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Table of Contents

Kiera Cass
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Agradecimentos
Kiera Cass

A Elite
The Selection

Marcador
Capítulo 1

A atmosfera em Angeles estava calma e permaneci imóvel durante


algum tempo, ouvindo o som da respiração do Maxon. Estava a tornar-se
cada vez mais difícil apanhá-lo num momento verdadeiramente calmo e
feliz e aproveitei profundamente aqueles minutos, grata por ele parecer
estar no seu melhor quando estávamos a sós.
Desde que a Seleção ficara reduzida a apenas seis raparigas, ele
andava mais ansioso do que quando inicialmente chegara o grupo de trinta e
cinco. Acho que pensou que teria mais tempo para fazer as suas escolhas. E,
embora eu ficasse com um peso na consciência por admiti-lo, sei que era
por minha causa que ele se sentia assim.
O Príncipe Maxon, o herdeiro do trono de Illéa, gostava de mim.
Dissera-me na semana anterior que, se eu conseguisse simplesmente dizer
que sentia afeto por ele, tal como ele sentia por mim, sem nenhuma reserva,
toda esta competição estaria terminada. Por vezes, eu brincava com a ideia,
imaginando como seria pertencer apenas ao Maxon.
Mas o problema era que o Maxon não me pertencia de facto. Havia
mais cinco raparigas, raparigas com quem ele se encontrava e a quem
sussurrava coisas, e eu não sabia o que pensar disso. E havia ainda o facto
de que se aceitasse o Maxon, isso significaria aceitar uma coroa, um
pensamento que eu tinha tendência para ignorar, apenas porque não sabia ao
certo o que isso implicaria para mim...
E, claro, havia o Aspen.
Na verdade, ele já não era meu namorado. Terminara tudo comigo
antes mesmo de o meu nome ser sorteado para a Seleção. Mas quando
apareceu no palácio como um dos guardas, o meu coração foi inundado por
todos os sentimentos que eu tentara deixar para trás. O Aspen fora o meu
primeiro amor; quando olhava para ele... eu pertencia-lhe.
O Maxon não sabia que o Aspen estava no palácio, mas sabia que
havia alguém na minha província que eu procurava esquecer e estava,
gentilmente, a dar-me tempo para ultrapassar a situação, ao mesmo tempo
que tentava encontrar outra pessoa com quem pudesse ser feliz, caso eu
nunca conseguisse amá-lo.
Quando ele moveu a cabeça, inspirando por cima dos meus cabelos,
considerei a hipótese: como seria amar simplesmente o Maxon?
— Sabes quando foi a última vez que olhei realmente para as estrelas?
— perguntou.
Aninhei-me mais perto dele em cima do cobertor, tentando manter-me
quente na noite fria de Angeles.
— Não faço ideia.
— Um tutor pôs-me estudar astronomia há alguns anos. Se olharmos
com atenção, vemos que as estrelas têm cores diferentes.
— Espera. A última vez que olhaste para as estrelas foi para as
estudar? E que tal por diversão?
O Maxon riu-se.
— Diversão. Vou ter de marcar alguma entre as negociações do
orçamento e as reuniões do comité de infraestruturas. Ah, e a definição da
estratégia militar, na qual, aliás, sou péssimo.
— E em que mais és péssimo? — perguntei, fazendo deslizar a minha
mão pela sua camisa engomada. Encorajado pelo toque, o Maxon desenhou
pequenos círculos no meu ombro com a mão que colocara em volta das
minhas costas.
— Porque queres saber isso? — perguntou, fingindo irritação.
— Porque ainda sei muito pouco sobre ti. E tu pareces ser a perfeição
constante. É bom ter uma prova do contrário.
Ele soergueu-se apoiado num cotovelo e encarou-me.
— Tu sabes que não o sou.
— Mas és quase — retorqui. Tocávamo-nos ao de leve. Joelhos,
braços, dedos.
Ele abanou a cabeça com um ligeiro sorriso nos lábios.
— Pronto, está bem. Não sou capaz de planear guerras. Sou terrível
nisso. E acho que seria um péssimo cozinheiro. Nunca tentei, por isso...
— Nunca?
— Talvez já tenhas reparado na multidão de pessoas que trabalham
para te encher de bolos? Eles também me alimentam.
Soltei uma risadinha. Em casa, ajudava a preparar praticamente todas
as refeições.
— Mais... — pedi. — Em que mais és terrível?
Ele apertou-me nos braços e os seus olhos castanhos brilharam, cheios
de segredos.
— Descobri uma coisa recentemente...
— Conta.
— Descobri que sou um fracasso absoluto a ficar longe de ti. É um
problema muito grave.
Sorri:
— Já tentaste realmente?
O Maxon fingiu pensar no assunto.
— Bem, não. E não esperes que comece a fazê-lo.
Rimo-nos baixinho, abraçados um ao outro. Nestes momentos, era tão
fácil imaginar que isto poderia ser o resto da minha vida.
Ouvimos o som das folhas e da relva a serem pisadas, anunciando a
chegada de alguém. Embora o nosso encontro fosse completamente
aceitável, fiquei um pouco embaraçada e sentei-me rapidamente. O Maxon
fez o mesmo assim que um guarda surgiu por trás da sebe, aproximando-se.
— Vossa Majestade... — disse ele, inclinando-se numa vénia. — Peço
perdão por interromper, mas não é prudente permanecer no exterior durante
tanto tempo a esta hora da noite. Os rebeldes podem...
— Compreendo — respondeu o Maxon, suspirando. — Vamos já para
dentro.
O guarda deixou-nos e o Maxon virou-se para mim.
— Outra falha minha: estou a perder a paciência com os rebeldes.
Estou cansado de lidar com eles.
Levantou-se e estendeu-me a mão. Peguei nela, vendo uma frustração
pesarosa nos seus olhos. Tínhamos sido atacados duas vezes pelos rebeldes
desde o início da Seleção, uma vez pelos simplesmente desordeiros
Nortistas e outra pelos mortíferos Sulistas, e, mesmo com a minha curta
experiência, conseguia compreender o seu cansaço.
O Maxon agarrou no cobertor e sacudiu-o, obviamente nada contente
com o facto de a nossa noite ter sido interrompida.
— Ei! — disse eu, fazendo-o olhar para mim. — Eu diverti-me.
Ele assentiu com a cabeça.
— A sério — disse, aproximando-me dele. Ele pegou no cobertor com
uma mão e pôs o braço livre em volta da minha cintura. — Temos de fazer
isto novamente. Podes dizer-me quais as cores de cada estrela, porque eu
realmente não consigo ver a diferença.
O Maxon ofereceu-me um sorriso triste.
— Às vezes, gostava que as coisas fossem mais fáceis, normais. Virei-
me para poder abraçá-lo e ele largou o cobertor para retribuir o gesto.
— Detesto ter de vos dizer isto, Vossa Majestade, mas mesmo sem os
guardas estais bastante longe de ser normal.
O seu rosto descontraiu-se um pouco, mas permaneceu sério.
— Gostarias mais de mim se o fosse.
— Sei que tens dificuldade em acreditar, mas eu gosto realmente de ti
tal como és. Só preciso de mais...
— Tempo. Eu sei. E estou preparado para to dar. Só gostava de ter a
certeza de que vais mesmo querer estar comigo quando esse tempo chegar
ao fim.
Desviei o olhar. Não era algo que eu pudesse prometer. Comparava
constantemente o Maxon e o Aspen no meu coração, mas nenhum deles
sobressaía. A não ser, talvez, quando estava sozinha com um deles. Porque,
naquele momento, sentia-me tentada a prometer ao Maxon que ficaria ao
seu lado no final.
Mas não podia.
— Maxon — sussurrei, vendo como ele ficava desanimado com a
minha falta de resposta. — Não posso dizer-te isso. Mas o que posso dizer-
te é que quero estar aqui. Quero saber se existe uma hipótese para... para...
— gaguejei, sem saber bem como me expressar.
— Nós? — alvitrou o Maxon.
Sorri, feliz por ele me compreender tão facilmente.
— Sim. Quero saber se existe uma hipótese de podermos ser um
«nós».
Ele afastou uma madeixa dos meus cabelos para trás das minhas
costas.
— Acho que as hipóteses são bastante elevadas — afirmou, realista.
— Também acho. Só que... tempo, está bem?
O Maxon fez que sim com a cabeça, parecendo mais satisfeito. Era
assim que eu queria terminar a nossa noite, com esperança. Bem, e talvez
com mais uma outra coisa. Mordi o lábio e inclinei-me para ele, pedindo
com os olhos.
Sem qualquer hesitação, ele inclinou-se para me beijar. Foi cálido e
terno e deixou-me com a sensação de ser adorada e, de certo modo,
desejando mais. Seria capaz de ficar ali durante horas, só para ver se
conseguia absorver completamente aquela sensação, mas o Maxon recuou,
demasiado cedo.
— Vamos — disse ele em tom de brincadeira, puxando-me para o
palácio. — É melhor entrarmos antes que os guardas venham à nossa
procura, a cavalo e de lança em punho.
Assim que o Maxon me deixou nas escadas, o cansaço tomou conta de
mim. Arrastei-me praticamente até ao segundo andar e virei a esquina a
caminho do meu quarto quando, de repente, voltei a ficar completamente
desperta.
— Oh! — disse o Aspen, também surpreendido por me ver. — Acho
que devo ser o pior guarda do mundo por ter pensado que estavas no teu
quarto este tempo todo.
Soltei um risinho. Na Elite éramos obrigadas a dormir com pelo
menos uma das nossas aias de plantão durante a noite. Eu não gostava
muito da ideia; por isso, o Maxon insistia em manter um guarda à minha
porta, para o caso de haver uma emergência. O problema era que, na
maioria das vezes, esse guarda era o Aspen. Eu sentia uma estranha mistura
de excitação e terror por saber que ele estava mesmo ali, junto à minha
porta, quase todas as noites.
A ligeireza do momento desvaneceu-se rapidamente, assim que o
Aspen percebeu o significado de eu não estar sã e salva na minha cama. Ele
pigarreou, tenso.
— Divertiste-te?
— Aspen... — sussurrei, olhando em volta para ter a certeza de que
não havia ninguém por perto. — Não fiques aborrecido. Faço parte da
Seleção e é assim que as coisas são.
— Como é que posso ter alguma hipótese, Mer? Como é que posso
competir, se apenas falas com um de nós?
Ele tinha razão, mas o que podia eu fazer?
— Por favor, não fiques zangado comigo, Aspen. Estou a tentar
resolver tudo isto.
— Não, Mer — disse ele, a ternura regressando à sua voz. — Não
estou zangado contigo. Tenho saudades tuas.
Ele não ousou pronunciar as palavras, mas formou-as com os lábios:
Amo-te.
Derreti-me.
— Eu sei — respondi, pousando-lhe uma mão no peito e esquecendo
por um instante tudo o que estávamos a arriscar. — Só que isso não muda o
lugar onde estamos nem o facto de eu pertencer agora à Elite. Preciso de
tempo, Aspen.
Ele segurou a minha mão nas suas e assentiu com a cabeça.
— Posso dar-to. Mas... tenta encontrar também algum tempo para
mim.
Eu não queria entrar em explicações sobre o quão difícil isso seria;
por isso, limitei-me a sorrir-lhe ligeiramente antes de retirar suavemente a
mão.
— Tenho de ir.
Ele ficou a olhar para mim enquanto eu me dirigia para o meu quarto
e fechava a porta.
Tempo. Ultimamente, andava a pedi-lo bastante. Tinha esperança de
que, se me dessem tempo, tudo iria resolver-se de alguma forma.
Capítulo 2

— Não, não — respondeu a Rainha Amberly, rindo. — Só tive três


madrinhas, apesar de a mãe do Clarkson ter sugerido que tivesse mais. Quis
apenas as minhas irmãs e a minha melhor amiga, a qual, por acaso, conheci
durante a Seleção.
Olhei para a Marlee e fiquei feliz por ver que ela também estava a
olhar para mim. Antes de chegar ao palácio, pensava que, por esta
competição ter um prémio tão grande, não haveria qualquer hipótese de as
outras raparigas poderem ser simpáticas. A Marlee acolhera-me de braços
abertos assim que nos conhecemos e, desde então, apoiávamo-nos
mutuamente. E exceto praticamente uma única vez, nunca tivéramos uma
discussão.
Algumas semanas antes, a Marlee comentara que achava que não
queria ficar com o Maxon. Quando a pressionei para que se explicasse
melhor, fechou-se totalmente. Não estava zangada comigo, eu sabia disso,
mas aqueles dias de silêncio antes de termos ultrapassado o assunto tinham
sido bastante solitários.
— Eu quero sete madrinhas — disse a Kriss. — Quero dizer, se o
Maxon me escolher e puder ter um grande casamento.
— Pois eu não quero madrinhas — disse a Celeste, para contrariar a
Kriss. — Só servem para desviar as atenções. E já que vai ser tudo
transmitido pela televisão, quero todos os olhares pregados em mim.
Fiquei furiosa. Eram raras as vezes em que podíamos conversar com a
Rainha Amberly e ali estava a Celeste a portar-se como uma menina
mimada e a estragar o momento.
— Gostaria de introduzir no casamento algumas tradições da minha
cultura — acrescentou calmamente a Elise. — Na Nova Ásia, as jovens
usam bastante vermelho na cerimónia e o noivo tem de levar presentes para
os amigos da noiva, como agradecimento por a deixarem casar com ele.
— Lembra-me de ir ao teu casamento. Adoro presentes! —
intrometeu-se a Kriss.
— Eu também! — exclamou a Marlee.
— Lady America tem estado bastante calada — disse a Rainha
Amberly. — O que quer no seu casamento?
Eu não estava nada preparada para responder e corei.
Só tinha imaginado um único casamento na minha vida, o qual
aconteceria no Gabinete de Serviços da Província de Carolina depois de
uma enorme quantidade de burocracia.
— A única coisa em que pensei foi no meu pai a entregar-me ao
noivo. Sabem, a parte em que ele nos pega na mão e a coloca na mão do
nosso futuro marido? Essa é a única parte que sempre quis. — Por mais
embaraçoso que isto pudesse parecer, esta era a verdade.
— Mas toda a gente o faz — queixou-se a Celeste. — Nem sequer é
original.
Deveria ter ficado irritada por ela me provocar, mas limitei-me a
encolher os ombros.
— Quero ter a certeza de que o meu pai aprova totalmente a minha
escolha no dia em que realmente importa.
— Isso é bonito — comentou a Natalie, enquanto bebia o seu chá e
olhava pela janela.
A Rainha Amberly soltou uma breve gargalhada.
— Espero que ele aprove. Independentemente de quem seja. — Ela
acrescentou as últimas palavras rapidamente, ao perceber que quase
sugerira implicitamente que o Maxon seria o escolhido.
Perguntei-me se ela acharia isso, se o Maxon lhe teria falado sobre
nós.
Pouco depois, o assunto do casamento morria e a rainha deixou-nos
para ir trabalhar no seu quarto. A Celeste colocou-se diante do enorme
televisor embutido na parede e as outras começaram um jogo de cartas.
— Foi divertido — disse a Marlee, enquanto nos sentávamos juntas a
uma mesa. — Acho que nunca tinha visto a rainha falar tanto.
— Acho que ela está a ficar entusiasmada. — Eu não tinha comentado
com ninguém o que a irmã da Rainha Amberly me contara sobre as suas
tentativas infrutíferas de ter mais um filho. A Adele previra que a irmã se
aproximaria mais de nós assim que o grupo diminuísse e acertara.
— Agora, vais dizer-me uma coisa. Não tens mesmo mais nenhuns
planos para o teu casamento, ou não quiseste partilhá-los?
— Não tenho mesmo — garanti. — Tenho dificuldade em imaginar
um grande casamento, sabes? Sou uma Cinco.
A Marlee abanou a cabeça.
— Eras uma Cinco. Agora, és uma Três.
— Certo — respondi, lembrando-me do meu novo «rótulo».
Eu nascera numa família de Cincos — artistas e músicos que
ganhavam geralmente pouco — e, embora odiasse o sistema de castas em
geral, gostava do que fazia para ganhar a vida. Era estranho pensar em mim
como uma Três, pensar em desenvolver uma carreira como professora ou
escritora.
— Para de te enervares — disse a Marlee, lendo-me os pensamentos.
— Ainda não precisas de te preocupar com isso.
Eu ia protestar quando fui interrompida por um grito da Celeste.
— Vá lá! — berrou ela, batendo com o comando à distância no sofá
antes de o apontar novamente para o televisor. — Argh!
— É impressão minha, ou ela está a ficar pior? — sussurrei à Marlee.
Ficámos a olhar para a Celeste a bater repetidamente no comando do
televisor, até que desistiu e se levantou para mudar manualmente de canal.
Pensei que, se tivesse nascido uma Dois, aquilo talvez fosse algo por que
valeria a pena irritar-me.
— Acho que é o stress — comentou a Marlee. — Já reparaste que a
Natalie está a ficar, sei lá... mais distante?
Assenti com a cabeça e ambas olhámos para o trio que jogava às
cartas. A Kriss sorria enquanto embaralhava as cartas, mas a Natalie
examinava as pontas do cabelo, arrancando de vez em quando um fio que
lhe desagradava. A sua expressão era distraída.
— Acho que estamos todas a começar a senti-lo — confessei. — É
mais difícil relaxar e desfrutar do palácio agora que o grupo é tão pequeno.
A Celeste soltou um resmungo, chamando a nossa atenção, mas
desviámos imediatamente os olhos quando ela nos apanhou a olhar.
— Dá-me licença por um instante — disse a Marlee, mexendo-se na
cadeira. — Acho que vou à casa de banho.
— Estava a pensar no mesmo. Vamos juntas? — sugeri.
Ela abanou a cabeça, sorrindo.
— Podes ir tu. Primeiro, vou acabar o meu chá.
— Está bem. Já volto.
Saí do Salão das Mulheres e avancei devagar ao longo do magnífico
corredor. Duvidava de que alguma vez deixasse de me deslumbrar com a
espetacularidade do palácio. Estava tão distraída que esbarrei contra um
guarda ao virar uma esquina.
— Oh! — exclamei.
— Perdão, menina. Espero não a ter assustado. — Ele agarrou-me
pelos cotovelos, ajudando-me a recuperar o equilíbrio.
— Não — respondi, soltando uma risadinha. — Está tudo bem. Eu
deveria ver por onde vou. Obrigada por me segurar, Soldado...
— Woodwork — respondeu ele, fazendo uma ligeira vénia.
— Eu sou a America.
— Eu sei.
Sorri e revirei os olhos. É claro que ele sabia.
— Bem, espero que o nosso próximo encontro seja mais suave —
brinquei.
Ele riu-se:
— Concordo. Tenha um bom dia, menina.
— Obrigada, igualmente.
Quando voltei, contei à Marlee o meu embaraçoso encontro com o
Soldado Woodwork e aconselhei-a a ter cuidado. Ela soltou uma gargalhada
e abanou a cabeça.
Passámos o resto da tarde sentadas perto das janelas, a conversar
sobre as nossas casas e sobre as outras raparigas, enquanto apanhávamos
sol.
Naquele momento, era triste pensar no futuro. A Seleção acabaria por
chegar ao fim e, embora soubesse que eu e a Marlee continuaríamos
próximas, iria sentir a falta de conversar com ela todos os dias. Ela fora a
primeira amiga verdadeira que alguma vez tivera na vida e gostaria de
poder mantê-la sempre ao meu lado.
Enquanto tentava permanecer no presente, a Marlee olhava pela janela
com um ar sonhador. Interroguei-me sobre o que estaria a pensar, mas
estava tudo tão calmo que não lhe perguntei.
Capítulo 3

As amplas portas da minha varanda estavam abertas, bem como a


porta que dava para o corredor, e o meu quarto enchia-se com o ar doce e
cálido que vinha dos jardins. Considerando que tinha muito trabalho para
fazer, eu esperara que a brisa suave fosse um consolo, mas, pelo contrário,
era uma distração, fazendo-me ansiar por estar em qualquer outro lugar
menos sentada à secretária.
Suspirei e reclinei-me na cadeira, deixando cair a cabeça para trás.
— Anne — chamei.
— Sim, menina? — respondeu a minha aia principal do canto onde
costurava. Sem sequer olhar, sabia que a Mary e a Lucy, as minhas duas
outras aias, tinham-se endireitado à espera de saber se eu também precisava
delas.
— Ordeno-lhe que descubra o significado deste relatório — disse eu,
apontando preguiçosamente para o relatório sobre estatísticas militares, que
estava sobre a minha mesa. Era uma matéria sobre a qual todas as jovens da
Elite iriam ser questionadas, mas eu não conseguia concentrar-me.
As minhas três aias riram-se, provavelmente tanto pelo ridículo da
minha ordem como pelo facto de eu ter dado uma. A liderança não era
realmente um dos meus pontos fortes.
— Sinto muito, menina, mas penso que isso ultrapassa os meus
limites — respondeu a Anne. Apesar do meu pedido ter sido a brincar,
assim como a sua resposta, notei um tom de desculpa sincero na sua voz por
não poder ajudar-me.
— Está bem — resmunguei, endireitando-me. — Terei de o fazer
sozinha. Vocês são um bando de inúteis. Amanhã, vou pedir aias novas. E
desta vez é a sério.
Elas riram-se de novo e eu voltei a concentrar-me nos números.
Começava a achar que aquele relatório era falso, mas não tinha a certeza.
Reli os parágrafos e as tabelas, enquanto franzia a testa e mordia a ponta da
caneta, tentando concentrar-me.
Ouvi a Lucy rir-se baixinho e levantei os olhos para ver o que a
divertia tanto. Segui o seu olhar até a porta e ali estava o Maxon, encostado
à ombreira.
— Denunciou-me! — queixou-se ele à Lucy, que continuava a rir-se
baixinho.
Empurrei imediatamente a cadeira e corri para os braços dele.
— Leste os meus pensamentos!
— Li?
— Por favor, diz-me que podemos ir lá para fora. Só um bocadinho?
Ele sorriu.
— Tenho vinte minutos antes de ter de voltar.
Arrastei-o pelo corredor, ouvindo a conversa entusiasmada das minhas
aias esmorecer atrás de nós.
Não havia como negar que os jardins se tinham tornado o nosso lugar
especial. Íamos para lá praticamente todas as vezes em que conseguíamos
estar a sós. Era tão diferente do modo como costumava passar o tempo com
o Aspen; enfiados na minúscula casa da árvore no meu quintal, o único
lugar onde podíamos estar juntos em segurança.
De repente, perguntei-me se o Aspen estaria por perto, algures, sem se
distinguir no meio dos inúmeros guardas do palácio, a observar enquanto o
Maxon me dava a mão.
— O que é isto? — perguntou o Maxon, acariciando as pontas dos
meus dedos enquanto caminhávamos.
— Calos. São de pressionar as cordas do violino quatro horas por dia.
— Nunca tinha reparado.
— Incomodam-te? — Das seis jovens que restavam, eu era a que
pertencia à casta mais baixa e duvidava que qualquer uma delas tivesse as
mãos como as minhas.
O Maxon parou e levou a minha mão aos lábios, beijando as pontas
pequenas e ásperas dos meus dedos.
— Pelo contrário. Acho-os lindos.
Senti-me corar.
— Já vi o mundo, admito que quase sempre por trás de um vidro à
prova de bala ou do alto da torre de algum castelo antigo, mas já o vi. E
tenho à minha disposição respostas para milhares de perguntas. Mas esta
mãozinha aqui? — Ele mergulhou profundamente os olhos nos meus. —
Esta mão produz sons que não se comparam a nada que já tenha ouvido. Às
vezes, penso que sonhei que te ouvi a tocar violino. Foi tão belo. Estes calos
são a prova de que foi real.
Às vezes, o modo como ele falava comigo era avassalador, demasiado
romântico para acreditar. Mas apesar de eu guardar as suas palavras no meu
coração, nunca tinha a certeza de poder confiar plenamente nelas. Como
poderia saber se ele não andava a dizer as mesmas coisas doces às outras?
Tinha de mudar de assunto.
— Tens realmente respostas para milhares de perguntas?
— Sim. Pergunta-me qualquer coisa e, se eu não souber a resposta, sei
onde podemos encontrá-la.
— Qualquer coisa?
— Qualquer coisa.
Era difícil pensar numa pergunta, assim de repente, ainda mais uma
que o deixasse estupefacto, como eu pretendia. Pensei por instantes naquilo
que me suscitara mais curiosidade na infância: como é que os aviões
voavam, como costumavam ser os Estados Unidos, como funcionavam os
minúsculos aparelhos de som que as pessoas das castas superiores tinham.
E então, lembrei-me.
— O que é o Halloween? — perguntei.
— O Halloween?
Obviamente, ele nunca ouvira falar nisso. Não me surpreendeu. Eu
apenas vira a palavra uma vez, num velho livro de História dos meus pais.
Algumas partes desse livro estavam completamente estragadas, com
páginas arrancadas ou em grande parte destruídas. Ainda assim, sempre me
sentira fascinada por aquele feriado sobre o qual nada sabíamos.
— Então, já não está tão seguro de si, Vossa Esperteza Real? —
provoquei-o.
Ele fez-me uma careta, fingindo sentir-se aborrecido. Olhou para o
relógio e respirou fundo.
— Vem comigo. Temos de nos despachar — disse, pegando-me na
mão e desatando a correr.
Tropecei um pouco devido aos meus pequenos saltos, mas consegui
acompanhá-lo, enquanto ele me conduzia de volta ao palácio com um
sorriso de orelha a orelha. Eu adorava quando o Maxon deixava
transparecer o seu lado mais descontraído; ele era muito sério com
demasiada frequência.
— Cavalheiros... — disse ele, ao passarmos a correr pelos guardas
junto à porta.
Consegui chegar até meio do corredor antes de os meus sapatos me
vencerem.
— Maxon, para! — Arfei. — Não aguento mais!
— Anda, vamos! Vais adorar isto — replicou ele, puxando-me pelo
braço à medida que eu ficava para trás. Ele acabou por diminuir um pouco o
passo para me acompanhar, mas era óbvio que estava ansioso por andar
mais depressa.
Seguimos em direção ao corredor norte, perto da zona onde se filmava
o Noticiário Oficial, mas enfiámo-nos por uma escadaria antes de lá
chegarmos. Subimos bastante e eu mal podia conter a minha curiosidade.
— Aonde vamos exatamente?
Ele virou-se e encarou-me, ficando sério de repente.
— Tens de prometer nunca falar deste quartinho a ninguém. Apenas
alguns membros da família e um punhado de guardas sabem da sua
existência.
Eu estava absolutamente intrigada:
— Prometo.
Chegámos ao topo das escadas e o Maxon segurou a porta para eu
passar. Agarrou-me na mão novamente e conduziu-me pelo corredor até
pararmos diante de uma parede quase totalmente coberta por um quadro
magnífico. O Maxon olhou para trás, para se certificar de que estávamos
sozinhos, e depois colocou a mão por trás da moldura na zona mais distante.
Ouvi um ligeiro clique e o quadro deslizou na nossa direção.
Soltei uma exclamação. O Maxon sorria.
Por trás do quadro havia uma porta que não chegava ao chão e que
tinha um pequeno teclado embutido, como o de um telefone. O Maxon
digitou alguns números e ouvi um leve bip. Ele girou a maçaneta e olhou
para mim.
— Deixa-me ajudar-te. O degrau é bastante alto. — Deu-me a mão e
fez um gesto para que eu entrasse primeiro.
Fiquei chocada.
A sala sem janelas estava repleta de prateleiras cheias do que
pareciam ser livros antigos. Duas delas continham livros com curiosas
riscas vermelhas na lombada e vi um atlas gigantesco, encostado a uma das
paredes, aberto numa página com o desenho de um país que não consegui
identificar. No meio da sala, em cima de uma mesa, encontrava-se uma
meia dúzia de livros que pareciam ter sido manuseados recentemente e
deixados ali para facilitar uma consulta rápida. Por fim, embutido numa
parede, havia um ecrã grande que parecia pertencer a um televisor.
— O que significam as riscas vermelhas? — perguntei, maravilhada.
— São os livros proibidos. Tanto quanto sabemos, são os únicos
exemplares ainda existentes em Illéa.
Virei-me para ele, perguntando com os olhos o que não tinha coragem
de dizer em voz alta.
— Sim, podes lê-los — disse ele num tom de voz que sugeria
desconforto, mas ao mesmo tempo com uma expressão que indicava estar
desejoso de que eu o pedisse.
Agarrei com cuidado num dos livros, receosa de poder destruir sem
querer aquele tesouro único. Folheei as páginas, mas acabei por o largar
quase imediatamente. Estava demasiado assombrada.
Virei-me e deparei com o Maxon a digitar numa espécie de máquina
de escrever plana ligada ao ecrã de TV.
— O que é isso? — perguntei.
— Um computador. Nunca viste um?
Abanei a cabeça e ele não pareceu surpreendido.
— Atualmente são poucas as pessoas que ainda os têm. Este serve
exclusivamente para a informação contida nesta sala. Se existir alguma
coisa sobre o Halloween, ele vai dizer-nos onde está.
Eu não percebia muito bem o que ele estava a dizer, mas não lhe pedi
que explicasse melhor. Em poucos segundos, a sua pesquisa produziu uma
lista com três tópicos no ecrã.
— Ah, excelente! — exclamou ele. — Espera aqui.
Permaneci junto da mesa enquanto o Maxon procurava os três livros
que iriam revelar o que era o Halloween. Esperava que não fosse uma coisa
idiota e que eu não lhe tivesse dado este trabalho todo para nada.
O primeiro livro definia o Halloween como um festival celta que
assinalava o fim do verão. Não querendo atrasar-nos, não me preocupei em
dizer que não fazia ideia do que era um celta. O livro dizia que eles
acreditavam que os espíritos entravam e saíam do mundo no Halloween e
que as pessoas usavam máscaras para afastar os espíritos maus. Mais tarde,
transformou-se num feriado laico, orientado principalmente para as
crianças. Estas mascaravam-se e andavam pela cidade a cantar canções,
sendo recompensadas com guloseimas, o que deu origem à frase «gostosura
ou travessura», já que elas pregavam partidas para ganharem um doce.
O segundo livro definia-o de modo semelhante, só que mencionava
abóboras e cristianismo.
— Este vai ser o mais interessante — afirmou o Maxon, folheando um
livro manuscrito muito mais fino do que os outros.
— Porquê? — perguntei, aproximando-me para ver melhor.
— Isto, Lady America, é um dos volumes dos diários pessoais de
Gregory Illéa.
— O quê? — exclamei. — Posso tocar-lhe?
— Deixa-me primeiro encontrar a página que procuramos. Olha, até
tem uma fotografia!
E ali, tal como uma aparição, uma imagem de um passado des‐
conhecido mostrava Gregory Illéa, de fato engomado e postura imponente,
com uma expressão tensa no rosto. Era bizarro o quanto eu conseguia ver
do rei e do Maxon no modo como se apresentava. Ao seu lado, uma mulher
sorria sem grande vontade para a câmara. Havia algo no seu rosto que
sugeria ter sido em tempos muito bonita, mas o brilho desaparecera dos
seus olhos. Parecia cansada.
A rodear o casal, havia três pessoas. A primeira era uma adolescente,
linda e vibrante, com um sorriso aberto, uma coroa e um vestido de folhos.
Que engraçado! Estava vestida como uma princesa. Os outros dois eram
rapazes, um deles um pouco mais alto do que o outro e ambos mascarados
de personagens que não reconheci. Pareciam estar prestes a fazer alguma
travessura. Por baixo da imagem, havia um registo, por incrível que pareça,
escrito pelo próprio punho de Gregory Illéa.

As crianças comemoraram o Halloween deste ano com uma


festa. Acho que é uma forma de esquecerem o que se passa à
sua volta, mas parece-me uma frivolidade, Somos uma das
poucas famílias que ainda têm dinheiro para festejar, mas
esta brincadeira infantil parece-me um desperdício.

— Achas que é por isso que já não o celebramos? Por ser um


desperdício? — perguntei.
— Talvez. Se a data estiver correta, isto aconteceu logo depois de o
Estado Americano da China começar a retaliar, um pouco antes da Quarta
Guerra Mundial. Nessa altura, a maioria das pessoas não tinha nada.
Imagina uma nação inteira de Setes com uma mão-cheia de Dois.
— Uau.
Tentei imaginar o panorama do nosso país assim, despedaçado pela
guerra e depois a lutar para se recompor. Era incrível.
— Quantos diários destes é que existem? — perguntei.
O Maxon apontou para uma prateleira com uma fila de diários
parecidos com o que tínhamos na mão.
— Mais ou menos uma dúzia.
Eu mal conseguia acreditar! Tanta História numa única sala.
— Obrigada — disse eu. — Isto é algo que nunca imaginei sequer ver.
Não posso acreditar que tudo isto existe.
Ele estava radiante.
— Gostarias de ler o resto? — perguntou, apontando para o diário.
— Sim, claro! — Quase gritei, mas depois lembrei-me das minhas
responsabilidades. — Mas não posso ficar aqui; tenho de acabar de estudar
aquele relatório horrível. E tu precisas de voltar ao trabalho.
— É verdade. Mas podes levar o livro e ficar com ele durante uns
dias.
— Tenho autorização para fazer isso? — perguntei, maravilhada.
— Não. — Ele sorriu.
Hesitei, com medo do que tinha nas mãos. E se o perdesse? E se o
estragasse? De certeza que ele estava a pensar o mesmo, mas eu nunca mais
teria uma oportunidade como esta. Conseguiria ser suficientemente
cuidadosa com uma dádiva tão valiosa como aquela.
— Está bem. Mas apenas por uma noite ou duas e depois devolvo-o
logo.
— Esconde-o bem.
Foi o que fiz. Aquilo era mais que um livro; era a confiança do
Maxon. Enfiei-o dentro da banqueta do piano, debaixo de uma pilha de
partituras, um sítio que as minhas aias nunca limpavam. As únicas mãos
que lhe tocariam seriam as minhas.
Capítulo 4

— Sou um caso perdido! — lamentou-se a Marlee.


— Não, não és. Estás a ir muito bem — menti.
Há mais de uma semana que dava quase diariamente aulas de piano à
Marlee e parecia mesmo que ela cada vez tocava pior. Céus, ainda
estávamos a praticar escalas. Ela tocou outra nota em falso e não consegui
evitar um arrepio.
— Ah, olha para a tua cara! — exclamou ela. — Sou péssima. Mais
valia estar a tocar com os cotovelos.
— Talvez devêssemos tentar. Quem sabe se os teus cotovelos são mais
hábeis?
Ela suspirou.
— Desisto. Desculpa, America. Tens sido muito paciente, mas odeio
ouvir-me a tocar. Parece que o piano está doente.
— Parece mais que está a morrer.
A Marlee desatou às gargalhadas e eu juntei-me a ela. Mal sabia eu,
quando ela me pedira aulas de piano, que os meus ouvidos iriam sofrer uma
tortura tão dolorosa, ainda que hilariante.
— Talvez fosses melhor no violino. Os violinos produzem música
lindíssima — sugeri.
— Acho que não. Com a sorte que eu tenho, acabaria por destruí-lo.
— A Marlee levantou-se e aproximou-se da minha mesinha, onde os papéis
que deveríamos estar a ler tinham sido empurrados para um lado para dar
lugar ao chá e biscoitos que as minhas aias haviam deixado para nós.
— Não há problema. Este pertence ao palácio. Se quiseres, até podes
atirá-lo à cabeça da Celeste.
— Não me tentes — disse ela, enquanto servia o chá para ambas. —
Vou sentir tanto a tua falta, America. Não sei o que vou fazer quando não
pudermos ver-nos todos os dias.
— Como o Maxon é muito indeciso, ainda não precisas de te
preocupar com isso.
— Não sei — disse ela, ficando séria. — Ele não mo disse direta‐
mente, mas sei que só estou aqui porque o público gosta de mim. Com a
maioria das raparigas já excluídas, não vai tardar muito a que as pessoas
mudem de opinião e encontrem uma nova favorita e, nessa altura, ele
dispensar-me-á.
Escolhi as palavras com cuidado, esperando que ela me explicasse a
razão pela qual colocara uma distância entre eles, mas não querendo que se
fechasse de novo em copas.
— E sentes-te conformada com isso? Não ficares com o Maxon, quero
dizer?
Ela encolheu ligeiramente os ombros.
— Ele não é a pessoa certa. Não me importo de sair da competição,
mas ao mesmo tempo não quero partir — explicou ela. — Além disso, não
gostaria de ficar com um homem que está apaixonado por outra.
Endireitei-me instantaneamente:
— Por quem é que ele...
A Marlee encarou-me com um olhar triunfante e o seu sorriso por trás
da chávena dizia: «Apanhei-te!»
E apanhara-me mesmo.
Num segundo, apercebi-me de que a ideia de o Maxon estar
apaixonado por outra me deixava com tantos ciúmes que era insuportável. E
no instante seguinte, quando compreendi que ela estava a falar de mim,
senti-me infinitamente tranquilizada.
Eu erguera muros sucessivos, troçando do Maxon e engrandecendo os
méritos das outras, mas, com uma única frase, ela passara por cima de tudo
isso.
— Porque é que ainda não acabaste com isto, America? — perguntou
ela com carinho. — Tu sabes que ele te ama.
— Ele nunca o disse — afirmei. E era verdade.
— Claro que não — replicou ela, como se fosse óbvio. — Ele está a
esforçar-se muito para te conquistar, mas sempre que se aproxima, tu afasta-
lo. Porquê?
Será que podia contar-lhe? Poderia confessar que, apesar de os meus
sentimentos pelo Maxon serem profundos, aparentemente mais do que eu
imaginava, havia outra pessoa que eu não conseguia esquecer?
— É que... Não tenho a certeza, acho... — Eu confiava na Marlee.
Mesmo. Mas era melhor para ambas que ela não soubesse.
Ela assentiu com a cabeça. Parecia perceber que havia algo mais além
daquilo, mas não me pressionou. Era quase reconfortante, esta aceitação
mútua dos nossos segredos.
— Descobre uma forma de teres a certeza. Em breve. O Maxon pode
não ser a pessoa certa para mim, mas isso não significa que não seja um
rapaz espetacular. E eu detestaria que o perdesses por medo.
Mais uma vez, ela estava certa. Eu tinha medo. Medo de que os
sentimentos do Maxon não fossem tão genuínos como pareciam, medo do
que implicaria ser uma princesa, medo de perder o Aspen.
— Falando de coisas mais ligeiras... — disse ela, pousando a chávena
de chá. — Toda aquela conversa sobre casamentos ontem fez-me pensar
numa coisa.
— Sim?
— Gostarias de ser minha dama de honor? Se eu casar algum dia...
— Oh, Marlee, claro que sim! E tu serias minha? — Estendi as mãos
para pegar nas dela, que as apertou com alegria.
— Mas tu tens irmãs. Elas não vão importar-se?
— Elas vão entender. Por favor?
— Claro! Não perderia o teu casamento por nada deste mundo. — O
seu tom de voz sugeria que o meu casamento seria o evento do século.
— Promete-me que, mesmo que eu case com um zé-ninguém da casta
Oito num beco qualquer, tu estarás lá.
A Marlee lançou-me um olhar incrédulo, certa de que tal coisa jamais
aconteceria.
— Prometo, mesmo se isso acontecer.
Ela não me pediu um juramento semelhante, o que me fez pensar, tal
como já pensara antes, se não existiria algum Quatro na sua cidade que ela
desejasse. Mas não iria pressioná-la quanto a esse assunto. Era óbvio que
ambas tínhamos segredos, mas a Marlee era a minha melhor amiga e eu
faria qualquer coisa por ela.
***
Nessa noite, esperava poder passar algum tempo com o Maxon. A
Marlee fizera-me questionar muitas das minhas ações. E pensamentos. E
sentimentos.
Depois do jantar, quando nos levantámos todas para sair da sala, olhei
para o Maxon e mexi na orelha. Era o nosso sinal secreto para pedirmos um
encontro e raramente deixávamos passar uma oportunidade. Mas nessa
noite, a expressão do Maxon era de desapontamento quando moveu os
lábios para formar a palavra «trabalho». Fiz um beicinho a brincar e acenei-
lhe discretamente antes de sair.
Talvez fosse melhor assim. Precisava mesmo de pensar em algumas
coisas sobre o Maxon.
Quando virei a esquina do corredor, a caminho do meu quarto, lá
estava o Aspen novamente, de guarda. Ele olhou-me de alto a baixo,
analisando o meu vestido verde justo que fazia maravilhas pelas minhas
poucas curvas. Passei por ele sem dizer uma palavra. Antes de eu poder
girar a maçaneta, ele roçou suavemente a pele do meu braço.
Foi lento, mas breve, e naqueles poucos segundos senti aquela
necessidade, a sensação de desejo que o Aspen costumava despertar em
mim. Bastou olhar para os seus olhos cor de esmeralda, famintos e
profundos, para sentir os meus joelhos começarem a tremer.
Entrei no meu quarto o mais rapidamente possível, angustiada pela
nossa ligação. Felizmente, mal tive tempo para pensar no modo como o
Aspen me fazia sentir, porque assim que fechei a porta as minhas aias
atarefaram-se à minha volta, preparando-me para dormir. Enquanto as três
conversavam e me penteavam o cabelo, tentei esquecer-me de tudo por
instantes.
Era impossível. Eu tinha de escolher. O Aspen ou o Maxon?
Mas como é que eu iria decidir entre duas boas opções? Como poderia
fazer uma escolha que iria deixar parte de mim destroçada, fosse qual fosse
a decisão? Consolei-me com o pensamento de que ainda tinha tempo. Ainda
havia tempo.
Capítulo 5

— Então, Lady Celeste, está a dizer que a quantidade não é suficiente


e que o número de homens selecionados no próximo recrutamento deveria
ser aumentado? — perguntou o Gavril Fadaye, o moderador do debate no
Noticiário Oficial de Illéa e a única pessoa autorizada a entrevistar a família
real.
Os nossos debates no programa eram um teste e nós sabíamo-lo.
Embora o Maxon não tivesse um prazo, o público estava desejoso de que o
grupo diminuísse; e eu pressentia que o rei, a rainha e os seus conselheiros
pensavam o mesmo. Se queríamos ficar, tínhamos de nos sair bem, onde e
quando eles quisessem. Sentia-me contente por ter conseguido ler todo
aquele relatório horrível sobre os soldados. Lembrava-me de algumas
estatísticas e, por isso, tinha fortes hipóteses de causar uma boa impressão.
— Exatamente, Gavril. A guerra na Nova Ásia já dura há alguns anos.
Acho que um ou dois recrutamentos mais intensos dar-nos-iam as
quantidades suficientes para acabarmos com ela.
Eu sentia-me mesmo incapaz de suportar a Celeste. Ela conseguira
que uma rapariga fosse expulsa, arruinara a festa de aniversário da Kriss no
mês anterior e tentara literalmente arrancar-me um vestido do corpo. O seu
estatuto enquanto Dois fazia com que se julgasse superior a todas nós. Para
ser sincera, eu não tinha uma opinião sobre a quantidade de soldados em
Illéa, mas agora que sabia o que a Celeste pensava, decidi ser
completamente contra a sua ideia.
— Discordo — disse, no tom de voz mais elegante que consegui.
A Celeste virou-se para mim com um gesto rápido, que fez com que
os seus cabelos escuros lhe saltassem por cima do ombro. De costas para a
câmara, sentiu-se perfeitamente à vontade para me fitar de modo
intimidante.
— Ah, Lady America, acha que aumentar o contingente é uma má
ideia? — perguntou o Gavril.
Senti as minhas faces quentes de rubor.
— Os Dois podem pagar para evitar o recrutamento. Portanto, tenho a
certeza de que a Lady Celeste nunca viu o que acontece quando as famílias
perdem os seus únicos filhos. Recrutar mais seria um desastre,
especialmente para as castas inferiores, que costumam ter famílias maiores
e precisam do trabalho de cada membro para sobreviverem.
A Marlee, ao meu lado, deu-me um ligeiro toque amigável.
A Celeste tomou a palavra:
— O que deveríamos fazer, então? Não estás certamente a sugerir que
devemos ficar de braços cruzados e deixar que estas guerras se arrastem.
— Não, não. É claro que desejo que Illéa acabe com a guerra.
Fiz uma pausa para organizar as ideias e olhei para o Maxon em busca
de algum apoio. Ao seu lado, o rei parecia irritado.
Precisava de inverter a situação e, portanto, disse a primeira coisa que
me veio à cabeça:
— E se fosse voluntário?
— Voluntário? — perguntou o Gavril.
A Celeste e a Natalie soltaram risadinhas, o que piorou a situação.
Mas, então, pensei bem no assunto. Seria uma ideia assim tão má?
— Sim. Sem dúvida que seriam necessários alguns requisitos, mas
talvez conseguíssemos melhores resultados com um exército de homens que
querem ser soldados do que com rapazes que apenas pretendem sobreviver
para regressar à vida que deixaram para trás.
Um sussurro de reflexão percorreu o estúdio. Aparentemente, o meu
argumento fazia sentido.
— É uma boa ideia — alvitrou a Elise. — Assim, poderíamos também
enviar novos soldados a cada um ou dois meses, à medida que as pessoas se
fossem alistando. Poderia ser incentivador para os homens que já estão ao
serviço há mais tempo.
— Concordo — acrescentou a Marlee, num comentário breve como
era seu costume. Era visível que ela não se sentia à vontade neste tipo de
debates.
— Bem, eu sei que isto pode parecer um pouco moderno, mas e se o
recrutamento fosse aberto às mulheres? — comentou a Kriss.
A Celeste riu-se alto.
— Quem é que achas que se alistaria? Serias capaz de ir para o campo
de batalha? — O seu tom de voz estava carregado de uma incredulidade
ultrajante.
A Kriss não perdeu a cabeça.
— Não, não nasci para ser soldado — continuou, dirigindo-se ao
Gavril. — Mas se há coisa que aprendi na Seleção é que algumas mulheres
têm um instinto assassino assustador. Não se deixem enganar pelos vestidos
de festa — acrescentou, com um sorriso.
***
De volta ao meu quarto, permiti que as minhas aias ficassem até mais
tarde do que o habitual para me ajudarem a tirar o monte de ganchos do
meu cabelo.
— Gostei da sua ideia sobre um exército de voluntários — disse a
Mary, enquanto os seus dedos ágeis trabalhavam.
— Eu também — acrescentou a Lucy. — Lembro-me de ver os meus
vizinhos com dificuldades quando os seus filhos mais velhos foram
recrutados. E depois, quando tantos não regressavam, era quase
insuportável.
Dava para ver uma dezena de recordações a passarem-lhe pela mente.
Eu também tinha algumas semelhantes.
A Miriam Carrier enviuvara cedo, mas ela e o seu filho Aiden
conseguiram organizar a sua vida sozinhos. Quando os soldados apareceram
à sua porta com uma carta, uma bandeira e os seus pêsames sem
significado, ela ficou destroçada. Não conseguia continuar sozinha. Ainda
que tivesse capacidade, já não tinha coragem.
Às vezes, via-a a mendigar enquanto Oito na mesma praça onde me
despedira de Carolina. Mas eu não tinha nada para lhe dar.
— Eu sei — disse, respondendo ao comentário da Lucy.
— Achei que a Kriss foi um pouco longe demais — comentou a
Anne. — Mulheres no campo de batalha parece-me uma ideia péssima.
Sorri perante a sua expressão empertigada, enquanto ela se
concentrava no meu cabelo.
— Segundo o meu pai, as mulheres costumavam...
Ouviu-se uma série de batidas na porta, que nos sobressaltaram.
— Tive uma ideia — anunciou o Maxon, entrando no quarto sem
esperar resposta. Aparentemente, tínhamos sempre encontro marcado às
sextas à noite depois do Noticiário.
— Vossa Majestade... — disseram as três em coro, e a Mary deixou
cair alguns ganchos enquanto fazia a sua reverência.
— Deixe-me ajudá-la — prontificou-se o Maxon, aproximando-se da
Mary.
— Não se incomode — insistiu ela, corando intensamente e recuando
em direção à porta. Com muito menos subtileza do que era sem dúvida sua
intenção, arregalou os olhos para a Lucy e a Anne, implorando-lhes que a
acompanhassem.
— Ah, hum... Boa noite, menina — disse a Lucy, puxando pela saia
da Anne para que esta a seguisse.
Assim que elas saíram, o Maxon e eu desatámos à gargalhada. Virei-
me para o espelho e continuei a tirar os ganchos do cabelo.
— Elas são engraçadas — comentou o Maxon.
— Elas admiram-te imenso, é por isso.
Ele ignorou modestamente o elogio.
— Perdoa-me a interrupção — disse ele para o meu reflexo no
espelho.
— Não há problema — respondi, enquanto tirava o último gancho.
Fiz deslizar os dedos pelos cabelos e ajeitei-os sobre os ombros. — Estou
bem assim?
O Maxon assentiu de modo aprovador, olhando para mim por mais
tempo do que o necessário. Depois, recuperou a concentração e disse:
— Bom, esta ideia...
— Diz.
— Lembras-te daquela história do Halloween?
— Sim. Oh, ainda não li o diário. Mas está bem escondido —
assegurei.
— Tudo bem. Ninguém anda à procura dele. Seja como for, estive a
pensar. Todos aqueles livros diziam que a data calhava em outubro, certo?
— Sim — respondi descontraidamente.
— Estamos em outubro. Por que razão não damos uma festa de
Halloween?
Virei-me rapidamente para ele.
— A sério? Oh, Maxon! Será que podíamos?
— Gostarias disso?
— Eu adoraria!
— Poderíamos fazer máscaras para todas as raparigas da Seleção. Os
guardas de folga poderiam funcionar como pares extra para dançar, já que
eu sou um só e seria injusto fazer com que todas ficassem à espera da sua
vez. E poderíamos ter aulas de dança durante as próximas semanas. Já me
disseste que, às vezes, não há muito para fazer durante o dia. E guloseimas!
Faremos doces e mandaremos vir também os melhores que existirem. Tu,
minha querida, vais acabar a noite empanturrada. Vamos ter de te tirar de lá
a rebolar.
Eu estava fascinada.
— E faremos um anúncio. Diremos ao país inteiro para comemorar,
para deixarem as crianças mascararem-se e irem bater às portas a pedir
doces, como dantes. A tua irmã vai adorar, não vai?
— Claro que sim! Toda a gente vai!
Ele refletiu por um momento, apertando os lábios.
— Achas que ela gostaria de comemorar aqui, no palácio?
Fiquei pasmada:
— O quê?
— Eu tenho de conhecer os pais das jovens da Elite e, já agora, os
irmãos também poderiam vir e faríamos o encontro numa altura mais
festiva em vez de esperar...
Atirei-me para os braços dele, interrompendo-o. Estava tão exultante
com a possibilidade de ver a May e os meus pais que não consegui conter o
meu entusiasmo. Ele envolveu-me a cintura com os braços e encarou-me,
com os olhos brilhando de alegria. Como é que esta pessoa, alguém que eu
imaginara ser o meu completo oposto, descobria sempre as coisas que me
faziam mais feliz?
— Estás a falar a sério? Eles podem mesmo vir?
— Claro — respondeu ele. — Tenho desejado conhecê-los e faz parte
da competição. E, além disso, acho que faria bem a todas vós verem as
vossas famílias.
Quando tive a certeza de que não iria chorar, sussurrei:
— Obrigada.
— Não tens de agradecer... Sei que os adoras.
— Sim.
Ele riu-se.
— E é óbvio que farias quase tudo por eles. Afinal, ficaste na Seleção
por eles.
Afastei-me repentinamente, criando espaço entre nós para poder ver
os seus olhos. Não havia nenhuma crítica neles, apenas espanto pelo meu
movimento abrupto. Mas eu não podia deixar passar; tinha de ser
absolutamente franca.
— Maxon, eles foram parte do motivo pelo qual fiquei no início, mas
não são a razão pela qual estou aqui agora. Sabes disso, não sabes? Estou
aqui porque...
— Porque?
Olhei para o Maxon, para o seu rosto apaixonado tão cheio de
esperança. Diz, America. Diz-lhe.
— Porque? — perguntou ele novamente, desta vez com um sorriso
malicioso nos lábios que me derreteu ainda mais.
Pensei na conversa com a Marlee e no modo como me sentira no
outro dia, quando faláramos da Seleção. Era difícil pensar no Maxon como
meu namorado quando havia outras raparigas com quem ele se encontrava,
mas ele não era apenas um amigo. Uma vez mais, senti-me envolvida por
aquela sensação de esperança, pela ideia mágica de que poderíamos ter algo
especial. O Maxon significava mais para mim do que eu me permitia
acreditar.
Ofereci-lhe um sorriso malandro e comecei a dirigir-me para a porta.
— America Singer, anda cá. — Ele ultrapassou-me e envolveu-me a
cintura com um braço, pressionando o seu peito contra o meu. — Diz-me
— murmurou.
Cerrei os lábios.
— Muito bem, terei então de usar outros meios de comunicação.
Sem qualquer aviso, beijou-me. Senti o meu corpo inclinar-se um
pouco para trás, completamente sustentado pelos seus braços. Pus as mãos à
volta do seu pescoço, querendo segurá-lo contra mim... e algo mudou na
minha cabeça.
Habitualmente, quando estávamos sozinhos, eu conseguia manter toda
a gente longe do meu pensamento. Mas hoje, pensei na possibilidade de
haver outra no meu lugar. Só o facto de imaginar outra rapariga nos braços
do Maxon, a fazê-lo rir, a casar com ele... despedaçou-me o coração. Não
consegui evitar: desatei a chorar.
— Querida, o que se passa?
«Querida»? Aquela palavra, tão terna e pessoal, envolveu-me.
Naquele instante, quaisquer desejos que eu tivesse de lutar contra o que
sentia pelo Maxon desapareceram. Queria ser a sua querida, o seu amor.
Queria pertencer apenas ao Maxon.
Essa escolha poderia significar acolher um futuro que nunca pensara
desejar e dizer adeus a coisas que nunca imaginara abandonar, mas a ideia
de o deixar neste momento não era algo com que eu conseguisse lidar.
Era verdade que não era a melhor candidata à coroa, mas não merecia
continuar na competição se não fosse capaz de, pelo menos, ter a coragem
de confessar os meus sentimentos.
Suspirei, procurando manter a voz firme:
— Não quero deixar tudo isto.
— Se bem me lembro, a primeira vez que nos encontrámos, disseste
que parecia uma jaula. — Ele sorriu. — Mas acabamos por nos habituar,
não é?
Abanei ligeiramente a cabeça.
— Às vezes, consegues ser tão idiota. — Soltei uma gargalhada fraca
por entre os soluços.
O Maxon deixou-me recuar o suficiente para eu poder olhar para os
seus olhos castanhos.
— Não é o palácio, Maxon. Não quero saber das roupas, da cama ou,
podes não acreditar, da comida.
Ele riu-se. Não era segredo o meu entusiasmo perante as
extravagantes refeições que nos eram apresentadas.
— És tu — disse eu. — Não quero deixar-te.
— Eu?
Assenti com a cabeça.
— Tu queres-me?
Ri-me perante a sua expressão maravilhada.
— É o que estou a dizer-te.
Ele calou-se por um momento.
— Como... Mas... O que é que eu fiz?
— Não sei — respondi, encolhendo os ombros. — Só acho que
seríamos um bom «nós».
Ele sorriu lentamente.
— Seríamos um «nós» maravilhoso.
O Maxon puxou-me para si, de um modo abrupto segundo os seus
padrões, e beijou-me novamente.
— Tens a certeza? — perguntou-me, segurando-me com os braços
esticados e olhando-me intensamente. — A certeza absoluta?
— Se tu tens a certeza, eu também tenho.
Por uma fração de segundo, algo mudou no seu rosto. Mas foi tão
rápido que duvidei que, o que quer que fosse, tivesse sido real.
No instante seguinte, ele conduziu-me até à cama e sentámo-nos
juntos na beira, de mãos dadas e com a minha cabeça apoiada no seu
ombro. Eu esperava que ele dissesse alguma coisa. Afinal, não era este o
momento pelo qual ele ansiara? Mas as palavras não vieram. De vez em
quando, ele soltava um longo suspiro e esse simples som dizia-me o quão
feliz estava. Ajudava-me a não me sentir tão ansiosa.
Ao fim de algum tempo, talvez porque nenhum de nós soubesse o que
dizer, o Maxon endireitou-se.
— É melhor eu ir-me embora. Se vamos convidar todas as famílias
para a festa, preciso de fazer mais planos.
Afastei-me e sorri, ainda tonta de alegria por poder abraçar em breve a
minha mãe, o meu pai e a May.
— Obrigada mais uma vez.
Levantámo-nos juntos e caminhámos até à porta. Eu segurava na mão
dele com força. Por alguma razão, temia largá-la. Parecia que este momento
era de certo modo frágil e que, se o agitássemos demasiado, poderia
desfazer-se.
— Vejo-te amanhã — prometeu ele num sussurro, com o nariz a
milímetros do meu. Olhava-me com tanta adoração que me senti uma
palerma por me preocupar.
— És surpreendente.
Assim que ele saiu, fechei os olhos e recordei tudo o que acontecera
no pouco tempo em que estivéramos juntos: o modo como ele olhara para
mim, os sorrisos brincalhões, os beijos doces. Pensei neles uma e outra vez,
enquanto me preparava para dormir, perguntando-me se o Maxon estaria a
fazer o mesmo.
Capítulo 6

— Muito bem, menina. Continue a apontar para os desenhos e as


outras tentem não olhar para mim — pediu o fotógrafo.
Era sábado e todas nós da Elite tínhamos sido dispensadas da
obrigação de ficarmos o dia inteiro no Salão das Mulheres. Ao pequeno-
almoço, o Maxon anunciara a festa de Halloween e, à tarde, as nossas aias
começaram a trabalhar em ideias para as nossas máscaras, ao mesmo tempo
que haviam chegado fotógrafos para registar todo o processo.
Neste momento, eu estava a tentar parecer natural, examinando os
desenhos da Anne, enquanto as minhas aias permaneciam de pé atrás da
mesa onde havia pedaços de tecido, caixas de lantejoulas e uma quantidade
absurda de penas.
A câmara disparava flash atrás de flash, enquanto tentávamos
apresentar várias opções. No momento em que eu ia posar com um tecido
dourado junto ao rosto, recebemos um visitante.
— Bom dia, minhas senhoras — disse o Maxon, aproveitando a porta
aberta para entrar.
Não pude deixar de me endireitar logo um pouco e senti um sorriso
tomar conta do meu rosto. O fotógrafo captou esse momento antes de se
dirigir ao Maxon.
— É sempre uma honra, Vossa Majestade. Importa-se de posar com a
menina?
— Com todo o prazer.
As minhas aias afastaram-se e o Maxon pegou em alguns desenhos e
colocou-se mesmo atrás de mim. Com uma das suas mãos segurou as folhas
à nossa frente, enquanto a outra repousava na minha cintura. Aquele toque
transmitia-me imensa coisa. Vês, dizia, em breve vou poder tocar-te assim
diante do mundo inteiro. Não precisas de te preocupar com nada.
Depois de mais algumas fotografias, o fotógrafo saiu para fotografar a
rapariga seguinte na sua lista. Notei que as minhas aias também tinham
decidido sair discretamente
— As tuas aias têm muito talento — disse o Maxon. — Estas ideias
são maravilhosas.
Tentei agir como sempre o fizera com o Maxon, mas as coisas
pareciam diferentes agora, ao mesmo tempo melhores e piores.
— Eu sei. Não poderia estar em melhores mãos.
— Já escolheste alguma? — perguntou ele, espalhando os papéis em
cima da minha secretária.
— Todas nós gostamos da opção do pássaro. Acho que a ideia é ser
uma referência ao meu colar — respondi, tocando no fino cordão de prata.
O colar com o passarinho fora um presente do meu pai e eu preferia-o às
joias mais elaboradas, que o palácio punha à nossa disposição.
— Lamento dizer-te isto, mas acho que a Celeste também escolheu
alguma coisa com aves. Ela pareceu-me muito determinada — disse ele.
— Tudo bem — disse eu, encolhendo os ombros. — Eu também não
sou grande apreciadora de penas. — O meu sorriso desapareceu. — Espera,
tu estiveste com a Celeste?
Ele assentiu com a cabeça.
— Foi apenas uma visita rápida, para conversar. Receio também não
poder ficar muito tempo aqui. O meu pai não está entusiasmado com nada
disto, mas com a Seleção ainda a decorrer percebeu que seria bom termos
um pouco mais de festa. E concordou que, considerando a situação, seria
uma forma muito melhor de conhecermos as famílias.
— Qual situação?
— Ele está ansioso por uma eliminação e eu tenho de expulsar alguém
depois de conhecer os pais de todas. Na opinião dele, quanto mais depressa
vierem, melhor.
Eu não tinha percebido que mandar alguém embora fazia parte do
plano do Halloween. Julgava que era apenas uma grande festa. Aquilo
deixou-me nervosa, embora repetisse a mim mesma que não havia motivos
para tal. Não depois da nossa conversa da noite anterior. De todos os
momentos que tinha partilhado com o Maxon, nenhum me parecia mais real
do que aquele.
Ainda com os olhos nos desenhos, o Maxon disse distraidamente:
— Se calhar, é melhor ir terminar as visitas.
— Já te vais embora?
— Não te preocupes, querida. Vejo-te ao jantar.
Sim, pensei, mas vês-nos a todas ao jantar.
— Está tudo bem? — perguntei.
— Claro — respondeu ele, dando-me um beijo rápido. Na face.
— Tenho de ir. Falamos em breve.
E saiu, tão subitamente como tinha entrado.
***
No domingo, faltavam apenas oito dias para a festa de Halloween, o
que significava que o palácio estava em polvorosa.
Na segunda-feira, o grupo da Elite passou a manhã com a Rainha
Amberly a provar pratos e a aprovar o menu para a festa. Era, de longe, a
melhor tarefa que tivéramos até então. Nessa tarde, porém, a Celeste não
apareceu no Salão das Mulheres durante algumas horas. Quando voltou, por
volta das quatro da tarde, anunciou-nos a todas que «O Maxon mandava-
nos beijinhos».
Na terça-feira à tarde, recebemos os membros da família real alargada,
que haviam chegado à cidade para a festa, enquanto de manhã tínhamos
estado todas a observar da janela o Maxon a dar uma aula de tiro com arco
à Kriss, nos jardins.
As refeições eram repletas de convidados que haviam chegado mais
cedo, mas o Maxon estava frequentemente ausente, assim como a Marlee e
a Natalie.
Eu sentia-me cada vez mais envergonhada. Revelar os meus
sentimentos ao Maxon tinha sido um erro. Apesar de toda a sua conversa,
ele não podia estar realmente interessado em mim se a sua primeira reação
era passar o tempo com todas as outras.
Na sexta-feira, quando permaneci sentada ao piano depois do
Noticiário Oficial, desejando que o Maxon viesse até ao meu quarto, já
perdera praticamente as esperanças.
Ele não apareceu.
Tentei não pensar nisso no sábado, já que durante a manhã a Elite
tinha a obrigação de receber no Salão das Mulheres o número crescente de
senhoras no palácio e, à tarde, haveria mais um ensaio de dança.
Ainda bem que, enquanto Cincos, a minha família escolhera
concentrar-se na música e nas artes plásticas, já que eu era uma dançarina
péssima. A única pessoa pior do que eu na sala era a Natalie. Para minha
frustração, a Celeste era extremamente graciosa. Mais de uma vez, os
instrutores pediram-lhe para ajudar as outras e foi por isso que a Natalie
quase torceu o tornozelo, devido às indicações erradas que a Celeste lhe deu
propositadamente.
Pérfida como uma serpente, a Celeste culpou a completa falta de jeito
da Natalie. Os professores acreditaram nela e a Natalie riu-se, não dando
importância à situação. Admirei a Natalie por não permitir que a Celeste a
irritasse.
O Aspen esteve presente em todas as aulas. Nas primeiras vezes,
evitei-o, sem saber bem se queria dançar com ele. Ouvira rumores de que os
guardas andavam a mudar de turnos a uma velocidade estonteante. Alguns
queriam desesperadamente estar presentes na festa, enquanto outros tinham
namoradas na sua terra natal e arranjariam grandes problemas se fossem
vistos a dançar com outra pessoa, principalmente porque cinco de nós
voltariam em breve a estar «solteiras» e a ser muito solicitadas.
Mas dado que este era o nosso último ensaio formal, quando o Aspen
se aproximou o suficiente para dançar comigo, não o recusei.
— Estás bem? — perguntou ele. — Pareceste-me triste nas últimas
vezes em que te vi.
— É só cansaço — menti. Não podia conversar com ele sobre os meus
problemas sentimentais.
— A sério? — perguntou ele, cético. — Tinha a certeza de que isso
era um prenúncio de más notícias.
— Como assim? — questionei. Será que ele sabia de algo que eu
desconhecia?
Ele suspirou.
— Se estás a preparar-te para me dizer que tenho de parar de lutar por
ti, não quero falar sobre isso.
Para ser sincera, nem sequer pensara no Aspen durante a última
semana. Estava tão absorta nas minhas palavras inoportunas e em
pressupostos errados que não conseguira pensar em mais nada. E, no
entanto, enquanto eu me preocupava com a possibilidade de o Maxon me
abandonar, o Aspen preocupara-se com a possibilidade de eu lhe fazer o
mesmo.
— Não é nada disso — respondi vagamente, sentindo-me culpada.
Ele assentiu com a cabeça, satisfeito com a resposta.
— Ai!
— Ups! — exclamei. Não quisera pisá-lo. Esforcei-me por me
concentrar um pouco mais na dança.
— Desculpa, Mer, mas tu és péssima. — Ele ria-se, apesar de o salto
do meu sapato o ter provavelmente magoado.
— Eu sei, eu sei — respondi, sem fôlego. — Mas juro que estou a
tentar!
Eu saltitava pelo salão como um alce cego, compensando com esforço
a minha falta de graciosidade. O Aspen tentou, com grande gentileza, que
eu fizesse boa figura, procurando reduzir um pouco o ritmo para me
acompanhar. Era tão típico dele, sempre a tentar ser o meu herói.
Pelo menos, no fim daquela última aula, eu sabia todos os passos. Não
poderia prometer não atingir acidentalmente um diplomata convidado com
um pontapé enérgico, mas iria esforçar-me por dar o meu melhor. Enquanto
imaginava a cena, percebi que não era de estranhar que o Maxon pensasse
duas vezes. Eu seria um embaraço quando visitássemos outros países e, pior
ainda, quando recebêssemos convidados. Simplesmente não tinha ar de
princesa.
Suspirei e fui buscar um copo de água. O Aspen seguiu-me, enquanto
o resto das raparigas saía do salão.
— Portanto... — começou ele.
Percorri o salão com os olhos para me certificar de que ninguém nos
observava.
Ele prosseguiu:
— Tenho de supor que se não estás preocupada comigo, deves estar
preocupada com ele.
Baixei os olhos e corei. Ele conhecia-me tão bem.
— Não que eu esteja a torcer por ele, nem nada que se pareça, mas se
não consegue perceber como és maravilhosa, é um idiota.
Sorri, mantendo os olhos cravados no chão.
— E se não fores uma princesa, qual é o problema? Isso não faz de ti
uma pessoa menos incrível. E tu sabes... tu sabes... — Ele não conseguiu
pronunciar o que queria dizer e eu arrisquei olhar para o seu rosto.
Vi nos seus olhos mil finais diferentes para aquela frase, todos unindo-
me a ele: que ainda esperava por mim; que ainda me conhecia melhor do
que ninguém; que éramos semelhantes; que alguns meses no palácio não
poderiam apagar dois anos. Independentemente do que acontecesse, o
Aspen estaria sempre ao meu lado.
— Eu sei, Aspen. Sei mesmo.
Capítulo 7

Eu estava na fila, junto das outras raparigas, no imenso foyer do


palácio, balançando-me nas pontas dos pés.
— Lady America... — sussurrou a Silvia, o que bastou para eu
perceber que estava a comportar-me de modo inaceitável. Enquanto nossa
tutora principal na Seleção, ela levava muito a peito tudo o que fazíamos.
Procurei ficar quieta. Invejava a Silvia, os empregados e o punhado de
guardas que se moviam de um lado para o outro, apenas pelo simples facto
de poderem andar. Sabia que me sentiria muito mais calma se pudesse fazer
o mesmo.
Talvez não fosse tão mau se o Maxon já estivesse aqui, mas, por outro
lado, talvez isso me deixasse ainda mais ansiosa. Depois de tudo o que se
passara, ainda não conseguia compreender por que razão ele não arranjara
tempo para mim nos últimos dias.
— Chegaram! — Ouvi alguém dizê-lo através das portas do palácio.
Não fui a única a soltar um gritinho de alegria.
— Muito bem, meninas! — avisou a Silvia. — Ajam com modos!
Mordomos e aias para junto da parede, por favor.
Tentámos ser as jovens encantadoras e régias que a Silvia desejava,
mas assim que os pais da Kriss e da Marlee entraram pela porta, tudo se
desmoronou. Eu sabia que ambas eram apenas crianças e era óbvio que os
seus pais sentiam demasiadas saudades para se importarem com o decoro.
Eles entraram aos gritos e a Marlee saiu a correr da fila sem qualquer
hesitação.
Os pais da Celeste eram mais comedidos, embora tenham ficado
claramente entusiasmados por verem a filha. Ela também saiu da fila, mas
de um modo muito mais civilizado do que a Marlee. Nem sequer reparei
nos pais da Natalie ou da Elise, porque uma figura pequena, com cabelos
ruivos despenteados, apareceu como um raio ao pé da porta, procurando
com o olhar.
— May!
Ela ouviu-me chamar, viu o meu braço no ar e correu para mim. A
minha mãe e o meu pai seguiram-na, enquanto eu me ajoelhava no chão
para a abraçar.
— Ames! Não acredito! — cantarolou ela, com a voz repleta de
admiração e inveja. — Estás tão linda!
Eu não conseguia falar. Mal conseguia vê-la por entre as lágrimas que
me escorriam pelas faces.
Pouco depois, senti os braços firmes do meu pai a envolverem-nos a
ambas e, a seguir, a minha mãe juntou-se a nós, deixando de lado a sua
dignidade habitual. Abraçámo-nos uns aos outros num monte no chão do
palácio.
Ouvi alguém suspirar e sabia que era a Silvia, mas naquele momento
isso não me importava.
Assim que consegui voltar a respirar, disse:
— Estou tão feliz por estarem aqui.
— Nós também estamos, gatinha — respondeu o meu pai. — Não
consigo dizer-te o quanto sentimos falta de ti. — O meu pai deu-me um
beijinho na nuca.
Virei-me para o abraçar melhor. Até àquele momento, não fazia ideia
do quanto precisava de os ver.
Abracei a minha mãe por último. Estava chocada por ela estar tão
calada. Não podia acreditar que ainda não tivesse exigido um relatório
pormenorizado do meu progresso com o Maxon. Mas, quando me afastei,
vislumbrei lágrimas nos seus olhos.
— Estás tão linda, querida. Pareces uma princesa.
Sorri. Era agradável não ser interrogada nem receber ordens dela. A
minha mãe estava simplesmente feliz naquele momento e isso significava
muito para mim, porque eu também estava.
Vi a May olhar para alguma coisa por cima do meu ombro.
— É ele — murmurou.
— Hum? — perguntei, olhando para ela. Virei-me e vi o Maxon a
observar-nos por trás da grande escadaria. Exibia um sorriso divertido,
enquanto avançava até onde nos encontrávamos, todos abraçados num
monte no chão. O meu pai endireitou-se imediatamente.
— Vossa Alteza — disse, com a voz cheia de admiração.
O Maxon foi ao seu encontro com a mão estendida.
— Senhor Singer, é uma honra conhecê-lo. Ouvi falar muito de si. E
de si também, senhora Singer. — Ele dirigiu-se à minha mãe, que também
se endireitara e ajeitava o cabelo.
— Vossa Majestade... — guinchou ela, um pouco atarantada. —
Desculpe-nos por isto — disse, apontando para o chão, onde a May e eu
permanecíamos abraçadas.
O Maxon riu-se.
— De modo nenhum. Não esperaria menos entusiasmo de qualquer
pessoa da família de Lady America.
Eu tinha a certeza de que, mais tarde, a minha mãe iria querer uma
explicação sobre aquilo.
— E tu deves ser a May?
A May corou e estendeu-lhe a mão. Ela esperava que ele lha
apertasse, mas em vez disso recebeu um beijo.
— Ainda não te agradeci por não teres chorado.
— O quê? — perguntou ela, corando e ainda mais confusa.
— Ninguém te contou? — inquiriu o Maxon, alegre. — Graças a ti,
consegui o meu primeiro encontro com a tua encantadora irmã. Estou em
dívida para contigo.
A May soltou uma pequena gargalhada.
— Não tem nada que agradecer, acho eu.
O Maxon pôs as mãos atrás das costas, regressando aos seus modos
educados.
— Tenho de ir cumprimentar os outros, mas, por favor, aguardem aqui
um instante. Irei fazer um breve anúncio a todos. E espero ter a
oportunidade de conversar mais convosco em breve. Estou muito feliz por
terem vindo.
— Ele é ainda mais giro ao vivo! — murmurou a May demasiado alto
e eu percebi, pela maneira como abanou ligeiramente cabeça, que o Maxon
ouvira.
Ele dirigiu-se à família da Elise, de longe a mais educada do grupo.
Os seus irmãos mais velhos pareciam tão rígidos como os guardas e os seus
pais fizeram uma vénia ao Maxon quando este se aproximou. Perguntei-me
se a Elise lhes teria dito para agirem assim ou se esse era o seu estilo
habitual. Pareciam muito arranjadinhos, todos de cabelos negros e com as
suas figuras pequenas elegantemente vestidas.
Ao seu lado, a Natalie e a sua irmã mais nova, bastante bonita,
murmuravam alguma coisa à Kriss, enquanto os seus pais se cum‐
primentavam. Todo o espaço estava repleto de uma energia calorosa.
— O que é que ele quis dizer com esperar entusiasmo da nossa parte?
— perguntou a minha mãe, em voz baixa. — É porque gritaste com ele
quando se conheceram? Não voltaste a fazer isso, pois não?
Soltei um suspiro.
— Na verdade, discutimos com bastante frequência, mãe.
— O quê?!? — exclamou ela, estupefacta. — Pois então acaba com
isso!
— E, uma vez, acertei-lhe com um joelho na virilha.
Houve um momento de silêncio até que a May explodiu numa
gargalhada. Tapou a boca, procurando parar, mas as gargalhadas
continuavam a sair com sons estranhos e agudos. O meu pai apertou os
lábios, mas consegui perceber que também estava quase a perder o controlo.
A minha mãe estava pálida corno um lençol.
— America, diz-me que estás a brincar. Diz-me que não agrediste o
príncipe.
Não sei porquê, mas a palavra agredir foi a gota de água; a May, o
meu pai e eu dobrámo-nos de riso, enquanto a minha mãe nos fitava.
— Desculpa, mãe — consegui dizer.
— Oh, por amor de Deus — E, de repente, ela pareceu muito
interessada em conhecer os pais da Marlee e eu não a impedi.
— Então, ele prefere mulheres que o enfrentam — disse o meu pai,
assim que nos acalmámos. — Já gosto mais dele.
O meu pai olhou em volta da sala, analisando o palácio, e eu
permaneci ali a tentar compreender as suas palavras. Quantas vezes, durante
os anos em que o Aspen e eu namoráramos em segredo, é que ele e o meu
pai tinham estado na mesma sala? Uma dúzia, pelo menos. Talvez mais. E
eu nunca me preocupara com o facto de ele aprovar o Aspen ou não. Sabia
que seria difícil conseguir o seu consentimento para que me casasse com
alguém de uma casta inferior, mas sempre achara que acabaria por ter a sua
permissão.
Por alguma razão, isto era mil vezes mais enervante. Apesar de o
Maxon ser Um e poder sustentar-nos a todos, percebi de repente que existia
a possibilidade de o meu pai não gostar dele.
O meu pai não era um rebelde que andasse por aí a queimar casas ou
algo do género, mas eu sabia que ele não gostava do modo como as coisas
funcionavam. E se os seus problemas com o governo incluíssem o Maxon?
E se ele dissesse que eu não deveria ficar com ele?
Antes que eu pudesse avançar demasiado por esta linha de
pensamentos, o Maxon subiu alguns degraus para conseguir ver-nos a
todos.
— Gostaria de vos agradecer novamente por terem vindo. Estamos
muito contentes por recebê-los no palácio, não apenas para comemorarmos
o primeiro Halloween em Illéa depois de algumas décadas, mas também
para nos conhecermos. Lamento que os meus pais não tenham podido estar
aqui também para vos receber. Irão conhecê-los em breve.
»As mães, as irmãs e o grupo da Elite estão convidadas para tomar
chá com a minha mãe, esta tarde, no Salão das Mulheres. As vossas filhas
conduzi-las-ão até lá. Os cavalheiros irão fumar charutos com o meu pai e
comigo. Haverá um mordomo para vos acompanhar, portanto não tenham
receio de se perderem.
»As vossas aias acompanhar-vos-ão aos quartos que irão ocupar
durante a vossa estadia e irão também ajudar-vos a vestirem-se ade‐
quadamente durante a vossa visita, bem como para a festa de amanhã à
noite. — O Maxon fez um breve aceno e saiu.
Quase de imediato, uma aia surgiu ao nosso lado.
— Senhor e senhora Singer? Estou aqui para vos acompanhar e à
vossa filha aos vossos aposentos.
— Mas eu quero ficar com a America! — protestou a May.
— Querida, de certeza que o rei nos deu um quarto tão bonito como o
da America. Não queres vê-lo? — encorajou a minha mãe.
A May virou-se para mim:
— Quero viver exatamente como tu. Só por um bocadinho. Posso
ficar contigo?
Suspirei. Teria de abdicar de alguma privacidade durante alguns dias,
mas e depois? Era impossível dizer que não àquela carinha.
— Está bem. Se formos duas, talvez as minhas aias tenham finalmente
algo para fazer.
Ela abraçou-me com tanta força, que valeu imediatamente a pena.
***
— E o que é que aprendeste mais? — perguntou o meu pai. Enfiei o
meu braço no dele, tentando ainda habituar-me a vê-lo de fato. Se não
tivesse visto o meu pai milhares de vezes com as suas roupas de pintar
todas sujas, seria capaz de jurar que ele nascera para ser Um. Parecia tão
jovem e elegante naquelas roupas formais. Até parecia mais alto.
— Acho que já te contei tudo o que nos ensinaram sobre a nossa
história; como o Presidente Wallis foi o último líder dos antigos Estados
Unidos e como governou depois o Estado Americano da China. Nunca
tinha ouvido falar dele, e tu?
O meu pai fez que sim com a cabeça.
— O teu avô falou-me dele. Ouvi dizer que era um homem decente,
mas que não pôde fazer grande coisa quando as coisas pioraram.
Só depois de chegar ao palácio é que eu ficara a saber a verdade sobre
a História de Illéa. Por alguma razão, a história da origem do nosso país era
quase sempre transmitida oralmente. Eu ouvira várias coisas diferentes e
nenhuma delas era tão completa como a informação que recebera nos
últimos meses.
Os Estados Unidos haviam sido invadidos no início da Terceira
Guerra Mundial, depois de não conseguirem pagar a sua debilitante dívida à
China. Em vez de receberem o dinheiro, que os Estados Unidos não tinham,
os Chineses instalaram um governo aqui, criando o Estado Americano da
China e usaram os Americanos como força de trabalho. Os Estados Unidos
acabaram por se revoltar, não apenas contra a China, mas também contra os
Russos, que estavam a tentar roubar a mão-de-obra estabelecida pelos
Chineses, e juntaram-se ao Canadá, ao México e a vários outros países
latinos para formarem um único país. Essa foi a Quarta Guerra Mundial e,
embora tenhamos sobrevivido e formado um novo país, a guerra devastou
bastante a economia.
— O Maxon disse-me que as pessoas não tinham quase nada pouco
antes da Quarta Guerra Mundial.
— Ele tem razão. Esse é um dos motivos pelo qual o sistema de castas
é tão injusto. Ninguém tinha muito para oferecer em termos de ajuda e é por
isso que tanta gente acabou nas castas inferiores.
Não queria discutir este assunto com o meu pai porque sabia que ele
costumava ficar bastante enervado. Não estava errado, as castas eram
injustas, mas esta era uma visita alegre e eu não queria desperdiçá-la a falar
de coisas que não podíamos mudar.
— Além de um pouco de História, a maior parte das aulas é sobre
etiqueta. Estamos agora a falar um pouco mais sobre diplomacia. Estão a
insistir tanto nessa parte que acho que em breve teremos de usar esses
conhecimentos de algum modo. Bem, as raparigas que ficarem terão.
— As que ficarem?
— Parece que uma de nós vai voltar para casa com a família. O
Maxon tem de eliminar alguém depois de vos conhecer a todos.
— Não pareces contente. Achas que ele vai mandar-te para casa?
Encolhi os ombros.
— Vá lá, filha. A esta altura, já deves saber se ele gosta de ti ou não.
Se gosta, não tens nada com que te preocupar. Se não gosta, por que razão
quererias ficar?
— Acho que tens razão.
Ele parou de andar.
— E então como é?
Era embaraçoso falar disto com o meu pai, mas também nunca o
contaria à minha mãe. E a May seria ainda pior do que eu a analisar o
Maxon.
— Acho que ele gosta de mim. Ele diz que gosta.
O meu pai riu-se.
— Então, de certeza que estás a sair-te bem.
— Mas ele tem estado um pouco... distante, esta semana.
— America, querida, ele é o príncipe. Provavelmente tem estado
ocupado a aprovar leis ou algo do género.
Eu não sabia como explicar que o Maxon parecia estar a conseguir
arranjar tempo para todas as outras, menos para mim. Era demasiado
humilhante.
— Talvez.
— Por falar em leis, já aprenderam alguma coisa sobre isso? Sobre
como escrever uma proposta?
Este também não era um assunto que me entusiasmasse, mas pelo
menos não era sobre rapazes.
— Ainda não, apesar de andarmos a ler bastantes. Por vezes, são
difíceis de compreender, mas a Silvia, a mulher que estava lá em baixo, é
uma espécie de guia, uma tutora ou algo parecido. Procura explicar-nos as
coisas. E o Maxon ajuda-me sempre quando lhe faço perguntas.
— Ajuda? — O meu pai pareceu satisfeito com esse facto.
— Oh, sim. Sabes, acho que é importante para ele que todas nós
sintamos que somos capazes de ter sucesso. E, portanto, é ótimo a explicar
as coisas. Ele até... — Fiz uma pausa para refletir. Não devia falar da sala
dos livros, mas tratava-se do meu pai. — Escuta, tens de prometer não falar
disto a ninguém.
Ele riu-se.
— A única pessoa com quem converso é com a tua mãe e todos nós
sabemos que não se pode confiar-lhe um segredo, portanto prometo não lhe
contar nada.
Soltei uma risadinha. Era impossível imaginar a minha mãe a guardar
um segredo.
— Podes confiar em mim, gatinha — disse ele, dando-me um ligeiro
abraço.
— Há uma sala aqui, uma sala secreta cheia de livros, pai! —
confessei em voz baixa, olhando para todos os lados para me certificar de
que não havia ninguém por perto. — Contém livros banidos e mapas-
múndi; mapas antigos com todos os países tal como eram dantes. Pai, não
sabia que existiam tantos países! E também há lá um computador. Já
alguma vez viste um ao vivo?
Ele abanou a cabeça, espantado.
— É fantástico. Escrevemos o nome do que queremos e ele procura
em todos os livros da sala, até encontrar.
— Como?
— Não sei, mas foi assim que o Maxon descobriu o que era o
Halloween. Ele até... — Olhei novamente para ambos os lados do corredor.
Sabia que o meu pai não falaria a ninguém sobre a biblioteca, mas dizer-lhe
que tinha um dos livros secretos no meu quarto poderia ser demais.
— Ele até...?
— Ele emprestou-me um uma vez, só para eu ver.
— Ah, isso é muito interessante! E o que leste? Podes dizer-me?
Mordi o lábio.
— Era um dos diários pessoais de Gregory Illéa.
O meu pai ficou de boca aberta, mas recompôs-se logo:
— America, isso é incrível. E o que dizia?
— Ainda não o terminei. Estava a tentar descobrir o que era o
Halloween.
Ele ponderou as minhas palavras por um instante e abanou a cabeça.
— E estás preocupada porquê, America? É óbvio que o Maxon confia
em ti.
Suspirei, sentindo-me uma idiota.
— Acho que tens razão.
— Fantástico — sussurrou ele. — Então, existe uma sala escondida
algures por aqui? — Ele olhou para as paredes de um modo completamente
novo.
— Pai, este sítio é de doidos. Há portas e painéis por todo o lado. Se
eu empurrasse este vaso, poderíamos cair num alçapão.
— Hum — disse ele, divertido. — Então, é melhor ter cuidado
quando voltar para o meu quarto.
— Se calhar, não era má ideia fazeres isso depressa. Preciso de
preparar a May para o chá com a rainha.
— Ah, sim! Tu e os teus chás com a rainha — gracejou ele.— Muito
bem, gatinha. Vejo-te logo à noite ao jantar. Bem... agora qual é a melhor
maneira de não cair num alçapão secreto? — pensou ele em voz alta e
avançou de braços estendidos como que para se proteger.
Assim que chegou à escadaria, colocou cuidadosamente a mão no
corrimão.
— Só para saberes, este é seguro.
— Obrigada, pai. — Abanei a cabeça e regressei ao meu quarto.
Era quase impossível não andar sem saltitar pelos corredores. Estava
tão feliz por ter a minha família ali que mal conseguia conter-me. Se o
Maxon não me mandasse embora, iria ser mais difícil do que nunca estar
separada deles.
Virei a esquina em direção ao meu quarto e vi que a porta estava
aberta.
— Como é que ele era? — Ouvi a May perguntar, quando me
aproximei.
— Belo. Para mim, pelo menos. Tinha um cabelo ondulado que não se
deixava moldar.
A May riu-se e a Lucy fez o mesmo, continuando a falar:
— Passei os dedos pelo cabelo dele, algumas vezes. Penso nisso de
vez em quando, mas não tanto como dantes.
Aproximei-me em bicos dos pés para não as perturbar.
— Ainda sentes saudades dele? — perguntou a May, sempre curiosa
em relação aos rapazes.
— Cada vez menos — admitiu a Lucy, com uma ponta de esperança
na voz. — Quando cheguei aqui, pensei que iria morrer de desgosto.
Costumava imaginar formas de fugir do palácio e voltar para ele, mas isso
nunca aconteceria. Não podia abandonar o meu pai e, mesmo que
conseguisse ultrapassar as muralhas, nunca seria capaz de encontrar o
caminho de volta.
Eu sabia um pouco sobre o passado da Lucy, como a sua família se
oferecera para servir uma família de Três em troca do dinheiro para pagar
uma operação para a mãe da Lucy, a qual acabara por falecer. Depois,
quando a mãe da família de Três descobriu que o seu filho estava
apaixonado pela Lucy, vendeu-a e ao seu pai ao palácio.
Espreitei pela porta e ali estavam a May e a Lucy em cima da cama.
As portas da varanda estavam abertas e a brisa deliciosa de Angeles entrava
pelo quarto. A May encaixava-se com bastante naturalidade no visual
palaciano, sentada na cama com o seu vestido perfeitamente ajustado ao
corpo, enquanto fazia tranças em algumas madeixas do cabelo da Lucy,
deixando o resto solto. Nunca vira a Lucy sem o cabelo bem preso num
coque. Ficava encantadora assim, jovem e despreocupada.
— Como é estar apaixonada? — perguntou a May.
Senti-me um pouco magoada. Porque é que ela nunca me tinha
perguntado? Depois lembrei-me que, tanto quanto a May sabia, eu nunca
amara alguém.
O sorriso da Lucy era triste.
— É a coisa mais maravilhosa e mais terrível que pode acontecer-nos
— afirmou com simplicidade. — Sabes que encontraste algo de incrível e
queres mantê-lo contigo para sempre; e a todo o instante, depois de o
alcançares, temes o momento em que poderás perdê-lo.
Suspirei baixinho. Ela estava absolutamente certa.
O amor é um medo belo.
Não queria pensar demasiado em perder coisas e, portanto, entrei no
quarto.
— Lucy! Olhem só para si!
— Gosta? — perguntou ela, tocando nas tranças delicadas.
— Está maravilhoso. A May costumava passar o tempo a fazer-me
tranças. Ela tem muito jeito.
A May encolheu os ombros.
— Que mais podia eu fazer? Não podíamos comprar bonecas; por
isso, eu brincava com a Ames.
— Então — disse a Lucy, virando-se para a May —, vais ser a nossa
bonequinha enquanto estiveres aqui. A Anne, a Mary e eu vamos pôr-te tão
bonita como a rainha.
A May inclinou a cabeça.
— Ninguém é tão bonita como ela. — Depois, virou-se rapidamente
para mim. — Não digas à mãe que eu disse isto.
Eu ri-me.
— Não digo. Mas agora temos de nos arranjar. Está quase na hora do
chá.
A May bateu palmas, entusiasmada, e foi sentar-se diante do espelho.
A Lucy puxou os cabelos para cima e conseguiu fazer o coque sem desfazer
as tranças. A seguir, colocou a sua touca, cobrindo praticamente tudo. Não a
criticava por querer manter o cabelo assim durante mais algum tempo.
— Oh, chegou uma carta para si, menina — disse a Lucy, entregando-
me um envelope com grande cuidado.
— Obrigada — respondi, incapaz de evitar uma nota de surpresa na
voz. A maior parte das pessoas que poderiam escrever-me estavam neste
momento no palácio. Rasguei o envelope e li o bilhete breve escrito numa
caligrafia deliberadamente pouco cuidada, que me era bem familiar.

Descobri, demasiado tarde, que as famílias da Elite foram


recentemente convidadas para ir ao palácio e que o pai, a mãe e
a May foram visitar-te. Sei que a Kenna está com a gravidez
demasiado avançada para poder viajar e que o Gerad ainda é
muito pequeno. Estou a tentar perceber por que razão não fui
incluído no convite. Sou teu irmão, America.
A única explicação que encontro é que o pai decidiu
deixar-me de fora. Espero sinceramente que não tenhas sido tu.
Nós estarmos os dois à beira de grandes conquistas. As nossas
posições podem ser-nos bastante úteis mutuamente. Se forem
concedidos à tua família quaisquer outros privilégio especiais,
tens de te lembrar de mim, America. Podemos ajudar-nos um ao
outro.
Por acaso falaste de mim ao príncipe? Só por curiosidade.
Escreve em breve.
Kota

Pensei em amarfanhar a carta e atirá-la para o caixote do lixo.


Esperara que o Kota já tivesse desistido do seu alpinismo de castas e
aprendido a contentar-se com o sucesso que alcançara. Pelos vistos, isso
não acontecera. Enfiei a carta no fundo de uma gaveta, decidindo esquecê-
la completamente. A sua inveja não iria estragar esta visita.
A Lucy tocou a campainha para chamar a Anne e a Mary e divertimo-
nos todas imenso a prepararmo-nos. A atitude efervescente da May
manteve-nos a todas bem-dispostas e eu dei por mim a cantar enquanto me
vestia. Pouco depois, a minha mãe apareceu para nos pedir que
confirmássemos se estava bonita.
E estava, claro. Ela era mais baixa e mais cheia do que a rainha, mas
parecia igualmente nobre no seu vestido. Enquanto descíamos as escadas, a
May agarrou-me no braço, parecendo triste.
— O que se passa? Estás contente por ires conhecer a rainha, não
estás?
— Sim. É que...
— O que é?
Ela suspirou.
— Como é que posso voltar a usar roupa cáqui depois disto?
***
As raparigas estavam animadas e toda a gente resplandecia de energia.
A irmã da Natalie, a Lacey, tinha quase a mesma idade que a May e
sentaram-se as duas num canto, a conversar. Era visível a semelhança entre
a Lacey e a irmã. Fisicamente eram as duas magras, loiras e bonitas, mas
enquanto a May e eu éramos opostas em termos de personalidade, a Natalie
e a Lacey eram idênticas. Contudo, eu teria descrito a Lacey como um
pouco menos excêntrica. E um pouco menos aluada do que a irmã.
A rainha passeou pelo salão, conversando com todas as mães e
fazendo perguntas no seu modo doce. Como se as nossas vidas fossem tão
fantásticas como a dela. Eu estava num grupo pequeno, a ouvir a mãe da
Elise a falar sobre a sua família na Nova Asia, quando a May me puxou
pelo vestido, chamando-me à parte.
— May! — repreendi-a em voz baixa. — O que estás a fazer? Não
podes agir assim, principalmente quando a rainha está presente!
— Tens de ver! — insistiu ela.
Ainda bem que a Silvia não estava ali. Não me admiraria se
repreendesse a May por algo deste género, apesar de esta não ter noção do
que fizera.
Fomos até à janela e a May apontou para o exterior.
— Olha!
Espreitei para além dos arbustos e das fontes e vi duas figuras. A
primeira era o meu pai, que falava gesticulando com as mãos como se
perguntasse ou explicasse alguma coisa. A segunda era o Maxon, pensando
antes de responder. Caminhavam devagar e às vezes o meu pai punha as
mãos nos bolsos ou o Maxon colocava as suas atrás das costas. Não sei do
que falavam, mas a conversa parecia importante.
Olhei em volta. As mulheres continuavam envolvidas por aquela
experiência, fascinadas com a rainha, e nenhuma parecia estar a prestar-nos
atenção.
O Maxon parou diante do meu pai e falou de modo decidido. Não se
mostrava agressivo nem zangado, mas parecia determinado. Depois de uma
pausa, o meu pai estendeu-lhe a mão. O Maxon sorriu e apertou-a com
entusiasmo. Um instante depois, pareciam ambos mais descontraídos e o
meu pai deu uma palmada nas costas do Maxon. Este pareceu ficar um
pouco tenso. Não estava habituado a ser tocado. Mas então, o meu pai pôs o
braço sobre os ombros do Maxon, como costumava fazer comigo e com o
Kota, com todos os seus filhos afinal, e o Maxon pareceu gostar muito
disso.
— O que foi aquilo? — perguntei em voz alta.
A May encolheu os ombros.
— Parecia ser importante.
— Pois parecia.
Esperámos para ver se o Maxon conversava com o pai de mais
alguém, mas se o fez, não foi nos jardins.
Capítulo 8

A festa de Halloween foi tão espantosa quanto o Maxon tinha


prometido. Assim que entrei no Grande Salão, com a May ao meu lado,
fiquei pasmada com toda aquela beleza esplendorosa diante dos meus olhos.
Tudo era dourado. As decorações nas paredes, as joias cintilantes nos
candelabros, os copos, os pratos e até mesmo a comida, tudo tinha toques
de ouro. Era simplesmente magnífico.
O sistema de som emitia música popular, mas num canto do salão uma
pequena banda aguardava para tocar as danças tradicionais que tínhamos
aprendido. Havia câmaras, tanto de fotografia como de vídeo, espalhadas
pelo salão. A festa seria, sem dúvida, o ponto alto da programação de Illéa
amanhã. Não poderia haver uma comemoração como esta. Imaginei por
instantes como seria se ainda estivesse aqui no Natal.
Toda a gente usava máscaras lindíssimas. A Marlee estava vestida de
anjo e dançava com o Soldado Woodwork. Até tinha umas asas feitas de
papel iridescente, que flutuavam atrás dela. O vestido da Celeste era curto e
feito de penas; uma pluma comprida na parte de trás da sua cabeça indicava
que se tratava de uma máscara de pavão.
A Kriss estava ao lado da Natalie e ambas pareciam ter combinado. O
corpete do vestido da Natalie estava coberto de flores abertas, enquanto a
saia ampla era feita de um leve tule azul. O vestido da Kriss era dourado
como o salão e estava coberto por camadas de folhas. Se tivesse de
adivinhar, diria que estavam mascaradas de primavera e outono. Era uma
ideia engraçada.
A origem asiática da Elise fora explorada ao máximo. O seu vestido
de seda era uma versão exagerada dos modelos discretos que ela costumava
usar. As mangas drapeadas eram incrivelmente dramáticas e fiquei
impressionada com a sua capacidade de andar com um enfeite de cabeça
extremamente elaborado. Normalmente, a Elise não se destacava, mas hoje
estava linda, quase com um ar de realeza.
Por todo o salão, os parentes e amigos estavam também todos
mascarados e os guardas apresentavam-se igualmente vistosos. Vi um
jogador de basebol, um cowboy, alguém com um fato com um crachá onde
se lia GAVRIL FADAYE e um guarda bastante ousado ao ponto de usar um
vestido. Estava rodeado de algumas raparigas que se riam à gargalhada.
Havia também muitos guardas que vestiam o uniforme de gala, que era
simplesmente composto por calças brancas vincadas e uma casaca azul.
Usavam luvas, mas não tinham chapéu, o que ajudava a distingui-los dos
guardas em serviço que rodeavam o salão.
— Então, o que achas? — perguntei à May, mas quando me virei, ela
já tinha desaparecido no meio da multidão para explorar tudo. Ri-me para
dentro, enquanto percorria a sala com o olhar, tentando encontrar o seu
vestido rodado. Quando ela dissera que queria ir à festa mascarada de
noiva, «como aquelas que vemos na televisão», achei que era uma piada.
Mas, na realidade, ela estava absolutamente encantadora com o seu véu.
— Olá, Lady America — sussurrou alguém ao meu ouvido.
Virei-me sobressaltada e deparei com o Aspen ao meu lado no seu
uniforme de gala.
— Assustaste-me! — exclamei, colocando a mão no coração como se
isso o ajudasse a acalmar-se. O Aspen apenas se riu.
— Gosto da tua máscara — disse ele, jovialmente.
— Obrigada. Eu também gosto.
A Anne transformara-me numa borboleta. O meu vestido era
afunilado, desde a frente até à parte de trás, feito de um material esvoaçante
debruado a preto, que ondulava à minha volta. Uma pequena máscara,
imitando as asas de uma borboleta, tapava-me os olhos e dava-me um ar
misterioso.
— Porque não te mascaraste? — perguntei. — Não tiveste nenhuma
ideia?
Ele encolheu os ombros.
— Prefiro o uniforme.
— Oh... — Desperdiçar um ótimo pretexto para ser extravagante
parecia-me uma tristeza e o Aspen tinha ainda menos oportunidades do que
eu nesse campo, portanto, porque não aproveitar?
— Queria apenas dizer «olá» e ver como estavas.
— Ótima — respondi com rapidez. Sentia-me tão desconfortável.
— Oh... — Ele pareceu descontente. — Tudo bem, então.
Talvez ele esperasse uma resposta melhor, depois do seu pequeno
discurso dias antes, mas eu ainda não estava preparada para dizer nada. Ele
fez-me uma ligeira vénia e afastou-se para falar com outro guarda, que o
abraçou como a um irmão. Perguntei-me se o facto de ser guarda lhe dava a
sensação de pertencer a uma família, tal como eu sentira em relação à
Seleção.
Pouco depois, a Marlee e a Elise encontraram-me e arrastaram-me
para a pista de dança. Enquanto dançava, tentando não chocar com
ninguém, reparei no Aspen à beira da pista a conversar com a minha mãe e
a May. A minha mãe passou a mão pela manga dele, como se estivesse a
endireitá-la, e a May estava radiante. Conseguia imaginá-las a dizer-lhe
como estava bonito no seu uniforme e como a sua mãe ficaria orgulhosa se
pudesse vê-lo. Ele retribuiu o sorriso e era visível que também estava muito
satisfeito. O Aspen e eu éramos duas raridades: uma Cinco e um Seis
arrancados das suas vidas monótonas e colocados no palácio. A Seleção
transformara tanto a minha vida que às vezes me esquecia de apreciar a
experiência.
Dancei num círculo com algumas das outras raparigas e alguns
guardas até a música acalmar e o dj começar a falar.
— Senhoras da Seleção, cavalheiros da guarda e amigos e parentes da
família real, por favor, deem as boas-vindas ao Rei Clarkson, à Rainha
Amberly e ao Príncipe Maxon Schreave!
A banda começou a tocar e todos nós fizemos uma vénia à família
real, assim que entraram. O rei estava aparentemente vestido de rei, só que
de um outro país. Não percebi o significado. O vestido da rainha era de um
azul tão escuro que parecia preto, todo enfeitado com brilhantes. Parecia o
céu noturno. E o Maxon era, comicamente, um pirata. Tinha as calças
cheias de rasgões, usava uma camisa folgada com um colete por cima e um
lenço na cabeça. Para aumentar ainda mais o efeito, não se barbeara durante
um dia ou dois, de modo que uma sombra de pelos loiros escuros cobria a
metade inferior do seu rosto como um sorriso.
O dj pediu-nos para abrirmos espaço para o rei e a rainha dançarem a
sua primeira dança. O Maxon colocou-se num dos lados, junto da Kriss e da
Natalie, sussurrando-lhes coisas e fazendo-as rir. Finalmente, notei que
varria salão com o olhar. Não sabia se estava à minha procura ou não, mas
não queria ser apanhada a olhar para ele. Ajeitei o meu vestido e olhei para
os pais dele. Pareciam muito felizes.
Pensei na Seleção e em toda a loucura que a compunha, mas não
podia contestar os seus resultados: o Rei Clarkson e a Rainha Amberly
tinham sido feitos um para o outro. Ele parecia enérgico e ela compensava
isso com uma natureza calma. Ela era uma ouvinte silenciosa, ao passo que
ele parecia ter sempre algo a dizer. Embora tudo aquilo devesse ser
considerado arcaico e errado, funcionava.
Será que eles se tinham distanciado durante a sua Seleção, tal como eu
sentia o Maxon a distanciar-se de mim? Por que razão é que ele não fizera
uma única tentativa para me ver no meio dos seus encontros com todas as
outras? Talvez fosse por isso que estivera a falar com o meu pai, para lhe
explicar por que razão precisava de me mandar embora. O Maxon era uma
pessoa educada e isso parecia ser algo que ele faria.
Observei a multidão à procura do Aspen e, enquanto o fazia, vi que o
meu pai chegara finalmente e estava de braço dado com a minha mãe do
outro lado do salão. A May tinha encontrado a Marlee e arranjara um
espaço à sua frente, enquanto esta punha os braços em volta do peito da
May, num gesto fraternal. Os vestidos brancos de ambas brilhavam sob as
luzes. Não me surpreendia nada o facto de as duas se terem aproximado
tanto em menos de um dia. Suspirei. Onde estava o Aspen?
Num último esforço, olhei para trás e ali estava ele, mesmo junto a
mim, a apoiar-me como sempre. Quando os nossos olhares se encontraram,
ele piscou-me rapidamente o olho e esse gesto fez-me sentir imediatamente
melhor.
Assim que o rei e a rainha terminaram a sua dança, voltámos a ocupar
a pista. Os guardas movimentavam-se de um lado para o outro,
emparelhando facilmente com as raparigas. O Maxon continuava de pé,
num dos lados do salão, junto da Kriss e da Natalie. Esperava que ele talvez
viesse convidar-me para dançar. Eu é que não queria chamá-lo.
Controlando os nervos, ajeitei o vestido e caminhei na sua direção.
Decidi que iria, pelo menos, dar-lhe a oportunidade de me convidar.
Atravessei a pista de dança com a intenção de me meter na conversa deles.
Quando já estava suficientemente perto para o fazer, o Maxon virou-se para
a Natalie.
— Quer dançar? — perguntou.
Ela riu-se, inclinando a cabeça loira como se isso fosse a coisa mais
óbvia do mundo, e eu passei por eles, com os olhos cravados numa mesa
com chocolates, como se essa tivesse sido sempre a minha intenção.
Mantive-me de costas para a sala, enquanto comia aqueles doces
maravilhosos, esperando que ninguém reparasse nas minhas faces
escarlates.
Depois de cerca de meia dúzia de músicas, o Soldado Woodwork
apareceu ao meu lado. Tal como o Aspen, preferira usar o seu uniforme.
— Lady America... — disse ele, com uma vénia. — Dá-me a honra
desta dança?
A sua voz era alegre e calorosa e senti-me contagiada pelo seu
entusiasmo. Estendi-lhe descontraidamente a mão.
— Com certeza, senhor — respondi. — Devo contudo preveni-lo de
que não tenho muito jeito para isto.
— Não há problema. Vamos devagar. — O seu sorriso era tão
convidativo que deixei de me preocupar com a minha péssima técnica de
dança e segui-o alegremente até à pista.
A música era animada, o que combinava com o estado de espírito
dele. Falou tanto que era difícil acompanhá-lo. Afinal, devagar era só em
teoria.
— Parece já estar completamente recuperada do nosso encontrão do
outro dia — gracejou ele.
— Foi uma pena não me ter magoado — retorqui. — Se estivesse de
muletas, não precisaria de dançar.
Ele riu-se.
— Fico contente por ser realmente tão engraçada como todos dizem.
Também ouvi dizer que é a favorita do príncipe. — Ele falou como se isso
fosse do conhecimento geral.
— Isso não sei. — Parte de mim estava farta de que as pessoas o
dissessem. Outra parte ansiava que isso ainda fosse verdade.
Olhei por cima do ombro do Soldado Woodwork e vi o Aspen a
dançar com a Celeste. A imagem provocou-me um nó no estômago.
— Parece que se dá bem com quase toda a gente. Alguém disse que,
durante o último ataque, levou as suas aias consigo para o abrigo da família
real. É verdade? — Ele parecia maravilhado.
Na altura, fora completamente normal para mim proteger aquelas
raparigas que eu adorava, mas para todos os outros, o meu ato foi
considerado ousado ou estranho.
— Não podia deixá-las para trás — expliquei.
Ele abanou a cabeça, surpreendido.
— A menina é uma verdadeira lady.
— Obrigada — respondi, corando.
Fiquei sem fôlego depois da dança e sentei-me numa das muitas
mesas espalhadas pelo salão. Bebi ponche de laranja e abanei-me com um
guardanapo, enquanto observava os outros a dançarem na pista. Vi o Maxon
com a Elise. Pareciam felizes enquanto giravam em círculos. Ele já tinha
dançado duas vezes com a Elise e ainda não me procurara.
Demorei algum tempo para descobrir o Aspen na pista, já que havia
bastantes homens de uniforme. Por fim, descobri-o num canto a conversar
com a Celeste. Vi-a fazer-lhe olhinhos e os seus lábios curvarem-se num
sorriso sedutor.
Quem é que ela pensa que é? Levantei-me para ir mandá-la parar com
aquilo, mas percebi, antes de dar o primeiro passo, o que esse gesto
implicaria para o Aspen e para mim. Sentei-me novamente e continuei a
bebericar o meu ponche. Quando a música acabou, já tinha mudado
novamente de lugar e posicionei-me suficientemente perto do Aspen para
que ele pudesse convidar-me para dançar sem que isso parecesse estranho.
E foi o que ele fez, e ainda bem, porque acho que não teria conseguido
ser paciente.
— Mas que raio foi aquilo? — perguntei em voz baixa, mas cla‐
ramente indignada.
— Aquilo o quê?
— A Celeste a esfregar-se toda em ti!
— Alguém está com ciúmes — cantarolou-me ele ao ouvido.
— Para com isso! Ela não pode agir assim; é contra as regras!
Olhei em volta para me certificar de que ninguém, principalmente os
meus pais, poderia reparar no tom íntimo da nossa conversa. Vi a minha
mãe sentada a conversar com a mãe da Natalie. O meu pai tinha
desaparecido.
— E logo vindo da tua boca — disse o Aspen, revirando os olhos na
brincadeira. — Se não estamos juntos, não podes proibir-me de falar com
quem eu quiser.
Fiz-lhe uma careta.
— Tu sabes que não é assim.
— Então, como é? — sussurrou ele. — Não sei se devo esperar ou
desistir. — Abanou a cabeça. — Não quero desistir, mas se não há razão
para ter esperanças, diz-me.
Eu conseguia ver o esforço que ele fazia para manter o rosto tão
calmo, a tristeza transparecendo na sua voz. E magoava-me.
Pensar em pôr fim a isto era como uma facada no meu peito. Respirei
fundo e confessei.
— Ele tem-me evitado. Diz «olá», mas ultimamente tem andado
muito ocupado com encontros com as outras. Acho que devo ter imaginado
que ele gostava realmente de mim.
O Aspen parou de dançar por um instante, chocado com as minhas
palavras. Recuperou o ritmo imediatamente e estudou o meu rosto por um
momento.
— Não tinha percebido que era isso que estava a passar-se — disse,
suavemente. — Sabes que quero ficar contigo, mas não queria que te
magoasses.
— Obrigada. — Encolhi os ombros. — Sinto-me mais idiota do que
outra coisa.
O Aspen puxou-me mais para si, mas mantendo uma distância
respeitosa entre nós, embora eu soubesse que não era esse o seu desejo.
— Acredita em mim, Mer, qualquer homem que deixe escapar a
oportunidade de ficar contigo é um verdadeiro idiota.
— Tu tentaste deixar escapar essa oportunidade — recordei-lhe.
— É por isso que sei — respondeu ele, com um sorriso. Fiquei feliz
por já conseguirmos gracejar sobre o assunto.
Olhei por cima do ombro do Aspen e vi o Maxon a dançar com a
Kriss. Novamente. Será que ele não iria convidar-me nem para uma dança?
O Aspen inclinou-se para mim.
— Sabes o que me lembra esta dança?
— O quê?
— A festa de aniversário dos dezasseis anos da Fern Tally.
Olhei para ele como se estivesse doido. Eu lembrava-me da festa dos
dezasseis anos da Fern. A Fern era uma Seis e às vezes ajudava a minha
família quando a mãe do Aspen estava demasiado ocupada. A sua festa dos
dezasseis anos aconteceu uns sete meses depois de o Aspen e eu termos
começado a namorar. Fomos ambos convidados, mas não foi uma grande
festa. Um bolo e água, o rádio ligado, porque ela não tinha discos, e a meia-
luz da sua cave inacabada. O ponto importante era o facto de se tratar da
primeira festa a que fui que não era uma festa de «família». Eram apenas os
miúdos do bairro sozinhos numa sala e isso era empolgante. Contudo, não
era nada comparado com o esplendor do que estava agora a acontecer à
nossa volta.
— Como é que esta festa pode ser parecida com aquela? — perguntei,
cética.
O Aspen engoliu em seco e disse:
— Nós dançámos. Lembras-te? Senti-me tão orgulhoso por te ter ali,
nos meus braços, em frente de outras pessoas. Ainda que tu parecesses estar
a ter um ataque. — E piscou-me o olho.
Aquelas palavras agitaram-me o coração. Lembrava-me disso.
Durante semanas, alimentara-me da memória dessa dança.
E, num instante, os milhares de segredos que o Aspen e eu tínhamos
construído e guardado inundaram-me a mente: os nomes que tínhamos
escolhidos para os nossos filhos imaginários, a nossa casa na árvore, aquele
sítio na parte de trás do pescoço onde ele sentia cócegas, os bilhetes que
tínhamos escrito e escondido, as minhas tentativas falhadas de fazer sabão
caseiro, os jogos do galo jogados com os nossos dedos sobre a sua barriga,
onde não conseguíamos lembrar-nos das nossas jogadas invisíveis... jogos
que ele me deixava ganhar sempre.
— Diz-me que vais esperar por mim. Se esperares por mim, Mer,
consigo aguentar qualquer coisa — sussurrou-me ele ao ouvido.
A música mudou para uma canção tradicional e um soldado próximo
convidou-me para dançar. Fui levada, deixando sem respostas tanto o
Aspen quanto eu própria.
A noite continuou e dei por mim, mais de uma vez, a olhar para o
Aspen. Embora tentasse parecer natural, aposto que qualquer pessoa
realmente atenta teria notado, principalmente o meu pai, se ele estivesse no
salão. Mas ele parecia mais interessado em passear pelo palácio do que em
dançar.
Tentei distrair-me com a festa e devo ter dançado com toda a gente,
exceto o Maxon. Estava sentada a descansar os meus pés exaustos, quando
ouvi a sua voz ao meu lado:
— Menina?
Virei-me e encarei-o.
— Dá-me a honra desta dança?
Aquela sensação, aquela coisa impossível de definir, percorreu o meu
corpo. Por mais desanimada que estivesse, por mais embaraçada que me
tivesse sentido, quando ele me ofereceu aquele instante, eu tinha de o
aceitar.
— Claro.
Ele pegou-me na mão e conduziu-me à pista, onde a banda começava
a tocar uma música lenta. Senti uma onda de felicidade. Ele não parecia
irritado nem incomodado. Pelo contrário, o Maxon apertava-me tanto contra
si que eu conseguia cheirar o seu perfume e sentir a sua barba curta contra a
minha face.
— Estava a pensar se iria conseguir uma dança contigo — comentei,
tentando soar brincalhona.
O Maxon apertou-me ainda mais contra si.
— Estava a guardar esta. Passei algum tempo com todas as outras
raparigas; por isso, já cumpri as minhas obrigações. Agora, posso desfrutar
do resto da noite contigo.
Corei, como sempre acontecia quando ele me dizia coisas destas. Às
vezes, as suas palavras eram como versos poéticos. Depois da semana
anterior, achava que nunca mais iria ouvi-lo falar assim comigo. O meu
coração acelerou.
— Estás linda, America. Demasiado bonita para estares nos braços de
um pirata desleixado.
Ri-me.
— Que máscara é que poderias ter usado para combinarmos? Uma de
árvore?
— No mínimo, algum tipo de arbusto.
Ri-me novamente.
— Pagava para te ver vestido de arbusto!
— Para o ano — prometeu ele.
Olhei para ele. Para o ano?
— Gostarias que tivéssemos outra festa de Halloween no próximo
outubro? — perguntou ele.
— Será que vou estar aqui no próximo outubro?
O Maxon parou de dançar.
— E porque não estarias?
Encolhi os ombros.
— Passaste toda a semana a evitar-me e a sair com as outras. E... vi-te
a falar com o meu pai. Pensei que talvez estivesses a explicar-lhe o motivo
por que tinhas de mandar embora a filha dele. — Engoli em seco. Não iria
chorar ali.
— America...
— Eu percebo. Alguém tem de sair e eu sou uma Cinco e a Marlee é a
favorita do povo...
— America, para — disse ele, suavemente. — Sou um grande idiota.
Não fazia ideia de que verias as coisas assim. Achei que te sentias segura na
tua condição.
Havia alguma coisa que eu não estava a perceber.
O Maxon suspirou.
— Queres saber a verdade? Eu estava a tentar dar às outras uma
hipótese para competirem. Desde o início que só olhei para ti, só te quis a ti.
Corei.
— Quando me disseste como te sentias, fiquei tão aliviado que parte
de mim não acreditou. Ainda me custa aceitar que aquilo foi real. Ficarias
surpreendida se soubesses como é raro eu conseguir algo que realmente
quero. — Os olhos do Maxon escondiam alguma coisa, uma tristeza que ele
não estava preparado para partilhar. Mas ele afastou esses pensamentos e
continuou a sua explicação, voltando a balançar-se ao ritmo da música.
— Tinha medo de estar enganado, de que tu mudasses de ideias a
qualquer instante. Tentei procurar uma alternativa adequada, mas a verdade
é que... — O Maxon olhou-me fixamente, sem qualquer hesitação. — Só
existes tu. Talvez eu não esteja realmente à procura, talvez elas não sirvam
para mim. Não importa. Só sei que te quero a ti. E isso assusta-me. Estive à
espera de que voltasses com a palavra atrás, que pedisses para sair.
Demorei alguns instantes para recuperar o fôlego. De repente, todo
aquele tempo em que estivemos afastados pareceu-me diferente.
Compreendia essa sensação; a de que era demasiado bom para ser verdade,
demasiado bom para acreditar. Sentia-me assim sempre que estava com ele.
— Maxon, isso não vai acontecer — sussurrei contra o seu pescoço.
— Tu é que vais perceber que eu não sirvo.
Os lábios dele estavam junto do meu ouvido.
— Querida, tu és perfeita.
Com o braço que colocara nas suas costas, puxei-o contra mim e ele
fez o mesmo até ficarmos mais próximos fisicamente do que nunca. No
fundo da minha mente, sabia que estávamos num salão cheio de gente, que
algures a minha mãe estaria provavelmente a desmaiar perante a cena, mas
não me importei. Naquele momento, sentia-me como se estivéssemos
sozinhos no mundo.
Afastei-me um pouco para olhar para o Maxon, percebendo que tinha
de limpar as lágrimas dos olhos para o fazer. Mas eu gostava daquelas
lágrimas.
O Maxon explicou tudo:
— Quero que avancemos com calma. Quando eu anunciar a dispensa
amanhã, isso irá apaziguar o povo e também o meu pai, mas não quero de
modo nenhum apressar-te. Quero que vejas a suíte da princesa. É ao lado da
minha — disse ele, cm voz baixa.
A ideia de estar tão perto dele o tempo todo deixou-me trémula.
— Acho que deves começar a escolher o que queres ter lá. Quero que
te sintas completamente à vontade. Também vais ter de escolher mais
algumas aias e decidir se queres a tua família no palácio ou algures aqui
perto. Eu ajudo-te em tudo.
Uma batida fraca do meu coração sussurrou: E o Aspen? Mas estava
tão absorvida pelo Maxon que mal a ouvi.
— Em breve, quando for adequado terminar a Seleção, quando pedir a
tua mão em casamento, quero que seja tão fácil para ti aceitares-me quanto
respirar. Prometo fazer tudo o que estiver ao meu alcance entre este
momento e essa altura para que assim seja. Tudo o que precisares, tudo o
que quiseres, só tens de o dizer. Farei tudo que puder por ti.
Eu estava avassalada. Ele compreendia-me tão bem; sabia o quanto eu
estava nervosa por aceitar aquele compromisso, o quanto me assustava a
perspetiva de ser princesa. Estava disposto a dar-me cada segundo que
pudesse e, entretanto, iria oferecer-me tudo o que conseguisse. Tive outra
vez aquela sensação de incredulidade em relação a tudo o que estava a
acontecer.
— Isso não é justo, Maxon — murmurei. — O que é que eu posso
dar-te em troca?
Ele sorriu.
— Tudo o que quero é que prometas ficar comigo, ser minha. Às
vezes, parece-me impossível que existas mesmo. Promete-me que ficas.
— Claro que prometo.
Dizendo isso, apoiei a cabeça no seu ombro e dançámos devagar uma
música atrás da outra. A May viu-me e parecia estar prestes a rebentar de
felicidade por nos ver juntos. A minha mãe e o meu pai também olhavam
para nós e o meu pai sacudiu a cabeça como se dissesse: E tu achavas que
irias ser mandada embora.
E então, lembrei-me de uma coisa.
— Maxon? — perguntei, erguendo o rosto para ele.
— Sim, querida?
Sorri perante o nome carinhoso.
— Porque é que estiveste a conversar com o meu pai?
O Maxon riu-se:
— Ele sabe das minhas intenções e, para tua informação, ele aprova
de todo o coração, desde que sejas feliz. Essa foi a sua única condição.
Assegurei-lhe que faria tudo o que estivesse ao meu alcance para te fazer
feliz e disse-lhe que já parecias sê-lo aqui.
— E sou.
Senti o peito do Maxon encher-se.
— Então, ele e eu já temos tudo o que precisamos.
A mão do Maxon deslizou um pouco, apoiando-se no fundo das
minhas costas, incentivando-me a permanecer perto dele. Aquele toque
revelava-me tantas coisas. Eu sabia que isto era real, que estava a acontecer
e que podia acreditar. Sabia que, se necessário, abriria mão das amizades
que fizera aqui, embora tivesse a certeza de que a Marlee não se importaria
nem um bocadinho com a derrota. E sabia que extinguiria a chama que
mantinha acesa pelo Aspen. Seria um processo lento e teria de o revelar ao
Maxon, mas fá-lo-ia.
Porque agora eu era dele. Eu sabia-o. Nunca tivera tanta certeza.
Pela primeira vez, conseguia ver tudo: a nave, os convidados à espera
e o Maxon de pé no altar. Com aquele toque, tudo fazia sentido.
A festa continuou até de madrugada, quando o Maxon nos arrastou às
seis até à varanda, na parte da frente do palácio, para termos a melhor vista
dos fogos de artifício. A Celeste tropeçava enquanto subia os degraus de
mármore e a Natalie ficara com o chapéu de algum infeliz guarda. Havia
champanhe a rodos e o Maxon comemorava antecipadamente o nosso
noivado com uma garrafa que guardou só para si.
Assim que os fogos iluminaram o céu, o Maxon ergueu a sua garrafa.
— Um brinde! — exclamou.
Erguemos as taças e esperámos ansiosas. Notei que a taça da Elise
estava manchada com o batom escuro que ela usava e até mesmo a Marlee
levantou a sua taça discretamente, preferindo bebericar em vez de beber um
grande gole.
— A todas vós, minhas lindas senhoras. E à minha futura esposa! —
exclamou o Maxon.
As raparigas aplaudiram, cada uma pensando que o brinde poderia ser
especialmente para si. Mas eu sabia a verdade. Enquanto todas bebiam,
olhei para o Maxon — o meu quase noivo —, que me piscou discretamente
o olho antes de beber mais um gole de champanhe. O brilho e a emoção de
toda esta noite eram estonteantes, como se uma fogueira de felicidade me
engolisse por completo.
Não era capaz de imaginar nada que conseguisse roubar-me toda
aquela felicidade.
Capítulo 9

Mal consegui dormir. Entre a festa ter terminado tão tarde e a


excitação pelo que estava para vir, era impossível. Enrosquei-me mais perto
da May, reconfortada pelo seu calor. Iria sentir imenso a sua falta quando
ela se fosse embora, mas pelo menos podia antecipar a perspetiva de que ela
viria a morar aqui comigo.
Fiquei a pensar em quem seria dispensada hoje. Não me parecera
adequado perguntar e, portanto, não perguntei, mas se tivesse de o dizer, o
meu palpite seria a Natalie. A Marlee e a Kriss eram populares junto do
público, mais do que eu, e a Celeste e a Elise tinham contactos. Eu tinha o
coração do Maxon, o que deixava a Natalie sem nada onde se agarrar.
Senti-me mal, porque não tinha nada contra ela. Na verdade, o meu
desejo era que a Celeste se fosse embora. Talvez o Maxon a mandasse para
casa, já que sabia o quanto eu a detestava e ele tinha dito que queria que eu
me sentisse confortável no palácio.
Suspirei, pensando em tudo o que ele dissera na noite anterior. Nunca
imaginara que isto pudesse ser possível. Como é que eu, America Singer,
uma Cinco, uma zé-ninguém, me fora apaixonar pelo Maxon Schreave da
casta Um, o Um? Como é que isto tinha acontecido, quando eu passara os
dois últimos anos a preparar-me para uma vida como Seis?
Um pedacinho do meu coração pulsava de dor. Como é que iria
explicar isto ao Aspen? Como é que iria dizer-lhe que o Maxon me
escolhera e que eu queria ficar com ele? Será que ele me odiaria? Esse
pensamento deu-me vontade de chorar. Independentemente do que
acontecesse, não queria perder a amizade do Aspen. Não podia.
As minhas aias não bateram à porta antes de entrarem, o que era
habitual. Tentavam sempre deixar-me descansar o máximo possível e,
depois da festa, eu estava mesmo a precisar. Mas, em vez de começarem a
preparar as coisas, a Mary aproximou-se da May e tocou-lhe suavemente no
ombro para a acordar.
Virei-me na cama e vi a Anne e a Lucy com um saco para roupa.
Outro vestido novo?
— Menina May — sussurrou a Mary são horas de acordar.
A May despertou lentamente.
— Não posso dormir mais?
— Não — respondeu a Mary, com tristeza. — Há um assunto im‐
portante esta manhã. Tem de ir imediatamente ter com os seus pais.
— Um assunto importante? — perguntei. — O que se passa?
A Mary olhou para a Anne e eu fiz o mesmo. A Anne abanou a cabeça
e ninguém disse mais nada.
Confusa, mas esperançosa, saí da cama e incentivei a May a fazer o
mesmo. Dei-lhe um abraço apertado antes de ela ir para o quarto dos nossos
pais.
Assim que ela saiu, olhei para as minhas aias.
— Podem explicar-me, agora que ela já saiu? — perguntei à Anne.
Ela abanou a cabeça. Respirei fundo, frustrada.
— Ajuda se eu vos ordenar que falem?
Ela encarou-me com os olhos cheios de solenidade.
— As nossas ordens vêm de muito mais alto. Vai ter de esperar.
Fiquei em pé à porta da casa de banho, vendo-as moverem-se. As
mãos da Lucy tremiam enquanto ela arrancava pétalas de rosa para o meu
banho e a Mary tinha a testa franzida enquanto alinhava a minha
maquilhagem e os meus ganchos de cabelo. A Lucy estremecia às vezes
sem qualquer motivo e a Mary costumava fazer aquela expressão quando
estava concentrada. Era o olhar da Anne que me assustava.
Ela nunca perdia a compostura, mesmo nas situações mais as‐
sustadoras e enervantes, mas hoje parecia que tinha o corpo cheio de areia,
movendo-se com os ombros e as costas curvados de preocupação. Parava e
esfregava a testa a todo instante, como se pudesse assim eliminar a
ansiedade do seu rosto.
Olhei enquanto ela tirava o meu vestido do saco. Era discreto,
simples... e totalmente preto. Assim que olhei para o vestido, soube que só
poderia significar uma coisa. Comecei a chorar antes mesmo de saber por
quem.
— Menina? — A Mary veio em meu auxílio.
— Quem morreu? — perguntei. — Quem morreu?
A Anne, sempre controlada, endireitou-me e enxugou-me as lágrimas.
— Ninguém morreu — disse ela, mas a sua voz não era reconfortante;
era autoritária. — Sinta-se grata por isso quando tudo acabar. Ninguém
morreu hoje.
Não me deu mais explicações e mandou-me para o banho. A Lucy
tentava controlar-se, mas quando rompeu finalmente em lágrimas, a Anne
pediu-lhe para me ir buscar algo leve para comer. Ela obedeceu
imediatamente e nem sequer me fez uma reverência antes de sair.
A Lucy voltou com alguns croissants e umas fatias de maçã. Eu
queria sentar-me e comer devagar, esticando o tempo ao máximo, mas
bastou uma dentada para perceber que a comida não era minha aliada
naquele dia.
Por fim, a Anne colocou-me no peito o alfinete com o meu nome. O
prateado do alfinete brilhava ainda mais contra o preto do meu vestido. Não
me restava mais nada a fazer senão enfrentar este destino inimaginável.
Abri a porta do quarto e senti-me gelar. Virando-me para as minhas
aias, disse receosa:
— Tenho medo.
A Anne pôs-me as mãos nos ombros e disse:
— A menina é uma lady agora. Tem de enfrentar esta situação como
uma lady.
Assenti ligeiramente com a cabeça quando ela me soltou, larguei a
porta e afastei-me. Gostaria de poder dizer que mantinha a cabeça erguida,
mas, para ser sincera, lady ou não, estava aterrorizada.
Para minha grande surpresa, ao chegar ao foyer, encontrei as outras à
espera. Vestiam todas vestidos semelhantes ao meu e tinham a mesma
expressão no rosto. Senti uma onda de alívio. Eu não estava metida em
sarilhos. Quanto muito, estávamos todas; por isso, pelo menos, não passaria
sozinha por o que quer que isto fosse.
— Aí está a quinta — disse um guarda para o seu companheiro. —
Sigam-nos, senhoras.
Quinta? Aquilo não estava certo. Éramos seis. Percorri rapidamente as
outras com o olhar, enquanto descíamos as escadas. O guarda tinha razão.
Éramos apenas cinco. A Marlee não estava ali.
O meu primeiro pensamento foi que o Maxon mandara a Marlee para
casa. Mas se assim fosse, ela não teria passado pelo meu quarto para se
despedir? Tentei pensar em alguma ligação entre todo este segredo e a
ausência da Marlee, mas não me ocorreu nada que fizesse sentido.
No fundo das escadas, um grupo de soldados aguardava-nos
juntamente com as nossas famílias. Os meus pais e a May pareciam
ansiosos. Toda gente parecia. Olhei para eles em busca de algum
esclarecimento, mas a minha mãe abanou a cabeça e o meu pai encolheu os
ombros. Procurei o Aspen entre os homens de uniforme. Não estava ali.
Vi dois guardas escoltarem os pais da Marlee até ao fim da nossa fila.
A mãe estava curvada de preocupação e apoiava-se no marido, cuja
expressão era grave, como se tivesse envelhecido anos numa única noite.
Esperem. Se a Marlee se tinha ido embora, por que razão é que eles
ainda estavam ali?
Virei-me quando uma explosão de luz invadiu o foyer. Pela primeira
vez, desde que chegara ao palácio, ambas as portas da frente foram
escancaradas e fomos todos conduzidos para o exterior. Percorremos o
pequeno caminho circular da entrada e passámos pelas enormes muralhas
que circundavam os jardins. Assim que os portões se abriram com um
rangido, fomos saudados pelo barulho ensurdecedor de uma enorme
multidão.
Um grande palanque fora montado na rua. Centenas de pessoas, talvez
milhares, apinhavam-se ali com os filhos aos ombros. Havia câmaras
posicionadas em redor da plataforma e os membros da equipa de produção
corriam diante da multidão, captando a cena. Fomos levados para uma
pequena arquibancada e a multidão ovacionou-nos quando aparecemos.
Reparei que os ombros de cada rapariga à minha frente se descontraíam, à
medida que as pessoas na rua gritavam os nossos nomes e lançavam flores
aos nossos pés.
Ergui a mão, acenando, quando ouvi dizerem o meu nome. Senti-me
tão tola por ter ficado preocupada. Se a multidão estava assim tão feliz, não
poderia estar a acontecer nada de mal. Os funcionários do palácio
precisavam realmente de repensar o modo como lidavam com a Elite. Toda
aquela ansiedade para nada.
A May ria-se, feliz por fazer parte daquele entusiasmo e eu estava
aliviada por vê-la novamente à vontade. Tentei dar conta de todos os que
nos aplaudiam, mas a minha atenção foi atraída por duas estruturas
estranhas em cima do palanque. A primeira era uma geringonça semelhante
a uma escada em forma de A; a segunda era um grande bloco de madeira
com argolas nas duas pontas. Com um guarda ao meu lado, subi até ao meu
assento no meio da primeira fila e tentei perceber o que estava a acontecer.
A multidão explodiu novamente quando o rei, a rainha e o Maxon
surgiram. Também eles estavam vestidos de escuro e tinham expressões
sérias nos rostos. Como estava próxima do Maxon, virei-me na sua direção.
O que quer que fosse que estava a acontecer, se ele olhasse para mim e
sorrisse, eu saberia que estava tudo bem. Fiquei à espera que ele olhasse
para mim, que me desse algum sinal de que me via, mas o seu rosto estava
impassível.
Um instante depois, as ovações da multidão transformaram-se em
gritos de desdém. Virei-me para ver o que os deixara tão desagradados
O meu estômago contorceu-se e o meu mundo desfez-se diante dos
meus olhos.
O Soldado Woodwork estava a ser arrastado, preso por correntes.
Tinha os lábios a sangrar e as suas roupas estavam tão sujas que parecia ter
passado a noite inteira a rebolar na lama. Atrás dele vinha a Marlee,
também acorrentada, com a sua lindíssima máscara de anjo coberta de
sujidade e sem as asas. Um casaco tapava-lhe os ombros curvados e ela
franziu os olhos perante a luz. Contemplou a enorme multidão, encontrando
o meu olhar por um instante, antes de voltar a ser puxada para a frente. Ela
levantou novamente os olhos, em busca de alguém, e eu podia adivinhar
quem procurava. À minha esquerda, os pais da Marlee observavam tudo,
abraçados um ao outro. Estavam visivelmente destroçados, longe deste
sítio, como se os seus corações os tivessem abandonado.
Voltei a olhar para a Marlee e para o Soldado Woodwork. Apesar da
angústia óbvia nos seus rostos, ambos caminhavam com um certo orgulho.
Só uma vez, quando a Marlee tropeçou na bainha do seu vestido, é que esse
verniz estalou. Por baixo, o terror esperava.
Não. Não, não, não, não, não.
Enquanto eram ambos conduzidos ao palanque, um homem com uma
máscara começou a falar. A multidão calou-se para ouvir. Aparentemente, o
que quer que isto fosse já acontecera antes e as pessoas sabiam como agir.
Mas eu não; o meu corpo inclinava-se para a frente e o meu estômago
estava pesado. Ainda bem que não tinha comido.
— Marlee Tames — anunciou o homem —, uma das Selecionadas,
uma Filha de Illéa, foi encontrada na noite passada num momento de
intimidade com este homem, Carter Woodwork, um membro de confiança
da Guarda Real.
A voz do pregoeiro estava carregada de uma certa arrogância
inadequada, como se ele estivesse a recitar a cura para uma doença mortal.
A multidão vaiou ao ouvir as acusações.
— A Menina Tames quebrou o seu voto de lealdade para com o nosso
Príncipe Maxon! E o Senhor Woodwork roubou essencialmente uma
propriedade da família real, com a Menina Tames! Estas ofensas constituem
um crime de traição à família real!
Por esta altura, o pregoeiro já falava aos berros, como que pedindo a
aprovação da multidão e esta concedeu-a.
Mas como é que era possível agirem assim? Não sabiam que se
tratava da Marlee? Da doce, bela, confiável e generosa Marlee? Talvez ela
tivesse cometido um erro, mas nada que merecesse tanto ódio.
O Carter foi amarrado por outro mascarado à armação em forma de A.
As suas pernas e braços foram afastados e puxados para se adaptarem à
estrutura. Colocaram-lhe cintos almofadados em volta da cintura e das
pernas, tão apertados que era desconfortável até para quem observava. A
Marlee foi forçada a ajoelhar-se diante do grande bloco de madeira e um
homem arrancou-lhe o casaco das costas. Amarraram-lhe os pulsos às
argolas dos dois lados, com as palmas das mãos viradas para cima.
Ela chorava.
— Este crime é punível com a pena de morte! Mas, na sua
misericórdia, o Príncipe Maxon decidiu poupar a vida destes dois traidores.
Longa vida ao Príncipe Maxon!
A multidão fez coro com o pregoeiro. Se eu estivesse de cabeça
serena, teria sabido que era suposto repetir a frase ou, pelo menos, aplaudir.
Foi o que as raparigas ao meu lado fizeram, bem como os nossos pais, ainda
que em choque. Mas eu não estava a prestar atenção. Tudo o que via eram
os rostos da Marlee e do Carter.
Não era por acaso que nos tinham dado lugares na primeira fila;
queriam mostrar-nos o que acontecia se cometêssemos um erro idiota como
este. Mas de onde eu estava, a menos de seis metros do palanque, podia ver
e ouvir tudo o que realmente importava.
A Marlee olhava intensamente para o Carter e este retribuía o olhar,
esticando o pescoço para o fazer. O seu medo era visível, mas havia
também uma outra expressão no rosto dela, como se tentasse dizer-lhe que
ele valia tudo aquilo.
— Eu amo-te, Marlee — gritou-lhe ele. Era quase inaudível por cima
do barulho da multidão, mas consegui ouvi-lo. — Vamos ficar bem. Vai
correr tudo bem, prometo.
A Marlee estava tão assustada que não conseguia responder, mas fez-
lhe que sim com a cabeça. Naquele momento, eu só conseguia pensar em
como ela estava linda. Os seus cabelos dourados estavam uma desgraça, o
seu vestido era um desastre e ela perdera os sapatos algures; mas, meu
Deus, parecia radiosa.
— Marlee Tames e Carter Woodwork, a partir deste momento, ficam
ambos destituídos das vossas castas. São agora os mais baixos entre os
inferiores. São Oito!
A multidão aplaudiu, o que me pareceu um erro. Será que não havia
ali nenhum Oito que não gostasse de ser mencionado dessa forma?
— E, para vos infligir a vergonha e a dor que trouxeram a Sua
Majestade, serão ambos publicamente açoitados quinze vezes. Que as
cicatrizes vos recordem os vossos muitos pecados!
Açoitados? O que é que isso queria dizer?
A minha resposta chegou um instante depois. Os dois mascarados que
tinham amarrado o Carter e a Marlee tiraram umas longas varas de um
balde de água. Agitaram-nas algumas vezes, para as testar, e eu conseguia
ouvi-las zunir enquanto cortavam o ar. A multidão aplaudiu aquele
aquecimento com o mesmo êxtase e a mesma adoração que haviam acabado
de dedicar às Selecionadas.
Em poucos segundos, as costas do Carter seriam golpeadas de modo
humilhante, assim como as preciosas mãos da Marlee...
— Não! — gritei. — Não!
— Acho que vou vomitar — murmurou a Natalie, enquanto a Elise
soltava um gemido fraco contra o ombro do seu guarda. Mas nada parou.
Levantei-me e lancei-me na direção do lugar do Maxon, caindo em
cima do colo do meu pai.
— Maxon, Maxon, manda que parem com isto!
— Tem de se sentar, menina — disse o meu guarda, tentando puxar-
me de volta para o meu lugar.
— Maxon, imploro-te! Por favor!
— Não é seguro, menina!
— Largue-me! — gritei ao guarda, dando-lhe um pontapé com toda a
força. Mas, por mais que eu tentasse, ele segurava-me firmemente.
— America, por favor, senta-te! — pediu a minha mãe.
— Um! — gritou o homem no palanque, e eu vi a vara cair sobre as
mãos da Marlee.
Ela emitiu um gemido patético, como um cão a ser pontapeado. O
Carter não emitiu qualquer som.
— Maxon! Maxon! — gritei. — Para! Para com isto, por favor!
Ele ouviu, eu sabia. Vi-o fechar os olhos devagar e engolir em seco
uma vez, como se pudesse tirar o som da sua cabeça.
— Dois!
O grito da Marlee era de angústia pura. Eu não conseguia imaginar a
sua dor e ainda faltavam treze golpes.
— America, senta-te! — insistiu a minha mãe. A May estava sentada
entre os meus pais, com o rosto virado para o lado. O seu choro era quase
tão doloroso como o da Marlee.
— Três!
Olhei para os pais da Marlee. A mãe tinha a cabeça enterrada nas
mãos e o pai tinha os braços em volta dela, como se pudesse protegê-la de
tudo o que estavam a perder naquele momento.
— Largue-me! — gritei para o guarda, em vão. — MAXON! —
berrei.
As minhas lágrimas turvavam-me a visão, mas conseguia ver o
suficiente para saber que ele me ouvira.
Olhei para as outras. Não deveríamos fazer alguma coisa? Algumas
delas pareciam estar também a chorar. A Elise estava inclinada para a frente
com a testa apoiada na mão, como se estivesse prestes a desmaiar. Mas
nenhuma delas parecia irritada. Será que não deveriam estar?
— Cinco!
O som dos gritos da Marlee iria perseguir-me para o resto da vida.
Nunca ouvira nada parecido. Ou o eco doentio da multidão, aplaudindo,
como se aquilo não passasse de mero entretenimento.
Ou o silêncio do Maxon, permitindo que tudo aquilo acontecesse. Ou
o choro das raparigas em meu redor, aceitando.
A única coisa que me dava um pouco de esperança era o Carter.
Embora suasse com a agressão e tremesse de dor, conseguia balbuciar
palavras de conforto para a Marlee.
— Vai... acabar depressa... — conseguiu dizer.
— Seis!
— Amo... -te — gaguejou.
Eu não aguentava mais. Tentei arranhar o guarda, mas as suas mangas
grossas protegiam-no. Gritei quando ele me apertou com mais força.
— Tire as mãos de cima da minha filha! — gritou o meu pai, puxando
os braços do guarda.
Com esse espaço, contorci-me até conseguir ficar de frente para ele e
dei-lhe uma joelhada com toda a força.
Ele soltou um grito abafado e caiu para trás, sendo amparado pelo
meu pai.
Saltei por cima da grade, de um modo um pouco desajeitado por causa
do vestido e dos sapatos de salto alto.
— Marlee! Marlee! — gritei, correndo o mais rápido que consegui.
Estava quase nos degraus, quando fui agarrada por dois guardas. Era uma
luta que eu não podia vencer.
Do canto por detrás do palanque, vi que tinham exposto as costas do
Carter e que a sua pele já estava rasgada, com os pedaços dilacerados
pendendo de modo repugnante. O sangue escorria, manchando-lhe as calças
do uniforme de gala. Era incapaz de imaginar o estado das mãos da Marlee.
Esse pensamento fez-me ficar ainda mais histérica. Gritei e dei
pontapés nos guardas, mas tudo o que consegui foi perder um dos sapatos.
Fui arrastada até ao palácio, enquanto o homem anunciava a próxima
vergastada e não sabia se deveria sentir-me grata ou envergonhada. Por um
lado, não teria de ver o resto; por outro, sentia-me como se estivesse a
abandonar a Marlee no pior momento da sua vida.
Se eu fosse uma verdadeira amiga, não deveria ter feito mais alguma
coisa?
— Marlee! — gritei. — Marlee, desculpa!
Mas a multidão estava tão frenética e ela chorava tanto que acho que
não me ouviu.
Capítulo 10

Debati-me e gritei durante todo o caminho de volta. Os guardas


tiveram de me segurar com tanta força que eu sabia que iria ficar cheia de
nódoas negras, mas não me importava. Tinha de lutar.
— Onde é o quarto dela? — Ouvi um deles perguntar e, contorcendo-
me, vi uma criada a passar pelo corredor. Não a reconheci, mas ela sabia
certamente quem eu era. Acompanhou os guardas até à minha porta. Ouvi
as minhas aias protestarem contra o modo como estavam a tratar-me
— Acalme-se, menina. Não pode comportar-se assim — resmungou
um guarda, enquanto me atiravam para cima da cama.
— Saiam já do meu quarto! — berrei.
As minhas aias correram para mim, todas com lágrimas nos olhos. A
Mary começou a tentar limpar a sujidade que a minha queda deixara no
meu vestido, mas afastei-lhe as mãos com uma palmada. Elas sabiam.
Sabiam e não me avisaram.
— Vocês também! — gritei-lhes. — Quero todos fora daqui,
AGORA!
Elas encolheram-se perante as minhas palavras e os tremores no frágil
corpo da Lucy quase me fizeram arrepender do que dissera. Mas precisava
de ficar só.
— Lamentamos imenso, menina — disse a Anne, empurrando as
outras duas para trás. Elas sabiam como eu e a Marlee éramos amigas.
A Marlee...
— Vão-se embora — murmurei, virando-me para esconder o rosto no
travesseiro.
Assim que a porta se fechou, descalcei o sapato que restava e enfiei-
me na cama, compreendendo finalmente centenas de minúsculos
pormenores. Então, aquele era o segredo que ela tanto temia revelar. Não
queria ficar porque não amava o Maxon, mas também não queria ir-se
embora e ficar longe do Carter.
Várias situações começaram subitamente a fazer sentido: o motivo por
que ela ficava em certos sítios ou a olhar para as portas. Era o Carter; ele
estava lá. Aquela vez em que o rei e a rainha da Noruécia visitaram o
palácio e ela se recusou a sair do Sol... O Carter. Era pela Marlee que ele
esperava quando chocámos um com o outro à porta da casa de banho. Era
sempre ele, aguardando em silêncio por perto, talvez roubando um beijo
aqui e ali, à espera do momento em que pudessem ficar realmente juntos.
Ela deveria de facto amá-lo bastante para ter sido tão descuidada, para
arriscar tanto!
Como é que isto podia ser real? Não parecia possível. Eu sabia que
havia um castigo para este tipo de coisas, mas que isso acontecesse à
Marlee, que ela se fosse embora... Não conseguia compreender.
O meu estômago contraiu-se. Poderia tão facilmente ter sido eu. Se o
Aspen e eu não tivéssemos sido tão cuidadosos, se alguém tivesse ouvido a
nossa conversa na pista de dança na noite anterior, poderíamos estar no
lugar deles.
Será que algum dia eu voltaria a ver a Marlee? Para onde é que a
mandariam? Será que os seus pais teriam algum contacto com ela? Não
sabia o que o Carter era antes de o recrutamento o ter tornado um Dois, mas
suspeitava que fosse um Sete. Um Sete era baixo, mas era muito melhor do
que um Oito.
Não podia acreditar que ela era uma Oito. Aquilo não podia ser real.
Será que ela alguma vez poderia voltar a usar as mãos? Quanto tempo
é que aquele tipo de ferimentos demoraria a sarar? E o Carter? Será que
conseguiria andar depois daquilo?
Poderia ter sido o Aspen.
Poderia ter sido eu.
Sentia-me tão mal. Tive uma sensação cruel de alívio por não ser eu e
a culpa por esse alívio foi tão forte que senti dificuldade em respirar. Eu era
uma péssima pessoa, uma amiga horrível. Senti vergonha.
Não havia mais nada a fazer senão chorar.
Passei a manhã e a maior parte da tarde encolhida na cama. As minhas
aias trouxeram-me o almoço, mas não fui capaz de lhe tocar. Felizmente,
elas não insistiram em ficar e deixaram-me sozinha com a minha tristeza.
Sentia-me incapaz de me recompor. Quanto mais pensava no que
acontecera, pior me sentia. Não conseguia tirar dos ouvidos o som dos
gritos da Marlee. Perguntei-me se iria conseguir esquecê-los algum dia.
Alguém bateu à minha porta de modo hesitante. As minhas aias não
estavam ali para abrir e eu não queria mexer-me; portanto, não abri. Depois
de uma breve pausa, o visitante entrou mesmo assim.
— America? — disse o Maxon em voz baixa.
Não respondi.
Ele fechou a porta e atravessou o quarto, parando junto à minha cama.
— Desculpa — disse. — Não tive alternativa.
Permaneci imóvel, incapaz de falar.
— Era aquilo ou a pena de morte. As câmaras descobriram-nos na
noite passada e divulgaram as imagens sem o nosso conhecimento —
insistiu ele.
Permaneceu calado por algum tempo, talvez na esperança de que se
ficasse ali o tempo suficiente, eu iria encontrar algo para lhe dizer.
Por fim, ajoelhou-se ao meu lado.
— America? Olha para mim, querida.
O termo carinhoso causou-me um nó no estômago. Ainda assim, não
olhei para ele.
— Eu tive de fazer aquilo. Tive mesmo.
— Como é que pudeste ficar ali, parado? — A minha voz soava
estranha. — Como é que pudeste não fazer nada?
— Já te disse uma vez que uma parte deste cargo implica parecer
calmo, mesmo quando não se está. Foi algo que tive de aprender a
controlar. Tu também aprenderás.
Franzi a testa. Será que ele pensava que eu ainda queria aquilo?
Aparentemente, sim. Quando ele compreendeu finalmente a minha
expressão, o choque invadiu-lhe o rosto.
— America, eu sei que estás angustiada, mas, por favor? Já te disse
que és a única. Por favor, não faças isso.
— Maxon... — respondi devagar. — Lamento imenso, mas acho que
não consigo fazer isto. Nunca seria capaz de ficar ali a ver uma pessoa a ser
magoada daquela maneira, sabendo que era por minha ordem. Não posso
ser princesa.
Ele arquejou, provavelmente a manifestação mais próxima de
verdadeira tristeza que alguma vez lhe vira.
— America, estás a basear o resto das nossas vidas em cinco minutos
da vida de uma outra pessoa. Coisas destas raramente acontecem. Não terias
de fazer isto.
Sentei-me, esperando conseguir assim pensar com mais clareza.
— Eu... nem sequer consigo pensar agora.
— Então, não penses — insistiu ele. — Não deixes que isto te faça
tomar uma decisão sobre nós enquanto estiveres assim tão angustiada.
De certo modo, aquelas palavras pareceram-me um truque.
— Por favor — sussurrou ele com intensidade, agarrando-me nas
mãos. O desespero na sua voz fez-me olhar para ele.
— Tu prometeste ficar comigo. Não desistas, não assim. Por favor.
Respirei fundo e assenti com a cabeça.
O seu alívio era evidente.
— Obrigado.
O Maxon ficou ali sentado, agarrado à minha mão como se fosse uma
boia de salvação. Sentia-me diferente, não era como ontem.
— Eu sei... — começou ele. — Sei que não te sentes segura em
relação ao cargo. Sempre soube que seria algo difícil de aceitar para ti. E
tenho a certeza de que isto torna tudo mais difícil. Mas... e eu? Ainda te
sentes segura em relação a mim?
Hesitei, sem saber ao certo o que dizer:
— Eu disse-te que não conseguia pensar.
— Ah, sim. Claro. — O seu tom de completo desapontamento era
óbvio. — Vou deixar-te sossegada por agora. Mas em breve conversaremos.
Ele inclinou-se como se quisesse beijar-me. Baixei os olhos e ele
pigarreou, constrangido.
— Adeus, America — disse, e depois saiu.
E então, mergulhei de novo no desespero.
Mais tarde, talvez minutos ou horas depois, as minhas aias entraram e
encontraram-me em prantos. Virei-me na cama e era impossível não verem
a súplica nos meus olhos.
— Oh, menina! — exclamou a Mary, abraçando-me. — Deixe-nos
prepará-la para dormir.
A Lucy e a Anne começaram a desabotoar-me o vestido, enquanto a
Mary me limpava o rosto e me penteava o cabelo.
As minhas aias sentaram-se ao meu lado, confortando-me enquanto eu
chorava. Queria explicar-lhes que era mais do que a Marlee, que havia
também uma mágoa surda por causa do Maxon; mas era demasiado
embaraçoso reconhecer o quanto me importava e o quão errada estivera.
Então, a minha dor redobrou quando perguntei pelos meus pais e a
Anne me disse que todas as famílias tinham sido rapidamente escoltadas de
volta a casa. Nem sequer pude despedir-me deles.
A Anne acariciava-me o cabelo, acalmando-me carinhosamente. A
Mary estava aos meus pés e massajava-me as pernas de modo
reconfortante. A Lucy apertava-me simplesmente as mãos contra o peito,
como se sentisse tudo aquilo comigo.
— Obrigada — balbuciei, entre fungadelas. — Perdoem-me pela
minha reação de há pouco.
Elas entreolharam-se.
— Não precisa de se desculpar, menina — insistiu a Anne.
Quis corrigi-la, porque tinha sem dúvida ido longe demais no modo
como as tratara, mas ouviu-se outra batida na porta. Tentei pensar num
modo educado de dizer que não queria ver o Maxon naquele momento, mas
quando a Lucy se apressou a ir abrir, o rosto do Aspen surgiu do outro lado.
— Perdoem-me pelo incómodo, minhas senhoras, mas ouvi chorar e
quis verificar se estavam todas bem — disse ele.
Atravessou o quarto até à minha cama, uma ação ousada depois do dia
que todos tivéramos.
— Lady America, lamento imenso pela sua amiga. Ouvi dizer que era
uma pessoa especial. Se precisar de alguma coisa, estou aqui.
O seu olhar transmitia tanto: que estava disposto a sacrificar uma
imensidade de coisas para que eu me sentisse melhor; que, por mim,
desejava poder apagar tudo o que se passara.
Que idiota eu fora. Quase desistira da única pessoa no mundo que me
compreendia realmente, que me amava de verdade. O Aspen e eu tínhamos
construído uma história juntos e a Seleção quase a destruíra.
O Aspen era o meu lar. O Aspen era seguro.
— Obrigada — respondi em voz baixa. — A sua gentileza significa
muito para mim.
O Aspen sorriu de um modo quase impercetível. Percebi que ele
queria ficar e eu também o desejava, mas com as minhas aias atarefadas à
nossa volta, não era possível. Lembrei-me de ter pensado, uns dias antes,
que teria sempre o Aspen e fiquei feliz por descobrir que isso era totalmente
verdade.
Capítulo 11

Olá, gatinha,
Lamento muito que não tenhamos podido despedir-nos. O rei achou
que seria mais seguro se as famílias partissem o mais depressa possível.
Tentei falar contigo, juro, mas não consegui. Quero que saibas que
chegámos bem a casa. O rei deixou-nos ficar com as nossas roupas e a May
passa todo o tempo livre com aqueles vestidos. Suspeito que eia deseja
secretamente não crescer nem mais um centímetro para poder usar o seu
vestido de baile quando casar. Isso anima-a bastante. Não sei se algum dia
poderei perdoar a família real por forçar as minhas duas filhas a verem tudo
aquilo ao vivo, mas tu sabes como a May é forte. É contigo que estou
preocupado. Escreve-nos depressa.
Talvez esta não seja a coisa certa para dizer, mas quero que saibas:
quando correste para o palanque, nunca senti tanto orgulho em ti em toda a
minha vida. Sempre foste linda, sempre tiveste talento e agora sei que o teu
sentido de justiça está no sítio certo. Vês claramente quando as coisas estão
erradas e fazes tudo o que é possível para acabar com a situação. Enquanto
pai, não passo pedir mais.
Adoro-te, America. E estou muito, muito orgulhoso.
Pai

Como é que o meu pai sabia sempre o que dizer? Desejava que
alguém realinhasse as estrelas para que elas formassem as suas palavras.
Precisava que fossem grandes e brilhantes e que ficassem visíveis em algum
lado onde pudesse vê-las nos momentos de escuridão. Adoro-te. Estou
muito, muito orgulhoso.
Os membros da Elite tinham a opção de tomar o pequeno-almoço no
quarto e eu aproveitei-a. Ainda não estava preparada para ver o Maxon. À
tarde, estava um pouco mais recomposta e decidi descer até ao Salão das
Mulheres, por algum tempo. Pelo menos, lá havia uma televisão e eu ficaria
grata por algo que me distraísse.
As raparigas pareceram surpreendidas com a minha entrada, o que até
era de esperar. Eu costumava esconder-me de vez em quando e se alguma
vez houvera uma altura adequada para o fazer seria esta. A Celeste estava
recostada no sofá, a folhear uma revista. Em Illéa não havia jornais, como
parecia acontecer noutros países. Tínhamos o Noticiário Oficial. As revistas
eram a coisa mais próxima de um jornal impresso e as pessoas como eu não
tinham qualquer hipótese de as comprar. A Celeste parecia ter sempre uma
à mão e, por algum motivo, isso irritou-me neste dia.
A Kriss e a Elise estavam sentadas a uma mesa, a tomar chá e a
conversar, enquanto a Natalie se encontrava de pé mais atrás, a olhar pela
janela.
— Olhem... — disse a Celeste para ninguém em especial. — Mais um
dos meus anúncios.
A Celeste era modelo. Só a ideia de ela estar ali a folhear fotos de si
mesma irritou-me ainda mais.
— Lady America? — chamou alguém. Virei-me e vi a rainha no canto,
com algumas das suas damas de companhia. Parecia estar a costurar.
Saudei-a com uma reverência e ela gesticulou para que me
aproximasse. O meu estômago teve um sobressalto quando me recordei do
meu comportamento no dia anterior. Não tivera a intenção de a ofender,
mas, de repente, temi ter feito exatamente isso. Sentia os olhos das outras
pregados em mim. A rainha geralmente falava connosco em grupo,
raramente o fazendo em particular.
Aproximei-me e fiz outra reverência.
— Majestade...
— Por favor, sente-se, Lady America — disse ela, gentilmente e
apontando para uma cadeira vazia à sua frente.
Obedeci, ainda muito nervosa.
— A menina debateu-se bastante ontem — comentou.
Engoli em seco:
— Sim, Vossa Majestade.
— Eram muito amigas?
— Sim, Vossa Majestade — respondi, com um soluço de tristeza. Ela
suspirou.
— Uma senhora não deve comportar-se daquela maneira. As câmaras
estavam tão concentradas no que se passava que não captaram o seu
comportamento. Ainda assim, não é adequado que perca a cabeça dessa
maneira.
Não se tratava da ordem de uma rainha; era a censura de uma mãe e
isso tornou tudo mil vezes pior. Era como se ela se sentisse responsável por
mim e eu a tivesse desapontado.
Inclinei a cabeça. Pela primeira vez, senti-me realmente mal pelo
modo como reagira.
Ela estendeu o braço e colocou a mão sobre o meu joelho. Olhei para
o seu rosto, atónita com aquele toque informal.
— Em todo caso — sussurrou ela, concluindo com um sorriso nos
lábios estou feliz que o tenha feito.
— Ela era a minha melhor amiga.
— A amizade não acaba porque ela se foi embora, querida.
A Rainha Amberly deu-me uma palmadinha carinhosa na perna. Era
exatamente disto que eu precisava: carinho materno. As lágrimas surgiram
no canto dos meus olhos.
— Não sei o que fazer — murmurei.
Quase desabafei tudo o que sentia ali mesmo, mas estava consciente
do olhar das outras raparigas.
— Disse a mim mesma que não me envolveria — afirmou ela e
suspirou. — Mesmo que quisesse, não tenho a certeza de que haja muito a
dizer.
Ela tinha razão. Que palavras poderiam mudar tudo o que acontecera?
A rainha inclinou-se para mim e falou docemente:
— Ainda assim, não seja muito dura com ele.
Eu sabia que as suas intenções eram boas, mas não queria falar sobre
o seu filho. Assenti com a cabeça e levantei-me. Ela fez-me um sorriso
carinhoso e dispensou-me com um gesto. Afastei-me e fui sentar-me junto
da Elise e da Kriss.
— Como te sentes? — perguntou a Elise com simpatia.
— Estou bem. É com Marlee que estou preocupada.
— Pelo menos, estão juntos. Enquanto se tiverem um ao outro, vão
conseguir dar a volta — comentou a Kriss.
— Como é que sabes que a Marlee e o Carter estão juntos?
— O Maxon contou-me — respondeu ela, como se fosse uma
informação do conhecimento geral.
— Oh... — disse eu, desapontada.
— Não acredito que ele não te tenha contado, principalmente a ti. Tu e
a Marlee eram tão amigas. Além disso, és a preferida dele, não és? —
perguntou a Kriss.
Olhei para a Kriss e depois para a Elise. Ambas tinham um ar
preocupado, mas também, talvez, uma certa expressão de alívio.
A Celeste riu-se.
— Obviamente, já não é — murmurou, sem sequer se dignar a
levantar os olhos da revista. A minha queda era obviamente esperada.
Orientei a conversa de volta para a Marlee.
— Ainda não acredito que o Maxon os fez passar por aquilo. A calma
dele durante todo o processo foi perturbadora.
— Mas ela cometeu um erro — comentou a Natalie. Não havia
qualquer crítica na sua voz, apenas uma aceitação serena, como se seguisse
instruções.
A Elise deu a sua opinião:
— Ele poderia tê-los matado. A lei estava do seu lado. Ele de‐
monstrou misericórdia.
— Misericórdia? — zombei. — Achas que ser esfolado em público é
uma demonstração de misericórdia?
— Se pensarmos bem, acho — continuou ela. — Aposto que se
perguntássemos à Marlee, ela preferiria receber vergastadas a morrer.
— A Elise tem razão — disse a Kriss. — Concordo que foi
absolutamente terrível, mas eu preferiria aquilo à morte.
— Por favor — repliquei com desdém, sentindo a raiva a borbulhar.
— Tu és uma Três. Toda a gente sabe que o teu pai é um professor
universitário famoso e que passaste a vida inteira em bibliotecas, sempre
bastante confortável. Nunca sobreviverias a seres açoitada e muito menos a
uma vida como Oito. Implorarias para morrer.
A Kriss encarou-me com uma expressão penetrante:
— Não julgues que sabes o que sou capaz de aguentar ou não. Só por
seres uma Cinco, achas que és a única pessoa que já passou por situações de
sofrimento?
— Não, mas tenho a certeza de que já enfrentei coisas muito piores do
que tu — respondi, com o meu tom de voz a aumentar com a raiva. — E,
ainda assim, eu não suportaria passar pelo que a Marlee passou. E duvido
que te saísses melhor.
— Sou mais corajosa do que pensas, America. Não fazes ideia das
coisas que tive de sacrificar ao longo dos anos. E quando cometo um erro,
arco com as consequências.
— E por que deveriam existir sequer consequências? — questionei.
— O Maxon passa a vida a dizer que a Seleção é difícil para ele, que é duro
ter de escolher e então uma de nós apaixona-se por outro. Será que ele não
deveria agradecer-lhe por lhe facilitar a decisão?
A Natalie tentou interromper, parecendo angustiada:
— Ontem, ouvi uma coisa muito engraçada!
— Mas a lei... — disse a Kriss por cima dela.
— A America tem uma certa razão — contrapôs rapidamente a Elise,
e este foi o fim da nossa conversa organizada.
Falávamos todas ao mesmo tempo, tentando fazer-nos ouvir e
justificando porque achávamos que o que acontecera tinha sido certo ou
errado. Era a primeira vez que isto se passava, mas era algo que eu esperava
desde o início. Com tantas raparigas juntas, competindo entre si, era
impossível que não acabássemos por discutir.
Então, com uma voz dissonante, a Celeste murmurou para a sua
revista enquanto discutíamos:
— Teve o que merecia. Vadia.
O silêncio que se seguiu foi tão intenso como a nossa discussão.
A Celeste olhou por cima do ombro, a tempo de me ver atirar-me a
ela. Gritou quando caí em cima dela, acertando numa mesa de café
próxima. Ouvi algo escaqueirar-se no chão, provavelmente uma chávena de
chá.
Eu fechara os olhos a meio do salto e, quando os abri, estava em cima
da Celeste e ela tentava agarrar-me os pulsos. Levei o meu braço direito
atrás e dei-lhe uma bofetada com quanta força tinha. O ardor na minha mão
foi quase insuportável, mas valeu a pena só para ouvir o estalo sonoro que
explodiu quando a atingi.
A Celeste soltou de imediato um grito estridente e começou a
esgatanhar-me. Pela primeira vez, lamentei não deixar crescer as unhas
como as outras faziam. Ela fez-me alguns arranhões no braço, que só me
irritaram ainda mais, e bati-lhe de novo. Desta vez, cortei-lhe o lábio. Em
resposta à dor, ela estendeu a mão para alguma coisa, o pires da sua
chávena, e acertou-me com ele de lado na cabeça.
Desequilibrada, tentei agarrá-la novamente, mas várias pessoas
começaram a tentar separar-nos. Estava tão absorvida que não percebi que
os guardas haviam sido chamados. Dei um murro num deles também.
Estava farta de ser agarrada.
— Viram o que ela me fez? — gritou a Celeste.
— Cala a boca! — berrei. — Nunca mais fales da Marlee!
— Ela é louca! Não a ouvem? Viram o que ela fez?
— Largue-me! — exclamei, debatendo-me contra o guarda.
— És uma psicopata! Vou contar tudo ao Maxon, agora. Podes dizer
adeus ao palácio! — ameaçou a Celeste.
— Ninguém vai ver o Maxon agora — disse a rainha, em tom severo.
Fitou-nos a ambas; primeiro à Celeste e depois a mim. O seu
desapontamento era notório. — Vão as duas para a ala hospitalar.
A ala hospitalar era um corredor comprido, impecavelmente
arrumado, com camas encostadas às paredes. Atrás de cada cabeceira havia
uma cortina, que podia ser puxada para dar mais privacidade. Por todo o
lado, havia armários com produtos farmacêuticos.
Sabiamente, eu e a Celeste fomos colocadas em pontas opostas do
corredor; ela mais perto da entrada e eu próxima da janela do fundo. Ela
puxou a cortina em volta da sua cama, quase de imediato, para não ter de
me ver. Não podia censurá-la, pois eu tinha um ar muito satisfeito. Mesmo
enquanto a enfermeira me tratava a zona magoada logo atrás da linha do
cabelo, onde a Celeste me acertara, não fiz qualquer careta de dor.
— Agora segure no gelo, aqui. Vai ajudar a desinflamar — explicou
ela.
— Obrigada — respondi.
A enfermeira deitou um olhar rápido para ambos os lados da ala,
aparentemente para se certificar de que ninguém poderia ouvir-nos.
— Muito bem, menina — murmurou. — Quase toda a gente estava à
espera de que acontecesse algo deste género.
— A sério? — perguntei com a voz tão baixa como a dela. Talvez não
devesse estar tão sorridente.
— Não consigo contar-lhe a quantidade de histórias de terror que ouvi
sobre ela — disse, apontando com a cabeça na direção da cama da Celeste.
— Histórias de terror?
— Ela provocou aquela rapariga que lhe bateu.
— A Anna? Como é que sabe?
— O Maxon é um bom homem — disse ela com simplicidade. — Fez
questão de que ela fosse vista aqui antes de voltar para casa. Ela contou-nos
o que a Celeste disse sobre os seus pais. Era algo tão nojento que nem sou
capaz de repetir. — A sua expressão transmitia nojo.
— Pobre Anna. Eu sabia que tinha sido algo desse género.
— Houve uma rapariga que apareceu aqui com os pés a sangrar,
depois de alguém lhe ter enfiado cacos de vidro nos sapatos durante a noite.
Não podemos provar que foi a Celeste, mas que outra pessoa faria uma
coisa tão desprezível?
— Não ouvi nada sobre o assunto — comentei, surpreendida.
— Ela teve medo de que lhe fizessem algo ainda pior. Acho que
preferiu ficar calada. E a Celeste bate nas suas aias. Apenas com as mãos,
mas elas aparecem aqui, de vez em quando, para pedir gelo.
— Não! — Todas as aias que eu conhecia eram amorosas. Não
conseguia imaginar nenhuma que fosse capaz de fazer algo que merecesse
uma palmada sequer, quanto mais agressões regulares.
— Basta dizer que as suas reações, menina, são do conhecimento
geral. E uma heroína por aqui — disse a enfermeira, piscando-me o olho.
Não me sentia uma heroína.
— Espere — disse eu, de repente. — Disse que o Maxon pediu que a
Anna fosse vista antes de se ir embora?
— Sim, menina. Ele preocupa-se bastante com todas vós e quer que
tenham todos os cuidados.
— E a Marlee? Ela também esteve aqui? Como estava quando saiu?
Antes que a enfermeira pudesse responder, a voz mimada da Celeste
ecoou pela sala.
— Maxon, meu querido! — exclamou, assim que ele passou a porta.
Trocámos um breve olhar antes de ele se aproximar da cama da
Celeste. A enfermeira afastou-se, deixando-me sozinha e ansiosa por saber
se ela tinha, de facto, visto a Marlee.
A voz queixosa da Celeste era quase insuportável. Ouvi o Maxon
murmurar umas palavras de simpatia, confortando a coitadinha, antes de se
escapar. Ele contornou a cortina e fitou-me, aproximando-se depois com um
ar exausto.
— Tens sorte por o meu pai ter proibido as câmaras no palácio, caso
contrário iríamos passar um mau bocado por causa das tuas ações. — Ele
passou a mão pelo cabelo, exasperado. — Como é que vou justificar isto,
America?
— Vais mandar-me embora, então? — Brinquei com uma ponta do
meu vestido, enquanto esperava pela resposta dele.
— Claro que não.
— E ela? — perguntei, apontando com a cabeça na direção da
Celeste.
— Não. Vocês estão todas enervadas depois do que aconteceu ontem e
não posso censurar-vos por isso. Não sei se o meu pai vai aceitar esta
desculpa, mas é o que vou dizer.
Fiz uma pausa.
— Talvez devesses dizer-lhe que a culpa foi minha. Talvez devesses
simplesmente mandar-me embora.
— America, estás a exagerar.
— Olha para mim, Maxon — pedi. Sentia um nó a crescer na
garganta, mas esforcei-me por falar. — Eu sei desde o início que não tenho
o que é preciso, mas pensei que pudesse, sei lá, mudar ou arranjar uma
maneira de fazer as coisas funcionarem; mas não posso ficar aqui. Não
posso.
O Maxon sentou-se na ponta da minha cama.
— America, podes odiar a Seleção e podes estar furiosa com o que
aconteceu à Marlee, mas sei que gostas de mim o suficiente para não me
abandonares.
Peguei-lhe na mão.
— E também gosto de ti o suficiente para te dizer que estás a cometer
um erro.
Havia dor no rosto do Maxon e ele apertou-me a mão com mais força,
como se pudesse manter-me ali e evitar que eu desaparecesse. De modo um
pouco hesitante, inclinou-se e murmurou:
— Nem sempre é assim tão difícil e quero mostrar-to, mas tens de me
dar tempo. Posso provar-te que há coisas boas nesta vida, mas tens de
esperar.
Respirei fundo e ia contradizê-lo, mas ele interrompeu-me:
— Durante várias semanas, America, pediste-me tempo e eu dei-to
sem fazer perguntas porque tinha fé em ti. Por favor, preciso que tenhas
também um pouco de fé em mim.
Não sabia o que ele poderia mostrar-me que me fizesse mudar de
ideias, mas era impossível não lhe dar algum tempo depois de ele o ter feito
por mim.
Suspirei.
— Está bem.
— Obrigado. — O alívio na sua voz era óbvio.— Tenho de ir, mas
voltarei em breve para te ver.
Assenti com a cabeça. O Maxon levantou-se e saiu, não sem antes
fazer uma paragem rápida para se despedir da Celeste. Fiquei a olhá-lo e
perguntei-me se seria má ideia confiar nele.
Capítulo 12

Tanto os meus ferimentos como os da Celeste eram insignificantes e,


ao fim de uma hora, fomos mandadas de volta para os nossos quartos.
Deram-nos alta em momentos diferentes para não sairmos juntas e ainda
bem.
Assim que virei a esquina no topo das escadas, vi um guarda a
caminhar na minha direção. O Aspen. Ainda que ele estivesse mais
encorpado agora, depois de ganhar músculo com os treinos, eu conhecia o
seu modo de andar, a sua sombra e mil outras coisas que estavam gravadas
no meu coração.
Quando ele se aproximou, parou e fez-me uma vénia desnecessária.
— Frasco — sussurrou. Depois endireitou-se e seguiu o seu caminho.
Permaneci ali por um instante, confusa, mas depois percebi o que ele
queria dizer. Debatendo-me contra a vontade de correr, percorri
ansiosamente o corredor.
Abri a porta e fiquei simultaneamente surpreendida e aliviada por ver
que as minhas três aias não estavam ali.
Aproximei-me do frasco que estava em cima da mesa de cabeceira e
reparei que a minha moedinha solitária tinha companhia. Abri a tampa e
retirei a folha de papel dobrada. Ele fora esperto; as minhas aias não teriam
provavelmente notado nada e, se notassem, nunca desrespeitariam a minha
privacidade.
Desdobrei o bilhete e li uma série de instruções muito claras. Parecia
que o Aspen e eu tínhamos um encontro nessa noite.
***
As instruções que o Aspen me dera eram complicadas. Segui por um
caminho indireto até ao primeiro andar, onde deveria procurar uma porta
perto de um vaso com um metro e meio de altura. Lembrava-me de ter visto
o vaso quando andara pelo palácio antes. Que tipo de flor precisaria de um
vaso tão grande?
Encontrei a porta e olhei em volta para me certificar de que ninguém
me vira. Nunca conseguira estar tão livre dos olhares dos guardas. Não
havia nem um por perto. Abri a porta devagar e entrei com cuidado. A Lua
brilhava através da janela, iluminando escassamente a sala e fazendo-me
sentir um pouco nervosa.
— Aspen? — sussurrei na escuridão, sentindo-me simultaneamente
tola e assustada.
— Como nos velhos tempos, não é? — respondeu a sua voz, embora
eu não conseguisse vê-lo.
— Onde estás? — perguntei, semicerrando os olhos numa tentativa de
encontrar a sua silhueta.
Então, a sombra das pesadas cortinas junto da janela moveu-se à luz
da Lua e o Aspen surgiu de trás delas.
— Assustaste-me — queixei-me na brincadeira.
— Não foi a primeira vez, nem será a última — disse ele, e eu
consegui ouvir um sorriso na sua voz.
Aproximei-me dele, não sem tropeçar em todos os obstáculos
possíveis pelo caminho.
— Chiu! — queixou-se ele. — O palácio inteiro vai saber que
estamos aqui, se continuares a bater em coisas dessa maneira.
Mas eu sabia que ele estava a brincar.
— Desculpa — disse, rindo-me baixinho. — Podemos acender uma
luz?
— Não. Se alguém reparar no brilho por baixo da porta, podemos ser
apanhados. Este corredor não é muito vigiado, mas não quero facilitar.
— Como é que sabias da existência deste lugar? — Estendi a mão e
consegui finalmente tocar-lhe no braço. Ele puxou-me para me dar um
abraço e depois levou-me para o fundo da sala.
— Sou um guarda — disse, simplesmente. — E sou muito bom no
que faço. Conheço todo o palácio, tanto por fora como por dentro. Cada
caminho, cada esconderijo e até mesmo a maioria das salas secretas. E
também conheço as rondas da guarda, quais as áreas normalmente menos
vigiadas e os momentos em que há menos guardas de serviço. Se alguma
vez quiseres espiolhar o palácio, sou a pessoa certa para te ajudar.
— Incrível — balbuciei.
Sentámo-nos no chão iluminado pelo luar, por trás do amplo encosto
de um sofá. Finalmente, conseguia ver o rosto do Aspen.
— Tens a certeza de que isto é seguro? — perguntei-lhe, muito séria.
Se ele hesitasse, sairia imediatamente dali. Para o bem de ambos.
— Confia em mim, Mer. Teria de acontecer uma série de coisas
extraordinárias para nos encontrarem aqui. Estamos seguros.
Ainda me sentia preocupada, mas precisava tanto de conforto que
decidi ficar.
Ele pôs um braço à minha volta e puxou-me para si.
— Como te sentes?
Suspirei.
— Bem, acho eu. Com muita tristeza e muita raiva. Desejava poder
apagar os dois últimos dias e trazer a Marlee de volta. O Carter também,
embora nem sequer o conhecesse.
— Eu conhecia — suspirou ele. — É um tipo impecável. Ouvi dizer
que ele passou o tempo todo a dizer à Marlee que a amava, tentando ajudá-
la a aguentar aquilo tudo.
— Sim, é verdade — confirmei. — Pelo menos, no início. Fui levada
dali antes de tudo terminar.
O Aspen deu-me um beijo nos cabelos.
— Sim, também ouvi isso. Estou orgulhoso por não teres saído sem
dar luta. Linda menina.
— O meu pai também ficou orgulhoso. A rainha disse que eu não
deveria agir daquela maneira, mas ficou feliz por eu tê-lo feito.
É um pouco confuso. Como se tivesse sido quase uma boa ideia, mas
afinal não. E, no fim de contas, não mudou nada.
O Aspen apertou-me com força.
— Fizeste bem. Significou muito para mim.
— Para ti?
Ele suspirou.
— De vez em quando, pergunto-me se a Seleção te fez mudar. Tens
pessoas a cuidar de ti e é tudo tão elegante. Estou sempre a pensar se ainda
serás a mesma America. Aquilo mostrou-me que sim, que ainda não te
atingiram.
— Ah, já me atingiram, mas não dessa maneira. A maior parte do
tempo, este lugar lembra-me que não nasci para isto.
Encostei a cabeça contra o peito do Aspen, o lugar seguro onde me
escondera sempre que as coisas se complicavam.
— Ouve, Mer, o que se passa é que o Maxon é um ator. Tem sempre
uma expressão perfeita, como se estivesse acima de tudo, mas é apenas uma
pessoa e está tão baralhado como todos os outros. Sei que te preocupas com
ele, ou não estarias aqui, mas já deves ter percebido que não é real.
Assenti com a cabeça. O Maxon e toda aquela conversa sobre manter
uma aparência calma. Seria isso o que ele fazia sempre? Será que
representava quando estava comigo? Como é que eu poderia saber?
O Aspen prosseguiu:
— É melhor saberes agora. O que aconteceria se te casasses e depois
descobrisses que as coisas eram assim?
— Eu sei. Também tenho pensando nisso.
As palavras do Maxon na pista de dança repetiam-se vezes sem conta
na minha cabeça. Ele parecia tão seguro quanto ao nosso futuro, preparado
para me dar tanto... Eu achara sinceramente que ele só queria ver-me feliz.
Será que não conseguia ver o quanto eu estava infeliz agora?
— Tu tens um grande coração, Mer. Sei que não consegues deixar
simplesmente as coisas para trás, mas não há nenhum problema em
quereres fazê-lo. É só isso.
— Sinto-me tão idiota — sussurrei, com vontade de chorar.
— Tu não és idiota.
— Sou, sim.
— Mer, achas que eu sou inteligente?
— Claro.
— Pois, sou mesmo. E sou demasiado inteligente para estar
apaixonado por uma rapariga idiota. Portanto, podes parar com isso.
Soltei uma gargalhadinha e deixei que o Aspen me abraçasse.
— Sinto que te magoei tanto. Não percebo como ainda podes estar
apaixonado por mim — confessei.
Ele encolheu os ombros.
— As coisas são como são. O céu é azul, o Sol é luminoso e o Aspen
ama a America para sempre. Foi assim que o mundo foi feito. A sério, Mer,
és a única rapariga que alguma vez quis na vida. Não consigo imaginar-me
com mais ninguém. Tentei preparar-me para isso, pelo seguro, mas... não
consegui.
Continuámos ali, abraçados um ao outro. Cada carícia dos dedos do
Aspen, o calor da sua respiração nos meus cabelos eram um bálsamo para o
meu coração.
— Não devemos ficar muito mais tempo aqui — disse ele.— Tenho
grande confiança nas minhas capacidades, mas não quero abusar.
Suspirei. Parecia que acabáramos de chegar, mas ele tinha pro‐
vavelmente razão. Comecei a levantar-me e o Aspen deu um salto para me
ajudar. Puxou-me para si para um último abraço.
— Sei que é difícil de acreditar, mas lamento imenso que o Maxon
tenha acabado por se revelar um tipo tão mau. Queria-te de volta, mas não
queria ver-te magoada. Principalmente, não desta maneira.
— Obrigada.
— Falo a sério.
— Eu sei que sim — assegurei. O Aspen tinha os seus defeitos, mas
não era mentiroso. — Mas ainda não acabou. Não enquanto eu estiver aqui.
— Sim, mas eu conheço-te. Vais continuar para que a tua família
receba o dinheiro e para que possas continuar a ver-me, mas seria preciso
que ele voltasse atrás no tempo para remediar isto.
Respirei fundo. Talvez o Aspen tivesse razão. O poder que o Maxon
tinha sobre mim estava a desaparecer aos poucos, deslizando sobre a minha
pele como um casaco.
— Não te preocupes, Mer. Eu tomo conta de ti.
O Aspen não tinha forma de o provar naquele momento, mas acreditei
nele. Ele faria tudo por aqueles que amava e eu tinha a certeza absoluta de
que era a pessoa que ele mais amava.
***
Na manhã seguinte, não parei de pensar no Aspen enquanto me vestia,
tomava o pequeno-almoço e durante as horas passadas no Salão das
Mulheres. Sentia-me agradavelmente distraída, quando o som de uma pilha
de papéis colocados em cima da mesa à minha frente me trouxe de volta ao
mundo real.
Levantei os olhos e vi a Celeste, ainda exibindo um lábio inchado. Ela
apontou para uma das suas revistas de mexericos, que estava aberta num
artigo de duas páginas. Não demorei sequer um segundo a reconhecer o
rosto da Marlee, embora estivesse contorcido pela dor das vergastadas.
— Acho que deverias ver isto — disse a Celeste, antes de se afastar.
Não tinha bem a certeza do que ela queria dizer com aquilo, mas
estava tão ansiosa por saber qualquer coisa sobre a Marlee que mergulhei
no texto.

De todas as grandes tradições do nosso pais, talvez nenhuma


seja encarada com tanto entusiasmo como a Seleção. Criada
especialmente para trazer alegria a uma nação entristecida, parece
que todos ficam ainda um pouco inebriados perante o desenrolar da
grande história de amor entre um príncipe e a sua futura princesa.
Quando Gregory Illéa assumiu o trono, há mais de oitenta anos, e o
seu filho mais velho, Spencer, morreu repentinamente, o pais inteiro
chorou a perda de um jovem tão enigmático e promissor.
Quando o seu filho mais novo, Damon, foi indicado como
sucessor do trono, muitos questionaram se estaria pronto para, aos
dezoito anos, receber sequer formação para esse cargo. Mas Damon
sabia que estava preparado para entrar na vida adulta e decidiu
prová-lo através do maior compromisso de uma vida: o casamento.
Em poucos meses, nascia a Seleção e, com ela, o moral do pais
elevava-se com a possibilidade de uma rapariga normal se tornar a
primeira princesa de Illéa.
No entanto, desde então, temos sido forçados a questionar a
eficácia da competição. Embora se baseie numa ideia romântica,
alguns dizem que é injusto forçar um príncipe a casar-se com uma
mulher de estatuto inferior, embora ninguém possa negar o perfeito
aprumo e a beleza da nossa atual rainha, Amberly Station Schreave.
Alguns de nós ainda se lembram dos rumores acerca de Abby
Tamblin Illéa, que teria envenenado o marido, o Príncipe Justin
Illéa, poucos anos após o casamento, para depois concordar em
casar-se com o primo deste, Porter Schreave, mantendo assim a
linha real intacta.
Apesar de tal rumor nunca ter sido confirmado, o que podemos
certamente dizer é que desta vez o comportamento das mulheres no
palácio é simplesmente escandaloso. Marlee Tames, atualmente uma
Oito, foi apanhada com um guarda a despi-la dentro de um armário
na segunda-feira à noite, depois do baile de Halloween, o qual fora
anunciado como o destaque da programação sobre a Seleção. O
esplendor do baile foi totalmente ofuscado pelo comportamento
imprudente da Menina Tames, deixando o palácio em alvoroço na
manhã seguinte.
Mas, além das ações injustificáveis da Menina Tames, as
restantes jovens ainda no palácio podem também não ser dignas da
coroa. Uma fonte não identificada contou-nos que algumas das jo‐
vens da Elite discutem constantemente umas com as outras e
raramente se esforçam por cumprir as suas obrigações. Todos se
recordam da exclusão de Anna Farmer, no início de setembro,
depois de atacar deliberadamente a encantadora Celeste Newsome,
uma modelo de Clermont. E a nossa fonte confirma que esse não foi
o único caso de confronto físico no palácio dentro da Elite, o que
leva este jornalista a questionar o grupo de jovens escolhidas para o
Príncipe Maxon.
Quando pedimos um comentário sobre estes rumores, o Rei
Clarkson disse apenas: «Algumas destas raparigas vêm de castas
menos polidas e não estão familiarizadas com o comportamento
esperado no palácio. Evidentemente, a Menina Tames não estava
preparada para uma vida enquanto Um. A minha esposa possui uma
qualidade especifica e indefinível, que faz dela uma rara exceção
entre as castas inferiores. Procurou sempre elevar-se ao nível
adequado a uma rainha e seria um enorme desafio conseguir
encontrar alguém mais adequado ao trono do que ela. Mas no caso
de algumas das participantes de castas inferiores, que permanecem
na atual Seleção, mentiria se dissesse que não estávamos já à espera
disto.»
Embora Natalie Luca e Elise Whisks sejam ambas Quatro,
demonstraram sempre a maior elegância em público, especialmente
Lady Elise, que é bastante sofisticada. Somos forçados a deduzir que
o nosso rei se refere a America Singer, a única Cinco a ir além do
primeiro dia da Seleção. O desempenho da Menina Singer na
Seleção tem sido razoável. É suficientemente bonita, mas não exa‐
tamente o que Illéa esperava para a sua nova princesa. De vez em
quando, as suas entrevistas no Noticiário Oficial de Illéa são
divertidas, mas precisamos de uma nova líder e não de uma
comediante.
Ouvimos também relatos perturbadores de que a Menina Singer
tentou libertar a Menina Tames durante a sua punição, o que aos
olhos deste repórter a torna cúmplice das atividades traiçoeiras
perpetradas pela Menina Tames, ao ser infiel ao nosso príncipe.
Perante tantos relatos (e com a Menina Tames já afastada do
primeiro lugar), uma pergunta permanece: quem deve ser a nova
princesa?
Uma rápida sondagem junto dos leitores confirmou aquilo de
que já suspeitávamos.
Felicitamos as Meninas Celeste Newsome e Kriss Ambers pelo
seu empate no primeiro lugar da nossa sondagem. Elise Whisks está
em terceiro lugar, com Natalie Luca logo atrás. A uma grande
distância do quarto lugar, America Singer aparece em quinto e (sem
surpresas) último lugar. Penso falar por toda Illéa quando encorajo o
Príncipe Maxon a escolher com tempo e cuidado uma boa princesa
para todos nós. Evitámos por pouco um desastre, quando a Menina
Tames expôs a sua verdadeira natureza antes de a coroa lhe ser
colocada na cabeça. Príncipe Maxon, independentemente de quem
ame, certifique-se de que ela é digna. Queremos amá-la também!
Capítulo 13

Corri para fora do salão. Era evidente que a Celeste não estava a
fazer-me um favor; estava a mostrar-me qual era o meu lugar. Por que razão
é que me sentia sequer incomodada com isto? O rei esperava o meu
fracasso, o público não me queria e eu tinha a certeza de que não era capaz
de ser princesa.
Subi as escadas rápida e silenciosamente, tentando passar des‐
percebida. Não havia como saber quem era a fonte não identificada no
palácio.
— Minha senhora — disse a Anne, ao ver-me entrar —, tinha a
certeza de que iria permanecer no salão até ao almoço.
— Anne, podem sair, por favor?
— Perdão?
Respirei fundo, tentando não perder a paciência.
— Preciso de ficar sozinha. Por favor?
Sem dizerem uma palavra, fizeram uma reverência e saíram.
Aproximei-me do piano. Iria tentar distrair-me até não pensar mais naquilo.
Toquei algumas músicas que sabia de cor, mas isso era demasiado fácil.
Precisava de me concentrar efetivamente.
Levantei-me e vasculhei a banqueta do piano em busca de algo mais
difícil. Afastei várias partituras até dar com a lombada de um livro. O diário
de Illéa! Tinha-me esquecido completamente de que estava aqui. Aquilo
seria uma excelente distração. Levei o livro para cima da cama e abri-o,
observando as páginas antigas enquanto as ia folheando.
O diário abriu-se na página com a fotografia do Halloween, já que a
foto rígida agia naturalmente como marcador de páginas. Reli a entrada:
As crianças comemoraram o Halloween deste ano com uma
festa. Acho que é uma forma de esquecerem o que se passa à
sua volta, mas parece-me uma frivolidade. Somos uma das
poucas famílias que ainda têm dinheiro suficiente para
festejar, mas esta brincadeira infantil parece-me um
desperdício.

Olhei novamente para a imagem, detendo-me especificamente na


rapariga. Que idade teria? Qual seria a sua função? Será que gostava de ser
filha de Gregory Illéa? Será que isso a tornava muito popular?
Virei a página e percebi que não se tratava de uma nova entrada, mas
da continuação da mensagem sobre o Halloween.

Achei que, depois da invasão chinesa, veríamos os erros


que tínhamos cometido. Sempre me pareceu óbvio,
especialmente nos últimos tempos, que nos havíamos tornado
bastante preguiçosos. De facto, não admira que a China tenha
aparecido com tanta facilidade, assim como não é de
surpreender que tenhamos demorado tanto tempo para nos
organizarmos de modo a reagir. Perdemos aquele espírito que
levava as pessoas a atravessar os mares, a enfrentar invernos
devastadores e uma guerra civil. Ficámos preguiçosos e,
enquanto descansávamos, a China assumiu o controlo.
Nos últimos meses, em particular, tenho sentido o desejo
de doar mais do que dinheiro para os esforços de guerra. Quero
liderar. Tenho ideias e, depois de ter doado de modo tão gene‐
roso, talvez este seja o momento de as apresentar. Precisamos de
uma mudança e não consigo deixar de me perguntar se não serei
a única pessoa capaz de a realizar.
Senti calafrios. Não pude deixar de comparar o Maxon ao seu
antepassado. Gregory parecia inspirado; estava a tentar pegar em algo
desconjuntado e torná-lo de novo inteiro. Perguntei-me o que pensaria da
monarquia, se estivesse vivo.
***
Quando o Aspen abriu silenciosamente a porta nessa noite, estava
desejosa de lhe contar o que lera. Mas lembrei-me de que mencionara ao
meu pai a existência do diário e que só isso era já uma quebra da minha
promessa.
— Como tens passado? — perguntou ele, ajoelhando-se ao pé da
minha cama.
— Bem, acho eu. A Celeste mostrou-me um artigo hoje.— Abanei a
cabeça. — Não sei se quero falar disso. Estou tão farta dela.
— Acho que, com a saída da Marlee, ele não vai mandar ninguém
embora durante algum tempo, não é?
Encolhi os ombros. Sabia que o público estivera à espera de uma
eliminação, mas o que acontecera com a Marlee fora mais dramático do que
o antecipado.
— Ei — disse ele, arriscando tocar-me sob a luz que entrava pela
porta escancarada. — Vai correr tudo bem.
— Eu sei. É que sinto saudades dela. E estou confusa.
— Confusa sobre o quê?
— Sobre tudo: o que faço aqui, quem sou. Achava que sabia... Nem
sequer consigo explicar.
Esse parecia ser o meu problema ultimamente. Todos os meus
pensamentos estavam confusos. Era incapaz de os organizar.
— Tu sabes quem és, Mer. Não deixes que eles te mudem.
A voz dele era tão sincera que, por um instante, tive a certeza disso.
Não porque tivesse as respostas, mas porque tinha o Aspen. Se algum dia
perdesse de vista quem realmente era, sabia que ele estaria ali para me
trazer de volta.
— Aspen, posso perguntar-te uma coisa?
Ele assentiu com a cabeça.
— É um pouco estranho, mas se eu não precisasse de casar com
alguém para ser princesa, se fosse apenas um cargo que eu pudesse
desempenhar, achas que seria capaz?
O Aspen arregalou os seus olhos verdes por um instante, corno se
analisasse a enormidade da pergunta. A seu favor, reparei que ponderava
cuidadosamente a hipótese.
— Desculpa, Mer, mas acho que não. Tu não és calculista como eles.
Havia uma expressão de desculpas na sua face, mas não fiquei
ofendida por ele achar que eu não era capaz de ser princesa. Apenas fiquei
um pouco surpreendida com o seu raciocínio.
— Calculista? De que modo?
Ele suspirou.
— Eu estou em todo o lado, Mer. Ouço coisas. Há muita agitação no
Sul, nas áreas com grande concentração de castas inferiores. Segundo os
guardas mais antigos, essas pessoas nunca concordaram muito com os
métodos de Gregory Illéa e já há muito tempo que há conflitos na região.
De acordo com os rumores, é em parte por isso que o rei se sentiu tão
atraído pela rainha. Ela veio do Sul e a sua escolha acalmou o povo por uns
tempos. Mas parece que já não é tanto assim.
Pensei outra vez em mencionar o diário, mas achei melhor não o fazer.
— Isso não explica o que queres dizer com «calculista».
Ele hesitou.
— Outro dia, antes de toda esta história do Halloween, eu estava num
dos gabinetes. Eles falavam sobre simpatizantes dos rebeldes do Sul.
Pediram-me que levasse umas cartas em segurança até à ala postal. Eram
mais de trezentas cartas, America. Trezentas famílias que iriam ser
despromovidas de casta por não terem denunciado alguma coisa ou por
terem ajudado alguém que o palácio considerava uma ameaça.
Fiquei sem fôlego.
— Eu sei. Consegues imaginar? E se fosses tu e tudo o que soubesses
fazer era tocar piano? De repente, terias de saber trabalhar num escritório.
Como é que irias sequer encontrar trabalho nessa área? A mensagem é bem
clara.
Assenti, concordando.
— Achas que... o Maxon sabe disto?
— Acho que tem de saber. Já não falta muito para ter de governar
sozinho.
Bem fundo, no meu coração, não queria acreditar que ele tivesse
concordado com isto, mas parecia provável que estivesse a par do que se
passava. Afinal, era suposto ele alinhar com as decisões.
Seria eu capaz de fazer o mesmo?
— Não contes a ninguém, está bem? Um deslize como este poderia
custar-me o emprego — avisou o Aspen.
— Claro. Já está esquecido.
O Aspen sorriu-me.
— Tenho saudades de estar contigo, longe de tudo isto. Sinto falta dos
nossos problemas antigos.
Ri-me.
— Entendo o que queres dizer. Sair às escondidas pela minha janela
era muito mais fácil do que andar às escondidas pelo palácio.
— E estafar-me para te arranjar uma moeda era melhor do que não ter
nada para te dar. — Ele tocou no frasco ao lado da minha cama, aquele que
costumava conter as centenas de moedas que ele me dera como pagamento
por cantar para ele na casa da árvore, em Carolina. Um pagamento que ele
achava que eu merecia.
— Não sabia que as tinhas guardado todas até ao dia antes da tua
partida.
— Claro que guardei! Quando estavas longe, elas eram tudo o que me
restava. Às vezes, despejava-as na mão, em cima da cama, só para as juntar
todas de novo. Era bom ter algo em que tu tinhas tocado.
Os nossos olhares cruzaram-se e tudo o resto pareceu distante por um
momento. Confortava-me estar novamente naquela bolha, o lugar que o
Aspen e eu criáramos para nós anos antes.
— O que fizeste com elas? — perguntei.
Estava tão furiosa com ele quando me vim embora que lhas devolvi
todas. Todas menos aquela que ficou presa no fundo do frasco.
Ele sorriu.
— Estão em casa, à espera.
— De quê?
Os olhos dele brilharam.
— Isso não posso dizer.
Suspirei por entre um sorriso.
— Está bem. Fica com os teus segredos. E não te preocupes por não
teres nada para me dar. Estou feliz por estares aqui, por podermos pelo
menos resolver as coisas, mesmo que não seja como dantes.
Mas claramente, isso não bastava ao Aspen. Agarrou na ponta da sua
manga e arrancou um dos seus botões dourados.
— Não tenho literalmente mais nada para te oferecer, mas podes ficar
com isto, uma coisa em que toquei, e pensar em mim quando quiseres.
Podes ter a certeza de que vou estar também a pensar em ti.
Era uma parvoíce, mas apetecia-me chorar. O instinto natural de
comparar o Aspen com o Maxon era inevitável. Mesmo agora, quando o
momento de ter de escolher entre um e o outro parecia uma coisa muito
distante, eu colocava-os lado a lado.
Era muito fácil para o Maxon dar-me coisas, até mesmo ressuscitar
um feriado por minha causa ou garantir que eu tivesse o melhor de tudo,
porque ele tinha o mundo à disposição. E ali estava o Aspen, a oferecer-me
preciosos momentos roubados e uma ninharia qualquer para nos manter
ligados um ao outro, e a sensação que eu tinha era de que ele me dera muito
mais.
Lembrei-me de repente de que o Aspen sempre fora assim.
Sacrificava o seu sono por mim, arriscava-se a ser apanhado depois do
toque de recolher por mim, juntava moedas para mim. A generosidade do
Aspen era mais difícil de ver porque não era grandiosa como a do Maxon,
mas o coração por trás do que ele me dava era muito maior.
Funguei, reprimindo a vontade de chorar.
— Não sei como fazer isto agora. Sinto-me como se não soubesse
fazer nada. Eu... eu não te esqueci, está bem? Ainda estás aqui.
Coloquei a mão no peito, em parte para lhe mostrar o que sentia e em
parte para acalmar a estranha saudade que guardava ali. Ele compreendeu.
— Isso basta-me.
Capítulo 14

Observei discretamente o Maxon durante o pequeno-almoço, no dia


seguinte. Perguntei-me o quanto ele saberia sobre o que se passava com as
pessoas que estavam a perder as suas castas no Sul. Ele apenas olhou na
minha direção uma vez, mas parecia mais interessado em algo próximo de
mim do que propriamente em mim.
Sempre que me sentia desconfortável, baixava a mão e tocava no
botão dado pelo Aspen. Enfiara-o numa fita e usava-o a servir de pulseira.
Aquilo iria ajudar-me a ultrapassar o meu tempo no palácio.
Quase no fim da refeição, o rei levantou-se e virámo-nos todas para
ele.
— Como já restam poucas de vós agora, pensei que seria uma boa
ideia tomarmos chá amanhã à noite, antes do Noticiário. Visto que uma de
vós irá ser nossa nora, a rainha e eu gostaríamos de ter mais oportunidades
de conversar convosco e de conhecer os vossos interesses e coisas desse
género.
Senti-me um pouco nervosa. Relacionar-me com a rainha era uma
coisa, mas não sabia ao certo o que pensar do rei. Enquanto as outras
raparigas o encaravam ansiosas, tomei um gole do meu sumo.
— Por favor, apareçam uma hora antes do Noticiário na sala de estar
do primeiro andar. Se não souberem onde é, não se preocupem. As portas
estarão abertas e haverá música a tocar. Vão ouvir-nos antes de nos verem
— concluiu com uma risada. As outras riram-se também.
Pouco depois, as raparigas começaram a dirigir-se ao Salão das
Mulheres. Suspirei. Por vezes, e apesar do seu tamanho, aquele salão fazia-
me sentir claustrofóbica. Normalmente tentava conversar com as pessoas ou
usava o tempo livre para ler. Hoje iria ser um dia ao estilo da Celeste; iria
sentar-me em frente da televisão e desligar mentalmente.
Isto era mais fácil de dizer do que de fazer. As raparigas pareciam
especialmente conversadoras hoje.
— O que será que o rei quer saber sobre nós? — tagarelou a Kriss.
— Só temos de nos lembrar de tudo o que Silvia nos ensinou sobre
postura — comentou a Elise.
— Espero que as minhas criadas preparem um vestido decente para
amanhã à noite. Não quero ter de passar pelo que passei no Halloween. Por
vezes, são umas completas cabeças de vento — queixou-se a Celeste,
parecendo aborrecida.
— Gostaria que o rei deixasse crescer a barba — disse a Natalie,
pensativa. Olhei por cima do ombro e vi-a acariciar uma barba imaginária
no seu queixo. — Acho que lhe ficaria bem.
— Sim, dá para ver — disse a Kriss educadamente, antes de pros‐
seguir.
Abanei a cabeça e procurei concentrar-me no programa ridículo à
minha frente, mas apesar dos meus esforços, não conseguia desligar-me da
conversa das outras.
A hora do almoço, estava já uma pilha de nervos. O que é que ele
quereria dizer-me, à rapariga da casta mais baixa que ainda permanecia na
competição? O que poderia ele querer conversar com a rapariga de quem
esperava tão pouco?
***
O Rei Clarkson tinha razão. Ouvi a melodia do piano muito antes de
encontrar a sala de estar. O músico era bom, melhor do que eu sem dúvida.
Hesitei antes de entrar. Decidi que faria pausas antes falar, pesando
bem cada palavra. Apercebi-me de que queria provar que ele estava errado.
Ele e também aquele repórter. Ainda que perdesse, não queria ir para casa
como uma perdedora. Fiquei surpreendida por aquilo significar de repente
tanto para mim.
Entrei e a primeira coisa que vi foi o Maxon, de pé no fundo da sala, a
conversar com o Gavril Fadaye. O Gavril bebia vinho em vez de chá e
perdeu de repente a atenção do Maxon. Este cravou os olhos em mim e era
capaz de jurar que os seus lábios formaram um «uau».
Virei a cabeça, corando, e afastei-me. Arrisquei um novo olhar para
ele e notei que estava a observar todos os meus movimentos. Era difícil
pensar racionalmente quando ele olhava para mim daquela maneira.
O Rei Clarkson conversava com a Natalie num canto, enquanto a
Rainha Amberly falava com a Celeste noutro. A Elise bebia chá e a Kriss
caminhava pela sala. Observei-a quando passou pelo Maxon e pelo Gavril,
sorrindo calorosamente a este último. Ela disse qualquer coisa que fez com
que ambos se rissem e continuou a andar, lançando um olhar para o Maxon
por cima do ombro.
Depois disso, veio ter comigo.
— Estás atrasada — admoestou-me na brincadeira.
— Estava um pouco nervosa.
— Ah, não tens nada com que te preocupar. Até foi divertido.
— Já foste chamada?
Se o rei já falara com pelo menos duas raparigas, eu tinha ainda
menos tempo para me preparar do que pensava.
— Sim. Senta-te ao pé de mim. Podemos tomar um chá enquanto
esperas.
A Kriss conduziu-me para junto de uma mesa e uma criada apareceu
imediatamente, colocando chá, leite e açúcar à nossa frente.
— O que é que ele te perguntou? — insisti.
— Na realidade, foi mais uma conversa. Não acho que ele esteja
exatamente à procura de informações. Parece mais querer ficar com uma
ideia das nossas personalidades. Fi-lo rir uma vez! — disse, exultante. —
Correu muito bem. E tu és naturalmente engraçada. Por isso, se falares com
ele como fazes com toda a gente, vai correr tudo bem.
Assenti com a cabeça antes de pegar no meu chá. Ela fazia com que a
situação parecesse simples. Talvez o rei tivesse de se compartimentar.
Quando era preciso lidar com ameaças ao país, tinha de ser frio e decidido.
Tinha de agir depressa e com determinação. Mas isto era apenas um chá
com um grupo de raparigas. Não precisava de ser assim connosco.
A rainha afastara-se da Celeste e falava agora suavemente com a
Natalie. A expressão no rosto desta era de adoração. Durante algum tempo,
a sua personalidade sonhadora irritara-me, mas ela era uma pessoa simples
e a sua atitude era refrescante.
Bebi mais um pouco de chá. O Rei Clarkson aproximou-se da Celeste
e esta ofereceu-lhe um sorriso sedutor. Foi um pouco perturbador. Onde
estavam os limites dela?
A Kriss inclinou-se para tocar no meu vestido.
— Esse tecido é fantástico. Com o teu cabelo, pareces um pôr do sol.
— Obrigada — disse eu, pestanejando. A luz refletira-se no colar
dela, causando uma explosão prateada no seu pescoço que me cegou por um
instante. — As minhas aias são muito habilidosas.
— Sem dúvida. Eu gosto das minhas, mas se me tornar princesa, vou
roubar as tuas!
Ela riu-se, talvez considerando as suas palavras uma piada, ou talvez
não. Em todo caso, a ideia das minhas aias a coserem as roupas dela
perturbou-me. Ainda assim, forcei um sorriso.
— O que é tão engraçado? — perguntou o Maxon, aproximando-se.
— Conversa de mulheres — respondeu a Kriss de um modo pro‐
vocante. Ela estava mesmo animada hoje. — Estava a tentar acalmar a
America. Ela está nervosa por ir conversar com o seu pai.
Obrigada, Kriss.
— Não tens nada com que te preocupares. Sê natural. Já tens um
aspeto fantástico. — O Maxon fez-me um sorriso descontraído. Estava
claramente a tentar reabrir as nossas vias de comunicação.
— Foi o que eu disse! — exclamou a Kriss. Eles trocaram um olhar
rápido e tive a sensação de que formavam uma equipa. Era estranho.
— Bem, vou deixar-vos continuar a vossa conversa de mulheres. Até
logo. — O Maxon fez-nos uma ligeira vénia e foi para junto da mãe.
A Kriss suspirou, enquanto observava o Maxon a afastar-se.
— Ele é mesmo demais — disse, fazendo-me um sorriso rápido e indo
falar com o Gavril.
Fiquei a observar aquela dança elaborada na sala: pares que se
formavam para conversar, separando-se depois para encontrarem novos
parceiros. Até fiquei feliz quando a Elise se juntou a mim no meu canto,
embora ela não tenha dito muito.
— Oh, minhas senhoras, parece que o tempo voou — anunciou o rei.
— Temos de descer.
Ergui os olhos para o relógio. Ele estava certo; tínhamos cerca de dez
minutos para descer até ao estúdio e prepararmo-nos.
O modo como me sentia em relação a ser uma princesa, ou em relação
ao Maxon ou a tudo o resto, não parecia importar. O rei achava,
evidentemente, que eu era uma candidata tão improvável que nem quis
perder tempo a falar comigo. Fui excluída, talvez de propósito, e ninguém
reparou sequer.
Aguentei-me durante o Noticiário. Aguentei até dispensar as minhas
aias. Mas assim que fiquei sozinha, fui-me abaixo.
Não sabia como iria explicar esta reação quando o Maxon viesse bater
à minha porta, mas isso acabou por não importar. Ele não apareceu. E não
pude deixar de me perguntar com quem estaria.
Capítulo 15

As minhas aias eram uma bênção. Não fizeram perguntas sobre os


meus olhos inchados nem sobre os travesseiros manchados de lágrimas.
Apenas me ajudaram a acalmar-me. Deixei que me mimassem, grata pela
atenção. Eram maravilhosas para mim. Será que seriam assim tão
simpáticas com a Kriss se ela ganhasse a Seleção e as levasse consigo?
Observei-as enquanto pensava no assunto e surpreendi-me ao notar
alguma tensão entre elas. A Mary parecia bem, talvez um pouco
preocupada. Mas a Anne e a Lucy davam a impressão de evitar olhar uma
para a outra, falando apenas quando era mesmo necessário.
Não fazia ideia do que se passava e também não sabia se deveria
perguntar. Elas nunca se intrometiam nas minhas fúrias e tristezas; portanto,
achei que era correto fazer o mesmo por elas.
Tentei não deixar que o silêncio me incomodasse, enquanto elas me
penteavam e me vestiam para um longo dia no Salão das Mulheres. Ansiava
por vestir uma das calças luxuosas que o Maxon me dera para usar aos
sábados, mas esta parecia ser uma má altura para o fazer. Já que iria descer,
queria fazê-lo como uma lady. Pontos para mim pelo esforço.
Enquanto me acomodava para mais um dia de chá e livros, as outras
conversavam sobre a noite anterior. Bem, todas exceto a Celeste, que tinha
mais revistas de mexericos para ler. Perguntei-me se a que ela tinha nas
mãos diria alguma coisa sobre mim.
Estava a ponderar se deveria tirar-lha, quando a Silvia entrou com
uma grande pilha de papéis nas mãos. Ótimo. Mais trabalho.
— Bom dia, minhas senhoras! — cantarolou a Silvia. — Sei que
habitualmente recebem convidados aos sábados, mas hoje a rainha e eu
temos uma tarefa especial para vocês.
— Sim — disse a rainha, aproximando-se. — Sei que é um pouco em
cima da hora, mas vamos ter visitas. Vão fazer uma ronda pelo país e farão
uma paragem no palácio para vos conhecer.
— Como sabem, a rainha costuma encarregar-se de receber os
convidados importantes. Todas viram a elegância com que recebeu os
nossos amigos da Noruécia. — A Silvia fez um gesto na direção da rainha,
que sorriu discretamente. — No entanto, os visitantes que vamos receber da
Federação Alemã e de Itália são ainda mais importantes do que a família
real da Noruécia. E pensámos que esta visita seria um excelente exercício
para todas, principalmente porque nos temos concentrado bastante na
diplomacia nos últimos tempos. Irão trabalhar em equipas a fim de
prepararem uma receção para os vossos respetivos convidados, a qual
incluirá as refeições, os divertimentos e os presentes.
Engoli em seco enquanto ela prosseguia.
— É muito importante para nós mantermos as alianças atuais, bem
como forjar novas alianças com outros países. Temos guias que descrevem
a etiqueta adequada para interagir com estes convidados, assim como guias
indicando o que deve ser evitado na preparação de eventos em sua honra. A
execução das tarefas, contudo, está nas vossas mãos.
— Quisemos que a situação fosse a mais justa possível — disse a
rainha. — E acho que fizemos um bom trabalho, dando-vos a todas a
mesma tarefa. Celeste, Natalie e Elise, vocês organizarão uma das receções.
Kriss e America, vocês ficarão com a outra. E como o vosso grupo tem uma
pessoa a menos, terão um dia a mais. Os visitantes da Federação Alemã
chegam na quarta-feira e os convidados de Itália serão recebidos na quinta.
Fez-se um momento de silêncio enquanto digeríamos tudo aquilo.
— Quer dizer que temos quatro dias? — guinchou a Celeste.
— Sim — respondeu a Silvia. — Mas a rainha faz este trabalho
sozinha e às vezes com menos tempo ainda.
O pânico era percetível.
— Podemos ver os papéis, por favor? — pediu a Kriss, estendendo a
mão. Instintivamente, fiz o mesmo. Em segundos, estávamos a devorar as
páginas.
— Vai ser difícil — disse a Kriss. — Mesmo com o dia extra.
— Não te preocupes — assegurei. — Vamos ganhar.
Ela soltou uma gargalhada nervosa.
— Como podes ter tanta certeza?
— Porque — disse eu, resoluta — não vou permitir que a Celeste se
saia melhor do que eu.
***
Demorámos duas horas para ler toda a papelada e mais uma para
digerir o que lá estava escrito. Havia tantas coisas diferentes a considerar,
tantos detalhes para planear. A Silvia afirmara que estaria à nossa
disposição, mas eu suspeitava de que, se lhe pedíssemos ajuda, ela iria
pensar que não éramos capazes de fazer um bom trabalho sozinhas;
portanto, isso estava fora de questão.
A preparação iria ser um desafio. Não poderíamos usar flores
vermelhas porque estavam associadas ao sigilo. Não poderíamos usar flores
amarelas porque estavam associadas à inveja. E não poderíamos usar roxo
em nada porque estava associado ao azar.
O vinho, a comida e tudo o resto tinham de ser sumptuosos. O luxo
não era encarado como ostentação, mas como uma postura palaciana. Se as
coisas não fossem suficientemente boas, os convidados poderiam ir-se
embora com uma má impressão e sem nenhuma vontade de nos visitar
novamente. E, além de tudo isso, as coisas básicas que deveríamos ter
aprendido — falar com clareza, os modos corretos à mesa, etc. — tinham
de ser adaptadas a uma cultura sobre a qual a Kriss e eu não tínhamos
qualquer conhecimento, além do que estava na nossa papelada.
Era incrivelmente intimidante.
A Kriss e eu passámos o dia a tomar notas e a discutir ideias,
enquanto as outras faziam o mesmo numa mesa próxima. À medida que a
tarde avançava, os grupos começaram a queixar-se cada vez mais sobre
quem ficara com a pior situação, o que, ao fim de algum tempo, até se
tornou divertido.
— Vocês as duas têm pelo menos mais um dia para trabalhar —
afirmou a Elise.
— Mas Illéa e a Federação Alemã já são aliadas. Os italianos podem
detestar tudo o que fizermos! — afligiu-se a Kriss.
— Sabias que temos de usar cores escuras na nossa receção? —
lamentou-se a Celeste. — Vai ser um evento muito... rígido.
— Mas também não iríamos querer que fosse uma coisa mole — disse
a Natalie, abanando-se. Ela riu-se da sua própria piada e eu sorri antes de
continuar a conversa.
— Bem, a nossa tem de ser superfestiva. E vocês vão todas ter de usar
as vossas melhores joias — instruí. — Têm de causar uma excelente
primeira impressão e as aparências são muito importantes.
— Que bom! Pelo menos, vou poder estar linda numa destas coisas
idiotas — suspirou a Celeste, abanando a cabeça.
No fundo, era óbvio que estávamos todas com dificuldades. Depois de
tudo o que acontecera com a Marlee e depois de ter sido, de certo modo,
dispensada pelo rei, senti um alívio estranho por saber que sofríamos todas
em conjunto. Mas mentiria se dissesse que consegui passar um dia inteiro
sem entrar em paranoia. Estava convencida de que uma das outras,
principalmente a Celeste, tentaria sabotar a nossa receção.
— As tuas aias são de confiança? — perguntei à Kriss, durante o
jantar.
— Muito. Porquê?
— Acho que talvez devêssemos guardar algumas coisas nos nossos
quartos, em vez de as deixarmos no salão. Sabes, para as outras não
tentarem usar as nossas ideias. — Era uma pequena mentira.
Ela concordou.
— Boa ideia. Especialmente porque somos as segundas e poderia
parecer que nós é que as copiámos.
— Exatamente.
— És tão esperta, America. Não admira que o Maxon tenha gostado
tanto de ti. — E continuou a comer.
Não pude deixar de notar o seu uso displicente do passado. Talvez,
enquanto eu me preocupava em estar à altura de ser uma princesa e me
sentia completamente sem certezas quanto a querer sê-lo, o Maxon já
estivesse a esquecer-me.
Convenci-me de que ela estava apenas a tentar sentir-se mais
confiante em relação à sua posição junto do Maxon. Além disso, tinham
passado apenas alguns dias desde que a Marlee fora açoitada. O que é que
ela poderia saber já?
***
O som cortante de uma sirene interrompeu subitamente o meu sono.
Era um som tão diferente que não consegui perceber do que se tratava.
Tudo o que sabia era que o meu coração disparara no meu peito devido ao
súbito pico de adrenalina.
Em menos de um segundo, a porta do meu quarto escancarou-se e um
guarda entrou a correr.
— Raios, raios, raios — repetia.
— Hã? — perguntei atordoada, quanto ele corria para mim.
— Levanta-te, Mer! — ordenou, e eu obedeci. — Onde estão os teus
malditos sapatos?
Sapatos. Então, eu ia a algum sítio. Só então o som fez sentido. O
Maxon dissera-me uma vez que havia um alarme para quando os rebeldes
nos invadiam, mas que fora completamente destruído num ataque recente.
Devia ter sido finalmente consertado.
— Aqui — disse eu, encontrando os sapatos e calçando-me. — Pre‐
ciso do meu roupão. — Apontei para os pés da cama e o Aspen pegou nele,
tentando abri-lo. — Deixa. Levo-o na mão.
— Tens de te despachar — disse ele. — Não sei se já estão perto.
Assenti com a cabeça e corri para a porta. O Aspen mantinha uma
mão nas minhas costas e, antes de eu chegar ao corredor, puxou-me para
trás. Dei por mim no meio de um beijo profundo e áspero. O Aspen
segurava a minha cabeça, mantendo os nossos lábios unidos por um longo
momento. Depois, como se se tivesse esquecido do perigo, envolveu-me
pela cintura com a outra mão e o beijo tornou-se ainda mais intenso. Há
muito tempo que não me beijava assim; afinal, entre o meu coração
indeciso e o medo de sermos apanhados, não havia nenhuma razão para o
fazer. Mas senti uma urgência nesta noite. Alguma coisa poderia correr mal
e este poderia ser o nosso último beijo.
Ele queria que o momento tivesse significado.
Afastámo-nos, mal voltando a olhar um para o outro. Ele agarrou-me
pelo braço e empurrou-me para fora do quarto.
— Vai. Agora.
Corri para a passagem secreta no fundo do corredor. Antes de
empurrar a parede, olhei para trás e tive um vislumbre das costas do Aspen,
antes de ele virar a esquina.
Não havia mais nada a fazer senão correr e por isso corri. Percorri o
mais depressa que consegui a escadaria íngreme e escura que conduzia ao
abrigo reservado à família real.
O Maxon dissera-me uma vez que havia dois tipos de rebeldes: os
Nortistas e os Sulistas. Os primeiros eram incómodos, mas os segundos
eram mortíferos. Esperava que aqueles de quem fugia estivessem mais
interessados em incomodar do que em matar.
O frio aumentava à medida que descia as escadas. Queria vestir o
roupão, mas receava tropeçar. Senti-me mais segura quando avistei a luz do
abrigo. Saltei do último degrau e pude ver uma silhueta que se destacava no
meio dos guardas: o Maxon. Apesar de ser tarde, estava ainda vestido com
as calças do fato e a camisa, ligeiramente amarrotada, mas ainda assim
apresentável.
— Sou a última? — perguntei, vestindo o roupão enquanto me
aproximava.
— Não — respondeu ele. — A Kriss ainda está lá fora. E a Elise
também.
Olhei para trás, para o corredor escuro, que parecia não ter fim. Em
ambas as direções, conseguia distinguir as estruturas de três ou quatro
escadarias que vinham de pontos secretos do interior do palácio. Estavam
todas desertas.
Se alguma coisa do que o Maxon me dissera era verdade, os seus
sentimentos em relação à Kriss e à Elise eram limitados. Mas não havia
dúvidas de que os seus olhos exprimiam preocupação por elas. Ele esfregou
a testa e esticou o pescoço, como se isso fosse ajudá-lo a ver na escuridão.
Olhámos por cima do ombro um do outro, observando as escadas, enquanto
os soldados se agitavam à volta da porta, claramente ansiosos por fechá-la.
De repente, ele respirou fundo e levou as mãos à cintura. Depois, sem
qualquer aviso, abraçou-me. Não resisti a apertá-lo contra mim.
— Sei que provavelmente ainda estás zangada, mas estou feliz por
estares segura.
O Maxon não me tocava desde o Halloween. Ainda nem passara uma
semana, mas, por algum motivo, parecia uma eternidade. Talvez por terem
acontecido demasiadas coisas nessa noite e mais ainda desde então.
— Estou feliz por tu também estares seguro.
Ele apertou-me com mais força. De repente, exclamou:
— A Elise!
Virei-me e vi a sua silhueta esguia a descer as escadas. Onde estava a
Kriss?
— É melhor vocês entrarem — insistiu gentilmente o Maxon. — A
Silvia está à espera.
— Falamos em breve.
Ele fez-me um ligeiro sorriso, cheio de esperança, e assentiu com a
cabeça. Dirigi-me para o abrigo com a Elise logo atrás. Quando entrámos,
notei que ela chorava. Passei-lhe o braço sobre os ombros e ela fez o
mesmo comigo, feliz por ter companhia.
— Onde estavas? — perguntei.
— Acho que a minha aia está doente; ela atrasou-se um pouco para
me ajudar. E depois senti-me tão apavorada com o alarme que fiquei
confusa e não conseguia lembrar-me do sítio para onde deveria ir. Empurrei
quatro paredes diferentes antes de encontrar a certa.— Abanou a cabeça
perante o seu esquecimento.
— Não te preocupes — disse eu, abraçando-a. — Agora, estás segura.
Ela anuiu para si mesma e tentou acalmar a respiração. De nós as
cinco, era de longe a mais frágil.
Ao avançarmos no abrigo, vi o rei e a rainha sentados juntos, ambos
de roupão e pantufas. O rei tinha uma pequena pilha de papéis no colo,
como se fosse aproveitar o tempo aqui em baixo para trabalhar. Uma aia
massajava as mãos da rainha e ambas tinham uma expressão séria no rosto.
— Então, vem sozinha desta vez? — gracejou a Silvia, atraindo a
nossa atenção.
— Elas não estavam comigo — respondi, subitamente preocupada
com a segurança das minhas aias.
Ela sorriu com simpatia.
— Tenho a certeza de que estão bem. Venham, por aqui.
Seguimo-la até junto de uma fila de camas improvisadas, encostadas a
uma parede desnivelada. Na última vez que estivera ali, notara-se que as
pessoas que cuidavam daquele espaço não estavam preparadas para o caos
da presença de todas as Selecionadas. As coisas tinham melhorado desde
então, mas ainda não estavam atualizadas. Havia seis camas.
A Celeste estava encolhida na cama mais próxima do rei e da rainha,
embora ainda estivéssemos a alguma distância deles. A Natalie acomodara-
se ao lado dela e fazia tranças em madeixas do seu cabelo.
— Gostaria que dormissem. Têm todas pela frente uma semana de
trabalho duro e não quero vê-las mortas de cansaço a planear as receções.
— A Silvia retirou-se, provavelmente para ir à procura da Kriss.
A Elise e eu suspirámos. Não podia acreditar que iriam obrigar-nos a
continuar com toda aquela história da receção. Será que isto não era já
suficientemente enervante? Separámo-nos e dirigimo-nos para camas
vizinhas. A Elise enfiou-se rapidamente debaixo dos cobertores, claramente
exausta.
— Elise? — chamei em voz baixa. Ela abriu os olhos. — Se preci‐
sares de alguma coisa, diz-me, está bem?
— Obrigada — agradeceu ela, com um sorriso.
— De nada.
Ela virou-se para o outro lado e pareceu adormecer em poucos
segundos. Tive a certeza disso quando nem sequer se moveu com todo o
barulho vindo da porta. Olhei para trás e vi o Maxon trazendo a Kriss ao
colo para o abrigo, com a Silvia logo atrás deles. Assim que ela entrou, a
porta foi trancada.
— Tropecei — explicou a Kriss à Silvia, que se agitava preocupada à
sua volta. — Acho que não parti o tornozelo, mas dói imenso.
— Há ligaduras ali ao fundo. Podemos pelo menos ligá-lo — instruiu
o Maxon. A Silvia afastou-se rapidamente, passando por nós a caminho das
ligaduras.
— Durmam! Já! — ordenou.
Soltei um suspiro e não fui a única. A Natalie não ligou, mas a Celeste
pareceu ficar bastante irritada. Recompus-me, então. Se o meu
comportamento era de algum modo semelhante ao dela, eu precisava de
mudar. Embora não o quisesse, enfiei-me na minha cama e virei-me para a
parede.
Tentei não pensar no Aspen a combater lá em cima, nem nas minhas
aias que talvez não tivessem chegado suficientemente depressa aos seus
abrigos. Tentei não me preocupar com a semana que se aproximava, nem
com a possibilidade de os rebeldes serem Sulistas e tentarem matar toda a
gente lá em cima enquanto descansávamos.
Mas acabei por pensar em tudo isso. E foi tão desgastante que acabei
por adormecer no meu estrado duro e frio.
***
Não sei que horas eram quando acordei, mas devia ter passado
bastante tempo desde que havíamos chegado ao abrigo. Virei-me na cama e
olhei para a Elise. Dormia tranquilamente. O rei lia os seus papéis,
mexendo neles com tanta rapidez que parecia estar furioso com eles. A
rainha tinha a cabeça apoiada no encosto da cadeira. Parecia ainda mais
bela quando dormia.
A Natalie ainda estava a dormir, ou pelo menos assim parecia. Mas a
Celeste estava acordada, apoiada sobre um cotovelo e a observar algo do
outro lado da sala. Os seus olhos lançavam chispas, que geralmente me
eram reservadas. Segui o seu olhar até à parede oposta, onde se
encontravam a Kriss e o Maxon.
Estavam sentados lado a lado e o Maxon colocara o braço sobre os
ombros da Kriss, enquanto esta mantinha as pernas encolhidas contra o
peito como se estivesse a tentar manter-se quente, embora usasse um
roupão. O seu tornozelo esquerdo estava envolvido em gaze e parecia não
estar a incomodá-la. Conversavam em voz baixa, com sorrisos nos rostos.
Não quis ver aquilo e, por isso, virei-me novamente na cama.
Quando a Silvia me tocou no ombro para me acordar, o Maxon já
tinha saído. E a Kriss também.
Capítulo 16

Quando cheguei ao cimo das escadas, que me tinham conduzido a um


porto seguro na noite anterior, era óbvio que os Sulistas tinham estado ali.
No pequeno corredor que conduzia ao meu quarto havia uma pilha
destroços, que tive de transpor para conseguir chegar à minha porta.
Como era habitual, quando nos deixavam sair do abrigo, a pior parte
dos estragos já havia desaparecido. Desta vez, porém, parecia que os
empregados não tinham conseguido dar conta de tudo, o que nos forçaria a
passar o dia inteiro no subterrâneo. Ainda assim, desejei que se tivessem
esforçado um pouco mais. Vi um grupo de criadas a trabalhar, esfregando
umas letras gigantes numa parede.

ESTAMOS A CHEGAR

A frase repetia-se ao longo do corredor, às vezes escrita com lama,


outras vezes a tinta e, numa ocasião, parecia ter sido escrita com sangue.
Senti calafrios e perguntei-me o que significaria aquilo.
Enquanto estava ali parada, as minhas aias correram para mim.
— Está bem, menina? — perguntou a Anne.
Assustei-me com a sua aparição repentina.
— Hum, sim. Estou bem. — Voltei a olhar para as palavras na parede.
— Venha, menina, vamos tratar de si — insistiu a Mary.
Segui-as obedientemente, ainda um pouco atordoada com tudo o que
vira e demasiado confusa para fazer qualquer outra coisa. As três
trabalharam de modo deliberado, como faziam quando queriam acalmar-me
com a rotina de me vestirem. Algo nas suas mãos firmes — mesmo as da
Lucy — era reconfortante.
Quando fiquei pronta, uma criada veio buscar-me para me
acompanhar até ao exterior, onde iríamos aparentemente trabalhar esta
manhã. Era tão fácil esquecer os vidros partidos e os grafitis assustadores
sob o Sol de Angeles. Até o Maxon e o rei estavam de pé junto a uma mesa,
com os seus conselheiros, a analisar pilhas de documentos e a tomar
decisões.
Numa tenda, a rainha lia alguns papéis, indicando vários pormenores a
uma aia próxima. Perto dela, a Elise, a Celeste e a Natalie discutiam os
planos para a sua receção, sentadas a uma mesa. Estavam tão absorvidas
que pareciam ter esquecido completamente a noite difícil.
A Kriss e eu ficámos do outro lado do relvado, numa tenda se‐
melhante, mas o nosso trabalho avançava devagar. Estava a ser difícil para
mim conversar com ela, enquanto lutava para tirar da cabeça a imagem do
momento partilhado entre ela e o Maxon. Observava-a enquanto ela
sublinhava partes dos documentos que a Silvia nos dera e escrevinhava
notas nas margens.
— Acho que já descobri como iremos fazer as nossas flores —
comentou ela, sem levantar os olhos do papel.
— Ah. Que bom.
Deixei os meus olhos vaguearem na direção do Maxon. Ele estava a
tentar parecer mais ocupado do que realmente estava. Qualquer pessoa
atenta perceberia que o rei estava a fingir não ouvir os seus comentários.
Não percebi aquilo. Se o rei se preocupava com o facto de o filho ser um
bom líder, o que tinha a fazer era ensiná-lo verdadeiramente, em vez de o
impedir de fazer as coisas com medo de eventuais erros.
O Maxon mexeu nalguns papéis e ergueu os olhos. Encontrou os meus
e acenou-me. No momento em que ia erguer a mão, vi pelo canto do olho a
Kriss acenar entusiasticamente em resposta. Voltei a concentrar-me nos
papéis, tentando lutar contra o rubor.
— Ele não é lindo? — perguntou a Kriss.
— Sim, claro.
— Fico a imaginar como os nossos filhos seriam com o cabelo dele e
os meus olhos.
— Como está o teu tornozelo?
— Oh... — disse ela, suspirando. — Dói um pouco, mas o doutor
Ashlar disse que devo recuperar até à receção.
— Isso é bom — respondi, olhando finalmente para ela. — Não te
quero a coxear quando os italianos chegarem.
Estava a tentar soar amigável, mas notei que ela questionava o meu
tom de voz.
Ela abriu a boca para falar, mas depois desviou rapidamente os olhos.
Segui a direção do seu olhar e vi que o Maxon se aproximara da mesa com
comida e bebidas que os mordomos tinham preparado para nós.
— Volto já — disse ela rapidamente, antes de coxear até junto do
Maxon mais depressa do que eu consideraria possível.
Não pude deixar de olhar. A Celeste aproximara-se também e os três
conversavam calmamente, enquanto se serviam de água e pegavam em
minis-sanduíches. A Celeste disse qualquer coisa e o Maxon riu-se. A Kriss
parecia estar também a sorrir, mas estava claramente aborrecida por a
Celeste ter interrompido o seu momento, o que impedia que se sentisse
genuinamente divertida.
Senti-me quase grata à Celeste naquele momento. Ela podia ser mil
coisas que me irritavam, mas era também praticamente impossível de
intimidar. Bem que eu precisava de ser um pouco assim.
O rei berrou algo para um dos seus conselheiros e voltei
instintivamente o rosto na sua direção. Não percebi exatamente o que ele
dissera, mas parecia irritado. Atrás dele, vislumbrei o Aspen, a fazer as suas
rondas.
Ele olhou para mim, por um instante, e arriscou uma piscadela de olho
rápida. Eu sabia que a sua intenção era acalmar as minhas preocupações e
funcionou, até certo ponto. No entanto, não pude deixar de pensar no que
lhe teria acontecido na noite anterior para estar a coxear ligeiramente e ter
um penso perto do olho.
Enquanto eu pensava se haveria alguma forma de lhe pedir, sem dar
nas vistas, que viesse ao meu quarto nessa noite, um alarme soou dentro do
palácio.
— Rebeldes! — berrou um guarda. — Corram!
— O quê? — gritou outro guarda, confuso.
— Rebeldes! Dentro do palácio! Estão a chegar!
As palavras do guarda recordaram-me a ameaça que vira nas paredes,
logo de manhã: ESTAMOS A CHEGAR.
As coisas começaram a acontecer muito depressa. As aias escoltaram
a rainha em direção ao lado mais distante do palácio, algumas puxando-a
pelas mãos para que se movesse mais depressa, enquanto outras corriam
diligentemente atrás dela, para a proteger de um possível ataque.
O vestido vermelho da Celeste brilhou quando esta correu atrás da
rainha, deduzindo corretamente que aquele era provavelmente o lugar mais
seguro para onde ir. O Maxon ergueu nos braços a Kriss com o seu pé
lesionado e, virando-se, colocou-a no colo do guarda mais próximo, que por
acaso era o Aspen.
— Corra! — gritou ele ao Aspen. — Corra!
E o Aspen, ferozmente leal, correu, levando a Kriss como se ela não
pesasse nada.
— Maxon, não! — gritou ela por cima do ombro do Aspen.
Ouvi um estouro violento vindo do lado de dentro do palácio e gritei.
Quando vários guardas sacaram as armas dos seus uniformes escuros,
percebi o que era aquele som. Ouviram-se mais dois estouros e senti-me
gelar, vendo o fluxo de gente que corria à minha volta. Os guardas
empurravam as pessoas para os lados do palácio, forçando-as a saírem da
frente, enquanto uma multidão de indivíduos, vestindo calças grosseiras e
casacos robustos, corriam para fora com mochilas e sacolas a rebentar pelas
costuras. Ouviu-se outro tiro.
Por fim, percebendo que tinha de me mexer, dei meia-volta e corri
sem pensar.
Com os rebeldes a saírem do palácio, o mais lógico pareceu-me ser
correr para longe deles. Mas isso implicava ir em direção à grande floresta
com um bando de malfeitores atrás de mim. Corri, escorregando algumas
vezes por causa das sabrinas que usava e cheguei a pensar em tirá-las, mas
depois decidi que uns sapatos escorregadios eram melhores do que estar
descalça.
— America! — chamou o Maxon. — Não! Volta para trás!
Arrisquei olhar para trás e vi o rei agarrar o Maxon pelo colarinho do
casaco, arrastando-o para longe dali. Conseguia ver o terror nos olhos do
Maxon, enquanto me fitava. Soou outro disparo.
— Parem! — gritou o Maxon. — Vão atingi-la! Cessar-fogo!
Houve mais alguns disparos e o Maxon continuou a gritar ordens até
eu estar demasiado longe para as entender. Corri pelo campo aberto e
percebi então que estava sozinha. O Maxon fora detido pelo pai e o Aspen
estava a cumprir o seu dever. Qualquer guarda que viesse buscar-me estaria
atrás dos rebeldes. Tudo o que eu podia fazer era correr para me salvar.
O medo fez-me ser rápida e fiquei surpreendida com a facilidade com
que evitei a vegetação rasteira assim que entrei na floresta. O solo estava
seco e sólido, rachado devido aos vários meses de seca. Sentia vagamente
as minhas pernas a serem arranhadas, mas não abrandei o ritmo para avaliar
a gravidade dos ferimentos.
Sentia-me a suar e o meu vestido colava-se ao meu peito enquanto me
movia. O bosque era mais fresco, tornando-se mais escuro a cada passo,
mas eu sentia-me quente. Em casa, corria às vezes por diversão, para
brincar com o Gerad ou apenas para sentir a dor do esforço. Contudo,
estava já há meses no palácio, sem me mexer e a ingerir comida a sério pela
primeira vez, e sentia agora as consequências: os meus pulmões ardiam e as
minhas pernas latejavam. Ainda assim, corria.
Depois de me ter embrenhado o suficiente na floresta, olhei para trás
para verificar se os rebeldes estavam perto. Não conseguia ouvi-los por
causa do sangue que me pulsava nos ouvidos e, quando olhei, também não
os vi. Decidi que esta era a minha melhor oportunidade para me esconder,
antes que eles reparassem no meu vestido colorido no meio do bosque
sombrio.
Não parei até encontrar uma árvore suficientemente grande para me
esconder. Assim que me coloquei atrás dela, reparei num ramo baixo ao
qual poderia agarrar-me para trepar. Descalcei os sapatos e atirei-os para
longe, esperando que não conduzissem os rebeldes até mim. Subi, embora
não muito alto, e coloquei-me de costas contra a árvore, encolhendo-me o
máximo que conseguia.
Esforcei-me por diminuir o ritmo da respiração, com medo de que o
som me denunciasse, mas mesmo depois de o fazer houve silêncio por uns
instantes. Calculei que deveria tê-los deixado para trás. Não me mexi,
esperando para ter a certeza. Segundos mais tarde, ouvi um restolhar.
— Deveríamos ter vindo à noite — disse alguém, uma rapariga,
arfando.
Comprimi-me contra a árvore, rezando para que nenhum galho
estalasse.
— Eles não estariam cá fora à noite — replicou um homem.
Ainda corriam, ou pelo menos tentavam, e parecia que estavam a
sentir dificuldades.
— Deixa-me levar alguns — ofereceu-se ele. Pareciam estar mais
próximos.
— Eu consigo.
Sustive a respiração e observei-os a passar mesmo por baixo da minha
árvore. Quando pensava já estar a salvo, a sacola da rapariga rasgou-se e
uma pilha de livros caiu no chão da floresta. O que fazia ela com tantos
livros?
— Raios! — praguejou ela e ajoelhou-se. Vestia um blusão de ganga
com uma espécie de flor bordada que se repetia. Devia estar a morrer de
calor.
— Eu disse-te para me deixares ajudar.
— Cala-te! — Ela deu-lhe um empurrão nas pernas e, por esse gesto
brincalhão, percebi que existia bastante afeto entre os dois.
Alguém assobiou ao longe.
— Será o Jeremy? — perguntou ela.
— Parece. — Ele baixou-se e apanhou alguns livros.
— Vai buscá-lo. Eu sigo já atrás de ti.
Ele hesitou, mas depois concordou, beijando-a na testa antes de se
afastar a correr.
A rapariga reuniu o resto dos livros, usando uma faca para cortar a
alça do saco e atá-los.
Senti alívio quando ela se levantou, pensando que iria pôr-se a
caminho. Mas ela sacudiu o cabelo para longe da cara e olhou para cima.
E viu-me.
Nenhum silêncio ou imobilidade poderiam ajudar-me agora. Se eu
gritasse, será que os guardas apareceriam? Ou será que o resto dos rebeldes
estava demasiado perto para que isso fizesse alguma diferença?
Olhámos uma para a outra. Esperei que ela chamasse os outros,
desejando que o que quer que tivessem planeado para mim não doesse
muito.
Mas ela não fez qualquer som, exceto soltar uma gargalhada baixinho,
divertida com a nossa situação.
Ouviu-se outro assobio, um pouco diferente do último, e ambas
olhámos na direção do som antes de nos encararmos mais uma vez.
E então, na mais inesperada das atitudes possíveis, ela colocou uma
perna atrás da outra e baixou-se numa reverência graciosa. Fiquei a olhar
para ela, completamente atordoada. Ela ergueu-se, sorrindo, e correu na
direção do assobio. Fiquei a observá-la até que as centenas de minúsculas
flores bordadas no seu casaco desapareceram por entre os arbustos.
Quando me pareceu que já tinha passado mais de uma hora, decidi
que podia descer. Fiquei em pé, junto da árvore, percebendo que não sabia
onde estavam os meus sapatos. Dei uma volta ao tronco, tentando localizar
as pequenas sabrinas brancas, mas em vão. Desistindo, decidi que deveria
pôr-me a caminho do palácio.
Olhando à minha volta, tornou-se evidente que isso não iria acontecer.
Estava perdida.
Capítulo 17

Sentei-me aos pés da árvore com as pernas dobradas contra o peito, à


espera. A minha mãe dizia sempre que era o que deveríamos fazer quando
nos perdêssemos. Deu-me tempo para pensar no que acontecera.
Como era possível que os rebeldes tivessem entrado no palácio em
dois dias seguidos? Dois dias seguidos! Será que as coisas tinham piorado
assim tanto, lá fora, desde o início da Seleção? Com base no que vira
quando ainda estava em Carolina e pelo que vivera no palácio, tratava-se de
um facto inédito.
As minhas pernas estavam bastante arranhadas e, agora que já não
estava a esconder-me, conseguia sentir finalmente as picadas. Tinha
também uma pequena nódoa negra a meio de uma das pernas, que não sabia
bem como fizera. Estava com sede e, quando me acomodei, senti-me
exausta devido ao desgaste emocional, mental e físico daquele dia. Apoiei a
cabeça contra a árvore e fechei os olhos. Não queria dormir. Mas aconteceu.
Algum tempo depois, ouvi o som inconfundível de passos. Abri
imediatamente os olhos. A floresta estava mais escura do que me lembrava.
Durante quanto tempo é que tinha dormido?
O meu primeiro impulso foi trepar novamente para cima da árvore e
corri para trás do tronco, pisando o saco rasgado da rapariga rebelde. Mas
então ouvi chamarem pelo meu nome.
— Lady America! — dizia alguém. — Onde está?
— Lady America? — chamou outra voz. Então, depois de algum
tempo, ouvi alguém ordenar numa voz sonora:
— Olhem bem para todos os lados. Se a mataram, podem tê-la
pendurado ou tentado enterrá-la. Prestem atenção.
— Sim, senhor — responderam os homens em uníssono.
Espreitei por detrás da árvore, concentrando-me nos sons. Semicerrei
os olhos, tentando distinguir as silhuetas que se moviam nas sombras, sem
muita certeza de que tivessem vindo para me salvar. Mas um dos guardas,
que apesar de coxear ligeiramente não se deixava ficar para trás, deu-me
finalmente a certeza de estar a salvo.
Um ténue raio de sol iluminou o rosto do Aspen e eu desatei a correr.
— Estou aqui! — gritei. — Estou aqui!
Corri diretamente para os braços do Aspen, sem me importar
minimamente com quem estava a ver-nos.
— Graças a Deus — murmurou ele contra o meu cabelo. Depois,
virando-se para os outros, gritou:
— Encontrei-a! Está viva!
O Aspen inclinou-se e pegou-me ao colo.
— Estava com muito medo que encontrássemos o teu corpo por aí.
Estás ferida?
— Um pouco, nas pernas.
Um segundo depois, estávamos rodeados por vários guardas que
davam os parabéns ao Aspen pelo bom trabalho.
— Lady America — disse o que comandava —, está ferida?
Abanei a cabeça.
— Apenas uns arranhões nas pernas.
— Eles tentaram fazer-lhe mal?
— Não. Não me apanharam.
Ele pareceu um pouco chocado.
— Acho que nenhuma das outras jovens teria conseguido correr mais
depressa do que eles.
Sorri, finalmente tranquila.
— Nenhuma das outras é uma Cinco.
Vários guardas se riram, incluindo o Aspen.
— Bem visto. Vamos levá-la de volta. — Ele pôs-se à nossa frente e
ordenou aos outros soldados: — Mantenham-se atentos. Eles ainda podem
estar por perto.
Enquanto andávamos, o Aspen falou comigo em voz baixa:
— Sei que és rápida e esperta, mas fiquei apavorado.
— Eu menti ao oficial — sussurrei.
— Como assim?
— Eles alcançaram-me.
O Aspen olhou para mim, horrorizado.
— Não fizeram nada, mas uma rapariga viu-me. Fez-me uma vénia e
foi-se embora.
— Uma vénia?
— Também fiquei surpreendida. Não parecia nada zangada nem
ameaçadora. Na verdade, parecia apenas uma rapariga normal.
Pensei na comparação do Maxon, em relação aos dois grupos
rebeldes, e tive a certeza de que aquela rapariga era Nortista. Não havia
qualquer agressividade nela, apenas a vontade de cumprir a sua tarefa. E
não havia dúvidas de que o ataque da noite anterior fora perpetrado pelos
rebeldes Sulistas. Será que o facto de os ataques não terem sido apenas
seguidos, mas executados por grupos diferentes, significava alguma coisa?
Será que os Nortistas nos observavam, esperando que ficássemos exaustos?
Pensar neles a vigiar constantemente o palácio era um pouco assustador.
Ao mesmo tempo, o ataque fora quase engraçado. Será que entraram
simplesmente pela porta da frente? Quantas horas é que permaneceram no
palácio a recolher os seus tesouros? Isso fez-me recordar algo.
— Ela tinha uma pilha de livros — disse eu.
O Aspen assentiu com a cabeça.
— Parece que isso acontece muitas vezes. Ninguém sabe ao certo o
que fazem com eles. O meu palpite é que os usam para fazer lume. Acho
que vivem numa zona fria.
— Hum — murmurei, sem responder. Se eu precisasse de
combustível, havia lugares muito mais fáceis onde arranjá-lo do que no
palácio. E o modo como a rapariga estava tão desesperada por apanhar os
livros fez-me ter a certeza de que era mais do que isso.
Foi preciso quase uma hora de caminhada lenta e constante para
regressarmos ao palácio. Embora estivesse magoado, o Aspen nunca
vacilou comigo nos braços. Na realidade, parecia estar a gostar do passeio
apesar do trabalho extra. Eu também gostei.
— Os próximos dias são capazes de ser bastante agitados para mim,
mas vou tentar ver-te em breve — murmurou o Aspen ao atravessarmos o
amplo relvado que conduzia ao palácio.
— Está bem — respondi baixinho.
Ele sorriu ligeiramente enquanto olhava para a frente e eu imitei-o,
contemplando a vista. O palácio brilhava sob o Sol do fim de tarde e as
janelas estavam todas iluminadas. Nunca tinha visto o palácio assim. Era
lindo.
Por algum motivo, pensei que o Maxon estaria ali, à minha espera na
porta das traseiras. Não estava. Ninguém estava. O Aspen recebeu ordens
para me levar até à ala hospitalar, para que o doutor Ashlar pudesse tratar
das minhas pernas, enquanto um outro guarda foi enviado para comunicar à
família real que eu fora encontrada viva.
O meu regresso era um não acontecimento. Fiquei sozinha numa cama
de hospital com as pernas ligadas e foi assim que adormeci.
***
Ouvi alguém espirrar.
Abri os olhos um pouco confusa por um instante, até me lembrar de
onde estava. Pestanejei e inspecionei o quarto.
— Não queria acordar-te — disse o Maxon, baixinho. — Tenta voltar
a dormir.
Ele estava sentado numa cadeira ao lado da minha cama, tão perto
que, se quisesse, poderia encostar a cabeça ao lado do meu cotovelo.
— Que horas são? — perguntei, esfregando os olhos.
— Quase duas.
— Da manhã?
O Maxon assentiu com a cabeça. Olhava para mim atentamente e
senti-me subitamente preocupada com o meu aspeto. Lavara a cara e
prendera os cabelos quando voltara, mas estava certa de que tinha a
almofada marcada na bochecha.
— Tu nunca dormes? — perguntei.
— Durmo. Apenas estou frequentemente tenso.
— Ossos do ofício? — Ergui-me um pouco mais na cama.
Ele fez um ligeiro sorriso.
— Mais ou menos.
Fez-se um longo silêncio, enquanto ficámos ali, sem sabermos bem o
que dizer a seguir.
— Pensei numa coisa, hoje, na floresta, — disse eu, como se nada
fosse.
O sorriso dele abriu-se diante da minha facilidade em pôr o incidente
de lado.
— A sério?
— Sobre ti.
Ele aproximou-se um pouco mais, com os seus olhos castanhos
cravados nos meus.
— Conta.
— Bem — comecei —, estava a pensar no modo como agiste ontem,
quando a Kriss e a Elise ainda não tinham chegado ao abrigo. Estavas muito
preocupado. E hoje vi-te tentar correr atrás de mim quando os rebeldes
apareceram.
— Eu tentei. Lamento tanto. — Ele abanou a cabeça, envergonhado
por não ter feito mais.
— Não estou chateada — expliquei. — É esse o ponto. Quando estava
lá fora sozinha, pensei em como estarias provavelmente muito preocupado e
no modo como te preocupas com as outras. Não vou fingir que sei como te
sentes em relação a cada uma de nós, mas sei que tu e eu não estamos
propriamente no nosso melhor, neste momento.
Ele riu-se.
— Já tivemos melhores dias.
— Mas, mesmo assim, correste atrás de mim. Confiaste a Kriss a um
guarda porque ela não podia correr. Tu tentas manter-nos a todas em
segurança. Então, porque é que magoarias uma de nós?
Ele permaneceu calado, sem saber ao certo aonde eu queria chegar.
— Compreendo agora. Se te preocupas assim tanto com a nossa
segurança, não podes ter querido fazer aquilo à Marlee. Tenho a certeza de
que, se pudesses, tê-lo-ias impedido.
Ele soltou um suspiro.
— Num abrir e fechar de olhos.
— Eu sei.
Um pouco hesitante, o Maxon estendeu o braço, procurando a minha
mão. Deixei-o pegar nela.
— Lembras-te de te ter dito que tinha algo para te mostrar?
— Sim.
— Não te esqueças, está bem? Vai ser em breve. Este cargo exige
muito e nem sempre coisas agradáveis. Mas, às vezes... às vezes
conseguimos fazer algo de bom.
Não percebi o que ele queria dizer, mas assenti com a cabeça.
— Mas acho que vai ter de esperar até vocês terminarem este projeto.
Estão um pouco atrasadas.
— Argh! — Larguei a mão do Maxon e tapei os olhos. Esquecera-me
completamente da receção. Olhei novamente para ele. — Ainda vão
obrigar-nos a fazer isso? Tivemos dois ataques de rebeldes e passei a maior
parte do dia perdida na floresta. Vamos estragar tudo.
O Maxon olhava-me com simpatia.
— Vão ter de se esforçar.
Deixei cair a cabeça sobre o travesseiro.
— Vai ser um desastre.
Ele riu-se.
— Não te preocupes. Mesmo que não te saias tão bem como as outras,
não tenho coragem de te mandar embora.
Algo naquela frase soou estranho. Sentei-me novamente.
— Estás a dizer que se as outras forem piores do que eu, uma delas
pode ser expulsa?
O Maxon hesitou por um instante, evidentemente sem saber como
responder.
— Maxon?
Ele suspirou.
— Tenho duas semanas até ao próximo corte. E este projeto tem um
peso muito grande. Tu e a Kriss estão na situação mais difícil: uma relação
nova, menos pessoas para trabalhar e, embora tenham uma cultura muito
festiva, os italianos ofendem-se com facilidade. Se acrescentarmos a isso o
facto de que quase não tiveram tempo para trabalhar...
Perguntei-me se seria possível ver-se o meu rosto a ficar sem pinga de
sangue.
— Eu não posso ajudar, mas se precisarem de alguma coisa, por favor,
digam. Sou incapaz de mandar qualquer uma de vocês embora.
Quando tivemos a nossa primeira discussão, uma briga estúpida por
causa da Celeste, pensei que um pedaço de mim morrera por causa do
Maxon. E depois, quando a Marlee saiu tão de repente, pensei que
acontecera novamente. Tinha a certeza de que sempre que alguma coisa
bloqueava o meu caminho, havia pedaços do meu coração que se
desintegravam. Mas estava errada.
Ali, na cama da ala hospitalar, o meu coração despedaçou-se pela
primeira vez pelo Maxon Schreave. E a dor era indescritível. Até àquele
momento, conseguira convencer-me de que tudo o que tinha visto entre o
Maxon e a Kriss era imaginação minha, mas agora tinha a certeza.
Ele gostava dela. Talvez tanto quanto gostava de mim.
Assenti com a cabeça perante a oferta de ajuda, incapaz de dizer
qualquer outra coisa.
Disse a mim mesma para recuperar o meu coração, que este não podia
pertencer ao Maxon. Ele e eu tínhamos começado tudo isto como amigos e
talvez isso fosse tudo o que poderíamos ser: bons amigos. Mas eu estava
arrasada.
— É melhor ir-me embora — disse ele. — Precisas de dormir. Tiveste
um dia muito longo.
Revirei os olhos. Isso não era nada.
O Maxon levantou-se e ajeitou o fato.
— Queria dizer-te tantas coisas. Pensei mesmo que te tinha perdido,
hoje.
Encolhi os ombros.
— Eu estou bem. Mesmo.
— Eu sei, mas durante várias horas, hoje, fui obrigado a preparar-me
para o pior. — Ele fez uma pausa, ponderando as palavras. — Geralmente,
entre todas as raparigas, tu és aquela com quem é mais fácil falar sobre a
nossa relação. Mas tenho um pressentimento de que, talvez, essa não seja a
melhor coisa a fazer agora.
Baixei a cabeça e assenti ligeiramente. Era impossível tentar falar de
sentimentos com alguém que tinha obviamente uma paixoneta por outra.
— Olha para mim, America — pediu ele, suavemente.
Olhei.
— Está tudo bem. Eu posso esperar. Só quero que saibas... Não
consigo encontrar palavras capazes de exprimir como estou aliviado por te
ter aqui, inteira. Nunca me senti tão grato por nada.
Fiquei em silêncio, atordoada, como sempre acontecia quando ele
tocava nos pontos mais recônditos do meu coração. Uma parte de mim
preocupou-se com a facilidade com que eu acreditava nas suas palavras.
— Boa noite, America.
Capítulo 18

Era segunda-feira à noite. Ou terça de manhã. Era tão tarde que era
difícil dizer.
A Kriss e eu tínhamos trabalhado o dia inteiro à procura de amostras
de tecido adequadas e pedindo aos mordomos que as pendurassem, a
escolher as nossas roupas e joias, a selecionar a baixela, a criar um rascunho
do menu e a ouvir um professor de línguas a dizer-nos frases em italiano, na
esperança de que absorvêssemos um pouco da língua. Pelo menos, eu tinha
a vantagem de falar espanhol, o que me ajudava a apanhar as coisas com
mais rapidez; as duas línguas eram muito parecidas. A Kriss estava
simplesmente a dar o máximo para conseguir acompanhar.
Eu deveria estar exausta, mas só conseguia pensar nas palavras do
Maxon.
O que é que acontecera com a Kriss? Por que razão é que ela ficara,
de repente, tão próxima dele? Será que deveria sequer preocupar-me tanto?
Mas era o Maxon.
E por mais que tentasse afastar-me, ainda sentia algo por ele. Não
estava pronta para desistir completamente.
Tinha de haver uma maneira de resolver isto. Enquanto pensava em
tudo o que acontecera, na tentativa de tentar destrinçar
todos os meus problemas, parecia que tudo podia ser dividido em
quatro categorias
Os meus sentimentos pelo Maxon; os sentimentos do Maxon por mim;
o que se passava entre o Aspen e eu; e os meus sentimentos em relação a
tornar-me, de facto, uma princesa.
Entre todas as coisas que giravam na minha cabeça neste momento, a
parte de ser princesa parecia ser a mais fácil de resolver. Pelo menos nessa
questão, eu tinha algo que as outras não tinham. Eu tinha o Gregory.
Fui até à banqueta do piano, agarrei no diário e desejei de todo o
coração encontrar ali alguma pérola de sabedoria. Ele não nascera numa
família real; devia ter sido obrigado a adaptar-se. Com base no que dizia na
sua mensagem sobre o Halloween, estava já a preparar-se para uma grande
mudança no seu futuro.
Puxei as cobertas, protegendo as palavras do mundo, e mergulhei no
texto.

Quero encarnar o bom e velho ideal americano. Tenho uma


bela família e sou muito rico, e estas duas coisas coadunam-se
com esta imagem porque não as recebi de ninguém. Qualquer
um que me veja agora sabe que trabalhei muito pelo que tenho.
Mas o facto de ter podido usar a minha posição para dar
tanto, quando os outros não tinham ou não podiam, fez-me
passar de bilionário anónimo a filantropo. Ainda assim, não
posso descansar. Preciso de fazer mais, de ser mais. É o Wallis
quem governa, não eu, e preciso de pensar num modo de dar ao
povo aquilo de que necessita sem ser visto como um usurpador.
Há de chegar uma altura em que serei eu a liderar e poderei fazer
aquilo que julgo correto. Por agora, seguirei as regras e irei o
mais longe que puder assim.

Tentei recolher alguma sabedoria daquelas palavras. Ele dizia para


usarmos a nossa posição. Dizia para agirmos segundo as regras. Dizia para
não termos medo.
Talvez isso devesse ter sido suficiente, mas não foi. Nem sequer
chegou a ser-me útil. Se o Gregory não conseguira ajudar-me, só havia um
outro homem com quem eu podia contar. Sentei-me à secretária, peguei em
papel e numa caneta e escrevi uma breve carta ao meu pai.
Capítulo 19

O dia seguinte passou a voar e, de repente, eu e a Kriss chegávamos à


receção das outras trajando uns sóbrios vestidos cinzentos.
— Qual é o plano? — perguntou a Kriss, enquanto percorríamos o
corredor.
Pensei por uns instantes. Não gostava da Celeste e não me importava
de a ver fracassar, mas não tinha a certeza de querer que ela o fizesse em tão
grande escala.
— Sermos educadas, mas não prestáveis. Prestar atenção à Silvia e à
rainha para sabermos o que fazer. Absorver tudo o que pudermos... e
trabalhar a noite inteira para que a nossa seja melhor.
— Está bem. — Ela respirou fundo. — Vamos.
Fomos pontuais, uma característica fundamental daquela cultura, e as
outras raparigas já estavam completamente perdidas. Era como se a Celeste
se sabotasse a si mesma. Enquanto a Elise e a Natalie estavam vestidas num
respeitável tom azul-escuro, o vestido da Celeste era praticamente branco.
Se lhe puséssemos um véu, isto poderia ser um casamento. Já para não falar
do corte revelador, especialmente quando estava ao lado das alemãs. A
maior parte delas usava mangas compridas, apesar do tempo quente.
A Natalie ficara responsável pelas flores e deixara passar o pormenor
de os lírios serem tradicionalmente usados em funerais. Todos os arranjos
tiveram de ser retirados à pressa.
A Elise, embora claramente mais agitada do que o costume, era a
imagem da calma. Aos olhos dos nossos convidados, parecia a estrela da
noite.
Era intimidante tentar comunicar com as mulheres da Federação
Alemã, que falavam um inglês muito deficiente, principalmente quando eu
tinha tanto italiano na cabeça. Tentei ser hospitaleira e, apesar da sua
aparência severa, as alemãs eram bastante simpáticas.
Tornou-se rapidamente claro que a verdadeira ameaça de desastre era
a Silvia e a sua prancheta. Enquanto a rainha ajudava graciosamente as
raparigas a receberem os convidados alemães, a Silvia circulava pela sala e
os seus olhos perspicazes não perdiam nenhum pormenor. Ainda antes de a
receção terminar, ela parecia ter já páginas e páginas de anotações. A Kriss
e eu percebemos rapidamente que a nossa única esperança era fazê-la
apaixonar-se pela nossa receção.
No dia seguinte, a Kriss foi até ao meu quarto com as suas aias e
vestimo-nos juntas. Queríamos ter um visual suficientemente parecido para
que ficasse claro que éramos as responsáveis pelo evento, mas não
demasiado semelhante ao ponto de parecermos tolinhas. Até foi divertido
ter tantas raparigas no meu quarto. As aias conheciam-se todas e
conversavam animadamente atrás de nós enquanto trabalhavam. Fez-me
recordar a altura em que a May estivera aqui.
Horas antes da chegada dos convidados, a Kriss e eu fomos até ao
salão para verificar tudo uma última vez. Ao contrário da outra receção,
iríamos dispensar os marcadores de lugar e deixar que os convidados se
sentassem onde bem entendessem. A banda chegou para ensaiar no local e,
por sorte, os tecidos que havíamos escolhido pareciam proporcionar uma
ótima acústica.
Endireitei o colar da Kriss, enquanto praticávamos pela última vez as
nossas frases. Ela soava muito natural a falar italiano.
— Obrigada — disse ela.
— Grazie — respondi.
— Não, não — replicou ela, virando-se para mim. — Estou a
agradecer-te. Fizeste um trabalho fabuloso e... não sei. Pensei que pudesses
desistir, depois do que aconteceu com a Marlee. Fiquei com medo de ter de
fazer tudo sozinha, mas tu trabalhaste imenso. Foste excelente.
— Obrigada. Tu também foste ótima. Não sei se teria sobrevivido se
tivesse sido obrigada a trabalhar com a Celeste. Tu tornaste tudo quase
fácil.
A Kriss sorriu. Eu estava a ser sincera. Ela fora incansável.
— E tens razão; tem sido difícil sem a Marlee, mas eu não iria desistir.
Isto vai ser fantástico.
A Kriss mordeu os lábios e ficou pensativa por um instante. Depois,
rapidamente, como se temesse perder a coragem, disse:
— Então, ainda estás na competição? Ainda queres o Maxon?
Não era como se eu não soubesse o que estávamos todas a fazer aqui,
mas nenhuma das outras abordara o assunto dessa maneira. Fui apanhada
desprevenida por um segundo e perguntei-me se deveria responder-lhe. E,
se sim, o que dizer?
— Meninas! — chilreou a Silvia, entrando apressadamente no salão.
Nunca me senti tão grata por ver aquela mulher. — Está quase na hora.
Estão prontas?
Atrás dela surgiu a rainha, transparecendo uma calma serena que
contrabalançava a energia da Silvia. Ela inspecionou o salão, admirando o
nosso trabalho, e foi um enorme alívio vê-la sorrir.
— Quase prontas — disse a Kriss. — Falta apenas tratar de alguns
pormenores. Um deles, em particular, requer a sua presença e a da rainha.
— Ah? — exclamou a Silvia, curiosa.
A rainha aproximou-se então, com os seus olhos escuros cheios de
orgulho.
— Está lindo. E vocês as duas estão espantosas.
— Obrigada — agradecemos em uníssono.
Os vestidos azuis-claros com grandes apontamentos dourados tinham
sido ideia minha. Festivos e bonitos, mas sem exagerar.
— Talvez tenham reparado nos nossos colares — disse a Kriss. —
Pensámos que, se fossem semelhantes, isso ajudaria as pessoas a identificar-
nos como as anfitriãs.
— Excelente ideia — disse a Silvia, tomando notas.
A Kriss e eu trocámos um sorriso.
— E como também são anfitriãs, pensámos que também deveriam
usar um — disse eu, enquanto a Kriss tirava as caixinhas da mesa.
— Não posso acreditar! — exclamou a rainha.
— Para... para mim? — perguntou a Silvia.
— Claro! — disse a Kriss com doçura, entregando as joias.
— Ambas nos ajudaram imenso. Este projeto também vos pertence —
acrescentei.
Era percetível que a rainha ficara comovida com o nosso gesto, mas a
Silvia ficou absolutamente sem palavras. Perguntei-me, subitamente, se
alguém no palácio alguma vez lhe prestara atenção. Sim, tivéramos a ideia
ontem, como uma forma de puxar a Silvia para o nosso lado, mas agora
estava contente por o termos feito por mais do que isso.
A Silvia podia ser intimidante, mas tentava realmente ensinar-nos
tudo o que podia para nos ajudar. Decidi passar a agradecer-lhe melhor.
Um mordomo veio dizer-nos que os nossos convidados tinham
chegado e a Kriss e eu pusemo-nos uma de cada lado da porta, para lhes dar
as boas-vindas à medida que fossem entrando. A banda começou a tocar
uma música ambiente suave e as criadas começaram a circular com os
aperitivos. Estávamos prontas.
A Elise, a Natalie e a Celeste aproximavam-se de nós, sur‐
preendentemente pontuais. Assim que viram a nossa decoração — as
paredes insípidas cobertas com tecidos ondulantes, os centros de mesas
imponentes e cintilantes, a abundância de flores — o incómodo foi notório
nos olhos da Elise e da Celeste. A Natalie, porém, estava demasiado
entusiasmada para se aborrecer.
— Cheira a jardim — disse ela, suspirando e quase dançando pela
sala.
— Até demais — acrescentou a Celeste. — Vão deixar as pessoas
com dores de cabeça.
Só ela seria capaz de encontrar defeitos numa coisa tão bela.
— Procurem sentar-se em mesas diferentes — sugeriu a Kriss,
enquanto elas entravam. — Os italianos estão aqui para fazer amigos.
A Celeste deu um estalido com a língua, como se aquilo a irritasse.
Apeteceu-me dizer-lhe para se controlar; nós tínhamos apresentado o nosso
melhor comportamento na receção dela. Mas então ouvi o burburinho da
conversa das italianas, que se aproximavam no corredor, e decidi esquecê-
la.
A melhor maneira de descrever as italianas é dizendo que eram
esculturais. Altas, de pele dourada e lindíssimas. Como se isso não bastasse,
eram todas muito bem-dispostas. Era como se transportassem o Sol na alma
e o espalhassem à sua volta.
A monarquia italiana era ainda mais jovem do que a de Illéa. Segundo
o dossier que lera, há décadas que recusavam as nossas tentativas de
amizade e esta era a primeira vez que nos visitavam. Esta reunião era o
primeiro passo para uma relação mais próxima com um governo em
ascensão. Fora assustador pensar nisso, até ao momento em que entraram
pela porta e a sua simpatia pôs fim às minhas preocupações. Beijaram-me e
à Kriss em ambas as faces e gritaram «Salve!». Tentei igualar alegremente o
seu nível de entusiasmo.
Trucidei algumas das minhas frases em italiano, mas as nossas visitas
foram gentis e riram-se dos meus erros, ao mesmo tempo que me ajudavam
a corrigi-los. O seu inglês era impressionante e trocámos elogios a respeito
das nossas roupas e penteados. Tudo indicava que causáramos uma boa
primeira impressão, pelo menos em termos da aparência, o que me ajudou a
descontrair.
Durante a maior parte da festa, fiquei ao lado da Orabella e da Noemi,
duas primas da princesa.
— Isto é delicioso! — declarou a Orabella, erguendo o seu copo de
vinho.
— Ainda bem que gosta — respondi, com receio de estar a parecer
demasiado tímida. Elas falavam bastante alto.
— Tem de experimentar! — insistiu ela.
Eu não bebia nada desde o Halloween e não gostava muito de álcool,
mas não queria ser indelicada. Portanto, peguei no copo que ela me oferecia
e bebi um gole.
Era incrível. O champanhe era só bolhas, mas o vinho tinto intenso
tinha vários sabores que se sobrepunham, cada um ganhando proeminência
no seu próprio tempo.
— Hum... — suspirei.
— Ora então... — disse a Noemi, atraindo a minha atenção. — Este
Maxon é muito bonito. Como é que posso participar na Seleção?
— Preenchendo uma montanha de papéis — gracejei.
— Só isso? Onde está a minha caneta?
A Orabella interveio:
— Também quero alguns desses papéis. Adoraria levar o Maxon para
casa comigo.
Soltei uma gargalhada.
— Acreditem, as coisas são um pouco confusas por aqui.
— Está a precisar de mais vinho — insistiu a Noemi.
— Sem dúvida! — concordou a Orabella, e ambas chamaram um
mordomo para me encher o copo.
— Já esteve em Itália? — perguntou a Noemi.
Abanei a cabeça.
— Antes da Seleção, nunca tinha sequer saído da minha província.
— Então, tem de ir! — insistiu a Orabella. — Pode ficar em minha
casa sempre que quiser.
— Tu recebes sempre as visitas — queixou-se a Noemi. — Ela fica
comigo.
Sentia o vinho a aquecer-me e o entusiasmo delas estava a deixar-me
demasiado alegre.
— Então, ele beija bem? — perguntou a Noemi.
Engasguei-me um pouco com o vinho e afastei o copo para me rir.
Estava a tentar não revelar muito, mas elas perceberam.
— Quão bem? — exigiu saber a Orabella. Como eu não respondi, ela
acenou com a mão. — Beba mais um pouco! — exclamou.
Apontei-lhes um dedo acusatório, percebendo o que estavam a fazer.
— Vocês as duas vão arranjar-me problemas!
Elas inclinaram a cabeça para trás à gargalhada e não pude evitar
imitá-las. Realmente, as conversas entre raparigas eram muito mais
interessantes quando não estávamos todas a competir pelo mesmo rapaz,
mas não podia deixar-me envolver demasiado.
Levantei-me antes que acabasse inconsciente no meio do chão.
— Ele é muito romântico. Quando quer... — disse.
Elas bateram palmas e riram-se e eu afastei-me com um sorriso nos
lábios perante a sua alegria.
Depois de beber água e comer um pouco, toquei no violino algumas
das músicas populares que aprendera. O salão praticamente inteiro
acompanhou-me, cantando. Pelo canto dos olhos, vi a Silvia a tomar notas,
enquanto batia com o pé ao ritmo da música.
Quando a Kriss se levantou e propôs um brinde à rainha e à Silvia,
pela sua ajuda, o salão aplaudiu. Quando ergui o copo para brindar às
nossas convidadas, elas gritaram de alegria, bebendo de um trago e atirando
depois os copos contra a parede. A Kriss e eu não estávamos à espera disso,
mas encolhemos os ombros e fizemos o mesmo.
As pobres criadas acorreram para apanhar os cacos, enquanto a banda
recomeçava a tocar e o salão inteiro se pôs a dançar. Talvez a cena do dia
tenha sido a Natalie em cima de uma mesa a dançar de uma maneira que a
fazia parecer um polvo.
A Rainha Amberly estava sentada num canto do salão, a conversar
alegremente com a rainha de Itália. Senti uma onda de dever cumprido
perante essa imagem e estava tão absorvida pela cena que quase saltei de
susto quando a Elise começou a falar comigo.
— A vossa é melhor — disse ela relutantemente, mas com sin‐
ceridade. — Vocês as duas montaram realmente uma receção incrível.
— Obrigada. Fiquei preocupada durante algum tempo. Tivemos um
início tão difícil.
— Eu sei. Isso torna tudo ainda mais impressionante. Parece que
trabalharam durante semanas. — Ela olhou em volta da sala, fitando
melancolicamente a decoração em cores vivas.
Coloquei-lhe uma mão no ombro.
— Sabes, Elise, ontem qualquer um podia ver que foste tu quem mais
trabalhou no teu grupo. Tenho a certeza de que a Silvia irá certificar-se de
que o Maxon fica a saber disso.
— Achas?
— Claro. E prometo que, se isto for alguma espécie de competição e a
tua equipa perder, eu mesma direi ao Maxon que fizeste um excelente
trabalho.
Ela semicerrou os seus olhos já pequenos.
— Farias isso?
— Claro. Porque não? — disse, com um sorriso.
A Elise abanou a cabeça.
— America, admiro-te realmente por seres como és, honesta, acho,
mas tens de tomar consciência de que estamos numa competição.
O meu sorriso desapareceu.
— Não mentiria nem falaria mal de ti, mas também não me esforçaria
por contar ao Maxon se tivesses feito algo bem. Não poderia.
— Não precisa de ser assim — disse eu, em voz baixa.
Ela sacudiu a cabeça.
— Precisa, sim. Não se trata de um prémio qualquer. Trata-se de um
marido, uma coroa e um futuro. E tu provavelmente és a que tem mais a
perder ou a ganhar com isso.
Fiquei ali, imóvel, completamente atordoada. Pensava que éramos
amigas. Com exceção da Celeste, eu confiava verdadeiramente nelas. Será
que estava tão cega que não via a ferocidade com que lutavam?
— Isso não quer dizer que não goste de ti — continuou ela. — Gosto
muito. Mas não posso torcer pela tua vitória.
Assenti, ainda a digerir as suas palavras. Era óbvio que eu não estava
mentalmente tão envolvida nisto como ela. Mais uma coisa que me fez
duvidar da minha capacidade para desempenhar este cargo.
A Elise sorriu para alguém que se aproximava atrás de mim. Virei-me
e vi a princesa italiana a caminhar na nossa direção.
— Perdoem-me. Posso falar com a anfitriã, por favor? — pediu ela,
com o seu sotaque encantador.
A Elise fez uma reverência e voltou à pista de dança. Tentei tirar
aquela conversa da cabeça e concentrar-me na pessoa que tinha de
impressionar.
— Princesa Nicoletta, lamento não termos tido muitas oportunidades
para conversar — disse, fazendo-lhe uma reverência.
— Oh, não! Você esteve muito ocupada. As minhas primas adoram-
na!
Ri-me.
— Elas são muito divertidas.
A Nicoletta puxou-me para um dos cantos da sala.
— Temos hesitado em estabelecer vínculos com Illéa. O nosso povo é
mais... livre do que o vosso.
— Isso é visível.
— Não, não — disse ela, em tom grave. — Quero dizer, em relação a
liberdades individuais. Temos mais do que vocês. Vocês ainda mantêm as
castas?
Compreendi de repente que isto era mais do que uma conversa
amigável e assenti com a cabeça.
— Nós observamos, claro. Vemos o que acontece aqui: as revoltas, os
rebeldes. As pessoas não parecem felizes?
Não sabia ao certo o que dizer.
— Majestade, não sei se serei a pessoa mais indicada para discutir
esse assunto. Não tenho controlo nenhum sobre nada.
A Nicoletta agarrou-me nas mãos.
— Mas poderia ter.
Um calafrio percorreu-me o corpo. Será que ela estava mesmo a dizer
o que acho que estava?
— Vimos o que aconteceu àquela rapariga. A loira? — sussurrou ela.
— A Marlee — anuí. — Era a minha melhor amiga.
Ela sorriu.
— E vimo-la a si. Não há muitas imagens, mas vimo-la correr. Vimo-
la lutar.
O seu olhar era idêntico ao que a Rainha Amberly me fizera nessa
manhã. Continha um orgulho inconfundível.
— Temos muito interesse em estabelecer vínculos com uma nação
poderosa, se essa nação puder mudar. Informalmente, se houver alguma
coisa que possamos fazer para a ajudar a conquistar a coroa, diga-nos. Tem
o nosso total apoio.
Meteu-me um pedaço de papel na mão e afastou-se. Quando se virou,
gritou algo em italiano que fez o salão vibrar de alegria. Eu não tinha
bolsos, portanto enfiei rapidamente o bilhete no soutien, rezando para que
ninguém reparasse.
A nossa receção durou muito mais do que a primeira e suspeitei que
era porque os nossos convidados estavam demasiado contentes para se irem
embora. Ainda assim, apesar de ter sido tão longa, pareceu passar num abrir
e fechar de olhos.
Horas mais tarde, regressei ao meu quarto completamente exausta.
Estava demasiado cheia para pensar sequer em jantar e, embora ainda não
fosse propriamente noite, a ideia de ir para a cama era muito tentadora.
Mas antes de poder olhar para a minha cama, a Anne aproximou-se de
mim com uma surpresa. Soltei uma exclamação e tirei-lhe imediatamente a
carta da mão. Tinha de reconhecer que os carteiros do palácio trabalhavam
com muita rapidez.
Rasguei o envelope e fui até à varanda, a fim de absorver ao mesmo
tempo as palavras do meu pai e os últimos raios de sol.

Querida America,
Em breve, tens de escrever uma carta à May. Quando viu que esta era
só para mim, ficou muito desapontada. Devo confessar que também fiquei
um pouco surpreendido. Não sei bem o que esperava, mas certa mente não
era o que me perguntaste.
Em primeiro lugar, é verdade. Falei com o Maxon quando te visitámos
e ele foi bastante claro sobre as suas intenções em relação a ti. Não acho
que seja uma pessoa capaz de insinceridade e acreditei (ainda acredito) que
gosta bastante de ti. Penso que, se o processo fosse mais simples, já te teria
escolhido. Parte de mim acha que a demora tem a ver contigo. Estou
errado?
A resposta simples é sim. Aprovo o Maxon e, se quiseres casar com ele,
tens o meu apoio; se não quiseres, também tens. Adoro-te e quero que sejas
feliz. Talvez isso signifique viveres na nossa casinha modesta em vez de
num palácio. Para mim, não há problema.
Quanto à tua outra pergunta, também tenho de responder sim. America,
sei que não vês o teu potencial, mas tens de começar a ver. durante anos,
dissemos-te que tinhas talento, mas tu. só acreditaste quando viste as tuas
marcações aumentarem. Lembro-me do dia em que viste que tinhas a
semana inteira lotada e percebeste que era por causa da tua voz e do teu
modo de tocar e ficaste tão orgulhosa. Foi como se, de repente, te tivesses
apercebido de tudo o que eras capaz de fazer. E desde que me lembro que te
dizemos que és linda, mas não tenho a certeza se alguma vez te consideraste
assim, até seres escolhida para a Seleção.
Tu tens capacidade para liderar, America. Tens uma boa cabeça bem
assente em cima dos ombros; tens vontade de aprender; e, talvez ainda mais
importante, tens compaixão, isso é algo por que as pessoas deste pais
anseiam, mais do que possas imaginar.
Se queres a coroa, America, aceita-a. Aceita-a, porque ela deve ser tua.
E, no entanto... se não quiseres esse fardo, jamais poderei censurar-te.
receber-te-ia em casa de braços abertos.
Adoro-te,
Pai

As lágrimas correram em silêncio. Ele pensava realmente que eu era


capaz. Era o único. Bem, ele e a Nicoletta.
A Nicoletta!
Tinha-me esquecido completamente do bilhete. Procurei-o no meu
vestido e retirei-o. Era um número de telefone. Ela nem sequer escrevera o
nome.
Não fazia ideia do quanto ela arriscava ao fazer-me esta proposta.
Segurei aquele pedacinho de papel e a carta do meu pai nas mãos.
Pensei na convicção do Aspen de que eu não poderia ser uma princesa.
Lembrei-me do último lugar na sondagem do público. Pensei na promessa
misteriosa do Maxon no início da semana...
Fechei os olhos e tentei procurar bem dentro do meu coração.
Seria mesmo capaz de fazer isto? Seria capaz de ser a próxima princesa
de Illéa?
Capítulo 20

No dia a seguir à receção dos italianos, reunimo-nos no Salão das


Mulheres depois do pequeno-almoço. A rainha estava ausente e nenhuma
de nós sabia o que isso significava.
— Aposto que esta a ajudar a Silvia a escrever o relatório final —
alvitrou a Elise.
— Não acho que ela tenha grande influência no assunto — contrapôs a
Kriss.
— Talvez esteja de ressaca — sugeriu a Natalie, pressionando os dedos
contra as têmporas.
— Só porque tu estás, não quer dizer que ela também esteja — atirou a
Celeste.
— Talvez não esteja a sentir-se bem — disse eu. — Ela adoece com
facilidade.
A Kriss assentiu com a cabeça.
— Porque será?
— Ela não cresceu no Sul? — perguntou a Elise. — Ouvi dizer que o ar
e a água não são muito limpos por lá. Talvez seja pelo modo como foi
criada.
— Ouvi dizer que é tudo mau de Sumner para baixo — acrescentou a
Celeste.
— Provavelmente está apenas a descansar — intervim. — Logo à noite,
há um Noticiário e ela quer simplesmente estar preparada.
É inteligente da parte dela. Ainda não são dez horas e eu já estou a
precisar de uma sesta.
— Sim, todas nós deveríamos dormir uma sesta — disse a Natalie, num
tom fatigado.
Uma criada entrou no salão com uma pequena bandeja e avançou
silenciosamente, tão ligeira que mal se notava.
— Esperem — disse a Kriss. — Não acham que vão falar sobre a
receção no Noticiário, pois não?
A Celeste gemeu.
— Detestei aquela estupidez. Tu e a America tiveram sorte.
— Estás a gozar, certo? Tens alguma noção...
A Kriss calou-se quando a criada parou do meu lado esquerdo,
revelando um pequeno bilhete dobrado sobre a bandeja.
Senti os olhos de todas pregados em mim, enquanto pegava
hesitantemente no bilhete e o lia.
— É do Maxon? — perguntou a Kriss, tentando não demonstrar o seu
interesse.
— Sim — respondi, sem levantar os olhos.
— E o que diz? — insistiu ela.
— Que me quer falar por um instante.
A Celeste riu-se.
— Parece que estás metida em sarilhos.
Respirei fundo e levantei-me para seguir a criada.
— Acho que só há uma maneira de o descobrir.
— Talvez ele vá finalmente enxotá-la — cochichou a Celeste, num tom
de voz suficientemente alto para eu ouvir.
— Achas? — perguntou a Natalie, com um pouco de entusiasmo a mais.
Senti calafrios. Talvez ele fosse mesmo expulsar-me! Se quisesse falar
comigo ou passar algum tempo na minha companhia, não o teria dito de
outra forma?
O Maxon aguardava no corredor e aproximei-me dele timidamente. Não
parecia zangado, mas tenso.
Preparei-me para o pior.
— E então?
Ele agarrou-me no braço.
— Temos quinze minutos. Não podes contar a ninguém o que vou
mostrar-te. Entendido?
Assenti com a cabeça.
— Muito bem, então.
Subimos rapidamente as escadas até ao terceiro andar. O Maxon puxou-
me com gentileza, mas rapidamente, ao longo do corredor, até chegarmos
ao pé de duas portas brancas.
— Quinze minutos — recordou ele.
— Quinze minutos.
Tirou uma chave do bolso e destrancou uma das portas, mantendo-a
aberta para que eu entrasse à sua frente. O quarto era amplo e luminoso,
com bastantes janelas e duas portas que davam para uma varanda ao longo
da parede. Havia uma cama, um guarda-roupa gigantesco e uma mesa e
cadeiras, mas além disso o quarto estava vazio. Não havia quadros nas
paredes, nem peças nas prateleiras embutidas. Até a pintura era um pouco
insípida.
— Esta é a suíte da princesa — disse o Maxon em voz baixa.
Arregalei os olhos.
— Sei que não parece grande coisa agora. Cabe à princesa escolher a
decoração e, portanto, quando a minha mãe passou para a suíte da rainha,
este quarto foi esvaziado.
A Rainha Amberly dormira aqui. Senti algo de mágico naquele quarto.
O Maxon surgiu por trás de mim e começou a apontar.
— Estas portas dão para a varanda. E ali — indicou o outro lado do
quarto —, são as portas do escritório privado da princesa. Aqui — revelou
uma porta à nossa direita —, é a porta para o meu quarto. Os príncipes não
podem ficar muito afastados.
Corei só de pensar em dormir ali com o Maxon tão perto.
Ele aproximou-se do guarda-roupa.
— Atrás deste móvel fica a saída para o abrigo. Também se pode aceder
a outros lugares do palácio por aqui, mas este é o seu propósito principal. —
Soltou um suspiro. — Isto não é muito ortodoxo, mas achei que valia a
pena.
O Maxon colocou a mão sobre uma lingueta oculta e tanto o guarda-
roupa como o painel por trás dele avançaram. Vi-o sorrir para o espaço por
trás do móvel.
— Muito pontual.
— Não perderia isto por nada — respondeu outra voz.
Contive a respiração. Não era possível que aquela voz pertencesse a
quem eu pensava. Dei um passo em frente para ver o que a enorme peça de
mobiliário e o rosto sorridente do Maxon ocultavam. Ali, vestida com
roupas muito simples e com o cabelo preso num coque, estava a Marlee.
— Marlee? — sussurrei, certa de que estava a sonhar. — O que fazes
aqui?
— Tive tantas saudades tuas! — exclamou ela, correndo ao meu
encontro com os braços estendidos. Com as suas mãos abertas, era possível
ver claramente os vergões vermelhos quase curados nas suas palmas. Era
mesmo a Marlee.
Ela abraçou-me e caímos de joelhos no chão. Eu estava tão abalada que
não conseguia parar de chorar e perguntava vezes sem conta o que ela fazia
ali.
Quando me acalmei o suficiente, o Maxon atraiu a minha atenção.
— Dez minutos. Vou ficar à espera lá fora. Marlee, podes voltar por
onde vieste.
Ela prometeu e o Maxon deixou-nos a sós.
— Não entendo — disse eu. — Tu deverias estar no Sul. Deverias ser
uma Oito. Onde está o Carter?
Ela sorriu perante a minha confusão.
— Temos estado aqui o tempo todo. Comecei agora a trabalhar nas
cozinhas. O Carter ainda está em recuperação, mas acho que em breve irá
trabalhar nos estábulos.
— Em recuperação? — Havia tantas perguntas a girar na minha cabeça,
que não sei porque me saiu justamente essa.
— Sim, ele consegue andar, sentar-se e ficar em pé, mas ainda lhe custa
muito fazer tarefas mais pesadas. Está a ajudar nas cozinhas até recuperar
completamente. Mas vai ficar bom. E olha para mim — disse ela, exibindo
ambas as mãos. — Temos sido muito bem tratados. Não estão bonitas, mas
pelo menos já não doem.
Toquei com cuidado nos vergões inchados nas suas palmas, com a
certeza de que era impossível já não doerem. Mas ela não se retraiu e, um
instante depois, coloquei as minhas mãos sobre as dela. Era estranho, mas
ao mesmo tempo completamente natural. A Marlee estava aqui e eu estava
a segurar-lhe nas mãos.
— Então, o Maxon manteve-os aos dois no palácio este tempo todo?
Ela assentiu.
— Depois das vergastadas, ele teve medo de que nos fizessem mal se
nos deixassem por nossa conta. Portanto, manteve-nos aqui. Um irmão e
uma irmã que tinham família no Panamá foram em nosso lugar. Temos
nomes novos e o Carter está a deixar crescer a barba. Por isso, dentro em
pouco, passaremos despercebidos. Não há muita gente que saiba que
estamos no palácio, apenas algumas das cozinheiras com quem trabalho,
uma das enfermeiras e o Maxon. Acho que nem os guardas sabem, já que
reportam diretamente ao rei e ele não ficaria muito contente se soubesse.
Ela abanou a cabeça antes de prosseguir rapidamente.
— O nosso apartamento é pequeno, praticamente só tem espaço para a
nossa cama e algumas prateleiras, mas pelo menos é limpo. Estou a tentar
coser uma colcha nova, mas não...
— Espera aí. A nossa cama? Quero dizer, vocês dividem a mesma
cama?
Ela sorriu.
— Casámos há dois dias. Contei ao Maxon, na manhã do dia em que
fomos punidos, que amava o Carter e que queria casar com ele e pedi
desculpas por o magoar. Ele não se importou, claro. Veio ter comigo há dois
dias e disse que iria haver um grande evento e que, se queríamos casar-nos,
essa era a altura.
Fiz as contas. A Federação Alemã chegara dois dias antes. Todos os
funcionários do palácio estavam a servir os convidados ou a preparar a
receção para as senhoras de Itália.
— Foi o Maxon quem me levou ao altar. Não sei se alguma vez voltarei
a ver os meus pais. Quanto mais longe ficarem de mim, melhor.
Era óbvio que lhe era doloroso dizer aquilo, mas eu compreendia a
razão. Se eu tivesse de repente passado a ser uma Oito, o maior favor que
poderia fazer à minha família seria desaparecer. Levaria tempo, mas as
pessoas esqueceriam. E os meus pais acabariam por recuperar.
Ela abanou a mão esquerda para afastar os pensamentos tristes e eu vi,
pela primeira vez, a pequena aliança no seu dedo. Era um cordel entrançado
com um nó simples, mas tinha um significado claro: «Estou
comprometida».
— Acho que vou ter de lhe pedir que me dê uma nova em breve; esta já
está gasta. Imagino que, se ele for trabalhar nos estábulos, vou ter de lhe
fazer uma nova todos os dias. — Ela encolheu os ombros, brincalhona. —
Não que me importe.
A minha mente saltou para outra questão, que temi que pudesse ser
demasiado íntima, mas eu sabia que nunca seria capaz de ter este tipo de
conversa com a minha mãe ou com a Kenna.
— Então, vocês já... tu sabes?
Ela demorou um instante para perceber, mas depois soltou uma
gargalhada.
— Ah! Sim, nós já.
Rimo-nos ambas.
— E como é?
— Sinceramente? Um pouco desconfortável no início. A segunda vez
foi melhor.
— Oh! — Não sabia o que mais dizer.
— Pois.
Houve uma ligeira pausa.
— Tenho-me sentido muito sozinha sem ti. Sinto a tua falta — confessei
enquanto brincava com o cordel no seu dedo.
— Também tenho saudades tuas. Talvez quando fores princesa, eu possa
vir até aqui o tempo todo.
Soltei uma risada amarga.
— Não sei se isso irá acontecer.
— Como assim? — perguntou ela, com uma expressão séria. — Ainda
és a favorita dele, certo?
Encolhi os ombros.
— O que aconteceu? — A sua voz estava carregada de preocupação e
eu não quis revelar que tudo começara com a sua expulsão. A culpa não era
dela.
— Coisas.
— America, o que se passa?
Suspirei.
— Depois de seres açoitada, fiquei furiosa com o Maxon. Demorei
algum tempo para perceber que ele nunca faria uma coisa daquelas se
pudesse evitá-lo.
A Marlee assentiu com a cabeça.
— Ele tentou tanto, America. E quando não conseguiu, fez tudo o que
pôde para melhorar a nossa situação. Não fiques zangada com ele.
— Já não estou zangada, mas também não sei se quero ser princesa.
Não sei se seria capaz de fazer o que ele fez. E depois vi uma sondagem
numa revista que a Celeste me mostrou. As pessoas não gostam de mim,
Marlee. Estou em último lugar. Não sei se tenho todos requisitos. Nunca fui
uma boa opção e parece que estou a cair. E agora... agora... acho que o
Maxon quer a Kriss.
— A Kriss? Quando é que isso aconteceu?
— Não faço ideia e não sei o que fazer. Parte de mim acha que é uma
coisa boa; ela seria uma princesa melhor. E se ele gosta mesmo dela, quero
que seja feliz. Ele tem de eliminar alguém muito em breve. Quando me
chamou hoje, pensei que iria para casa.
A Marlee riu-se.
— Tu és tão ridícula. Se o Maxon não sentisse alguma coisa por ti, já te
teria mandado embora há muito tempo. A razão por que ainda estás aqui é
porque ele se recusa a perder a esperança.
Soltei uma gargalhada estrangulada.
— Gostava que pudéssemos conversar mais, mas tenho de ir — disse
ela. — Aproveitámos a mudança da guarda para fazer isto.
— Não me importo que seja por pouco tempo. Estou feliz por saber que
estás bem.
Ela abraçou-me.
— Não desistas ainda, está bem?
— Está bem. Talvez possas enviar-me uma carta ou algo assim, de vez
em quando?
— É capaz de ser possível. Veremos. — Ela soltou-me e levantámo-nos.
— Se me tivessem perguntado, eu teria votado em ti. Sempre achei que
deverias ser tu.
Corei.
— Vá, vai-te embora. Diz «olá» ao teu marido por mim.
Ela sorriu.
— Eu digo.
Depois, aproximou-se com ligeireza do armário e encontrou a lingueta.
Por algum motivo, achara que as vergastadas iriam destruí-la, mas ela
estava mais forte agora. Até o seu porte era diferente. A Marlee virou-se
para me soprar um beijo e desapareceu.
Saí rapidamente do quarto e deparei com o Maxon à minha espera no
corredor. Assim que ouviu o ruído da porta, levantou o olhar do seu livro,
com um sorriso nos lábios, e eu fui sentar-me ao seu lado.
— Porque não me contaste antes?
— Primeiro, precisava de ter a certeza de que eles estavam em
segurança. O meu pai não sabe que fiz isto e, até eu perceber que não os
poria em perigo, tinha de manter segredo. Espero conseguir que se vejam
mais vezes, mas vai levar tempo.
Senti desaparecer o peso sobre os meus ombros, como se todos os
tijolos de preocupação que carregava comigo se desmoronassem de uma
vez. A felicidade de ver a Marlee, a certeza de que o Maxon era tão
generoso como eu pensava e o alívio geral por este encontro não ter sido
sobre a minha expulsão eram avassaladores.
— Obrigada — sussurrei.
— De nada.
Não sabia o que mais dizer. Pouco depois, o Maxon tossicou.
— Sei que és avessa a desempenhar as partes difíceis deste cargo, mas
há muitas oportunidades aqui. Acho que poderias fazer coisas fantásticas.
Sei que vês o príncipe em mim agora, mas isso iria acabar por acontecer se
alguma vez fosses realmente minha.
Olhei-o nos olhos.
— Eu sei.
— Já não consigo ler-te. No início, costumava ser capaz de ver quando
não te importavas realmente comigo; e depois as coisas mudaram entre nós
e tu olhavas para mim de um modo diferente. Agora, há momentos em que
penso que esse sentimento ainda está lá e outros em que parece que já te
foste embora.
Assenti com a cabeça.
— Não estou a pedir-te para me dizeres que me amas. Não estou a
pedir-te para decidires de repente que queres ser princesa. Apenas preciso
de saber se ainda queres estar aqui.
Esta era a questão. Eu ainda não sabia se seria capaz de desempenhar o
papel, mas também não tinha a certeza de querer desistir. E ver esta
generosidade do Maxon moveu o meu coração. Havia ainda muito em que
pensar, mas não podia desistir. Não naquele momento.
O Maxon tinha a mão apoiada sobre a perna e eu fiz deslizar a minha
sob a sua. Ele apertou-ma, aceitando o gesto.
— Se ainda me quiseres, quero ficar.
O Maxon suspirou aliviado.
— Gostaria muito.
***
Regressei ao Salão das Mulheres, depois de uma breve passagem pela
casa de banho. Ninguém disse nada até eu me sentar, mas depois foi a Kriss
quem arranjou coragem suficiente para perguntar:
— O que aconteceu?
Olhei não apenas para ela, mas para todos os rostos atentos.
— Prefiro não dizer.
Como o meu rosto ainda estava inchado, uma resposta como esta
bastava para dar a entender que o encontro não fora nada bom; mas se era
necessário dizer aquilo para proteger a Marlee, tudo bem.
O que me picou foi ver a Celeste apertar os lábios para esconder um
sorriso, a Natalie erguer as sobrancelhas enquanto fingia ler uma revista
emprestada e a troca de olhares esperançosos entre a Kriss e a Elise.
A competição era mais profunda do que eu imaginara.
Capítulo 21

Fomos poupadas da humilhação de termos de lidar com o resultado das


nossas receções no Noticiário. As visitas dos nossos amigos estrangeiros
foram mencionadas de passagem, mas os eventos propriamente ditos não
foram comunicados ao público. Só na manhã seguinte é que a Silvia e a
rainha vieram falar connosco sobre o nosso desempenho.
— Confiámos-vos uma tarefa difícil, que poderia ter corrido
terrivelmente mal. Contudo, tenho o prazer de vos dizer que ambas as
equipas se saíram muito bem. — A Silvia olhava para nós como se nos
avaliasse.
Suspirámos todas e eu estendi a mão à Kriss, que fez o mesmo. Embora
estivesse confusa em relação a ela e ao Maxon, sabia que não teria
conseguido fazer nada daquilo sem ela.
— Para ser sincera, um dos eventos foi um pouco melhor do que o
outro, mas todas devem orgulhar-se do que fizeram. Recebemos cartas de
agradecimento dos nossos velhos amigos da Federação Alemã pela graciosa
receção — disse a Silvia, olhando para a Celeste, a Natalie e a Elise. —
Houve alguns percalços ligeiros e acho que nenhuma de nós aprecia
realmente eventos tão sérios, mas os nossos convidados gostaram.
— E quanto a vocês duas... — A Silvia virou-se para a Kriss e para
mim. — As senhoras de Itália divertiram-se imenso. Ficaram muito
impressionadas com o vosso estilo e com a comida e fizeram questão de
saber qual era o vinho que serviram. Portanto, bravo! Não me surpreenderia
se Illéa ganhasse um novo aliado maravilhoso por causa desse acolhimento.
Merecem um aplauso.
A Kriss soltou uma exclamação de alegria ao passo que eu deixei
escapar uma gargalhada nervosa, feliz por tudo ter terminado e mais ainda
por termos vencido as outras.
A Silvia continuou a falar do relatório que iria escrever para entregar ao
rei e ao Maxon, mas garantiu que nenhuma de nós teria nada a recear.
Enquanto falava, uma criada esgueirou-se pela porta e correu para junto da
rainha, sussurrando-lhe algo ao ouvido.
— Claro que podem — disse a rainha, levantando-se subitamente e
avançando.
A criada recuou, rapidamente e abriu a porta ao rei e ao Maxon. Eu
sabia que os homens não podiam entrar naquele salão sem a permissão da
rainha, mas era cómico ver essa regra em funcionamento.
Assim que eles entraram, levantámo-nos e fizemos uma reverência, mas
eles pareceram não se importar com as formalidades.
— Minhas senhoras, pedimos desculpa por invadir o vosso espaço, mas
temos notícias urgentes — informou o rei.
— Receio que tenha havido um desenvolvimento na guerra na Nova
Ásia — disse o Maxon com firmeza. — A situação é tão calamitosa que o
meu pai e eu vamos partir imediatamente para ver se podemos ajudar de
alguma forma.
— O que se passa? — perguntou a rainha, levando as mãos ao peito.
— Nada com que devas preocupar-te, meu amor — disse o rei com
confiança. Mas a afirmação não podia ser completamente sincera, já que
ambos tinham de partir tão depressa.
O Maxon aproximou-se da mãe e os dois trocaram umas breves palavras
em voz baixa, antes de ela beijar o filho na testa. Ele abraçou-a e depois
afastou-se. O rei começou então a recitar uma série de instruções à rainha,
enquanto o Maxon se despedia de cada uma de nós.
O seu adeus à Natalie foi tão breve que era quase como se não tivesse
existido. Ela não pareceu muito incomodada com isso e eu não soube como
interpretar a situação. Será que ela realmente não se importava com a falta
de afeto do Maxon, ou estava tão incomodada que se forçava a permanecer
calma?
A Celeste pendurou-se completamente no Maxon e explodiu na pior
demonstração de choro falso que alguma vez vi na vida. Lembrou-me de
quando a May era mais nova e pensava que as lágrimas traziam, como num
passe de mágica, o dinheiro necessário para comprarmos o que
quiséssemos. Quando o Maxon tentou afastar-se, ela pregou-lhe um beijo
nos lábios que ele, da maneira mais educada possível, limpou assim que lhe
virou as costas.
A Elise e a Kriss estavam tão perto que consegui ouvir as suas
despedidas.
— Ligue-lhes e diga-lhes para nos darem uma oportunidade — disse ele
à Elise. Quase me tinha esquecido de que a razão principal de ela ainda
estar aqui eram os seus laços familiares com os líderes da Nova Ásia.
Perguntei-me se o facto de a guerra estar a piorar lhe custaria o lugar.
Apercebi-me então, subitamente, de que não fazia ideia do que Illéa
poderia perder se fôssemos derrotados nesta guerra.
— Se me arranjar um telefone, falarei com os meus pais — prometeu
ela.
O Maxon assentiu com a cabeça e beijou-lhe a mão, aproximando-se
depois da Kriss.
Ela entrelaçou imediatamente os seus dedos nos dele.
— Vai correr perigo? — perguntou ela baixinho, e a sua voz começou a
tremer.
— Não sei. Na nossa última viagem à Nova Ásia, a situação não estava
tão tensa. Não posso ter a certeza desta vez.
A voz dele era tão carinhosa que achei que deveriam ter esta conversa
em privado. A Kriss ergueu os olhos para o teto e suspirou e, nesse curto
segundo, o Maxon olhou para mim. Desviei o olhar.
— Por favor, tenha cuidado — sussurrou ela. Uma lágrima deslizou-lhe
pela face.
— Claro, minha querida. — O Maxon fez-lhe uma saudação militar
tola, o que a fez rir um pouco. Ele beijou-lhe então a face e sussurrou-lhe ao
ouvido: — Por favor, tente distrair a minha mãe. Ela fica preocupada.
Ele afastou-se para a fitar e ela assentiu com a cabeça e soltou-lhe as
mãos. Assim que deixou de o tocar, um tremor percorreu-lhe o corpo. As
mãos do Maxon estremeceram por um instante, como se fosse abraçá-la,
mas em vez disso deu um passo atrás e veio na minha direção.
Como se as palavras do Maxon na semana anterior não fossem já
suficientes, ali estava uma prova física da relação entre os dois.
Aparentemente, havia algo de muito doce e real entre ambos. Bastava olhar
para a Kriss, com as mãos a cobrir o rosto, para ter a prova do quanto ela
gostava dele. Ou isso, ou era uma atriz incrível.
Tentei comparar a expressão dele quando olhou para mim com o modo
como olhara para a Kriss. Seria semelhante? Havia menos ternura ali?
— Tenta não te meteres em sarilhos enquanto eu estiver fora, está bem?
— disse ele, provocadoramente.
Ele não brincara com a Kriss. Será que isso significava alguma coisa?
Levantei a mão direita.
— Prometo portar-me o melhor possível.
Ele riu-se.
— Excelente. Menos uma coisa com que me preocupar.
— E nós? Devemos ficar preocupadas?
O Maxon abanou a cabeça.
— Em princípio, devemos conseguir apaziguar o que quer que seja que
está a passar-se. O meu pai pode ser bastante diplomático e...
— És tão idiota às vezes — disse eu, e ele franziu a testa. — Eu quero
saber em relação a ti. Devemos preocupar-nos contigo?
O seu rosto ficou muito sério, o que não ajudou nada a acalmar os meus
receios.
— Vai ser uma entrada por saída rápida. Se conseguirmos aterrar... — O
Maxon engoliu em seco uma vez e vi o quanto estava assustado.
Queria perguntar-lhe outra coisa, mas não sabia o que dizer.
Ele aclarou a garganta.
— America, antes de eu partir...
Olhei-o nos olhos e senti as lágrimas começarem a surgir.
— Quero que saibas que tudo...
— Maxon! — berrou o rei. Ele ergueu a cabeça à espera das ordens do
pai. — Temos de ir.
O Maxon anuiu.
— Adeus, America — disse em voz baixa e levou a minha mão aos
lábios. Ao fazê-lo, reparou na pulseira artesanal que eu usava. Observou-a
com um ar confuso e depois beijou-me carinhosamente a mão.
Aquele beijo suave recordou-me uma situação que parecia já ter anos.
Ele beijara-me assim a mão na minha primeira noite no palácio, quando eu
gritara com ele e ele me deixara ficar mesmo assim.
Os olhos das outras estavam cravados no rei e no Maxon quando estes
saíram, mas eu observei a rainha. Todo o seu corpo parecia fraco. Quantas
vezes é que o seu marido e o seu único filho enfrentariam o perigo até que
ela se fosse abaixo?
Assim que a porta se fechou atrás da sua família, a Rainha Amberly
pestanejou algumas vezes, respirou fundo e endireitou-se, recuperando a
postura.
— Desculpem-me, minhas senhoras, mas estas notícias repentinas vão
exigir muito trabalho da minha parte. Penso que é melhor ir para o meu
quarto para me concentrar. — Ela fazia um esforço enorme para se
controlar. — Que tal se eu mandar servir o almoço aqui, para que possam
comer à vossa vontade? À noite, juntar-me-ei a vocês para jantar.
Assentimos todas.
— Excelente — disse ela. Depois, virou-se e saiu. Eu sabia que ela era
forte. Tinha crescido num bairro pobre de uma província pobre e trabalhara
numa fábrica até ser escolhida para a Seleção. E a seguir, já depois de ser
rainha, perdera gravidez atrás de gravidez antes de finalmente dar à luz um
filho. Regressaria ao seu quarto como uma lady, tal como a sua posição
exigia. Mas choraria assim que estivesse sozinha.
Assim que a rainha saiu, a Celeste fez o mesmo. Decidi então que
também não precisava de ficar. Fui para o meu quarto; queria ficar só e
refletir.
Continuava a pensar na Kriss. Como é que ela e o Maxon tinham ficado
tão próximos de repente? Ainda não há muito tempo, ele fazia-me
promessas sobre o nosso futuro. Não poderia estar assim tão interessado
nela se me dizia coisas tão íntimas. Deveria ter acontecido depois disso.
O dia passou depressa. Depois do jantar, enquanto as minhas aias me
ajudavam calmamente a preparar-me para dormir, uma frase bastou para me
arrancar às minhas reflexões.
— Sabe quem encontrei aqui esta manhã, menina? — perguntou a
Anne, enquanto escovava cuidadosamente os meus cabelos.
— Quem?
— O Soldado Leger.
Gelei, mas apenas por um instante.
— Ah? — disse, mantendo os olhos fixos no espelho enquanto elas
prosseguiam.
— Sim — disse a Lucy. — Ele disse que estava a passar uma revista ao
seu quarto. Qualquer coisa sobre segurança — relatou, parecendo um tanto
confusa.
— Foi estranho — disse a Anne, reforçando a expressão da Lucy. —
Ele estava vestido à paisana e não de uniforme. Não deveria estar a fazer
trabalho de segurança nos seus momentos de folga.
— Deve ser muito dedicado — comentei, num tom de voz
desinteressado.
— Acho que sim — disse a Lucy, com admiração. — Quando o
encontro no palácio, ele está sempre a prestar atenção a tudo. É um soldado
muito bom.
— É verdade — disse a Mary, pragmática. — Alguns dos homens que
passam por aqui não servem para este trabalho.
— E tem bom aspeto com roupas normais. A maioria deles fica horrível
quando tira o uniforme — comentou a Lucy.
A Mary soltou um risinho, corando, e até a Anne fez um sorriso. Há
muito tempo que não as via tão descontraídas. Num outro dia, num outro
momento, talvez tivesse sido divertido coscuvilhar sobre os guardas. Mas
não hoje. Tudo em que conseguia pensar era que havia uma carta do Aspen
no meu quarto. Quis virar a cabeça para olhar para o meu frasco, mas não
me atrevi.
Pareceu-me uma eternidade até elas me deixarem finalmente sozinha.
Forcei-me a ser paciente e esperei alguns minutos para garantir que não
iriam voltar. Por fim, corri para junto da minha cama e agarrei no frasco.
Como previa, lá estava uma pequena tira de papel à minha espera.

O Maxon foi-se embora. Isto muda tudo!


Capítulo 22

— Olá? — sussurrei, seguindo as instruções que o Aspen me deixara no


dia anterior. Entrei cuidadosamente num quartinho iluminado apenas pela
luz do final do dia, que atravessava as cortinas transparentes. Era contudo o
suficiente para conseguir ver o entusiasmo na cara do Aspen.
Fechei a porta atrás de mim e ele aproximou-se imediatamente e pegou-
me ao colo.
— Tive saudades.
— Eu também. Estava tão ocupada com a receção, que mal tive tempo
para respirar.
— Ainda bem que já terminou. Tiveste dificuldade em chegar aqui? —
gracejou ele.
Eu ri-me.
— A sério, Aspen, és demasiado bom no teu trabalho.
A ideia dele era tão simples que chegava a ser cómica. A rainha era um
pouco mais descontraída a gerir o palácio ou talvez andasse preocupada
com outras coisas, mas, em todo caso, decidira que o jantar era opcional;
poderíamos comer no nosso quarto ou no salão. As minhas criadas
prepararam-me para a refeição, mas em vez de ir para a sala de jantar,
percorri o corredor até ao antigo quarto da Bariel. Era demasiado fácil.
Ele sorriu perante o meu elogio e sentou-me no canto mais afastado do
quarto, sobre umas almofadas que já tinha empilhado ali.
— Estás confortável?
Assenti e esperei que ele também se sentasse, mas não o fez. Em vez
disso, empurrou um grande sofá para perto de nós, de modo a bloquear a
vista da porta e, a seguir, puxou também uma mesa, que tapava o topo das
nossas cabeças enquanto estávamos sentados no chão. Por fim, pegou num
embrulho que deixara sobre a mesa, o qual cheirava a comida, e sentou-se
ao meu lado.
— Quase como em casa, não é? — disse, passando para trás de mim, de
modo a que eu ficasse sentada entre as suas pernas.
Aquela posição era tão familiar e o espaço tão pequeno, que fazia de
facto lembrar a nossa casa da árvore. Era como se ele tivesse pegado num
pedaço de algo que eu pensava estar perdido para sempre e o tivesse
colocado cuidadosamente nas minhas mãos.
— É ainda melhor — suspirei, encostando-me a ele. Após uns instantes,
senti os seus dedos percorrerem o meu cabelo, provocando-me arrepios.
Permanecemos ali em silêncio, durante algum tempo, e eu fechei os
olhos e concentrei-me no som da respiração do Aspen. Não há muito tempo
fizera o mesmo com o Maxon, mas isto era diferente. Se fosse necessário,
era capaz de distinguir a respiração do Aspen no meio de uma multidão.
Conhecia-o tão bem. E ele, obviamente, conhecia-me a mim. Este
pedacinho minúsculo de paz era tudo por que eu ansiava há muito e o
Aspen tornara-o realidade.
— Em que estás a pensar, Mer?
— Em muitas coisas. — Suspirei. — Em casa, em ti, no Maxon, na
Seleção, em tudo.
— E em que é que pensas em relação a tudo isso?
— Na maior parte do tempo, penso em como tudo isso me deixa
confusa. Por exemplo, quando acho que compreendo o que está a acontecer-
me, há algo que muda e os meus sentimentos também se alteram.
O Aspen ficou em silêncio por instantes e sua voz soou magoada
quando perguntou:
— Os teus sentimentos em relação a mim mudam bastante?
— Não! — disse eu, encostando-me mais a ele. — Pelo contrário, tu és
a única constante. Sei que se tudo ficar de pernas para o ar, tu ainda estarás
aqui, no mesmo lugar. É tudo tão louco que o meu amor por ti fica em
segundo plano, mas eu sei que está sempre aí. Faz sentido?
— Faz. Eu sei que torno tudo isto ainda mais complicado do que já é.
Mas fico feliz por saber que ainda não estou completamente fora da corrida.
O Aspen envolveu-me com os braços, como se pudesse manter-se ali
para sempre.
— Não me esqueci de nós — assegurei.
— Às vezes, acho que o Maxon e eu somos a tua versão particular da
Seleção. Somos só ele e eu, e um de nós vai ficar contigo no final, mas não
sei dizer quem está na pior situação. O Maxon não sabe que estamos a
competir; portanto, pode não se esforçar tanto. Mas, por outro lado, eu
tenho de me esconder, de modo que não posso oferecer-te as mesmas coisas
que ele. Não é um combate justo para nenhum dos dois.
— Não deverias pensar nisso assim.
— Não sei de que outra forma posso pensar, Mer.
Suspirei.
— Não vamos falar nisso.
— Está bem. Afinal, não gosto nada de falar dele. E as outras coisas que
te deixam tão confusa? O que se passa?
— Gostas de ser soldado? — perguntei, olhando para ele.
Ele assentiu entusiasticamente com a cabeça, enquanto se inclinava para
comer.
— Adoro, Mer. Pensava que iria detestar tudo, mas é fantástico. —
Meteu um pedaço de pão na boca e continuou. — Há a parte óbvia, como
estar sempre a comer. Eles querem que sejamos fortes, por isso há comida
com fartura. E as injeções, também — disse, pensando melhor. — Mas não
são assim tão más. E recebo um salário. Embora tenha tudo o que necessito,
ainda ganho dinheiro.
Ele parou por um instante, brincando com um gomo de laranja.
— Sei que tu sabes como é bom podermos mandar dinheiro para casa.
Eu sabia que ele estava a pensar na mãe e nos seis irmãos. Ele fora a
figura paterna na sua casa e perguntei-me se isso o deixava ainda com mais
saudades de casa do que eu.
Ele aclarou a garganta e continuou:
— Mas há também outras coisas de que eu não estava à espera de
gostar. A disciplina e a rotina agradam-me bastante. Gosto de saber que
estou a fazer algo de necessário. Sinto-me tão... satisfeito. Passei anos
inquieto, a fazer inventários e a limpar casas. Agora, tenho a sensação de
que estou a fazer aquilo para que nasci.
— Então, a resposta é um enorme sim? Tu adoras ser soldado?
— Completamente.
— Mas tu não gostas do Maxon. E sei que não gostas do modo como
Illéa é governada. Costumávamos conversar sobre isso em casa. E depois
toda aquela história das pessoas do Sul perderem as suas castas. Sei que isso
também te incomoda.
Ele concordou:
— Acho que é cruel.
— Então, como é que te sentes satisfeito por proteger tudo isso? Tu
lutas contra os rebeldes para proteger o rei e o Maxon; são eles que fazem
com que tudo aconteça e tu não concordas com nada disso. Portanto, como
é que podes gostar do teu trabalho?
Ele mastigou enquanto pensava.
— Não sei. Talvez não faça sentido, mas... pronto, como já disse, há a
sensação de ter um propósito; e o sentir-me desafiado e comprometido com
alguma coisa, a possibilidade de fazer algo mais com a minha vida. Talvez
Illéa não seja perfeita. Está longe de o ser, na verdade. Mas eu tenho... tenho
esperança — explicou, simplesmente.
Permanecemos em silêncio por instantes enquanto pensávamos naquela
palavra.
— Tenho a sensação de que as coisas são melhores hoje do que dantes,
embora sinceramente não saiba o suficiente sobre a nossa História para o
provar. E sinto que as coisas vão melhorar ainda mais no futuro. Acho que
há possibilidades.
»E, talvez isto possa parecer uma parvoíce, mas este é o meu país. Eu
sei que está todo mal, mas isso não significa que esses anarquistas possam
chegar aqui e tomá-lo. Ainda é meu. Parece loucura?
Mordisquei o meu pão, enquanto refletia sobre as suas palavras. Elas
transportavam-me de volta à nossa casa da árvore e a todas as vezes em que
lhe fazia perguntas. Mesmo quando eu discordava, isso ajudava-me a
compreender melhor as coisas. Mas neste ponto não discordava. De facto,
ajudava-me a ver o que talvez tivesse estado escondido no meu coração este
tempo todo.
— Não parece loucura de forma alguma. É perfeitamente razoável.
— Ajuda a resolver essas coisas em que tens pensado?
— Sim
— Vais explicar-me algumas delas?
Sorri-lhe.
— Ainda não.
Mas o Aspen era esperto e talvez já tivesse adivinhado. A expressão
expectante nos seus olhos indicava que provavelmente já o fizera.
Ele desviou o olhar por um instante, fazendo deslizar a mão pelo meu
braço e brincando com a pulseira do botão no meu pulso.
— Somos confusos, não somos?
— Bastante.
— Às vezes, sinto que somos um nó, demasiado complicado para se
desfazer.
— É verdade — concordei. — Grande parte de mim está ligada a ti.
Sinto-me meio perdida sem ti.
O Aspen puxou-me para ele e acariciou-me o rosto, desde as têmporas
até às bochechas.
— Então, só precisamos de continuar ligados.
Ele beijou-me suavemente, como se temesse que, se forçasse
demasiado, o momento pudesse desvanecer-se e então perderíamos tudo.
Talvez tivesse razão. Devagar, deitou-me sobre o colchão de almofadas,
abraçando-me e deslizando as mãos pelas minhas curvas, enquanto
continuava a beijar-me. Era tudo tão familiar, tão seguro.
Passei os dedos por entre os cabelos curtos do Aspen, lembrando-me do
modo como costumavam pender, fazendo-me cócegas no rosto quando me
beijava. Notei que os seus braços à minha volta estavam muito mais cheios,
muito mais robustos. Até o modo como me segurava tinha mudado. Havia
nele uma confiança recém-descoberta, algo que lhe fora instilado quando se
tornara um Dois, um soldado.
Em breve, era altura de me ir embora e o Aspen acompanhou-me até à
porta. Deu-me um beijo prolongado, fazendo-me sentir um pouco tonta.
— Vou tentar deixar-te outro bilhete em breve — prometeu.
— Vou ficar à espera. — Apertei-me contra ele por um longo instante.
Depois, para nos manter em segurança, saí.
As minhas criadas prepararam-me para dormir e eu segui a rotina como
num sonho. Antes, a Seleção parecia resumir-se a uma escolha: o Maxon ou
o Aspen. E então, como se essa fosse uma decisão que o meu coração
conseguisse tomar facilmente, desdobrou-se em muitas outras coisas. Eu era
uma Cinco ou uma Três? Quando tudo isto terminasse, seria uma Dois ou
uma Um? Viveria o resto dos meus dias como esposa de um soldado ou de
um rei? Será que regressaria calmamente para o segundo plano, onde
sempre me sentira confortável, ou forçar-me-ia a avançar para os holofotes,
que sempre temera? Seria feliz em ambas as situações? Será que
conseguiria não odiar a pessoa com que o Maxon ficasse, se escolhesse o
Aspen? Será que conseguiria não odiar a pessoa que o Aspen escolhesse, se
ficasse com o Maxon?
Quando me deitei na cama e apaguei as luzes, lembrei-me de que a
decisão de estar aqui fora minha. O Aspen podia ter pedido e a minha mãe
pressionado, mas ninguém me obrigara a preencher o formulário da
Seleção.
O que quer que viesse a seguir, eu iria enfrentá-lo. Tinha de o fazer.
Capítulo 23

Fiz uma reverência à rainha quando entrei na sala de jantar, mas ela nem
viu. Olhei para a Elise, a única que já ali estava, e ela encolheu
simplesmente os ombros. Sentei-me no momento em que a Natalie e a
Celeste entravam e eram igualmente ignoradas. Por fim, chegou a Kriss,
que se sentou ao meu lado, mas com os olhos fixos na Rainha Amberly. A
rainha parecia estar no seu mundo privado, olhando para o chão ou, de vez
em quando, para as cadeiras do Maxon e do rei, como se algo estivesse
errado.
Os mordomos começaram a servir a comida e a maior parte das
raparigas começou a comer. A Kriss, porém, continuou atenta à mesa
principal.
— Sabes o que se passa? — sussurrei.
A Kriss soltou um suspiro e virou-se para mim.
— A Elise telefonou para a família para ter uma ideia do que estava a
passar-se e para que os seus parentes se encontrassem com o Maxon e o rei,
assim que estes chegassem à Nova Ásia. Só que a família da Elise diz que
eles não chegaram.
— Não chegaram?
A Kriss assentiu com a cabeça.
— O que é esquisito é que o rei ligou quando eles aterraram. Tanto ele
como o Maxon conversaram com a Rainha Amberly.
Estavam bem e disseram que estavam na Nova Ásia, mas a família da
Elise continua a dizer que não chegaram.
Franzi a testa, tentando compreender.
— O que é que isso tudo significa?
— Não sei — admitiu ela. — Eles disseram que estavam. Portanto,
como é possível não estarem? Não faz sentido.
— Hum... — disse eu, não sabendo bem o que acrescentar. Por que
razão é que a família da Elise não saberia que eles estavam lá? E se não
estivessem realmente na Nova Ásia, onde estariam?
A Kriss inclinou-se mais para mim.
— Há outra coisa sobre a qual gostaria de falar contigo — sussurrou. —
Podemos ir dar um passeio nos jardins depois do pequeno-almoço?
— Claro — respondi, ansiosa por ouvir o que ela sabia.
Comemos ambas rapidamente. Não sabia o que ela descobrira, mas se
queria falar lá fora, era porque o segredo era um requisito. A rainha estava
tão distraída que mal reparou na nossa saída.
Era maravilhoso caminhar pelos jardins ensolarados.
— Já há algum tempo que não venho aqui fora — comentei, fechando
os olhos e erguendo o rosto para o Sol.
— Costumas vir com o Maxon, não é?
— Hum-hum... — respondi e perguntei-me imediatamente como é que
ela sabia disso. Seria do conhecimento público? Aclarei a garganta: — E
então, sobre o que é que querias falar?
Ela parou sob a sombra de uma árvore e virou-se para me encarar.
— Acho que tu e eu devemos falar sobre o Maxon.
— De que modo?
Ela moveu-se nervosamente.
— Bem, eu estava preparada para perder. Acho que todas estávamos,
com exceção talvez da Celeste. Era óbvio, America. Ele queria-te a ti. E
então aconteceu tudo aquilo com a Marlee e as coisas mudaram.
Eu não sabia bem o que dizer.
— Portanto, estás a dizer-me que lamentas ter-me passado à frente ou
algo assim?
— Não! — exclamou ela. — Eu vejo que ele ainda gosta de ti. Não sou
cega. Só estou a dizer que acho que talvez estejamos empatadas nesta
altura. Eu gosto de ti. Acho que és uma pessoa espetacular e,
independentemente do resultado, não quero que as coisas se tornem
desagradáveis.
— Então, isto é...?
Ela apertou as mãos uma na outra, tentando encontrar as palavras certas.
— Isto sou eu disposta a ser completamente sincera sobre a minha
relação com o Maxon. E espero que consigas fazer o mesmo.
Cruzei os braços e fiz a pergunta que ansiava por colocar:
— Quando é que vocês ficaram tão próximos?
A expressão dos olhos dela tornou-se sonhadora e ela torceu uma ponta
do seu cabelo castanho-claro.
— Acho que logo depois do que aconteceu com a Marlee. Talvez pareça
idiota, mas eu fiz-lhe um cartão. Era o que sempre fazia na minha cidade
quando os meus amigos estavam tristes. Seja como for, ele adorou. Disse
que ainda ninguém lhe tinha dado um presente.
O quê? Oh. Uau. Depois de tudo o que ele fizera por mim, eu nunca
tinha realmente retribuído?
— Ele ficou tão feliz que me pediu para me sentar um pouco com ele no
seu quarto e...
— Viste o quarto dele? — perguntei, chocada.
— Sim. Tu não?
O meu silêncio serviu-lhe de resposta.
— Oh... — disse ela, um pouco constrangida. — Bem, não perdeste
nada. É escuro, tem uma estante com armas e uma confusão de fotografias
espalhadas pela parede. Não é nada de especial — assegurou ela, com um
gesto displicente. — Seja como for, depois disso, ele começou a visitar-me
praticamente sempre que tinha um momento livre. — Ela abanou a cabeça.
— Aconteceu muito depressa.
Soltei um suspiro.
— Ele contou-me, mais ou menos — confessei. — Fez um comentário
sobre precisar de nós as duas aqui.
— Então... — Ela mordeu os lábios. — Tens a certeza de que ele ainda
gosta de ti?
Mas ela não suspeitava já disso? Será que precisava de o ouvir da minha
boca?
— Kriss, queres mesmo saber todas essas coisas?
— Sim! Quero saber qual é a minha posição. E contar-te-ei também
qualquer coisa que queiras saber. Nós não controlamos isto, mas isso não
significa que tenhamos de nos sentir perdidas.
Dei alguns passos de um lado para o outro, tentando entender tudo
aquilo. Não sabia se era suficientemente corajosa para perguntar ao Maxon
sobre a Kriss. Mal conseguia conversar honestamente com ele sobre mim.
Mas continuava a ter a sensação de não saber toda a verdade sobre a minha
posição. Talvez esta fosse a minha única esperança de saber realmente.
— Tenho a certeza de que ele quer que eu fique durante algum tempo.
Mas acho que ele também te quer aqui.
Ela assentiu com a cabeça.
— Foi o que pensei.
— Ele beijou-te? — perguntei, não me contendo.
Ela sorriu, embaraçada.
— Não, mas acho que me teria beijado se eu não lhe tivesse pedido para
não o fazer. Na minha família, temos uma espécie de tradição em que não
nos beijamos até ficarmos noivos. Às vezes, damos uma festa onde o casal
anuncia a sua data de casamento e então toda a gente assiste ao primeiro
beijo. Quero isso para mim.
— Mas ele tentou?
— Não. Expliquei-lhe a situação antes de chegarmos a esse ponto. Ele
beija-me frequentemente as mãos ou a face, às vezes. Acho amoroso —
disse ela com entusiasmo.
Assenti com a cabeça, olhando para a relva.
— Espera! — disse ela, hesitando. — Ele beijou-te?
Parte de mim queria gabar-se de ter sido a primeira pessoa que ele
beijara. Que quando nos beijávamos parecia que o tempo parava.
— Mais ou menos. É difícil explicar — respondi ambiguamente.
Ela fez uma careta.
— Não, não é. Ele beijou-te ou não?
— É complicado.
— America, se não vais ser sincera comigo, isto é uma perda de tempo.
Vim aqui para ser sincera contigo. Pensei que seria bom para ambas se
fossemos amigáveis uma com a outra.
Fiquei ali, torcendo as mãos, tentando pensar numa forma de me
explicar. Não é que eu não gostasse da Kriss. Se voltasse para casa, quereria
que fosse ela a ganhar.
— Eu quero ser tua amiga, Kriss. Pensei que já fôssemos.
— Eu também — disse ela, suavemente.
— O problema é que é difícil para mim partilhar a minha intimidade.
Aprecio a tua sinceridade, mas não tenho a certeza de querer saber tudo.
Embora tenha perguntado — acrescentei rapidamente, notando que ela ia
começar a falar. — Eu já sabia que ele sentia alguma coisa por ti. Dava para
ver. Acho que preciso que as coisas fiquem vagas por enquanto.
Ela sorriu.
— Posso respeitar isso. Poderias fazer-me um favor, no entanto?
— Claro, se puder.
Ela mordeu os lábios e desviou o olhar por um instante. Quando se
virou para mim, consegui ver vestígios de lágrimas nos seus olhos.
— Se tiveres a certeza de que ele não me quer, serias capaz de me
avisar? Não sei como tu te sentes, mas eu amo-o. E gostaria que me
dissessem. Se souberes com certeza, claro.
Ela amava-o. Dissera-o em voz alta, corajosamente. A Kriss amava o
Maxon.
— Se ele alguma vez me disser com certeza, dir-te-ei.
Ela assentiu com a cabeça.
— E será que podemos talvez fazer uma outra promessa? Não nos
atrapalharmos uma à outra de propósito? Não quero ganhar desse modo e
acho que tu também não.
— Não sou nenhuma Celeste — disse eu com ar de desprezo, e ela riu-
se. — Prometo ser leal.
— Pronto. — Ela enxugou os olhos e endireitou o vestido. Eu conseguia
ver facilmente o quão elegante ela ficaria com a coroa na cabeça.
— Tenho de ir andando — menti. — Obrigada por falares comigo.
— Obrigada por teres vindo. Desculpa se fui demasiado intrometida.
— Não há problema. — Dei um passo atrás. — Vejo-te mais tarde.
— Está bem.
Dei meia-volta o mais rápido que consegui sem ser indelicada e dirigi-
me para o palácio. Uma vez lá dentro, estuguei o passo e corri escadas
acima, desejosa de me esconder.
Cheguei ao segundo andar e dirigi-me para o meu quarto. Reparei num
pedaço de papel no chão, uma coisa nada habitual no palácio geralmente
impecável. Estava na esquina que dava para a minha porta; portanto, achei
que deveria ser para mim. Para ter a certeza, abri o bilhete e li.

Outro ataque rebelde esta manhã, desta vez em Paloma. O nú‐


mero de mortos já ultrapassou os trezentos e pelo menos cem
pessoas ficaram feridas. Mais uma vez, a exigência principal parece
ser acabar com a Seleção, exigindo o fim da linhagem real. Por
favor, informem como melhor responder.

Fiquei gelada. Examinei os dois lados do papel à procura de uma data.


Outro ataque esta manhã? Mesmo que o bilhete tivesse alguns dias, era pelo
menos o segundo. E a exigência era novamente o fim da Seleção. Seria esse
o objetivo dos ataques recentes? Estariam a tentar livrar-se de nós? Se sim,
era esse o propósito tanto dos rebeldes Nortistas como dos Sulistas?
Não sabia o que fazer. Não era suposto eu ter visto aquela mensagem,
de modo que não poderia falar dela a ninguém. Mas será que as pessoas que
deviam saber já tinham sido informadas? Decidi deixar o papel no chão.
Com sorte, um guarda passaria por ali em breve e fá-lo-ia chegar ao lugar
certo.
Por agora, decidi ser otimista e esperar que alguém estivesse a
responder.
Capítulo 24

Nos dois dias seguintes, tomei todas as refeições no meu quarto,


conseguindo assim evitar a Kriss até quarta-feira ao jantar. Achei que, por
essa altura, já não me sentiria tão constrangida. Infelizmente, estava errada.
Sorrimos discretamente uma à outra, mas não consegui falar. Quase desejei
estar sentada na outra ponta da mesa, entre a Celeste e a Elise. Quase.
Antes de servirem a sobremesa, a Silvia entrou a correr o mais rápido
que os seus saltos altos lhe permitiam. Fez uma reverência extremamente
breve e depois aproximou-se da rainha para lhe murmurar qualquer coisa ao
ouvido.
A rainha soltou uma exclamação e saiu a correr da sala com a Silvia,
deixando-nos sozinhas.
Tínhamos sido ensinadas a nunca levantar a voz, mas desta vez não
conseguimos controlar-nos.
— Alguém sabe o que se passa? — perguntou a Celeste, anor‐
malmente preocupada.
— Não achas que eles estão feridos, pois não? — disse a Elise.
— Oh, não — balbuciou a Kriss, deitando a cabeça na mesa.
— Está tudo bem, Kriss. Come um pouco de tarte — ofereceu a
Natalie.
Eu não conseguia falar, com medo de pensar sequer no que aquilo
poderia significar.
— E se eles foram capturados? — afligiu-se a Kriss em voz alta.
— Não creio que as pessoas da Nova Ásia fizessem isso — afirmou a
Elise, embora a sua preocupação fosse evidente. Eu não tinha a certeza se
ela estava preocupada apenas por causa da segurança do Maxon ou se era
porque qualquer agressão por parte das pessoas com quem tinha laços
arruinaria as suas hipóteses.
— E se o avião deles caiu? — disse a Celeste baixinho.
Ela ergueu os olhos e fiquei surpreendida por ver um medo genuíno
no seu rosto. Foi o suficiente para ficarmos todas em silêncio.
E se o Maxon tivesse morrido?
A Rainha Amberly regressou, com a Silvia logo atrás, e todas
olhámos para ela ansiosas. Para nosso grande alívio, ela parecia radiante.
— Boas notícias, minhas senhoras. O rei e o príncipe voltam para casa
esta noite! — cantarolou ela.
A Natalie bateu palmas, ao passo que a Kriss e eu nos deixámos cair
para trás nas cadeiras. Não me tinha apercebido de como o meu corpo ficara
tenso durante aqueles poucos minutos.
A Silvia acrescentou:
— Dado que eles tiveram uns dias bastante intensos, decidimos não
fazer grandes comemorações. Dependendo de quando deixarem a Nova
Ásia, talvez nem sequer os vejamos antes da hora de irmos dormir.
— Obrigada, Silvia — disse a rainha pacientemente. Sinceramente,
quem é que se importava?
— Desculpem-me, senhoras, mas tenho trabalho a fazer. Por favor,
desfrutem das vossas sobremesas e tenham uma noite excelente —
prosseguiu ela. Depois, virou-se e saiu da sala tão depressa que mal tocava
no chão.
A Kriss saiu também instantes depois. Talvez fosse preparar um cartão
de boas-vindas.
Depois disso, acabei rapidamente de comer e voltei para o andar de
cima. Enquanto caminhava ao longo do corredor, em direção ao meu
quarto, vislumbrei uns cabelos loiros sob uma touca branca e o esvoaçar da
saia preta de um uniforme de aia a desaparecerem na direção das escadas do
lado oposto. Era a Lucy e parecia estar a chorar. Aparentava estar tão
determinada a passar despercebida que decidi não a chamar. Ao dobrar a
esquina, em direção ao meu quarto, vi que a minha porta estava
escancarada. Sem nada que abafasse as suas vozes, a discussão entre a
Anne e a Mary chegava ao corredor, onde ouvi tudo.
— ...Porque és sempre tão exigente com ela? — queixou-se a Mary.
— E o que é que querias que lhe dissesse? Que pode ter tudo o que
desejar? — retorquiu a Anne.
— Sim! Qual seria o mal de dizeres simplesmente que confias nela?
O que é que se passava? Seria por isto que elas pareciam tão distantes
ultimamente?
— Ela sonha demasiado alto! — acusou a Anne. — Seria pouco
decente da minha parte se lhe desse falsas esperanças.
A voz da Mary estava carregada de sarcasmo.
— Oh, e tudo o que lhe disseste foi tão decente. Estás é amargurada!
— replicou ela.
— O quê? — reagiu a Anne.
— Estás amargurada. Não suportas que ela possa estar mais perto do
que queres do que tu — gritou a Mary. — Sempre menosprezaste a Lucy
porque ela não cresceu no palácio como tu e sempre tiveste inveja de mim
porque eu nasci aqui. Porque não te contentas com o que és, em vez de a
pisares para te sentires melhor?
— Não era essa a minha intenção! — disse a Anne com a voz
embargada.
Os soluços contidos bastaram para calar a Mary. Também me teriam
detido. A Anne a chorar parecia uma impossibilidade.
— É assim tão mau eu querer mais do que isto? — perguntou ela, com
a voz abafada por causa das lágrimas. — Eu sei que o meu cargo é uma
honra e sinto-me feliz por fazer o meu trabalho, mas não quero fazer isto
para o resto da vida. Quero mais. Quero um marido. Quero... — Foi
finalmente vencida pela tristeza.
O meu coração partiu-se em milhares de pedaços. A única forma de a
Anne sair deste emprego era casando. Mas era pouco provável que grupos
de Três e Quatros desatassem a desfilar pelos corredores do palácio à
procura de uma aia para tomar como esposa. Ela estava, sem dúvida,
encurralada.
Suspirei, recompondo-me, e entrei no quarto.
— Lady America... — disse a Mary, fazendo uma reverência que a
Anne imitou. Pelo canto do olho, vi-a enxugar febrilmente as lágrimas.
Considerando o seu orgulho, achei que não era boa ideia reparar nisso;
portanto, passei por elas e aproximei-me do espelho.
— Como se sente? — continuou a Mary.
— Muito cansada. Acho que vou já para a cama — disse, concentrada
nos ganchos do meu cabelo. — Sabem uma coisa? Porque é que vocês as
duas não vão descansar? Posso cuidar de mim mesma.
— Tem a certeza, menina? — perguntou a Anne, fazendo um esforço
para manter a voz firme.
— Absoluta. Vejo-vos amanhã.
Elas não precisaram de mais incentivo e ainda bem. Naquele
momento, não me apetecia nada tê-las a cuidar de mim e provavelmente a
elas também não. Assim que consegui despir o vestido, deitei-me na cama e
fiquei ali durante bastante tempo a pensar no Maxon.
Nem sequer sabia bem o que pensava em relação a ele; era tudo um
pouco vago e difuso, mas regressava sempre à sensação de felicidade
avassaladora que sentira quando soubera que ele estava bem e de regresso.
E depois havia uma parte da minha mente que se interrogava se ele teria
pensado em mim durante o tempo em que estivera fora.
***
Rebolei na cama durante horas, inquieta. Por volta da uma da manhã,
decidi que, já que não conseguia dormir, o melhor era ler. Acendi o
candeeiro e peguei no diário de Gregory. Passei por algumas mensagens do
outono e escolhi uma entrada de fevereiro.

Às vezes, a simplicidade com que tudo decorreu quase me dá


vontade de rir. Se algum dia alguém escrevesse um livro didático
sobre como derrubar o governo de um país, eu seria o protagonista.
Ou talvez eu mesmo possa escrevê-lo. Não sei bem qual
consideraria ter sido o primeiro passo, já que não se pode forçar uma
invasão estrangeira ou colocar idiotas a governar aquilo que já
existe; mas encorajaria, com certeza, quaisquer outros candidatos a
líder a obterem quantidades escandalosas de dinheiro por todos os
meios possíveis.
Um fascínio pelo dinheiro não seria, contudo, suficiente. É
preciso tê-lo e estar em condições de o usar para submeter os outros.
A minha falta de experiência política não foi um problema quando
se tratou de obter vassalagem. De facto, eu diria que evitar
completamente esse setor pode ter sido um dos meus pontos mais
fortes. Ninguém confia em políticos. E porque haveriam de confiar?
Há anos que o Wallis vem fazendo promessas vãs, na esperança de
que alguma se torne realidade, mas não há qualquer hipótese de que
isso aconteça. Eu, por outro lado, ofereço a ideia de algo maís; sem
garantias, apenas o ligeiro otimismo de que a mudança pode surgir.
Nem sequer importa, nesta altura, que mudança poderá ser essa.
Eles estão tão desesperados que não se importam. Nem sequer
pensam em perguntar.
Talvez a chave seja manter a calma, enquanto os outros entram
em pânico, o Wallis é tão odiado que já me entregou praticamente a
presidência sem que ninguém o lamente. Eu não digo nada, não faço
nada e exibo um sorriso agradável, enquanto todos os outros à
minha volta se afundam histericamente. Basta uma olhadela ao
covarde ao meu lado para não haver dúvidas de que fico melhor
num palanque ou a cumprimentar um primeiro-ministro. E o Wallis
está tão desesperado por ter ao seu lado alguém que o povo ame que,
de certeza, serão necessários apenas dois ou três acordos
discretamente redigidos para que eu passe a governar tudo.
Este país é meu. Sinto-me como um rapaz diante de um
tabuleiro de xadrez, a jogar um jogo que tem a certeza de ir
ganhar. Sou mais inteligente, mais rico e bem mais qualificado
aos olhos de um país que me adora por motivos que ninguém
sabe dizer. Quando alguém parar para pensar nisto, já não terá
importância. Posso fazer o que quiser, e não há ninguém para me
impedir. Então, o que fazer a seguir?
Sinto que é altura de derrubar o sistema. Esta república
patética já está destrocada e mal funciona. A verdadeira pergunta
é: com quem me alinhar? Como é que transformo isto em algo
pelo qual o povo implore?
Tenho uma ideia. A minha filha não vai gostar, mas não
me interessa. Já é tempo de ela servir para alguma coisa.

Fechei o livro com força, sentindo-me confusa e frustrada. Será que


havia algo que eu não estava a perceber? Derrubar qual sistema? Submeter
pessoas? Será que a estrutura do nosso país não era uma necessidade, mas
uma conveniência?
Pensei em vasculhar o livro a fim de saber o que acontecera à sua
filha, mas estava já tão desorientada que achei melhor não. Em vez disso,
fui à varanda, na esperança de que o ar fresco me ajudasse a compreender
as palavras que acabara de ler.
Olhei para o céu, tentando processar tudo aquilo, mas nem sequer
sabia por onde começar. Soltei um suspiro e percorri o jardim com o olhar,
até me deter num ponto branco. O Maxon caminhava sozinho lá fora.
Estava finalmente em casa. Tinha a camisa por fora das calças e não usava
casaco nem gravata. O que fazia ali fora tão tarde? Notei que trazia uma das
suas câmaras. Também deveria estar a ter uma noite difícil.
Hesitei por um instante, mas com que outra pessoa é que poderia
conversar sobre isto?
— Pssst!
Ele olhou de um lado para o outro, à procura da origem do ruído.
Chamei-o novamente, acenando com os braços até ele me ver. Um sorriso
surpreendido iluminou-lhe o rosto e ele acenou de volta. Esperando que ele
conseguisse ver, mexi na orelha. Ele fez o mesmo. Apontei para ele e
depois para o meu quarto. Ele assentiu com a cabeça e ergueu um dedo para
me indicar que demoraria um minuto. Em resposta, assenti com a cabeça e
voltei para dentro, enquanto ele fazia o mesmo.
Vesti o roupão e passei os dedos pelo cabelo, querendo parecer um
pouco mais composta, tal como ele. Não sabia exatamente como abordar
este assunto, porque iria essencialmente perguntar-lhe se ele sabia que
estava sentado em cima de algo bastante menos altruísta do que o povo fora
levado a crer. Quando começava já a interrogar-me sobre o porquê da sua
demora, ele bateu à porta.
Corri a abri-la e fui saudada pela lente da sua câmara, que registou o
meu sorriso chocado. A minha expressão mudou, manifestando a minha
insatisfação perante a sua brincadeira, e ele captou isso também, rindo-se.
— És patético. Vá, entra, — ordenei, agarrando-o pelo braço.
Ele obedeceu.
— Desculpa. Não consegui resistir.
— Demoraste — acusei, sentando-me na beira da cama. Ele veio
sentar-se ao meu lado, mantendo uma distância suficiente para podermos
ficar de frente um para o outro.
— Tive de passar pelo meu quarto. — Ele colocou a câmara sobre a
minha mesinha de cabeceira, dando um piparote no frasco com a moedinha
dentro, e emitiu um som semelhante a uma gargalhada, virando-se depois
para mim, sem explicar o motivo do seu desvio.
— Oh. E então, como foi a tua viagem?
— Estranha — confessou ele. — Acabámos por ir até à parte rural da
Nova Ásia. O meu pai disse que se tratava de uma disputa local, mas
quando lá chegámos, já estava tudo bem. — Ele abanou a cabeça. —
Sinceramente, não fez sentido nenhum. Passámos alguns dias a passear por
cidades antigas e a tentar falar com os nativos. O meu pai ficou bastante
desapontado com o meu domínio da língua e insistiu para que eu estude
mais. Como se eu já não estivesse a trabalhar bastante por estes dias —
concluiu ele, com um suspiro.
— Isso é um pouco estranho.
— Acho que foi algum tipo de teste. Ultimamente, ele tem-me feito
passar por alguns ao acaso, e nem sempre tenho a noção de que estão a
acontecer. Talvez este tivesse a ver com a tomada de decisões ou com o
modo de lidar com situações inesperadas. Não tenho a certeza. — Encolheu
os ombros. — Seja como for, tenho a certeza de que falhei.
Moveu nervosamente as mãos por uns segundos.
— Ele também queria falar sobre a Seleção. Acho que pensou que a
distância me faria bem, que me daria outra perspetiva ou algo do género.
Sinceramente, estou cansado de que todos falem sobre uma decisão que me
cabe a mim.
Eu tinha a certeza de que a ideia do rei era tirar-me da cabeça do
Maxon. Já vira o modo como ele sorria às outras raparigas às refeições ou
como as cumprimentava com um aceno nos corredores. Nunca o fazia
comigo. Senti-me imediatamente constrangida e não soube o que dizer.
Parecia que o Maxon também não.
Decidi que ainda não podia fazer-lhe perguntas sobre o diário. Ele
parecia ser tão humilde em relação a estas coisas — o modo como liderava,
o tipo de rei que desejava ser — que não podia exigir-lhe respostas que não
tinha a mínima certeza de que ele pudesse dar. Um cantinho no meu cérebro
não conseguia libertar-se do receio de que ele soubesse mais do que alguma
vez revelara, mas eu própria precisava de saber mais antes de falar.
O Maxon tossiu e tirou um pequeno cordão de contas do bolso.
— Como disse, andámos por várias cidades e vi isto numa loja de rua
pertencente a uma velhota. É azul — acrescentou ele, indicando o óbvio. —
E tu pareces gostar de azul.
— Adoro azul — sussurrei.
Olhei para a pequena pulseira. Alguns dias antes, o Maxon estava do
outro lado do mundo e viu aquilo numa loja... e isso fê-lo pensar em mim.
— Não encontrei nada para mais ninguém; por isso, poderias manter
isto só entre nós?
Assenti com a cabeça.
— Tu nunca foste de te gabar — murmurou ele.
Eu não conseguia parar de olhar para a pulseira. Era tão discreta, com
pedras polidas que não chegavam a ser joias. Estendi a mão e fiz deslizar
um dedo sobre uma das contas ovais e o Maxon fez estremecer a pulseira na
mão, fazendo-me rir.
— Queres que a ponha? — sugeriu.
Assenti com a cabeça e estendi o braço que não tinha o botão do
Aspen. O Maxon colocou as pedras frias contra a minha pele e atou a
fitinha que as unia.
— Lindo — disse ele.
E ali estava ela, brotando apesar de todas as preocupações: a
esperança.
Afastou as sombras pesadas do meu coração e fez-me sentir saudades
dele. Queria apagar tudo desde o Halloween, voltar àquela noite e agarrar-
me àquelas duas pessoas na pista de dança. E então, ao mesmo tempo, senti
o meu coração apertar-se. Se ainda estivéssemos no Halloween, eu não teria
motivos para duvidar daquele presente.
Mesmo que eu permitisse a mim própria ser tudo o que o meu pai
dizia que eu era, tudo o que o Aspen dizia que eu não era... não poderia ser
a Kriss. A Kriss era melhor.
Sentia-me tão cansada, enervada e confusa que comecei a chorar.
— America? — perguntou ele, hesitante. — O que se passa?
— Não entendo.
— O que é que não entendes? — perguntou ele baixinho. Notei
mentalmente que ele reagia agora muito melhor perante mulheres a chorar.
— Tu — admiti. — Neste momento, sinto-me muito confusa em
relação a ti.
Limpei uma lágrima da face e, com enorme delicadeza, o Maxon,
enxugou as lágrimas do outro lado.
De certa forma, era estranho senti-lo tocar-me assim novamente. E, ao
mesmo tempo, era tão familiar que teria parecido errado se ele não o
fizesse. Assim que as lágrimas desapareceram, ele manteve a mão ali,
acariciando o meu rosto.
— America — disse ele, sério —, sempre que quiseres saber qualquer
coisa sobre mim, sobre o que é importante para mim ou sobre quem eu sou,
tudo o que tens a fazer é perguntar.
Ele parecia tão sincero que quase perguntei. Quase implorei que me
contasse tudo: se sempre tinha encarado a Kriss como uma possibilidade, se
sabia dos diários, porque é que esta pequena e perfeita pulseira o tinha feito
pensar em mim.
Mas como é que eu saberia que as respostas eram verdadeiras? E,
porque estava lentamente a aperceber-me de que ele era a escolha mais
segura, o que fazer em relação ao Aspen?
— Não sei se já estou preparada para isso.
Depois de um instante de reflexão, o Maxon olhou para mim.
— Compreendo. Pelo menos, acho que sim. Mas vamos precisar de
conversar sobre assuntos muito sérios em breve. E, quando estiveres pronta,
estarei aqui.
Ele não me pressionou; em vez disso, levantou-se e fez-me uma
ligeira vénia, antes de pegar na câmara e se dirigir para a porta. Olhou para
trás uma última vez e desapareceu no corredor, deixando-me surpreendida
com a dor que senti ao vê-lo sair.
Capítulo 25

— Aulas particulares? — perguntou a Silvia. — Quer dizer, várias


aulas por semana?
— Sem dúvida — respondi.
Pela primeira vez, desde a minha chegada, estava realmente grata por
a Silvia existir. Sabia que ela não resistiria à ideia de ter alguém desejoso de
absorver todas as suas palavras; e se ela me desse trabalho extra, essa seria
uma forma de me manter ocupada.
Neste momento, pensar no Maxon, no Aspen, no diário e nas
raparigas era demasiado para mim. O protocolo era claro, os passos para
apresentar uma proposta de lei eram metódicos. Essas eram coisas que eu
poderia dominar.
A Silvia olhou para mim, ainda um pouco atordoada, antes de me
fazer um sorriso enorme. Abraçando-me, exclamou:
— Ah, mas isso vai ser maravilhoso! Finalmente, uma de vocês
compreende como isto é importante! — Afastou-me ligeiramente sem me
largar e encarou-me. — Quando é que quer começar?
— Agora?
Ela borbulhava de alegria.
— Deixe-me ir buscar alguns livros.
Mergulhei no estudo, grata pelas palavras, factos e estatísticas que ela
me metia na cabeça. Quando não estava com a Silvia, estava a ler algo que
ela indicara, durante as inúmeras horas que passava no Salão das Mulheres,
tentando ignorar as outras.
Trabalhei e senti-me entusiasmada na vez seguinte em que nós as
cinco tivemos uma aula juntas.
Quando esse momento chegou, a Silvia começou por nos fazer
perguntas sobre as nossas paixões. Eu escrevi que eram a minha família, a
música e depois, como se a palavra pedisse para ser escrita, a justiça.
— A razão pela qual pergunto é porque a rainha é normalmente
responsável por algum tipo de comissão, que tenha como objetivo o
benefício do país. Por exemplo, a Rainha Amberly iniciou um programa
para ensinar às famílias como cuidar dos seus membros com problemas
físicos e mentais. Muitos deles acabam nas ruas, quando as famílias já não
conseguem cuidar deles, e o número de Oitos aumenta para níveis
incontroláveis. As estatísticas dos últimos dez anos mostram que o seu
programa tem ajudado a manter os números mais baixos, deixando assim
mais segura a população em geral.
— Temos de elaborar algum programa desse género? — perguntou a
Elise, parecendo nervosa.
— Sim, esse será o vosso novo projeto — disse a Silvia. — Daqui a
duas semanas, serão convidadas a apresentar no Noticiário Oficial as vossas
ideias e uma proposta para a implementação do vosso projeto.
A Natalie soltou um gritinho e a Celeste revirou os olhos. A Kriss
parecia estar já a imaginar algo. O seu entusiasmo instantâneo deixou-me
nervosa.
Lembrei-me de que o Maxon mencionara uma eliminação em breve.
Parecia-me que eu e a Kriss estávamos em ligeira vantagem, mas ainda
assim.
— Isso vai servir para alguma coisa? — perguntou a Celeste. —
Preferia aprender sobre algo que nos seja realmente útil.
Conseguia notar, por trás de seu tom preocupado, que esta ideia a
aborrecia ou a intimidava.
A Silvia pareceu chocada.
— Isto irá ser-vos útil! Quem quer que seja a nova princesa, irá ficar
responsável por um projeto de filantropia.
A Celeste resmungou qualquer coisa e começou a brincar com uma
caneta. Irritava-me o facto de ela querer o cargo sem que este incluísse
qualquer responsabilidade.
Eu seria uma princesa melhor do que ela, pensei. E nesse instante,
percebi que havia um pouco de verdade naquilo. Não tinha os contactos
dela nem o porte da Kriss, mas pelo menos importava-me. Será que essa
qualidade não valia alguma coisa?
Pela primeira vez, desde há algum tempo, senti um verdadeiro
entusiasmo a apoderar-se de mim. Aqui estava um projeto que me
permitiria demonstrar a única coisa que me diferenciava das outras. Estava
determinada a dedicar-me ao máximo e talvez conseguisse produzir algo
que pudesse realmente fazer a diferença. Talvez acabasse por perder,
mesmo assim; talvez nem sequer quisesse ganhar, mas iria ser o mais
próximo que conseguisse de uma princesa e com isso faria as pazes com a
Seleção.
Era inútil. Por mais que tentasse, não conseguia ter sequer uma ideia
para o meu projeto filantrópico. Pensei, li e voltei a pensar. Perguntei às
minhas aias, mas elas não tinham sugestões. Teria perguntado ao Aspen,
mas não tinha notícias dele há dias. Estava provavelmente a ser mais
cuidadoso por o Maxon estar no palácio.
Para piorar as coisas, era evidente que a Kriss estava já bem avançada
na sua apresentação. Ela ficava longe do Salão das Mulheres a ler, durante
horas e, quando estava presente, tinha sempre o nariz enfiado num livro ou
passava o tempo a escrever furiosamente.
Raios.
A sexta-feira chegou e apeteceu-me morrer quando me apercebi, de
repente, que só me restava uma semana e ainda não tinha qualquer ideia.
Durante o Noticiário, o Gavril estabeleceu a estrutura para o programa
seguinte, explicando que seriam feitos alguns anúncios breves e que o resto
da noite seria dedicado às nossas apresentações.
Senti a testa pegajosa de suor.
Apanhei o Maxon a olhar para mim. Ele ergueu a mão e mexeu na
orelha e eu fiquei sem saber o que fazer. Não queria dizer que sim, mas
também não queria simplesmente dispensá-lo. Mexi na orelha e ele pareceu
aliviado.
Sentia-me inquieta enquanto esperava por ele, torcendo as pontas do
meu cabelo e andando de um lado para o outro no quarto.
Ele deu uma batida rápida na porta antes de entrar, como era seu
costume. Levantei-me, sentindo a necessidade de ser um pouco mais formal
do que o habitual. Sabia que estava a ser ridícula, mas não consegui evitá-
lo.
— Como estás? — perguntou ele, atravessando o quarto.
— Sinceramente? Nervosa.
— E por eu ser tão bonito, não é?
Soltei uma gargalhada perante a cara compreensiva que ele fez.
— É melhor desviar o olhar — respondi, entrando na brincadeira. —
Na realidade, tem mais a ver com o projeto filantrópico.
— Oh... — disse ele, sentando-se à minha mesa. — Podes fazer-me a
apresentação, se quiseres. A Kriss fez.
Senti-me desmoralizada. Era claro que ela já terminara.
— Ainda nem sequer tenho uma ideia — confessei, sentando-me à
frente dele.
— Ah, sim... Posso perceber que isso seja enervante.
Olhei para ele de um modo que dava a entender que ele não fazia
ideia.
— O que consideras importante? Deve haver alguma coisa que te
toque de facto e que os outros possam não ver — disse o Maxon,
recostando-se confortavelmente na cadeira e colocando uma mão na mesa.
Como é que ele podia estar tão tranquilo? Será que não notava que eu
estava a ponto de explodir?
— Tenho pensado a semana toda e não me ocorre nada.
Ele riu-se baixinho.
— Achei que tu serias a que resolveria tudo mais facilmente. Passaste
por mais dificuldades na vida do que as outras quatro juntas.
— Exatamente, mas nunca soube como mudar nada. Esse é o
problema. — Fiquei a olhar para a mesa, recordando Carolina com perfeita
clareza. — Posso ver tudo... Os Setes que se magoam por fazerem trabalhos
pesados e que são depois rebaixados para Oitos por já não poderem
trabalhar. As raparigas que andam pelas ruas perto do toque de recolher,
enfiando-se por quase nada na cama de homens solitários. As crianças que
nunca têm o suficiente: comida suficiente, calor suficiente, amor suficiente,
porque os seus pais se matam a trabalhar. Consigo lembrar-me dos meus
piores dias como se não valessem nada. Mas pensar num modo concreto de
fazer algo em relação a isso? — Abanei a cabeça. — O que é que eu
poderia dizer sobre o assunto?
Olhei para o Maxon, na esperança de encontrar uma resposta nos seus
olhos. Não havia nada.
— O teu argumento é bastante válido — disse ele. Depois, ficou
calado.
Pensei em tudo o que eu dissera e também na resposta dele. Será que
aquilo significava que ele sabia mais sobre os planos de Gregory do que eu
imaginava? Ou será que indicava que ele se sentia culpado por ter tanto,
enquanto os outros tinham tão pouco?
O Maxon suspirou.
— Não era bem sobre isto que eu queria conversar esta noite.
— O que tinhas em mente?
O Maxon encarou-me como se eu fosse louca.
— Tu, claro.
Prendi uma madeixa atrás da orelha.
— Eu o quê, exatamente?
Ele mudou de posição, movendo a cadeira para ficarmos mais
próximos e inclinando-se para a frente como se fosse contar-me um
segredo.
— Pensei que, depois de veres que a Marlee estava bem, as coisas
mudariam. Tinha a certeza de que descobririas uma forma de voltares a
gostar de mim. Mas isso não aconteceu. Mesmo esta noite; concordaste em
ver-me, mas estás tão distante.
Ele notara, então.
Fiz deslizar os dedos sobre a mesa, evitando olhar para ele.
— O meu problema não é exatamente contigo, Maxon; é com o cargo.
— Encolhi os ombros. — Pensei que soubesses disso.
— Mas depois da Marlee...
Ergui a cabeça.
— Depois da Marlee, as coisas continuaram a acontecer. Percebo o
que significa ser princesa num instante e depois, no minuto seguinte, já não
sei. Não sou como as outras. Sou a casta mais baixa aqui; e a Elise pode ser
uma Quatro, mas a família dela é bem diferente da maioria dos Quatros.
Têm tanto que me surpreende ainda não terem comprado o acesso ao topo.
E tu foste criado assim. F uma mudança muito grande para mim.
Ele assentiu com a cabeça, mantendo a sua infinita paciência.
— Eu percebi tudo isso, America. Essa é parte da razão pela qual quis
dar-te tempo. Mas tu também precisas de pensar na minha situação.
— Eu penso.
— Não, não assim. Não como se eu fizesse parte da equação. Pensa
no meu dilema: não tenho muito mais tempo. Este projeto filantrópico vai
ser o trampolim para outra eliminação. Com certeza que já percebeste isso.
Baixei a cabeça. Claro que tinha percebido.
— Então, o que é que eu faço quando restarem apenas quatro? Dou-te
mais tempo? Quando sobrarem apenas três, serei obrigado a escolher. E se
restarem apenas três raparigas e tu ainda continuares a pensar sobre se
aceitas ou não a responsabilidade, o trabalho, se me queres a mim... o que
faço, então?
Mordi o lábio.
— Não sei.
O Maxon abanou a cabeça.
— Isso é inaceitável. Preciso de uma resposta. Não posso mandar
embora alguém que queira realmente isto, que me queira a mim, se no final
tu acabares por desistir.
Sentia-me cada vez mais agitada.
— Então, tenho de te dar uma resposta agora? Nem sei a que pergunta
estou a responder. Se eu disser que quero ficar, isso significa que quero ser
a escolhida? Porque isso eu não sei.
Senti os meus músculos ficarem tensos, como se estivessem a
preparar-se para correr.
— Não tens de dizer nada agora, mas precisas de decidir até ao
próximo Noticiário se queres isto ou não. Não gosto do facto de te fazer um
ultimato, mas tu não estás a ser muito justa com a minha única
possibilidade. — Ele respirou fundo antes de continuar.— Também não era
este o rumo que queria dar à conversa. Talvez seja melhor ir-me embora.
Eu conseguia notar na sua voz que ele queria que eu lhe pedisse para
ficar, que lhe dissesse que tudo iria resolver-se.
— Sim, acho melhor — murmurei.
Ele abanou a cabeça, irritado, e levantou-se.
— Está bem. — Atravessou o quarto com passadas rápidas e furiosas.
— Vou ver o que a Kriss está a fazer.
Capítulo 26

Desci atrasada para o pequeno-almoço. Não queria arriscar-me a dar


de caras com o Maxon ou com qualquer uma das outras sozinha. Antes de
chegar às escadas, o Aspen aproximou-se pelo corredor. Soltei uma
exclamação exasperada e ele olhou em volta antes de se aproximar.
— Onde é que tens andado? — exigi saber, em voz baixa.
— A trabalhar, Mer. Sou um guarda. Não posso controlar os meus
horários nem para onde me mandam. Já não estou a ser colocado na ronda
do teu quarto.
Quis perguntar porquê, mas esta não era a altura.
— Preciso de falar contigo.
Ele pensou por uns instantes.
— Às duas, vai até ao fim do corredor do primeiro andar, depois da
ala hospitalar. Posso aparecer por lá, mas não por muito tempo.
Assenti com a cabeça e ele fez-me uma vénia rápida e seguiu o seu
caminho antes que alguém reparasse na nossa conversa. Desci as escadas
não me sentindo nada satisfeita.
Apetecia-me gritar. A obrigatoriedade de ter de passar o dia inteiro no
Salão das Mulheres ao sábado era uma injustiça. Quando alguém vinha
visitar-nos, queria ver a rainha e não a nós. Quando uma de nós fosse
princesa, isso provavelmente mudaria, mas por enquanto eu estava
condenada a observar a Kriss mais uma vez mergulhada na sua
apresentação. As outras também liam coisas — notas ou relatórios — o que
me deixava doente. Precisava rapidamente de uma ideia. Tinha a certeza de
que o Aspen me ajudaria a pensar em alguma coisa, mas, fosse como fosse,
esta noite teria de começar a trabalhar.
Como se conseguisse ler-me os pensamentos, a Silvia, que tinha
estado com a rainha, veio ter comigo.
— Como vai a minha melhor aluna? — perguntou em voz baixa, para
que as outras não percebessem.
— Ótima.
— Como vai o seu projeto? Precisa de ajuda para limar algumas
arestas?
Limar arestas? Como é que eu podia afinar o que não existia?
— Está a ir muito bem. Vai adorar, tenho a certeza — menti.
Ela inclinou ligeiramente a cabeça.
— Está a fazer caixinha, é?
— Um pouco. — Sorri.
— Muito bem. Tem feito um ótimo trabalho ultimamente. Tenho a
certeza de que será fantástico — disse ela, dando-me uma palmadinha no
ombro antes de sair.
Eu estava metida num grande sarilho.
Os minutos passavam tão devagar, que era quase uma espécie de
tortura. Um pouco antes das duas, pedi licença e segui pelo corredor.
Mesmo no final, havia um sofá cor de vinho por baixo de uma enorme
janela. Sentei-me e esperei. Não vi nenhum relógio por ali, mas os minutos
passavam demasiado devagar para o meu gosto. Finalmente, o Aspen
apareceu na esquina do corredor.
— Já não era sem tempo — suspirei.
— O que se passa? — perguntou ele, ficando de pé junto do sofá com
um ar oficial.
Tantas coisas, pensei. Tantas coisas que não posso contar-te.
— Temos um projeto para apresentar e eu não sei o que fazer. Não
consigo pensar em nada, sinto-me nervosa e não consigo dormir — disse,
mecanicamente.
Ele riu-se.
— E qual é a tarefa? Desenhar uma tiara?
— Não — disse eu, fuzilando-o com um olhar frustrado. — Temos de
apresentar um projeto, algo de bom para o país. Como o trabalho da Rainha
Amberly com os deficientes.
— E é por isso que tens andado enervada? — perguntou ele, abanando
a cabeça. — Como é que isso pode ser enervante? Parece interessante.
— Eu também pensei que seria, mas não consigo ter nenhuma ideia. O
que é que tu farias?
O Aspen pensou por um momento.
— Já sei! Deverias propor um programa de intercâmbio de castas —
disse ele, com os olhos brilhantes de entusiasmo.
— Um quê?
— Um programa de intercâmbio de castas. As pessoas das castas
superiores trocam de lugar com as pessoas das castas inferiores para
saberem como é estar na nossa pele.
— Não creio que isso funcionasse, Aspen. Pelo menos, não para este
projeto.
— E uma excelente ideia — insistiu ele. — Consegues imaginar uma
pessoa como a Celeste a partir as unhas a encher prateleiras? E era bem
feito!
— Mas o que é que se passa contigo? Alguns dos guardas são Dois
por nascimento e, mesmo assim, não são teus amigos agora?
— Não se passa nada comigo — respondeu ele, na defensiva. — Sou
o mesmo de sempre. Tu é que te esqueceste de como é morar numa casa
sem aquecimento.
Endireitei-me.
— Não me esqueci. Estou a tentar desenvolver um projeto social que
acabe com esse tipo de coisas. Mesmo se eu voltar para casa, alguém pode
acabar por usar a minha ideia; portanto, tem de ser boa. Quero ajudar as
pessoas.
— Lembra-te, Mer... — implorou-me o Aspen, com uma paixão
contida nos olhos. — Este governo cruzou os braços quando tu não tinhas
comida. Deixaram o meu irmão ser espancado na praça. Nenhuma conversa
do mundo vai mudar o que somos. Encurralaram-nos de tal maneira que
nunca conseguiremos sair daqui sozinhos e eles não têm pressa de nos tirar.
Mer, eles simplesmente não entendem.
Respirei fundo e levantei-me.
— Aonde é que vais? — perguntou ele.
— De volta para o Salão das Mulheres — respondi, começando a
andar.
O Aspen seguiu-me.
— Estamos mesmo a discutir por causa de um projeto idiota?
Voltei-me e encarei-o.
— Não. Estamos a discutir porque tu também não entendes. Eu sou
uma Três agora. E tu és um Dois. Em vez de guardares rancor pela sorte
que nos calhou, porque é que não vês a oportunidade que tens nas mãos?
Podes mudar a vida da tua família. Podes provavelmente mudar um monte
de vidas. E tudo o que queres é ajustar contas. Isso não nos leva a lugar
algum.
O Aspen foi-se embora sem dizer nada. Tentei não ficar irritada com
ele por defender com tanta ferocidade aquilo que queria. Afinal, não era
essa uma qualidade admirável? Mas fez-me pensar tanto sobre as castas e
sobre como era impossível acabar com elas, que comecei a ficar irritada
com a situação.
Nada iria mudar. Portanto, para quê preocupar-me?
Toquei o meu violino. Tomei um banho. Tentei dormir uma sesta.
Passei parte da noite no silêncio do quarto. Sentei-me na varanda.
Nada disso fez diferença. O tempo continuava a passar e eu ainda não
tinha nada para o meu projeto.
Passei horas deitada na cama a tentar dormir e também sem sucesso.
Estava a sempre a recordar as palavras zangadas do Aspen, a sua batalha
constante contra o seu destino. Pensei no Maxon e no seu ultimato, a sua
exigência para que eu me comprometesse. E então, perguntei-me se alguma
destas coisas importava, já que tinha a certeza de que voltaria para casa
assim que aparecesse na sexta-feira à noite sem nada para apresentar.
Suspirei e afastei os cobertores. Andava a evitar ler novamente o
diário de Gregory; tinha medo de que me arranjasse mais dúvidas do que
soluções. Mas talvez algo nele me indicasse uma direção, um tema sobre o
qual falar no Noticiário.
Além disso, mesmo se nada ali me ajudasse, precisava de saber o que
acontecera à sua filha. Tinha a certeza de que se chamava Katherine e,
então, folheei o livro em busca de qualquer menção a ela, ignorando tudo o
resto. Encontrei a fotografia de uma jovem de pé ao lado de um homem que
parecia muito mais velho. Talvez fosse apenas a minha imaginação, mas ela
parecia ter estado a chorar.

Katherine casou-se finalmente hoje com Emil de Monpezat


da Noruécia. Ela chorou durante todo o caminho até à igreja, até
eu lhe deixar bem claro que, se não se recompusesse para a
cerimónia, iria pagar bem caro depois. A mãe dela não está
contente e suspeito de que o Spencer está zangado, agora que
percebeu que a irmã não queria fazer isto. Mas o Spencer é
inteligente. Penso que vai cair em si e aceitar a situação, assim
que vir todas as possibilidades que lhe proporcionei. E o Damon
é tão prestável; gostava de poder recolher o que quer que seja
que ele tem no sangue e injetá-lo no resto da população. Há algo
a dizer sobre os jovens. É a geração do Spencer e do Damon que
mais me tem ajudado a chegar onde estou. O seu entusiasmo é
inabalável e são um público muito mais interessante de ouvir do
que os velhos frágeis que insistem que estamos a ir pelo
caminho errado. Pergunto-me se não haverá uma forma de os
silenciar para sempre sem manchar o meu nome.
Em todo o caso, a coroação está agendada para amanhã.
Agora que a Noruécia conseguiu como aliada a poderosa união
Norte-Americana, posso ter o que quero: uma coroa. Acho que é
uma troca justa. Porquê contentar-me com o título de Presidente
Illéa, se posso ser o Rei Illéa? Através da minha filha, tornei-me
nobre.
Todas as peças estão no lugar. Depois de amanhã, não
haverá mais forma de se voltar atrás.

Ele vendeu-a. O porco vendeu a filha a um homem que ela odiava


para obter tudo aquilo que desejava.
O meu primeiro impulso foi fechar o livro novamente, esquecer tudo.
Mas forcei-me a folheá-lo, lendo passagens aleatórias. Num local, havia o
esboço de um diagrama sobre o sistema de castas, inicialmente pensadas
para seis níveis em vez de oito. Noutra página, Gregory planeava mudar os
apelidos das pessoas para as separar dos seus passados. Uma linha deixava
bem claro que ele tinha a intenção de punir os seus inimigos, colocando-os
em níveis inferiores, e premiar os que lhe eram leais, atribuindo-lhes castas
superiores.
Fiquei a pensar se os meus bisavós não tinham tido simplesmente
nada para oferecer ou se tinham sido contra aquilo. Esperava que fosse a
segunda hipótese.
Qual teria sido o meu apelido? Será que o meu pai sabia?
Toda a minha vida fora levada a pensar que Gregory Illéa era um
herói, o homem que salvou o nosso país quando estávamos à beira do
abismo. Claramente, ele não passava de um monstro sedento de poder. Que
tipo de homem manipulava as pessoas com tanta determinação? Que tipo de
homem vendia a filha para seu benefício?
Reli as anotações mais antigas sob uma nova perspetiva. Ele nunca
dissera que queria ser um grande homem de família; apenas queria parecer
ser um. Jogaria segundo as regras de Wallis por agora. Usava os colegas
dos filhos para ganhar apoio. Estava a jogar um jogo desde o início.
Senti-me enojada. Levantei-me e comecei a andar em círculos,
tentando juntar todas aquelas peças na minha cabeça.
Como é que uma História inteira podia ter sido esquecida? Como era
possível que ninguém falasse sobre os países antigos? Onde estava toda
essa informação? Porque é que ninguém sabia?
Abri os olhos e olhei para o céu. Parecia impossível. Com certeza,
alguém deve ter discordado, alguém deve ter contado a verdade aos seus
filhos. E, se calhar, talvez o tenham feito. Sempre me questionara sobre o
motivo por que o meu pai nunca me deixava falar sobre aquele livro de
História gasto que estava escondido no seu quarto; por que motivo a
História que eu conhecia sobre Illéa não estava impressa. Talvez porque se
estivesse escrito que Illéa fora um herói, as pessoas se revoltassem. Mas se
tudo fosse apenas especulação, em que uns insistiam que as coisas eram de
certo modo, enquanto os outros negavam, como é que alguém podia
agarrar-se à verdade?
Será que o Maxon sabia daquilo?
De repente, veio-me à mente uma lembrança. Não há muito tempo, o
Maxon e eu trocáramos o nosso primeiro beijo. Fora tão inesperado que me
afastei, deixando-o embaraçado. Então, quando me dei conta de que queria
que ele me beijasse, sugeri que apagássemos simplesmente aquela
lembrança e criássemos outra nova.
America, dissera ele, acho que não podes mudar a História. Ao que
eu respondera: Claro que podemos. Além disso, quem mais saberá disto,
senão tu e eu?
A minha intenção fora fazer uma piada. Se ele e eu ficássemos juntos,
recordaríamos, com certeza, o que realmente acontecera,
independentemente de quão idiota tivesse sido. Nunca o substituiríamos por
uma história mais perfeita em nome das aparências.
Só que a Seleção inteira era constituída por aparências. Se alguém
alguma vez nos fizesse perguntas sobre o nosso primeiro beijo, contaríamos
a verdade? Ou manteríamos aquele pormenor em segredo entre nós?
Quando morrêssemos, ninguém saberia e aquele fragmento do tempo, tão
importante para a nossa identidade, ficaria perdido.
Seria assim tão simples? Contar uma história a uma geração e repeti-
la até ser aceite como facto? Quantas vezes é que perguntara a alguém mais
velho do que os meus pais o que sabiam ou o que os seus pais tinham visto?
Eles eram velhos. O que poderiam saber? Fora bastante arrogante da minha
parte ignorá-los pura e simplesmente. Senti-me muito estúpida.
Mas o ponto importante não era o modo como me sentia em relação a
tudo isto; o importante era saber o que iria fazer com a informação.
Passara a vida inteira presa num buraco na nossa sociedade, mas como
amava a música, nunca me queixara. Mas quisera ficar com o Aspen e,
porque ele era um Seis, as coisas eram mais difíceis do que deveriam ser. Se
Gregory Illéa não tivesse criado friamente as leis do nosso país,
confortavelmente sentado à sua secretária tantos anos antes, o Aspen e eu
não teríamos discutido e eu nunca teria chegado a gostar do Maxon. O
Maxon nem sequer seria príncipe. As mãos da Marlee ainda estariam
intactas e ela e o Carter não viveriam num quarto onde mal cabia a cama. O
Gerad, o meu querido irmão mais novo, poderia estudar toda a ciência que
quisesse, em vez de se forçar a aprender artes pelas quais não sentia
qualquer paixão.
Ao conquistar uma vida confortável numa bela casa, Gregory Illéa
roubara à maior parte do país a possibilidade de poder sequer tentar o
mesmo algum dia.
O Maxon dissera que se eu quisesse saber quem ele era bastava
perguntar. Eu receara encarar a possibilidade de ele ser uma pessoa assim,
mas tinha de saber. Se eu tinha de decidir entre fazer parte da Seleção ou ir
para casa, precisava de saber exatamente que tipo de pessoa ele era.
Vesti o roupão, calcei os chinelos e saí do quarto, passando por um
guarda desconhecido.
— Está bem, menina? — perguntou ele.
— Sim. Volto já.
Ele deu a impressão de querer dizer mais qualquer coisa, mas afastei-
me tão depressa que não lhe dei tempo. Subi as escadas até ao terceiro
andar. Ao contrário dos outros andares, havia guardas no patamar,
impedindo-me de ir simplesmente até à porta do Maxon.
— Preciso de falar com o príncipe — disse, tentando soar firme.
— É muito tarde, menina — observou o guarda da esquerda.
— O Maxon não se incomodará — assegurei.
O da direita fez um sorrisinho.
— Acho que ele não quer companhia neste momento, menina.
Franzi a testa, pensativa, repetindo a frase mentalmente.
Ele estava com outra rapariga.
Tinha de pensar que era a Kriss quem estava sentada no quarto dele,
conversando, rindo ou talvez abrindo mão da sua regra anti-beijos.
Uma criada surgiu no corredor com uma bandeja nas mãos, passando
por mim para descer as escadas. Afastei-me do seu caminho, tentando
decidir se deveria insistir com os guardas para me deixarem passar ou
desistir. Quando ia abrir novamente a boca, o guarda interrompeu-me:
— Volte para a cama, menina.
Senti-me tão impotente que só me apeteceu gritar com eles ou fazer
alguma coisa. Mas não adiantaria nada; portanto, fui-me embora. Ouvi um
dos guardas, o do sorrisinho, murmurar algo enquanto eu me afastava, o que
me fez sentir pior. Será que estava a troçar de mim? Ou com pena? Não
precisava da sua piedade. Já me sentia suficientemente mal sozinha.
Quando voltei ao segundo andar, fiquei surpreendida por ver a criada
que passara por mim, ajoelhada como se estivesse a arranjar o sapato, mas
obviamente não fazendo nada disso. Ao ver-me, ergueu a cabeça, pegou na
sua bandeja e aproximou-se de mim.
— Ele não está no quarto — sussurrou.
— Quem? O Maxon?
Ela confirmou com a cabeça.
— Tente no andar de baixo.
Sorri e assenti com a cabeça, surpreendida.
— Obrigada.
Ela encolheu os ombros.
— Ele não está em lado nenhum onde não possa encontrá-lo, se
procurar. Além disso — acrescentou, com os olhos cheios de admiração —,
nós gostamos de si.
Ela afastou-se, dirigindo-se rapidamente para o primeiro andar.
Perguntei-me a quem se referia exatamente aquele «nós», mas, por agora, o
seu simples ato de gentileza era suficiente. Fiquei parada por instantes,
deixando algum espaço entre nós, e depois desci as escadas.
O Grande Salão estava aberto, mas vazio, bem como a sala de jantar.
Inspecionei o Salão das Mulheres, imaginando que seria um lugar
engraçado para um encontro, mas também não estava ali. Perguntei aos
guardas junto à porta e eles garantiram-me que o Maxon não fora para os
jardins. Verifiquei então algumas das bibliotecas e salas de estar, antes de
concluir que ele e a Kriss já deveriam ter-se separado ou voltado para o
quarto dele.
Desistindo, contornei uma esquina e dirigi-me para a escadaria das
traseiras, que ficava mais perto do que a principal. Não vi nada, mas, à
medida que me aproximava, ouvi o som distinto de um sussurro. Abrandei
o passo, não querendo incomodar e não sabendo ao certo de onde vinha
aquele som.
Outro sussurro.
Uma risadinha sedutora.
Um suspiro ardente.
Os sons tornaram-se mais nítidos e tive a certeza de onde vinham. Dei
mais um passo, olhei para a esquerda e vi um casal abraçado na penumbra.
Assim que a imagem ganhou contornos e os meus olhos se adaptaram à
escuridão, senti um choque.
O cabelo loiro do Maxon era inconfundível, mesmo às escuras.
Quantas vezes já o vira assim à pouca luz dos jardins? Mas o que nunca vira
antes, nunca imaginara antes, eram aqueles cabelos a serem acariciados
pelos dedos longos e de unhas vermelhas da Celeste.
O Maxon estava praticamente imobilizado contra a parede pelo corpo
da Celeste. Ela tinha a sua mão livre apoiada no peito dele, enquanto a
racha do seu vestido revelava a sua longa perna, ligeiramente azulada na
escuridão do corredor, que se enlaçava na dele. Ela afastou-se ligeiramente,
apenas para se deixar cair devagar contra ele, aparentemente para o
provocar.
Fiquei à espera que ele lhe dissesse para se afastar, que lhe dissesse
que ela não era o que ele queria. Mas ele não o fez. Em vez disso, beijou-a.
Ela deliciou-se com o beijo e riu-se novamente perante a sua demonstração
de afeto. Ele murmurou-lhe algo ao ouvido e a Celeste inclinou-se contra
ele e beijou-o com mais profundidade e intensidade do que antes. A alça do
vestido escorregou-lhe do ombro, revelando uma extensão infindável de
pele nua das suas costas. Mas nenhum dos dois se preocupou com isso.
Fiquei gelada. Queria gritar ou chorar, mas tinha um nó na garganta.
Porque é que, de entre todas, tinha de ser ela?
Os lábios da Celeste deixaram a boca do Maxon e colaram-se ao seu
pescoço. Ela soltou outra risadinha detestável e beijou-o mais uma vez. O
Maxon fechou os olhos e sorriu. Como a Celeste já não estava à frente dele,
fiquei no seu campo de visão.
Pensei em fugir. Pensei em desaparecer, evaporar-me. Em vez disso,
fiquei ali.
Então, o Maxon abriu os olhos e viu-me.
Enquanto a Celeste lhe beijava repetidamente o pescoço, o Maxon e
eu limitámo-nos a olhar-nos fixamente. Já sem o sorriso nos lábios, ele
ficou subitamente petrificado. O choque nos seus olhos obrigou-me
finalmente a mover-me. A Celeste não me vira; portanto, recuei
silenciosamente, sem sequer ousar respirar.
Quando tive a certeza de que já não poderiam ouvir-me, desatei a
correr, passando como uma flecha pelos guardas e mordomos que
trabalhavam pela noite dentro. As lágrimas brotaram antes de eu conseguir
chegar ao topo da escadaria principal.
Endireitei-me e dirigi-me rapidamente para o meu quarto. Afastei o
guarda preocupado e entrei, sentando-me na cama virada para a varanda. Na
calma silenciosa do meu quarto, senti o meu coração doer. Tão idiota,
America. Tão idiota.
Voltaria para casa. Esqueceria que tudo isto acontecera. E casaria com
o Aspen.
O Aspen era a única pessoa com quem podia contar.
Não demorou muito a que se ouvisse uma batida na porta e o Maxon
entrou sem esperar uma resposta. Avançou impetuosamente pelo quarto,
aparentemente tão zangado como eu.
Antes que ele pudesse dizer uma palavra, confrontei-o:
— Tu mentiste-me.
— O quê? Quando?
— Quando é que não o fizeste? Como é que a mesma pessoa que
falava em pedir-me em casamento pode sequer querer ser apanhado num
corredor com alguém como ela?
— O que faço com ela não tem absolutamente nada a ver com os
meus sentimentos por ti.
— Estás a brincar, não estás? Ou é porque vais ser o próximo rei que
isso torna aceitável o facto de teres mulheres seminuas a tiracolo sempre
que desejares?
O Maxon parecia estarrecido.
— Não. Não é nada disso que eu penso.
— Porquê ela? — perguntei, olhando para o teto. — Porque é que, de
entre todas as mulheres do planeta, poderias querê-la a ela?
Olhei para o Maxon à espera de uma resposta, mas ele abanou a
cabeça e olhou em volta do quarto.
— Maxon, ela é uma atriz, uma farsa. Tens de ser capaz de ver que,
por baixo de toda aquela maquilhagem e do soutien push-up, está uma
rapariga que apenas quer manipular-te para conseguir o que deseja.
O Maxon soltou uma gargalhada.
— Eu sei.
A sua calma desarmou-me.
— Então, porque...
Mas eu já tinha a minha resposta.
Ele sabia. Claro que sabia. Ele tinha sido criado aqui. Os diários do
Gregory eram provavelmente a sua leitura de cabeceira. Não sei porque é
que alguma vez pensara o contrário.
Eu fora tão ingénua! Sempre que pensava que havia uma opção
melhor do que eu para o cargo de princesa, achava que seria a Kriss. Ela era
encantadora e paciente e um milhão de outras coisas que eu não era. Mas eu
via-a ao lado de um Maxon diferente. Para o homem que ele tinha de ser
para seguir o exemplo de Gregory Illéa, a única rapariga aqui que lhe servia
era a Celeste. Mais ninguém teria tanto prazer em manter o país a seus pés.
— Já chega — afirmei, abanando as mãos. — Querias uma decisão,
pois aqui está: para mim, acabou. Estou farta da Seleção, estou farta das
mentiras e, principalmente, não quero mais saber de ti. Meu Deus, não
posso acreditar que fui tão idiota.
— Não acabou não, America — contradisse-me ele rapidamente e a
sua postura era tão expressiva como as suas palavras. — Acabará apenas
quando eu disser que acabou. Neste momento, estás furiosa, mas ainda não
acabou.
Agarrei os meus cabelos com a sensação de que estava prestes a
arrancá-los a todos pela raiz.
— Mas qual é o teu problema? Estás a delirar? O que te faz pensar
que algum dia aceitarei o que acabo de ver? Eu odeio aquela miúda. E tu
estavas a beijá-la. Não quero ter mais nada a ver contigo.
— Santo Deus, mulher! Tu nunca me deixas falar!
— E o que é que podes dizer que justifique aquilo? Manda-me para
casa. Não quero ficar mais aqui.
A nossa troca de palavras fora tão rápida que o silêncio dele foi
surpreendente.
— Não.
Fiquei furiosa. Não era exatamente isto que ele me pedira?
— Maxon Schreave, não passas de uma criança com um brinquedo
que não queres, mas que não suportas que outra pessoa tenha.
Com calma, ele falou:
— Entendo que estejas zangada, mas...
Empurrei-o.
— Estou mais do que zangada!
O Maxon permaneceu calmo.
— America, não me chames criança. E não me empurres.
Empurrei-o de novo.
— E vais fazer o quê?
O Maxon agarrou-me nos pulsos e imobilizou-me os braços atrás das
costas. Conseguia ver a raiva nos seus olhos e fiquei contente por ele a
sentir. Queria que ele me desafiasse. Queria um motivo para o magoar.
Naquele momento, estava capaz de o cortar em pedaços.
Mas não havia fúria nele. Em vez disso, senti aquela faísca elétrica
quente que andava desaparecida há bastante tempo. O rosto do Maxon
estava a centímetros do meu. Os seus olhos procuravam ler os meus, talvez
para saber como seria recebido, talvez nem sequer se importando. Embora
estivesse tudo errado, eu ainda o queria. Os meus lábios entreabriram-se
antes de eu perceber o que estava a acontecer.
Abanei a cabeça para organizar as ideias e recuei, aproximando-me da
varanda. Ele não reagiu quando me afastei. Respirei fundo algumas vezes
antes de o encarar novamente.
— Vais mandar-me para casa? — perguntei em voz baixa.
Ele abanou a cabeça, sem vontade ou sem condições de falar.
Arranquei a pulseira que ele me dera do pulso e atirei-a para o outro
lado do quarto.
— Então, sai — pedi num sussurro.
Virei-lhe as costas, olhando lá para fora, e esperei alguns segundos
difíceis até ouvir o barulho da porta. Assim que ele saiu, caí no chão e
desatei a soluçar.
Ele e a Celeste eram tão parecidos. Tudo neles era para o espetáculo.
E eu sabia que ele iria passar o resto da vida com palavrinhas doces,
fazendo as pessoas acreditar que era maravilhoso, enquanto as mantinha
presas onde estavam. Exatamente como o Gregory.
Sentei-me no chão, de pernas cruzadas por baixo da minha camisa de
dormir. Por mais zangada que estivesse com o Maxon, estava ainda mais
furiosa comigo mesma. Deveria ter lutado mais. Deveria ter feito mais. Não
deveria estar ali sentada, sentindo-me derrotada.
Enxuguei as lágrimas e analisei a situação. Não queria mais nada com
o Maxon, mas ainda estava ah. Não queria mais nada com a competição,
mas ainda tinha uma apresentação para fazer. O Aspen podia pensar que eu
não era suficientemente forte para ser princesa, e tinha razão, mas tinha fé
em mim. Eu sabia disso. Assim como o meu pai. E a Nicoletta.
Já não estava ali para ganhar. Então, como é que poderia sair em
grande estilo?
Capítulo 27

Quando a Silvia me perguntou o que precisava para a minha


apresentação, disse-lhe que queria uma mesa pequena para colocar alguns
livros e um cavalete para o cartaz que estava a fazer. Ela ficou
particularmente entusiasmada com o cartaz; eu era a única ali com
verdadeira experiência artística.
Passei horas a escrever o meu discurso em cartões de notas para não
me esquecer de nada, a marcar trechos de livros para me servirem de
referência ao longo da apresentação e a ensaiar em frente do espelho para
ultrapassar as partes que me preocupavam mais. Tentei não pensar muito
sobre o que estava a fazer, caso contrário todo o meu corpo começava a
tremer.
Pedi à Anne para me fazer um vestido que me desse um arzinho
inocente e ela franziu o sobrolho.
— Dito assim, até parece que a temos feito andar de lingerie —
comentou ela a brincar.
Soltei uma risadinha.
— Não é nada disso. Vocês sabem que adoro todos os vestidos que me
têm feito. Eu só quero parecer... angelical.
Ela sorriu para si mesma.
— Acho que conseguimos arranjar qualquer coisa.
Devem ter trabalhado como loucas, porque no dia do Noticiário só vi
a Anne, a Mary ou a Lucy quando faltava apenas uma hora para o início do
programa, quando entraram alvoroçadas com o vestido. Este era branco,
diáfano e luminoso, enfeitado do lado direito com uma longa faixa de tule
verde e azul. A saia caía de um modo que a fazia parecer uma nuvem e a
cintura, em estilo império, acrescentava ao modelo um toque de
graciosidade e virtude. Senti-me encantadora naquele vestido. Era de longe
o meu favorito entre todos os que elas já me tinham feito e fiquei feliz por
isso. Seria provavelmente o último vestido feito por elas que vestiria.
Fora difícil manter o meu plano em segredo, mas consegui. Quando as
raparigas me perguntavam o que estava a fazer, respondia apenas que era
uma surpresa. Recebi alguns olhares céticos com essa resposta, mas não me
importei. Pedi às minhas aias para não tocarem em nada na minha
secretária, nem mesmo para limpar, e elas obedeceram, deixando as minhas
notas viradas para baixo.
Ninguém sabia.
A pessoa a quem eu mais queria contar era ao Aspen, mas contive-me.
Parte de mim temia que ele tentasse convencer-me a desistir e que eu
cedesse. A outra parte temia que ele ficasse demasiado entusiasmado.
Enquanto as minhas aias trabalhavam para me pôr bonita, olhei para o
espelho e tive a certeza de que estava sozinha nisto. Era melhor. Não queria
que ninguém — nem as minhas aias, nem as outras raparigas, nem
especialmente o Aspen — se metesse em sarilhos por minha causa.
Só me restava deixar tudo em ordem.
— Anne, Mary, poderiam trazer-me um chá?
Elas entreolharam-se.
— As duas? — perguntou a Mary.
— Sim, por favor.
Elas pareceram suspeitar de algo, mas limitaram-se a fazer uma
reverência e saíram. Assim que nos deixaram, virei-me para a Lucy.
— Sente-se aqui ao meu lado — convidei, puxando-a para o banco
estofado onde eu estava sentada. Ela assentiu. Então, perguntei-lhe
simplesmente:
— É feliz?
— Menina?
— Tem-me parecido um pouco triste, ultimamente. Fiquei a pensar se
estaria tudo bem.
Ela baixou a cabeça.
— É assim tão óbvio?
— Um pouco — admiti, envolvendo-a com um braço e segurando-a.
Ela soltou um suspiro e apoiou a cabeça no meu ombro. Fiquei muito
contente por ela esquecer, por um momento, as barreiras invisíveis entre
nós.
— Já alguma vez quis algo que não pudesse ter?
Soltei uma risada.
— Lucy, eu era uma Cinco antes de chegar aqui. São tantas as coisas
que nem me dou ao trabalho de contar.
De um modo muito pouco habitual nela, uma lágrima solitária
deslizou-lhe pela face.
— Não sei o que fazer. Estou presa.
Endireitei-me e fi-la olhar para mim.
— Lucy, quero que saiba que acho que você é capaz de fazer qualquer
coisa, de ser o que quiser. Acho que é uma rapariga espetacular.
Ela ofereceu-me um sorriso débil.
— Obrigada, menina.
Sabia que não tínhamos muito tempo.
— Escute, preciso que me faça um favor. Não tinha a certeza se
poderia contar com as outras, mas confio em si.
Embora ela parecesse confusa, dava para perceber que estava a ser
sincera quando respondeu:
— Qualquer coisa.
Estendi a mão para uma das gavetas, de onde tirei uma carta.
— Poderia entregar isto ao Soldado Leger?
— Ao Soldado Leger?
— Quero agradecer-lhe por ter sido tão atencioso e pensei que poderia
ser desadequado entregar-lhe pessoalmente a carta. Você sabe como é.
Era uma desculpa esfarrapada, mas era a única forma de explicar ao
Aspen a razão do que estava prestes a fazer e, ao mesmo tempo, despedir-
me. Presumia que, depois de hoje, não iria permanecer muito mais tempo
no palácio.
— Posso entregar-lhe isto daqui a uma hora — disse ela, ansiosa.
— Obrigada. — As lágrimas ameaçaram cair, mas contive-as. Estava
assustada, mas havia muitos motivos para fazer isto.
Todos merecíamos melhor. A minha família, a Marlee e o Carter, o
Aspen e até as minhas aias, estavam todos presos por causa dos planos de
Gregory. Pensaria em todos eles.
Entrei no estúdio para o Noticiário, levando comigo uma pilha de
livros marcados e uma pasta com o meu cartaz. A disposição era a mesma
de sempre: os lugares do rei, da rainha e do Maxon à direita, perto da porta,
e os assentos das Selecionadas à esquerda. No meio do cenário, contudo,
onde costumava ficar um púlpito para o rei se dirigir à nação ou um
conjunto de cadeiras para as entrevistas, havia um espaço para as nossas
apresentações. Vi uma mesinha e o meu cavalete, mas também um ecrã que
concluí servir para alguém passar slides. Era impressionante. Perguntei-me
quem teria conseguido meios para ir tão longe.
Sentei-me na última cadeira livre, infelizmente ao lado da Celeste, e
pus a pasta ao meu lado, mantendo os livros no colo. A Natalie também
tinha alguns livros, ao passo que a Elise relia uma e outra vez as suas
anotações. A Kriss estava a olhar para cima e dava a impressão de estar a
recitar mentalmente a sua apresentação. A Celeste verificava a
maquilhagem.
A Silvia estava lá, como acontecia às vezes quando tínhamos de
debater algum assunto sobre o qual ela nos instruíra e, desta vez, parecia
extremamente inquieta. Esta era, provavelmente, a ocasião em que mais
trabalháramos até à data e tudo o que fizéssemos refletir-se-ia nela.
Engoli em seco. Esquecera-me da Silvia. Agora, era demasiado tarde.
— Estão lindas, minhas senhoras. Fantásticas! — disse ela quando se
aproximou.— Agora que estão todas aqui, quero explicar algumas coisas.
Primeiro, o rei fará alguns anúncios e, depois, o Gavril apresentará o tema
da noite: os vossos projetos filantrópicos.
A Silvia, normalmente uma máquina prática endurecida pelo palácio,
estava excitadíssima. Quase saltitava enquanto falava.
— Sei que têm andado a ensaiar. Cada uma tem oito minutos e se
alguém tiver perguntas para vocês, depois de terminarem, o Gavril irá
moderá-las. Lembrem-se de permanecerem atentas e compostas. O país está
a ver-vos! Se se perderem, respirem fundo e passem à frente. Vão ser
maravilhosas. Oh, e irão fazer as apresentações pela ordem em que estão
sentadas, de modo que a Lady Natalie será a primeira e a Lady America a
última. Boa sorte, meninas.
A Silvia afastou-se para voltar a verificar todos os pormenores e eu
tentei acalmar-me. A última. Era capaz de ser uma vantagem.
Provavelmente, a Natalie estava pior por ter de ser a primeira. Olhei-a de
soslaio e notei que ela começara a transpirar. Deveria ser uma tortura para
ela ter de se concentrar deste modo. Não pude deixar de olhar fixamente
para a Celeste. Ela não sabia que eu a vira com o Maxon e perguntei-me por
que razão ela nunca dissera nada a ninguém sobre isso. O facto de guardar
essa informação para si fez-me pensar que não fora a primeira vez.
Isso piorava bastante as coisas.
— Nervosa? — perguntei, observando-a esgravatar algo na unha.
— Não. Isto é uma ideia estúpida e ninguém se importa realmente.
Ficarei contente quando terminar. E eu sou modelo — disse, olhando
finalmente para mim. — Sei perfeitamente como estar perante um público.
— De facto, és mestra na arte das aparências — murmurei.
Conseguia ver a mente dela a trabalhar para tentar descobrir o insulto
implícito na frase. Acabou por revirar os olhos e desviar o olhar.
Então, o rei entrou, com a rainha ao seu lado. Conversavam em voz
baixa e o assunto parecia ser muito importante. O Maxon entrou um
instante depois, ajustando os botões de punho enquanto se encaminhava
para o seu lugar. Parecia tão inocente, tão limpo no seu fato; tentei recordar
a mim mesma que eu conhecia a verdade.
Ele olhou para mim. Decidi que não iria ser intimidada desviando o
olhar; por isso, encarei-o também. Então, um pouco hesitante, ele levou a
mão à orelha. Abanei lentamente a cabeça com uma cara que dava a
entender que, se dependesse de mim, nunca mais nos falaríamos.
Senti suores frios por todo o corpo quando as apresentações
começaram. A proposta da Natalie era curta e indicava falta de
conhecimentos.
Ela afirmou que todas as ações dos rebeldes eram odiosas e erradas e
que, por isso, a sua presença deveria ser considerada ilegal, de modo a
manter as províncias de Illéa mais seguras. Ficámos todos em silêncio a
olhar para ela quando terminou. Como é que ela não sabia que tudo o que
eles faziam já era considerado ilegal?
A rainha, em especial, parecia bastante triste enquanto observava a
Natalie regressar ao seu lugar.
A Elise propôs um programa de troca de cartas, do estilo penpal, entre
os membros das castas superiores e as pessoas da Nova Ásia. Sugeriu que
isso ajudaria a fortalecer os laços entre os nossos países, contribuindo para
o fim da guerra. Eu não tinha muita certeza de que aquilo fizesse alguma
diferença, mas era uma forma de recordar ao Maxon e ao público o motivo
de ela ainda estar aqui. A rainha perguntou se ela conhecia alguém na Nova
Asia que estivesse aberto a participar no programa, ao que a Elise
respondeu que sim.
A apresentação da Kriss foi espetacular. Ela queria melhorar o sistema
de ensino público, uma ideia que eu sabia ser cara ao coração da rainha e do
Maxon. Enquanto filha de um professor, eu tinha a certeza de que ela
pensara nesta ideia a vida toda. Ela usou o ecrã para projetar fotografias da
escola da sua província natal, que lhe haviam sido enviadas pelos pais. O
cansaço no rosto dos professores era notório e uma das fotografias retratava
uma sala onde havia quatro crianças sentadas no chão devido à falta de
cadeiras.
A rainha fez dezenas de perguntas, às quais a Kriss respondeu
prontamente. Usando cópias de relatórios antigos sobre problemas fi‐
nanceiros, que tínhamos lido, ela chegou mesmo a descobrir uma forma de
conseguirmos o dinheiro necessário para iniciar o projeto e apresentou
ideias para a continuação do financiamento.
Quando ela se sentou, vi o Maxon fazer-lhe um sorriso e um sinal de
aprovação com a cabeça. A reação dela foi corar e fixar os olhos na renda
do seu vestido. Era realmente muito cruel da parte dele brincar com ela
daquela forma, considerando a sua intimidade com a Celeste. Mas eu já não
iria interferir mais. Ele que fizesse o que bem entendesse.
A apresentação da Celeste foi interessante, ainda que um pouco
manipuladora. Ela sugeriu que deveria haver um salário mínimo para as
castas inferiores, de acordo com uma escala gradual assente em diplomas.
Contudo, para obterem esses diplomas, os Cincos, Seis e Setes teriam de
frequentar a escola... pela qual teriam de pagar... o que iria beneficiar
principalmente os Três, já que estes eram os professores autorizados. Como
a Celeste era uma Dois, não fazia ideia de que tínhamos de trabalhar vinte e
quatro horas por dia para pagar as contas. Ninguém teria tempo para obter
esses diplomas, o que significava que o seu salário nunca mudaria. A ideia
parecia bonita, mas nunca funcionaria.
A Celeste regressou ao seu lugar e eu estremeci quando me levantei.
Por um breve segundo, pensei em fingir um desmaio. Mas eu queria que
isto acontecesse. Só não queria enfrentar as consequências.
Coloquei o meu cartaz, um diagrama com as castas, no cavalete e
dispus os livros por ordem sobre a mesa. Respirei fundo e agarrei as notas
com força, surpreendida por descobrir, assim que comecei, que não
precisava delas.
— Boa noite, Illéa. Hoje, dirijo-me a vocês não como membro da
Elite, não como uma Três ou uma Cinco, mas como uma cidadã, uma igual.
De acordo com a sua casta, a vivência de cada um neste país é influenciada
de um modo bastante específico. Posso confirmá-lo por mim mesma. Mas
foi apenas recentemente que descobri o quão profundo é o meu amor por
Illéa.
»Apesar de ter sido criada às vezes sem comida ou eletricidade;
apesar de ver pessoas que amo serem obrigadas a assumir, com poucas
esperanças de mudança, as posições que nos são atribuídas à nascença;
apesar de ver as diferenças abissais entre mim e os outros por causa de um
número, embora não sejamos assim tão diferentes, — olhei para as outras
raparigas, — apesar de tudo isto, amo este país.
Troquei automaticamente o cartão das notas, sabendo onde cada um
terminava.
— O que proponho não seria simples. Poderia até ser doloroso, mas
acredito sinceramente que poderia ser benéfico para todo o reino. —
Respirei fundo. — Proponho que eliminemos as castas.
Ouvi mais de uma exclamação. Preferi ignorá-las.
— Sei que houve um tempo, quando o nosso país era jovem, em que a
atribuição desses números ajudou a organizar algo que estava à beira de
desaparecer. Mas já não somos esse país. Somos muito mais agora. Permitir
que pessoas sem talento tenham incontáveis privilégios e reprimir aqueles
que poderiam ser as mentes mais brilhantes do mundo, em nome de um
sistema de organização arcaico, é cruel e apenas nos impede de sermos
melhores.
Mencionei uma sondagem publicada numa das revistas descartadas
pela Celeste, feita logo a seguir a termos falado sobre um exército de
voluntários, onde sessenta e cinco por cento das pessoas achavam que se
tratava de uma boa ideia. Porquê afastar completamente as pessoas daquela
carreira? Também citei um relatório antigo, que tínhamos estudado, sobre
os testes padrão nas escolas públicas. O artigo era tendencioso, afirmando
que apenas três por cento dos Seis e Setes demonstravam níveis elevados de
inteligência e que, com um nível tão baixo, era óbvio que deveriam
permanecer onde estavam. O meu argumento era que deveríamos envergo‐
nhar-nos de limitar essas pessoas a cavar canais, quando poderiam estar a
realizar cirurgias ao coração.
Finalmente, a tarefa aterradora estava quase a terminar.
— Talvez o nosso país tenha falhas, mas não podemos negar a sua
força. O meu receio é que, sem mudanças, a sua força estagnará. E amo
demasiado o nosso país para deixar que isso aconteça. Tenho demasiada
esperança para deixar que isso aconteça.
Engoli em seco grata por, pelo menos, ter terminado.
— Obrigada pelo vosso tempo — disse, e virei-me ligeiramente para a
família real.
A situação era má. O Maxon tinha uma expressão indecifrável no
rosto, como no dia em que a Marlee fora açoitada. A rainha desviou o olhar,
aparentemente dececionada. O rei, contudo, encarava-me com um olhar
fulminante.
Sem sequer pestanejar, dirigiu-se a mim.
— E como sugere que eliminemos as castas? — desafiou. — Re‐
movemo-las simplesmente?
— Bem... não sei.
— E não acha que isso causaria tumultos? O caos completo? Isso não
iria permitir que os rebeldes se aproveitassem da confusão geral?
Eu não refletira bem sobre essa parte. Só conseguira pensar em como
era tudo tão injusto.
— Acredito que a criação das castas tenha gerado uma confusão
considerável. Mas ultrapassámo-la. De facto — estendi a mão para a minha
pilha de livros —, tenho uma descrição aqui.
Comecei a procurar a página certa no diário de Gregory.
— A transmissão foi interrompida? — berrou o rei.
— Sim, Majestade — respondeu alguém.
Levantei os olhos e vi que as luzes que indicavam normalmente que as
câmaras estavam ligadas se tinham apagado. Com algum gesto que me
passara despercebido, o rei interrompera a transmissão do Noticiário.
O rei levantou-se.
— Apontem-nas para o chão.
Todas as câmaras foram viradas para baixo.
Ele aproximou-se tempestuosamente de mim e arrancou-me o diário
das mãos.
— Onde é que arranjou isto? — gritou.
— Pai, pare! — O Maxon aproximou-se nervosamente.
— Onde é que ela arranjou isto? Responde-me!
O Maxon confessou:
— Fui eu. Queríamos saber o que era o Halloween. Ele escreveu sobre
isso nos diários e pensei que ela gostaria de ler mais.
— Seu imbecil! — vociferou o rei. — Eu sabia que já deveria ter-te
dado isto para leres. Estás completamente perdido. Não fazes ideia do teu
próprio dever.
Oh, não. Oh, não, não, não.
— Ela vai-se embora hoje — ordenou o Rei Clarkson. — Estou farto
dela.
Tentei encolher-me, distanciar-me o mais possível do rei sem ser
óbvia. Tentei nem sequer respirar demasiado alto. Virei o rosto para as
raparigas, focando-me na Celeste por algum motivo. Esperava que estivesse
a sorrir, mas ela estava nervosa. O rei nunca agira assim.
— Não pode mandá-la embora. A escolha é minha e eu digo que ela
fica — afirmou o Maxon, calmamente.
— Maxon Calix Schreave, eu sou o rei de Illéa e digo...
— Poderia deixar de ser rei por cinco minutos e ser apenas meu pai?
— gritou o Maxon. — A escolha é minha. O pai pôde fazer a sua e eu quero
fazer a minha. Ninguém sai sem que eu o diga!
Vi a Natalie encostar-se à Elise. Ambas pareciam estar a tremer.
— Amberly, leva isto para onde deveria estar — disse o rei, atirando-
lhe o livro para as mãos. Ela permaneceu ali, assentindo com a cabeça, mas
sem se mexer.
— Maxon, quero falar contigo no meu escritório.
Olhei para o Maxon e, talvez tenha sido impressão minha, mas
pareceu-me ver uma sombra de pânico passar pelos seus olhos.
— Ou — sugeriu o rei — eu posso simplesmente falar com ela. —
concluiu, fazendo um gesto na minha direção.
— Não — respondeu o Maxon imediatamente, levantando a mão em
protesto. — Não será necessário. Senhoras — acrescentou, virando-se para
nós —, porque não vão para os vossos quartos? O jantar ser-vos-á servido lá
esta noite. — Fez uma pausa. — America, talvez devas fazer as malas. Por
precaução.
O rei sorriu, um comportamento sinistro depois da sua recente
explosão.
— Excelente ideia. Vamos, filho.
Olhei para o Maxon, que parecia derrotado. Senti vergonha. Ele abriu
a boca para dizer algo, mas acabou por abanar a cabeça e sair.
A Kriss torcia as mãos, olhando para o Maxon. Não poderia censurá-
la. Algo em tudo aquilo parecia muito ameaçador.
— Clarkson? — disse a Rainha Amberly em voz baixa. — E o outro
assunto?
— O quê? — perguntou ele, irritado.
— As notícias? — recordou ela.
— Ah, sim. — O rei voltou para trás, aproximando-se novamente de
nós.
Eu estava suficientemente perto da minha cadeira para voltar para
junto dela, com medo de ficar ali sozinha outra vez. A voz do Rei Clarkson
soou firme e calma.
— Natalie, não quisemos contar-lhe antes do Noticiário, mas
recebemos más notícias.
— Más notícias? — perguntou ela, mexendo nervosamente no seu
colar.
O rei aproximou-se.
— Sim, lamento imenso, mas parece que os rebeldes levaram a sua
irmã esta manhã.
— O quê? — sussurrou ela.
— O seu corpo foi encontrado esta tarde. Sentimos muito.
Em seu favor, havia algo semelhante a simpatia na sua voz, embora
parecesse mais fruto de algum treino do que emoção genuína.
Ele virou-se rapidamente para o Maxon, conduzindo-o à força lá para
fora, enquanto a Natalie soltava um grito lancinante. A rainha correu para
ela, acariciando-lhe o cabelo e tentando acalmá-la. A Celeste, nunca muito
fraternal, saiu discretamente da sala, seguida de perto por uma Elise muito
abalada. A Kriss ficou e tentou confortar a Natalie, mas assim que se tornou
claro que não poderia fazer grande coisa, saiu também. A rainha, sem
deixar de abraçar a Natalie por um instante, disse-lhe que iriam colocar
guardas junto dos seus pais, por precaução, e que ela poderia sair para estar
presente no funeral, se quisesse.
Tudo se ensombrara tão de repente que dei por mim petrificada na
minha cadeira.
Quando uma mão surgiu diante do meu rosto, assustei-me tanto que
recuei.
— Não vou fazer-lhe mal — disse o Gavril. — Quero apenas ajudá-la
a levantar-se.
O seu alfinete de lapela brilhou, refletindo a luz.
Dei-lhe a minha mão, surpreendida por as minhas pernas tremerem
tanto.
— Ele deve amá-la muito — disse o Gavril, assim que me equilibrei.
Não consegui olhar para ele.
— Porque é que diz isso?
O Gavril soltou um suspiro.
— Conheço o Maxon desde criança. Ele nunca enfrentou o pai desta
maneira.
Ele afastou-se então, instruindo a equipa para não dizerem nada sobre
o que tinham ouvido ali naquela noite.
Aproximei-me da Natalie. Não sabia muito sobre ela, mas tinha a
certeza de que amava a irmã tal como eu amava a May. E não conseguia
imaginar a dor que ela deveria estar a sentir.
— Natalie, tenho tanta pena — disse-lhe em voz baixa. Ela assentiu
com a cabeça. Era o máximo que conseguia fazer.
A rainha olhou para mim, compreensiva, sem saber como expressar
toda a sua tristeza.
— E... lamento imenso também pela senhora. Eu não estava a tentar...
eu só...
— Eu sei, minha querida.
Tendo em conta o estado da Natalie, pedir mais do que essa despedida
seria demasiado egoísmo; portanto, fiz uma profunda reverência final à
rainha e saí lentamente da sala, debatendo-me com o desastre que
provocara.
Capítulo 28

A última coisa por que esperava ao entrar no meu quarto era uma
salva de palmas das minhas aias.
Fiquei ali imóvel, por um momento, genuinamente comovida com o
apoio delas e confortada pelo orgulho radiante nos seus rostos. Assim que
pararam de me deixar envergonhada, a Anne pegou-me nas mãos.
— Muito bem dito, menina. — Ela apertou-me a mão e vi no seu
olhar tanta alegria pelo que eu tinha dito que, por um segundo, não me senti
tão horrível.
— Não posso acreditar que fez aquilo! Nunca ninguém nos defende!
— acrescentou a Mary.
— O Maxon tem de a escolher — exclamou a Lucy. — E a única que
me dá esperança.
Esperança.
Precisava de pensar e o único lugar onde poderia fazê-lo era no
jardim. Embora as minhas aias tivessem insistido para que ficasse, saí,
tomando o caminho mais longo e descendo pelas escadas das traseiras na
outra ponta do corredor. Além de um ou outro guarda, o primeiro andar
estava deserto e silencioso. Parecia-me que o palácio deveria estar a
fervilhar de atividade depois de tudo o que acontecera na última meia hora.
Enquanto seguia pela ala hospitalar, uma porta abriu-se e fui de
encontro ao Maxon, que deixou cair uma caixa de metal lacrada. Ele gemeu
depois da nossa colisão, embora não tivéssemos chocado com muita força.
— O que estás a fazer fora do teu quarto? — perguntou ele, baixando-
se devagar para apanhar a caixa. Reparei que esta tinha o nome dele
gravado de lado. Perguntei-me o que guardaria na ala hospitalar.
— Ia para o jardim. Estou a tentar descobrir se fiz uma burrice ou não.
O Maxon parecia estar com dificuldade em manter-se de pé.
— Oh, posso garantir-te que foi uma burrice.
— Precisas de ajuda?
— Não — respondeu ele rapidamente, evitando o meu olhar. — Vou
para o meu quarto. E aconselho-te a fazeres o mesmo.
— Maxon... — O pedido sereno na minha voz fê-lo olhar para mim.
— Lamento tanto. Eu estava furiosa e queria... Já nem sei. E foste tu quem
disse que havia vantagens em se ser Um, que era possível mudarmos as
coisas.
Ele fez um ar exasperado.
— Tu não és Um.
Fez-se silêncio entre nós.
— E mesmo que fosses, nunca prestaste atenção ao modo como faço
as coisas? Com discrição e aos poucos. É assim que tem de ser por
enquanto. Não podes ir para a televisão queixar-te do modo como as coisas
são feitas e esperar o apoio do meu pai, ou de qualquer outra pessoa.
— Desculpa! — exclamei. — Lamento tanto, mas tanto.
Ele fez uma pausa por um instante.
— Não sei se...
Ouvimos o grito ao mesmo tempo. O Maxon deu meia-volta e
começou a andar e eu segui-o, tentando perceber aquele som. Estava
alguém a lutar? Quando nos aproximámos do cruzamento entre o corredor
principal e as portas para o jardim, vimos uma multidão de guardas a correr
para essa zona.
— Toquem o alarme! — gritou alguém. — Eles passaram pelos
portões!
— Armas a postos! — berrou outro guarda por cima do barulho.
— Alertem o rei!
E então, como um enxame de abelhas, várias coisas pequenas e
rápidas entraram a voar no corredor. Um guarda foi atingido e caiu para
trás, batendo com a cabeça contra o mármore e produzindo um estalo
perturbador. O sangue a jorrar do seu peito fez-me gritar.
O Maxon puxou-me instintivamente para trás, mas não muito
depressa. Talvez também estivesse em choque.
— Vossa Majestade! — chamou um dos guardas, correndo na nossa
direção. — O senhor precisa de ir imediatamente lá para baixo!
Ele virou bruscamente o Maxon e empurrou-o. O Maxon gritou e
deixou cair novamente a caixa de metal. Olhei para a mão com que o
soldado tocara no Maxon, imaginando que ele deveria ter-lhe cravado uma
faca nas costas, a julgar pelo seu grito. Tudo o que vi foi um anel de peltre
grosso no seu polegar. Peguei na caixa pela pega lateral, esperando não
estragar nada lá dentro, e corri na direção para onde o guarda tentava
conduzir-nos.
— Não vou conseguir — disse o Maxon.
Olhei para ele e vi que estava a suar. Passava-se algo de muito grave
com ele.
— Sim, senhor — disse o guarda, sombriamente. — Por aqui.
Arrastou o Maxon para um canto que parecia não ter saída. Eu estava
a questionar-me se iria deixar-nos ali quando ele tocou num botão invisível
na parede, abrindo mais uma das misteriosas portas do palácio. Estava tão
escuro lá dentro que eu não conseguia ver onde iria dar, mas o Maxon
entrou sem hesitar, com as costas arqueadas.
— Avise a minha mãe que a America e eu estamos seguros. Faça isso
antes de qualquer outra coisa — disse ele.
— Sim, senhor. Virei buscar-vos pessoalmente quando isto acabar.
A sirene soou. Eu esperava que ainda houvesse tempo para salvar toda
a gente.
O Maxon assentiu e a porta fechou-se, deixando-nos na mais completa
escuridão. O abrigo era tão estanque que eu não conseguia distinguir sequer
o som do alarme. Ouvi o Maxon esfregar a mão na parede até encontrar um
interruptor que iluminou a sala com uma luz fraca. Olhei em volta e
inspecionei o espaço.
Havia algumas prateleiras com uns pacotes escuros de plástico e uma
outra prateleira com alguns cobertores finos. No meio daquele espaço
minúsculo havia um banco de madeira com capacidade para umas quatro
pessoas e, na parede oposta, um pequeno lavatório e o que parecia ser uma
sanita muito básica. Havia vários ganchos pregados numa das paredes, mas
sem nada pendurado. A sala inteira cheirava ao metal de que as paredes
pareciam ser feitas.
— Pelo menos, este é um dos bons — comentou o Maxon, dirigindo-
se a cambalear até ao banco onde se sentou.
— O que se passa?
— Nada — disse ele em voz baixa, apoiando a cabeça nos braços.
Sentei-me ao seu lado e pousei a caixa de metal no banco, olhando em volta
da sala mais uma vez.
— Presumo que devam ser rebeldes Sulistas.
O Maxon assentiu. Tentei acalmar a respiração e apagar da mente o
que acabara de ver. Será que aquele guarda sobreviveria? Será que alguém
poderia sobreviver a algo assim?
Perguntei-me até onde os rebeldes teriam conseguido chegar durante o
tempo que demoráramos a esconder-nos. Teria o alarme sido
suficientemente rápido?
— Estamos seguros aqui?
— Sim. Este é um dos abrigos para os criados. Se estiverem na
cozinha ou no armazém, estão bastante seguros. Mas aqueles que estiverem
pelo palácio a realizar as suas tarefas podem não ter tempo suficiente para
lá chegar. Não são tão seguros como o grande abrigo da família real, onde
temos mantimentos para muito tempo, mas servem para uma emergência.
— Os rebeldes sabem?
— Talvez — disse ele, estremecendo quando se endireitou no banco.
— Mas não podem entrar enquanto os abrigos estiverem a ser usados. Há
apenas três formas de sair. Com uma chave, é possível ativá-los do lado de
fora ou por dentro — O Maxon bateu no bolso, dando a entender que
poderia tirar-nos dali se necessário. — Ou então, é preciso esperar dois dias.
Ao fim de quarenta e oito horas, as portas abrem-se automaticamente. Os
guardas verificam cada um dos abrigos assim que o perigo passa, mas há
sempre a possibilidade de falharem um e, sem o mecanismo de abertura
retardada, alguém poderia ficar preso aqui para sempre.
Ele demorou algum tempo para conseguir dizer tudo aquilo. Estava
claramente em sofrimento, mas parecia estar a tentar distrair-se com as
palavras. Inclinou-se para a frente e resfolegou quando esse movimento
pareceu piorar o que quer que fosse que estava a doer-lhe.
— Maxon?
— Não consigo... não consigo aguentar mais. America, ajudas-me a
despir o casaco?
Ele estendeu o braço e eu pus-me de pé para o ajudar a fazer deslizar
o casaco pelas costas. Ele deixou-o cair atrás de si e passou aos botões.
Comecei a ajudá-lo, mas ele interrompeu-me, envolvendo as minhas mãos
nas dele.
— Neste momento, a tua capacidade de guardar segredos não é das
mais impressionantes. Mas este é daqueles que terás de levar para o túmulo.
Teu e meu. Entendido?
Assenti com a cabeça, embora não percebesse muito bem o que ele
queria dizer. O Maxon largou-me as mãos e desabotoei-lhe lentamente a
camisa. Perguntei-me se ele alguma vez sonhara comigo a fazer isto. Eu
tinha de admitir que já sonhara com aquilo. Na noite de Halloween, ficara
deitada na cama, a sonhar com este momento no futuro. Imaginara-o de um
modo bastante diferente, mas, ainda assim, senti um arrepio.
Eu tinha sido criada como música, mas vivera rodeada por artistas.
Certa vez, vira uma escultura com centenas de anos, que representava um
atleta a lançar um disco. Na altura, pensara que apenas um artista poderia
criar aquilo: fazer o corpo de alguém parecer tão belo. O peito do Maxon
era tão escultural como qualquer peça de arte que eu já vira.
Mas tudo mudou quando comecei a despir-lhe a camisa pelas costas.
Estava colada e fazia um som molhado e peganhento quando tentava puxá-
la.
— Devagar — disse ele.
Assenti com a cabeça e fui para trás dele para tentar daquele lado. As
costas da camisa do Maxon estavam empapadas em sangue. Soltei uma
exclamação e fiquei imóvel por um instante. Mas então, suspeitando de que
o meu espanto só piorava as coisas, voltei ao trabalho. Assim que retirei a
camisa, pendurei-a num dos ganchos, tentando recuperar o controlo.
Virei-me e olhei bem para as costas do Maxon. Um corte
ensanguentado rasgava a pele desde o ombro até à cintura, atravessando um
outro que também sangrava; este, por sua vez, passava por cima de outro
que parecia já ter cicatrizado há algum tempo, o qual cruzava um outro
onde a pele estava enrugada pelo tempo. Parecia haver seis cortes recentes
nas costas do Maxon, em cima de muitos outros, demasiados para contar.
Como é que isto podia ter acontecido? O Maxon era o príncipe. Era
um nobre, um soberano, um ser à parte de todos os outros. Estava acima de
tudo, às vezes até da lei. Portanto, como teria ficado coberto de cicatrizes?
Então, lembrei-me do olhar do rei nessa noite. E do esforço do Maxon
para esconder o seu medo. Como é que um homem podia fazer isto ao
próprio filho?
Afastei-me de novo, inspecionando o abrigo até encontrar um pano.
Fui até ao lavatório e fiquei feliz por ver que funcionava, embora a água
fosse fria como o gelo.
Acalmei-me e aproximei-me do Maxon, tentando manter a calma por
ele.
— Isto é capaz de arder um pouco — avisei.
— Tudo bem — disse ele em voz baixa. — Estou habituado.
Peguei no pano molhado e passei-o com cuidado sobre o grande sulco
no seu ombro, decidindo que iria trabalhar de cima para baixo. Ele
encolheu-se um pouco, mas aguentou em silêncio. Quando passei ao
segundo corte, começou a falar.
— Há anos que ando a preparar-me para esta noite, sabes? Estava à
espera do dia em que fosse suficientemente forte para o enfrentar.
O Maxon ficou em silêncio por instantes e algumas coisas começaram
a fazer sentido: a razão pela qual uma pessoa que trabalhava à secretaria
tinha uns músculos tão respeitáveis; o porquê de ele estar sempre meio
vestido e pronto para qualquer coisa; a razão pela qual uma rapariga a
chamar-lhe criança e a empurrá-lo o deixava irritado.
Aclarei a garganta.
— E porque é que o enfrentaste?
Ele fez uma pausa.
— Receei que, se ele não me tivesse a mim, fosse atrás de ti.
Fui obrigada a parar por momentos, demasiado emocionada até para
falar. As lágrimas ameaçaram cair, mas tentei contê-las. Tinha a certeza de
que só pioraria as coisas.
— Alguém sabe? — perguntei.
— Não.
— Nem o médico? Ou a tua mãe?
— O médico deve saber, mas é discreto. E eu nunca contaria à minha
mãe, nem lhe daria qualquer motivo para suspeitar. Ela sabe que o meu pai
é severo comigo, mas não quero que se preocupe. Eu consigo aguentar.
Eu continuava a limpar os cortes.
— Ele não é assim com ela — assegurou-me ele rapidamente.
— Ela é maltratada de outras formas, imagino, mas não deste modo.
— Hum — murmurei, sem saber mais o que dizer.
Passei o pano mais uma vez e o Maxon bufou.
— Raios, isso arde.
Parei por um momento, enquanto ele recuperava o fôlego. Após
alguns instantes, fez um sinal com a cabeça para que eu continuasse.
— Sinto-me mais solidário em relação ao Carter e à Marlee do que
possas imaginar — disse ele, tentando parecer animado. — Estas coisas
demoram um pouco a deixar de doer, principalmente quando estamos
decididos a cuidar delas sozinhos.
Parei por um instante, chocada. A Marlee levara quinze vergastadas
de uma só vez. Acho que, se tivesse de escolher, preferiria isso a ser
espancada quando não estivesse à espera.
— Qual foi o motivo das outras? — perguntei. Depois, abanei a
cabeça. — Esquece. Foi indelicado perguntar.
Ele encolheu o ombro são.
— Coisas que disse ou fiz. Coisas que sei.
— Coisas que eu sei — acrescentei. — Maxon, eu...
Soltei um soluço que quase me fez perder o controlo. Era corno se o
tivesse fustigado eu mesma.
Ele não se virou, mas a sua mão procurou e encontrou o meu joelho.
— Como é que vais acabar de tratar de mim, se estiveres a chorar?
Soltei uma risada fraca através das lágrimas e limpei o rosto. Acabei
de tratar tudo, tentando não o magoar.
— Achas que há ligaduras por aqui? — perguntei, olhando em volta
do abrigo.
— Na caixa — disse ele.
Enquanto ele permanecia sentado, acalmando a respiração, abri os
fechos da caixa, olhando para a abundância de artigos.
— Porque é que não tens as ligaduras no teu quarto?
— Por puro orgulho. Estava decidido a nunca mais precisar delas.
Suspirei baixinho. Li os rótulos e encontrei a solução desinfetante,
uma coisa que parecia poder ajudar a aliviar a dor, e as ligaduras.
Passei para trás dele, preparando-me para aplicar os medicamentos.
— Isto é capaz de doer.
Ele assentiu com a cabeça. Quando o remédio tocou na pele, ele
gemeu uma vez e depois ficou em silêncio. Tentei ser rápida e cuidadosa,
procurando deixá-lo o mais confortável possível.
Comecei a colocar o unguento nas feridas e tornou-se claro que o que
quer que aquilo fosse ajudava. A tensão nos seus ombros foi desaparecendo
enquanto eu trabalhava, o que me deixou contente; de certo modo, era como
se eu estivesse a reparar parte do mal que causara.
Ele deixou escapar uma risada descontraída.
— Eu sabia que o meu segredo acabaria por vir à tona. Há anos que
tento inventar uma boa história. Esperava encontrar algo plausível até ao
casamento, pois já que sabia que a minha mulher iria vê-las, mas continuo
bloqueado. Alguma ideia?
Pensei um pouco.
— A verdade basta.
— Não é a minha opção favorita. Não para este caso, pelo menos.
— Acho que acabei.
O Maxon torceu-se e dobrou-se um pouco, movendo-se com muito
cuidado. Virou-se para olhar para mim com uma expressão de gratidão.
— Está excelente, America. Melhor do que o que eu alguma vez fiz.
— Às ordens.
Ele encarou-me por uns instantes e o silêncio cresceu. O que é que
poderíamos dizer?
Os meus olhos insistiam em descer para o peito dele e eu tinha de
parar com aquilo.
— Vou lavar a tua camisa. — Enfiei-me no canto, a esfregar a camisa
com as mãos e observando a água tingir-se de uma cor enferrujada antes de
descer pelo cano. Sabia que o sangue não iria sair todo, mas pelo menos
dava-me algo para fazer.
Quando terminei, torci a camisa e pendurei-a novamente no gancho.
Quando me virei, o Maxon estava com os olhos cravados em mim.
— Porque é que nunca me fazes as perguntas a que eu quero
responder?
Eu não me achava capaz de me sentar ao seu lado, no banco, sem me
sentir tentada a tocar-lhe. Então, sentei-me no chão em frente dele.
— Não sabia que fazia isso.
— Mas fazes.
— Bom, então o que é que não perguntei que tu queres responder?
Ele respirou fundo e inclinou-se com cuidado para a frente, apoiando
os cotovelos nos joelhos.
— Não queres que te dê explicações sobre a Kriss e a Celeste? Não
achas que mereces isso?
Capítulo 29

Cruzei os braços.
— Ouvi a versão da Kriss sobre o que aconteceu e não acho que ela
tenha exagerado. Quanto à Celeste, prefiro nunca mais falar sobre ela.
Ele riu-se.
— Tão teimosa. Vou sentir falta disso.
Fiquei calada por um instante.
— Então acabou? Estou fora?
O Maxon pensou um pouco.
— Acho que não conseguiria evitá-lo agora. Não era o que tu querias?
Abanei a cabeça.
— Eu estava furiosa — sussurrei. — Tão furiosa.
Desviei o olhar, não querendo chorar. Aparentemente, o Maxon
decidira que eu precisava de ouvir o que ele tinha para dizer, quer quisesse
ou não. Encurralara-me finalmente e eu iria ouvir tudo o que ele queria
dizer-me.
— Pensei que fosses minha — disse ele.
Olhei para ele e vi que tinha os olhos fixos no teto.
— Se pudesse, teria pedido a tua mão em casamento na festa de
Halloween. Tenho de fazer um evento oficial, com os meus pais,
convidados e as câmaras, mas consegui uma autorização especial para te
pedir em casamento em privado, quando estivéssemos prontos, e dar uma
receção depois. Nunca te contei isso, pois não?
O Maxon olhou para mim e eu abanei ligeiramente a cabeça. Ele fez
um sorriso amargo, recordando-se.
— Eu já tinha o discurso preparado com todas as promessas que
queria fazer. Provavelmente, tê-lo-ia esquecido e feito figura de idiota.
Contudo... consigo lembrar-me dele agora. — Suspirou. — Vou poupar-te a
ouvi-lo.
Ele fez uma ligeira pausa:
— Quando me afastaste, entrei em pânico. Pensava que me tinha visto
livre deste concurso louco e dei por mim a sentir-me novamente como no
primeiro dia da Seleção, só que agora as minhas opções eram bastante mais
limitadas. E logo quando, na semana anterior, eu tinha passado tempo com
todas as raparigas, tentando encontrar alguém que te ofuscasse, alguém que
eu achasse que poderia querer mais, mas sem sucesso. Senti-me
desesperado.
»E então, a Kriss veio ter comigo. Tão humilde, querendo apenas ver-
me feliz, e eu perguntei-me como é que não tinha visto esse lado dela. Sabia
que ela era simpática e bastante atraente, mas, afinal, havia algo mais nela
este tempo todo.
«Acho que não estava a procurar realmente. Por que motivo o faria, se
já te tinha a ti?
Abracei as minhas pernas, tentando esconder-me da dor. Eu já não
existia. Tinha estragado tudo.
— Amas a Kriss? — perguntei, humildemente. Não queria ver o rosto
dele, mas a longa pausa deu-me a entender que havia algo de profundo
entre os dois.
— É diferente do que tu e eu tínhamos. É mais calmo, talvez mais
amigável. Mas é constante. Posso apoiar-me na Kriss e sei, sem qualquer
dúvida, que ela é dedicada a mim. Como podes ver, há muito poucas
certezas no meu mundo. Ela é reconfortante.
Fiz que sim com a cabeça, ainda evitando olhá-lo nos olhos. Tudo em
que conseguia pensar era que ele falara de nós no passado e só tinha elogios
para a Kriss. Queria ter algo de mau para dizer sobre ela, algo que a ferisse
um pouco aos olhos dele, mas não tinha. A Kriss era uma lady. Tinha feito
tudo bem desde o início e surpreendia-me que ele me tivesse sequer
preferido a ela. A Kriss era perfeita para ele.
— Então, porquê a Celeste? — perguntei, encarando-o finalmente. —
Se a Kriss é tão maravilhosa...
O Maxon assentiu com a cabeça, aparentemente envergonhado com
este assunto. Mas a ideia de falar disto partira dele; portanto, já deveria ter
alguma explicação em mente. Ele levantou-se, endireitando cuidadosamente
as costas, e começou a andar de um lado para o outro.
— Como sabes, a minha vida está cheia de situações de stress que
prefiro não revelar. Vivo num estado de constante de tensão. Estou sempre a
ser observado, julgado. Os meus pais, os nossos conselheiros... há sempre
câmaras na minha vida e agora vocês estão aqui — disse ele, com um gesto
na minha direção. — Tenho a certeza de que já te sentiste limitada por
causa da tua casta pelo menos uma vez, mas imagina como eu me sinto. Há
coisas que eu vi, America, e coisas que sei; e acho que nunca serei capaz de
as mudar.
»Imagino que estejas a par do facto de que o meu pai deve,
teoricamente, renunciar quando eu tiver vinte e poucos anos, quando ele
achar que eu estou pronto para liderar; mas achas que ele alguma vez vai
deixar de mover os cordelinhos nos bastidores? Isso nunca vai acontecer
enquanto ele viver. E eu sei que ele é terrível, mas não quero que morra...
Ele é meu pai.
Assenti, compreendendo.
— E, a propósito, ele influenciou a Seleção desde o início. Se olhares
para as que sobraram, fica tudo muito claro.
Ele começou a contar as raparigas pelos dedos.
— A Natalie é extremamente dócil, o que faz dela a favorita do meu
pai, pois, segundo ele, eu sou demasiado voluntarioso. O facto de ele gostar
tanto dela faz com que eu tenha de lutar contra o impulso de a odiar.
»A Elise tem aliados na Nova Ásia, mas não sei se serviriam para
alguma coisa. Essa guerra... — Pensou em alguma coisa e depois abanou a
cabeça. Havia algum pormenor sobre a guerra que ele não queria revelar-
me. — E ela é tão... nem sei como o descrever. Eu sabia desde o início que
não queria uma rapariga que concordasse com tudo o que eu dissesse ou
que simplesmente me obedecesse e adorasse. Tento contradizê-la e ela cede.
Sempre! É extremamente frustrante. É como se ela não tivesse
personalidade.
Respirou fundo para se acalmar. Eu não percebera o quanto ela o
irritava. Ele tinha sempre tanta paciência connosco. Por fim, ele olhou para
mim.
— Tu foste a minha escolha. A minha única escolha. O meu pai não
ficou entusiasmado, mas até agora ainda não tinhas feito nada que o
deixasse irritado. Desde que ficasses sossegada, ele não se importava que eu
te mantivesse. Aliás, até concordaria que eu te escolhesse, se fosses bem-
comportada. Usou as tuas ações recentes para apontar as minhas falhas de
julgamento e insiste que terá a palavra final a partir de agora.
Ele abanou a cabeça.
— Mas isso é outra história. As outras, a Marlee, a Kriss e a Celeste,
foram escolhidas por conselheiros. A Marlee era uma das favoritas, assim
como a Kriss. — Soltou um suspiro. — A Kriss seria uma boa escolha.
Gostaria que ela me deixasse aproximar-me, pelo menos para descobrir se
temos... química. Gostaria de ter pelo menos uma ideia.
»E a Celeste, é muito influente, uma celebridade por si só. Fica bem
na TV. E parece lógico que alguém praticamente do meu nível seja a minha
escolha final. Gosto dela, mais que não seja pela sua tenacidade. Ela, pelo
menos, tem personalidade. Mas consigo perceber que é manipuladora e que
está a fazer os possíveis para aproveitar ao máximo esta situação. Sei que,
quando me abraça, é a coroa que tem no coração.
Fechou os olhos, como se o que estivesse prestes a dizer fosse a pior
parte.
— Ela está a usar-me e, por isso, não me sinto culpado quando a uso.
Não me surpreenderia se ela tivesse sido encorajada por alguém a atirar-se a
mim. Posso respeitar os limites da Kriss.
E preferiria muito mais estar nos teus braços, mas tu mal tens falado
comigo...
»É assim tão mau eu querer passar quinze minutos sem preocupações?
Sentir-me bem? Fingir durante algum tempo que alguém me ama? Podes
julgar-me se quiseres, mas não vou pedir desculpa por querer um pouco de
normalidade na minha vida.
Olhou-me profundamente nos olhos, aguardando a minha reprovação
e, ao mesmo tempo, esperando que ela não surgisse.
— Eu percebo.
Pensei no Aspen a abraçar-me com força e a fazer promessas. Não
fizera eu o mesmo? Conseguia ver o cérebro do Maxon a trabalhar, tentando
perceber quão literais eram as minhas palavras. Mas este era um segredo
que eu não poderia revelar. Ainda que tudo estivesse perdido para mim, não
poderia deixar o Maxon pensar em mim dessa forma.
— Tu escolhê-la-ias? A Celeste, quero dizer?
Ele veio sentar-se ao meu lado, movendo-se com cuidado. Eu não
conseguia imaginar o quanto as suas costas deveriam estar a doer-lhe.
— Se tivesse de o fazer, escolheria a Celeste em vez da Elise ou da
Natalie. Mas isso não vai acontecer, a não ser que a Kriss decida sair.
— A Kriss é uma boa escolha — concordei. — Será uma princesa
muito melhor do que eu jamais seria.
Ele soltou uma risadinha.
— Ela é menos instigadora. Deus sabe o que aconteceria ao país
contigo à frente.
Ri-me também porque ele tinha razão.
— Eu arruiná-lo-ia, provavelmente.
O Maxon continuava a sorrir quando falou.
— Talvez ele precise de ser arruinado.
Permanecemos ali em silêncio, por algum tempo. Imaginei como seria
o nosso mundo arruinado. Não podíamos livrar-nos da família real, porque
não poderíamos convertê-la noutra coisa, mas talvez pudéssemos mudar a
maneira de fazer certas coisas. Os cargos
poderiam ser por eleição em vez de herdados. E as castas... adoraria
realmente vê-las desaparecer para sempre.
— Fazes-me um favor? — perguntou o Maxon.
— O quê?
— Bem, eu partilhei muitas coisas contigo esta noite, que são muito
difíceis de admitir. Estava a pensar se poderias responder-me a uma
pergunta.
O seu rosto era tão sincero que eu não poderia recusar. Esperava não
me arrepender do que quer que se tratasse, mas ele fora mais sincero
comigo do que eu merecia a esta altura.
— Sim. O que quiseres.
Ele engoliu em seco.
— Alguma vez me amaste?
O Maxon olhou-me nos olhos e perguntei-me se ele seria capaz de ver
ali a resposta. Todas as emoções que eu combatera, porque pensava que ele
era uma coisa que não era, todos os sentimentos a que nunca quis dar nome.
Baixei a cabeça.
— Sei que, quando pensei que eras o responsável por magoar a
Marlee, fiquei arrasada. Não só pelo que tinha acontecido, mas porque não
queria pensar que pudesses ser esse tipo de pessoa. Sei que, quando falas da
Kriss ou quando penso em ti a beijar a Celeste... sinto tantos ciúmes que
mal consigo respirar. E sei que, quando falámos no Halloween, pensei no
nosso futuro. E estava feliz. Sei que, se me tivesses pedido em casamento,
eu teria dito que sim. — As últimas palavras foram ditas num sussurro; era
quase demasiado difícil pensar naquilo.
— Também sei que nunca soube o que pensar em relação aos teus
encontros com outras pessoas ou ao facto de seres um príncipe. Mesmo com
tudo o que me contaste esta noite, acho que haverá sempre partes de ti que
irás manter reservadas...
»Mas, apesar de tudo... — Assenti com a cabeça. Não era capaz de
dizer aquelas palavras em voz alta. Se as dissesse, como é que conseguiria
partir?
— Obrigado — disse ele, baixinho. — Pelo menos, agora tenho a
certeza de que, por um breve momento durante o nosso tempo juntos, tu e
eu sentimos o mesmo.
Os meus olhos ardiam, ameaçando transbordar com mais lágrimas.
Ele nunca me dissera realmente que me amava e não estava exatamente a
dizê-lo agora. Mas as palavras estavam tão, tão perto.
— Fui tão idiota — disse, com um soluço. Lutara com todas as forças
contra as lágrimas, mas já não aguentava mais. — Deixei que a coroa me
assustasse e fizesse com que não te quisesse. Dizia a mim mesma que não
eras realmente importante para mim. Estava sempre a pensar que me
mentiras, ou enganaras, que não confiavas em mim ou que não te
importavas comigo o suficiente. Deixei-me acreditar que não era importante
para ti.
Olhei para o seu belo rosto.
— Basta olhar para as tuas costas para saber que farias qualquer coisa
por mim. E eu estraguei tudo. Simplesmente estraguei tudo...
Ele abriu os braços e eu lancei-me neles. O Maxon abraçou-me em
silêncio, acariciando os meus cabelos. Eu queria poder apagar tudo e ficar
apenas com aquele momento, aquele breve segundo em que ele e eu
sabíamos o quanto significávamos um para o outro.
— Por favor, não chores querida. Eu pouparia as tuas lágrimas o resto
da vida, se pudesse.
A minha respiração era entrecortada quando falei:
— Nunca mais vou ver-te. A culpa é toda minha.
Ele abraçou-me com mais força.
— Não, eu deveria ter sido mais franco.
— Eu deveria ter sido mais paciente.
— Eu deveria ter pedido a tua mão em casamento naquela noite no teu
quarto.
— Eu deveria ter-te deixado fazê-lo.
Ele riu-se. Olhei para o seu rosto, sem saber quantos mais sorrisos
seus ainda veria. Os dedos do Maxon enxugaram as lágrimas das minhas
faces e ele ficou ali, de olhos cravados nos meus. Eu também olhava para
ele, querendo desesperadamente lembrar-me disto.
— America... não sei quanto tempo ainda temos juntos, mas não
quero gastá-lo com arrependimentos pelas coisas que não fizemos.
— Nem eu. — Virei o rosto para a palma da mão dele, beijando-a.
Depois, beijei a ponta de cada um dos seus dedos. Ele fez deslizar essa mão
por entre os meus cabelos e puxou-me em direção aos seus lábios.
Eu sentira falta destes beijos, tão serenos, tão seguros. Durante toda a
minha vida, sabia que quer me casasse com o Aspen ou com outra pessoa,
nunca ninguém me faria sentir assim. Não era como se a minha presença
tornasse o mundo dele melhor. Era como se eu fosse o mundo dele. Não
havia explosões, não havia fogos de artificio. Era um fogo que ardia
lentamente, de dentro para fora.
Trocámos de posições, de modo que eu fiquei no chão e ele sobre
mim. Ele fez deslizar o nariz pelo meu queixo, pelo meu pescoço, pelo meu
ombro e cobriu depois esse caminho de beijos de volta aos meus lábios. Eu
fazia correr os meus dedos pelo seu cabelo. Era tão suave que quase me
fazia cócegas na palma das mãos.
Depois de algum tempo, fomos buscar cobertores e improvisámos
uma cama. Ele abraçou-me por muito tempo, com os olhos mergulhados
nos meus. Poderíamos ter passado anos a fazer isto se não fosse por mim.
Assim que a camisa do Maxon secou, ele vestiu-a, cobrindo as
manchas secas com o casaco, e voltou a aconchegar-se ao meu lado.
Quando ficámos cansados, começámos a conversar. Eu não queria dormir
nem por um segundo e suspeitei de que ele também não.
— Achas que vais voltar para ele? Para o teu ex?
Eu não queria falar do Aspen naquele momento, mas pensei no
assunto.
— Ele é uma boa opção. Inteligente, corajoso e talvez a única pessoa
no planeta mais teimosa do que eu.
O Maxon soltou uma gargalhada alegre. Os meus olhos estavam
fechados, mas continuei a falar:
— Mas vai demorar algum tempo até eu conseguir pensar sobre isso.
— Hum.
O silêncio prolongou-se. O Maxon acariciava a minha mão com o
polegar.
— Será que posso escrever-te? — perguntou ele.
Pensei um pouco.
— Talvez seja melhor esperares alguns meses. Talvez nem sintas a
minha falta.
Ele soltou uma risada forçada.
— Se escreveres... tens de contar à Kriss.
— Tens razão.
Ele não explicou se isso significava que iria contar-lhe ou se
simplesmente não escreveria, mas, naquele momento, eu não queria saber.
Não podia acreditar que tudo aquilo estava a acontecer por causa de
um livro idiota.
Soltei uma exclamação e abri os olhos. Um livro!
— Maxon, e se os rebeldes Nortistas andarem à procura dos diários?
Ele moveu-se um pouco, ainda não completamente atento.
— O que queres dizer?
— Naquele dia, quando vieram atrás de mim no jardim, vi-os quando
passaram por mim. Uma rapariga deixou cair uma sacola cheia de livros. O
tipo que estava com ela também tinha um monte deles. Estão a roubar
livros. E se andarem à procura de um livro específico?
O Maxon abriu os olhos e franziu a testa, pensativo.
— America... o que é que havia exatamente naquele diário?
— Muita coisa. Falava sobre como o Gregory roubou basicamente o
país, como impôs as castas ao povo. Era horrível, Maxon.
— Mas o Noticiário foi interrompido — insistiu ele. — Mesmo que
isso seja o que eles procuram, não têm forma de saber que era aquilo ou do
que trata. Acredita em mim, depois da tua apresentação, o meu pai vai
garantir que os diários ficam mais protegidos do que o habitual.
— Mas é isso — disse eu, tapando a cara para esconder um bocejo. —
Eu sei.
— Para — disse ele. — Não te preocupes com isso. Tanto quanto
sabemos, eles apenas gostam muito de ler.
Gemi perante a sua tentativa de humor.
— Eu pensava sinceramente que não poderia piorar ainda mais as
coisas.
— Chiu — disse ele, aproximando-se mais de mim. Os seus braços
fortes trouxeram-me de volta à terra. — Não te preocupes agora. Talvez
fosse melhor dormires.
— Mas eu não quero — sussurrei, embora me aconchegasse mais
contra ele.
O Maxon fechou novamente os olhos, ainda abraçado a mim.
— Eu também não. Mesmo num dia bom, dormir deixa-me nervoso.
Senti uma pontada no coração. Não conseguia imaginar o seu estado
constante de preocupação, principalmente se pensasse que quem o mantinha
nessa ansiedade era o seu próprio pai.
Ele largou a minha mão e procurou algo no bolso. Entreabri os olhos,
mas ele mantinha os dele fechados. Estávamos ambos quase a dormir. Ele
agarrou de novo na minha mão e começou a atar algo no meu pulso.
Reconheci a sensação da pulseira que ele me trouxera da Nova Ásia assim
que ela me tocou na pele.
— Tenho andado com ela no bolso. Sou um romântico miserável, não
achas? Ia guardá-la, mas quero que tenhas algo meu.
Ele colocara a pulseira por cima da do Aspen e senti o botão fazer
pressão contra a minha pele.
— Obrigada. Faz-me sentir feliz.
— Então, eu também fico feliz.
Não dissemos mais nada.
Capítulo 30

O som da porta a ranger acordou-me e a luz que invadia o abrigo era


tão intensa que tive de tapar os olhos.
— Vossa Majestade? — perguntou alguém. — Oh, meu Deus!
Encontrei-o!— gritou a pessoa. — Está vivo!
Uma onda de guardas e mordomos varreu o nosso abrigo, agitando-se
à nossa volta.
— Não conseguiu descer ao piso de baixo, Vossa Majestade? —
perguntou um dos guardas. Olhei para o seu nome: Markson. Não tinha a
certeza, mas parecia ser um dos soldados de patente mais alta.
— Não. Pedi a um soldado que avisasse os meus pais. Disse-lhe que
fizesse isso primeiro — explicou o Maxon, enquanto tentava ajeitar o
cabelo. Apenas uma vez foi visível na sua face que o gesto o magoava.
— Qual soldado?
O Maxon suspirou.
— Não sei o nome dele. — Olhou para mim, em busca de con‐
firmação.
— Eu também não. Mas ele usava um anel no polegar. Era cinzento,
de peltre ou algo parecido.
O Soldado Markson assentiu com cabeça.
Era o Tanner. Não sobreviveu. Perdemos cerca de vinte e cinco
guardas e doze criados.
— O quê? — Levei a mão à boca.
O Aspen.
Rezei para que estivesse em segurança. Estivera tão absorta na noite
anterior que nem pensara em me preocupar.
— E os meus pais? E as outras raparigas da Elite?
— Estão todos bem, senhor. Mas a sua mãe está num estado histérico.
— Ela já saiu do abrigo? — perguntou o Maxon, conduzindo-nos para
fora.
— Todos saíram, já. Falhámos alguns dos abrigos pequenos e es‐
távamos a fazer uma segunda inspeção na esperança de o encontrar e à Lady
America.
— Meu Deus! — disse o Maxon. — Vou já ter com ela.
Mas então estacou, imóvel. Segui o seu olhar e vi a destruição. Na
parede estava rabiscada a mesma frase da última vez.

ESTAMOS A CHEGAR

As paredes estavam cobertas com o aviso, vezes sem conta e de todas


as formas possíveis. Para além disso, o nível de destruição era mais uma
vez enorme. Eu nunca conseguira ver o que os rebeldes faziam no primeiro
andar, apenas conhecia os estragos no corredor próximo do meu quarto.
Manchas enormes no tapete anunciavam o local onde alguém, talvez uma
criada indefesa ou um guarda corajoso, tinha morrido. As janelas estavam
estilhaçadas, deixando apenas cacos de vidro à mostra.
Havia lâmpadas partidas, algumas delas a piscar como se se
recusassem a desistir. As paredes apresentavam perfurações assustadoras, o
que me fez pensar se eles teriam visto as pessoas a entrar nos abrigos e se
teriam andado à caça. Quão perto da morte é que o Maxon e eu estivéramos
na noite anterior?
— Menina? — chamou-me um guarda, fazendo-me regressar ao
presente. — Tomámos a liberdade de contactar todas as famílias. Parece
que o ataque à família de Lady Natalie foi uma tentativa direta de acabar
com a Seleção. Estão a atacar as vossas famílias para vos forçar a sair.
— Não! — exclamei, levando a mão à boca.
— Já estamos a enviar guardas do palácio para os proteger. O rei faz
questão de que nenhuma das jovens se vá embora.
— E se elas quiserem? — desafiou o Maxon. — Não podemos
prendê-las aqui contra a sua vontade.
— Claro, senhor. É melhor falar com o rei a esse respeito — replicou
o guarda, parecendo constrangido e sem saber bem como lidar com as
diferenças de opinião.
— Não será preciso proteger a minha família por muito tempo —
disse eu, na esperança de avaliar um pouco a tensão. — Diga-lhes que em
breve regressarei a casa.
— Sim, menina — respondeu o guarda, com uma vénia.
— A minha mãe está no quarto? — interrompeu o Maxon.
— Sim, senhor.
— Diga-lhe que vou vê-la. Está dispensado.
Ficámos novamente sozinhos.
O Maxon pegou-me na mão.
— Não tenhas pressa. Diz adeus às tuas aias e às outras raparigas, se
quiseres. E come qualquer coisa. Sei que adoras a comida.
Sorri.
— Está bem.
O Maxon humedeceu os lábios, quase agitado. Este era o momento.
Era o adeus.
— Tu transformaste-me para sempre. Nunca te esquecerei.
Fiz deslizar a minha mão livre pelo seu peito, ajeitando-lhe o casaco.
— Não mexas na orelha com mais ninguém. Isso é meu — disse-lhe,
oferecendo-lhe um sorriso tenso.
— Muitas coisas são só tuas, America.
Engoli em seco.
— Tenho de ir.
Ele fez que sim com a cabeça.
O Maxon deu-me rapidamente um beijo nos lábios e depois correu
pelo corredor. Fiquei a olhar para ele até deixar de o ver e depois dirigi-me
para o meu quarto.
Cada degrau da escadaria principal era uma tortura, tanto por aquilo
que acabava de deixar como pelo que temia encontrar. E se eu tocasse a
campainha e a Lucy não aparecesse? Ou a Mary? Ou a Anne? E se eu
olhasse para cada guarda que encontrasse e nenhum deles fosse o Aspen?
Cheguei ao segundo andar, encontrando destruição por toda a parte.
Mesmo em ruínas, ainda era possível reconhecer o lugar mais belo que já
vira na vida. Mas o tempo e o dinheiro necessários para restaurar tudo isto
estavam além do que conseguia imaginar. Os rebeldes tinham sido
exaustivos. Assim que me aproximei do meu quarto, ouvi o som nítido de
alguém a chorar. A Lucy.
Soltei um suspiro, feliz por ela estar viva, mas aterrorizada pelo que a
fazia chorar. Preparei-me mentalmente e contornei a esquina em direção ao
meu quarto.
Com os rostos vermelhos e os olhos inchados, a Mary e a Anne
recolhiam os cacos de vidro das portas da minha varanda. Observei a Mary
fazer uma pausa para respirar fundo e acalmar-se. Num canto, a Lucy
chorava nos braços do Aspen.
— Pronto... — disse ele, confortando-a. — Eles vão encontrá-la. Eu
sei que vão.
Fiquei tão aliviada que me desfiz em lágrimas.
— Vocês estão bem. Estão todos bem.
O Aspen soltou um enorme suspiro de alívio e os seus ombros tensos
descontraíram.
— Menina? — disse a Lucy e, no instante seguinte, correu para mim.
Logo atrás vieram a Mary e a Anne, envolvendo-me num abraço.
— Oh, isto não é correto — disse a Anne, enquanto me abraçava.
— Por amor de Deus, deixa lá isso — retorquiu a Mary.
E rimo-nos, felizes por estarmos sãs e salvas.
Atrás delas estava o Aspen, de pé, a observar-me com um sorriso
discreto, obviamente grato por me ver ali.
— Onde é que esteve? Eles procuraram por todo o lado — disse a
Mary, conduzindo-me até à cama para me sentar, embora esta estivesse
numa confusão terrível com o edredão retalhado e as almofadas
esfaqueadas e a largar penas.
— Estava num dos abrigos que eles não verificaram. O Maxon
também está bem — disse.
— Graças a Deus — disse a Anne.
— Ele salvou-me a vida. Eu estava a caminho do jardim quando os
rebeldes chegaram. Se eu estivesse do lado de fora...
— Oh, menina! — exclamou a Mary.
— Não se preocupe com nada — disse a Anne. — Vamos arrumar
este quarto num instante e, assim que estiver pronta, temos um vestido novo
e fantástico. E podemos...
— Não será preciso. Volto hoje para casa. Vou vestir uma roupa
simples e partirei daqui a poucas horas.
— O quê? — balbuciou a Mary. — Mas porquê?
Encolhi os ombros e respondi:
— Não deu certo.
Olhei para o Aspen, mas não consegui interpretar a sua expressão. Só
conseguia ver alívio por eu estar viva.
— Eu pensava mesmo que seria a menina — disse a Lucy. — Desde o
início. E depois de tudo o que disse na noite passada... Não posso acreditar
que vai voltar para casa.
— É muito gentil da sua parte, mas eu vou ficar bem. De agora em
diante, por favor, se houver alguma coisa que possam fazer para a ajudar a
Kriss, por favor façam-na. Por mim.
— Claro — disse a Anne.
— Qualquer coisa por si — reafirmou a Mary.
O Aspen tossicou.
— Senhoras, será que poderiam dar-me um instante? Se a Lady
America parte hoje, preciso de rever algumas medidas de segurança. Não
chegámos até aqui para deixar que alguém lhe faça mal agora. Anne, talvez
possa ir buscar umas toalhas limpas e outras coisas. Ela tem de voltar para
casa como uma lady. Mary, um pouco de comida?
Ambas assentiram.
— E Lucy, você precisa de descansar?
— Não! — gritou ela, endireitando-se. — Posso trabalhar.
O Aspen sorriu.
— Muito bem.
— Lucy, vai até ao atelier e acaba o vestido. Já lá vamos ajudar. Não
me importa o que digam, Lady America. A sua partida vai ser em grande
estilo — disse a Anne, virando-se para mim no final.
— Sim, senhora — respondi. Elas saíram e fecharam a porta. O Aspen
aproximou-se e eu levantei-me para o encarar.
— Pensei que estavas morta. Pensei que te tinha perdido.
— Não hoje — disse eu, com um sorriso débil. Agora que vira o quão
mal as coisas estavam, a única forma de manter a calma era brincando com
o assunto.
— Recebi a tua carta. Não acredito que não me contaste sobre o
diário.
— Não podia.
Ele aproximou-se ainda mais e passou a mão pelo meu cabelo.
— Mer, se não podias mostrar-mo, não deverias ter tentado mostrá-lo
ao país inteiro. E a história das castas... Tu és doida, sabias?
— Oh, eu sei. — Olhei para o chão, recordando toda a loucura do dia
anterior.
— Então, o Maxon expulsou-te por causa disso?
Suspirei.
— Não foi bem assim. Foi o rei que me mandou para casa. Mesmo
que o Maxon me pedisse em casamento neste exato segundo, não adiantaria
nada. O rei disse que não e portanto vou-me embora.
— Oh... — disse ele simplesmente. — Isto vai ser estranho sem ti.
— Eu sei — respondi, com um suspiro.
— Eu escrevo-te — prometeu ele rapidamente. — E posso mandar-te
dinheiro se quiseres. Tenho bastante. Podemos casar-nos assim que eu
voltar para casa. Sei que ainda vai demorar algum tempo...
— Aspen... — disse eu, interrompendo-o. Não sabia como lhe
explicar que o meu coração acabara de ser esmagado. — Quando eu sair,
vou querer um pouco de paz, está bem? Preciso de me recuperar de tudo
isto.
Ele deu um passo atrás, ofendido.
— Então, o quê? Não queres que eu escreva nem ligue?
— Talvez não logo no início — disse eu, tentando não dar muita
importância. — Só quero passar algum tempo com a minha família e voltar
a pôr os pés no chão. Afinal, depois de tudo o que passei aqui, não posso...
— Espera — disse ele, levantando a mão. Ficou em silêncio por um
momento, tentando interpretar a minha expressão. — Tu ainda o queres —
acusou ele. — Depois de tudo o que ele fez, depois da Marlee e mesmo
quando já não há qualquer esperança, tu ainda pensas nele.
— Ele não fez nada disso, Aspen. Gostaria de poder explicar-te o que
aconteceu com a Marlee, mas dei a minha palavra. Não tenho qualquer
ressentimento contra o Maxon. E eu sei que acabou, mas é como quando tu
terminaste comigo.
O Aspen soltou uma risada irónica, incrédulo, atirando a cabeça para
trás como se não pudesse acreditar no que ouvia.
— Estou a falar a sério. Quando tu terminaste comigo, a Seleção
tornou-se a minha tábua de salvação, porque sabia que pelo menos teria
algum tempo para ultrapassar o que sentia por ti. E então, tu apareceste aqui
e alteraste tudo. Foste tu quem mudou a nossa relação quando me deixaste
na casa da árvore; e continuas a pensar que, se insistires o suficiente, podes
fazer com que tudo volte a ser como dantes. Não é assim que funciona. Dá-
me uma oportunidade para te escolher.
Assim que as palavras saíram da minha boca, tive a certeza de que
explicavam boa parte do que estava errado. Eu amara o Aspen durante tanto
tempo que presumíramos uma série de coisas. Mas era tudo diferente agora.
Já não éramos dois zés-ninguém de Carolina; tínhamos visto demasiadas
coisas para fingir que poderíamos voltar, simplesmente, a ser aquelas
pessoas de novo.
— Porque é que não me escolherias, Mer? Não sou a tua única opção?
— perguntou ele, com a voz embargada de tristeza.
— Sim. E isso não te incomoda? Não quero ser a rapariga com quem
ficas porque a minha outra opção não está disponível e tu nunca olhaste
para mais ninguém. Queres mesmo ficar comigo assim, por defeito?
Ele falou com intensidade:
— Não me importa como fico contigo, Mer.
De repente, lançou-se sobre mim e tomou o meu rosto nas mãos,
beijando-me com ferocidade e forçando-me a recordar o que significava
para mim.
Não consegui retribuir o beijo.
Quando finalmente desistiu, ele inclinou a minha cabeça para trás,
tentando ler a minha expressão.
— O que está a acontecer aqui, America?
— O meu coração está despedaçado! É isso o que está a acontecer!
Como é que achas que me sinto? Estou tão confusa neste momento e tu és a
única coisa que me restou e não me amas o suficiente para me deixares
respirar.
Comecei a chorar e ele acalmou-se finalmente.
— Desculpa, Mer — murmurou. — É que eu estou sempre a pensar
que te perdi por algum motivo e o meu instinto é lutar por ti. É tudo o que
sei fazer.
Olhei para o chão, enquanto tentava recompor-me.
— Eu posso esperar — assegurou ele. — Quando estiveres pronta,
escreve-me. Amo-te o suficiente para te deixar respirar. Depois da noite
passada, é tudo o que preciso que faças. Por favor, respira.
Aproximei-me dele e deixei-o abraçar-me, mas era diferente. Achara
que sempre teria o Aspen na minha vida, mas pela primeira vez questionei-
me se isso era completamente verdade.
— Obrigada — sussurrei. — Mantém-te em segurança. Não sejas um
herói, Aspen. Cuida de ti.
Ele deu um passo atrás, assentindo com a cabeça, mas sem dizer nada.
Deu-me um beijo na testa e dirigiu-se para a porta.
Fiquei ali, em pé, durante bastante tempo, sem saber ao certo o que
fazer, à espera que as minhas aias voltassem e me arranjassem pela última
vez.
Capítulo 31

Ajeitei o meu vestido.


— Isto não é demasiado luxuoso para a ocasião?
— De modo nenhum! — insistiu a Mary.
Era fim de tarde, mas elas tinham-me posto num vestido de noite. Era
roxo e bastante majestoso. As mangas desciam até aos cotovelos, pois
estava mais frio em Carolina, e eu levava também no braço uma capa
comprida com capuz, para quando saísse do avião. Uma gola subida
protegia-me o pescoço de qualquer aragem e elas prenderam-me o cabelo
de uma maneira tão elegante que tive a certeza de nunca antes ter estado tão
bonita no palácio. Desejava poder ver a Rainha Amberly, convencida de
que até ela ficaria impressionada.
— Não quero demorar mais — insisti. — Já é bastante difícil sair
assim. Quero apenas que vocês as três saibam que estou imensamente grata
por tudo o que fizeram por mim. Não apenas por me manterem limpa e por
me vestirem, mas por me fazerem companhia e por se preocuparem. Nunca
as esquecerei.
— E nós lembrar-nos-emos sempre de si, menina — prometeu a
Anne.
Assenti com a cabeça e comecei a abanar o ar diante do meu rosto.
— Pronto, pronto, já chega de lágrimas por um dia. Por favor, digam
ao motorista que desço já. Só preciso de mais um momento.
— Claro, menina.
— Ainda é incorreto da nossa parte abraçarmo-nos? — perguntou a
Mary, olhando para mim e depois para a Anne.
— Quero lá saber! — disse ela, e as três juntaram-se à minha volta
pela última vez.
— Tenham cuidado com vocês.
— A menina, também — disse a Mary.
— Foi sempre uma lady — acrescentou a Anne.
Elas afastaram-se, mas a Lucy continuou abraçada a mim.
— Obrigada — disse ela num sussurro, e eu percebi que estava a
chorar. — Vou sentir a sua falta.
— Eu também.
Ela largou-me e as três aproximaram-se da porta todas juntas.
Fizeram-me uma última reverência e eu disse-lhes adeus com a mão. Então,
saíram.
Eu desejara tantas vezes partir nas últimas semanas. Mas agora que o
momento se aproximava, daí a poucos segundos, temia-o. Fui até à varanda
e olhei para os jardins. Vi o banco, o local onde o Maxon e eu nos
conhecêramos. Não sabia porque, mas suspeitara de que ele estaria ali.
Mas não estava. Tinha coisas mais importantes a fazer do que ficar
sentado a pensar em mim. Toquei na pulseira no meu pulso. Mas ele iria
pensar em mim, de vez em quando, e isso consolava-me.
Independentemente de tudo o resto, isto era real.
Recuei, fechei e porta e dirigi-me para o corredor. Caminhava
devagar, contemplando a beleza do palácio pela última vez, ainda que esta
estivesse um pouco danificada, com espelhos partidos e as molduras
lascadas.
Lembrava-me de descer a escadaria principal pela primeira vez,
sentindo-me confusa e grata ao mesmo tempo. Na altura, havia ainda tantas
raparigas.
Quando cheguei às portas da frente, fiz uma pausa, por um instante.
Habituara-me de tal modo a estar atrás daqueles enormes blocos de madeira
que quase me parecia errado passar por eles.
Respirei fundo e agarrei na maçaneta.
— America?
Virei-me. O Maxon estava de pé na outra ponta do corredor.
— Olá — disse eu, desajeitadamente. Não pensara que voltaria a vê-
lo.
Ele aproximou-se rapidamente de mim.
— Estás absolutamente estonteante.
— Obrigada — agradeci, tocando o tecido do meu último vestido.
Fez-se silêncio entre nós, enquanto ficávamos ali parados, a olhar-nos.
Talvez isto fosse apenas isso: uma última hipótese de nos vermos.
De repente, ele aclarou a garganta, lembrando-se do que viera fazer.
— Falei com o meu pai.
— Ah?
— Sim. Ele ficou bastante contente por eu não ter morrido na noite
passada. Como já deves ter adivinhado, a perpetuação da linhagem real é
muito importante para ele. Expliquei-lhe que quase morri por causa do seu
temperamento e disse que foste tu quem nos encontrou um abrigo.
— Mas eu não...
— Eu sei. Mas ele não precisa de saber.
Sorri.
— Depois, disse-lhe que te chamei a atenção sobre alguns dos teus
comportamentos. Mais uma vez, ele não precisa de saber que isso não é
verdade, mas tu poderias agir como se fosse, se quisesses.
Não percebi porque precisaria de agir como se tivesse acontecido
alguma coisa, já que iria estar do outro lado do país, mas concordei.
— Tendo em vista que, tanto quanto ele sabe, te devo a vida, o meu
pai reconheceu que o meu desejo de te manter aqui pode ser em parte
justificado, desde que te comportes o melhor possível e aprendas qual é o
teu lugar.
Fiquei especada a olhar para ele, ainda sem ter a certeza de estar a
ouvir bem.
— Na verdade, o mais correto é deixar a Natalie partir. Ela não nasceu
para isto e, agora que a sua família está de luto, o melhor lugar para ela é
em casa. Já conversámos.
Eu continuava estupefacta.
— Queres que eu explique?
— Por favor.
O Maxon pegou-me na mão.
— Tu ficarias aqui enquanto membro da Seleção e continuarias na
competição, mas as coisas seriam diferentes. O meu pai vai provavelmente
ser mais ríspido contigo e vai fazer os possíveis para te prejudicar. Acho
que isso pode ser combatido, mas levará tempo. Sabes como ele é
implacável. Tens de te preparar.
Assenti com a cabeça.
— Acho que consigo fazer isso.
— Há mais. — O Maxon olhou para o tapete, tentando organizar as
ideias. — America, não existe nenhuma dúvida de que conquistaste o meu
coração desde o início. Já deves saber isso a esta altura.
Quando ele me olhou nos olhos, pude ver em cada pedaço dele e
sentir em cada pedaço de mim que aquilo era verdade.
— Eu sei.
— Mas o que não tens neste momento é a minha confiança.
Fiquei estarrecida.
— O quê?
— Mostrei-te muitos segredos meus e defendi-te de todos os modos
possíveis, mas quando não estás contente comigo, ages de modo
irresponsável. Excluis-me, culpas-me ou, ainda pior, tentas mudar o país
inteiro.
Ui. Esta foi bastante forte.
— Preciso de saber que posso confiar em ti. Preciso de saber que és
capaz de guardar os meus segredos, de confiar no meu raciocínio e não me
esconder coisas. Preciso que sejas completamente honesta comigo e que
pares de questionar cada uma das minhas decisões. Preciso que tenhas fé
em mim, America.
Magoava-me ouvir tudo aquilo, mas ele tinha razão. O que é que eu
fizera para provar que ele podia confiar em mim? Todos à sua volta o
pressionavam ou o empurravam para alguma coisa. Será que eu não poderia
ficar simplesmente ao seu lado?
Torci as mãos.
— Eu tenho fé em ti. E espero que vejas que quero ficar contigo. Mas
tu também poderias ter sido mais honesto comigo.
Ele assentiu com a cabeça.
— Talvez. E há coisas que quero contar-te, mas muitas das coisas que
sei são de uma natureza tal que não posso revelá-las caso exista a mínima
probabilidade de não conseguires guardar segredo. Preciso de saber que és
capaz de fazer isso. E preciso que sejas completamente franca comigo.
Respirei fundo, preparando-me para responder, mas acabei por não o
fazer.
— Maxon, ah, está aí — chamou a Kriss, aparecendo no corredor. —
Não tive oportunidade de lhe perguntar antes se o jantar de hoje ainda está
de pé.
O Maxon olhou para mim enquanto respondia:
— Claro. Jantaremos no seu quarto.
— Ótimo!
Aquilo doeu.
— America? Vais mesmo embora? — perguntou ela, aproximando-se
de nós.
Eu podia ver um brilho de esperança nos olhos dela. Olhei para o
Maxon, cujo rosto parecia dizer: É disto que estou a falar. Preciso que
aceites as consequências dos teus atos, que confies em mim para fazer as
minhas próprias escolhas.
— Não, Kriss, não hoje.
— Que bom. — Ela suspirou e deu-me um abraço. Perguntei-me
quanto daquele abraço era pelo Maxon, mas na realidade não importava. A
Kriss era a minha concorrente mais difícil, mas era também a amiga mais
próxima que eu tinha no palácio. — Fiquei muito preocupada contigo na
noite passada. Estou contente por estares bem.
— Obrigada, tive sorte por... — Estive quase a dizer que tivera sorte
por ter a companhia do Maxon, mas gabar-me teria provavelmente
arruinado a pouca confiança que construíra nos últimos dez segundos. Tossi
e completei:
— Tive sorte por os guardas terem chegado lá tão depressa.
— Graças a Deus. Bom, vejo-te mais tarde. — Ela virou-se para o
Maxon. — E vejo-o logo à noite.
A Kriss afastou-se, quase deslizando pelo corredor, mais alegre do que
alguma vez a vira. Acho que, se visse o homem que amava a colocar-me
acima da sua antiga favorita, também deslizaria.
— Sei que isto não te agrada, mas preciso dela. Se tu me desiludires,
ela é a minha melhor aposta.
— Não importa — disse eu, encolhendo os ombros. — Não vou
desiludir-te.
Dei-lhe um beijo rápido na face e subi as escadas sem olhar para trás.
Poucas horas antes, pensava que perdera o Maxon para sempre, mas agora
que sabia o que ele significava para mim, lutaria por ele. As outras não
sabiam o que as esperava.
Enquanto subia a escadaria principal, senti-me cheia de coragem.
Talvez devesse ter ficado mais preocupada com o desafio que iria ter de
enfrentar, mas só conseguia pensar em como acabaria por ultrapassar tudo.
Talvez o rei tenha sentido a minha alegria, ou talvez já estivesse à
minha espera, mas quando cheguei ao segundo andar, ele estava ali, a meio
do corredor.
Aproximou-se devagar, numa clara demonstração de controlo.
Quando parou à minha frente, fiz uma reverência.
— Vossa Majestade... — disse.
— Lady America, parece que ainda está connosco.
— Parece que sim.
Um grupo de guardas passou por nós, fazendo uma vénia antes de
prosseguirem.
— Vamos falar de negócios — disse ele, em tom severo. — O que
acha da minha esposa?
Franzi a testa, surpreendida com o rumo da conversa. Contudo,
respondi com sinceridade:
— Acho a rainha incrível. Não tenho palavras para descrever como é
maravilhosa.
Ele fez um gesto de concordância.
— É uma mulher rara. Bela, evidentemente, e também humilde.
Tímida, mas não a ponto de ser covarde. Obediente, bem-humorada e uma
excelente conversadora. Parece que, mesmo tendo nascido na pobreza, foi
feita para ser rainha.
Fez uma pausa e olhou para mim, reparando no meu ar de espanto.
— O mesmo não se pode dizer de si.
Tentei permanecer calma enquanto ele continuava:
— O seu aspeto é mediano. Ruiva, um pouco pálida e com uma
silhueta decente, acho, mas não é nada comparada com a Celeste. Quanto
ao seu temperamento... — Inspirou profundamente. — É rude,
engraçadinha e a única vez em que faz algo de sério desfaz a estrutura da
nossa nação. Completamente inconsequente. E isso sem contar com a sua
postura e andar medíocres. A Kriss é bastante mais bonita e agradável.
Apertei os lábios, forçando-me a não chorar. Recordei-me que já sabia
de tudo isto.
— E, claro, não há qualquer vantagem política em tê-la na família. A
sua casta não é suficientemente baixa para servir de inspiração e os seus
contactos são simplesmente inexistentes. A Elise, contudo, foi muito útil na
nossa viagem à Nova Ásia.
Perguntei-me como é que aquilo poderia ser verdade se eles nem
sequer tinham contactado com a família dela. Talvez se passasse algo que
eu não sabia ou talvez ele estivesse a exagerar para me fazer sentir mal. Se
o objetivo era esse, estava a fazer um excelente trabalho.
Os seus olhos frios cravaram-se nos meus.
— O que está a fazer aqui?
Engoli em seco.
— Acho que deve perguntar ao Maxon.
— Estou a perguntar-lhe a si.
— Ele quer que eu fique — respondi com firmeza. — E eu quero estar
aqui. Enquanto esses dois desejos forem verdadeiros, ficarei.
O rei forçou um sorriso.
— Quantos anos tem? Dezasseis? Dezassete?
— Dezassete.
— Suponho que não saiba muito sobre homens, como é de esperar, já
que está aqui. Deixe-me dizer-lhe que eles podem ser bastante volúveis.
Talvez não deva agarrar-se demasiado ao seu afeto por ele, já que basta um
único instante para que o coração dele seja levado para sempre.
Semicerrei os olhos, sem perceber bem o que ele queria dizer.
— Tenho olhos por todo o palácio. Sei que há raparigas a oferecer-lhe
mais do que você possa imaginar. Acha que alguém tão simplório como
você tem alguma hipótese perto delas?
Raparigas? No plural? Será que ele estava a dizer que havia mais do
que aquilo que eu vira no corredor entre o Maxon e a Celeste? Teriam as
horas que passáramos a beijar-nos ontem à noite sido demasiado deslavadas
perto do resto que ele andava a experimentar?
O Maxon dissera-me que queria ser sincero comigo. Será que estava a
manter isto em segredo?
Eu tinha de decidir no meu coração que confiava nele.
— Se isso for verdade, o Maxon mandar-me-á embora quando achar
que deve e o senhor não tem nada com que se preocupar.
— Mas eu preocupo-me! — berrou ele. Depois, baixou a voz. — Se,
por algum ato de estupidez, o Maxon acabar por escolhê-la, as suas proezas
podem custar-nos tudo. Décadas, gerações de trabalho arruinadas porque
você achou que era uma heroína!
Ele aproximou-se tanto que tive de dar um passo atrás, mas ele
aproximou-se outra vez, não deixando quase nenhum espaço entre nós. A
sua voz era baixa e áspera, muito mais assustadora do que os seus gritos.
— Vai ter de aprender a morder a língua. Caso contrário, seremos
inimigos. E, acredite, não vai querer ser minha inimiga.
O seu dedo enfurecido estava apontado à minha bochecha. Ele podia
desfazer-me naquele instante. Mesmo que houvesse alguém por perto, o que
fariam? Ninguém iria proteger-me do rei.
Tentei soar calma.
— Compreendo.
— Excelente — disse ele, tornando-se de repente alegre. — Vou então
deixá-la desfazer as malas. Boa tarde.
Fiquei ali, só reparando que estava a tremer quando ele se afastou.
Quando ele disse para eu morder a língua, presumi que isso significava nem
sequer pensar em contar ao Maxon o que se passara. Portanto, por agora,
não iria contar. Apostava que se tratava de um teste para ver até onde
poderia pressionar-me. Decidi ser inquebrável.
E enquanto pensava nisso, algo mudou dentro de mim. Estava
nervosa, sim, mas estava também furiosa.
Quem era aquele homem para me dar ordens? Sim, era o rei; mas, na
realidade, era apenas um tirano. De alguma forma, convencera-se de que, se
mantivesse todos à sua volta oprimidos e calados, estava a fazer-nos um
favor. Como poderia ser uma bênção viver num canto da sociedade? Como
poderia ser bom haver limites para todos em Illéa, menos para ele?
Pensei no Maxon a esconder a Marlee nas profundezas da cozinha.
Mesmo que não ficasse ali por muito tempo, sabia que ele faria um trabalho
melhor do que o seu pai. O Maxon, pelo menos, era capaz de sentir
compaixão.
Continuei a respirar devagar e, assim que me recompus, prossegui o
meu caminho.
Entrei no meu quarto e apressei-me a carregar no botão para chamar
as minhas aias. Mais depressa do que eu poderia imaginar, a Anne, a Mary e
a Lucy entraram a correr no meu quarto, sem fôlego.
— Menina? — disse a Anne. — Há algum problema?
Sorri.
— Não. A não ser que eu ficar seja um problema.
A Lucy soltou um gritinho:
— A sério?
— Sim, mesmo.
— Mas como? — perguntou a Anne. — Pensei que tinha dito...
— Eu sei, eu sei. É difícil de explicar. Apenas posso dizer que me
deram uma segunda oportunidade. O Maxon é importante para mim e vou
lutar por ele.
— Isso é tão romântico! — exclamou a Mary, enquanto a Lucy
começava a bater palmas.
— Chiu, chiu! — intimou a Anne, em tom severo.
Pensei que ela ficaria entusiasmada e não entendi a sua seriedade
repentina.
— Se ela vai ganhar, precisamos de um plano.
Ela fez um sorriso diabólico e eu sorri também. Nunca conhecera
pessoas tão organizadas como estas raparigas. Com elas ao meu lado, era
impossível perder.
Agradecimentos

Olá, cara leitora atrevida. Muito obrigada por ler o meu livro! Espero
que tenha ficado tão entusiasmada que deu por si a mandar tweets às 3h00
da manhã. Foi o que aconteceu comigo.
Para o Callaway, o marido mais adorável que uma mulher pode ter.
Obrigada pelo teu apoio e pelo orgulho que sentes por aquilo que faço.
Tornas tudo muito melhor. Amo-te.
Ao Guyden e à Zuzu, a mamã adora-vos aos montes! Sou louca pelas
histórias que escrevo, mas vocês serão sempre as melhores coisas que já fiz.
À minha mãe, ao meu pai e à Jody, obrigada por serem a família mais
estranha possível e por me amarem tal como sou.
A Mimi, Papa e Chris, obrigada pelo vosso carinho e apoio e por se
manterem tão entusiasmados o tempo todo.
Ao resto da minha família — são demasiados nomes para pensar
sequer em escrevê-los todos — obrigada! Sei que, onde quer que estejam,
estão sempre a gabar-se da vossa sobrinha/neta/prima que escreve livros e
significa muito para mim saber que me apoiam sempre.
À Elana, obrigada por praticamente tudo neste planeta. Isto não teria
acontecido sem ti *abraço desajeitado*.
À Erica, obrigada por me deixares telefonar-te um zilião de vezes, por
sentires tanto entusiasmo quanto eu por esta história e por seres
simplesmente fantástica, em geral.
À Kathleen, obrigada por arranjares maneira de as pessoas no Brasil,
na China, na Indonésia e onde quer que seja poderem também ler estes
livros! Ainda mal posso crer.
Ao grupo da HarperTeen, vocês são infinitamente maravilhosos e
adoro-vos.
A FTW *atira um presunto em celebração*.
À Northstar, obrigada por serem a casa da família Cass.
À Athena, à Rebeca e ao grupo de Christiansburg Panera, por me
fazerem um chocolate quente fantástico e por agirem de modo embaraçoso
atrás de mim, enquanto eu respondia a entrevistas pelo telefone. Obrigada!
À Jessica e à Monica basicamente porque uma promessa é uma
promessa e vocês fazem-me rir.
A si, por apoiar a America (e a mim) enquanto tudo isto se desenrola.
Além disso, vocês são demais.
A Deus, pela misericórdia que é escrever. Sem isso, estaria perdida.
Às sestas que é para onde vou agora. E aos bolos, só porque sim.

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