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ALBERT CAMUS [An

o]
coisa que, com um pouco mais de abandono, teria podido considerar
amizade.

CAPÍTULO IV

Naquela (1) tarde de domingo, depois de ter falado e brincado


muito, Roland Zagreus mantinha-se em silêncio, junto ao fogo, na sua
grande cadeira de rodas, emergindo dos cobertores brancos.
Mersault, encostado na estante, olhava o céu e o campo, através das
cortinas de seda branca das janelas. Tinha vindo sob uma chuva fina,
e, temendo chegar cedo demais, ficara vagando durante uma hora no
campo. O tempo estava escuro e, sem ouvir o vento, Mersault via, no
entanto, as árvores e as folhagens retorcerem-se em silêncio no
pequeno vale. Do lado da rua, passou uma carroça de leiteiro, com
um grande barulho de ferro e madeira. Logo depois, a chuva começou
a cair com violência, inundando as janelas. Com toda essa água como
um óleo espesso sobre as vidraças, o ruído oco e longínquo das
ferraduras do cavalo, mais perceptível agora que o barulho da
carroça, a tempestade surda e persistente, esse homem-pote junto à
lareira e o silêncio da peça, tudo assumia uma fisionomia de passado,
cuja melancolia surda penetrava o coração de Mersault, como, há
pouco, a água entrara em seus sapatos úmidos, e o frio nos joelhos
mal protegidos por um tecido fino. Há poucos instantes, a água
vaporizada que descia, nem bruma, nem chuvas, lavara-lhe o rosto,
como uma mão leve, destacando-lhe os olhos fortemente
contornados. Agora, olhava o céu, no fundo do qual, sem cessar,
surgiam nuvens negras, logo apagadas e logo substituídas. O vinco
de sua calça desaparecera, e, com ele, o calor e a confiança que um
homem normal leva consigo num mundo talhado para ele. Foi por isso
que se aproximou do fogo e de Zagreus, sentando-se diante dele, um
pouco à sombra da lareira alta, e sempre virado para o céu. Zagreus
olhou para ele, desviou os olhos e atirou no fogo uma bola de papel
que segurava na mão esquerda. Desse movimento, como sempre
ridículo, Mersault recebeu o mal-estar que lhe dava a visão desse
corpo vivo apenas pela metade. Zagreus sorriu (2), mas nada falou. E,
de repente, inclinou o rosto na sua direção. As chamas reluziam
unicamente sobre a face esquerda, mas algo na sua voz e no seu
olhar carregavam-se de calor (3).

— Está com um ar cansado — disse.


Por pudor, Mersault responde apenas:
— Sim, estou entediado — e depois de algum tempo, reergueu-
se, caminhou até a janela e acrescentou, olhando para fora: — Tenho
vontade de me casar, de me suicidar, ou de fazer uma assinatura de
L’Illustration. Um gesto desesperado, sei lá.
O outro sorriu:

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— Você é pobre, Mersault. Isso explica a metade de seu
desgosto. E a outra metade, você a deve à absurda aceitação com
relação à pobreza.
Mersault continuava de costas para ele, olhando as árvores sob
o vento. Zagreus alisou com a mão a manta que lhe cobria as pernas.
— Sabe, um homem se julga sempre pelo equilíbrio que obtém
entre as necessidades de seu corpo e as exigências de seu espírito.
Você, você está se julgando, e de uma maneira suja, Mersault. Vive
mal, como bárbaro. — Virou a cabeça na direção de Patrice: — Você
gosta de dirigir, não é?
— Sim.
— Gosta de mulheres?
— Quando são bonitas.
— E o que estou querendo dizer. — Zagreus voltou-se na
direção do fogo.
Logo depois, recomeçou:
— Tudo isso...
Mersault virou-se, e, apoiado nas vidraças, que cediam um
pouco às suas costas, esperou pelo fim da frase. Zagreus continuou
mudo. Uma mosca precoce vibrou contra a vidraça. Mersault voltou-
se, prendeu-a na mão e depois libertou-a. Zagreus olhava para ele e
disse com hesitação:
— Não gosto de falar a sério. Porque, nesse caso, só há uma
coisa da qual se pode falar: a justificativa que se dá à própria vida.
Não vejo como eu poderia justificar a mim mesmo as minhas pernas
mutiladas.
— Nem eu — disse Mersault, sem se virar.
O riso claro de Zagreus explodiu de repente.
— Obrigado. Não me deixará nenhuma ilusão. — Mudou de tom:
— Mas tem razão em ser duro. No entanto, há uma coisa que gostaria
de lhe dizer. — Sério, ele calou-se. Mersault veio sentar-se à sua
frente.
“Escute — refletiu Zagreus — e olhe-me. Ajudam-me a fazer
minhas necessidades. Depois, lavam-me e me enxugam. O pior é que
pago a alguém para fazer isso. Pois bem, eu não faria nunca um gesto
para abreviar uma vida na qual creio tanto. Aceitaria pior ainda, cego,
mudo, tudo o que quiser, desde que apenas eu sinta no meu ventre
esta chama escura e ardente que sou eu, e eu vivo. Não pensarei a
não ser em agradecer à vida por ter permitido que eu sobrevivesse.
— Zagreus reclinou-se, um pouco ofegante. Não conseguia vê-lo
tão bem agora, apenas um reflexo lívido que os cobertores deixavam
sobre o queixo. Disse, então: — E você, Mersault, com esse seu corpo
(4), o seu único dever é viver e ser feliz.
— Não me faça rir — respondeu Mersault. — Com oito horas de
escritório (5). Ah, se eu fosse livre!
Animara-se ao falar, como acontecia às vezes; a esperança o
retomava, mais forte hoje por se sentir ajudado. O fato de poder,

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