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ALBERT CAMUS [An

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mesma forma, sentia um cansaço obscuro. Tinha pressa em realizar o
seu projeto de comprar uma casa pequena entre o mar e a montanha,
no Chénoua, a alguns quilômetros das ruínas de Tipasa. Na chegada a
Argel, armara o cenário exterior de sua vida. Ele havia adquirido
importante representação de produtos farmacêuticos alemães e
colocara à testa do negócio um empregado que contratara,
justificando, assim, suas ausências de Argel e a vida independente
que levava. O negócio, aliás, funcionava razoavelmente, e ele
subvencionava os déficits ocasionais, rendendo, sem remorso, esse
tributo à sua liberdade profunda. Na verdade, basta apresentar ao
mundo uma aparência que ele possa compreender. A preguiça e a
covardia encarregam-se do resto. A independência ganha-se com
algumas palavras baratas de confidência. Em seguida, Mersault
ocupou-se do destino de Lucienne.
Ela não tinha parentes, vivia só, era secretária numa firma de
carvão, alimentava-se de frutas e fazia ginástica. Mersault
emprestou-lhe alguns livros. Ela os devolveu, sem nada dizer. As suas
perguntas, respondia sempre: “Sim, é bom” ou, ainda: “E um pouco
triste.” No dia em que resolveu deixar Argel, ele lhe propôs viverem
juntos, desde que ela morasse em Argel, sem trabalhar, e que se
encontrassem quando ele tivesse necessidade dela. Disse isso com
convicção suficiente para que Lucienne nada visse de humilhante, o
que, de fato, ocorreu. Muitas vezes, Lucienne entendia com o corpo o
que seu espírito não conseguia compreender. Ela aceitou. E Mersault
acrescentou:
— Se você insistir, posso prometer que me casarei com você.
Mas isso não me parece útil.
— Será como você quiser — disse Lucienne.
Uma semana depois, casaram-se e ele preparava-se para partir.
Nesse ínterim, Lucienne comprou um barco laranja para passear no
mar azul.
Com um golpe de volante, Mersault evitou uma galinha matinal.
Pensava na conversa que tivera com Catherine. Na véspera da
partida, deixara a Casa Diante do Mundo para passar uma noite
sozinho no hotel.
Era um início de tarde, e, como chovera pela manhã, toda a
baía mostrava-se como uma vidraça lavada, e o céu, como lençóis
limpos. Bem de frente, o cabo que terminava a curva da baía
desenhava-se com uma pureza maravilhosa, e, dourado por um raio
de sol, alongava-se no mar, como uma grande serpente de verão.
Patrice acabara de fechar as malas, e agora, com os braços apoiados
no parapeito da janela, olhava avidamente para esse novo
nascimento do mundo (2).
— Não compreendo por que você vai embora, se está feliz aqui
— dissera-lhe Catherine.
— Correria o risco de ser amado aqui, minha pequena
Catherine, e isso me impediria de ser feliz.

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Catherine, enroscada no sofá, com a cabeça um pouco baixa,
olhava para Patrice com o seu belo olhar sem fundo (3).
Sem se voltar, ele disse:
— Muitos homens complicam a sua existência e inventam
destinos para si mesmos. Comigo é muito simples. Veja...
Ele falava voltado para o mundo, e Catherine sentia-se
esquecida. Olhava para os dedos longos de Patrice, pendendo na
extremidade do antebraço dobrado de encontro ao batente, sua
maneira de apoiar o corpo num só lado dos quadris e o olhar perdido
que ela adivinhava sem se dar conta.
— O que eu gostaria... — diz ela (4), mas calou-se e olhou para
Patrice.
Pequenas velas começavam a ganhar o mar, aproveitando a
calmaria. Abordavam o canal, enchiam-no com o seu bater de asas, e,
de repente, iniciavam sua corrida ao largo, com um rastro de ar e de
água que desabrochava em longos tremores espumantes. De sua
posição, e à medida que avançavam no mar, Cathenne os via
elevarem-se à volta de Patrice como um vôo de pássaros brancos (5).
Ele pareceu sentir o seu silêncio e o seu olhar. Voltou-se, tomou-lhe
as mãos e puxou-a para si.
— Nunca renuncie, Catherine. Você tem tantas coisas dentro de
si, e a mais nobre de todas, a, noção de felicidade. Não espere
apenas a vida de um homem. E por isso que tantas mulheres se
enganam. Mas espere-a de si própria (6).
— Não me queixo, Mersault — diz Catherine suavemente,
apertando o ombro de Patrice (7). — Só uma coisa importa no
momento: cuide-se bem.
Ele sentiu, então, o quanto a sua certeza se prendia a pouca
coisa. Seu coração estava estranhamente seco (8).
— Você não deveria ter dito isso agora.
Pegou a mala e desceu, primeiramente, a escadaria íngreme, e,
depois, o caminho das oliveiras que levava às oliveiras. Nada
esperava mais por ele, a não ser o Chénoua (9), uma floresta de
ruínas e de absintos, um amor sem esperança nem desespero, com a
lembrança de uma vida de fel e de flores. Virou-se. Lá no alto,
Chaterine o via partir, sem um gesto.
Pouco menos de duas horas depois, Mersault viu o Chénoua.
Naquele momento, os últimos brilhos violeta da noite arrastavam-se
ainda pelas suas encostas, que mergulhavam no mar, enquanto o
pico iluminava-se de clarões vermelhos e amarelos. Havia como que
um arrebatamento vigoroso e maciço de terra, partindo das colinas
do Sahel que se perfilavam no horizonte, para desembocar nesse
enorme dorso de animal musculoso que mergulhava no mar de toda a
sua altura. A casa que Mersault comprara elevava-se nas últimas
escarpas, a uns cem metros do mar, que já se dourava de calor. Tinha
apenas um andar acima do térreo e, nesse andar, um só quarto com
suas dependências. Mas o quarto era amplo e dava para o jardim em

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