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Kiera Cass
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Agradecimentos
Kiera Cass
A Elite
The Selection
Marcador
Capítulo 1
Olá, gatinha,
Lamento muito que não tenhamos podido despedir-nos. O rei achou
que seria mais seguro se as famílias partissem o mais depressa possível.
Tentei falar contigo, juro, mas não consegui. Quero que saibas que
chegámos bem a casa. O rei deixou-nos ficar com as nossas roupas e a May
passa todo o tempo livre com aqueles vestidos. Suspeito que eia deseja
secretamente não crescer nem mais um centímetro para poder usar o seu
vestido de baile quando casar. Isso anima-a bastante. Não sei se algum dia
poderei perdoar a família real por forçar as minhas duas filhas a verem tudo
aquilo ao vivo, mas tu sabes como a May é forte. É contigo que estou
preocupado. Escreve-nos depressa.
Talvez esta não seja a coisa certa para dizer, mas quero que saibas:
quando correste para o palanque, nunca senti tanto orgulho em ti em toda a
minha vida. Sempre foste linda, sempre tiveste talento e agora sei que o teu
sentido de justiça está no sítio certo. Vês claramente quando as coisas estão
erradas e fazes tudo o que é possível para acabar com a situação. Enquanto
pai, não passo pedir mais.
Adoro-te, America. E estou muito, muito orgulhoso.
Pai
Como é que o meu pai sabia sempre o que dizer? Desejava que
alguém realinhasse as estrelas para que elas formassem as suas palavras.
Precisava que fossem grandes e brilhantes e que ficassem visíveis em algum
lado onde pudesse vê-las nos momentos de escuridão. Adoro-te. Estou
muito, muito orgulhoso.
Os membros da Elite tinham a opção de tomar o pequeno-almoço no
quarto e eu aproveitei-a. Ainda não estava preparada para ver o Maxon. À
tarde, estava um pouco mais recomposta e decidi descer até ao Salão das
Mulheres, por algum tempo. Pelo menos, lá havia uma televisão e eu ficaria
grata por algo que me distraísse.
As raparigas pareceram surpreendidas com a minha entrada, o que até
era de esperar. Eu costumava esconder-me de vez em quando e se alguma
vez houvera uma altura adequada para o fazer seria esta. A Celeste estava
recostada no sofá, a folhear uma revista. Em Illéa não havia jornais, como
parecia acontecer noutros países. Tínhamos o Noticiário Oficial. As revistas
eram a coisa mais próxima de um jornal impresso e as pessoas como eu não
tinham qualquer hipótese de as comprar. A Celeste parecia ter sempre uma
à mão e, por algum motivo, isso irritou-me neste dia.
A Kriss e a Elise estavam sentadas a uma mesa, a tomar chá e a
conversar, enquanto a Natalie se encontrava de pé mais atrás, a olhar pela
janela.
— Olhem... — disse a Celeste para ninguém em especial. — Mais um
dos meus anúncios.
A Celeste era modelo. Só a ideia de ela estar ali a folhear fotos de si
mesma irritou-me ainda mais.
— Lady America? — chamou alguém. Virei-me e vi a rainha no canto,
com algumas das suas damas de companhia. Parecia estar a costurar.
Saudei-a com uma reverência e ela gesticulou para que me
aproximasse. O meu estômago teve um sobressalto quando me recordei do
meu comportamento no dia anterior. Não tivera a intenção de a ofender,
mas, de repente, temi ter feito exatamente isso. Sentia os olhos das outras
pregados em mim. A rainha geralmente falava connosco em grupo,
raramente o fazendo em particular.
Aproximei-me e fiz outra reverência.
— Majestade...
— Por favor, sente-se, Lady America — disse ela, gentilmente e
apontando para uma cadeira vazia à sua frente.
Obedeci, ainda muito nervosa.
— A menina debateu-se bastante ontem — comentou.
Engoli em seco:
— Sim, Vossa Majestade.
— Eram muito amigas?
— Sim, Vossa Majestade — respondi, com um soluço de tristeza. Ela
suspirou.
— Uma senhora não deve comportar-se daquela maneira. As câmaras
estavam tão concentradas no que se passava que não captaram o seu
comportamento. Ainda assim, não é adequado que perca a cabeça dessa
maneira.
Não se tratava da ordem de uma rainha; era a censura de uma mãe e
isso tornou tudo mil vezes pior. Era como se ela se sentisse responsável por
mim e eu a tivesse desapontado.
Inclinei a cabeça. Pela primeira vez, senti-me realmente mal pelo
modo como reagira.
Ela estendeu o braço e colocou a mão sobre o meu joelho. Olhei para
o seu rosto, atónita com aquele toque informal.
— Em todo caso — sussurrou ela, concluindo com um sorriso nos
lábios estou feliz que o tenha feito.
— Ela era a minha melhor amiga.
— A amizade não acaba porque ela se foi embora, querida.
A Rainha Amberly deu-me uma palmadinha carinhosa na perna. Era
exatamente disto que eu precisava: carinho materno. As lágrimas surgiram
no canto dos meus olhos.
— Não sei o que fazer — murmurei.
Quase desabafei tudo o que sentia ali mesmo, mas estava consciente
do olhar das outras raparigas.
— Disse a mim mesma que não me envolveria — afirmou ela e
suspirou. — Mesmo que quisesse, não tenho a certeza de que haja muito a
dizer.
Ela tinha razão. Que palavras poderiam mudar tudo o que acontecera?
A rainha inclinou-se para mim e falou docemente:
— Ainda assim, não seja muito dura com ele.
Eu sabia que as suas intenções eram boas, mas não queria falar sobre
o seu filho. Assenti com a cabeça e levantei-me. Ela fez-me um sorriso
carinhoso e dispensou-me com um gesto. Afastei-me e fui sentar-me junto
da Elise e da Kriss.
— Como te sentes? — perguntou a Elise com simpatia.
— Estou bem. É com Marlee que estou preocupada.
— Pelo menos, estão juntos. Enquanto se tiverem um ao outro, vão
conseguir dar a volta — comentou a Kriss.
— Como é que sabes que a Marlee e o Carter estão juntos?
— O Maxon contou-me — respondeu ela, como se fosse uma
informação do conhecimento geral.
— Oh... — disse eu, desapontada.
— Não acredito que ele não te tenha contado, principalmente a ti. Tu e
a Marlee eram tão amigas. Além disso, és a preferida dele, não és? —
perguntou a Kriss.
Olhei para a Kriss e depois para a Elise. Ambas tinham um ar
preocupado, mas também, talvez, uma certa expressão de alívio.
A Celeste riu-se.
— Obviamente, já não é — murmurou, sem sequer se dignar a
levantar os olhos da revista. A minha queda era obviamente esperada.
Orientei a conversa de volta para a Marlee.
— Ainda não acredito que o Maxon os fez passar por aquilo. A calma
dele durante todo o processo foi perturbadora.
— Mas ela cometeu um erro — comentou a Natalie. Não havia
qualquer crítica na sua voz, apenas uma aceitação serena, como se seguisse
instruções.
A Elise deu a sua opinião:
— Ele poderia tê-los matado. A lei estava do seu lado. Ele de‐
monstrou misericórdia.
— Misericórdia? — zombei. — Achas que ser esfolado em público é
uma demonstração de misericórdia?
— Se pensarmos bem, acho — continuou ela. — Aposto que se
perguntássemos à Marlee, ela preferiria receber vergastadas a morrer.
— A Elise tem razão — disse a Kriss. — Concordo que foi
absolutamente terrível, mas eu preferiria aquilo à morte.
— Por favor — repliquei com desdém, sentindo a raiva a borbulhar.
— Tu és uma Três. Toda a gente sabe que o teu pai é um professor
universitário famoso e que passaste a vida inteira em bibliotecas, sempre
bastante confortável. Nunca sobreviverias a seres açoitada e muito menos a
uma vida como Oito. Implorarias para morrer.
A Kriss encarou-me com uma expressão penetrante:
— Não julgues que sabes o que sou capaz de aguentar ou não. Só por
seres uma Cinco, achas que és a única pessoa que já passou por situações de
sofrimento?
— Não, mas tenho a certeza de que já enfrentei coisas muito piores do
que tu — respondi, com o meu tom de voz a aumentar com a raiva. — E,
ainda assim, eu não suportaria passar pelo que a Marlee passou. E duvido
que te saísses melhor.
— Sou mais corajosa do que pensas, America. Não fazes ideia das
coisas que tive de sacrificar ao longo dos anos. E quando cometo um erro,
arco com as consequências.
— E por que deveriam existir sequer consequências? — questionei.
— O Maxon passa a vida a dizer que a Seleção é difícil para ele, que é duro
ter de escolher e então uma de nós apaixona-se por outro. Será que ele não
deveria agradecer-lhe por lhe facilitar a decisão?
A Natalie tentou interromper, parecendo angustiada:
— Ontem, ouvi uma coisa muito engraçada!
— Mas a lei... — disse a Kriss por cima dela.
— A America tem uma certa razão — contrapôs rapidamente a Elise,
e este foi o fim da nossa conversa organizada.
Falávamos todas ao mesmo tempo, tentando fazer-nos ouvir e
justificando porque achávamos que o que acontecera tinha sido certo ou
errado. Era a primeira vez que isto se passava, mas era algo que eu esperava
desde o início. Com tantas raparigas juntas, competindo entre si, era
impossível que não acabássemos por discutir.
Então, com uma voz dissonante, a Celeste murmurou para a sua
revista enquanto discutíamos:
— Teve o que merecia. Vadia.
O silêncio que se seguiu foi tão intenso como a nossa discussão.
A Celeste olhou por cima do ombro, a tempo de me ver atirar-me a
ela. Gritou quando caí em cima dela, acertando numa mesa de café
próxima. Ouvi algo escaqueirar-se no chão, provavelmente uma chávena de
chá.
Eu fechara os olhos a meio do salto e, quando os abri, estava em cima
da Celeste e ela tentava agarrar-me os pulsos. Levei o meu braço direito
atrás e dei-lhe uma bofetada com quanta força tinha. O ardor na minha mão
foi quase insuportável, mas valeu a pena só para ouvir o estalo sonoro que
explodiu quando a atingi.
A Celeste soltou de imediato um grito estridente e começou a
esgatanhar-me. Pela primeira vez, lamentei não deixar crescer as unhas
como as outras faziam. Ela fez-me alguns arranhões no braço, que só me
irritaram ainda mais, e bati-lhe de novo. Desta vez, cortei-lhe o lábio. Em
resposta à dor, ela estendeu a mão para alguma coisa, o pires da sua
chávena, e acertou-me com ele de lado na cabeça.
Desequilibrada, tentei agarrá-la novamente, mas várias pessoas
começaram a tentar separar-nos. Estava tão absorvida que não percebi que
os guardas haviam sido chamados. Dei um murro num deles também.
Estava farta de ser agarrada.
— Viram o que ela me fez? — gritou a Celeste.
— Cala a boca! — berrei. — Nunca mais fales da Marlee!
— Ela é louca! Não a ouvem? Viram o que ela fez?
— Largue-me! — exclamei, debatendo-me contra o guarda.
— És uma psicopata! Vou contar tudo ao Maxon, agora. Podes dizer
adeus ao palácio! — ameaçou a Celeste.
— Ninguém vai ver o Maxon agora — disse a rainha, em tom severo.
Fitou-nos a ambas; primeiro à Celeste e depois a mim. O seu
desapontamento era notório. — Vão as duas para a ala hospitalar.
A ala hospitalar era um corredor comprido, impecavelmente
arrumado, com camas encostadas às paredes. Atrás de cada cabeceira havia
uma cortina, que podia ser puxada para dar mais privacidade. Por todo o
lado, havia armários com produtos farmacêuticos.
Sabiamente, eu e a Celeste fomos colocadas em pontas opostas do
corredor; ela mais perto da entrada e eu próxima da janela do fundo. Ela
puxou a cortina em volta da sua cama, quase de imediato, para não ter de
me ver. Não podia censurá-la, pois eu tinha um ar muito satisfeito. Mesmo
enquanto a enfermeira me tratava a zona magoada logo atrás da linha do
cabelo, onde a Celeste me acertara, não fiz qualquer careta de dor.
— Agora segure no gelo, aqui. Vai ajudar a desinflamar — explicou
ela.
— Obrigada — respondi.
A enfermeira deitou um olhar rápido para ambos os lados da ala,
aparentemente para se certificar de que ninguém poderia ouvir-nos.
— Muito bem, menina — murmurou. — Quase toda a gente estava à
espera de que acontecesse algo deste género.
— A sério? — perguntei com a voz tão baixa como a dela. Talvez não
devesse estar tão sorridente.
— Não consigo contar-lhe a quantidade de histórias de terror que ouvi
sobre ela — disse, apontando com a cabeça na direção da cama da Celeste.
— Histórias de terror?
— Ela provocou aquela rapariga que lhe bateu.
— A Anna? Como é que sabe?
— O Maxon é um bom homem — disse ela com simplicidade. — Fez
questão de que ela fosse vista aqui antes de voltar para casa. Ela contou-nos
o que a Celeste disse sobre os seus pais. Era algo tão nojento que nem sou
capaz de repetir. — A sua expressão transmitia nojo.
— Pobre Anna. Eu sabia que tinha sido algo desse género.
— Houve uma rapariga que apareceu aqui com os pés a sangrar,
depois de alguém lhe ter enfiado cacos de vidro nos sapatos durante a noite.
Não podemos provar que foi a Celeste, mas que outra pessoa faria uma
coisa tão desprezível?
— Não ouvi nada sobre o assunto — comentei, surpreendida.
— Ela teve medo de que lhe fizessem algo ainda pior. Acho que
preferiu ficar calada. E a Celeste bate nas suas aias. Apenas com as mãos,
mas elas aparecem aqui, de vez em quando, para pedir gelo.
— Não! — Todas as aias que eu conhecia eram amorosas. Não
conseguia imaginar nenhuma que fosse capaz de fazer algo que merecesse
uma palmada sequer, quanto mais agressões regulares.
— Basta dizer que as suas reações, menina, são do conhecimento
geral. E uma heroína por aqui — disse a enfermeira, piscando-me o olho.
Não me sentia uma heroína.
— Espere — disse eu, de repente. — Disse que o Maxon pediu que a
Anna fosse vista antes de se ir embora?
— Sim, menina. Ele preocupa-se bastante com todas vós e quer que
tenham todos os cuidados.
— E a Marlee? Ela também esteve aqui? Como estava quando saiu?
Antes que a enfermeira pudesse responder, a voz mimada da Celeste
ecoou pela sala.
— Maxon, meu querido! — exclamou, assim que ele passou a porta.
Trocámos um breve olhar antes de ele se aproximar da cama da
Celeste. A enfermeira afastou-se, deixando-me sozinha e ansiosa por saber
se ela tinha, de facto, visto a Marlee.
A voz queixosa da Celeste era quase insuportável. Ouvi o Maxon
murmurar umas palavras de simpatia, confortando a coitadinha, antes de se
escapar. Ele contornou a cortina e fitou-me, aproximando-se depois com um
ar exausto.
— Tens sorte por o meu pai ter proibido as câmaras no palácio, caso
contrário iríamos passar um mau bocado por causa das tuas ações. — Ele
passou a mão pelo cabelo, exasperado. — Como é que vou justificar isto,
America?
— Vais mandar-me embora, então? — Brinquei com uma ponta do
meu vestido, enquanto esperava pela resposta dele.
— Claro que não.
— E ela? — perguntei, apontando com a cabeça na direção da
Celeste.
— Não. Vocês estão todas enervadas depois do que aconteceu ontem e
não posso censurar-vos por isso. Não sei se o meu pai vai aceitar esta
desculpa, mas é o que vou dizer.
Fiz uma pausa.
— Talvez devesses dizer-lhe que a culpa foi minha. Talvez devesses
simplesmente mandar-me embora.
— America, estás a exagerar.
— Olha para mim, Maxon — pedi. Sentia um nó a crescer na
garganta, mas esforcei-me por falar. — Eu sei desde o início que não tenho
o que é preciso, mas pensei que pudesse, sei lá, mudar ou arranjar uma
maneira de fazer as coisas funcionarem; mas não posso ficar aqui. Não
posso.
O Maxon sentou-se na ponta da minha cama.
— America, podes odiar a Seleção e podes estar furiosa com o que
aconteceu à Marlee, mas sei que gostas de mim o suficiente para não me
abandonares.
Peguei-lhe na mão.
— E também gosto de ti o suficiente para te dizer que estás a cometer
um erro.
Havia dor no rosto do Maxon e ele apertou-me a mão com mais força,
como se pudesse manter-me ali e evitar que eu desaparecesse. De modo um
pouco hesitante, inclinou-se e murmurou:
— Nem sempre é assim tão difícil e quero mostrar-to, mas tens de me
dar tempo. Posso provar-te que há coisas boas nesta vida, mas tens de
esperar.
Respirei fundo e ia contradizê-lo, mas ele interrompeu-me:
— Durante várias semanas, America, pediste-me tempo e eu dei-to
sem fazer perguntas porque tinha fé em ti. Por favor, preciso que tenhas
também um pouco de fé em mim.
Não sabia o que ele poderia mostrar-me que me fizesse mudar de
ideias, mas era impossível não lhe dar algum tempo depois de ele o ter feito
por mim.
Suspirei.
— Está bem.
— Obrigado. — O alívio na sua voz era óbvio.— Tenho de ir, mas
voltarei em breve para te ver.
Assenti com a cabeça. O Maxon levantou-se e saiu, não sem antes
fazer uma paragem rápida para se despedir da Celeste. Fiquei a olhá-lo e
perguntei-me se seria má ideia confiar nele.
Capítulo 12
Corri para fora do salão. Era evidente que a Celeste não estava a
fazer-me um favor; estava a mostrar-me qual era o meu lugar. Por que razão
é que me sentia sequer incomodada com isto? O rei esperava o meu
fracasso, o público não me queria e eu tinha a certeza de que não era capaz
de ser princesa.
Subi as escadas rápida e silenciosamente, tentando passar des‐
percebida. Não havia como saber quem era a fonte não identificada no
palácio.
— Minha senhora — disse a Anne, ao ver-me entrar —, tinha a
certeza de que iria permanecer no salão até ao almoço.
— Anne, podem sair, por favor?
— Perdão?
Respirei fundo, tentando não perder a paciência.
— Preciso de ficar sozinha. Por favor?
Sem dizerem uma palavra, fizeram uma reverência e saíram.
Aproximei-me do piano. Iria tentar distrair-me até não pensar mais naquilo.
Toquei algumas músicas que sabia de cor, mas isso era demasiado fácil.
Precisava de me concentrar efetivamente.
Levantei-me e vasculhei a banqueta do piano em busca de algo mais
difícil. Afastei várias partituras até dar com a lombada de um livro. O diário
de Illéa! Tinha-me esquecido completamente de que estava aqui. Aquilo
seria uma excelente distração. Levei o livro para cima da cama e abri-o,
observando as páginas antigas enquanto as ia folheando.
O diário abriu-se na página com a fotografia do Halloween, já que a
foto rígida agia naturalmente como marcador de páginas. Reli a entrada:
As crianças comemoraram o Halloween deste ano com uma
festa. Acho que é uma forma de esquecerem o que se passa à
sua volta, mas parece-me uma frivolidade. Somos uma das
poucas famílias que ainda têm dinheiro suficiente para
festejar, mas esta brincadeira infantil parece-me um
desperdício.
ESTAMOS A CHEGAR
Era segunda-feira à noite. Ou terça de manhã. Era tão tarde que era
difícil dizer.
A Kriss e eu tínhamos trabalhado o dia inteiro à procura de amostras
de tecido adequadas e pedindo aos mordomos que as pendurassem, a
escolher as nossas roupas e joias, a selecionar a baixela, a criar um rascunho
do menu e a ouvir um professor de línguas a dizer-nos frases em italiano, na
esperança de que absorvêssemos um pouco da língua. Pelo menos, eu tinha
a vantagem de falar espanhol, o que me ajudava a apanhar as coisas com
mais rapidez; as duas línguas eram muito parecidas. A Kriss estava
simplesmente a dar o máximo para conseguir acompanhar.
Eu deveria estar exausta, mas só conseguia pensar nas palavras do
Maxon.
O que é que acontecera com a Kriss? Por que razão é que ela ficara,
de repente, tão próxima dele? Será que deveria sequer preocupar-me tanto?
Mas era o Maxon.
E por mais que tentasse afastar-me, ainda sentia algo por ele. Não
estava pronta para desistir completamente.
Tinha de haver uma maneira de resolver isto. Enquanto pensava em
tudo o que acontecera, na tentativa de tentar destrinçar
todos os meus problemas, parecia que tudo podia ser dividido em
quatro categorias
Os meus sentimentos pelo Maxon; os sentimentos do Maxon por mim;
o que se passava entre o Aspen e eu; e os meus sentimentos em relação a
tornar-me, de facto, uma princesa.
Entre todas as coisas que giravam na minha cabeça neste momento, a
parte de ser princesa parecia ser a mais fácil de resolver. Pelo menos nessa
questão, eu tinha algo que as outras não tinham. Eu tinha o Gregory.
Fui até à banqueta do piano, agarrei no diário e desejei de todo o
coração encontrar ali alguma pérola de sabedoria. Ele não nascera numa
família real; devia ter sido obrigado a adaptar-se. Com base no que dizia na
sua mensagem sobre o Halloween, estava já a preparar-se para uma grande
mudança no seu futuro.
Puxei as cobertas, protegendo as palavras do mundo, e mergulhei no
texto.
Querida America,
Em breve, tens de escrever uma carta à May. Quando viu que esta era
só para mim, ficou muito desapontada. Devo confessar que também fiquei
um pouco surpreendido. Não sei bem o que esperava, mas certa mente não
era o que me perguntaste.
Em primeiro lugar, é verdade. Falei com o Maxon quando te visitámos
e ele foi bastante claro sobre as suas intenções em relação a ti. Não acho
que seja uma pessoa capaz de insinceridade e acreditei (ainda acredito) que
gosta bastante de ti. Penso que, se o processo fosse mais simples, já te teria
escolhido. Parte de mim acha que a demora tem a ver contigo. Estou
errado?
A resposta simples é sim. Aprovo o Maxon e, se quiseres casar com ele,
tens o meu apoio; se não quiseres, também tens. Adoro-te e quero que sejas
feliz. Talvez isso signifique viveres na nossa casinha modesta em vez de
num palácio. Para mim, não há problema.
Quanto à tua outra pergunta, também tenho de responder sim. America,
sei que não vês o teu potencial, mas tens de começar a ver. durante anos,
dissemos-te que tinhas talento, mas tu. só acreditaste quando viste as tuas
marcações aumentarem. Lembro-me do dia em que viste que tinhas a
semana inteira lotada e percebeste que era por causa da tua voz e do teu
modo de tocar e ficaste tão orgulhosa. Foi como se, de repente, te tivesses
apercebido de tudo o que eras capaz de fazer. E desde que me lembro que te
dizemos que és linda, mas não tenho a certeza se alguma vez te consideraste
assim, até seres escolhida para a Seleção.
Tu tens capacidade para liderar, America. Tens uma boa cabeça bem
assente em cima dos ombros; tens vontade de aprender; e, talvez ainda mais
importante, tens compaixão, isso é algo por que as pessoas deste pais
anseiam, mais do que possas imaginar.
Se queres a coroa, America, aceita-a. Aceita-a, porque ela deve ser tua.
E, no entanto... se não quiseres esse fardo, jamais poderei censurar-te.
receber-te-ia em casa de braços abertos.
Adoro-te,
Pai
Fiz uma reverência à rainha quando entrei na sala de jantar, mas ela nem
viu. Olhei para a Elise, a única que já ali estava, e ela encolheu
simplesmente os ombros. Sentei-me no momento em que a Natalie e a
Celeste entravam e eram igualmente ignoradas. Por fim, chegou a Kriss,
que se sentou ao meu lado, mas com os olhos fixos na Rainha Amberly. A
rainha parecia estar no seu mundo privado, olhando para o chão ou, de vez
em quando, para as cadeiras do Maxon e do rei, como se algo estivesse
errado.
Os mordomos começaram a servir a comida e a maior parte das
raparigas começou a comer. A Kriss, porém, continuou atenta à mesa
principal.
— Sabes o que se passa? — sussurrei.
A Kriss soltou um suspiro e virou-se para mim.
— A Elise telefonou para a família para ter uma ideia do que estava a
passar-se e para que os seus parentes se encontrassem com o Maxon e o rei,
assim que estes chegassem à Nova Ásia. Só que a família da Elise diz que
eles não chegaram.
— Não chegaram?
A Kriss assentiu com a cabeça.
— O que é esquisito é que o rei ligou quando eles aterraram. Tanto ele
como o Maxon conversaram com a Rainha Amberly.
Estavam bem e disseram que estavam na Nova Ásia, mas a família da
Elise continua a dizer que não chegaram.
Franzi a testa, tentando compreender.
— O que é que isso tudo significa?
— Não sei — admitiu ela. — Eles disseram que estavam. Portanto,
como é possível não estarem? Não faz sentido.
— Hum... — disse eu, não sabendo bem o que acrescentar. Por que
razão é que a família da Elise não saberia que eles estavam lá? E se não
estivessem realmente na Nova Ásia, onde estariam?
A Kriss inclinou-se mais para mim.
— Há outra coisa sobre a qual gostaria de falar contigo — sussurrou. —
Podemos ir dar um passeio nos jardins depois do pequeno-almoço?
— Claro — respondi, ansiosa por ouvir o que ela sabia.
Comemos ambas rapidamente. Não sabia o que ela descobrira, mas se
queria falar lá fora, era porque o segredo era um requisito. A rainha estava
tão distraída que mal reparou na nossa saída.
Era maravilhoso caminhar pelos jardins ensolarados.
— Já há algum tempo que não venho aqui fora — comentei, fechando
os olhos e erguendo o rosto para o Sol.
— Costumas vir com o Maxon, não é?
— Hum-hum... — respondi e perguntei-me imediatamente como é que
ela sabia disso. Seria do conhecimento público? Aclarei a garganta: — E
então, sobre o que é que querias falar?
Ela parou sob a sombra de uma árvore e virou-se para me encarar.
— Acho que tu e eu devemos falar sobre o Maxon.
— De que modo?
Ela moveu-se nervosamente.
— Bem, eu estava preparada para perder. Acho que todas estávamos,
com exceção talvez da Celeste. Era óbvio, America. Ele queria-te a ti. E
então aconteceu tudo aquilo com a Marlee e as coisas mudaram.
Eu não sabia bem o que dizer.
— Portanto, estás a dizer-me que lamentas ter-me passado à frente ou
algo assim?
— Não! — exclamou ela. — Eu vejo que ele ainda gosta de ti. Não sou
cega. Só estou a dizer que acho que talvez estejamos empatadas nesta
altura. Eu gosto de ti. Acho que és uma pessoa espetacular e,
independentemente do resultado, não quero que as coisas se tornem
desagradáveis.
— Então, isto é...?
Ela apertou as mãos uma na outra, tentando encontrar as palavras certas.
— Isto sou eu disposta a ser completamente sincera sobre a minha
relação com o Maxon. E espero que consigas fazer o mesmo.
Cruzei os braços e fiz a pergunta que ansiava por colocar:
— Quando é que vocês ficaram tão próximos?
A expressão dos olhos dela tornou-se sonhadora e ela torceu uma ponta
do seu cabelo castanho-claro.
— Acho que logo depois do que aconteceu com a Marlee. Talvez pareça
idiota, mas eu fiz-lhe um cartão. Era o que sempre fazia na minha cidade
quando os meus amigos estavam tristes. Seja como for, ele adorou. Disse
que ainda ninguém lhe tinha dado um presente.
O quê? Oh. Uau. Depois de tudo o que ele fizera por mim, eu nunca
tinha realmente retribuído?
— Ele ficou tão feliz que me pediu para me sentar um pouco com ele no
seu quarto e...
— Viste o quarto dele? — perguntei, chocada.
— Sim. Tu não?
O meu silêncio serviu-lhe de resposta.
— Oh... — disse ela, um pouco constrangida. — Bem, não perdeste
nada. É escuro, tem uma estante com armas e uma confusão de fotografias
espalhadas pela parede. Não é nada de especial — assegurou ela, com um
gesto displicente. — Seja como for, depois disso, ele começou a visitar-me
praticamente sempre que tinha um momento livre. — Ela abanou a cabeça.
— Aconteceu muito depressa.
Soltei um suspiro.
— Ele contou-me, mais ou menos — confessei. — Fez um comentário
sobre precisar de nós as duas aqui.
— Então... — Ela mordeu os lábios. — Tens a certeza de que ele ainda
gosta de ti?
Mas ela não suspeitava já disso? Será que precisava de o ouvir da minha
boca?
— Kriss, queres mesmo saber todas essas coisas?
— Sim! Quero saber qual é a minha posição. E contar-te-ei também
qualquer coisa que queiras saber. Nós não controlamos isto, mas isso não
significa que tenhamos de nos sentir perdidas.
Dei alguns passos de um lado para o outro, tentando entender tudo
aquilo. Não sabia se era suficientemente corajosa para perguntar ao Maxon
sobre a Kriss. Mal conseguia conversar honestamente com ele sobre mim.
Mas continuava a ter a sensação de não saber toda a verdade sobre a minha
posição. Talvez esta fosse a minha única esperança de saber realmente.
— Tenho a certeza de que ele quer que eu fique durante algum tempo.
Mas acho que ele também te quer aqui.
Ela assentiu com a cabeça.
— Foi o que pensei.
— Ele beijou-te? — perguntei, não me contendo.
Ela sorriu, embaraçada.
— Não, mas acho que me teria beijado se eu não lhe tivesse pedido para
não o fazer. Na minha família, temos uma espécie de tradição em que não
nos beijamos até ficarmos noivos. Às vezes, damos uma festa onde o casal
anuncia a sua data de casamento e então toda a gente assiste ao primeiro
beijo. Quero isso para mim.
— Mas ele tentou?
— Não. Expliquei-lhe a situação antes de chegarmos a esse ponto. Ele
beija-me frequentemente as mãos ou a face, às vezes. Acho amoroso —
disse ela com entusiasmo.
Assenti com a cabeça, olhando para a relva.
— Espera! — disse ela, hesitando. — Ele beijou-te?
Parte de mim queria gabar-se de ter sido a primeira pessoa que ele
beijara. Que quando nos beijávamos parecia que o tempo parava.
— Mais ou menos. É difícil explicar — respondi ambiguamente.
Ela fez uma careta.
— Não, não é. Ele beijou-te ou não?
— É complicado.
— America, se não vais ser sincera comigo, isto é uma perda de tempo.
Vim aqui para ser sincera contigo. Pensei que seria bom para ambas se
fossemos amigáveis uma com a outra.
Fiquei ali, torcendo as mãos, tentando pensar numa forma de me
explicar. Não é que eu não gostasse da Kriss. Se voltasse para casa, quereria
que fosse ela a ganhar.
— Eu quero ser tua amiga, Kriss. Pensei que já fôssemos.
— Eu também — disse ela, suavemente.
— O problema é que é difícil para mim partilhar a minha intimidade.
Aprecio a tua sinceridade, mas não tenho a certeza de querer saber tudo.
Embora tenha perguntado — acrescentei rapidamente, notando que ela ia
começar a falar. — Eu já sabia que ele sentia alguma coisa por ti. Dava para
ver. Acho que preciso que as coisas fiquem vagas por enquanto.
Ela sorriu.
— Posso respeitar isso. Poderias fazer-me um favor, no entanto?
— Claro, se puder.
Ela mordeu os lábios e desviou o olhar por um instante. Quando se
virou para mim, consegui ver vestígios de lágrimas nos seus olhos.
— Se tiveres a certeza de que ele não me quer, serias capaz de me
avisar? Não sei como tu te sentes, mas eu amo-o. E gostaria que me
dissessem. Se souberes com certeza, claro.
Ela amava-o. Dissera-o em voz alta, corajosamente. A Kriss amava o
Maxon.
— Se ele alguma vez me disser com certeza, dir-te-ei.
Ela assentiu com a cabeça.
— E será que podemos talvez fazer uma outra promessa? Não nos
atrapalharmos uma à outra de propósito? Não quero ganhar desse modo e
acho que tu também não.
— Não sou nenhuma Celeste — disse eu com ar de desprezo, e ela riu-
se. — Prometo ser leal.
— Pronto. — Ela enxugou os olhos e endireitou o vestido. Eu conseguia
ver facilmente o quão elegante ela ficaria com a coroa na cabeça.
— Tenho de ir andando — menti. — Obrigada por falares comigo.
— Obrigada por teres vindo. Desculpa se fui demasiado intrometida.
— Não há problema. — Dei um passo atrás. — Vejo-te mais tarde.
— Está bem.
Dei meia-volta o mais rápido que consegui sem ser indelicada e dirigi-
me para o palácio. Uma vez lá dentro, estuguei o passo e corri escadas
acima, desejosa de me esconder.
Cheguei ao segundo andar e dirigi-me para o meu quarto. Reparei num
pedaço de papel no chão, uma coisa nada habitual no palácio geralmente
impecável. Estava na esquina que dava para a minha porta; portanto, achei
que deveria ser para mim. Para ter a certeza, abri o bilhete e li.
A última coisa por que esperava ao entrar no meu quarto era uma
salva de palmas das minhas aias.
Fiquei ali imóvel, por um momento, genuinamente comovida com o
apoio delas e confortada pelo orgulho radiante nos seus rostos. Assim que
pararam de me deixar envergonhada, a Anne pegou-me nas mãos.
— Muito bem dito, menina. — Ela apertou-me a mão e vi no seu
olhar tanta alegria pelo que eu tinha dito que, por um segundo, não me senti
tão horrível.
— Não posso acreditar que fez aquilo! Nunca ninguém nos defende!
— acrescentou a Mary.
— O Maxon tem de a escolher — exclamou a Lucy. — E a única que
me dá esperança.
Esperança.
Precisava de pensar e o único lugar onde poderia fazê-lo era no
jardim. Embora as minhas aias tivessem insistido para que ficasse, saí,
tomando o caminho mais longo e descendo pelas escadas das traseiras na
outra ponta do corredor. Além de um ou outro guarda, o primeiro andar
estava deserto e silencioso. Parecia-me que o palácio deveria estar a
fervilhar de atividade depois de tudo o que acontecera na última meia hora.
Enquanto seguia pela ala hospitalar, uma porta abriu-se e fui de
encontro ao Maxon, que deixou cair uma caixa de metal lacrada. Ele gemeu
depois da nossa colisão, embora não tivéssemos chocado com muita força.
— O que estás a fazer fora do teu quarto? — perguntou ele, baixando-
se devagar para apanhar a caixa. Reparei que esta tinha o nome dele
gravado de lado. Perguntei-me o que guardaria na ala hospitalar.
— Ia para o jardim. Estou a tentar descobrir se fiz uma burrice ou não.
O Maxon parecia estar com dificuldade em manter-se de pé.
— Oh, posso garantir-te que foi uma burrice.
— Precisas de ajuda?
— Não — respondeu ele rapidamente, evitando o meu olhar. — Vou
para o meu quarto. E aconselho-te a fazeres o mesmo.
— Maxon... — O pedido sereno na minha voz fê-lo olhar para mim.
— Lamento tanto. Eu estava furiosa e queria... Já nem sei. E foste tu quem
disse que havia vantagens em se ser Um, que era possível mudarmos as
coisas.
Ele fez um ar exasperado.
— Tu não és Um.
Fez-se silêncio entre nós.
— E mesmo que fosses, nunca prestaste atenção ao modo como faço
as coisas? Com discrição e aos poucos. É assim que tem de ser por
enquanto. Não podes ir para a televisão queixar-te do modo como as coisas
são feitas e esperar o apoio do meu pai, ou de qualquer outra pessoa.
— Desculpa! — exclamei. — Lamento tanto, mas tanto.
Ele fez uma pausa por um instante.
— Não sei se...
Ouvimos o grito ao mesmo tempo. O Maxon deu meia-volta e
começou a andar e eu segui-o, tentando perceber aquele som. Estava
alguém a lutar? Quando nos aproximámos do cruzamento entre o corredor
principal e as portas para o jardim, vimos uma multidão de guardas a correr
para essa zona.
— Toquem o alarme! — gritou alguém. — Eles passaram pelos
portões!
— Armas a postos! — berrou outro guarda por cima do barulho.
— Alertem o rei!
E então, como um enxame de abelhas, várias coisas pequenas e
rápidas entraram a voar no corredor. Um guarda foi atingido e caiu para
trás, batendo com a cabeça contra o mármore e produzindo um estalo
perturbador. O sangue a jorrar do seu peito fez-me gritar.
O Maxon puxou-me instintivamente para trás, mas não muito
depressa. Talvez também estivesse em choque.
— Vossa Majestade! — chamou um dos guardas, correndo na nossa
direção. — O senhor precisa de ir imediatamente lá para baixo!
Ele virou bruscamente o Maxon e empurrou-o. O Maxon gritou e
deixou cair novamente a caixa de metal. Olhei para a mão com que o
soldado tocara no Maxon, imaginando que ele deveria ter-lhe cravado uma
faca nas costas, a julgar pelo seu grito. Tudo o que vi foi um anel de peltre
grosso no seu polegar. Peguei na caixa pela pega lateral, esperando não
estragar nada lá dentro, e corri na direção para onde o guarda tentava
conduzir-nos.
— Não vou conseguir — disse o Maxon.
Olhei para ele e vi que estava a suar. Passava-se algo de muito grave
com ele.
— Sim, senhor — disse o guarda, sombriamente. — Por aqui.
Arrastou o Maxon para um canto que parecia não ter saída. Eu estava
a questionar-me se iria deixar-nos ali quando ele tocou num botão invisível
na parede, abrindo mais uma das misteriosas portas do palácio. Estava tão
escuro lá dentro que eu não conseguia ver onde iria dar, mas o Maxon
entrou sem hesitar, com as costas arqueadas.
— Avise a minha mãe que a America e eu estamos seguros. Faça isso
antes de qualquer outra coisa — disse ele.
— Sim, senhor. Virei buscar-vos pessoalmente quando isto acabar.
A sirene soou. Eu esperava que ainda houvesse tempo para salvar toda
a gente.
O Maxon assentiu e a porta fechou-se, deixando-nos na mais completa
escuridão. O abrigo era tão estanque que eu não conseguia distinguir sequer
o som do alarme. Ouvi o Maxon esfregar a mão na parede até encontrar um
interruptor que iluminou a sala com uma luz fraca. Olhei em volta e
inspecionei o espaço.
Havia algumas prateleiras com uns pacotes escuros de plástico e uma
outra prateleira com alguns cobertores finos. No meio daquele espaço
minúsculo havia um banco de madeira com capacidade para umas quatro
pessoas e, na parede oposta, um pequeno lavatório e o que parecia ser uma
sanita muito básica. Havia vários ganchos pregados numa das paredes, mas
sem nada pendurado. A sala inteira cheirava ao metal de que as paredes
pareciam ser feitas.
— Pelo menos, este é um dos bons — comentou o Maxon, dirigindo-
se a cambalear até ao banco onde se sentou.
— O que se passa?
— Nada — disse ele em voz baixa, apoiando a cabeça nos braços.
Sentei-me ao seu lado e pousei a caixa de metal no banco, olhando em volta
da sala mais uma vez.
— Presumo que devam ser rebeldes Sulistas.
O Maxon assentiu. Tentei acalmar a respiração e apagar da mente o
que acabara de ver. Será que aquele guarda sobreviveria? Será que alguém
poderia sobreviver a algo assim?
Perguntei-me até onde os rebeldes teriam conseguido chegar durante o
tempo que demoráramos a esconder-nos. Teria o alarme sido
suficientemente rápido?
— Estamos seguros aqui?
— Sim. Este é um dos abrigos para os criados. Se estiverem na
cozinha ou no armazém, estão bastante seguros. Mas aqueles que estiverem
pelo palácio a realizar as suas tarefas podem não ter tempo suficiente para
lá chegar. Não são tão seguros como o grande abrigo da família real, onde
temos mantimentos para muito tempo, mas servem para uma emergência.
— Os rebeldes sabem?
— Talvez — disse ele, estremecendo quando se endireitou no banco.
— Mas não podem entrar enquanto os abrigos estiverem a ser usados. Há
apenas três formas de sair. Com uma chave, é possível ativá-los do lado de
fora ou por dentro — O Maxon bateu no bolso, dando a entender que
poderia tirar-nos dali se necessário. — Ou então, é preciso esperar dois dias.
Ao fim de quarenta e oito horas, as portas abrem-se automaticamente. Os
guardas verificam cada um dos abrigos assim que o perigo passa, mas há
sempre a possibilidade de falharem um e, sem o mecanismo de abertura
retardada, alguém poderia ficar preso aqui para sempre.
Ele demorou algum tempo para conseguir dizer tudo aquilo. Estava
claramente em sofrimento, mas parecia estar a tentar distrair-se com as
palavras. Inclinou-se para a frente e resfolegou quando esse movimento
pareceu piorar o que quer que fosse que estava a doer-lhe.
— Maxon?
— Não consigo... não consigo aguentar mais. America, ajudas-me a
despir o casaco?
Ele estendeu o braço e eu pus-me de pé para o ajudar a fazer deslizar
o casaco pelas costas. Ele deixou-o cair atrás de si e passou aos botões.
Comecei a ajudá-lo, mas ele interrompeu-me, envolvendo as minhas mãos
nas dele.
— Neste momento, a tua capacidade de guardar segredos não é das
mais impressionantes. Mas este é daqueles que terás de levar para o túmulo.
Teu e meu. Entendido?
Assenti com a cabeça, embora não percebesse muito bem o que ele
queria dizer. O Maxon largou-me as mãos e desabotoei-lhe lentamente a
camisa. Perguntei-me se ele alguma vez sonhara comigo a fazer isto. Eu
tinha de admitir que já sonhara com aquilo. Na noite de Halloween, ficara
deitada na cama, a sonhar com este momento no futuro. Imaginara-o de um
modo bastante diferente, mas, ainda assim, senti um arrepio.
Eu tinha sido criada como música, mas vivera rodeada por artistas.
Certa vez, vira uma escultura com centenas de anos, que representava um
atleta a lançar um disco. Na altura, pensara que apenas um artista poderia
criar aquilo: fazer o corpo de alguém parecer tão belo. O peito do Maxon
era tão escultural como qualquer peça de arte que eu já vira.
Mas tudo mudou quando comecei a despir-lhe a camisa pelas costas.
Estava colada e fazia um som molhado e peganhento quando tentava puxá-
la.
— Devagar — disse ele.
Assenti com a cabeça e fui para trás dele para tentar daquele lado. As
costas da camisa do Maxon estavam empapadas em sangue. Soltei uma
exclamação e fiquei imóvel por um instante. Mas então, suspeitando de que
o meu espanto só piorava as coisas, voltei ao trabalho. Assim que retirei a
camisa, pendurei-a num dos ganchos, tentando recuperar o controlo.
Virei-me e olhei bem para as costas do Maxon. Um corte
ensanguentado rasgava a pele desde o ombro até à cintura, atravessando um
outro que também sangrava; este, por sua vez, passava por cima de outro
que parecia já ter cicatrizado há algum tempo, o qual cruzava um outro
onde a pele estava enrugada pelo tempo. Parecia haver seis cortes recentes
nas costas do Maxon, em cima de muitos outros, demasiados para contar.
Como é que isto podia ter acontecido? O Maxon era o príncipe. Era
um nobre, um soberano, um ser à parte de todos os outros. Estava acima de
tudo, às vezes até da lei. Portanto, como teria ficado coberto de cicatrizes?
Então, lembrei-me do olhar do rei nessa noite. E do esforço do Maxon
para esconder o seu medo. Como é que um homem podia fazer isto ao
próprio filho?
Afastei-me de novo, inspecionando o abrigo até encontrar um pano.
Fui até ao lavatório e fiquei feliz por ver que funcionava, embora a água
fosse fria como o gelo.
Acalmei-me e aproximei-me do Maxon, tentando manter a calma por
ele.
— Isto é capaz de arder um pouco — avisei.
— Tudo bem — disse ele em voz baixa. — Estou habituado.
Peguei no pano molhado e passei-o com cuidado sobre o grande sulco
no seu ombro, decidindo que iria trabalhar de cima para baixo. Ele
encolheu-se um pouco, mas aguentou em silêncio. Quando passei ao
segundo corte, começou a falar.
— Há anos que ando a preparar-me para esta noite, sabes? Estava à
espera do dia em que fosse suficientemente forte para o enfrentar.
O Maxon ficou em silêncio por instantes e algumas coisas começaram
a fazer sentido: a razão pela qual uma pessoa que trabalhava à secretaria
tinha uns músculos tão respeitáveis; o porquê de ele estar sempre meio
vestido e pronto para qualquer coisa; a razão pela qual uma rapariga a
chamar-lhe criança e a empurrá-lo o deixava irritado.
Aclarei a garganta.
— E porque é que o enfrentaste?
Ele fez uma pausa.
— Receei que, se ele não me tivesse a mim, fosse atrás de ti.
Fui obrigada a parar por momentos, demasiado emocionada até para
falar. As lágrimas ameaçaram cair, mas tentei contê-las. Tinha a certeza de
que só pioraria as coisas.
— Alguém sabe? — perguntei.
— Não.
— Nem o médico? Ou a tua mãe?
— O médico deve saber, mas é discreto. E eu nunca contaria à minha
mãe, nem lhe daria qualquer motivo para suspeitar. Ela sabe que o meu pai
é severo comigo, mas não quero que se preocupe. Eu consigo aguentar.
Eu continuava a limpar os cortes.
— Ele não é assim com ela — assegurou-me ele rapidamente.
— Ela é maltratada de outras formas, imagino, mas não deste modo.
— Hum — murmurei, sem saber mais o que dizer.
Passei o pano mais uma vez e o Maxon bufou.
— Raios, isso arde.
Parei por um momento, enquanto ele recuperava o fôlego. Após
alguns instantes, fez um sinal com a cabeça para que eu continuasse.
— Sinto-me mais solidário em relação ao Carter e à Marlee do que
possas imaginar — disse ele, tentando parecer animado. — Estas coisas
demoram um pouco a deixar de doer, principalmente quando estamos
decididos a cuidar delas sozinhos.
Parei por um instante, chocada. A Marlee levara quinze vergastadas
de uma só vez. Acho que, se tivesse de escolher, preferiria isso a ser
espancada quando não estivesse à espera.
— Qual foi o motivo das outras? — perguntei. Depois, abanei a
cabeça. — Esquece. Foi indelicado perguntar.
Ele encolheu o ombro são.
— Coisas que disse ou fiz. Coisas que sei.
— Coisas que eu sei — acrescentei. — Maxon, eu...
Soltei um soluço que quase me fez perder o controlo. Era corno se o
tivesse fustigado eu mesma.
Ele não se virou, mas a sua mão procurou e encontrou o meu joelho.
— Como é que vais acabar de tratar de mim, se estiveres a chorar?
Soltei uma risada fraca através das lágrimas e limpei o rosto. Acabei
de tratar tudo, tentando não o magoar.
— Achas que há ligaduras por aqui? — perguntei, olhando em volta
do abrigo.
— Na caixa — disse ele.
Enquanto ele permanecia sentado, acalmando a respiração, abri os
fechos da caixa, olhando para a abundância de artigos.
— Porque é que não tens as ligaduras no teu quarto?
— Por puro orgulho. Estava decidido a nunca mais precisar delas.
Suspirei baixinho. Li os rótulos e encontrei a solução desinfetante,
uma coisa que parecia poder ajudar a aliviar a dor, e as ligaduras.
Passei para trás dele, preparando-me para aplicar os medicamentos.
— Isto é capaz de doer.
Ele assentiu com a cabeça. Quando o remédio tocou na pele, ele
gemeu uma vez e depois ficou em silêncio. Tentei ser rápida e cuidadosa,
procurando deixá-lo o mais confortável possível.
Comecei a colocar o unguento nas feridas e tornou-se claro que o que
quer que aquilo fosse ajudava. A tensão nos seus ombros foi desaparecendo
enquanto eu trabalhava, o que me deixou contente; de certo modo, era como
se eu estivesse a reparar parte do mal que causara.
Ele deixou escapar uma risada descontraída.
— Eu sabia que o meu segredo acabaria por vir à tona. Há anos que
tento inventar uma boa história. Esperava encontrar algo plausível até ao
casamento, pois já que sabia que a minha mulher iria vê-las, mas continuo
bloqueado. Alguma ideia?
Pensei um pouco.
— A verdade basta.
— Não é a minha opção favorita. Não para este caso, pelo menos.
— Acho que acabei.
O Maxon torceu-se e dobrou-se um pouco, movendo-se com muito
cuidado. Virou-se para olhar para mim com uma expressão de gratidão.
— Está excelente, America. Melhor do que o que eu alguma vez fiz.
— Às ordens.
Ele encarou-me por uns instantes e o silêncio cresceu. O que é que
poderíamos dizer?
Os meus olhos insistiam em descer para o peito dele e eu tinha de
parar com aquilo.
— Vou lavar a tua camisa. — Enfiei-me no canto, a esfregar a camisa
com as mãos e observando a água tingir-se de uma cor enferrujada antes de
descer pelo cano. Sabia que o sangue não iria sair todo, mas pelo menos
dava-me algo para fazer.
Quando terminei, torci a camisa e pendurei-a novamente no gancho.
Quando me virei, o Maxon estava com os olhos cravados em mim.
— Porque é que nunca me fazes as perguntas a que eu quero
responder?
Eu não me achava capaz de me sentar ao seu lado, no banco, sem me
sentir tentada a tocar-lhe. Então, sentei-me no chão em frente dele.
— Não sabia que fazia isso.
— Mas fazes.
— Bom, então o que é que não perguntei que tu queres responder?
Ele respirou fundo e inclinou-se com cuidado para a frente, apoiando
os cotovelos nos joelhos.
— Não queres que te dê explicações sobre a Kriss e a Celeste? Não
achas que mereces isso?
Capítulo 29
Cruzei os braços.
— Ouvi a versão da Kriss sobre o que aconteceu e não acho que ela
tenha exagerado. Quanto à Celeste, prefiro nunca mais falar sobre ela.
Ele riu-se.
— Tão teimosa. Vou sentir falta disso.
Fiquei calada por um instante.
— Então acabou? Estou fora?
O Maxon pensou um pouco.
— Acho que não conseguiria evitá-lo agora. Não era o que tu querias?
Abanei a cabeça.
— Eu estava furiosa — sussurrei. — Tão furiosa.
Desviei o olhar, não querendo chorar. Aparentemente, o Maxon
decidira que eu precisava de ouvir o que ele tinha para dizer, quer quisesse
ou não. Encurralara-me finalmente e eu iria ouvir tudo o que ele queria
dizer-me.
— Pensei que fosses minha — disse ele.
Olhei para ele e vi que tinha os olhos fixos no teto.
— Se pudesse, teria pedido a tua mão em casamento na festa de
Halloween. Tenho de fazer um evento oficial, com os meus pais,
convidados e as câmaras, mas consegui uma autorização especial para te
pedir em casamento em privado, quando estivéssemos prontos, e dar uma
receção depois. Nunca te contei isso, pois não?
O Maxon olhou para mim e eu abanei ligeiramente a cabeça. Ele fez
um sorriso amargo, recordando-se.
— Eu já tinha o discurso preparado com todas as promessas que
queria fazer. Provavelmente, tê-lo-ia esquecido e feito figura de idiota.
Contudo... consigo lembrar-me dele agora. — Suspirou. — Vou poupar-te a
ouvi-lo.
Ele fez uma ligeira pausa:
— Quando me afastaste, entrei em pânico. Pensava que me tinha visto
livre deste concurso louco e dei por mim a sentir-me novamente como no
primeiro dia da Seleção, só que agora as minhas opções eram bastante mais
limitadas. E logo quando, na semana anterior, eu tinha passado tempo com
todas as raparigas, tentando encontrar alguém que te ofuscasse, alguém que
eu achasse que poderia querer mais, mas sem sucesso. Senti-me
desesperado.
»E então, a Kriss veio ter comigo. Tão humilde, querendo apenas ver-
me feliz, e eu perguntei-me como é que não tinha visto esse lado dela. Sabia
que ela era simpática e bastante atraente, mas, afinal, havia algo mais nela
este tempo todo.
«Acho que não estava a procurar realmente. Por que motivo o faria, se
já te tinha a ti?
Abracei as minhas pernas, tentando esconder-me da dor. Eu já não
existia. Tinha estragado tudo.
— Amas a Kriss? — perguntei, humildemente. Não queria ver o rosto
dele, mas a longa pausa deu-me a entender que havia algo de profundo
entre os dois.
— É diferente do que tu e eu tínhamos. É mais calmo, talvez mais
amigável. Mas é constante. Posso apoiar-me na Kriss e sei, sem qualquer
dúvida, que ela é dedicada a mim. Como podes ver, há muito poucas
certezas no meu mundo. Ela é reconfortante.
Fiz que sim com a cabeça, ainda evitando olhá-lo nos olhos. Tudo em
que conseguia pensar era que ele falara de nós no passado e só tinha elogios
para a Kriss. Queria ter algo de mau para dizer sobre ela, algo que a ferisse
um pouco aos olhos dele, mas não tinha. A Kriss era uma lady. Tinha feito
tudo bem desde o início e surpreendia-me que ele me tivesse sequer
preferido a ela. A Kriss era perfeita para ele.
— Então, porquê a Celeste? — perguntei, encarando-o finalmente. —
Se a Kriss é tão maravilhosa...
O Maxon assentiu com a cabeça, aparentemente envergonhado com
este assunto. Mas a ideia de falar disto partira dele; portanto, já deveria ter
alguma explicação em mente. Ele levantou-se, endireitando cuidadosamente
as costas, e começou a andar de um lado para o outro.
— Como sabes, a minha vida está cheia de situações de stress que
prefiro não revelar. Vivo num estado de constante de tensão. Estou sempre a
ser observado, julgado. Os meus pais, os nossos conselheiros... há sempre
câmaras na minha vida e agora vocês estão aqui — disse ele, com um gesto
na minha direção. — Tenho a certeza de que já te sentiste limitada por
causa da tua casta pelo menos uma vez, mas imagina como eu me sinto. Há
coisas que eu vi, America, e coisas que sei; e acho que nunca serei capaz de
as mudar.
»Imagino que estejas a par do facto de que o meu pai deve,
teoricamente, renunciar quando eu tiver vinte e poucos anos, quando ele
achar que eu estou pronto para liderar; mas achas que ele alguma vez vai
deixar de mover os cordelinhos nos bastidores? Isso nunca vai acontecer
enquanto ele viver. E eu sei que ele é terrível, mas não quero que morra...
Ele é meu pai.
Assenti, compreendendo.
— E, a propósito, ele influenciou a Seleção desde o início. Se olhares
para as que sobraram, fica tudo muito claro.
Ele começou a contar as raparigas pelos dedos.
— A Natalie é extremamente dócil, o que faz dela a favorita do meu
pai, pois, segundo ele, eu sou demasiado voluntarioso. O facto de ele gostar
tanto dela faz com que eu tenha de lutar contra o impulso de a odiar.
»A Elise tem aliados na Nova Ásia, mas não sei se serviriam para
alguma coisa. Essa guerra... — Pensou em alguma coisa e depois abanou a
cabeça. Havia algum pormenor sobre a guerra que ele não queria revelar-
me. — E ela é tão... nem sei como o descrever. Eu sabia desde o início que
não queria uma rapariga que concordasse com tudo o que eu dissesse ou
que simplesmente me obedecesse e adorasse. Tento contradizê-la e ela cede.
Sempre! É extremamente frustrante. É como se ela não tivesse
personalidade.
Respirou fundo para se acalmar. Eu não percebera o quanto ela o
irritava. Ele tinha sempre tanta paciência connosco. Por fim, ele olhou para
mim.
— Tu foste a minha escolha. A minha única escolha. O meu pai não
ficou entusiasmado, mas até agora ainda não tinhas feito nada que o
deixasse irritado. Desde que ficasses sossegada, ele não se importava que eu
te mantivesse. Aliás, até concordaria que eu te escolhesse, se fosses bem-
comportada. Usou as tuas ações recentes para apontar as minhas falhas de
julgamento e insiste que terá a palavra final a partir de agora.
Ele abanou a cabeça.
— Mas isso é outra história. As outras, a Marlee, a Kriss e a Celeste,
foram escolhidas por conselheiros. A Marlee era uma das favoritas, assim
como a Kriss. — Soltou um suspiro. — A Kriss seria uma boa escolha.
Gostaria que ela me deixasse aproximar-me, pelo menos para descobrir se
temos... química. Gostaria de ter pelo menos uma ideia.
»E a Celeste, é muito influente, uma celebridade por si só. Fica bem
na TV. E parece lógico que alguém praticamente do meu nível seja a minha
escolha final. Gosto dela, mais que não seja pela sua tenacidade. Ela, pelo
menos, tem personalidade. Mas consigo perceber que é manipuladora e que
está a fazer os possíveis para aproveitar ao máximo esta situação. Sei que,
quando me abraça, é a coroa que tem no coração.
Fechou os olhos, como se o que estivesse prestes a dizer fosse a pior
parte.
— Ela está a usar-me e, por isso, não me sinto culpado quando a uso.
Não me surpreenderia se ela tivesse sido encorajada por alguém a atirar-se a
mim. Posso respeitar os limites da Kriss.
E preferiria muito mais estar nos teus braços, mas tu mal tens falado
comigo...
»É assim tão mau eu querer passar quinze minutos sem preocupações?
Sentir-me bem? Fingir durante algum tempo que alguém me ama? Podes
julgar-me se quiseres, mas não vou pedir desculpa por querer um pouco de
normalidade na minha vida.
Olhou-me profundamente nos olhos, aguardando a minha reprovação
e, ao mesmo tempo, esperando que ela não surgisse.
— Eu percebo.
Pensei no Aspen a abraçar-me com força e a fazer promessas. Não
fizera eu o mesmo? Conseguia ver o cérebro do Maxon a trabalhar, tentando
perceber quão literais eram as minhas palavras. Mas este era um segredo
que eu não poderia revelar. Ainda que tudo estivesse perdido para mim, não
poderia deixar o Maxon pensar em mim dessa forma.
— Tu escolhê-la-ias? A Celeste, quero dizer?
Ele veio sentar-se ao meu lado, movendo-se com cuidado. Eu não
conseguia imaginar o quanto as suas costas deveriam estar a doer-lhe.
— Se tivesse de o fazer, escolheria a Celeste em vez da Elise ou da
Natalie. Mas isso não vai acontecer, a não ser que a Kriss decida sair.
— A Kriss é uma boa escolha — concordei. — Será uma princesa
muito melhor do que eu jamais seria.
Ele soltou uma risadinha.
— Ela é menos instigadora. Deus sabe o que aconteceria ao país
contigo à frente.
Ri-me também porque ele tinha razão.
— Eu arruiná-lo-ia, provavelmente.
O Maxon continuava a sorrir quando falou.
— Talvez ele precise de ser arruinado.
Permanecemos ali em silêncio, por algum tempo. Imaginei como seria
o nosso mundo arruinado. Não podíamos livrar-nos da família real, porque
não poderíamos convertê-la noutra coisa, mas talvez pudéssemos mudar a
maneira de fazer certas coisas. Os cargos
poderiam ser por eleição em vez de herdados. E as castas... adoraria
realmente vê-las desaparecer para sempre.
— Fazes-me um favor? — perguntou o Maxon.
— O quê?
— Bem, eu partilhei muitas coisas contigo esta noite, que são muito
difíceis de admitir. Estava a pensar se poderias responder-me a uma
pergunta.
O seu rosto era tão sincero que eu não poderia recusar. Esperava não
me arrepender do que quer que se tratasse, mas ele fora mais sincero
comigo do que eu merecia a esta altura.
— Sim. O que quiseres.
Ele engoliu em seco.
— Alguma vez me amaste?
O Maxon olhou-me nos olhos e perguntei-me se ele seria capaz de ver
ali a resposta. Todas as emoções que eu combatera, porque pensava que ele
era uma coisa que não era, todos os sentimentos a que nunca quis dar nome.
Baixei a cabeça.
— Sei que, quando pensei que eras o responsável por magoar a
Marlee, fiquei arrasada. Não só pelo que tinha acontecido, mas porque não
queria pensar que pudesses ser esse tipo de pessoa. Sei que, quando falas da
Kriss ou quando penso em ti a beijar a Celeste... sinto tantos ciúmes que
mal consigo respirar. E sei que, quando falámos no Halloween, pensei no
nosso futuro. E estava feliz. Sei que, se me tivesses pedido em casamento,
eu teria dito que sim. — As últimas palavras foram ditas num sussurro; era
quase demasiado difícil pensar naquilo.
— Também sei que nunca soube o que pensar em relação aos teus
encontros com outras pessoas ou ao facto de seres um príncipe. Mesmo com
tudo o que me contaste esta noite, acho que haverá sempre partes de ti que
irás manter reservadas...
»Mas, apesar de tudo... — Assenti com a cabeça. Não era capaz de
dizer aquelas palavras em voz alta. Se as dissesse, como é que conseguiria
partir?
— Obrigado — disse ele, baixinho. — Pelo menos, agora tenho a
certeza de que, por um breve momento durante o nosso tempo juntos, tu e
eu sentimos o mesmo.
Os meus olhos ardiam, ameaçando transbordar com mais lágrimas.
Ele nunca me dissera realmente que me amava e não estava exatamente a
dizê-lo agora. Mas as palavras estavam tão, tão perto.
— Fui tão idiota — disse, com um soluço. Lutara com todas as forças
contra as lágrimas, mas já não aguentava mais. — Deixei que a coroa me
assustasse e fizesse com que não te quisesse. Dizia a mim mesma que não
eras realmente importante para mim. Estava sempre a pensar que me
mentiras, ou enganaras, que não confiavas em mim ou que não te
importavas comigo o suficiente. Deixei-me acreditar que não era importante
para ti.
Olhei para o seu belo rosto.
— Basta olhar para as tuas costas para saber que farias qualquer coisa
por mim. E eu estraguei tudo. Simplesmente estraguei tudo...
Ele abriu os braços e eu lancei-me neles. O Maxon abraçou-me em
silêncio, acariciando os meus cabelos. Eu queria poder apagar tudo e ficar
apenas com aquele momento, aquele breve segundo em que ele e eu
sabíamos o quanto significávamos um para o outro.
— Por favor, não chores querida. Eu pouparia as tuas lágrimas o resto
da vida, se pudesse.
A minha respiração era entrecortada quando falei:
— Nunca mais vou ver-te. A culpa é toda minha.
Ele abraçou-me com mais força.
— Não, eu deveria ter sido mais franco.
— Eu deveria ter sido mais paciente.
— Eu deveria ter pedido a tua mão em casamento naquela noite no teu
quarto.
— Eu deveria ter-te deixado fazê-lo.
Ele riu-se. Olhei para o seu rosto, sem saber quantos mais sorrisos
seus ainda veria. Os dedos do Maxon enxugaram as lágrimas das minhas
faces e ele ficou ali, de olhos cravados nos meus. Eu também olhava para
ele, querendo desesperadamente lembrar-me disto.
— America... não sei quanto tempo ainda temos juntos, mas não
quero gastá-lo com arrependimentos pelas coisas que não fizemos.
— Nem eu. — Virei o rosto para a palma da mão dele, beijando-a.
Depois, beijei a ponta de cada um dos seus dedos. Ele fez deslizar essa mão
por entre os meus cabelos e puxou-me em direção aos seus lábios.
Eu sentira falta destes beijos, tão serenos, tão seguros. Durante toda a
minha vida, sabia que quer me casasse com o Aspen ou com outra pessoa,
nunca ninguém me faria sentir assim. Não era como se a minha presença
tornasse o mundo dele melhor. Era como se eu fosse o mundo dele. Não
havia explosões, não havia fogos de artificio. Era um fogo que ardia
lentamente, de dentro para fora.
Trocámos de posições, de modo que eu fiquei no chão e ele sobre
mim. Ele fez deslizar o nariz pelo meu queixo, pelo meu pescoço, pelo meu
ombro e cobriu depois esse caminho de beijos de volta aos meus lábios. Eu
fazia correr os meus dedos pelo seu cabelo. Era tão suave que quase me
fazia cócegas na palma das mãos.
Depois de algum tempo, fomos buscar cobertores e improvisámos
uma cama. Ele abraçou-me por muito tempo, com os olhos mergulhados
nos meus. Poderíamos ter passado anos a fazer isto se não fosse por mim.
Assim que a camisa do Maxon secou, ele vestiu-a, cobrindo as
manchas secas com o casaco, e voltou a aconchegar-se ao meu lado.
Quando ficámos cansados, começámos a conversar. Eu não queria dormir
nem por um segundo e suspeitei de que ele também não.
— Achas que vais voltar para ele? Para o teu ex?
Eu não queria falar do Aspen naquele momento, mas pensei no
assunto.
— Ele é uma boa opção. Inteligente, corajoso e talvez a única pessoa
no planeta mais teimosa do que eu.
O Maxon soltou uma gargalhada alegre. Os meus olhos estavam
fechados, mas continuei a falar:
— Mas vai demorar algum tempo até eu conseguir pensar sobre isso.
— Hum.
O silêncio prolongou-se. O Maxon acariciava a minha mão com o
polegar.
— Será que posso escrever-te? — perguntou ele.
Pensei um pouco.
— Talvez seja melhor esperares alguns meses. Talvez nem sintas a
minha falta.
Ele soltou uma risada forçada.
— Se escreveres... tens de contar à Kriss.
— Tens razão.
Ele não explicou se isso significava que iria contar-lhe ou se
simplesmente não escreveria, mas, naquele momento, eu não queria saber.
Não podia acreditar que tudo aquilo estava a acontecer por causa de
um livro idiota.
Soltei uma exclamação e abri os olhos. Um livro!
— Maxon, e se os rebeldes Nortistas andarem à procura dos diários?
Ele moveu-se um pouco, ainda não completamente atento.
— O que queres dizer?
— Naquele dia, quando vieram atrás de mim no jardim, vi-os quando
passaram por mim. Uma rapariga deixou cair uma sacola cheia de livros. O
tipo que estava com ela também tinha um monte deles. Estão a roubar
livros. E se andarem à procura de um livro específico?
O Maxon abriu os olhos e franziu a testa, pensativo.
— America... o que é que havia exatamente naquele diário?
— Muita coisa. Falava sobre como o Gregory roubou basicamente o
país, como impôs as castas ao povo. Era horrível, Maxon.
— Mas o Noticiário foi interrompido — insistiu ele. — Mesmo que
isso seja o que eles procuram, não têm forma de saber que era aquilo ou do
que trata. Acredita em mim, depois da tua apresentação, o meu pai vai
garantir que os diários ficam mais protegidos do que o habitual.
— Mas é isso — disse eu, tapando a cara para esconder um bocejo. —
Eu sei.
— Para — disse ele. — Não te preocupes com isso. Tanto quanto
sabemos, eles apenas gostam muito de ler.
Gemi perante a sua tentativa de humor.
— Eu pensava sinceramente que não poderia piorar ainda mais as
coisas.
— Chiu — disse ele, aproximando-se mais de mim. Os seus braços
fortes trouxeram-me de volta à terra. — Não te preocupes agora. Talvez
fosse melhor dormires.
— Mas eu não quero — sussurrei, embora me aconchegasse mais
contra ele.
O Maxon fechou novamente os olhos, ainda abraçado a mim.
— Eu também não. Mesmo num dia bom, dormir deixa-me nervoso.
Senti uma pontada no coração. Não conseguia imaginar o seu estado
constante de preocupação, principalmente se pensasse que quem o mantinha
nessa ansiedade era o seu próprio pai.
Ele largou a minha mão e procurou algo no bolso. Entreabri os olhos,
mas ele mantinha os dele fechados. Estávamos ambos quase a dormir. Ele
agarrou de novo na minha mão e começou a atar algo no meu pulso.
Reconheci a sensação da pulseira que ele me trouxera da Nova Ásia assim
que ela me tocou na pele.
— Tenho andado com ela no bolso. Sou um romântico miserável, não
achas? Ia guardá-la, mas quero que tenhas algo meu.
Ele colocara a pulseira por cima da do Aspen e senti o botão fazer
pressão contra a minha pele.
— Obrigada. Faz-me sentir feliz.
— Então, eu também fico feliz.
Não dissemos mais nada.
Capítulo 30
ESTAMOS A CHEGAR
Olá, cara leitora atrevida. Muito obrigada por ler o meu livro! Espero
que tenha ficado tão entusiasmada que deu por si a mandar tweets às 3h00
da manhã. Foi o que aconteceu comigo.
Para o Callaway, o marido mais adorável que uma mulher pode ter.
Obrigada pelo teu apoio e pelo orgulho que sentes por aquilo que faço.
Tornas tudo muito melhor. Amo-te.
Ao Guyden e à Zuzu, a mamã adora-vos aos montes! Sou louca pelas
histórias que escrevo, mas vocês serão sempre as melhores coisas que já fiz.
À minha mãe, ao meu pai e à Jody, obrigada por serem a família mais
estranha possível e por me amarem tal como sou.
A Mimi, Papa e Chris, obrigada pelo vosso carinho e apoio e por se
manterem tão entusiasmados o tempo todo.
Ao resto da minha família — são demasiados nomes para pensar
sequer em escrevê-los todos — obrigada! Sei que, onde quer que estejam,
estão sempre a gabar-se da vossa sobrinha/neta/prima que escreve livros e
significa muito para mim saber que me apoiam sempre.
À Elana, obrigada por praticamente tudo neste planeta. Isto não teria
acontecido sem ti *abraço desajeitado*.
À Erica, obrigada por me deixares telefonar-te um zilião de vezes, por
sentires tanto entusiasmo quanto eu por esta história e por seres
simplesmente fantástica, em geral.
À Kathleen, obrigada por arranjares maneira de as pessoas no Brasil,
na China, na Indonésia e onde quer que seja poderem também ler estes
livros! Ainda mal posso crer.
Ao grupo da HarperTeen, vocês são infinitamente maravilhosos e
adoro-vos.
A FTW *atira um presunto em celebração*.
À Northstar, obrigada por serem a casa da família Cass.
À Athena, à Rebeca e ao grupo de Christiansburg Panera, por me
fazerem um chocolate quente fantástico e por agirem de modo embaraçoso
atrás de mim, enquanto eu respondia a entrevistas pelo telefone. Obrigada!
À Jessica e à Monica basicamente porque uma promessa é uma
promessa e vocês fazem-me rir.
A si, por apoiar a America (e a mim) enquanto tudo isto se desenrola.
Além disso, vocês são demais.
A Deus, pela misericórdia que é escrever. Sem isso, estaria perdida.
Às sestas que é para onde vou agora. E aos bolos, só porque sim.