir esses objetivos. As atividades são de escopo
Papirus, 2019.
da escola e do professor. Poderão ser desenvolvidas habilidades em sala
de aula, em projetos integradores, em atividades fora da escola e tarefas
Desafio
de casa bem como quaisquer outras atividades que se possa imaginar.
Selecione uma habilidade do
Por regulamentar as habilidades e não o modo como se atingir ensino fundamental e um texto
esses objetivos é que temos diversos materiais didáticos no mercado literário (em verso ou prosa).
Então produza uma atividade
brasileiro para o trabalho com a linguagem e com a literatura. Assim,
que consiga desenvolver essa
veremos como se materializam essas habilidades no livro didático e habilidade selecionada.
como é o processo de aprovação das obras.

Literatura infantil no currículo 131


5.3 Literatura infantil no livro didático
Vídeo Muito bem, até aqui vimos como é importante o trabalho com a lite-
ratura dentro do currículo escolar, mas como tudo isso é materializado
nos materiais empregados para o ensino?

Primeiro, precisamos saber que para garantir o acesso a materiais


que atendam às habilidades descritas pela BNCC e também que ofere-
çam acesso a leituras de qualidade para todos os alunos, foi necessária
a criação de alguns programas específicos para essa demanda.

Assim, surgiram dois grandes programas de aquisição de livros pelo


Vídeo
governo, o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) e o Progra-
O canal FNDE desenvolveu
ma Nacional do Livro Didático (PNLD). Além de serem programas que
em 2017 o vídeo A Fantástica
História dos Livros Didáticos - garantem a compra dos materiais, eles possuem regras e comissões
PNLD (Programa do Livro - 80 para a aprovação das obras que poderão ser compradas pelo governo,
anos), comemorando os 80
visando à qualidade dos materiais.
anos do Livro Didático no Brasil,
contando um pouquinho da sua O PNBE foi desenvolvido em 1997 com objetivo de ampliar o acesso
história. Disponível em: http://
youtu.be/0-Fz14JrQEw. Acesso à leitura por parte de alunos e de professores, possuindo 3 classifica-
em: 1 jun. 2020. ções: PNBE Literário; PNBE Periódicos (jornais e revistas pedagógicos);
e PNBE do Professor (livros técnicos e metodológicos). Vale salientar
que o programa se propôs a atender a alunos da educação infantil ao
ensino médio, cobrindo a Educação de Jovens e Adultos em todas as
suas etapas.

Em 2017, por meio do Decreto 9.090, o PNBE foi integrado ao PNLD,


tornando-se o Programa Nacional do Livro e do Material Didático.
Nessa nova configuração, o PNLD
também teve seu escopo ampliado com a possibilidade de
inclusão de outros materiais de apoio à prática educativa
para além das obras didáticas e literárias: obras pedagógicas,
softwares e jogos educacionais, materiais de reforço e correção
de fluxo, materiais de formação e materiais destinados à gestão
escolar, entre outros. (BRASIL, 2020c)

Logo, o PNLD passou a ser o programa por meio do qual há seleção


e disponibilização de obras didáticas, literárias e pedagógicas, garan-
tindo a regularidade da disponibilização de tais obras a escolas públi-
cas, além de instituições que possuam convênio com o poder público
e aquelas que sejam comunitárias, filantrópicas ou confessionais, em
especial na etapa da educação infantil.

132 Literatura Infantil


Para a compra e distribuição desses materiais, entra em cena o
FNDE, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o qual finan-
cia a compra e organiza a logística de entrega às escolas que estejam
cadastradas no Censo Escolar.

Dessa forma, nenhum desses órgãos recebe os materiais diretamen-


te. O PNLD avalia e encaminha para as escolas a listagem aprovada. As
escolas selecionam os livros e solicitam os títulos. O FNDE realiza a com-
pra e organiza a entrega. Por fim, os Correios (ECT) realizam a entrega
diretamente das editoras que produzem os materiais (BRASIL, 2018b).

Figura 7
Fluxo do programa PNLD

kaisorn/ Shutterstock
Adesão das
1 escolas ao 2 Edital 3 Inscrição das
editoras
programa

Triagem e
4 avaliação das 5 Guia do Livro 6 Escolha das
escolas
obras

7 Pedido ao FNDE 8 Aquisição 9 Solicitação das obras


às editoras

Avaliação da
10 Produção dos
livros 11 qualidade física 12 Distribuição
pelos Correios
do livro pelo IPT

13 Recebimento dos
materiais na escola

Fonte: Adaptada pela autora com base em Brasil, 2020a.

Podemos ver pelo infográfico que o processo se inicia em duas fren-


tes, com o cadastramento da escola e a publicação de editais públicos
para definição das regras de avaliação dos livros. Com base nisso, se-
gue-se com o cadastramento das editoras e a posterior avaliação pelos
técnicos contratados pela Secretaria de Educação Básica (SEB/MEC).

É preciso saber que os editais não selecionam obras para todas


as etapas todos os anos. No ano de 2020, por exemplo, foram sele-
cionadas obras voltadas para alunos e professores dos anos finais do
ensino fundamental e para o ensino médio. Veja abaixo a tabela de
aquisições para o ano:

Literatura infantil no currículo 133


Tabela 1
Aquisições de materiais didáticos no edital PNLD 2020

Escolas Alunos
Total de Valor de
Etapa de Ensino Benefi- Beneficia-
Exemplares Aquisição
ciadas dos

Educação infantil 17.069 3.204.748 28.407 R$ 749.606,65

Anos iniciais do ensino fundamental 88.674 12.337.614 71.816.715 R$ 458.638.563,27

Anos finais do ensino fundamental 48.213 10.197.262 80.528.321 R$ 696.671.408,86

Ensino médio 19.249 6.270.469 20.198.488 R$ 234.141.456,77

Total Geral 123.342 32.010.093 172.571.931 R$ 1.390.201.035,55

Fonte: Brasil, 2020b.

Embora o foco sejam os anos finais do ensino fundamental e o en-


sino médio, o programa prevê a compra de materiais já selecionados
em editais anteriores para as outras etapas. Isso acontece como forma
de reposição de livros e pela entrada de novos alunos na etapa, neces-
sidade de volumes a mais, porém não uma compra massiva. Para com-
preender, compare com a aquisição do ano de 2019 na tabela a seguir:

Tabela 2
Aquisições de materiais didáticos no edital PNLD 2019

Escolas Alunos
Total de
Etapa de Ensino Benefi- Beneficia- Valor de Aquisição
Exemplares
ciadas dos

Educação infantil 74.409 5.448.222 646.795 R$ 9.826.136,60

Anos iniciais do ensino fundamental 92.467 12.189.389 80.092.370 R$ 615.852.107,23

Anos finais do ensino fundamental 48.529 10.578.243 24.523.891 R$ 224.516.830,94

Ensino médio 20.229 6.962.045 20.835.977 R$ 251.830.577,40

Total Geral 147.857 35.177.899 126.099.033 R$ 1.102.025.652,17

Fonte: Brasil, 2020b.


Perceba que o total de livros adquiridos em 2019 para os anos fi-
nais do ensino fundamental e ensino médio soma 45.359.868 exem-
plares. Já no ano de 2020, para as mesmas etapas, foram adquiridos
100.726.809. Portanto, em 2019, os exemplares comprados represen-
taram reposição de livros para alunos e professores. Já em 2020, para
a etapa de educação infantil e ensino fundamental anos iniciais, foram

134 Literatura Infantil


repostos materiais para professores e materiais consumíveis para alu-
nos, isto é, livros didáticos que são individuais, pois requerem que o
aluno escreva no material, não podendo ser reutilizado.

No entanto, para a literatura há um edital especial, o PNLD Literá-


rio. O último edital destinado às obras literárias ocorreu em 2018 e
analisaremos aqui os critérios de seleção contidos nesse edital para
compreender melhor como ocorre o processo e a seleção da literatura
infantil a ser distribuída para as escolas públicas brasileiras.

Esse edital avaliou obras literárias para a educação infantil, os anos


iniciais do ensino fundamental e o ensino médio. Os anos finais do en-
sino fundamental foram contemplados no edital do ano de 2020, junta-
mente aos livros didáticos.
Em relação à obra física, o edital deixa claro que as editoras não
poderão submeter livros que contenham espaços ou lacunas nas quais
a criança possa interagir escrevendo no livro, pois, como é uma obra
literária que comporá acervo, deve garantir a coletividade de seu uso.
Além disso, no caso de obras para a educação infantil, os materiais de-
verão ser atóxicos e, caso acompanhem brinquedos, estes deverão ser
certificados pelo Inmetro.

O edital dividiu as obras em seis categorias e seus subtemas que devem


levar em consideração as faixas etárias e os dispostos na BNCC e nas DCNs:

Figura 8
Categorias etárias e subtemas aceitos nas obras do PNLD Literário 2018.
1. Creche I: crianças de 0 – 1 a 6m
Descoberta de si; A casa e a família; O mundo natural e social; Outros temas

2. Creche II: crianças de 1 a 7m – 3 a 11m


Descoberta de si; Família, amigos e escola; O mundo natural e social; Diversão e aventura; Outros temas

3. Pré-escola: crianças de 4 anos – 5 a 11m


Descoberta de si; Família, amigos e escola; O mundo natural e social; Diversão e aventura; Outros temas

4. Estudantes do 1º ao 3º ano do Fundamental


Descoberta de si; Família, amigos e escola; O mundo natural e social; Diversão e aventura; Outros temas

5. Estudantes do 4º e 5º ano do Fundamental


Autoconhecimento, sentimentos e emoções; Família, amigos e escola; O mundo natural e social;
Encontros com a diferença; Diversão e aventura; Outros temas

6. Estudantes do Ensino Médio


Projetos de vida; Inquietações das Juventudes; O jovem no mundo do trabalho; A vulnerabilidade dos
jovens; Cultura digital no cotidiano do jovem; Bullying e respeito à diferença; Protagonismo juvenil;
Cidadania; Diálogos com a sociologia e a antropologia; Ficção, mistério e fantasia; Outros temas

Fonte: Brasil, 2018c, p. 4-5.

Literatura infantil no currículo 135


Vemos então que há temas base para a seleção de livros literários,
com a possibilidade de inscrição de outras temáticas, contanto que se-
jam justificadas pelas editoras. Em relação aos gêneros literários, o edi-
tal traz as seguintes classificações:

Figura 9
Classificações dos Gêneros Literários aceitos e seus critérios para avaliação no PNLD Literário
2018.

Ammus/ Shutterstock
LIVROS DE
CONTO, IMAGENS E
POEMA CRÔNICA, LIVROS DE LIVRO-
NOVELA, HISTÓRIAS EM -BRINQUEDO
1
ROMANCE QUADRINHOS
1
Outros gêneros que entram Coerência e Relação adequada Limites e
Exploração das
consistência; entre texto e imagem; potencialidades
nessa classificação: teatro, texto propriedades
complexidade possibilidades de das interações e
da tradição popular, memória, melódicas e
da ambientação; leituras das narrativas brincadeiras.
diário, biografia, relatos de dos aspectos
imagéticos. caracterização visuais.
experiências, obras clássicas da
multidimensional das
literatura universal etc.
personagens; cuidado
com a correção e
adequação do discurso
das personagens às
variáveis da língua.

Fonte: Brasil, 2018c, p. 32.

Já podemos delinear que as obras selecionadas seguem padrões de


desenvolvimento do indivíduo e das relações que o cercam, tentando
trazer reflexões por meio de diversas formas textuais. Deste modo, o
edital nos diz que as obras inscritas:
devem potencializar, entre os estudantes de todas essas etapas,
a capacidade de reflexão quanto a si próprios, aos outros e ao
mundo que os cerca. Estas obras devem proporcionar o contato
com a diversidade em suas múltiplas expressões por meio de
uma interação eficiente – e gradativamente crítica – com a cul-
tura letrada, sem descuidar da dimensão estética dessa cultura.
Atividade 3 (BRASIL, 2018c, p. 30)
Qual é a sua opinião sobre a
existência de um programa O edital dá ênfase, então, ao trabalho com as relações humanas
nacional que seleciona livros de e com a diversidade, sem deixar de lado o valor estético das obras
literatura para os alunos?
literárias.

136 Literatura Infantil


As obras de educação infantil devem priorizar, de acordo com o edi-
tal, a curiosidade com a escrita, permitindo o trabalho do professor
enquanto mediador na familiarização com os livros e com a linguagem
escrita e visual. Para os anos iniciais do ensino fundamental, elas de-
vem continuar com as linguagens multissemióticas, permitindo maior
entrosamento entre a escuta e a leitura dos textos, ampliando o escopo
de conhecimentos sobre as temáticas e os gêneros literários. Também
devem explorar a leitura e a reflexão sobre si e o mundo de modo pro-
gressivo (BRASIL, 2018c).

Para que uma obra seja aprovada, os avaliadores técnicos farão a


apuração em quatro dimensões: qualidade do texto; adequação com a
categoria, o gênero literário e o tema; projeto gráfico-editorial; e quali-
dade do manual digital para o professor, caso haja.

Em relação à qualidade do texto, o edital leva em consideração de


que forma a obra explora os recursos expressivos da linguagem; como
se estrutura o gênero literário proposto; se a linguagem está adequada
à faixa etária; e se o tema está bem desenvolvido e coeso com o gênero
literário selecionado.

A qualidade também diz respeito às mensagens e à diversidade so-


cial, cultural e étnica empregada nas obras, levando em consideração
o convite à criatividade ativa durante a leitura, e não à manipulação do
leitor pelo autor do texto.

Por fim, embora o edital traga temas amplos para que as obras se
encaixem, não são permitidos livros com cunho didático, doutrinário,
panfletário ou religioso, resguardando a literatura infantil enquanto ex-
pressão estética de apoio ao desenvolvimento global do ser humano.

Assim, o número total de obras aprovadas nesse edital foi de 704


livros literários, distribuídos entre as 6 categorias etárias. Veja a seguir
a tabela com a quantidade de obras aprovadas por gênero literário.

Literatura infantil no currículo 137


Tabela 3
Número de obras aprovadas no PNLD Literário 2018 por faixa etária e gêneros literários.

2. 5. 6. 7.
1. 3. 4.
Gêneros/faixa conto, obras livros de livro-
Poe- Roman- memória,
etária ma crônica, clássi- imagens -brin-
ce diário etc.
etc. cas e HQs quedo

Creche I 0 0 0 0 0 1 0

Creche II 1 11 0 0 0 11 0

Pré-escola 17 69 0 0 0 30 0

1-3 ano EF 39 131 1 11 2 23 0

4-5 ano EF 19 121 5 13 4 6 0

EM 19 53 61 16 24 16 0

Fonte: SAI O RESULTADO..., 2018.

Percebe-se que a categoria de livro-brinquedo não teve nenhuma


obra aprovada. Aliás, teve apenas uma obra inscrita, mas sua inscri-
ção nem mesmo foi aceita para avaliação. Essa situação provavelmente
ocorre, pois, para submeter para essa categoria, é necessário selo do
Artigo Inmetro. Outro fato curioso é a situação dos livros para Creche I, na

A discussão sobre o ensi-


qual 8 livros foram inscritos e apenas 1 aprovado.
no de literatura por meio
O que é interessante observarmos é a ampliação progressiva
de livros didáticos já está
sendo realizada há algum dos gêneros pela faixa etária, iniciando com um gênero na Creche I,
tempo no meio acadêmi-
passando para 3 na Creche II e Pré-escola, e ampliando para 6 categorias
co. Para compreender as
relações entre eles, leia nos anos seguintes.
o artigo O texto Literário
no Livro Didático da pes- Os livros aprovados pelo edital e selecionados pela escola compõem
quisadora Maria Lúcia
o acervo para bibliotecas e cantinhos de leitura. Porém, se não houver
Outeiro Fernandes.
um trabalho dos professores para o acesso a essas obras, elas não ser-
FERNANDES, M. L. O. Itinerários,
17, UNESP/Araraquara, 2001, p. virão a seu fim. Isso porque os livros didáticos trazem a literatura como
165-177. Disponível em: https:// componente da Língua Portuguesa para a realização de atividades de
periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/
article/view/3457/3220. Acesso reconhecimento de diferentes gêneros e estruturas e, em sua maioria,
em: 1 jun. 2020. atividades que usam a literatura como veículo para treino gramatical.

Assim, a maior parte dos alunos depende do professor como me-


diador para a indicação e o estímulo ao manuseio de livros e à leitura
de diferentes títulos que estejam na biblioteca da escola.

138 Literatura Infantil


Os materiais didáticos atuais são produzidos em consonância com a
Desafio
BNCC, mas poucos são os que trazem indicações de leituras e trabalho
Como prática de reconhecimento
específico com a literatura – aqueles com indicações o fazem apenas das habilidades da BNCC, pegue
para o professor. Somente nas etapas mais avançadas de ensino é que um livro de Língua Portuguesa
indicações de livros e filmes ganham maior espaço. do ensino fundamental, ou
algum manual de atividades do
Portanto, se há todo um esforço concretizado em políticas públicas professor de educação infantil,
selecione um capítulo e – com
que garantem o acesso à literatura, é preciso que exista um agente
apoio da BNCC – tente identifi-
que seja um elo entre aluno e livro, e esse elo é o professor. Sem o car as habilidades nas atividades
professor, os livros permanecem nas estantes da biblioteca! propostas no livro didático.

Artigo
Para maior reflexão sobre o papel da literatura na BNCC e, consequentemente, nos
livros didáticos, realize a leitura do artigo O papel da literatura na BNCC: ensino, leitor,
leitura e escola. A pesquisadora faz uma discussão sobre o espaço dado à literatura na
base curricular e que tipo de leitor esse currículo é capaz de formar.

IPIRANGA, S. Revista de Letras, Fortaleza, v. 38, n. 1, p. 106-114, jan.- jun., 2019.

CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Esperamos que este capítulo tenha possibilitado a você um maior co-
nhecimento de como a educação literária se dá no contexto das legisla-
ções educacionais brasileiras. Além disso, fizemos uma discussão acerca
do lugar da literatura nesses documentos e, em especial, na BNCC.
Cremos que com as informações a respeito de como é o fluxo da
produção dos livros didáticos e literários no país você possa ter maior
compreensão de todos os agentes envolvidos no processo e possa reco-
nhecer a importância da autonomia do professor na construção de ativi-
dades voltadas à literatura.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Legislativo,
Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.
htm. Acesso em: 2 jun. 2020.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua
Portuguesa. Brasília, DF: MEC/SEF, 1997. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/
arquivos/pdf/livro02.pdf. Acesso em: 2 jun. 2020.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental.
Referencial curricular nacional para a educação infantil. Brasília, DF: MEC/SEF, 1998.

Literatura infantil no currículo 139


Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/volume3.pdf. Acesso em: 2 jun.
2020.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares
Nacionais Gerais para a Educação Básica. Brasília, DF: MEC, SEB, DICEI, 2013. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013-
pdf/file. Acesso em: 2 jun. 2020.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018a.
Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_
versaofinal_site.pdf. Acesso em: 2 jun. 2020.
BRASIL. Programa Nacional Biblioteca da Escola. Brasília, DF, 2018b. Disponível em: http://
portal.mec.gov.br/programa-nacional-biblioteca-da-escola. Acesso em: 2 jun. 2020.
BRASIL. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Secretaria de Educação
Básica. Edital de convocação 02/2018 – CGPLI.  Brasília, DF, 2018c. Disponível em:
https://www.fnde.gov.br/index.php/centrais-de-conteudos/publicacoes/category/165-
editais?download=12155:edital-pnld-lit-2018-3-retif. Acesso em: 2 jun. 2020.
BRASIL. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Ministério da Educação.
Programas do Livro. Funcionamento. Brasília, DF, 2020a. Disponível em: https://www.fnde.
gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/funcionamento. Acesso em: 2 jun.
2020.
BRASIL. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Ministério da Educação.
Programas do Livro. Dados estatísticos. Brasília, DF, 2020b. Disponível em: https://www.
fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/dados-estatisticos. Acesso
em: 2 jun. 2020.
BRASIL. Plano Nacional do Livro Didático. Brasília, DF, 2020c. Disponível em: http://portal.
mec.gov.br/component/content/article?id=12391:pnld. Acesso em: 2 jun. 2020.
CARROL, L. Alice no País das Maravilhas. Jandira: Ciranda Cultural, 2018.
SAI O RESULTADO do PNLD Literário. Publishnews, 30 ago. 2018. Disponível em: https://
www.publishnews.com.br/materias/2018/08/30/sai-o-resultado-do-pnld-literario. Acesso
em: 2 jun. 2020.

GABARITO
1. A LDB não vai falar sobre a literatura em si, mas podemos perceber que essa manifes-
tação artística pode ser utilizada para atingir os princípios fundamentais da educação
básica conforme dispostos na LDB. Os PCNs tentam inserir a literatura como forma
de ampliação do conhecimento sobre a realidade, mas não mais que isso. Os docu-
mentos ainda veem a literatura como ferramenta para aquisição de leitura e escrita.

2. O ensino de literatura no ensino fundamental 1 deve se voltar para a construção de


repertório, criatividade e autonomia para escolher, se interessar e debater literatura
infantil em diversos gêneros, promovendo, também, a capacidade de produzir histó-
rias orais ou escritas dentro do universo literário.

3. A resposta deve trazer as impressões pessoais, mas também a compreensão de que o


programa proporciona o acesso à literatura de qualidade aos alunos e que, ao mesmo
tempo, baliza o que os autores de literatura infantil escrevem, diminuindo a liberdade
artística em certo grau, pois as obras serão escritas não mais para as crianças, e sim
para os avaliadores.

140 Literatura Infantil


6
Trabalho pedagógico
com literatura infantil
Pois não é que os meninos tinham trocado os medos? De tanto
ouvir falar da bruxa, Tucho acabara se esquecendo do Lobo Mau e
Nandinho, agora mais preocupado com o lobo do zoológico, ria sem
parar da brincadeira da professora Tânia, que ele adorava.
Heloisa Prieto, Lobo de estimação

A literatura na escola não se faz sem seu mediador: o


professor. Para compreendermos o trabalho pedagógico com a
literatura infantil, precisamos verificar qual é o papel do docente
nessa jornada de transformar a criança em um leitor.

Ainda, não basta termos leitores, precisamos que sejam críti-


cos, especialmente na contemporaneidade da era digital. Assim,
o papel do professor enquanto mediador entre o aluno e o mun-
do se intensifica.

Também, vamos lançar um olhar sobre como contar histórias


e engajar os alunos no mundo da literatura.

6.1 Papel do professor


Vídeo Como você descobriu a literatura? Você se lembra? Talvez tenha
sido em casa com a família, mas, provavelmente, você terá alguma me-
mória ligada à escola e à leitura de livros de literatura para as aulas.

É bem verdade que ensinar o gosto pela leitura não cabe apenas ao
professor, mas ele se torna figura central na mediação entre aluno e
livro literário em um país onde o livro é muito caro para ser adquirido e
o acesso a bibliotecas ainda é precário.

Para discutirmos o papel do professor, temos que entender como


anda o papel da própria literatura dentro do âmbito escolar. Rildo

Trabalho pedagógico com literatura infantil 141


Cosson (2009) nos conta que, em palestras e cursos ofertados por ele,
sempre recebe questionamentos acerca da necessidade de se ensinar
literatura na escola. Essas questões vêm normalmente acompanhadas
de críticas a esse trabalho, pois, para muitas pessoas, trabalhar litera-
tura serve ao propósito de alfabetizar ou de estudar períodos literários.

“Para alfabetizar, não é preciso literatura”, dizem as mesmas


pessoas que questionam o pesquisador. Para elas, jornais, revistas e
textos da vida cotidiana dão conta do recado e são mais acessíveis.
Também, creem que estudar períodos literários se presta a passar em
vestibulares e poderia muito bem ser um estudo realizado em outras
matérias, como artes ou história.

Por que exitem esses pensamentos e preconceitos em relação ao


ensino de literatura na escola? Antes de tentarmos responder a essa
pergunta, faremos outra muito importante: você lembra qual foi o últi-
mo livro literário que leu na íntegra e quando foi realizada essa leitura?

Se você conseguiu responder ou se teve dificuldade porque leu


muitos livros literários, parabéns! Mas isso é uma exceção, como bem
aponta Cosson (2009). A maioria dos professores não lê livros de litera-
tura! E, muitas vezes, quando são questionados a respeito da utilização
de literatura no ensino, relatam que os alunos têm falta de interesse.
Mas, ora, se o próprio professor não tem interesse, como o construirá
em seus alunos?

Dentre tantos motivos para que os professores não sejam leitores


e para que essa “não prática” se difunda entre os alunos, estão a for-
mação inicial e continuada dos docentes e suas próprias experiências
enquanto alunos, na educação básica. Segundo Cosson, “nossa leitura
fora da escola está fortemente condicionada pela maneira como ela
nos ensinou a ler” (2009, p. 26).

Assim, os professores foram também alunos de uma escola tra-


dicional que, muitas vezes, não soube como trabalhar a literatura,
deixando-a descontextualizada ou, então, inserindo-a em práticas ex-
tracurriculares às quais pouca importância se dá. Exemplo disso são
os projetos extraclasse, que deveriam ter grande apoio de professo-
res, de alunos e da comunidade escolar, mas que, por vezes, acaba
sendo um motivo de aborrecimento, por ser algo “a mais” no currículo
e nas atividades escolares.

142 Literatura Infantil


Professores com baixos salários, com muitas turmas e muitos alu-
nos e com inúmeras avaliações (desnecessárias por vezes) para corrigir Vídeo
acabam se desmotivando quando há propostas de diversificação das Para entender melhor como
funciona o ensino por projetos,
atividades, mesmo que estas possam ser extremamente benéficas e
assista a uma aula da disciplina
simples. Projetos transdisciplinares são sempre muito louvados como de Pedagogia de Projetos,
possibilidade de quebrar a rotina da escola tradicional, mas são poucas liberada gratuitamente pela USP.
as que conseguem o apoio de toda a comunidade escolar para imple- Disponível em: http://
eaulas.usp.br/portal/video.
mentar tal plano. action?idItem=675. Acesso em:
Como num ciclo vicioso, o ensino continua o mesmo. Exatamente 18 jun. 2020.

por isso a forma como os professores aprenderam a literatura é re-


fletido, também, em sua prática enquanto leitores e docentes. Nossos
hábitos são moldados desde cedo, sabemos disso; logo, a visão que
teremos da prática pedagógica já é construída desde muito cedo na
escola. É necessário, então, transformar essa visão limitada e limitante
do trabalho com a literatura, e essa modificação deve englobar todos
os níveis de ensino.

Dessa forma, os cursos de graduação e pós-graduação devem gerar


conhecimentos aplicáveis aos sistemas de ensino, com parcerias entre
si (como acontece em muitos locais); mas, para além disso, devem focar
a modificação do pensamento do professor a respeito do que é ser um
leitor. É preciso começar por quem vai formar os alunos; desse modo,
os docentes precisam ser motivados a gostar de ler livros literários.

Esse incentivo deve se dar desde os cursos de licenciatura até os Saiba mais
de formação continuada, oferecidos pelas redes e sistemas de ensino. O Programa de Avaliação
Sem engajarmos os professores na leitura, não avançaremos nem no Internacional de Estudantes
(PISA) apontou, em seu relatório
ensino da literatura nem nos índices de compreensão leitora. de 2018, que o Brasil está muito
atrás dos países considerados
Os cursos de licenciatura precisam adequar seus currículos, a fim
de primeiro mundo em todos os
de promover o gosto pela leitura, bem como realizar discussões e ati- três quesitos: leitura, matemática
vidades práticas de como trabalhar a literatura em sala de aula. Afinal, e ciências. Veja a matéria Pisa:
alunos brasileiros ‘estacionam’
infelizmente, poucos são os cursos que dão ênfase, de fato, à maneira
em leitura, ciências e matemática
de realizar um trabalho pedagógico com o texto literário. e sofrem mais com bullying e
solidão, da BBC, que trata dos
Hoje, boa parte dos professores trabalha a literatura por meio do resultados do país na avaliação.
livro didático, fato que nos mostra a necessidade de uma avaliação cri- Disponível em: https://
teriosa dos materiais empregados. Porém, mesmo avaliando criteriosa- www.bbc.com/portuguese/
brasil-50606790. Acesso em: 18
mente, o livro didático só pode ir até certo ponto nesse trabalho, pois jun. 2020.
não consegue reproduzir na íntegra o texto todo, ou seja, traz recor-

Trabalho pedagógico com literatura infantil 143


tes e atividades que proporcionam uma perspectiva pré-fabricada dos
significados do texto.

Em relação a essas atividades, Cosson nos diz que:


de acordo com o conteúdo, as atividades desenvolvidas oscilam
entre dois extremos: a exigência de domínio de informações
sobre a literatura e o imperativo de que o importante é que o
aluno leia, não importando bem o que, pois a literatura é uma
viagem, ou seja, mera fruição. No ensino fundamental predo-
minam as interpretações de texto trazidas pelo livro didático,
usualmente feitas a partir de textos incompletos, e as atividades
extraclasses, constituídas de resumos dos textos, fichas de lei-
tura e debates em sala de aula, cujo objetivo maior é recontar
a história lida […]. Isso quando a atividade […] não consiste sim-
plesmente na leitura do livro, sem nenhuma forma de resposta
do aluno ao texto lido. (COSSON, 2009, p. 22)

Percebe-se, então, que a leitura de livros literários acaba receben-


do pouca intenção pedagógica, tendo como atividades perguntas que
levam o aluno a realizar somente uma confirmação das informações
lidas, sem despertar interesse em debate ou na própria leitura.

Tudo isso são barreiras a serem vencidas, mas que não são impossí-
veis e nem tão difíceis assim. Para podermos estabelecer um trabalho
efetivo, que leve em consideração a produção e a reconstrução das
palavras e do mundo das ideias, precisamos repensar primeiro nossos
hábitos de leitura, pois, sem exemplo, não há melhorias. Em seguida,
procurar sempre a evolução do trabalho pedagógico, com o cuidado de
levar em consideração o que se espera da literatura na escola.

Não podemos confundir o papel da literatura infantil com o que é


esperado para o trabalho com ela na escola. Seu papel está posto en-
quanto desenvolvimento e formação do ser humano, contato com a di-
versidade e forma de obtenção de conhecimento e prazer, entre outros.
Já o que se espera da literatura na escola nos é dado pela BNCC.

Dessa forma, o ensino de literatura na educação infantil deve le-


var em conta o desenvolvimento da imaginação, o gosto pela leitura,
a ampliação do conhecimento de mundo, a compreensão da escrita
enquanto sistema de comunicação e a participação do aluno na cultu-
ral oral. Portanto, trabalhar literatura infantil na escola não é apenas
ler, mas ler visando ao desenvolvimento do aluno enquanto leitor e
produtor de textos.

144 Literatura Infantil


Para o ensino fundamental, em seus anos iniciais, o ensino literário Livro
solicita que o professor trabalhe a reconstrução e a reflexão a respeito
de como o texto é produzido e recebido, realizando a reconstrução da
textualidade, da organização e da relação de suas partes, assim como
da progressão dos temas. Além disso, é preciso levar o aluno a com-
preender que os textos dialogam entre si, refletindo criticamente sobre
os temas e sobre as informações lidas, para melhor entendimento dos
efeitos de sentido produzidos pelo conteúdo e pela forma. Por fim, não
podemos esquecer que ensinar a ler literatura é também ensinar es-
Uma boa dica para saber
tratégias de leitura para promover adesão do aluno às práticas leitoras. como trabalhar melhor a
leitura é o livro Estratégias
A esse respeito, Cosson relata que: de leitura. Essa obra traz
atividades e níveis de
falta a uns e outros uma maneira de ensinar que, rompendo o leitura a serem desenvol-
círculo da reprodução ou da permissividade, permita que a lei- vidos com os alunos.
tura literária seja exercida sem o abandono do prazer, mas com SOLÉ, I. Porto Alegre: Penso, 1998.
o compromisso de conhecimento que todo saber exige. Nesse
caso é fundamental que se coloque como centro das práticas li-
terárias na escola a leitura efetiva dos textos, e não as informa-
ções das disciplinas que ajudam a constituir essas leituras, tais
como a crítica, a teoria ou a história literária. Essa leitura tam-
bém não pode ser feita de forma assistemática e em nome de
um prazer absoluto de ler. Ao contrário, é fundamental que seja
organizada segundo os objetivos da formação do aluno, com-
preendendo que a literatura tem um papel a cumprir no âmbito
escolar. (2009, p. 23)

Portanto, o ensino de literatura deve considerar os objetivos pe-


dagógicos estabelecidos para a área sem deixar de lado o prazer de
ler. Logo, as atividades precisam ser mais estimulantes e, ao mesmo
tempo, esclarecedoras a respeito do fazer literário e das informações
contidas na superfície e nas entrelinhas do texto.

Segundo o autor, a análise literária é necessária, uma vez que pro-


move o reconhecimento da literatura enquanto processo comunicativo,
o qual convida o leitor a explorar a obra por diferentes ângulos. Assim,
“é só quando esse intenso processo de interação se efetiva que se pode
verdadeiramente falar em leitura literária” (COSSON, 2009, p. 29).

O primeiro passo no trabalho com a literatura em sala de aula diz


respeito à escolha dos livros que serão trabalhados. Embora os livros
passem, primeiramente, por um crivo para serem adquiridos nas es-
colas públicas, podemos dizer que o elemento central nessa escolha

Trabalho pedagógico com literatura infantil 145


ainda é o professor. É essa figura que escolhe as obras a serem lidas e
como serão realizadas as atividades.

Esse papel, porém, precisa ir se diluindo aos poucos, com o avanço


das séries escolares; isso porque é de intenção do próprio professor

Desafio que os alunos possam começar a selecionar as obras a serem lidas


desde cedo. Logo, no cenário em que o professor exerce o papel de
Tente se lembrar de todos os
livros canônicos da literatura mediador da leitura, irão se sobressair as obras de conhecimento dos
brasileira e mundial que você docentes. Obras lidas em seu tempo enquanto estudante tendem a re-
leu. Faça uma lista e, se precisar,
tornar como indicação de leitura.
pesquise sobre os autores e suas
vidas, de forma breve. Depois Dentro da literatura infantil, é necessário mais do que indicações de
disso, reflita sobre as caracterís-
obras conhecidas, especialmente porque o mercado tem se aquecido
ticas desses autores. Eles eram
homens ou mulheres? Brancos, ao longo dos anos com lançamentos de ótima qualidade. Mas, tam-
negros ou indígenas? Ricos ou bém, não se pode deixar de fora obras reconhecidas e com grande va-
pobres? Cultos ou iletrados?
A que conclusões você chega lor estético. Então, como o professor pode selecionar uma obra?
olhando para essa lista? De acordo com Cosson, há três formas de seleção de obras literárias
para a sala de aula: o cânone, o contemporâneo e o plural.

Quadro 1
Formas de seleção de obras literárias pelo professor
Saiba mais
Cânone Contemporâneo Plural
O poeta Sérvio Vaz é, hoje,
reconhecido como um grande
representante da literatura Herança e identidade Seleção de diversas Segue recomendações
marginal brasileira. Ele é cultural linguagens oficiais e teóricas
poeta da periferia e criador de
movimentos culturais para a
Possui essência não Quebra hierarquias
população das comunidades e Temas diversos
questionável impostas pela crítica
para as minorias. Para saber mais
sobre esse movimento, assista
ao vídeo Literatura marginal na Preconceitos e visão única Proximidade temporal Leitura como prática
década de 1970 e nos dias de da realidade entre autor e leitor democrática
hoje, produzido pela TV Cultura
e publicado pelo canal tvbrasil. Fonte: Adaptado de Cosson, 2009, p. 33-34.
Disponível em: http://youtu.
be/2_35S2kUNro. Acesso em: Em relação ao cânone, durante um longo período, nós mesmos tive-
18 jun. 2020.
mos acesso quase exclusivo somente a obras consagradas em sala de
Além disso, não deixe de conferir
o poema Novos dias, de Sérgio aula. Afinal, autores como José de Alencar e Machado de Assis guardam
Vaz, afinal, ler poemas é contar nossa identidade cultural e não os ler seria também alienar o aluno de
histórias. nosso passado literário. Porém, essa leitura precisa de criticidade, não
Disponível em: http://youtu.be/
é porque são cânones que não trazem em si preconceito e exclusão.
oEr3U3hkLR0. Acesso em: 18
jun. 2020. Se por um lado o cânone coloca a identidade literária brasileira,
por outro, ele coloca apenas uma parte dessa identidade em cena.

146 Literatura Infantil


São obras escritas por homens brancos e que, em sua maioria, perpe- Vídeo
tuam exclusões presentes à sua época. Não é porque havia preconcei- A escritora mineira Carolina
Maria de Jesus escreveu uma
to e exclusão à época da construção de tais obras que não devemos
obra-prima em 1960. Quarto
questioná-las; na verdade, é o contrário. de despejo é a prova de
como precisamos rever o que
Ler os cânones também significa questionar onde estão as autoras
é o cânone. Mulher, negra e
mulheres, onde estão os autores negros, os indígenas, os imigrantes, os moradora da favela, a autora
autores LGBT e os excluídos dos grandes centros urbanos e de classes teve mais de 1 milhão de obras
vendidas no país, e sua obra foi
menos favorecidas. Hoje, temos acesso a essa crítica e a obras que dão traduzida para pelo menos 14
voz a esses grupos, mas não temos espaço para esses autores nos câ- línguas. Saiba mais sobre ela
nones. Então, precisamos lê-los, sim, mas com a certeza de que se algo no vídeo Quem foi Carolina de
Jesus?, publicado pelo Canal
se tornou cânone, é porque outras obras foram deixadas de lado. Curta!.
As obras contemporâneas são aquelas que estão em consonância Disponível em: http://youtu.
be/6P_q9O3VtIU. Acesso em: 18
com o tempo histórico daquele que a lê. São as obras novas no merca- jun. 2020.
do e, aqui, Cosson (2009) faz uma distinção muito importante. O con-
temporâneo tem a ver com as obras que são escritas e publicadas no
mesmo tempo que o leitor, mas que, por vezes, não possuem sentido
para ele. Já as obras atuais são aquelas que possuem significado para
o leitor em seu tempo, independentemente de quando foram escritas.

Dessa forma, podemos ter uma obra recém-lançada que não toca-
rá os leitores tanto quanto uma obra como 1984, escrita por George 1
1
Orwell e publicada em 1949. Esse livro relata uma sociedade distópica , Uma distopia é quando o
em que prevalecem a vigilância sempre onipresente e a manipulação universo ficcional impõe grandes
desafios aos personagens por
das informações. Na sociedade retratada, um ditador governa mani-
meio de um governo autoritário,
pulando as informações, para que não haja pensamentos negativos, e ditatorial e opressor. Há muitos
controlando os jornais, de modo a alterar a percepção dos fatos histó- filmes e livros que exploram esse
assunto, especialmente por ele
ricos, chegando a modificar, inclusive, a língua da população. Você acha não ser assim tão impossível de
que se parece com o que acontece em alguns lugares no mundo hoje? acontecer em nossa realidade.
Normalmente, são livros para
Livro jovens ou adultos, por necessitar
de maior reflexão crítica e fluidez
Obras envolvendo distopias são indicações interessantes para
a reflexão sobre a possibilidade de elas serem reproduzidas
na leitura.
no mundo real.
O livro O conto da Aia, que ganhou, inclusive, um seriado tele-
visivo, é uma das obras mais premiadas de todos os tempos.
Nele, o governo teocrático e autoritário subjuga as mulheres à
procriação em um mundo com baixas taxas de natalidade.

ATWOOD, M. São Paulo: Rocco, 2017.

Trabalho pedagógico com literatura infantil 147


Série A seleção plural prevê todas essas exclusões, produzindo uma leitu-
ra crítica e democrática, com diversidade de obras, gêneros e autores,
possibilitando grande gama de influências, sem a obrigatoriedade de
seguir a tradição ou buscar o valor estético. Sendo assim, promove to-
tal liberdade de escolha. Porém, esta requer responsabilidades, para
Outra dica interessante é
a série Black Mirror. Nela, a qual, muitas vezes, o professor não está preparado, exatamente por
por meio de histórias in- não ser ele mesmo um leitor assíduo, com uma formação inicial sem
dependentes entre si, são
apresentadas histórias direção para tal atividade.
distópicas envolvendo
a tecnologia das mídias Logo, Cosson (2009) chega à conclusão de que a melhor maneira
digitais, com o intuito de de selecionar obras é combinar de certo modo as três formas de sele-
retratar as possibilidades
de um futuro sombrio ção, entendendo os processos de construção e de recepção dos textos
para a humanidade. quando se fala de cânone, além de identificar a diversidade de temas,
Criação: Charlie Brooker. Reino gêneros e autores a serviço de uma leitura democrática. Por fim, to-
Unido: Zeppotron/House of
Tomorrow, 2011-2019.
das as obras selecionadas devem levar em consideração o princípio da
atualidade para o leitor, pois temas que tratem do cotidiano dos alunos
engajam os sujeitos na leitura.

Outro critério que deve fundamentar a escolha do professor é o


equilíbrio entre o conhecido e o desconhecido, partindo de uma leitura
simples para outra complexa, afinal, “é assim que tem lugar na escola o
novo e o velho, o trivial e o estético, o simples e o complexo” (COSSON,
2009, p. 36).

Passada a seleção das obras, o professor deve adequar o méto-


do de ensino às características de sua turma. Por essa razão, realizar
avaliações diagnósticas é tão importante; estas podem ser feitas por
observação, debate ou tarefa formal.
Atividade 1 Quaisquer que sejam as especificidades da turma, o professor deve
Relate o que você compreen- estimular o interesse inicial na leitura utilizando algum elemento da
deu sobre a seleção de livros
obra que atraia o olhar do leitor, dando sequência com atividades e
literários.
estratégias previamente selecionadas. Esse é o momento de encantar,
seja com a contação de histórias ou com o incentivo a cada parágrafo.

Na sequência, as atividades que serão realizadas deverão estar em


contato com a realidade do aluno, não somente levando-o a identificar
as informações no texto de forma mecânica e compreendendo o texto
literário apenas como veículo para alfabetização. É preciso engajar o
aluno na construção de atividades motivadoras e desafiadoras, para
que ele continue construindo seu conhecimento na arte literária.

148 Literatura Infantil


Nesse sentido, de acordo com Andrade, o professor:
deve adotar um método de ensino da literatura que proporcio-
ne uma relação íntima entre as crianças e o universo literário.
Assim, a escola fará seu papel de formação do leitor livre, lin-
guisticamente competente, crítico, para que, no futuro, consiga
ler muitos livros. Para isso, é necessário que o professor reavalie
suas práticas de ensino, repense a dinâmica das aulas, o que en-
tende por literatura, além de avaliar a importância da literatura
para a construção da personalidade do aprendiz. A escola e o
aluno devem entender que o ato de ler constitui uma relação
íntima e profunda, e que a literatura provoca no leitor ativo um
processo de transformação. (2014, p. 156)

Portanto, o professor precisa, antes, reavaliar qual é o valor dado à


literatura infantil na escola para que ele próprio possa se engajar em
uma metodologia que motive os alunos, criando uma ligação afetiva
com a leitura literária.

Por fim, o seu papel passa pelo incentivo à atribuição de sentidos ao


texto e em relacionar esses sentidos com o mundo do pequeno leitor,
em um constante refletir e motivar.

6.2 Contação de história


Vídeo Pode parecer estranho utilizar essa palavra contação, uma vez que
ela não consta nos dicionários; mas é um termo que vem sendo cada
vez mais utilizado. Originada do verbo contar, significa exatamente o
ato de contar, de narrar histórias, mas com a intenção de envolver os
ouvintes e promover momentos coletivos de leitura.

Com isso, percebemos a importância da contação de histórias na


sala de aula e em outros espaços. Aliás, essa é uma
prática empregada por espaços promotores de cul- Desafio
tura, bibliotecas, saraus, e até mesmo locais como Muitos lugares promovem
hospitais infantis. momentos de contação de
histórias. Busque na internet
Nesse ponto, não cremos que seja necessário e em locais culturais, como
bibliotecas, museus, casas
aprofundar o porquê de contar histórias ao público
de cultura e centros comuni-
infantil, mas podemos relembrar que esse ato cria tários, eventos que contem
um vínculo maior entre o ouvinte e a literatura, esti- histórias para as crianças.
Ao observar uma contadora,
mulando o desenvolvimento cognitivo e emocional, você também aprende a
instruindo e inserindo a criança no mundo das pala- contar histórias!

Trabalho pedagógico com literatura infantil 149


vras e gerando um momento de diversão que ajudará a consolidar o
gosto por leitura e literatura.

A contação de histórias se insere no campo das narrativas orais,


tão ligadas à própria fundação da literatura infantil. Narrativas são
necessárias desde sempre, seja para alertar sobre os perigos pelos quais
o homem pré-histórico passou ou a sua sobrevivência, seja para perpe-
tuar valores modernos. Por isso mesmo, a contação de histórias infantis
faz parte de uma experiência popular que valoriza o folclore, os contos,
as parlendas, os versos e o som como forma de comunicação e de apro-
ximação afetiva do outro, como relata o pesquisador Nilo Souza.
Narro porque só é possível manter-se em harmonia com as di-
ferenças, quando me aproximo afetivamente do outro. Sem nar-
rativa que o revele, o ser humano é uma porta fechada para a
alteridade. Narro porque tenho a necessidade de me mostrar e
saber do outro. Quem narra convida o ouvinte a se revelar tam-
bém. (SOUZA, 2015, p. 291)

A necessidade de narrar oralmente acompanha o desenvolvimento


da espécie humana e estabelece laços para a compreensão de que o
outro é diferente de mim e, mesmo assim, impacta a minha formação.
Narrar é revelar e ter o outro revelado.

Vivemos, hoje, em um mundo de imagens e cada vez mais indivi-


dualista. As telas de celulares e tablets encobrem nosso olhar e nossa
percepção do outro. A narrativa oral resgata o vínculo perdido entre
as pessoas e, também, a poeticidade da vida cotidiana. Segundo Souza
(2015), é no ato de narrar que saímos do individual para o coletivo, co-
locando nossa marca em uma experiência performática.

Aliás, de acordo com o autor, narrar oralmente é performar, ence-


nar para reviver memórias e criar elos. Assim,
em se tratando de narrativas orais, é preciso dizer que elas en-
volvem mais do que um estudo sobre a cultura, as crenças, a
linguagem e a mentalidade de uma dada sociedade: a oralidade
envolve uma dramaturgia, ou seja, uma performance. É na per-
formance que se encontram os elos entre o leitor-ouvinte e o
passado revivido. O ato de narrar se estabelece na comunhão
entre os elementos linguísticos (segmentais e suprassegmentais)
e extralinguísticos (gestos, expressões faciais etc.). A performan-
ce do narrador revela as estratégias para a atração. O objetivo
(consciente ou inconsciente) das estratégias é proporcionar de tal
forma a aproximação do espectador com o tempo da narrativa

150 Literatura Infantil


que possa transmitir uma experiência não vivida. No momen-
to em que o sujeito deixa de ver o narrador e passa a somente
vislumbrar a história, então a narrativa passa a ser concebida.
(SOUZA, 2015, p. 289)

Logo, contar uma história envolve mais do que a mera leitura me- Atividade 2

cânica; envolve voz, corpo e atração. Então, veremos agora como criar Como você vê a atividade de
contação de histórias? Você
esse momento de experiência entre conhecimento e ludicidade.
crê que sejam necessários
Para contar uma história, você pode se basear em algumas dicas, planejamento e técnicas ou a
espontaneidade e a imprevisi-
adequando-as ao seu contexto. Veja-as a seguir. bilidade são os maiores aliados
nessa hora?
Escolhendo a obra: selecione-a de acordo com os critérios de
atualidade, diversidade e qualidade, além de levar em consideração
o seu gosto e o das crianças.

1 2 3
LEIA E RELEIA IMAGINE TREINE
Dê vida aos personagens, Crie diferentes vozes para
Para contar, é
ao cenário, aos as personagens e para o
preciso saber a
acontecimentos; sinta-se narrador. Lembre: quanto
história muito bem;
na história! Se você não menor a criança for, mais
assim; você terá
se sentir, como fará os teatralizada a contação
maior liberdade
alunos se sentirem nesse deve ser. Você pode
para criar na hora da
universo literário? treinar contando para
narração.
alguém conhecido.

4
CUIDADO
5 6
Tenha atenção com as palavras OLHE LIBERTE-SE
empregadas na hora de contar. Ao contar a história, olhe Na hora de contar, você já
Nem sempre nos lembramos nos olhos das crianças, planejou. Então, solte-se e
de todas as palavras e, às para envolvê-las. seja você, para seduzir os
vezes, falamos o conteúdo ouvintes para a leitura.
com nossa própria fala, mas é
preciso tomar cuidado com as
expressões empregadas nesse
reconto.

Agora, além dessas dicas, para um bom momento de contação de


histórias, alguns preparos e cuidados são necessários. O primeiro deles
é o planejamento. Pergunte-se sempre qual é o objetivo a ser alcança-
do com a leitura daquela obra e qual é a melhor maneira de atingi-lo.

Outro desses cuidados são os combinados, que deverão ser feitos


com a turma ou o grupo antes de iniciar a contação. As regras podem
ser tanto relacionadas à convivência naquele momento (não pertur-

Trabalho pedagógico com literatura infantil 151


bar o colega, levantar a mão para falar, etc.) quanto relacionadas ao
Curiosidade próprio mistério da leitura (por exemplo: não se deve falar alto, senão
Para os mais ousados (e com o lobo os achará).
recursos disponíveis), que Assim, é preciso criar um clima inicial dependendo da temática da
tal se inspirar no que fez um
professor de uma escola nos história, se de suspense ou fantasia, ou, então, uma lenda ou narrativa
Estados Unidos? Leia a matéria de pistas. Para ajudar, é preciso pensar o cenário para a contação de
Professor transforma sala de aula
histórias levando em consideração o espaço e os materiais disponíveis
em Hogwarts – e fica incrível!,
publicado pelo site Garotas para aquela história, além de utilizar um figurino, ligando-se à história
Geek, e veja como o professor ou criando uma imagem do narrador.
transformou o espaço no cenário
de Hogwarts, a escola de Harry Se houver disponibilidade de tempo e de materiais, é possível pre-
Potter. parar a sala toda para receber os alunos; caso contrário, pode-se pen-
Disponível em: https://tinyurl.
sar em cenários mais enxutos, que utilizem um pequeno espaço, como
com/yapr2us6. Acesso em: 18
jun. 2020. um baú ou um cantinho de leitura. Algo muito importante é ter os ma-
teriais bem planejados e todos à mão para que a hora de contar seja
fluida, sem imprevistos. Por isso, é sempre bom treinar antes.

No espaço, deve-se cuidar também para que haja boa iluminação e


conforto, além de prestar atenção no nível de ruído e distrações, tudo
para manter a atenção do seu público, visto que crianças pequenas po-
dem se distrair facilmente. Aliás, o tempo também deve ser planejado
de acordo com a faixa etária e a responsividade das crianças, levando
em consideração as possíveis participações dos ouvintes.

Em relação às participações das crianças, combine anteriormente se


podem ou não interferir (de preferência possibilite essa experiência, mas
com algumas regras) e utilize as participações como auxílio na hora de
contar, inserindo as dúvidas delas em sua narração, talvez envolvendo o
grupo na resposta das questões levantadas, enriquecendo seu trabalho.

A história deve ter um clímax para onde a contação deve se dirigir,


captando a atenção das crianças até o ápice e o desfecho da história.
Este também pede planejamento, pois o fechamento e a conversa ou
as atividades posteriores são importantes. Aliás, a forma de contar é
elemento central na contação de histórias. É preciso demonstrar en-
tusiasmo e, ao mesmo tempo, uma interpretação condizente com os
acontecimentos narrados, sempre utilizando uma linguagem clara com
um bom ritmo: nem lento e nem rápido demais.

Ao terminar a história, é interessante, especialmente para as crian-


ças bem pequenas, que haja um sinalizador de término; pode ser um
“e eles viveram felizes para sempre” ou um gancho, como “mas essa é

152 Literatura Infantil


uma outra história”. De toda forma, não há obrigatoriedade de seguir
à risca as palavras do livro, você pode criar seu estilo de contar essa
Vídeo
história, para fazer uma mediação entre o livro e o ouvinte.
O canal Nova Escola preparou o
Depois disso, vem o debate! Mas não pense que é hora de dar vídeo Como trabalhar a leitura
explicações sobre a história. Ao contrário, é hora de ouvi-las! Acolha as dramática na sala de aula, com
a explicação da professora Yara
interpretações dos alunos fazendo questionamentos, tanto sobre os
Miguel, para apresentar o modo
fatos quanto sobre suas emoções e impressões. adequado de trabalhar esse
tipo de leitura com os alunos.
Certo, mas você pode estar se perguntando: “e como eu conto his- Disponível em: http://youtu.be/
tórias de fato?”. Vamos ver, a seguir, algumas técnicas que você poderá PDHJlv81qXg. Acesso em: 18
treinar e aperfeiçoar. jun. 2020.

Primeiro, você deve decidir se quer contar a história na íntegra,


como está no livro, ou se deseja fazer uma adaptação, de uma obra Desafio
grande, por exemplo. Uma vez decidido isso, é hora de pensar nas for- Selecione uma história de sua
mas de contar. Veja a seguir. preferência, bem como uma
das formas de contar, e tente
1. Leitura pública preparar uma contação para seus
amigos ou familiares. Assim,
Com a utilização somente do livro, você pode realizar uma leitura
você começa a treinar para
pública, com entonação, mas não necessariamente com uma dramati- ser contador ou contadora de
zação. Um exemplo disso pode ser encontrado no vídeo Leitura pública: histórias.
o velho que assustava o medo. Você pode conferir essa leitura no link:
http://youtu.be/uDm2hV2Y61o.
As leituras públicas são muito utilizadas pelos próprios autores,
para divulgar suas obras e seus lançamentos em livrarias e feiras do
livro. Você pode utilizar essa técnica especialmente com crianças maio-
res, que tenham maior atenção auditiva e não necessitem tanto de ou-
tros suportes para ajudar na compreensão.

2. Leitura dramatizada
Nessa leitura, você poderá utilizar elementos para representar per-
sonagens ou cenas, mas não é obrigatório. O tom aqui é dado por di-
ferentes vozes e pelo uso do corpo para encenar os personagens. Você
pode conferir um exemplo no canal do blog Leiturinha, pelo link: http://
youtu.be/vsflCNe6ECM.

3. Leitura utilizando as imagens do livro

Usando apenas o livro como suporte, você pode contar a história e


mediar o contato dos alunos com o livro e com as suas imagens, traba-
lhando, assim, a concepção da linguagem escrita e visual. Veja um exem-
plo no vídeo Jujubalândia (Mariana Caltabiano), pelo link: http://youtu.be/
ZbDeOzGQJF4.

Trabalho pedagógico com literatura infantil 153


Dica 4. Utilização de varal de histórias
A matéria Como fazer um varal Ao selecionar a história, você pode imprimi-la, além de procurar
de histórias traz dicas para um
varal de histórias que incremen- imagens, coloridas e em bom tamanho, que correspondam aos per-
tará sua hora de narração. sonagens e cenários, plastificando-as para que durem. Depois disso,
Disponível em: https://tinyurl. providencie prendedores ou grampos e um bom comprimento de bar-
com/yajvxapy. Acesso em: 18
bante. Pendure as imagens na ordem em que vai contar a história e
jun. 2020.
utilize o varal como suporte para esse momento.
Dica 5. Teatro de sombras
Assista ao vídeo DIY como fazer O teatro de sombras cria um clima mágico em sala de aula e prende
Teatro de Sombras e veja dicas
para o seu teatro de sombras. a atenção das crianças. Atrás de uma tela que pode ser preparada com
Disponível em: http://youtu. materiais reciclados, os personagens de papel dão vida à história em
be/atf_b-hlFsE. Acesso em: 18 um jogo de luz e sombra. Assista ao vídeo Os três porquinhos: teatro
jun. 2020.
de sombras, no link: http://youtu.be/pMX24VAc9cs.

Dica 6. Teatro de fantoches


Você pode ver mais ideias sobre Aqui, você pode usar os fantoches de mão ou os dedoches, que são
como usar fantoches no vídeo
os fantoches de dedo. Personagens são sempre ótimos para contar a
Como utilizar fantoches em sala
de aula ou contação de história. história, assim, as crianças mantêm o foco nos bonecos e também na
Disponível em: http://youtu.be/ sua voz. Em Teatro com caixa de sapato #PapelEmTudo | DIY - Faça
uNhUGsnxNhw. Acesso em: 18 você mesmo, Viviane Merlim ensina como montar um cenário com de-
jun. 2020.
doches para contar suas histórias preferidas. Assista ao vídeo no link:
http://youtu.be/f1y5Tyh94Sw.
Dica
7. Contação com dobraduras
A contadora de histórias Kátia
Pecand mostra outra forma de se Para quem se arrisca a fazer (ou a aprender a fazer) dobraduras,
contar histórias com dobraduras
no vídeo Dobradura com história: essa é uma ótima opção, que pode engajar os alunos na hora da con-
final encantador. tação de histórias. Dependendo da idade deles, você pode pedir que
Disponível em: http://youtu.be/ façam a dobradura durante a narração, ou após, para poder auxiliá-los.
EAOVkprvkUw. Acesso em: 18
Em Contação de história: a folha que queria ser um barquinho, no canal
jun. 2020.
de Kátia Pecand, veja um belo exemplo. Assista ao vídeo no link: http://
youtu.be/x5MgGanLtwM.
Dica
Às vezes, ficamos com vergonha 8. Utilização de desenhos
de desenhar junto com as
Outra opção bem legal para pedir a participação dos alunos é criar
crianças. Para resolver isso, veja
os cursos básicos de desenho da um momento para contar histórias aliada a desenhos. Assim como na
Faber-Castell. dobradura, você pode desenhar antes e, depois, pedir que eles dese-
Disponível em: https://cursos. nhem suas impressões da história; ou, então, solicitar que desenhem
faber-castell.com.br/. Acesso
em: 18 jun. 2020. junto com você. Veja um exemplo no vídeo Bichinho preferido! Com can-
tiga, no link: https://www.youtube.com/watch?v=MaA4zZkvKAk&t=9s.

154 Literatura Infantil


Livro
9. Caixa de histórias

Você pode usar um recurso que causa mistério em torno da histó-


ria, como uma caixa preparada para narrar a obra selecionada. Den-
tro dela, você pode inserir os personagens e os objetos da história e
ir tirando um a um quando for contá-la. Também, há a possibilidade
de você ter uma caixa grande com todos os objetos das categorias an-
Um livro de cabeceira para
teriores, como um baú de contação de histórias; assim, você pode ir
quem quer contar histórias
mesclando as técnicas. Para ver como produzir uma caixa de histórias, é O ofício de contador
de histórias: perguntas
acesse o vídeo Caixa de histórias – Oficina do varal de histórias, no link:
e respostas, exercícios
http://youtu.be/zTtfBqCbEYk. práticos e um repertório
para encantar. Nessa obra,
Essas foram algumas técnicas, mas você pode combiná-las, modifi- você encontrará muitas
atividades que podem ser
cá-las e inventar as suas técnicas. Vale lembrar, apenas, que quem faz a
levadas para a sala de aula
mágica acontecer é você. Então, treine e use a criatividade para motivar e para outros espaços de
contação de histórias.
o público infantil! Ah! E não se esqueça: sem a leitura do professor, não
há como motivar o aluno! MATOS, G. A; SORSY, I. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.

6.3 Formando o leitor crítico


Vídeo Ensinar leitura e literatura não serve apenas à descoberta do código
ou ao prazer da leitura, mas também ao desenvolvimento da capaci-
dade de julgar informações e utilizá-las de forma crítica. Esse ensina-
mento vem desde muito cedo, com o questionamento sobre o que os
alunos leram e as relações com outros textos, outras fontes e, também,
sobre a interferência da visão de quem escreve.

Ao ler este texto, por exemplo, você tem contato com informações
de outros autores da área, as quais são passadas para você pela vi-
são de quem está aqui escrevendo este livro. Não há neutralidade no
discurso, mesmo que tentemos ser o mais neutros possível. Um texto
sempre trará algumas características de quem o escreve, seja pela sele-
ção dos fatos e dos autores, seja pela forma de escrever e representar
suas ideias.

Assim, desde pequenas, as crianças podem aprender a refletir sobre


quem escreveu, quando isso ocorreu e quais eram os fatores históricos
presentes naquele momento, identificando se esses fatores influencia-
ram ou não a narrativa. Isso vai sendo realizado de forma progressiva e
essa reflexão pode ser inserida nas atividades de debate antes e após

Trabalho pedagógico com literatura infantil 155


a leitura, nas questões para promoção do reconhecimento do texto e
prática de escrita ou mesmo em pesquisas.

Esse trabalho “vai além da superfície do texto, além do que está


explícito, do que está declarado. Uma leitura que mobiliza um sentin-
do plural, portanto: que está no texto, que está no leitor, que está no
contexto” (ANTUNES, 2009, p. 204). O que Irandé Antunes nos diz é que
o trabalho de reflexão da leitura resgata as condições de produção do
Desafio texto, relacionando-as com as condições de recepção por parte do lei-
Você sabe como combater as tor para a plena produção de sentidos.
fake news? Desafie-se e reflita
sobre cada notícia que você Aos poucos, o leitor aprende a empregar o mesmo raciocínio crítico
recebe nas redes sociais. Para para seus textos e discursos, sendo capaz de atuar como cidadão e su-
saber como reconhecer uma
jeito em diversas esferas da vida privada e pública. Especialmente hoje,
notícia falsa, faça a leitura da
matéria Sabe como identificar por termos um contexto intrincado, em que as chamadas fake news se
uma notícia falsa? Siga os 7 propagam rapidamente, como fogo em palha.
passos deste guia, da BBC news
Brasil. Embora possamos achar que a literatura esteja desligada de tal fe-
Disponível em: https://tinyurl. nômeno, pense em quantas vezes você recebeu um texto ou um poe-
com/yd8zvrzd. Acesso em: 18
ma atribuído a Fernando Pessoa ou Luís Fernando Veríssimo quando,
jun. 2020.
na verdade, a produção não era de suas autorias. Pode parecer trivial,
mas o fato é que refletir em um contexto literário permite que o aluno
possa estender o aprendizado a outros gêneros e a outros âmbitos de
Artigo leitura.

No ano de 2020, tivemos duas Apesar de o combate às fake news estar no escopo da BNCC para
grandes pandemias: uma os anos finais do ensino fundamental, acreditamos que nunca é cedo
provocada, de fato, por um
demais para promover o debate com alunos que estão cada vez mais
vírus, e outra, por uma chuva de
informações falsas. A Agência cedo ligados na tecnologia. Aliás, nós adultos tendemos a pensar que,
Pública preparou uma notícia por serem tão familiares com a tecnologia, as crianças sabem o que es-
exemplificando como muitas
notícias falsas sobre a pandemia tão fazendo. Não é verdade! Elas continuam sendo crianças e precisam
de COVID-19 influenciaram desenvolver o raciocínio crítico como em qualquer outra época.
negativamente o combate à
doença. Leia o artigo e reflita Dessa forma, a BNCC, sobre as fake news e a respeito da necessida-
sobre quais danos as fake news de de se combater os discursos de ódio, traz o seguinte:
podem causar à saúde da
população e ao sistema político e A questão da confiabilidade da informação, da proliferação de
econômico de um país. Para isso, fake news, da manipulação de fatos e opiniões tem destaque e
busque mais informações em muitas das habilidades se relacionam com a comparação e análi-
fontes confiáveis. se de notícias em diferentes fontes e mídias, com análise de sites
Disponível em: https://tinyurl. e serviços checadores de notícias e com o exercício da curado-
com/re6nqak. Acesso em: 18 ria, estando previsto o uso de ferramentas digitais de curado-
jun. 2020.
ria. A proliferação do discurso de ódio também é tematizada em
todos os anos e habilidades relativas ao trato e respeito com o

156 Literatura Infantil


diferente e com a participação ética e respeitosa em discussões
e debates de ideias são consideradas. […] Trata-se de promover
uma formação que faça frente a fenômenos como o da pós-ver-
dade, o efeito bolha e proliferação de discursos de ódio, que
possa promover uma sensibilidade para com os fatos que afe- Leitura
tam drasticamente a vida de pessoas e prever um trato ético com
o debate de ideias. (BRASIL, 2018, p. 134-135) A Revista Uno de comunicação
lançou um volume com diversos
Como visto no trecho, mesmo que o trabalho de checagem dos artigos sobre o fenômeno da
pós-verdade, analisando-o por
fatos seja obrigatório para os anos finais, o combate ao discurso de diversos ângulos. Vale a pena
ódio deve ser realizado em todas as séries. Aí está posta também a leitura.
a literatura, a qual deve promover o reconhecimento e o respeito Disponível em: https://tinyurl.
com/y9knxgaz. Acesso em: 18
pelas diferenças.
jun. 2020.
O trecho cita também o fenômeno da pós-verdade. Esse fenômeno
tem sido tratado por muitos autores e, em termos gerais, significa que
fatos reais e objetivos passam a ter menos peso do que informações
que apelem para a emoção e para as crenças pessoais, permitindo que
as fake news se espalhem com grande facilidade.

José Antônio Llorente nos diz que, na pós-verdade, “o objetivo e o


racional perdem peso diante do emocional ou da vontade de susten-
tar crenças, apesar dos fatos demonstrarem o contrário” (2017, p. 9).
Também, podemos ligar a esse conceito as expressões verdade alterna-
tiva e notícia fictícia, as quais demonstram o momento em que estamos
vivendo, em que não há necessidade de a informação ser verdadeira
contanto que ela demonstre aquilo que o leitor acredite. E isso é um
grande perigo.

Conforme Lúcia Santaella,


o que se pode inferir das discussões levadas a cabo sobre o tema
é que a falsidade funciona em toda a sua potência propagadora
porque as pessoas tendem irrefreavelmente a se recolher den-
tro das bolhas de seus preconceitos. Tornam-se, assim, presas
fáceis de interesses dos quais não conseguem se dar conta. Por
estarem retidas dentro de suas próprias cavernas platônicas tor-
nam-se incapazes de furar o bolsão de suas crenças fixas para
enxergar algumas clareiras fora delas. (2018, p. 47-48)

Se não há mais verdades ou uma realidade objetiva, ficamos à mer-


cê de narrativas que podem ser muito perigosas, perpetuando precon-
ceitos e destruindo vidas. Aliás, empregamos o termo narrativas porque
a maior parte das fake news utilizam uma estrutura narrativa para tocar

Trabalho pedagógico com literatura infantil 157


o leitor de forma emocional, da mesma forma que a literatura; isto é, o
storytelling, que traduzindo ao pé da letra nada mais é do que a narra-
ção/contação de histórias.
Livro O storytelling, hoje, é muito utilizado pela publicidade, por palestran-
tes e também pela pós-verdade, pois é a arte de contar uma história de
forma atraente, que marque o leitor, que o faça comprar aquela ideia. É
exatamente o que fazemos quando contamos uma história: tentamos
atrair o leitor para o produto texto, seduzindo-o com a forma como
contamos.

O papel da escola e do professor, portanto, é formar leitores capa-


zes de refletir criticamente sobre o que leem, veem e ouvem nas mídias
Lúcia Santaella é uma impressas e virtuais, sejam elas de gênero literário ou não. Somente
pesquisadora da área
de Semiótica, discipli- assim nossos alunos conseguirão se tornar cidadãos conscientes do
na ligada às áreas de mundo em que habitam e de seu papel na sociedade. E sabemos que
comunicação e literatura.
Seu livro A pós-verdade cada vez menos conseguimos atingir esse objetivo. Ensinamos leitura,
é verdadeira ou falsa? mas que leitura é essa se nossos alunos estão cada vez piores nessa
promove discussões
acerca do fenômeno da habilidade? Ensinamos as letras, isso sim, mas não necessariamente a
pós-verdade e da en- leitura do mundo e das ideias por trás das letras.
xurrada de informações
na contemporaneidade. Gênese Andrade aponta que a literatura propicia um leitor capaz
Vale a pena a leitura para
refletir sobre o mundo de relacionar o que lê com sua própria subjetividade e de elaborar as
em que vivemos. ideias do texto sem que o outro lhe dê os sentidos. Assim,
SANTAELLA, L. São Paulo: Estação podemos dizer que o trabalho com a literatura infantil é funda-
das Letras, 2018.
mental para a contribuição global na formação da criança e sua
relação com a alteridade, ou seja, possibilita que ela entre em
contato com aquilo que lhe é diferente e estranho, tanto no que
se refere ao conteúdo dos textos, que podem abordar diferen-
tes situações, realidades e pensamentos, quanto em razão das
diversas interpretações que um mesmo texto pode possibilitar.
Desse modo, podemos concluir que a literatura é forte instru-
mento para a aniquilação de preconceitos e ideias preconcebi-
das; ela é fomentadora do espírito crítico e da desalienação do
ser. (ANDRADE, 2014, p. 15)

Portanto, o combate à desinformação é o combate aos pensamen-


tos preconcebidos, que podem carregar em si todo tipo de violências e
preconceitos, e a literatura infantil é aliada nessa empreitada.

O verbo alienar diz respeito à transferência de algo seu a outra


pessoa. Na (des)alienação referida no trecho, percebemos que se alie-
nar significa entregar o seu juízo crítico, a sua produção e a sua reflexão

158 Literatura Infantil


a outro. Logo, ao nos alienarmos, não refletimos mais sobre nosso en-
torno; permitimos que o outro o faça por nós, deixando de nos respon-
sabilizar pelas informações recebidas e produzidas.

Em relação à construção do leitor, Costa cita o estudo do crítico lite-


rário mexicano Gabriel Zaid. Este menciona quatro aspectos relevantes
sobre o leitor. Entre eles, está a condição de assimilação e difusão do
conteúdo lido, ou seja, o que e como o leitor compreende as informa-
ções lidas e como as repassa.
Assimilar não para permanecer no que já se sabia, mas para pro-
duzir energia capaz de dar vida ao cérebro, às inteligências, à sen-
sibilidade. Uma adoção indiscriminada do conteúdo dos textos
contraria o pensamento atual sobre leitura, que é antes de tudo
resultado do embate que o leitor crítico trava com os textos que lê.
Dessa troca de porquês e de respostas é que nasce a energia que
sustentará argumentos e critérios. (COSTA, 2013, p.112)

Assim, o ato de refletir sobre o que se lê é um alimento para a in-


teligência. Sem reflexão, permanecemos sempre na situação anterior à
leitura: sem adquirir, de fato, o conhecimento. Só conseguimos nos tor-
nar competentes em dialogar, em expôr ideias e em selecionar obras de
qualidade quando adquirimos a competência de sermos leitores críticos.

Então, não temos como não lembrar do projeto de Paulo Freire para
a formação de alunos críticos partindo da leitura. Para Yunes (2013,
p. 6), “Paulo Freire, refletindo sobre a experiência considerou que os
sujeitos se constroem no uso das linguagens que passam a dominar,
em função do contexto histórico percebido criticamente”. Desse modo,
ler – realmente ler, não apenas decodificar – significa perceber todo o
contexto sócio-histórico em que crescemos, nos desenvolvemos e for-
mamos nossas crenças e nossos valores. Isso nos permite compreen-
der exatamente que nossas crenças pertenceram a alguém, antes de
nós mesmos as tomarmos como nossas.

Para que isso aconteça em um cenário escolar com crianças que ain-
da estão desenvolvendo essa habilidade, é necessário que o professor
compreenda esse processo e possibilite práticas que promovam a par-
ticipação ativa e crítica dos alunos. Não é fornecer ao aluno todos os
significados prontos, pois aí estaremos passando somente nossa visão
a respeito das leituras; é promover um espaço de diálogo em que o
aluno se sinta confortável para se lançar na reflexão.

Trabalho pedagógico com literatura infantil 159


Esse espaço de diálogo deve ser seguro o suficiente para que o alu-
no não se sinta angustiado ou com medo de expor suas ideias, caso ele
perceba que o professor tem opinião diferente ou espera uma única
resposta. Ao mesmo tempo, deve ser um espaço que promova um mo-
vimento de saída da zona de conforto.

Como muitos professores ainda preferem ensinar os sentidos do


texto de acordo com o que pensam ser certo, os estudantes passam a
professar essa prática e também se sentem incomodados quando são
interpelados a deixarem essa zona de conforto e ousarem refletir para
além de ideias preconcebidas.

Por esse motivo, os professores precisam caminhar sempre em


direção ao objetivo de se tornarem mediadores. Não devem ser cas-
tradores nem mesmo liberais demais, sem uma condução clara das
atividades, mas devem dividir o poder e as descobertas com o aluno,
para que, aos poucos, este possa “caminhar com as próprias pernas”,
ou melhor, raciocinar com as próprias capacidades cognitivas.

A psicanálise possui uma crença de que uma boa mãe deve se tor-
nar, aos poucos, desnecessária. Isso porque a criança terá aprendido
com ela como ser autônoma. Dessa forma devemos ver, também, o
Atividade 3 papel do professor, que, ao longo do tempo, deve se tornar “desne-
Explique, com suas palavras, cessário” ao aluno, entendendo ter ajudado a formar um ser humano
o que você entende sobre o
crítico que, em breve, não mais precisará da mão do tutor. E isso é bom,
papel do professor se tornar
desnecessário aos poucos. pois significa que fomos capazes de fazer um bom trabalho. Assim, par-
timos para tantos outros alunos que ainda virão.

CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Com este capítulo, tivemos a intenção de “sacudir a poeira” – pelo me-
nos um pouco dela – das práticas educacionais focadas apenas no papel de
um aluno passivo. Cremos que uma boa prática pedagógica é aquela capaz
de formar leitores e seres humanos críticos, capazes de refletir sobre sua
subjetividade e como ela se constrói em relação ao mundo que a cerca.
Não pare por aqui, continue buscando informações (e de fontes con-
fiáveis)! Busque sempre julgar as informações que recebe, refletindo so-
bre o lugar delas no momento social, político e econômico em que foram
produzidas. E mais: libere a criatividade, para motivar os alunos a se en-
cantarem com a literatura!

160 Literatura Infantil


REFERÊNCIAS
ANDRADE, G. (Org.). Literatura infantil. São Paulo: Pearson, 2014.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018. Disponível em: http://
basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf.
Acesso em: 18 jun. 2020.
COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009.
COSTA, M. M. da. Metodologia do ensino da literatura infantil. Curitiba: InterSaberes, 2013.
LLORENTE, J. A. A era da pós-verdade: realidade versus percepção. Revista Uno, São
Paulo, n. 27, p. 9, mar. 2017. Disponível em: https://www.revista-uno.com.br/wp-content/
uploads/2017/03/UNO_27_BR_baja.pdf. Acesso em: 18 jun. 2020.
PRIETO, H. Lobo de estimação. Porto Alegre: Editora Projeto, 2009.
SANTAELLA, L. A pós-verdade é verdadeira ou falsa? São Paulo: Estação das Letras, 2018.
SOUZA, N. C. P. de. As narrativas orais e a formação do leitor. Boitatá, Londrina, v. 10,
n. 20, p. 286-300, jul-dez. 2015. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/
boitata/article/view/31490/22056. Acesso em: 18 jun. 2020.
YUNES, E. L. M. Um ensaio para pensar a leitura. Verbo de Minas, Juiz de Fora, v. 14, n. 23,
p. 5-18, jan/jul. 2013. Disponível em: https://seer.cesjf.br/index.php/verboDeMinas/article/
view/417/307. Acesso em: 18 jun. 2020.

GABARITO
1. A resposta trará reflexões subjetivas, mas deve conter as três possibilidades de sele-
ção de livros e o entendimento de que a melhor forma de seleção é unir as três pos-
síveis formas, sempre levando em consideração a atualidade das obras, a progressão
dos temas e as especificidades da turma.

2. Mesmo que a espontaneidade seja fundamental para contar histórias, é preciso plane-
jamento para que esse ato possua um objetivo e não seja apenas mais um momento
desconexo do currículo. Técnicas são sempre bem-vindas, pois podem explorar mais
a fundo os elementos da narrativa e envolver os alunos de diferentes formas. A im-
previsibilidade sempre será um elemento passível de acontecer e, para isso, é preciso
um planejamento que leve em conta a participação dos alunos, o conforto e a com-
preensão da história.

3. O professor tem um papel árduo e belo a cumprir: o de auxiliar na formação do ser


humano e do leitor crítico, capaz de refletir sobre o mundo em que vive e sobre as
crenças e os valores que professa. Aos poucos, esse mesmo professor não deve mais
ser necessário, pois já fez seu papel e atingiu o seu objetivo. O aluno caminhará por si
próprio, pois, antes, teve o apoio do professor para construir essa autonomia.

Trabalho pedagógico com literatura infantil 161


7
Literariedade e análise
de obras infantis
Você me pediu para eu descobrir o mistério da fuga do coelho. Tenho tentado descobrir do seguinte
modo: fico franzindo meu nariz bem depressa. Só para ver se consigo pensar o que um coelho pensa
quando franze o nariz. (…)

Se você quiser adivinhar o mistério, Paulinho, experimente você mesmo franzir o nariz para ver se dá
certo. É capaz de você descobrir a solução, porque menino e menina entendem mais de coelho do que
pai e mãe. Quando você descobrir, você me conta. Eu é que não vou mais franzir meu nariz, porque já
estou cansada, meu bem, de só comer cenoura.

Clarice Lispector, em O mistério do coelho pensante

De nada adiantaria trabalharmos sobre todos os ângulos da


literatura e deixarmos de lado a prática em sala de aula. Assim,
este capítulo traz as principais categorias de análise de obras lite-
rárias para a educação infantil e o ensino fundamental anos iniciais,
exemplificando por meio de obras diversas.
Além disso, trazemos roteiros para trabalho com alguns livros
e algumas histórias infantis para que você possa utilizá-los em sua
prática profissional em sala de aula. Esperamos que você aproveite!
Bons estudos!

7.1 Literariedade na literatura infantil


Vídeo Afinal, o que faz o texto literário ser entendido como literatura? São
muitas as discussões nesse sentido, mas aqui vamos tentar desmistifi-
car essa área como algo muito aquém da linguagem cotidiana, buscan-
do os elementos que a constituem.

Dessa forma, vejamos como Antoine Compagnon reflete sobre a


constituição e o papel da literatura. É interessante notar que o crítico li-
terário aponta a literatura como uma forma capaz de ter um papel tan-
to de confirmação quanto de dissensão. Isto é, a literatura pode servir à

162 Literatura Infantil


ideologia dominante, confirmando os valores da classe que comanda e,
ao mesmo tempo, servir de esclarecimento e ruptura com essa mesma
ideologia. Segundo ele:
se a literatura pode ser vista como contribuição à ideologia domi-
nante, “aparelho ideológico do Estado”, ou mesmo propaganda,
pode-se, ao contrário, acentuar sua função subversiva, sobretu-
do depois da metade do século XIX e da voga da figura do artista
maldito. (2010, p. 36)

Assim, a literatura se estabelece em uma dicotomia: de um lado


com obras que perpetuam discursos dominantes e do outro obras que
tentam romper com tradições e discursos, estabelecendo um novo
campo para a arte.

Já em relação à forma e como ela influencia o reconhecimento de


um texto enquanto literatura, Compagnon (2010) reflete sobre as teo- Vídeo
rias literárias que tomam essa área como uma linguagem que se afasta Assista a uma aula dada pelo
do cotidiano, gerando um uso estético da língua. Entretanto, para o escritor Ariano Suassuna e
perceba como sua fala é poética.
autor, essa visão de literatura como afastada da linguagem comum,
Aliás, ele mesmo explica o
utilitária, acaba por separá-la da vida. motivo de sua fala. Em suas
palavras, ele leva 20 minutos
É uma visão formalista, com a crença de que a literatura possui uma para dizer o que as pessoas
linguagem perene, expressiva, ambígua, enquanto a linguagem cotidia- dizem em 10, e fala por rodeios.
na é transitiva, ou seja, esquecemos as palavras que foram ditas quan- E mesmo assim, sua fala é de
uma beleza ímpar! Disponível
do o ato comunicativo acaba. Porém, quem já não ouviu uma palestra em: http://youtu.be/B3KN-dn-
que mais parece uma poesia oral, e nem por isso deixou de comunicar R5s. Acesso em: 19 jun. 2020.
ou de ser uma linguagem cotidiana?

Um exemplo disso são as palestras que o autor Ariano Suassuna Vídeo


apresentava em universidades. Em sua fala, havia uma função de
A teoria da literatura tem
passar conhecimento aos alunos, e não o de ser literatura, mas era estudos de variadas escolas
extremamente literária. Logo, a visão formalista e dualista da literatura que advêm de pensamentos e
nacionalidades distintas. Dois
enquanto uma linguagem especial versus uma linguagem cotidiana exemplos são o formalismo
nem sempre se sustenta. russo e o estruturalismo. Para
saber mais sobre a primeira,
Ao mesmo tempo, devemos ao formalismo a construção do termo acesse o vídeo disponível em:
literariedade para designar o que distingue a literatura de outros textos. http://youtu.be/rKhgDr1d3pw.
Acesso em: 19 jun. 2020.
Foi necessária essa distinção para que os teóricos fundamentassem uma
Já para saber mais sobre o
área específica para o estudo da literatura – a teoria literária –, a qual estruturalismo, veja o vídeo
assumiu o estudo das especificidades dessa arte. disponível em: http://youtu.be/
R1csM3DdjTo. Acesso em: 19
Aprendemos na escola que existem funções da comunicação – jun. 2020.
expressiva, metalinguística, fática, referencial, conativa e poética), e

Literariedade e análise de obras infantis 163


aprendemos, também, que a literatura se encaixa na função poética,
como se as outras não estivessem presentes, ou como se a função poé-
tica não pudesse estar em outros textos.

Essa definição da função poética para estudar e compreender a litera-


tura foi promovida por Roman Jakobson, linguista e teórico literário russo.
Segundo o pensador russo, nos textos de literatura há predomínio da fun-
ção literária, não excluindo-se as outras, o que constitui essa função seria
o uso da língua, assim, nas palavras de Compagnon (2020, p. 42):
A literariedade (a desfamiliarização) não resulta da utilização de
elementos linguísticos próprios, mas de uma organização dife-
rente (por exemplo, mais densa, mais coerente, mais complexa)
dos mesmos materiais linguísticos cotidianos. […] As formas lite-
rárias não são diferentes das formas linguísticas, mas sua orga-
nização as torna […] mais visíveis.

Assim, temos duas teorias que tentam definir o que é literariedade.


De um lado os formalistas russos, defensores de que a literatura tem
uma linguagem própria, enquanto do outro, Jakobson, representando
os estruturalistas e inserindo a ideia de que não há linguagem própria,
mas, sim, a reorganização dos elementos linguísticos visando formar a
literatura.

Por fim, Compagnon sinaliza que, conforme a afirmação de outro


estruturalista – Gérard Genette – há uma parte de verdade em cada
uma dessas teorias, e completa que “é a sociedade que, pelo uso que
faz dos textos, decide se certos textos são literários fora de seus con-
textos originais” (COMPAGNON, 2010, p. 44).

Portanto, mesmo com uma nova área específica para o estudo da


literatura, ela não age sozinha, é sempre preciso se apoiar nos estudos
linguísticos uma vez que sem a língua não há literatura. E assim bus-
camos apoio nos estudos da Linguística Textual (LT) para iniciarmos a
compreensão da literariedade.
Sob um ponto de vista mais técnico, a LT pode ser definida como
o estudo das operações linguísticas, discursivas e cognitivas re-
guladoras e controladoras da produção, construção e processa-
mento de textos escritos ou orais em contextos naturais de uso.
(MARCUSCHI, 2008, p. 73)

Logo, a LT nos dá base para um olhar inicial para obras literárias,


em uma análise da construção do texto em si, de sua “tessitura”. As
atividades que acompanham o texto literário nos livros didáticos

164 Literatura Infantil


correspondem em grande parte a um trabalho proposto pela LT, pois a
maioria das questões solicitam do aluno a identificação dos processos
de construção e compreensão textual.

7.1.1 Elementos da textualidade


Uma das áreas de estudo da LT é a textualidade, a qual também
irá compor a literariedade. Assim, um texto não é um amontoado de
palavras, mas uma prática que leva em conta um conjunto de critérios
para que seja reconhecido como tal. “O texto é uma proposta de
sentido e ele só se completa com a participação do seu leitor/ouvinte”
(MARCUSCHI, 2008, p. 94).

Para ter sentido, o texto precisa dar conta de sete critérios de


textualização. Esses critérios proporcionarão essa construção de
sentido para além de ser um manual de regras a serem seguidas.
Assim, asseguramos que o receptor tenha condições de compreender
o que lê, garantindo que o texto seja adequado.
Produzimos textos por processos de textualização inadequados
quando não conseguimos oferecer condições de acesso a algum
sentido, seja por ausência de informações necessárias, ou por
ausência de contextualização de dados ou então simplesmen-
te por inobservância de restrições na linearização e violação de
relações lógicas ou incompatibilidades informativas. Contudo,
não convém confundir um texto de difícil compreensão com um
texto impossível de ser compreendido. Às vezes, o que não en-
tendo hoje entendo amanhã. (MARCUSCHI, 2008, p. 98)

O que Marcuschi nos diz é que quando pecamos em um texto não é


necessariamente por não seguirmos uma ortografia ou pontuação perfei-
tas, mas, sim, quando as informações não conseguem fazer sentido para
o leitor, seja porque estão incompletas, seja porque estão muito confusas.

E quais são os critérios necessários para a escrita de um bom texto,


seja ele literário ou não? Vamos ver a seguir:

1. Coesão

A coesão é a característica que dá a conexão entre os elementos


de um texto. São determinados padrões que possibilitam um texto de
funcionar em determinada língua. Por exemplo, uma estrutura básica
na língua portuguesa é uma sentença com sujeito-verbo-predicado. É
claro que pode haver variações, mas é uma estrutura muito comum

Literariedade e análise de obras infantis 165


e relevante para o reconhecimento de quem é o sujeito da ação, que
ação é essa e como ela é realizada.

Além disso, a coesão diz respeito à ligação entre as palavras e os


Livro blocos do texto. Ela pode ser tanto por referência (com uso de prono-
mes e substantivos para se referir ao sujeito de uma frase ou parágrafo
anterior) ou por sequência (com uso de conectivos).
a. Coesão explícita: quando temos os pronomes e conectivos na
superfície do texto, como no exemplo abaixo:
Mary ora chorava, ora dormia. Só o que ela sabia era que as
pessoas estavam doentes e que ela ouvia ruídos misteriosos e
assustadores pela casa. Uma vez, foi andando pé ante pé até a
sala de jantar e a encontrou vazia, embora houvesse restos de
A obra A coesão textual se
aprofunda nos mecanis- uma refeição em cima da mesa. (BURNETT, 2015, grifos nossos)
mos que produzem um
texto coeso. É um livro O trecho foi retirado do livro O jardim secreto e podemos visualizar
obrigatório para quem nos grifos em negrito os pronomes que formam a coesão por referên-
escreve e ensina textos.
cia. Já os grifos em itálico representam os conectivos. Perceba como
KOCH, I. V. São Paulo: Contexto,
2016. nessas poucas orações há diversos elementos coesivos.
b. Coesão implícita: embora sem utilização de pronomes e
conectivos, alguns textos conseguem passar uma coesão, como é
o caso do conto Circuito fechado de Ricardo Ramos:
Livro
Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme
dental, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete,
água, cortina, sabonete, água fria, água quente, toalha. Creme
para cabelo, pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça, meias,
sapatos, gravata, paletó. Carteira, níqueis, documentos, caneta,
chaves, lenço. (RAMOS, 1974, p. 169-175)

Somente com a utilização de substantivos é possível compreender o


texto por se tratar de um retrato da rotina diária de alguém. Assim, um
texto pode ser coeso sem necessariamente usar elementos coesivos,
A coerência textual é uma
obra que trabalha de porém são pouquíssimos os que conseguem.
modo detalhado e apro-
fundado a construção 2. Coerência
dos sentidos do texto
pela coerência. Leitura Alguns autores não separam a coerência da coesão, por entender
fundamental para quem que ambas promovem a continuidade do texto. Para Marcuschi, “há
trabalha com textos.
uma distinção bastante clara entre a coesão como a continuidade ba-
KOCH, I. V.; TRAVAGLIA, L. C. São
Paulo: Contexto, 2015. seada na forma e a coerência como a continuidade baseada no sentido”
(2008, p. 119, grifos do original).

166 Literatura Infantil


Assim, a coerência é uma relação de sentido que o texto estabelece
com suas partes, com o leitor e com o mundo. São relações que estão
ligadas à atividade cognitiva do leitor, pois partindo deste e de seu co-
nhecimento, o sentido do texto tomará forma. É um critério de inter-
pretação que possibilita compreendermos o texto de Ricardo Ramos,
porque vivemos diariamente uma rotina muito próxima à descrita.

Um texto incoerente, então, é aquele que não é possível semantica-


mente ou não é possível para o leitor, pois lhe falta o conhecimento de
alguma informação.

3. Intencionalidade

É a celebre pergunta que sempre nos fizeram após lermos na esco-


la: “O que o autor quis dizer neste texto?”. Este é um tópico complexo,
pois não saberemos ao certo qual foi a intenção do autor. Logo, é um
critério muito mais voltado ao próprio produtor do texto.

Não quer dizer que não devemos nos perguntar a respeito das in-
tenções do texto, ao contrário, é necessário refletir sobre isso, apenas
não é preciso que fiquemos na busca eterna de recuperar a intencio-
nalidade autoral, especialmente quando não conseguiremos essa res-
posta em caso de autores já falecidos. E mais, como a pretensão é a de
leitores reflexivos que reconstruam os caminhos da produção textual
compreendendo o contexto, o leitor deve ser estimulado a encontrar
diversas intenções pelo conteúdo que lê.

4. Aceitabilidade

Se a intencionalidade tem grande foco no escritor, a aceitabilidade


tem ênfase no leitor. Isso porque, de acordo com Marcuschi, “a aceita-
bilidade diz respeito à atitude do receptor do texto […], que recebe o
texto como uma configuração aceitável, tendo-o como coerente e coe-
so, ou seja, interpretável e significativo” (2008, p. 127-128).

Embora a aceitabilidade seja o foco do leitor, ela depende da in-


tencionalidade do autor, pois a forma como o texto é construído será
imprescindível para quem o está lendo aceitá-lo ou não.

5. Situacionalidade

É um critério que guia a construção textual e também a sua inter-


pretação. Diz respeito ao contexto de produção, afinal, “todo texto con-
serva em si traços da situação a que se refere ou na qual deve operar”
(MARCUSCHI, 2008, p. 129).

Literariedade e análise de obras infantis 167


Livro
Então, a situacionalidade está relacionada ao contexto de uso do
texto, ou seja, um texto didático tem uma certa situação que é a edu-
cacional, já o texto literário possui outra situação que é a estética ou a
de entretenimento.

6. Intertextualidade

São as relações entre um texto e outros textos, afinal, nenhum texto


é completamente novo, há sempre relações baseadas em leituras pré-
A obra Palimpsestos: a
vias, sejam elas proporcionadas pelo autor ou pelo receptor do texto.
literatura de segunda
mão, de Gérard de 7. Informatividade
Genette acerca da
intertextualidade norteia Aqui se coloca o grau de expectativas e de conhecimentos referen-
muitos estudos na
área de teoria literária tes ao texto lido. Ou seja, quais são, de fato, as informações e os conhe-
e de linguística textual. cimentos que o texto permite ao leitor ter acesso.
Genette faz uma
categorização mais Muito bem, agora que você já entendeu quais são os critérios para a
ampla das relações do
texto. Para saber mais, construção de um texto, seja ele literário ou não, vamos ver as catego-
você pode realizar a rias que distinguem a literariedade especificamente.
leitura de uma versão
voltada ao público
acadêmico. Disponível
em: http://paginapessoal.
7.1.2 Elementos de literariedade
utfpr.edu.br/cantarin/
literatura-e-m-meios- Como já vimos, a literariedade é uma categoria ampla, mas é o objeto
digitais-ppgel/11-de- de estudos da teoria literária. Assim, dentro desse objeto cabem muitas
abril/Palimpsestos%20
-G.%20Genette-%20 análises, dentre elas os elementos constitutivos da narrativa, do poema
em%20portugues.pdf/ e do teatro. Vamos lançar uma luz sobre alguns desses elementos ten-
at_download/file. Acesso
em: 19 jun. 2020. tando identificar cada um em trechos de obras de literatura infantil.
GENETTE, G. Trad. de Cibele Braga; 1. Tempo
Erika Viviane Costa Vieira; Luciene
Guimarães; Maria Antônia Ramos É um elemento muito importante para uma obra de ficção, pois imor-
Coutinho; Mariana Mendes Arruda;
taliza aqueles instantes, criando a atmosfera para o acontecimento dos
Miriam Vieira. Belo Horizonte:
Edições Viva Voz, 2010. fatos. Assim, nas palavras de Moisés (2007, p. 101), “criando o tempo,
o homem nutre a sensação de superar a brevidade da existência, e de
identificar-se […] com o tempo cósmico, que permanece para sempre”.

Veja o exemplo dessa imortalização do tempo na obra O jardim secreto,


Filme de Burnett (2015) em que se congela a cena diária da rotina da casa.
Você sabia que a obra O jardim No início, cada dia que passava era exatamente igual a todos
secreto foi cinematografada em
os outros para Mary Lennox. Toda manhã, ela acordava em seu
um belíssimo filme? Vale a pena
conferir. quarto forrado de tapeçaria e encontrava Martha ajoelhada em
Direção: Agnieszka Holland. EUA: frente à lareira, preparando o fogo; toda manhã, ela tomava seu
Warner Bros., 1993. café da manhã no quarto de criança que não tinha nada para
distrair uma criança; depois do café da manhã, olhava pela janela

168 Literatura Infantil


para a imensa charneca, que parecia se estender para todos os
lados e ir subindo, subindo até chegar ao céu; depois de ficar
um tempo olhando pela janela, ela se dava conta de que, se não
fosse lá para fora, teria de ficar dentro de casa sem fazer nada e,
então, ela ia lá para fora.

2. Espaço

O cenário é normalmente pano de fundo para o enredo, mas às ve-


zes pode se tornar um elemento com maior importância, especialmen-
te nas obras ficcionais de mundos muito distintos da realidade objetiva.
A análise do espaço deve ser realizada como intuito de relacionar todos
os elementos narrativos. Como no exemplo abaixo, no qual podemos
ver que o cenário influenciará na conduta das personagens, as quais
bebem em excesso devido ao frio e à miséria do reino.
Tyrola… O nome do lugar soara tão promissor quando ele cruzou
a fronteira, quase morrendo de frio! Porém o reino inteiro era
tão lastimável quanto o clima. O castelo do rei não merecia ser
chamado de castelo, e “rei” era um título muito elogioso para o
imbecil que governava Tyrola. Seus súditos o chamavam pelas
costas de Segismundo, o Louco. A maioria deles não comia nada
além de pão seco e queijo podre, e sobrevivia ao frio embriagan-
do-se com a aguardente que eles mesmos destilavam em seus
casebres escuros nas montanhas. (FUNKE, 2013, p. 3)

3. Enredo

O enredo se dá pelo conjunto das ações realizadas pelos persona-


gens ou narradores, ações que podem ser tanto externas, como via-
gens e aventuras, quanto internas, como pensamentos e emoções.
Claramente uma narrativa terá um misto dessas duas para compor o
enredo da história. Desafio
Coloque suas habilidades
A narrativa de A Festa no Céu é muito conhecida. Seus personagens
manuais em prática com uma
variam, pois é uma história folclórica e muito recontada ao longo dos dobradura da história da Festa
anos, por isso ora encontramos uma tartaruga no papel principal, ora no céu. Disponível em: https://
tinyurl.com/y9fjwwwl. Acesso
um sapo. Em todo caso, o enredo possui uma sequência de aconteci-
em: 19 jun. 2020.
mentos que leva a um desfecho no qual é explicada a origem do casco Em seguida, imprima e forme
quebrado da tartaruga, ou da boca grande do sapo. sua biblioteca com mini-livros.
Outra opção legal de livro
4. Personagens dobrável é a lenda do Saci
Pererê. Disponível em: https://
Sem personagens não há história! Mas personagens podem ser
tinyurl.com/yde3hrz4. Acesso
pessoas (vivas ou mortas), animais, objetos, elementos naturais e até em: 19 jun. 2020.
mesmo sentimentos. Assim, não há como analisar uma obra sem se

Literariedade e análise de obras infantis 169


aprofundar no estudo de suas personagens. Estas poderão ser mais ou
menos desenvolvidas, e podem até vir a participar da narração, como
no exemplo abaixo em que o cão é narrador e personagem.
Era uma vez... Era uma vez: eu!
Mas aposto que você não sabe quem eu sou.
Prepare-se para uma surpresa que você nem adivinha.
Sabe quem eu sou? Sou um cachorro chamado Ulisses e minha
dona é Clarice. Eu fico latindo para Clarice e ela — que entende o
significado de meus latidos — escreve o que eu lhe conto.
(LISPECTOR, 2014, p. 2)

5. Narrador e foco narrativo


Foco narrativo também pode ser chamado de ponto de vista, e é “a
posição em que se coloca o escritor para contar história, ou seja, qual a
pessoa verbal que narra, a primeira ou a terceira” (MOISÉS, 2007, p. 113).
No caso da primeira pessoa, temos o próprio personagem contando
sua história, como em Quase de verdade, ou contando a história de al-
guém conhecido com o qual se relaciona diretamente na narrativa. Um
bom exemplo desse caso é a trilogia As crônicas de Arthur, de Bernard
Cornwell, em que o narrador conta a história do Rei Arthur, seu amigo,
colocando-se junto em cena.
Já na terceira pessoa podemos ter um narrador observador, que
conta o que sabe, mas não sabe tudo, ou um narrador onisciente, aque-
le que sabe até mais que o próprio personagem, como no caso abaixo:
Quem passa pela rua do Desassossego, número 38, nem perce-
be, mas…
O vizinho do 101 toma café enquanto observa gravuras de bichos.
A vizinha do 102 já voltou da maratona.
O vizinho coleciona discos da Velha Guarda.
A vizinha guarda coisas velhas que depois não encontra. (LIMA;
MASSARANI; MELLO, 2002, p. 4)

O livro Vizinho, vizinha traz um narrador que conta todos os hábi-


tos dos personagens centrais, sem que um saiba do outro, produzindo
uma história muito divertida.

6. Poema
Os poemas merecem uma análise que lhes é toda própria e leva em
conta sua metrificação, sonoridade e o conjunto de figuras de lingua-
gem e de efeito. Segundo Moisés (2007, p. 41), “a poesia se identifica
com a expressão do ‘eu’ por meio de linguagem conotativa ou de me-
táforas polivalentes”.

170 Literatura Infantil


Metáforas que se relacionam a nível emocional, sentimental e
conceitual bem como constituem o cerne do poema. Trata-se de uma
figura de estilo a qual permite que sentimentos e ideias possam ser
expressados de modo diferente do sentido literal. Assim, veja o exemplo:
Drome, drome
Dromedário
As areias
Do deserto
Sentem sono,
Estou certo.
(CAPARELLI, 2020)
O trecho do poema Canção para ninar dromedário de Sérgio Caparelli
começa com uma brincadeira entre “dormir” (drome) e “dromedário”,
deixando um início aberto. Na sequência, vemos que de fato se refere
ao ato de dormir, na brincadeira com “drome”, início da palavra
“dromedário”, pois as areias parecem estar sonolentas.

Outro exemplo de metáfora é o trecho da canção A porta, de Vinícius


de Morais:
Sou feita de madeira
Madeira, matéria morta
Não há nada no mundo
Mais viva que uma porta
(MORAIS, 2020)
A metáfora aqui fica por conta de que mesmo sendo matéria mor-
ta, a porta é viva. Em todo caso, “a poesia é, em essência, a-históri-
ca, a-narrativa e a-geográfica” (MOISÉS, 2007, p. 43). Isto é, boa parte
de poemas não trazem indicações de tempo, espaço ou desenlace de
acontecimentos. Porém, tanto tempo quanto espaço na poesia se rela-
cionam muito com o eu lírico, sendo muitas vezes o tempo psicológico
e o espaço da emoção.

A análise de textos poéticos deve levar em consideração, então,


toda a sua estrutura e, principalmente, a emoção evocada no leitor pe- Atividade 1
las figuras de estilo e linguagem. Textos literários precisam
E como analisar todas as categorias colocadas nas aulas dedicadas ser analisados por diferentes
ângulos. Relacione alguns desses
ao trabalho com a literatura infantil? Produzindo roteiros que englo- ângulos, justificando-os.
bem, aos poucos, as diversas categorias, instigando os alunos a refleti-
rem sempre.

Literariedade e análise de obras infantis 171


7.2 Análise de obras para educação infantil
Vídeo Para que possamos analisar obras literárias para as crianças, nada
melhor do que explorar as possibilidades de trabalho com textos infan-
tis, utilizando atividades para cada faixa etária. Assim, trazemos nesta
sessão três roteiros para o trabalho dentro da educação infantil, seja na
escola ou em outros espaços. Esses roteiros são sugestões, pois cada
criança apresentará um desenvolvimento próprio, e já estão construí-
dos apoiados na Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

7.2.1 Roteiro para crianças de até 1 ano de idade


Direitos de aprendi-
zagem e desenvolvi- Brincar e explorar.
mento

Traços, sons, cores e formas.


Campo de experiência
Escuta, fala, pensamento e imaginação.

Objetivos de
aprendizagem da (EI01TS01) (EI01TS03) (EI01EF03) (EI01EF04) (EI01EF05) (EI01EF07) (EI01EF08).
BNCC
Livros de pano; livros dobráveis em forma de sanfona; livros em formato de bichi-
nhos de pelúcia e livros sensoriais.
Indicações:
• USBORN PUBLISHING. Animais: meu livrinho dobra-desdobra. London: Usborne,
Materiais e recursos 2018.
• ROSIE, G. Cuidado com o monstro. São Paulo: Ciranda Cultural, 2017.
• YOYO BOOKS. livro chocalho. Portugal, 2017.
• BROOKS, S. Meu amigo lobo. Coleção animais de pano. São Paulo: Ciranda
Cultural, 2018.
1 – Atividade com bebês que ficam de bruços e seguram a cabeça (tummy time):
Há livros que vêm em formato de sanfona e que podem ser dispostos no chão
em frente ao bebê para que ele explore quando estiver com a barriga para baixo.
Você também pode produzir seu próprio livro em formato dobrável. Utilize cores
vibrantes e desenhos grandes para chamar a atenção dos bebês. Encape com
papel contact para que eles possam manusear (e colocar na boca), o que facilita a
Desenvolvimento
limpeza também.
Coloque o livro em frente ao bebê e conte a história apontando os objetos. Nesse
momento, o interessante é que eles consigam explorar cores e formas, recebendo
auditivamente uma história que em breve ele descobrirá estar ligada às formas.
A recomendação de livro para se trabalhar aqui é a Coleção Dobra e Desdobra,
indicada nos materiais.
(Continua)

172 Literatura Infantil


2 – Atividade para bebês que sentam e engatinham:
Utilize livros sensoriais que trabalhem com o tato, a visão e a audição. Assim, li-
vros com chocalho, materiais diferentes como silicone, pano e outras texturas e
desenhos vibrantes são bons materiais. Você também pode produzir livros com
texturas, sempre pensando se não irá se soltar ou machucar o bebê, pois invaria-
velmente ele irá colocá-los na boca.
Da mesma forma que bebês menores no tummy time, apresente o livro e conte a
história, deixando que o bebê interaja com o livro. Você vai perceber que o bebê já
estará prestando maior atenção à narrativa, mesmo que esteja mais interessado
na interação com o livro. Peça a ele que aponte objetos na página e faça sons. Ele
aprenderá muito rapidamente a como passar as páginas, mas precisará de ajuda
Desenvolvimento
muitas vezes, especialmente em livros acartonados. Indicações são a Coleção Livro
Chocalho e Cuidado com o Monstro.
3 – Leitura de histórias na hora do soninho:
Bateu aquele soninho e nada mais gostoso que acostumar os bebês a dormirem
com uma história! Mas para que eles se acostumem com o livro, você pode criar
histórias que se liguem aos seus personagens preferidos na hora de dormir, os
cheirinhos! Normalmente são os cobertores, os travesseiros e as chupetas, mas às
vezes também uma fralda de pano ou um bichinho de pelúcia. Você pode, então,
criar uma história para cada cheirinho, colocando-o como personagem central.
Outra possibilidade é introduzir um livro como ajudante no soninho, mas um livro
de pelúcia, como da Coleção Para Ler e Abraçar, da Ciranda Cultural.
O momento chamado por pediatras de tummy time nada mais é do que deixar
o bebê de barriga para baixo em uma superfície confortável, mas não tão macia
para que o bebê não afunde. Algumas orientações incluem iniciar essa prática
desde o primeiro mês, porém sempre com poucos segundos para que o pequeno
se acostume com essa posição. Aos poucos ele estará pronto para passar mais
tempo de bruços.
Essa prática é importante porque prepara o bebê para o fortalecimento do pesco-
ço, da coluna, dos braços, das pernas, dos pés e das mãos, promovendo o engati-
nhar. No início, será difícil levantar a cabeça, mas aos poucos eles ganham força e
conseguem dominar essa habilidade.
Por isso mesmo, é preciso verificar como está o humor do bebê antes da ativida-
de. De nada adianta colocar um bebê em uma posição com a qual ele não está
acostumado se por acaso estiver com fome, sono ou cólica, por exemplo.
Comentários Além disso, bebês pequenos que não conseguem segurar a cabeça precisam sem-
pre do monitoramento, pois podem não conseguir respirar caso não consigam
segurar a cabeça. Por esse motivo, a atividade é interessante para que se faça com
poucos bebês ou com o acompanhamento de assistentes em sala de aula, para
que todos sejam assistidos.
Caso seja muito difícil realizar a atividade com os bebês de bruços, invista em
trabalhar com livros de borracha nas cadeirinhas e também para bebês que se
sentam e engatinham, além de usar os livros sensoriais e os de pano para a hora
do soninho.
A criança nasce com a predisposição para o desenvolvimento da linguagem, mas
somente a predisposição genética não é suficiente para o aprendizado da língua.
Sem a interação e sem ouvir alguém falando, os bebês não desenvolvem a lingua-
gem sozinhos, por isso mesmo é preciso engajar a escola e a família nessa tarefa
(PINHEIRO, ARAÚJO & VILHENA apud SALLES, HAASE & MALLOY-DINIZ, 2016).
(Continua)

Literariedade e análise de obras infantis 173


As crianças nesta fase precisam demonstrar o interesse pelo objeto livro e, à me-
dida que se acostumam com ele, o interesse por ouvir histórias. A avaliação deve
Critérios de avaliação levar em conta se os pequenos demonstraram tal interesse e exploraram os livros
apresentados. Além disso, se conseguiram participar apontando objetos na pági-
na e fazendo sons.

Artigo
Veja o artigo do blog Tiny Love a respeito do tummy time e tire suas dúvidas sobre essa atividade tão necessá-
ria para os bebês. Disponível em: https://tinyurl.com/y73gfw9e. Acesso em: 19 jun. 2020.

7.2.2 Roteiro para crianças de 1 a 3 anos


Artigo Direitos de aprendi-
O artigo Da narrativa ao corpo zagem e desenvolvi- Conviver, brincar, participar e expressar.
traz um relato de experiência mento
de uma atividade que mescla
desenvolvimento motor e Campo de experiência Escuta, fala, pensamento e imaginação.
literatura. É um ótimo exemplo
de como motivar crianças para Objetivos de
a leitura. aprendizagem da (EI02EF01) (EI02EF02) (EI02EF03) (EI02EF04) (EI02EF08).
BNCC
MONTEIRO, I. Revista Emília,
19 set. 2017. Disponível em: • 1 envelope tamanho A4, caneta, lápis, tesoura, canetinhas
https://tinyurl.com/ybokk7qk. coloridas e folhas coloridas nas cores dos gatos da história.
Acesso em: 19 jun. 2020. • 1 cópia da história, que você pode encontrar em https://
Materiais e recursos
tinyurl.com/y87qnj94.
• Indicação: VILLELA, B. Era uma vez um gato xadrez… São
Paulo: Moderna, 2016.
Era uma vez um gato xadrez… quer que eu conte outra vez?
Pois é, essa história tão conhecida tem mais personagens
que apenas o gato xadrez. E trabalhar com essa história
pode ser muito divertido, basta que você produza um en-
velope com um gato vazado e outras folhas coloridas para
representar cada um dos gatos da história.
Recorte um dos lados de um envelope no formato de um
gato, colando o rosto do gato em branco ou na mesma cor
do envelope, e deixe a barriga vazada. Dentro do envelope
Desenvolvimento irão os retângulos coloridos na cor de cada gato e na se-
quência em que aparecem. Assim, ao ir contando a história,
você vai trocando a cor do gato de acordo com a narrativa.
Para ver como fazer, acesse o vídeo: http://youtu.be/
VoReXlJUgtY.
Você pode contar a história para a turma pedindo que eles
tentem adivinhar a cor do próximo gato, fazendo uma brin-
cadeira com as rimas.
O objetivo é que as crianças relacionem as cores e conhe-
çam as rimas, participando quando solicitado.
(Continua)

174 Literatura Infantil


O debate e a participação oral dos alunos permitem que
eles desenvolvam conhecimentos sobre a interação entre
as pessoas, compreendendo que essa comunicação segue
regras, mas que estas podem ser flexíveis de acordo com
o ambiente e a cultura. Segundo César Coll, “a existência
dessas regras, porém, não deve ser interpretada como um
Comentários
roteiro preestabelecido que professores e alunos se limi-
tam a seguir de forma mecânica” (COLL et al., 2004, p. 262).
Assim, uma atividade como esta possibilita que o aluno
desenvolva esse conjunto de regras sem necessariamente
cristalizar-se numa sequência de normas a serem seguidas
para uma comunicação oral. Dica
Avalie se as crianças interagiram com as perguntas reali- Outra história incrível de ser
zadas durante a contação e se compreenderam que uma contada para as crianças desta
palavra rima com outra dentro da história. Você pode, inclu- idade é Gato preto, gata branca.
Critérios de avaliação
sive, pedir para que procurem outras palavrinhas rimando Disponível em: http://youtu.
com a história, a depender do desenvolvimento da oralida- be/5TgqmqVEDuU. Acesso em:
de de cada um. 19 jun. 2020.

7.2.3 Roteiro para crianças de 3 a 6 anos


Direitos de aprendi-
zagem e desenvolvi- Conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se.
mento
O eu, o outro e o nós.
Campo de experiência Traços, sons, cores e formas.
Escuta, fala, pensamento e imaginação.
Objetivos de aprendi-
(EI03EO01) (EI03EO03) (EI03EO04) (EI03TS02) (EI03EF01) (EI03EF07) (EI03EF09).
zagem da BNCC
Papel para desenho, lápis e giz de cera, barbante, prendedor de roupas.
1 cópia do livro O Búfalo que só queria ficar abraçado. Você pode conhecer a histó-
Materiais e recursos ria pelo link: http://youtu.be/Kz89WbZ9HwA.
MORELLO, T.; BASILE, J. O búfalo que só queria ficar abraçado. São Paulo: Carochinha,
2018.
Realize a contação da história utilizando-se de técnicas para manter a atenção dos
alunos e convidando-os a participar ativamente respondendo a perguntas sobre a
história. Depois do momento da história, faça uma roda de conversa para explorar
os elementos da narrativa. Indague os alunos sobre o enredo, sobre o cenário e
Desenvolvimento os personagens. Pergunte aos alunos sobre o que acharam da história e sobre
o desfecho. Por fim, não deixe de perguntar sobre os sentimentos dos próprios
alunos, o que sentiram ao escutar a história e se eles já se sentiram inseguros.
Converse sobre esses sentimentos levantados e deixe que eles exponham seus
pensamentos.
(Continua)

Literariedade e análise de obras infantis 175


Após o debate, entregue folhas e lápis de cor para a ativi-
dade de desenho e escrita. Peça aos alunos que no alto da
folha tentem colocar em letras ou sinais o nome do búfalo,
da forma como conseguirem ou souberem.
Dica Em seguida, deixe que liberem a imaginação e que dese-
Desenvolvimento
nhem seus búfalos. Preste atenção a cada desenho e ques-
Outra forma muito interessante
tione-os individualmente sobre o que cada búfalo desenha-
de trabalhar histórias é por
do está sentindo. Depois faça uma bela exposição em varal
meio de imagens, deixando as
com os desenhos das crianças, pedindo que elas apreciem
palavras a cargo dos alunos.
as obras dos colegas.
Assista com os alunos ao curta
metragem Wings. Em seguida, O trabalho com sentimentos como a insegurança é extre-
realize uma roda de discussões mamente benéfico, pois pelas emoções compartilhadas as
para que expressem seus crianças podem ressignificar a dificuldade de separação
pensamentos. Peça aos alunos de seus cuidadores. Assim, a construção de um padrão de
que criem uma história em segurança na criança é produzido desde muito pequenas,
palavras para o que viram. mas nessa faixa etária pode ser reorganizado, especialmen-
te se o vínculo entre alunos e professores da turma for for-
Disponível em: http://youtu.be/
Comentários te e atencioso. Papalia, Olds e Feldman (2010) nos contam
RtU8nBnpFVE. Acesso em: 19
que crianças a partir dos 3 anos, que possuem um padrão
jun. 2020.
seguro de apego, são mais autoconfiantes em suas capa-
cidades, demonstram mais alegria e fazem mais amizades
fortes com outras crianças. Logo, trabalhar emoções com
Atividade 2 a utilização de histórias auxilia os pequenos a compreen-
derem o que sentem e verificarem modelos distintos dos
Como você vê o papel do pro-
seus.
fessor no trabalho da literatura
infantil dentro da sala de aula da Avalie o interesse do aluno em ouvir a história e a sua par-
educação infantil? ticipação em expor o que compreendeu ou seus sentimen-
tos. Avalie também a participação na tarefa de desenho e
Critérios de avaliação como está a escrita da palavra de acordo com cada faixa
etária, isto é, se utiliza bolinhas, desenhos ou letras para re-
presentar a palavra indicada. Avalie também a participação
na apreciação das obras de arte com comentários pessoais.

7.3 Análise de obras para os anos


iniciais do ensino fundamental
Vídeo A etapa dos anos iniciais do ensino fundamental é de extrema im-
portância para o estabelecimento do aprendizado da língua e do de-
senvolvimento da habilidade de reflexão crítica. Assim, nesta seção
trabalharemos dois roteiros embasados na BNCC, separando-os entre
leitores iniciantes compreendendo a alfabetização, e leitores em for-
mação para as demais séries. Porém, cada um pode ser aplicado em
diferentes séries sempre levando em consideração as peculiaridades e
demandas de cada turma.

176 Literatura Infantil


7.3.1 Roteiro para leitores iniciantes Leitura
Veja no artigo Espaço para
Leitura e escuta. apreciação de livro álbum na sala
Prática de linguagem Produção de texto. de leitura da escola um relato de
uma professora que trabalhou a
Oralidade; escrita.
literatura infantil em sua relação
Campo Artístico-literário e geral. entre texto e imagem com a
projeção das ilustrações do livro.
Reconstrução das condições de produção e recepção de Disponível em: https://tinyurl.
textos; estratégia de leitura; planejamento de texto; oralida- com/ycsxppt9. Acesso em: 19
de pública/intercâmbio conversacional em sala de aula; es- jun. 2020.
Objetos de
cuta atenta; formação do leitor literário; leitura colaborativa
conhecimento
e autônoma; decodificação/fluência de leitura; correspon-
dência fonema-grafema; apreciação estética/estilo; formas
de composição de textos poéticos.
(EF15LP01) (EF15LP02) (EF15LP05) (EF15LP09) (EF15LP10)
Habilidades da BNCC (EF15LP15) (EF15LP16) (EF12LP01) (EF01LP02) (EF02LP26)
(EF12LP18) (EF12LP19).
1 cópia do livro:
HOOKS, B. Meu crespo é de rainha. São Paulo: Boitatá,
Materiais e recursos 2018.
Para conhecer a história, ela está disponível em: http://
youtu.be/DO_FN-mEn84.
Faça o momento de pré-leitura, indagando sobre as ex-
pectativas acerca do texto. Peça aos alunos uma primeira
leitura silenciosa dos versos do livro. Em seguida, faça uma
leitura coletiva pedindo que participem lendo, a depender
do nível de alfabetização da turma. Depois, façam um diá-
logo, em roda, sobre o que entenderam da obra, suas ca-
racterísticas e sua função. Conversem sobre preconceitos
e sobre respeito, peça exemplos e corrija, se necessário,
alguns comentários que podem ser falas aprendidas em
Desenvolvimento casa (como falas racistas/machistas que as crianças nem
percebem que aprenderam).
Relacione a história com outras que eles já leram ou ouvi-
ram, pedindo que encontrem os elementos dessa relação,
se pelos versos ou pelo tema.
Em seguida, peça que, em pequenos grupos, os alunos
discutam as diferenças e escrevam alguns versos sobre o
tema, compartilhando em seguida com a turma. Por fim,
trabalhe as características do poema com base na produ-
ção dos alunos, complementando com o texto lido.
(Continua)

Literariedade e análise de obras infantis 177


A escola tem papel importante no repensar da sociedade e
na reflexão das suas dificuldades. Logo, a educação deve se
comprometer a um processo de mudança das representa-
ções sociais impostas ao longo do tempo. De acordo com
Lane e Codo (1984, p. 33), “a linguagem reproduz uma visão
Comentários
de mundo”, com todas as suas crenças e valores. Assim,
nada melhor que ressignificar preconceitos incrustados na
linguagem por meio dela própria, tomando toda sua poeti-
cidade para combater o racismo, como no exemplo trazido
pelo livro.
Observe a desenvoltura na leitura e a participação quando
questionados sobre as diferenças e os preconceitos. Avalie
Critérios de avaliação
a participação ativa na escrita do poema e o relacionamen-
to com os colegas no trabalho em grupo.

7.3.2 Roteiro para leitores em formação


Artigo

https://tinyurl.com/ya2p9fgj.

O artigo Literatura, imaginação e silêncio: o não dito como lugar de encontro


entre leitores, de Cecília Bajour, traz uma reflexão sobre o ler nas entrelinhas
e sua importância em um mundo em que tudo é mostrado, restando pouco
espaço à imaginação.
BAJOUR, C. Trad. de Lenice Bueno. Revista Emilia, n. 0, São Paulo, p.135-154, 2017.
Acesso em: 12 jun. 2020.

Objetos de Leitura e escuta; oralidade; produção de textos; análise lin-


conhecimento guística/semiótica.

Decodificação/fluência de leitura; compreensão; estratégia


Competências de leitura; formação do leitor literário; escrita autônoma;
específicas apreciação estética/estilo; formas de composição de narrati-
vas; forma de composição de textos poéticos.

(EF35LP01) (EF35LP03) (EF35LP04) (EF35LP05) (EF35LP06)


Habilidades da BNCC (EF35LP21) (EF35LP22) (EF35LP23) (EF35LP27) (EF35LP29)
(EF35LP31).

1 livro A parte que falta:


Materiais e SILVERSTEIN, S. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2018.
recursos História contada disponível em: http://youtu.be/nfdBQu0O-
0DE. Acesso em: 19 jun. 2020.

(Continua)

178 Literatura Infantil


Faça um exercício de pré-leitura com os alunos, apresentando
o livro e questionando suas expectativas em relação à leitura.
Pode-se solicitar leitura individual, em duplas ou coletiva,
fica a critério do professor a depender das características
da turma. Após a leitura, permita que primeiro os alunos
discutam o que entenderam entre si e em pequenos grupos.
Na sequência, abra para debate, retomando o texto para
que eles possam reconstruir os significados do que leram,
uma vez que o texto pode ser complexo. Dê ênfase especial
aos sentidos implícitos, para que eles debatam sobre o que
compreenderam e se conseguem transpor tais sentidos para
suas vidas. Instigue-os a se questionarem sobre essa busca
Desenvolvimento
por algo que nos faça feliz e que possa revelar a felicidade das
alegrias diárias e das coisas que realmente importam. Como
um possível trabalho de escrita, oriente-os a se indagarem
sobre o que realmente importa para eles e peça para que
produzam um pequeno texto. Além disso, trabalhe com eles
a forma do livro, sua poeticidade e estrutura do texto. Você
pode, inclusive, lançar um desafio para que todos coloquem
no quadro o que para eles realmente importa. Depois de fazer
um levantamento sobre o que mais aparece, converse com
eles sobre a possibilidade de realizarem todos os dias essas
coisas que realmente importam. Sendo possível, motive-os a
realizar, diariamente, ações como ouvir ou ajudar o colega.

O trabalho após a leitura não deve servir apenas para ve-


rificar a compreensão dos significados fornecidos pelo au-
tor. Atividades pós-texto servem tanto para identificação
de elementos, como para o aprendizado de formas de se
questionar, seja a literatura, seja o mundo. Assim, Isabel Solé
nos diz que na interação com o professor, o aluno passa
a compreender como questionar de modo a obter respos-
tas relevantes, pois, segundo ela, “o leitor capaz de formular
perguntas pertinentes sobre o texto está mais capacitado
Comentários
para regular seu processo de leitura e, portanto, poderá tor-
ná-lo mais eficaz” (1998, p. 155).
Logo, a atividade de pós-leitura é antes de mais nada um
treino para a reflexão crítica, servindo de modelo para que
as crianças construam uma visão de que nenhum significa-
do, teoria ou ideia deve ser tomado como algo fechado e
pronto. Ao contrário, o aluno precisa aprender a tomar as
rédeas do seu conhecimento aprendendo a questionar de Atividade 3
modo eficaz o mundo que o rodeia e suas relações.
Como você vê o papel do pro-
Observe a fluência na leitura e na produção do texto oral, fessor no trabalho da literatura
bem como a participação em todas as atividades propostas. infantil dentro da sala de aula do
Critérios de avaliação
Observe, também, o engajamento em encontrar aquilo que ensino fundamental?
é importante para cada um, auxiliando-os no processo.

Literariedade e análise de obras infantis 179


Com estes roteiros, esperamos que você possa se inspirar e criar
muitos outros para o trabalho com a literatura, tanto na escola quanto
em outros espaços. A literatura não deve ficar relegada a um conteúdo
curricular, deve ser fomentada para que seja levada para a vida, como
atividade prazerosa. Por isso mesmo, esses roteiros têm a intenção de
serem apenas guias, afinal entendemos que o protagonista deste tra-
balho é o professor!

CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Chegamos ao fim desta obra, mas não ao fim de um campo muito fér-
til de estudos. Tentamos trazer exemplos e atividades práticas para que
este livro possa ser um companheiro tanto para compreender a literatura
infantil, quanto para ensiná-la. Não queremos que ele seja um livro de re-
gras a serem seguidas, e sim um ponto de partida para você buscar novas
aventuras dentro deste campo de saber.
Agradecemos sua companhia por esta jornada e esperamos que você
não pare aqui! Leia histórias infantis, todas as que puder, e vá formando
sua própria visão com base nas teorias. Somente assim é que se forma
um leitor (e um professor) literário!
Desejamos ótimos estudos e muito conhecimento!

REFERÊNCIAS
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018.
Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_
versaofinal_site.pdf. Acesso em: 19 jun. 2019.
BURNETT, F. H. O jardim secreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
CAPARELLI, S. Canção pra ninar dromedário. Leiturinha, 28 fev. 2020. Disponível em:
https://leiturinha.com.br/blog/10-poemas-famosos-para-ler-com-as-criancas/. Acesso em:
19 jun. 2020.
COLL, C. et al. Desenvolvimento psicológico e educação: psicologia da educação escolar. Trad.
de Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2004.
COMPAGNON, A. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010.
FUNKE, C. Mundo de tinta: contos. São Paulo: Editora Seguinte.
LANE, S.; CODO, W. (Orgs.) Psicologia social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1984.
LIMA, G.; MASSARANI, M.; MELLO, R. Vizinho, vizinha. São Paulo: Companhia das Letrinhas,
2002.
LISPECTOR, C. Quase de verdade. São Paulo: Rocco, 2014.
MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola
Editorial, 2008.

180 Literatura Infantil


MOISÉS, M. A análise literária. São Paulo: Cultrix, 2007.
MORAIS, V. A porta. Leiturinha, 28 fev. 2020. Disponível em: https://leiturinha.com.br/
blog/10-poemas-famosos-para-ler-com-as-criancas/. Acesso em: 19 jun. 2020.
MORELLO, T.; BASILE, J. O búfalo que só queria ficar abraçado. São Paulo: Carochinha, 2018.
PAPALIA, D. E.; OLDS, S. W.; FELDMAN, R. D. Desenvolvimento Humano. 10. ed. Porto Alegre:
AMGH, 2010.
RAMOS, R. Circuito fechado. In: Editora Globo (org.). Os melhores contos brasileiros de 1973.
Porto Alegre: Editora Globo, 1974, p. 169-175.
SALLES, J. F.; HAASE, V. G.; MALLOY-DINIZ, L. F. (Orgs.). Neuropsicologia do desenvolvimento:
infância e adolescência. Porto Alegre: Artmed, 2016.
SOLÉ, I. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Penso: 1998.

GABARITO
1. Um texto literário pode ser analisado pelos elementos da literariedade constitutivos
da narrativa ou do poema, como espaço, tempo, personagens e versificação. Dessa
forma, conseguimos analisar a estrutura da obra como um todo. Porém, para a aná-
lise do texto em si e de suas relações, é necessário levar em conta características da
textualidade como coesão, coerência e intertextualidade. Além disso, pode-se analisar
ainda pela compreensão do receptor e pelas relações que a obra produz com o con-
texto socio-histórico e cultural do leitor.

2. A resposta é pessoal, mas deve conter elementos que apontem para a promoção da
participação coletiva na construção de sentidos e que digam respeito ao uso literário
da língua, gerando atividades engajadoras e ao mesmo tempo de compreensão da
literatura como prática social.

3. A resposta é subjetiva, entretanto, deve trazer a compreensão do trabalho de desen-


volvimento da linguagem, do apreço literário e do desenvolvimento infantil por meio
do trabalho com suas emoções, seu contexto e suas relações.

Literariedade e análise de obras infantis 181


LITERATURA INFANTIL
Esta obra intenciona esmiuçar a literatura infantil por
diversos ângulos, se não todos os possíveis, ao menos
aqueles mais relevantes para entender e trabalhar com
esse gênero. O estudo sobre a literatura infantil se esta-
belece em uma fronteira entre a Teoria da Literatura e a da
Pedagogia, uma vez que obras voltadas para as crianças
são instrumento de trabalho para o campo educacional.
Porém, mais do que auxiliar em um projeto pedagógi-
co, a literatura infantil possui outras tantas funções pecu-
liares e importantes para o desenvolvimento das crianças
enquanto sujeitos. Assim, a literatura infantil ainda se en-
caixa nos estudos da Psicologia do Desenvolvimento, que
tenta identificar como se relacionam os elementos literá-
rios com a formação do indivíduo.
Levando em consideração que a leitura é motivadora
de cidadania e que a literatura é capaz de transformar va-
lores e visões de mundo, esta obra é um ponto de partida
para expandir a visão sobre o trabalho da literatura infantil
em sala de aula e em outros espaços, transformando essa
prática pedagógica em atividade reflexiva.

TAINÁ THIES

Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-6651-3

59464 9 788538 766513

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