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MEU CAVALHEIRO ESPIÃO

Romance Histórico

O DUQUE DE STRATHMORE
BOOK IV

SASHA COTTMAN
EVELYN TORRE
Copyright © 2023 por Sasha Cottman

Cottman Data Services Pty Ltd

Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida de qualquer forma ou por
qualquer meio eletrônico ou mecânico, incluindo sistemas de armazenamento e
recuperação de informações, sem permissão escrita do autor, exceto para o uso
de citações breves em uma resenha de livro.
Contents

1. Capítulo Um
2. Capítulo Dois
3. Capítulo Três
4. Capítulo Quatro
5. Capítulo Cinco
6. Capítulo Seis
7. Capítulo Sete
8. Capítulo Oito
9. Capítulo Nove
10. Capítulo Dez
11. Capítulo Onze
12. Capítulo Doze
13. Capítulo Treze
14. Capítulo Quatorze
15. Capítulo Quinze
16. Capítulo Dezesseis
17. Capítulo Dezessete
18. Capítulo Dezoito
19. Capítulo Dezenove
20. Capítulo Vinte
21. Capítulo Vinte e Um
22. Capítulo Vinte e Dois
23. Capítulo Vinte e Três
24. Capítulo Vinte e Quatro
25. Capítulo Vinte e Cinco
26. Capítulo Vinte e Seis
27. Capítulo Vinte e Sete
28. Capítulo Vinte e Oito
29. Capítulo Vinte e Nove
30. Capítulo Trinta
31. Capítulo Trinta e Um
32. Capítulo Trinta e Dois
33. Capítulo Trinta e Três
34. Capítulo Trinta e Quatro
35. Capítulo Trinta e Cinco
36. Capítulo Trinta e Seis
37. Capítulo Trinta e Sete
38. Capítulo Trinta e Oito
39. Capítulo Trinta e Nove
40. Capítulo Quarenta
41. Capítulo Quarenta e Um
42. Capítulo Quarenta e Dois

Romances em português
Sobre o autor
Capítulo Um

G ibraltar, 1817

Hattie Wright respirou bem fundo, antes de soltar todo o ar devagar.


A longa queda lateral do navio até a água lá embaixo era uma
distância de partir o coração.
O que parecia uma ideia plausível há menos de um minuto ou
dois, agora revelava-se nada menos que loucura.
Ela se perguntou o quão dura a água seria quando enfim a
atingisse. Será que ela havia superestimado a própria força como
nadadora, e estava fadada a se afogar antes que pudesse voltar à
costa?
Pior de tudo, haveria tubarões à espreita nas profundezas
escuras abaixo?
Ela ergueu o olhar do verde-profundo da baía e olhou para a
pequena cidade de Gibraltar, a quatrocentos metros, do outro lado
da água. Logo estaria fora de vista, e o Blade of Orion estaria a
caminho da África.
Mais cedo naquela manhã, com o noivo segurando-a pela mão
com firmeza, Hattie fez a curta viagem até a prancha e entrou no
navio. O tempo todo seu coração batucava com ímpeto no peito.
Não. Não. Não.
Gibraltar era a última parada antes de embarcarem na longa
jornada pela costa oeste da África até seu destino, em Serra Leoa.
Quando os pais dela anunciaram a missão que fariam na África, ela
tentara convencer-se de que esse era seu destino. Os pais estavam
decididos nessa missão de levar a palavra de Deus ao povo de
Freetown; e ela, como uma filha obediente, deveria acompanhá-los.
O Pastor Peter Brown, seu recente noivo, era apenas outra parte do
grande plano. Uma que foi decidida em nome dela.
Ela esfregou o dedo pela linha profunda da carranca formada
logo acima de seu nariz. Ela era, por natureza, uma pessoa que se
preocupava com todo o tipo de coisa. A iminente jornada para a
África a deixou acordada por boa parte de todas as noites.
Muito antes de o navio ter deixado o Cais de Londres, uma
dúvida incômoda havia surgido e tomado conta de sua mente. De
verdade, era isso que ela queria para sua vida? Assim que ela se
casasse com o sisudo Peter, qualquer possibilidade de escolha
desapareceria. A vida dela estaria selada para sempre.
E o que dizer dos amigos que estava sendo forçada a
abandonar? Como ficariam sem ela?
Ela olhou para trás, para o convés do navio. Além da tripulação,
não havia ninguém mais ali. A mãe dela, sem dúvida, estaria
ocupada reorganizando a pequena cabine deles pela segunda vez
naquela manhã. Hattie conhecia bem a mãe. Há um lugar para tudo,
e tudo tem seu lugar.
O pai e Peter estariam engajados, e alheios ao mundo, em uma
de suas conversas intermináveis sobre como montariam o ministério
à beira da selva africana. Todos os dias desde a decisão por fazer a
viagem, eles passavam horas debruçados sobre a papelada e
planos de construção de uma nova igreja. A igreja em que ela e
Peter se casariam.
Todos estavam ocupados com suas próprias prioridades.
Ninguém viria procurá-la até que fosse demasiado tarde. Quando o
fizessem, ela já teria desaparecido há muito tempo.
Ela olhou mais uma vez para a água batendo na lateral do navio.
Logo, o Blade of Orion estaria longe do porto, e a oportunidade de
mudar de vida seria perdida. Ou ela aceitava o futuro como esposa
de um missionário ou pulava.
O vento frio agitou seus cabelos claros e dourados. O coração
acelerado a lembrava, com seu ritmo forte, que ela ainda estava
muito viva. Entretanto, ela continuaria viva quando seu corpo
atingisse a água muito abaixo, e ela afundasse naquelas
profundezas sob as ondas?
O líder marinheiro gritou ordens para içar as velas. Os
marinheiros no convés logo se ocuparam com as cordas. Enquanto
o alvoroço de atividade girava pelo convés, ela sentiu-se grata por
ninguém parecer notar a presença dela.
Sua consciência, que até esta manhã oscilava entre aceitação e
rebelião, enfim decidiu-se. A verdade consoladora era que se
morresse em breve, seria uma morte melhor. Afogar-se depressa na
Baía de Gibraltar seria preferível a uma morte em vida como esposa
de Peter nos confins sombrios do continente africano.
No curto período desde que ficaram noivos, Peter revelou que
tipo de marido seria. Haveria pouca risada ou felicidade nesse
casamento. O dever seria a única constante.
Uma vozinha nos recantos de sua mente sussurrou, insistindo
para ela continuar.
— Tem que agir.
Para cada segundo de adiamento, a oportunidade de determinar
o próprio futuro escorregava para mais longe de seu alcance.
Mesmo agora, nadar até a costa testaria sua resistência até o limite.
Ela começou a caminhar devagar ao longo do convés para onde
a prancha, após levantada, agora estava armazenada. A
extremidade da prancha ainda se projetava a uns bons oito metros
de distância da lateral do navio. Não muito, mas pelo menos
proporcionava a remota chance de que, se pulasse na água daqui,
ela poderia estar livre do navio e de seu perigoso rastro.
Erguendo as saias, ela subiu até a longa ponte de madeira.
Caindo de joelhos, ela rastejou para o lado de fora, para além da
amurada do navio, acima da água. No final da prancha, ela se
sentou e moveu os pés para o lado.
A média distância, Gibraltar afastava-se devagar, porém, com
certeza.
Era agora, ou nunca.
— Senhor, se me conceder esta benção, permanecerei sempre
Tua serva devotada. — ela prometeu.
Após um último olhar por cima do ombro, para o convés do
navio, Hattie respirou fundo e se deixou cair.
Capítulo Dois

W ill Saunders recostou-se na parede de rocha do Porto de


Gibraltar e fechou os olhos. O calor do sol se infiltrava fundo em
seus ossos. Por mais que desejasse voltar para casa, para a
Inglaterra, ele sabia que o clima quente da Europa seria algo de que
ele sentiria muita falta após partir.
Todos esses longos anos passados em Paris, como agente
disfarçado a serviço do governo de Sua Majestade, agora pareciam
uma vida completa deixada para trás.
No entanto, foi apenas no mês passado que ele enfim arrumou
suas coisas, notificou sua senhoria, Madame Dessaint, e desocupou
os alojamentos que alugava em Paris. Ele se presenteou com uma
excursão de despedida pelas cidades agora pacíficas da Baixa
França e da Espanha, e planejava que a jornada terminasse com
uma travessia de navio de volta a Londres.
Londres.
Ele estremeceu ante a perspectiva de vivenciar o próximo
inverno inglês.
— Ora, bem, tem que ser. — ele murmurou. Seus dedos
acariciavam a parede de pedra quente do mar do cais.
Ele esteve longe por cinco anos. Anos que o mudaram para
sempre. O jovem que chegara em Paris no verão de 1812 havia
desaparecido há muito tempo. Muito autoconfiante, beirando a
arrogância, ele logo aprendeu a verdadeira vida de um espião. Viver
no fio da navalha, saber que a qualquer segundo uma batida
poderia soar na porta, e sua existência mortal estaria acabada.
A maior esperança de um espião era que, quando chegasse, a
morte seria rápida. Somente aqueles que o destino havia
abandonado de vez precisavam encarar a prisão e a inevitável
viagem ao cadafalso para uma audiência com Madame Guilhotina.
Will abriu os olhos.
O sol brilhante o fez piscar com força para enxergar. Ele pôs a
mão no peito, sentindo a forte batida do próprio coração. Ele
suspirou, grato por, ao contrário de tantos outros, ter tido a sorte de
escapar desse terrível destino.
Se o clima úmido na Inglaterra fosse a pior coisa que ele teria
que encarar pelo resto da vida, ele era abençoado. Ele levantou a
cabeça da parede e sentou-se ereto, antes de se entregar a um
demorado alongamento para liberar a tensão.
O vento do mar atravessava a camisa de linho e gelava a pele
ainda úmida. Pouco tempo antes, ele havia dado um mergulho
vagaroso no porto. Sentado agora em uma caixa de madeira
colocada à base de uma série de degraus íngremes de pedra, ele
conseguia ouvir os comerciantes espanhóis locais que acenavam
para que todos os recém-chegados comprassem os produtos da
feira de sexta-feira de manhã, ocorrendo na praça da cidade acima.
Ele remexeu em sua mochila de couro, apoiada na calçada de
pedra ao lado dele, e pescou uma pequena faca e uma laranja,
comprada mais cedo naquela manhã nessa mesma feira. Após
descascar a casta de um dos gomos da fruta suculenta, ele enfiou o
pedaço da laranja na boca. Um sorriso se infiltrou nos lábios dele ao
saborear o suco cítrico, mas doce. Com o polegar, ele limpou uma
gota perdida, que escorreu do canto dos lábios.
— Isso é bom. — ele murmurou.
Em alguns dias, ele estaria em casa na Inglaterra, e de volta ao
ar rarefeito da alta sociedade londrina. Esses dias simples não
passariam de lembranças agradáveis, mas sempre distantes, para
ele apreciar enquanto tentava se restabelecer nesta Alta Sociedade.
Cartas dos pais e de familiares ofereciam todo tipo de
assistência, após ele tê-los comunicado da intenção de retornar à
casa de maneira permanente. Seu irmão e suas irmãs, sem dúvida,
fariam todos os esforços para vê-lo bem instalado mais uma vez.
Ele sentia falta da família. Percebeu o quão grande essa
saudade era durante a visita que fez à Londres no início do ano.
Por instinto, ele tocou a mão esquerda, os dedos procurando a
aliança de casamento. Tocaram apenas pele e o sulco onde o anel
esteve. Ele oscilou um instante, antes de se lembrar da recente
decisão de tirá-lo.
Yvette estava morta.
Três anos e oito meses. Ele havia parado de contar os dias,
porém, mesmo agora, não estava certo de estar pronto para
continuar. Para enfim aceitar que a esposa se foi. Permitir que o
fantasma da culpa descansasse em paz.
Um movimento no horizonte chamou a atenção dele. Um navio
que deixara o cais próximo há pouco, virava-se para longe do porto.
Ele se lembrou de ter visto o último dos passageiros correndo a
bordo do Blade of Orion. Ela era uma embarcação robusta, embora
não demasiado grande. Ele fez uma oração silenciosa aos que
estavam a bordo, desejando-lhes uma viagem segura. Seu destino
era a África.
Somente os corajosos e de coração calmo faziam a perigosa
viagem para a África. Além dos países que faziam fronteira com o
Mar Mediterrâneo, o continente africano era, em grande parte,
desconhecido. Muitos deixaram a Europa em busca de fortuna
naquela vasta terra, porém jamais voltaram a dar notícias. A África
era conhecida como o cemitério do homem branco com boas
razões.
Ele estava prestes a se afastar e colocar as botas e jaqueta
quando algo mais chamou sua atenção.
Ele pôde ver alguém rastejando ao longo do que parecia ser a
prancha levantada do navio. Will franziu a testa para este trabalho
um tanto perigoso. A vida de um marinheiro era repleta de perigos.
Enquanto erguia a mão para proteger os olhos do sol brilhante da
manhã, ele os apertou para obter uma visão melhor.
Quando a pessoa chegou ao final da prancha, sentou-se. A
respiração de Will ficou presa na garganta ao ver as saias longas
agarrando-se à borda da prancha. Não era um marinheiro, era uma
mulher.
— Que diabos está aprontando? — ele murmurou.
As palavras mal haviam saído dos lábios quando, para horror
dele, a mulher se deixou cair ao lado do navio, na água abaixo. Ela
desapareceu sob as ondas.
Por um instante, Will pareceu enraizado no local, impressionado
e imóvel, o cérebro lutando para aceitar o que os olhos acabaram de
ver. De onde ele estava, ele viu que ninguém mais a bordo do navio
percebeu a mulher caindo.
A tripulação continuava com suas tarefas, se preparando para
içar velas, alheia à crise se desenrolando. Ele gritou para o navio,
frenético, mas a voz foi levada pelo vento.
A mulher agora estava à mercê do destino. Só ele poderia salvá-
la.
Voltando a si, ele descartou o restante da laranja. Tirou a camisa
e a jogou nas pedras. Correu para a beira do cais, e ao chegar ao
limite, mergulhou. Emergindo, ele começou a nadar em direção ao
navio, rezando, apesar de todas as circunstâncias, para alcançá-la
antes que se afogasse.

O impacto da água expulsou o ar dos pulmões de Hattie com tanta


força que ela temeu perder a consciência. A água salgada encheu
sua boca e olhos.
Ela lutou pelo que pareceu uma eternidade, beirando o pânico
enquanto sua visão limitada se enchia de saias rodopiantes e
espuma. Por fim, ela teve um vislumbre de luz acima dela e
percebendo ser o sol, começou a nadar em direção à superfície.
Alcançando-a, ela sugou o ar com força, enchendo o pulmão. O
alívio momentâneo se dissipou ante a visão do navio que bloqueava
toda a sua vista.
A morte a encarava. Mesmo que conseguisse gritar, ninguém a
ouviria acima do rugido das ondas e do navio. A qualquer minuto, o
rastro do navio a puxaria para baixo, e ela morreria.
— Meu Deus. — ela murmurou.
Ela se virou e começou a nadar, frenética, para longe, esperando
de coração poder sobreviver por algum milagre.
Ela logo descobriu que seria mais difícil do que poderia ter
imaginado. Hattie nunca precisou nadar de botas e saias. O peso
das roupas ameaçava frustrar seus esforços de garantir a fuga.
Levantando a cabeça, um intervalo entre as ondas proporcionou
um breve vislumbre do cais. Tentador de tão perto.
Afaste-se do navio e se deixe flutuar. Vamos Hattie, ainda não
terminou. Não morrerá hoje.
Sabendo que o maior inimigo de qualquer nadador era o
cansaço, ela virou de costas e começou a bater as pernas com força
e para longe do navio. Lenta, mas com constância, ela foi aos
poucos criando distância segura entre ela e a morte certa.
Conforme o Blade of Orion se afastava devagar, a primeira
sensação tangível de alívio surgiu em seu cérebro. Sua queda ao
mar passou despercebida. Ninguém no convés corria ou apontava
para ela na água.
O melhor de tudo é que havia sobrevivido. Até agora.
— Da próxima vez que eu pular de um navio, devo tirar as botas
primeiro. — ela se repreendeu.
Com o navio agora navegando para longe, ela voltou a refletir.
Sua primeira tarefa seria chegar ao porto em segurança. Ela lidaria
com o resto dessa situação quando estivesse em terra firme.
Com a cabeça apontada para a cidade, continuar a nadar de
costas fazia sentido. Permitiu que as pernas flutuassem um pouco e
tirassem parte do peso das botas. De vez em quando, ela parava,
girava o corpo, e ao confirmar a rota, retornava à posição de costas
para nadar em direção à costa.
Os movimentos rítmicos dos braços ajudaram a acalmar o
pânico. Quando se aproximou do cais, esperança despertou em seu
coração.
— Vou conseguir. — ela soluçou.
Um grito irrompeu da própria boca um segundo mais tarde,
quando uma mão firme a segurou pelo braço que descia para a
água.
Ela lutou em vão com o estranho, mas ele era forte demais para
ela. Ele envolveu um braço em torno do ombro dela e a puxou em
direção a ele. Com as costas dela contra o peito, ele começou a
nadar em direção à costa.
— Pare de lutar, ou nós dois nos afogaremos. — ele berrou para
ela acima do barulho das ondas.
Ela teve um vislumbre de cabelos escuros e um torso nu. De
onde ele tinha vindo?
A ideia de que apenas um lunático nadaria no meio da baía até
passou pela cabeça dela, mas naquele instante, tudo o que
importava era que estavam nadando em direção à terra.
Ele também estava certo quanto a não lutar com ele. Se ele
estava preparado para fazer a maior parte do trabalho, então ela
teria uma chance muito melhor de chegar em segurança à costa.
Aceitando a ajuda, ela relaxou contra o peito do estranho e tentou
ajudá-lo em seus esforços, batendo as pernas o melhor que pôde
com suas botas encharcadas.
Trabalhando juntos, eles enfim chegaram à beira do cais. Vários
estivadores desceram e ajudaram os dois a sair da água.
Assim que os pés tocaram terra firme, as pernas de Hattie se
dobraram sob ela, que caiu de joelhos com força. A parte macia das
mãos bateu forte na via de pedra do cais.
— Ai. — ela gemeu.
Seu salvador de cabelos escuros se abaixou e, com um braço
em volta da cintura dela, a pôs de pé.
— Nadar de botas nunca é uma boa ideia. — ele disse.
— Não. — foi toda a resposta que ela pôde conjurar.
Com o braço ainda firme em torno da cintura dela, ele a guiou
para um pequeno conjunto de degraus de pedra. Os estivadores
curiosos os seguiram. Chegando lá, ele a sentou em um caixote de
madeira virado de cabeça para baixo. Ele se deixou cair ao lado
dela. Após assegurar aos trabalhadores que os dois estavam bem,
ele os dispensou com a mão.
Embora ela não entendesse as palavras ditas por aqueles
homens enquanto se afastavam, Hattie suspeitava não serem nada
gentis. Ninguém com juízo pularia de um navio por vontade própria.
Após anos passados ouvindo pregadores incendiários de visita à
igreja dela, ela conhecia bem a aparência e o tom de desaprovação.
As mulheres devem ser obedientes e conhecer o seu lugar no
mundo.
Ela levantou a cabeça e olhou para o mar, bem a tempo de ver o
Blade of Orion contornar a ponta sul do porto e desaparecer. Sua
cabeça e ombros caíram.
Ela estava livre.
— O navio partiu. — o estranho comentou.
Ele estendeu a mão reconfortante e a colocou no braço dela.
Ela estremeceu sem querer, antes de se lembrar de onde estava.
— Obrigada. O que fez foi muito corajoso. Tenho a mais
profunda dívida de gratidão para com o senhor.
— Londres? — foi a resposta.
Hattie se virou para de fato olhar o estranho pela primeira vez. O
coração dela, que só agora começara a se acalmar do nado
extenuante, recomeçou a bater forte no peito.
Cabelos escuros. As calças pretas encharcadas se agarravam
com firmeza ao forte corpo musculoso. Sem botas. Sem camisa.
Ela jamais vira o torso nu de um homem e a deixou sem fôlego.
O olhar dele seguiu o dela, e um quê de constrangimento surgiu
no rosto dele.
— Minhas desculpas. Esqueci-me do meu traje. Agora, onde
deixei minhas roupas? — ele disse.
Ele se inclinou e pegou um amontoado de tecido nas
proximidades e, após certa atrapalhação, conseguiu puxar a peça
pela cabeça. As mangas do que ela agora sabia ser uma camisa
provaram ser uma tarefa mais difícil. Após várias tentativas
frustradas de colocar os braços nas mangas retorcidas e úmidas,
Hattie foi forçada a prestar assistência.
— Aqui, deixe-me ajudá-lo. — ela disse.
Se o estranho pensava que, ao vestir a camisa, acrescentaria
um pouco de modéstia à situação, ele não contava com o que linho
faz ao tocar um corpo molhado. A camisa logo grudou nele, dando a
Hattie um segundo vislumbre daquele corpo delineado e masculino.
A apreciação silenciosa do corpo dele foi interrompida quando os
resquícios da água do mar, ainda alojados na parte de trás da
garganta dela, se deslocaram, provocando um violento ataque de
tosse.
Por fim, ela se levantou e o resto da vil água do mar subiu de
seu estômago e foi lançado ao chão de pedra plana. Ela ficou de pé.
O estranho seguiu o exemplo. Seu socorrista paciente a massageou
nas costas.
— Vamos, tussa tudo. Se não fizer isso, antes do fim do dia
estará de cama e doente. — ele disse.
Ao final, ela ergueu a mão. Os espasmos desapareceram, e ela
pôde respirar fundo mais uma vez.
— Obrigada. — ela disse.
Ele se afastou e ficou em silêncio, observando-a, o que no fim
atraiu o olhar dela para o rosto dele.
As palavras belo diabo logo surgiram na mente de Hattie. Um
diabo com um tom cinzento de olhos que ela jamais viu. Sob a luz
brilhante do sol, pareciam quase prateados. Então, ele piscou e
quando ela voltou a olhá-lo, viu que calor e suavidade surgiram
neles.
— O que disse? — ela gaguejou.
— Disse para tirar toda essa água do mar do estômago. — ele
respondeu.
— Não, antes disso.
— Londres. Não bem em Park Lane, mas ao menos a oeste de
Covent Garden. Tenho um talento particular de notar sotaques.
Hattie tremeu.
O vento que soprava em suas roupas molhadas era o principal
culpado, mas algo mais se agitava dentro dela. Com o Blade of
Orion agora fora de vista, a gravidade de sua situação bateu forte.
Ela colocou uma mão trêmula no peito. A situação era perigosa.
Ela estava a mais de mil quilômetros de casa, sem posses e sem
dinheiro. Os pais e o noivo viajavam para Serra Leoa, alheios ao
fato de ela não estar mais a bordo do navio. No entanto, aqui estava
ela, junto a um estranho, discutindo os meandros de sua
proveniência.
— Ó, Santo Deus, o que fiz? — ela murmurou.
Will deu um passo à frente e, após colocar a mão gentil, mas
firme no ombro dela, fez a pergunta óbvia.
— Posso perguntar-lhe algo? — ele disse.
Este homem havia acabado de arriscar a vida para nadar e
resgatá-la. Claro que ele tinha perguntas.
— Sim?
— Não estou aqui para julgar, só preciso saber se o que acabou
de acontecer foi um acidente ou se quis pular do navio.
Hattie estremeceu. Mentir não era um dom natural para ela.
— Eu pulei. — ela respondeu.
— Foi o que pensei. Eu a observava, antes de cair e não me
pareceu um acidente de onde eu estava. Seus movimentos
pareceram bastante deliberados no minuto ou mais antes de se
deixar cair para o lado. Portanto, posso agora perguntar por que
pulou?
Ela encontrou o olhar dele. Aqueles olhos cinzentos traziam uma
bondade acolhedora. Fizeram com que ela quisesse revelar seus
pensamentos mais profundos para ele. Só para ele. Um homem cujo
nome ela nem sabia a fez querer compartilhar todos os segredos e
sonhos que mantinha escondidos do mundo.
E qual era a verdade? Que Harriet Imogen Margaret Wright, uma
filha obediente e diligente por toda a vida, de repente foi possuída
pela necessidade esmagadora de escolher o próprio futuro. Que ela
deu um salto literal para o desconhecido.
Uma pequena faísca nos recessos da mente a fizeram retesar.
Ela podia sentir que, sob esse verniz de bondade, ele escondia uma
grande força de vontade. Se ele escolhesse exercer essa vontade
contra ela, ele a dominaria com facilidade.
Tendo acabado de ser salva de uma possível sepultura aquosa,
ela não queria tentar o destino duas vezes. No entanto, a pergunta
exigia uma resposta.
Então, o que ela deveria dizer a ele?
— Meu nome é Sarah Wilson. — ela respondeu.
A verdadeira Sarah Wilson, sua criada, ainda estava a bordo do
navio. Mas como a criada havia se prontificado a se tornar parte da
missão na África com certa ansiedade, havia poucas chances de ela
aparecer de repente na porta de alguém e mostrar os furos na
história de Hattie.
— Eu estava noiva. Meu noivo me disse que faríamos uma
viagem para a Espanha, e só quando chegamos a Gibraltar, que ele
revelou que o destino real seria a África. Tentei argumentar, mas ele
se tornou indelicado. — ela acrescentou.
Cala a boca, Hattie. Não aumente a mentira mais do que o
necessário.
— Entendo. Por isso, pulou ao mar?
Ela assentiu. Manter a boca fechada era a melhor escolha que
poderia fazer agora. Mentiras já eram difíceis o suficiente mesmo
com tempo para se criar uma convincente. Inventar as coisas ao léu
deixava a tarefa quase impossível.
Ele permaneceu em silêncio por um instante. Hattie quase podia
ouvir o cérebro dele processando as palavras. Ele girou e, com as
mãos entrelaçadas às costas, olhou para a baía, para a direção
tomada pelo Blade of Orion.
Um calafrio causado por uma memória deslizou por sua espinha.
A lembrança do pai de pé, olhando pela janela do escritório,
segundos antes de ele anunciar o repentino noivado com o Pastor
Peter Brown atravessou a mente dela. Neste instante, ela desejava
poder voltar para casa na Inglaterra, estar no escritório de seu pai.
Em qualquer lugar, menos aqui.
O estranho virou-se e encarou-a. Ela afastou a imagem do pai da
mente.
Havia uma bondade no semblante do estranho que ela não via
no pai há muito tempo. Ao contrário do pai, ela sentiu que este era
um homem com quem ela poderia raciocinar, ter sua voz ouvida. Um
homem em quem ela podia confiar.
— Conhece alguém em Gibraltar? — ele perguntou.
Hattie balançou a cabeça. Ela conhecia poucas pessoas fora de
Londres, muito menos fora da Inglaterra.
— William Saunders ao seu serviço, Senhorita Wilson. — ele
disse, acrescentando uma graciosa reverência.
Ele ofereceu a mão, e ela se sentiu compelida a aceitá-la. Para
alguém que acabara de sair do mar frio, as mãos dele estavam um
tanto quentes. No entanto, ela tremeu ao toque dele.
Ela tremeu uma segunda vez antes de um espirro alto. Um
vislumbre de consternação passou pelo rosto de Will.
— Há pouco sentido em ajudar a salvar sua vida, se eu a deixar
sentar aqui e pegar um resfriado mortal. Deve voltar comigo para
meu hotel e secar essas roupas.
Ele intensificou o aperto na mão dela, revelando que a oferta era
um comando. A imprudência das próprias ações começavam a
assentar. Ela estava sozinha em outro país e, poucos minutos após
deixar a proteção da família, e estava sendo convidada a
acompanhar um homem ao hotel dele. Lágrimas pinicaram os olhos
dela. Quanto tempo levaria até algo terrível acontecer? Antes de ela
se ver totalmente arruinada.
Ela arrancou a mão da dele.
— Não creio ser uma boa ideia, Sr. Saunders, acabamos de nos
conhecer. Sou de uma família respeitável, e, como tal, deve
entender que não sou o tipo de garota que vai a qualquer lugar com
um homem estranho. — ela respondeu.
Will riu baixinho.
— Muitas vezes me considerei um pouco diferente, mas nunca
estranho. Mesmo que minha irmã Eve talvez discorde do assunto.
Ele caminhou até uma mochila de couro próxima e, após
vasculhar ali, puxou um cartão. Entregou a ela.
Sr. William Saunders, Escudeiro. Rua Dover, 28, Londres. Era o
que estava escrito.
Enquanto Hattie lia o cartão, alívio inundou seu coração. Ela
conhecia o nome da família Saunders. Eram membros muito
respeitáveis da Sociedade. A mãe havia frequentado vários eventos
sociais menores na casa dos Saunders em Dover. Ela havia
conhecido Evelyn Saunders no ano em que foi apresentada à
sociedade, mas não conseguia se lembrar de um irmão mais velho.
A família estava ligada ao Duque de Strathmore. Ricos e poderosos.
Se este cavalheiro era mesmo William Saunders, ela deveria
estar tão segura com ele quanto com qualquer outro cavalheiro. Ele
entenderia a situação em que ela estava, e o risco dessa situação
para a reputação dela. Uma pequena misericórdia havia sido
concedida.
— Você mora em Londres? — ela perguntou.
— A partir da próxima semana, sim. Essa é a casa do meu pai,
onde morarei até conseguir uma nova morada para mim. Vivi no
exterior nos últimos anos. — ele respondeu. — Garanto, Senhorita
Wilson, que estará em perfeita segurança comigo. Como cavalheiro,
é meu dever cuidar de moças como você, e certificar-me de que não
sofram nenhum dano. Deixe-me pelo menos acompanhá-la de volta
ao meu hotel e garantir que seja acomodada.
Hattie olhou mais uma vez para o cartão de visita de Will. Não
era como se ela tivesse muitas opções a que recorrer. Aos
mendigos não havia o luxo de escolha. Ela ofereceu a mão a ele.
— Precisamos colocá-la em roupas quentes e secas e, logo, pois
suas mãos parecem gelo. — ele disse.
Capítulo Três

A caminhada entre a subida dos degraus de pedra e a entrada na


cidade deixou a mente de Will acelerada. O que poderia ter
possuído Sarah para fazê-la pular do navio? Embora estivesse
preparado para aceitar que o noivo dela poderia ser mesmo um
canalha, ele também suspeitava que ela estava retendo grande
parte da verdade. Pela maneira como ela falou, ele deduziu existir
um noivo real em algum lugar da história. O que não era tão certo,
no entanto, era se ele era a verdadeira razão para fazê-la fugir do
navio.
O Blade of Orion ficou no porto por pelo menos vários dias, em
que os passageiros precisaram desembarcar e permanecer em
algum lugar da cidade. Por que ela não buscou a ajuda das
autoridades enquanto ainda estava em terra? Gibraltar estava
repleta de membros da marinha britânica, qualquer um deles
poderia tê-la ajudado.
Ele deu um olhar de relance para ela.
Ela era bonita; de um jeito “capaz de mantê-lo feliz na cama no
meio do inverno”. Apenas aqueles olhos castanhos quentes
conseguiriam capturar a alma de um homem. O rosto, embora não
fosse bonito, mantinha a promessa de riso, o que para um homem
com a experiência de Will era muito mais sedutor. A beleza muitas
vezes não conseguia cumprir a promessa.
Os lábios cheios eram feitos para longos beijos luxuriosos. O
instinto dele dizia que quem quer que se casasse com Sarah Wilson
nunca sentiria a necessidade de se afastar da cama conjugal. Ela
era uma mulher para se agarrar e ser grato pelo resto da vida. Se
pedissem que ele a descrevesse em uma única palavra, ele sabia
qual seria. Adorável.
O noivo havia perdido uma mulher especial, embora pelo pouco
que ouviu, ele talvez jamais chegasse a essa conclusão.
Com as roupas encharcadas pela água do mar ainda agarradas
ao corpo dela, Will se percebeu apreciando as curvas suaves em
exibição. Os seios amplos esticavam as costuras do vestido e do
corpete encolhido pela água.
Ele fez uma breve autoanálise. Fazia muito tempo que ele não
permitia que a forma do corpo de uma mulher penetrasse tão forte
em sua mente. Nos últimos anos, ele enterrou tais pensamentos e
desejos nas profundezas do buraco negro da perda.
O luto era um cobertor grosso e escuro para a alegria da vida.
Quando o calor súbito desse luto diminuía, oferecia proteção ao
coração.
O que estou fazendo?
Pela primeira vez desde a morte da esposa, Will foi forçado a
aceitar que a garota caminhando ao seu lado despertava anseios.
— Então, vamos levá-la para o hotel, e ficará bem depois disso?
— ele perguntou. Estava testando-a, vendo por quanto tempo ela
conseguiria manter a história coesa.
— Sim, sim, claro. Obrigada, Sr. Saunders. — ela respondeu.
Quando enfim chegaram nas escadas da entrada do maior dos
poucos hotéis em Gibraltar, Will parou e manteve aberta a porta. Ela
entrou, e ele a seguiu.
Na subida da colina, ele avaliou em silêncio a situação dela. Ele
duvidava que ela tivesse algum dinheiro. Se ela tivesse pensado em
levar um pouco, antes de deixar o navio, tais moedas deviam estar
descansando no fundo da baía a essa hora. Se a teoria dele fosse
verdadeira, era apenas uma questão de tempo até ela se ver
forçada a admitir a verdade da própria situação.
Quando chegaram à recepção do hotel, cujo balcão se estendia
ao redor até o bar da taverna, ela parou.
Ele conseguia ver que ela não estava nada à vontade. O
constante torcer de mãos a entregava. Quando ela deu um ligeiro
estalo nos dedos da mão esquerda, ele soube ser a hora de agir.
A irmã dele, Caroline, exibia esse mesmo hábito nervoso, que o
fazia ranger os dentes toda vez que era forçado a testemunhar o
ato.
Que tipo de homem você é? O que poderia conseguir ao fazê-la
implorar por ajuda? Will Saunders, você é um homem melhor do que
isso. Ela não é uma agente que precisa se curvar à sua vontade.
Ofereça toda a assistência que pode dar.
Ele acenou para o porteiro do hotel e segurando o braço de
Sarah a afastou da recepção.
— Você não tem dinheiro, não é? — ele perguntou, assim que
estavam fora do alcance dos funcionários do hotel.
Ela estremeceu.
A reação confirmando a avaliação dele de que ela era uma
péssima mentirosa. Em sua antiga vida, ele teria visto como falha de
caráter, mas na jovem diante dele ele sabia ser um sinal de
verdadeiro caráter e criação.
Era revigorante conhecer alguém que não enganava as pessoas
como parte da existência normal do dia a dia.
Ela se afastou e girando nos calcanhares se dirigiu para a porta.
Will, que até aquele segundo se julgava um astuto preditor das
reações dos outros, de repente se viu desnorteado. Qualquer outra
mulher teria aceitado a caridade dele sem pestanejar. Enumerado
todos os ditames sociais ao primeiro plano, mas não esta garota.
Ele assistiu espantado enquanto ela reunia toda a coragem que
pudesse conjurar e se afastava. Ela não pediria a ajuda dele.
Ela era tão parecida com Yvette. Teimosa como uma mula.
Impeça-a, seu tolo.
— Sarah! — ele gritou, mas ela não reagiu.
Ela se movia mais rápido do que ele teria antecipado. Quando
ele chegou à porta, ela estava bem adiantada na rua e dirigia-se
para a praça da cidade em que a feira estava sendo realizada. Ele
correu atrás dela.
Segurando-a firme pelo braço, ele a interrompeu no meio da rua.
Quando ele viu as lágrimas, Will logo se sentiu menos digno que um
rato de sarjeta.
— Está tudo bem, não vou deixá-la. — ele disse, tentando o seu
melhor para oferecer tranquilidade.
O rosto de Sarah dizia tudo, ela estava em apuros. Se foi por
atos próprios ou não, não importava. Ele precisava ajudar.
— Só quero ir para casa. — ela soluçou.
Os sentidos dele se alertaram. Um formigamento suave na
orelha esquerda, que logo se tornou um zumbido agudo, avisou-o
de que estavam em perigo. O olhar dele girou devagar, de Sarah
para os arredores.
Os frequentadores da feira começaram a disparar olhares de
desaprovação para eles.
Não seria preciso ser um gênio para perceber que os locais
presumiam que os dois eram um casal.
Do estalo alto de línguas e sussurros de “bestia” também era
óbvio que o responsabilizavam pela condição miserável em que ela
se encontrava.
Os cabelos de Sarah eram um desastre desleixado, colado em
toda a cabeça. As roupas dela, embora começassem a secar
devagar, faziam com que ela parecesse ter sido arrastada por uma
sebe. Na melhor das hipóteses, ela parecia desarrumada e, na pior,
maltratada.
Uma forte batida no ombro, dada pelo dono de uma barraca por
que passavam, revelou a profundidade da inimizade que começava
a se acumular entre a multidão. Will era o vilão da peça. Se não
controlasse a situação, e rápido, era bem provável que ele se
encontrasse na extremidade receptora de um punho sólido ou dois.
— Tudo bem, tudo bem. Vou levá-la para casa. Por favor, pare
de chorar. — Will pleiteou.
As mulheres que se reuniram atrás de Sarah olhavam-se entre
si. Will teve o vislumbre de um chicote de burro na mão de uma
mulher e pedras de tamanhos consideráveis nas mãos de várias
outras.
O burburinho da multidão subiu o tom.
No entanto, a filha adotiva dos locais não parecia compreender o
que estava acontecendo ao seu redor. A cabeça de Sarah caiu, e
ela olhou para a via de pedra. Sem querer, ela dominava a multidão,
portanto, a segurança dela e de Will estava na palma de sua mão.
— Querem saber se está tudo bem. — ele explicou.
— O quê? — ela respondeu, quando enfim olhou para ele.
Ele deu um passo à frente, com a intenção de falar com mais
privacidade, mas a multidão murmurou em desaprovação.
— Bien, bien. — ele disse, dando dois passos mais longos do
que o necessário para trás, as mãos altas em rendição.
O olhar de Sarah foi para a mais próxima das mulheres. O dedo
da mulher apontava para o vestido desgrenhado de Sarah.
Sarah olhou para o vestido e franziu a testa.
— Ah, entendi.
Enquanto ela tentava endireitar as saias, um rubor vermelho
intenso apareceu nas bochechas. O coração de Will se compadeceu
dela mais uma vez. A pobre garota estava envergonhada pelo
estado atroz das próprias roupas na frente desses estranhos.
O vestido vincado e parcialmente encolhido se recusava a ceder
às atenções. Nada do que ela fazia na tentativa de deixá-lo mais
apresentável fez a menor diferença. Linhas de sal marinho branco
começaram a aparecer nas poucas manchas secas do corpete.
No fim, com um triste suspiro, ela desistiu. As mãos penderam
frouxas ao lado do corpo.
A multidão, que crescia a olhos vistos, se aglutinou em uma
única besta furiosa e rosnou. O zumbido no ouvido de Will tornou-se
uma batida ensurdecedora. Era como um sino sendo tocado dentro
da cabeça.
A percepção do humor da multidão enfim surgiu no rosto de
Sarah. Ela se virou para a multidão e implorou.
— Não, não, a culpa não é dele. Ele está tentando me ajudar, me
resgatou…
— Venha querida. — Will interveio.
Embora ela não visse problema algum em atestar que ele era um
salvador, se os reunidos ali os compreendessem mal, a causa deles
estaria em mais apuros. O espanhol dela era praticamente
inexistente e ele, por exemplo, não acreditava que os habitantes da
cidade estivessem dispostos a ouvir a explicação dele, não
importava o quão eloquente ou fluente fosse.
Havia também a questão de exatamente o que ele diria aos
moradores da cidade se lhe garantissem alguma audiência. Ele
seria um homem morto se pensassem que ele tentou abordar uma
estranha inocente.
Ela, por sua vez, se sairia pouco melhor. O povo bem-
intencionado da cidade, com certeza, faria todos os esforços para
vê-la a bordo do Blade of Orion antes que o navio chegasse ao
próximo porto.
— Se quiser voltar a ver a Inglaterra, é melhor vir comigo agora.
Se seus novos amigos descobrirem a verdade da situação,
envolverão as autoridades locais. Você não quer que isso aconteça.
Seu noivo tem direitos legais sobre você nesta parte do mundo. Eles
o entregarão a ele. — ele disse.
Ele sabia que as mentiras contadas por ela até agora não
resistiriam a nenhum escrutínio sério. Ela olhou mais uma vez para
a multidão reunida e, para total alívio de Will, leu com precisão o
que a situação precisava.
Ela deu vários passos hesitantes e se jogou com vontade nos
braços de Will.
A multidão aplaudiu e gritou eufórica pelo ótimo
desenvolvimento. O amor havia triunfado todos os obstáculos.
Várias das mulheres enxugaram as lágrimas ao guardar as pedras
em seus aventais. Uma delas até arriscou um beijo na bochecha de
um homem próximo. Vários espectadores riram ao ver o beijo,
enquanto Will rezou para que fosse o marido da mulher.
Observando a cena acontecer, Will aproveitou a deixa. Ele se
abaixou e deu um beijo casto na bochecha de Sarah. O gesto
melodramático de perdão dela exigia a plenitude do reconhecimento
dele.
O ato de criar uma fachada improvisada era uma segunda
natureza para ele. Espiões precisavam pensar rápido a todo
instante. Vidas costumavam depender dessa rapidez.
O povo murmurou em desaprovação. Esta não era a submissão
que os corações e mentes de todos ansiavam ver de um marido
iníquo que magoara a bela e jovem esposa. Neste instante, a
verdade estava sentada na sarjeta com uma cabeça dolorida. A
multidão estava criando uma história de amor em sua mente
coletiva.
Will viu os olhares suplicantes nos rostos de várias velhas
señoras e soube que um beijo na bochecha jamais bastaria.
Ele olhou para Sarah e sussurrou.
— Perdoe-me.
Ele inclinou a cabeça e uniu os lábios aos dela.
Capítulo Quatro

Q uando os lábios de Will se encontraram com os dela, o coração


de Hattie saltou. Era um desenvolvimento inesperado, mas ela logo
decidiu não ser indesejável.
O beijo, que começara hesitante, logo se aprofundou para deleite
dela e da multidão. Enquanto ele lançava os dedos pelos seus
cabelos puxando-a para perto dele, ela se viu torcendo para que os
moradores tivessem muito tempo em mãos. Pela primeira vez na
vida, ela não sentiu pressa para estar em outro lugar.
Lábios quentes e ternos tocaram os dela, incitando uma
resposta. Abrindo os lábios, ela acolheu as atenções de Will.
Quando a língua dele entrou em sua boca, ela sentiu os joelhos
começarem a se dobrar.
Ó, é o paraíso.
Ele era habilidoso na arte de beijar, mas não do jeito calculista
que ela ouvira ser a marca registrada dos homens da classe dele. E,
com toda a certeza, não era nada como os beijos horríveis e duros
que Peter Brown forçava. As tentativas frias, e muitas vezes rígidas,
de beijá-la eram o oposto desse delicioso encontro.
A ternura em Will Saunders era natural e dada com
espontaneidade.
O barulho da multidão e da feira desapareceu, deixando apenas
os dois e o prazer inebriante daquele beijo. Ela provou um quê
cítrico e forte de laranja na língua dele. A mente dela sussurrava
pensamentos envoltos em climas ensolarados e longas noites sob
céus estrelados. Uma vida a que, se tivesse metade de
possibilidade, se agarraria com as duas mãos e nunca deixaria ir.
Um suspiro escapou de seus lábios enquanto ela imaginava
como seria chamar esse homem de seu para sempre. Ela se
entregou à agradável fantasia de ser mesmo esposa dele.
Que ele a levaria para casa, para algum lugar que
compartilhariam e seria pleno de amor. E uma vez lá, ele a deitaria
na cama dos dois e faria amor apaixonado com ela. Ele seria dela e
só dela.
— Senhorita Wilson?
Ela abriu os olhos. Will ainda a segurava perto, estudando-a.
Há quanto tempo ela estava aqui, de olhos fechados, perdida no
beijo? E quando ele se afastou dos lábios dela?
— Ah, sinto muito, perdi a noção do tempo. — ela gaguejou.
Os dedos foram, por instinto, para os lábios. Ainda estavam
aquecidos pelo beijo. Decepção tomou seu coração quando logo
esfriaram. Decepção essa agravada por ele a ter chamado pelo
nome de outra pessoa.
O estardalhaço do murmurar da multidão encheu seus ouvidos
mais uma vez, devolvendo-a à realidade. Ela se virou.
Uma multidão reunida na feira estava sorridente e apreciativa
logo atrás dela. Havia poucos olhos secos entre as mulheres.
Mesmo os homens mais velhos e marcados pela vida, sentados nos
degraus de pedra da igreja próxima, sorriam.
Os jovens amantes conquistaram os corações e mentes dos
locais.
Will inclinou-se para perto dela:
— Enquanto a situação ainda está a nosso favor, sugiro que
voltemos para o hotel. Gostaria de continuar a conversar acerca de
questões imperativas, mas com um pouco mais de privacidade. —
ele disse.
Ele ofereceu a mão e, sem hesitação, Hattie a pegou. Por que
ela se sentia tão segura com esse estranho era algo que ela não
conseguia entender. No entanto, sabia que um homem capaz de
beijar uma mulher com tanta paixão, um homem que conseguia
fazer a alma dela se reanimar para a vida nunca a machucaria de
propósito.

E foi assim que, uma hora após ter saltado do navio para o mar, a
senhorita Hattie Wright, disfarçada como Sarah Wilson, estava sob a
proteção do Sr. William Saunders, Escudeiro.
Ela também fora beijada com sofreguidão por ele em público.
Após fazer as perguntas corretas, Will conseguiu contratar os
serviços de uma costureira local que logo reuniu uma pequena
seleção de roupas já prontas para Hattie. O hotel arranjou uma
criada pessoal.
Em silêncio, Will parabenizou-se por ser tão hábil em garantir
que as necessidades de uma jovem de sua classe fossem sanadas.
A mãe dele ficaria orgulhosa. Entretanto, se o guarda-roupa de
Hattie era o mais recente da moda londrina, ele não sabia ao certo.
No entanto, qualquer coisa seria melhor do que o vestido original,
arruinado além da salvação.
Enquanto Sarah estava no andar de cima se trocando no quarto
que ele havia arranjado para ela, Will sentou-se no térreo, na
pequena alcova que cumpria a função de saguão do hotel.
Ele tentou ler uma cópia do The Times que chegou naquela
manhã, trazida por um navio de Londres, mas a mente dele se
recusava a dar qualquer atenção real às notícias. Ele dobrou o
jornal ao meio e o deixou de lado.
Os pensamentos em torno de Sarah se recusavam a sair da
cabeça dele. Seus longos cabelos cor de trigo, embora
emaranhados e presos à cabeça, eram fascinantes. Ele teve um
cavalo Palomino com a crina luxuriosa e semelhante. Ele suspeitava
que, quando estivessem secos e penteados, os cabelos de sua
nova companhia brilhariam à luz do sol do mesmo jeito.
— Quem é você? — ele murmurou.
Quando ele a chamou, mais cedo na feira daquela manhã, ela
não reagiu. Somente quando ele estendeu a mão e a segurou pelo
braço que ela registrou a presença dele. Com toda a certeza, o
nome verdadeiro dela não era Sarah Wilson. De que, ou de quem
ela estava se escondendo era ruim o suficiente para ela adotar um
nome falso.
Ela era um enigma envolvente. Bem-criada pelo soar do sotaque
e bem-educada pelo comportamento, mas com um toque de plebe.
A maneira como ela se dirigiu aos aldeões e até mesmo à equipe do
hotel a denunciava como alguém que não desprezava os de uma
classe social mais baixa.
Quanto ao noivo, Will se perguntou que tipo de homem atrairia
uma garota para longe da família e a arrastaria por meio mundo
para a África. Esse aspecto da história dela ainda não soava fiel à
verdade na mente dele. Ali estaria o cerne da mentira.
Portanto, com quem ela estava a bordo do Blade of Orion?
Ele lambeu os lábios, surpreso com o quão seca a boca de
repente se tornara. Os batimentos cardíacos aumentaram o ritmo
quando a peculiar empolgação envolvida em uma perseguição urgiu
em suas veias.
A emoção trazida pela perspectiva de perseguição foi parte do
motivo que o levou a se voluntariar como agente secreto do governo
britânico. Ele sabia que seus motivos não eram de todo patrióticos
ou nobres. O desejo de se aproximar do perigo corria forte no
sangue da família.
Desde a infância, explorar os lugares mais profundos e secretos
das mentes dos outros tinha sido sua habilidade especial. Extrair a
verdade, pouco a pouco, era um jogo demorado, mas em que ele
era um mestre.
Quando ele terminasse de sondá-la, ele saberia todos os seus
segredos. Iria devagar. Após ganhar a confiança dela, ela contaria
de bom grado tudo o que ele desejava saber. Ela revelaria tudo.
Distraído, ele esfregou os dedos na barba que cobria o queixo.
Ele não se encaixava muito bem na imagem do cavalheiro londrino
bem-criado, algo que ele precisaria consertar se quisesse ganhar a
confiança dela.
Recordando daqueles minutos passados na feira, quando ele a
segurou nos braços e a beijou sem pensar em mais nada, a lista de
desejos de Will começou a tomar forma.
Nomes e lugares poderiam ser verificados e confirmados com
facilidade. O que ele desejava saber mesmo era o que habitava os
meandros de sua alma. Beijá-la foi mais do que apenas uma tática
diversionista. Ele gostou bastante.
E valendo de seus gemidos de prazer, ela também.
Ele queria aprender tudo o que pudesse sobre ela. Uma mulher
que detém a coragem de saltar de um navio para um futuro perigoso
e desconhecido, era uma mulher que ele precisava entender.
Controlar, não é o que quer dizer?
O pensamento súbito o retesou. Ele tentou impedir Yvette de se
colocar em perigo por mais vezes do que conseguia se lembrar.
Engenhosa e teimosa, ela se salvara do perigo inúmeras vezes.
Todas, exceto a última vez.
Ele fechou os olhos e se recostou na cadeira. Ele havia se
prometido que só pensaria em Yvette duas vezes por dia enquanto
tentava reconstruir a vida. Uma vez ao se levantar e uma ao se
deitar. A memória dela estava arraigada em sua mente.
No entanto, hoje ele pensou em outra mulher. Pensamentos
lascivos que o levaram a beijá-la sem se refrear.
Perdoe-me.
Ambos sabiam do perigo. Um pacto feito no início do casamento
ainda se mantinha. Se alguma coisa acontecesse com o outro, o
sobrevivente não teria autorização para passar o resto da vida
chafurdando no luto. Foi apenas essa promessa vinculante que
manteve Will à margem da insanidade nos dias sombrios que se
seguiram à morte de Yvette.
Ele conseguia imaginar a conversa que teria com a esposa
acerca de sua nova encarregada. Yvette ficaria intrigada com essa
jovem e já teria listado várias perguntas pertinentes.
Por que ela pulou do navio?
— Não acredito na história de uma viagem repentina à África.
Esse conto tem mais buracos do que as catacumbas de Paris. —
ele murmurou.
Se ela está dizendo a verdade, por que se sentiria compelida a
dar um nome falso?
Ele abriu os olhos e sentou-se ereto, um sorriso malicioso e
consciente ameaçava no canto da boca.
Chegar à questão da verdadeira identidade de Sarah era a
chave para todo o mistério. Encaixe essa peça do quebra-cabeça e
o resto da imagem se revelaria.
Uma moeda brilhante escorregaria na mão da criada quando um
momento oportuno aparecesse. Em algum momento, a senhora
cometeria um deslize e, sem perceber, revelaria mais do que
pretendia. A criada pessoal em busca de renda complementar seria
o agente perfeito.
Pouco depois, Sarah desceu as escadas. Will levantou-se de sua
cadeira com uma sensação de satisfação. O dinheiro com a
costureira e a equipe do hotel foi bem gasto.
O rato afogado com cabelos desgrenhados e roupas arruinadas
desaparecera e em seu lugar estava a perfeição. Um vestido
esmeralda com renda branca no corpete, as saias agarravam-se ao
corpo bem-proporcionado. A sugestão de decote que o vestido
oferecia era uma mudança renovadora do modelito cinza, rígido e
de pescoço alto que ela usava ao ser resgatada da água.
Ele se viu sem palavras para descrever o traje daquela primeira
vez ao lado dela, no cais. Sem graça foi a primeira coisa em que
pensou. Sem elegância foi a segunda.
O novo traje revelava que ela era mais jovem e mais bonita do
que ele a julgou a princípio.
O olhar dele absorveu os cachos macios que beijavam as
laterais das bochechas. As madeixas de um tom castanho-claro
traziam ares dourados à medida que a luz do sol as apanhava. Ele
ficou grato por a moda local não incluir um gorro. Não gostava da
nova moda que muitas garotas inglesas adotaram de cobrir as
cabeças com gorros, e assim esconder seus encantos naturais.
Ele mergulhou em uma cortesia.
— Senhorita Wilson, estou ao seu dispor. — ele disse, um
sorriso abrindo os lábios.
O sorriso tímido que ele recebeu em resposta teria derretido o
coração de qualquer homem. Ele corrigiu seu primeiro pensamento.
Ela não era perfeição. Não, era algo diferente. Mais sedutora do que
a perfeição jamais poderia oferecer.
— Sr. Saunders. Não posso começar a expressar minha gratidão
por tudo o que fez por mim. Como posso reembolsá-lo? —
respondeu ela.
O coração dele afundou. A última coisa que ele queria era que
ela tivesse algum senso de obrigação para com ele.
— Seu retorno seguro à Inglaterra será toda a recompensa que
eu jamais precisarei. — ele respondeu.
Por dentro, ele se amaldiçoou por ser tão autoconfiante e suave
com ela. Ele temia que agora ela só o visse como alguém com o
senso de dever de ajudá-la, nada mais.
Foi um erro juvenil, um que ele sabia que não deveria ter
cometido. Com a guerra contra Napoleão agora terminada, ficou
claro que suas habilidades não utilizadas estavam ficando
enferrujadas.
Quando Sarah se sentou em um local sombreado perto da
janela, Will chamou um funcionário do hotel e foi falar com o
homem.
— Duas taças de vinho de Málaga e qualquer prato quente que o
chef possa preparar em pouco tempo, por favor. — ele disse.
Voltando, ele sentou-se na cadeira oposta a ela.
— Considerando o seu nado matinal, imagino que esteja mais do
que com um pouco de fome. Tomei a liberdade de pedir comida e
bebida para ambos.
Sarah olhou para baixo e, com delicadeza, ajeitou as saias de
seu novo vestido. Ele ouviu um suspiro incerto vir dela.
— Por que está me ajudando? Não me conhece e, mesmo
assim, comprou roupas novas para mim e me colocou em um quarto
de hotel. O Senhor poderia, como mesmo disse, ter me entregue às
autoridades locais e as deixado lidar com o assunto. Não me deve
nada, Sr. Saunders. — ela levantou a cabeça, e seus olhares se
encontraram. — Por quê?
A voz da mãe sussurrou na cabeça dele:
Porque você sempre se imaginou como um cavaleiro de
armadura brilhante, Will. Procurando a próxima donzela para
resgatar e proteger. É um dos seus traços mais nobres, e desses
você possui vários.
Não importa o quão desconfortável ele se sentisse quanto a isso,
Adelaide Saunders conseguia ler o filho mais velho melhor do que
ninguém. Onde quer que ela estivesse agora na Inglaterra, ele
suspeitava que um sorriso secreto já surgia naqueles lábios.
Ele deu de ombros.
— Porque ao longo da vida, todos passam por momentos em
que precisam desesperadamente da ajuda de alguém. Alguém para
protegê-los da dureza do mundo. Eu diria que a senhorita está
nesse ponto específico. — ele respondeu.
O funcionário do hotel trouxe mais duas taças e serviu uma dose
generosa de vinho em cada uma, antes de se retirar.
— Por sua boa saúde, senhorita Wilson, e por seu retorno
seguro à família. — Will disse. Ele entregou uma taça para Hattie, e
ergueu a própria taça em brinde a ela.
Ela olhou para a taça e hesitou por um instante.
— Quando regressarmos à Inglaterra, o senhor deve me permitir
reembolsá-lo por todas as despesas. Eu insisto. — ela disse.
Ela ergueu a taça e tomou um gole. Quando as primeiras gotas
desceram, tossiu. Hattie logo baixou a taça.
Will franziu a testa.
— Presumo que não bebe vinho com regularidade?
— Não, meu pai considera o vinho como um líquido maligno que
deve ser evitado a todo custo. Não temos vinho em nossa casa há
algum tempo. Meu pai trancou a adega há alguns anos e jogou a
chave fora. — ela respondeu.
Will tomou um gole, arquivando em sua mente essa pequena
revelação. Acrescentava muito à imagem que ele estava
começando a construir dela.
Pais religiosos, que nem sempre foram puritanos. Essa parte da
história ele estava inclinado a acreditar. A história poderia ser tão
simples quanto ter fugido com o noivo apenas para mudar de ideia.
Will suspeitava que não.
Ele a observou pegar a taça de novo e tomar um gole hesitante.
Coragem não estava em falta para essa jovem, e estava claro que
ela não compartilhava a mesma visão que o pai quando se tratava
de álcool.
— Prometo não contar aos seus pais que bebeu vinho em um
hotel comigo. — ele a tranquilizou.
Uma carranca apareceu na testa dela, e ela se moveu no lugar.
Foi o menor dos movimentos, mas bastou. Will empurrou os dedos
dos pés com força contra a sola interna das botas. Ela acabara de
mostrar um dos sinais clássicos de uma mentira.
— Como assim? — ela indagou.
— Falo de quando eu a devolver para a proteção deles. É claro
que a acompanharei até Londres e me certificarei de seu retorno
seguro ao seio amoroso de sua família.
Naquele instante, ele notou o som do vinho engasgado na
garganta dela. Ela sufocou uma tosse. O laço criado pelas mentiras
estava se apertando, aos poucos, em torno do pescoço dela.
Cuidado agora, não a faça levantar a guarda cedo demais.
Atraia-a para perto.
— Não posso aceitar que faça uma coisa dessas. É um longo
caminho de volta à Inglaterra. Tenho certeza de que um cavalheiro
como o senhor tem mais o que fazer. — ela respondeu.
Ela se mexeu com mais obviedade no lugar. Will virou um pé
para a direção da porta. Um olhar passou entre eles. Ela não daria
nem mais um passo à frente dele, e ambos sabiam disso. Gostando
ou não, ela precisaria aguentar a hospitalidade de Will.
O funcionário do hotel reapareceu com um grande prato nas
mãos e colocou-o na mesa entre Will e Sarah. Ela olhou para a
comida, mas não a tocou. Will sentiu o desconforto tácito. Ela
sentia-se ameaçada.
Will pegou a bandeja e ofereceu.
— É Calentita, o prato favorito de Gibraltar. Não é diferente de
uma panqueca assada. É muito bom. Nada muito ostensivo, então
estou certo de que seus pais aprovariam. — ele disse.
Não importa o que quisesse, o estômago de Sarah logo se
mostrou um traidor e resmungou. Will sorriu. A comida sempre
vencia.
Ela pegou um pedaço quadrado da Calentita e colocou-o na
boca. Will seguiu o exemplo. Resgatá-la do porto tão logo após um
mergulho matinal significou perder o café da manhã. A meia laranja
que ele chupou ainda nas docas foi a única refeição do dia. Só
agora, quando o cheiro de grão-de-bico cozido e azeite preencheu
seus sentidos, que ele percebeu que também estava faminto.
— É gostoso. — ela disse, antes de se servir de um segundo
pedaço.
Eles se sentaram em silêncio por um tempo, comendo e
tomando vinho. Quando Will pediu uma segunda garrafa de vinho, e
Sarah logo concordou, ele sentiu que ela enfim começava a relaxar.
Quer ela percebesse ou não, Will havia começado o jogo sutil de
ganhar a confiança de Sarah e chegar à verdade.
Capítulo Cinco

H attie permitiu que a criada a ajudasse apenas até que o vestido


fosse aberto e os grampos retirados dos cabelos. Desejando
consolo, ela dispensou a jovem com educação assim que essas
tarefas estavam terminadas.
Quando a porta do quarto se fechou, Hattie sentiu o peso do
mundo descer sobre os ombros. Lá fora, o sol já havia se posto.
Faltavam apenas algumas horas no que parecia ser o dia mais
longo de sua vida.
Sozinha pela primeira vez desde aquela manhã, ela se sentou na
lateral da cama. Os dedos agarrados à borda do colchão.
Ela fez.
Reuniu cada grama de coragem em seu ser e agiu. Onde ficava
a linha entre bravura e imprudência era uma questão de conjectura.
O que ela sabia com certeza era que sua bravura possuía um limite,
e hoje ela chegou a tocar as margens afiadas dele.
Se William Saunders não a tivesse socorrido, ela não fazia ideia
de onde estaria agora.
As várias taças de vinho ao longo da tarde a acalmaram, mas, à
medida que a noite se aproximava, o efeito do vinho começava a
desaparecer pouco a pouco. O medo agora se infiltrava em sua
mente.
Vozes altas no corredor do lado de fora do quarto, fizeram com
que ela atravessasse o cômodo às pressas e trancasse a porta,
antes de se retirar de vez para o santuário representado pela cama.
Ela estava em um país estranho, longe de casa e não familiarizada
com o idioma e os costumes locais. Quem saberia o que acontecia
nesses lugares estrangeiros?
Os pais e Peter se asseguraram de que ela não se aventuraria
para fora da casa que alugaram para a pequena escala em
Gibraltar.
— Os macacos do Rochedo de Gibraltar são conhecidos por
morder, e uma queda do topo do Rochedo decerto mata. — a mãe a
advertira.
Naquele momento, Hattie estava muito envolvida no próprio
tumulto para mencionar à mãe que o destino deles era conhecido
pela presença de leões e tribos canibais.
Agora, ela estava sozinha, e os pais à metade de um dia de
distância de Gibraltar. A única pessoa que ela conhecia em um raio
de cento e sessenta quilômetros era William Saunders.
Não era como se ela não confiasse nele. Apenas um cafajeste
com desejo de morte nadaria até o meio da baía para resgatar uma
estranha com a expectativa de a trair. Ela apostaria cada centavo
que possuía, que neste instante era zero, que ele era o cavalheiro
herói que ela o creditava ser.
A Família Saunders era bem-quista na Sociedade. Ela precisava
jogar as mãos aos Céus por encontrar Will.
No entanto, instinto a advertiu a manter o máximo de si
escondido dele o quanto pudesse. Quanto menos ele soubesse
dela, menos provável de interferir no plano dela, que ainda se
formava.
— Preciso chegar em casa.
Como Will garantiu a passagem de volta a Londres em um navio
que partiria em dois dias, ela só precisaria manter a fachada de
noiva maltratada, Sarah Wilson, por duas semanas. Ela sabia o
bastante do passado da verdadeira Sarah Wilson para conjurar uma
história minimamente convincente. Ela esperava que Will não
estivesse tão interessado com os meandros de sua vida para
pressionar por mais nada.
— Mantenha a história simples e não haverá tropeços.
Assim que chegassem a Londres, Sarah Wilson apenas
desapareceria, e Hattie Wright poderia se esconder. Will seria
presenteado com a intrigante história da jovem mulher que ele
resgatou das profundezas da baía de Gibraltar. Seria uma história
divertida para se compartilhar à mesa de jantar.
Com o tempo, ele a esqueceria.
Ela olhou para a bolsa de viagem feminina na ponta de sua
cama. Will era um homem com meios. Não só comprou três vestidos
novos, também conseguiu encontrar um sapateiro com um par de
botas prontas do tamanho dela. Suas botas originais e encharcadas
de água salgada estavam abarrotadas de papel, secando na janela.
Gibraltar não era fria o suficiente para justificar uma lareira acesa
em meados de outubro.
Uma batida na porta a tirou de seus devaneios. Ela olhou para a
camisola de musselina fina, recém-lavada e seca. As compras
sensatas de Will não se estenderam a uma camisola nem a um
roupão. Ela atravessou o quarto e colocou uma orelha na porta.
— Olá? — ela chamou.
A maçaneta da porta chacoalhou.
— Deixe-me entrar. — Will ordenou.
— Não, não estou decente. Não tenho nenhuma roupa de noite
adequada. — ela respondeu.
Maldições vieram do outro lado da porta. Ela olhou ao redor em
busca de algo para cobrir sua quase nudez. Vendo as roupas de
cama, ela teve uma ideia.
— Só um minuto. — ela disse.
Ela puxou depressa o cobertor da cama e envolveu-se com ele,
antes de destrancar a porta com relutância e a abrir completamente.
Will entrou no quarto. Aqueles dedos ágeis fecharam e
trancaram a porta, antes que ela tivesse tempo de piscar.
— Queria ter a certeza de que está bem. Que tem tudo o que
precisa. — ele disse, recusando-se a olhá-la nos olhos.
Ela sufocou um sorriso. Pela primeira vez desde que o
conheceu, Will parecia pouco à vontade. Ele mexia os pés e
manteve o olhar baixo, ao chão.
Foi bom ver que ele possuía um lado vulnerável. Ela teve contato
com uma miríade de homens inseguros nesses últimos dias. Essa
rachadura na armadura dele o tornava um herói ainda maior aos
olhos dela.
— Estou bem, obrigada, Sr. Saunders. Mais do que eu esperava,
após os acontecimentos de hoje. — ela respondeu.
Will limpou a garganta.
— Também peço desculpas pelo ocorrido na feira esta manhã.
Eu estava preocupado com a multidão, mas isso não me desculpa
por tomar tais liberdades com sua pessoa. Eu deveria ter pedido
desculpas assim que chegamos ao hotel. Perdoe-me, por favor.
Prometo que não voltará a acontecer.
Uma picada de decepção perfurou o coração dela. Então,
lembrando-se de onde estava e da impossibilidade de serem algo
mais do que conhecidos temporários, ela forçou a emoção para
longe.
Claro que ele se desculparia por beijá-la, ele era um cavalheiro.
Pelo pouco que conhecia dos homens, eles nunca beijavam damas
de criação assim. E desde as primeiras palavras que trocaram, ele
adivinhou com exatidão que ela era de uma boa família.
— Eu entendo a necessidade dos seus atos, Sr. Saunders.
Pedido de desculpas aceito. — ela respondeu.
Eles compartilharam um silêncio constrangedor por alguns
segundos. Will voltou a olhar para o chão, e Hattie mexeu nas
unhas. A água do mar deixara a pele dos dedos dela áspera e
vincada.
— Algo mais? — ela perguntou.
A cabeça de Will disparou para cima.
— Sim. Certifique-se de trancar a porta, após eu sair. Este é um
dos dois únicos lugares em Gibraltar onde se pode comprar bebidas
alcoólicas após o escurecer. Ao final da noite, o andar de baixo do
hotel tende a ficar um pouco barulhento e repleto de marinheiros
ingleses embriagados. Não gostaria que um deles tropeçasse em
seu quarto por acidente. Se tiver algum problema durante a noite, eu
estarei bem ao lado. Não hesite em me convocar caso precise.
— Obrigada, vou me certificar de que a porta está trancada
quando sair. — Hattie respondeu.
Assim que Will saiu, ela trancou a porta. Então, após ouvir os
berros dos homens lá embaixo, na rua abaixo de sua janela, ela
arrastou a penteadeira pelo chão e bloqueou a porta.
— Melhor prevenir do que remediar. — ela murmurou, subindo
na cama.
Em poucos minutos, Hattie caíra em sono profundo. O longo
mergulho na baía, e os diversos acontecimentos do dia, enfim
cobraram seu preço. Se um tumulto irrompesse no andar de baixo,
ela decerto teria continuado a dormir durante todo o evento.

De volta ao quarto dele, Will andou de um lado para o outro, a


mente rodopiando. Será que ele foi tomado por algum tipo de
loucura? Ele não só foi ao quarto de uma mulher solteira, mas no
início da manhã, ele beijou essa mesma garota em público. O beijo
foi muito mais apaixonado do que a situação pedia. Pior ainda, ele
desfrutou de cada segundo do enlace.
Ele parou e refletiu. Desde Yvette, ele não punha as mãos em
uma mulher. A tentação de se consolar na companhia de uma das
damas da noite de Paris o levou ao limite mais de uma vez. Em vez
disso, ele se manteve firme na dor e na culpa, permitindo que
longas noites solitárias fossem o foco de sua mente.
No entanto, desde a primeira vez em que segurou a garota que
conhecia como Sarah, ele sentiu as agitações inconfundíveis do
desejo se inflamarem. Ele a queria em todos os sentidos.
Talvez hoje fosse o dia em que ele acordaria do pesadelo da
morte de Yvette e começaria a seguir com a própria vida. Ele
precisou de toda a determinação em seu ser para enfim deixar Paris
para sempre.
Ele esfregou as mãos no rosto cansado e bronzeado pelo sol.
— Fez uma boa ação hoje, William da Casa de Strathmore.
Deixe a situação como está.
Ele retirou a jaqueta e o lenço devagar. O uso de um valete era
algo a que ele foi forçado a renunciar em seus anos na França.
Manter um criado teria sido difícil de explicar, tendo em vista que
seu disfarce era de um simples despachante.
Fazendo uma anotação mental para pedir uma tigela de água
quente para sua navalha logo pela manhã, ele correu para a janela.
Pela janela, ele podia ver a sombra escura do gigantesco
Rochedo de Gibraltar. Dominava a paisagem. Era impossível olhar
para qualquer lugar sem que estivesse à vista. A cidade de Gibraltar
em si abraçava a estreita faixa de costa a oeste do monólito de
calcário. Era tão diferente de tudo em sua Inglaterra natal.
Ele passara anos suficientes longe de casa para se sentir
confortável em lugares estranhos e incomuns. A troca de moedas e,
muitas vezes, a travessia ilegal de fronteiras era apenas mais um
dos desafios da vida que ele aprendera a ter.
Seu domínio da língua espanhola era mais do que razoável. Ele
falava francês, língua materna do pai, como um nativo.
Ele era bem experiente na vida de expatriado, uma vida que ele
escolheu levar. No entanto, a garota no quarto ao lado, se viu muito
longe de casa de repente e de forma inesperada, com ninguém mais
além dele para protegê-la. Vê-la em segurança de volta à Inglaterra
era seu dever solene agora.
Ele colocou uma das mãos contra o vidro frio da janela. A noite
lá fora proporcionando um cenário escuro. Olhando para o próprio
reflexo, ele fez um voto.
Não falharia com essa mulher.
Ele se afastou da janela quando o cansaço começou a ganhar
terreno. Costumava dormir nu, mas esta noite seria prudente ficar
de calças e camisa. Quando a diferença entre a vida e a morte pode
ser medida em segundos, o tempo desperdiçado para se vestir pode
ser crucial.
O funcionário do hotel que cuidara do serviço de quarto dele
durante toda a semana, recebendo generosas gorjetas diárias em
troca, deixara uma garrafa de vinho do porto na mesa branca
estreita à esquerda da porta. Will absteve-se de sua habitual dose
noturna. O sono desta noite precisava ser leve.
De seu baú de viagem, ele retirou uma pequena pistola e a
carregou. Em seguida, retirou uma adaga. Mortalmente afiada e
com um punho criado para se encaixar com perfeição na pegada
dele, uma arma que não deixava espaço para discussões. A lâmina
reluzia seu tom prateado de aço à luz das velas. Mais de uma vez
ficou vermelha com o sangue de outro homem. Ele rezou para que
nenhuma arma fosse necessária esta noite.
Deitado na cama; pistola e punhal ao alcance das mãos, ele
fechou os olhos. O som do mar entrou pela janela trazendo um
bálsamo calmante à mente.
Em poucos minutos, ele estava dormindo, sonhando com botas
molhadas e longos cabelos claros.
Capítulo Seis

P ara alguém que estava a muitos quilômetros de casa e com um


futuro incerto, Hattie dormiu bem. A única vez em que ela acordou
durante a longa noite foi quando os foliões do bar do hotel saíram
pouco antes do amanhecer e começaram a cantar alto alguma
canção do mar. Ao som da melodia nada dominical, ela rolou na
cama e cobriu a cabeça com o travesseiro.
Seu pai, onde quer que estivesse em alto mar, ficaria horrorizado
ao saber que a filha estava dormindo acima de uma taverna. Ela
deu uma pequena gargalhada antes de voltar a dormir.
No entanto, a manhã encontrou-a em um humor mais sombrio.
Em algum lugar na confusão de seus sonhos, Hattie vislumbrou os
rostos aflitos dos pais. Ela acordou, certa de que os pais
acreditavam que ela estava morta.
— Como pude ser tão tola? Que egoísta. — ela choramingou.
Enquanto ela esteve sentada bebendo vinho com Will e
desfrutando das delícias da culinária local, os pais dela deviam estar
fora de si com tristeza.
Ninguém a viu saltar do navio. Até onde poderiam supor, ela caiu
ao mar em algum lugar longe da terra, para nunca mais ser vista.
Sentada na beira da cama, ela se abraçou enquanto soluços
trêmulos de culpa devastavam seu corpo.
Não importa o que ela pensasse da decisão dos pais de levá-la
para a África, eles não mereciam esse castigo cruel. Pior de tudo,
ela não poderia fazer nada para aliviar a dor deles. Uma carta
enviada no navio mais veloz a existir ainda levaria muitas semanas
para alcançá-los. Ela tomou uma decisão precipitada e deixou que
os outros, incluindo Will, pagassem o preço.
O estrago estava feito.
Quando a criada bateu na porta pouco tempo depois, Hattie
permitiu que ela entrasse, mesmo relutante. A última coisa que
queria considerar agora era qual dos vestidos muito novos ela
usaria naquele dia. O máximo que ela sentia merecer era o velho
vestido com manchas de água salgada e pés descalços.
Usando o mais simples dos vestidos novos, ela se sentou em
frente à penteadeira enquanto a criada criava um penteado simples
em seus cabelos. A criada teve o bom senso de não mencionar as
manchas das lágrimas no rosto de Hattie, nem seus olhos
vermelhos.
Houve uma batida na porta, e a voz de Will veio do corredor. A
criada logo abriu a porta, e Will entrou no quarto.
Ele deu uma olhada no rosto de Hattie, antes de se virar para a
criada e apontar para o corredor.
— Te importaria? — ele disse.
A criada saiu correndo do quarto e fechou a porta.
Will parou ao lado de Hattie e olhou para seu reflexo no espelho.
Não havia como esconder que ela esteve chorando. Ele colocou a
mão gentil em seu ombro.
— Não me diga que passou a noite toda pensando no noivo de
coração partido e decidiu que ele não era um camarada tão ruim
assim. Que talvez tenha entendido mal as intenções dele e deveria
ter ficado no navio. Se for esse o caso, eu diria ser um pouco tarde
para arrependimentos chorosos. — ele disse.
As lágrimas de Hattie começaram a cair mais uma vez. Suas
ações não só causaram miséria incalculável aos pais, mas devido
às mentiras já contadas a Will, ela não poderia compartilhar seus
problemas com ele. Agora, ela estava presa em uma teia espessa
de mentiras.
— Não deixei um bilhete para contar aos meus pais que eu
estava indo embora com Peter. Nós fugimos. Meus pais devem
estar doentes de preocupação quanto ao meu paradeiro. — ela
explicou.
Era o mais próximo da verdade que ela ousaria contar. E, de
certa forma, era a verdade. Os pais não sabiam onde ela estava e
chegariam à conclusão óbvia de que o pior havia acontecido com a
filha.
— Estaremos de volta à Inglaterra em quinze dias. Estou certo
de que seu retorno seguro superará qualquer raiva ou possíveis
recriminações. Além disso, qualquer carta que escreva e envie
daqui sairia no mesmo navio que nós, então só precisa aguentar e
ser paciente. Prometo falar com seu pai e explicar as coisas em seu
nome. — Will respondeu.
Por mais angustiada que estivesse, Hattie notou a corrente
subjacente em suas palavras. Will estava sondando de novo.
Buscando a verdade da história. Vendo se poderia arrancar um
pouco mais dela. Embora ele não soubesse, Will deu-lhe a primeira
faísca de esperança de fazer as pazes com os pais. A primeira
chance de se redimir aos olhos deles.
Assim que voltasse a Londres, ela escreveria uma carta para
eles e a enviaria para Freetown. Ela explicaria tudo. A relutância em
se casar com Peter Brown. A certeza de não estar preparada para
ser a esposa de um missionário. E, por fim, a verdade catalisadora
para a escolha drástica que fez.
Que ela não estava preparada para abandonar os amigos dos
cortiços de St. Giles. Amigos vulneráveis que poderiam estar em
perigo mortal neste exato momento. Foi por eles que ela acabou
encontrando a coragem de pular do navio. Ela havia encontrado sua
vocação com os fracos e vulneráveis de Londres, e devia ir para
casa por essas pessoas. Continuar o seu trabalho.
Ela enxugou as lágrimas, reconhecendo que não poderia fazer
nada para aliviar o sofrimento dos pais até chegar em casa. Com o
tempo, eles talvez a entendessem e a perdoassem. Will estava
certo, até esse dia ela só poderia tentar tirar o melhor da situação.
Ela estendeu a mão e tocou a manga da jaqueta dele.
— Obrigada. — ela disse.
— Bom.
Eles se olharam pelo reflexo do espelho por mais um minuto,
antes que a voz suave da criada de Hattie viesse de fora no
corredor. Will olhou em direção à porta.
— Posso atender à señorita, Señor? Sua prometida deve querer
terminar de se arrumar. — ela disse.
— Prometida? — Hattie sussurrou.
Will virou-se e abriu um sorriso terno.
— É noiva em espanhol, o que, considerando sua situação atual,
a melhor decisão será fingir sermos noivos até chegarmos à
Inglaterra. — ele respondeu.
Com toda a paciência, Will esperou no andar de baixo, no salão de
jantar principal do hotel. Os quartos do Hotel Ventos do Mar eram
demasiado pequenos para se tomar café da manhã em particular.
Prometida.
A palavra escapou depressa pela língua dele, quando a criada
de Hattie entrou no quarto.
— Sim, claro, minha prometida gostaria de terminar de se vestir.
Ela teve um pesadelo terrível, mas está mais calma agora. Não é,
minha querida? — ele disse.
Quando ele deu um beijo casto na bochecha de Sarah, a criada
riu e corou. O olhar atônito no rosto de Sarah fez o movimento
ousado dele valer a pena.
Ela compartilhara algo de seu verdadeiro eu esta manhã. Ele
não tinha dúvidas de que quem quer que fossem e onde quer que
os pais dela estivessem, estariam muito aflitos com o
desaparecimento da filha. Havia uma dose de verdade nessa
mentira.
A criada, em seu equívoco, entregou a solução perfeita para o
disfarce deles. Ao reivindicá-la como noiva, Will poderia sondá-la
para obter sua própria versão da história. Se uma história falsa
fosse criada em torno deles, ele seria aquele a dar o tom.
— Sr. Saunders?
Ele olhou para cima e teve uma visão de beleza que preencheu
seu coração de alegria. Embora o vestido diurno simples de Hattie
fosse de um tom de creme pálido, o casaquinho era de um
magnífico carmesim-profundo. Ela usava uma fita também carmesim
nos cabelos.
O coração dele pareceu flutuar quando viu um sorriso chegar
aos lábios dela. As lágrimas se foram, e ele viu a esperança
iluminando aquele rosto.
Levantando-se depressa da mesa, Will segurou a mão de Sarah
e deu um beijo ali. Enquanto ela tentava se afastar, ele a
repreendeu baixo.
— Não seria nada bom mostrar qualquer forma de
descontentamento comigo em público. Não pense, nem por um
instante, que toda a equipe do hotel não está falando de nós e da
pequena cena em seu quarto mais cedo. Creio que sua criada
consegue descer aquelas escadas rápido o suficiente para correr e
dizer a qualquer um que queira ouvir que a senhora e o cavalheiro
ingleses devem ter tido um desentendimento porque você estava
chorando.
O pequeno "o" que apareceu nos lábios de Hattie e o
relaxamento da mão foram encorajadores. Ele se inclinou para perto
e murmurou em seu ouvido.
— E não me chame de Sr. Saunders, somos noivos para todos
os efeitos. Sou William. Will para todos os meus amigos e familiares.
Se continuar a se dirigir a mim com tanta formalidade, entregará o
jogo.
Sarah assentiu.
— Will. — ela respondeu.
Durante o café da manhã repleto de café e pães doces, ele se
empenhou para formar um vínculo mais familiar com ela. Ele riu do
rosto perplexo dela ao ver a escassez de café da manhã.
— Por aqui, eles aderem ao modo espanhol de viver, adotam
muitos de seus costumes. Uma pequena refeição no início do dia,
seguido de algo um pouco mais substancial ao final da manhã. A
principal refeição do dia é consumida após o meio-dia. — ele
explicou.
— Que estranho. — ela respondeu.
— Na verdade, não. As pessoas levantam-se cedo aqui,
trabalham e, após a refeição do meio-dia, descansam e dormem
para evitar o calor da tarde. Percebeu o quão cansada você estava
ontem, quando foi para a cama? O calor do sol espanhol suga toda
a nossa a energia. — ele disse.
Sentado ali e a observando, Will mais uma vez lembrou-se da
falecida esposa. Sarah e Yvette compartilhavam alguns
maneirismos. A primeira vez em que Sarah franziu todo o rosto ante
o sabor do café amargo, Will chegou perto das lágrimas. Yvette
sempre gostou de tomar o primeiro gole do café da manhã antes de
declará-lo impróprio para beber e despejar açúcar na xícara.
Ele deslizou o pequeno recipiente de açúcar pela mesa e, com
um floreio, removeu a tampa.
— Uma colher bem cheia sempre tira o amargor. — ele disse. E
logo tossiu, limpando o caroço que se formara na garganta.
Sarah deu várias outras mordidas no pão doce do café da
manhã, antes de se recostar na cadeira. O café, ela deixou
intocado.
— E agora? Fico no meu quarto até que o navio para a Inglaterra
esteja pronto para zarpar? — ela perguntou.
Não importa que verdade se escondesse atrás daquelas
mentiras, ele se viu gostando mais dela a cada minuto passado. Ele
gostava que ela conseguisse ver o quadro maior da situação deles.
O salto do navio, ele suspeitava, era um desvio completo de seu
comportamento habitual. Que, por natureza, ela não era uma
tomadora de riscos. Nisso, ela e Yvette diferiam muito.
— Eu estava pensando nisso enquanto a esperava. É alguém
que gosta do ar livre ou do campo? — ele a questionou.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, antes de responder.
— Eu gosto de sair e caminhar ao ar livre. — ela disse.
Qualquer outra pessoa teria adicionado mais detalhes da própria
vida. Dos parques que visitavam com frequência, ou o lugar favorito
para espairecer, mas não ela. Se ela fosse um de seus jovens
soldados, ainda em treinamento operacional, ele teria aplaudido o
esforço. Ela respondeu, mas apenas o suficiente.
No entanto, a linguagem corporal dela a entregou como
amadora. Um bom espião deve conseguir pronunciar as palavras e
parecer relaxado. Sarah enrijeceu as costas, mesmo sem perceber.
— Ótimo. Então, penso que devemos concordar em aproveitar
ao máximo o tempo que nos resta em Gibraltar. O navio parte com a
maré amanhã à noite, então temos tempo para nos aventurarmos na
base do rochedo e visitar a caverna de São Miguel hoje. Visitei a
caverna no início da semana e devo dizer que valeu a pena o
esforço. Seria negligente da minha parte, como seu anfitrião, não
lhe mostrar as cavernas. Entretanto, antes disso, creio que devemos
fazer a viagem até o Europa Point. Podemos ir ainda esta manhã.
Nesse meio tempo, podemos visitar as lojas da cidade e comprar
quaisquer outros itens que precise para a viagem de navio para
casa. — ele respondeu.
Capítulo Sete

A última coisa que passaria na cabeça de Hattie enquanto nadava


até a costa na manhã anterior era passear por Gibraltar fingindo ser
alguém chamada Sarah. Muito menos que bancaria a turista,
enquanto ela faz isso. Os pais e Peter determinaram ser melhor que
ela permanecesse na pousada durante a estada. Passear era um
desperdício frívolo do tempo de uma jovem.
Para sua surpresa e total deleite, Will pensava diferente. Ele
assumiu o papel de anfitrião animado e envolvente com prazer
velado.
Após comprar suprimentos para a viagem de navio, inclusive
vários livros, Will contratou um guia local para mostrar os pontos
turísticos. Era final de tarde quando enfim chegaram a Europa Point,
a ponta mais meridional do continente europeu.
— Nosso guia diz para ter cuidado onde pisa, os burros não se
importam onde deixam seus excrementos frescos. — Will disse.
Antes que ela pudesse contestar, Will colocou as mãos de cada
lado de sua cintura e a levantou da pequena carroça que os havia
trazido ao longo da Estrada Europa.
Na viagem desde a cidade, Will contou uma rápida versão da
história de Gibraltar e do Rochedo para Hattie.
— Quase todos os povos desta parte do mundo já governaram
Gibraltar em algum momento. Os mouros assumiram o controle no
século VIII, sendo finalmente expulsos no XIII. De lá até quando os
britânicos assumiram o controle no século passado, os espanhóis
lutaram entre si para governar. Os espanhóis, é claro, a querem de
volta, mas não consigo ver tal desfecho acontecendo tão cedo.
— E os locais, o que querem? — Hattie perguntou.
Will fez uma pausa, mas logo respondeu:
— Para ser honesto, acredito que ficariam felizes em manter
como está. Assim, eles obtêm o melhor dos dois mundos. Os
britânicos gastam dinheiro aqui devido à presença da Marinha, e a
Espanha fica a curta distância para alimentos e suprimentos.
Mantendo a pretensão de ser um casal de noivos, Hattie deslizou
a mão no braço de Will e deixou-o guiá-la pelo pequeno pedaço de
terra, repleto de pedras, da carroça até o Europa Point.
O guia que Will contratara na cidade, ficou de pé com as mãos
nos quadris e examinou a vista para o mar. O burro dele, menos
interessado na vista, vagou até uma moita de jasmim selvagem nas
proximidades e começou a mexer nas folhas com o nariz.
— Es una magnifica vista. — exclamou o guia.
Hattie e Will foram para o lado dele. Ela assentiu. Nenhuma
tradução seria necessária para entender o que o homem de rosto
corado dizia. A vista falava por si.
Quilômetros e mais quilômetros de oceano se estendiam diante
deles em três lados. Muito abaixo deles, o azul do mar só era
quebrado pelo reflexo do sol quente que reluzia como um facho
atingindo a superfície vítrea da água. Will apontou ao longe, onde
Hattie conseguia ver uma fileira de montanhas no lado oposto da
água.
— Aquelas montanhas são o Rife, Marrocos. A montanha mais
alta é Jebel Musa, também conhecida como uma das Colunas de
Hércules. Esta é uma terra antiga. Estamos de pé no extremo sul da
Europa e lá fica a África. — ele disse.
África. O enorme continente que até pouco era seu futuro estava
à vista ao fim do fino trecho de água, o Estreito de Gibraltar. Estava
tão perto, que ela sentiu que poderia estender a mão e tocar as
montanhas.
Ela olhou para suas botas novas. Estavam revestidas com a fina
poeira calcária do Rochedo. Poeira do continente europeu.
Quando voltou a olhar para o outro lado da água, ela sorriu. Não
havia nenhum impulso em seu coração para fazer a jornada. A terra
escura não lhe era convidativa para entrar em seu abraço. E por
isso, muito do seu medo foi deixado de lado.
Ela sabia onde pertencia. Seu lar era na Inglaterra.
Will notou seu sorriso e levantou uma sobrancelha.
— Pelo menos pode dizer que viu a África, embora à distância. O
que acha? — ele perguntou.
— Acho que eu gostaria de ir para casa. — ela respondeu.
Eles ficaram ali por mais algum tempo em silêncio apreciando a
vista. O único barulho a ser ouvido era o grasnar das gaivotas ao
vento e um grunhido ocasional do burro.
Por fim, o guia falou, e Hattie se virou. Ela ficou boquiaberta ao
fazê-lo. Elevando-se acima deles estava o Rochedo de Gibraltar em
toda a sua magnificência.
Da cidade e do porto, o pináculo da Rocha ficava escondido de
vista, mas aqui no Europa Point, a visão da imensa altura do
monólito de calcário era bem clara.
— É incrível. Nunca vi nada parecido. — ela disse.
Will deu-lhe um sorriso encorajador. Ele não era um homem fácil
de discernir. Às vezes, ele era amigável e relaxado, como estava
sendo desde que deixaram a cidade mais cedo. Entretanto, em
outras ocasiões, ela sentia que ele não era um homem feliz por
natureza.
Observando como ele se abaixou e pegou um pequeno buquê
de margaridas à beira-mar, ela o considerou mais uma vez. Havia
uma tristeza inerente nele, mas ela suspeitava que ele nem sempre
foi assim. Talvez ele tenha sofrido uma perda terrível na vida, uma
que deixara cicatrizes profundas. Ela não conseguia explicar por
que se sentia assim e, no fim, forçou-se a aceitar que era apenas
um palpite.
— Sim, o Rochedo é uma verdadeira maravilha da natureza.
Mais de quatrocentos metros de altura. — Will disse.
Ele entregou a ela o pequeno buquê de margaridas com pétalas
brancas e centros dourados. Hattie as aceitou com um sorriso
tímido. Ela segurou as flores perto do coração. Era lindo receber um
presente tão espontâneo.
— Nós o vimos do convés do navio quando entramos na baía,
mas era cedo, e as nuvens de chuva da manhã eram baixas, não
conseguíamos ter uma visão clara. Meu pai…
Hattie interrompeu-se a tempo.
Ela estava prestes a dizer a Will o quão desapontado seu pai
ficou ante seu primeiro vislumbre do Rochedo, quando percebeu o
que estava fazendo. A mentira construída com tanto esmero no dia
anterior quase se desvendou como um fio solto.
— Seu pai? — ele questionou.
A disposição animada de poucos instantes desapareceu. Os
olhos dele pareceram nublar, a expressão facial era pura cautela.
Ela foi lembrada do leão que viu uma vez, na Royal Menagerie no
Exeter Exchange. Uma fera perigosa pronta para atacar, a qualquer
minuto, e rasgá-la em pedaços.
Hattie olhou para as flores nas mãos, e procurou freneticamente
por algo a dizer, qualquer coisa.
— Sim, meu pai. Ele sempre desejou ver Gibraltar. — ela
respondeu após um tempo. Os caules das flores dobravam-se em
suas mãos fechadas com força.
Algo que aprendeu desde que conheceu Will foi a manter as
mentiras pequenas. Qualquer embelezamento parecia gerar, para
ele, um desafio irresistível de tentar abrir buracos na história.
Ele não acreditava nela, desse tanto ela estava certa. Ela só não
entendia que tipo de raciocínio o fazia escolher quais aspectos da
história ele tentaria desafiar. Havia uma estratégia em jogo, mas ela
não conseguia vê-la com clareza.
Ele não a pressionara em relação às partes cruciais da mentira,
mas parecia ter a intenção de chafurdar as margens insignificantes.
Margens que ela sabia estar erodindo a cada minuto.
— Talvez viaje com ele para cá no futuro. Refaça os passos da
sua grande aventura. Contudo, primeiro devemos levá-la em
segurança à Inglaterra. — ele disse.
O leão recuou.
Enquanto olhava para ele, Hattie sentiu um desejo quase
esmagador de confessar tudo a Will. De muitas maneiras, seria
muito mais fácil se ele soubesse. Esse jogo contínuo de tentar ler os
pensamentos e emoções um do outro era exaustivo.
Ela odiava mentir. Ia contra tudo em que ela acreditava. Todavia,
contar a verdade da situação para Will significaria dar-lhe controle
total. Sem mais nada para negociar, ela estaria à mercê dele.
Estaria mais uma vez impotente para determinar a própria vida.
— Disse que subiu ao topo do Rochedo. — ela disse.
Se ele conseguia lê-la tão bem quanto ela suspeitava ser o caso,
Will saberia que ela queria mudar de assunto. Ele conseguiu abrir
um pouco mais da porta aos segredos dela, agora ele se contentaria
em deixá-la se sentir confortável de novo. Mais tarde ele a
pressionaria outra vez em busca de respostas.
Quanto tempo ela conseguiria continuar com este jogo, ela não
sabia dizer, mas com sorte, quando Will enfim juntasse as peças
desse quebra-cabeça, ela estaria longe dele.
— Sim, eu me aventurei até a caverna de São Miguel no início
da semana. É uma caminhada íngreme acima saindo da cidade,
mas podemos visitá-la voltando daqui. Duvido que amanhã
tenhamos tempo. Tenho alguns assuntos de negócios para tratar de
manhã antes de partirmos. — ele respondeu.
Sua mãe a alertara quanto aos macacos que vivem no Rochedo.
Dizia-se que os macacos-de-gibraltar eram perigosos e propensos a
atacar sem provocação.
— Não sei se devo ir. E os macacos? — ela disse.
Ele estendeu a mão e segurou a dela. O olhar que ele dera
quando perguntou por que ela havia pulado do navio reapareceu
naquele rosto. Era um olhar tão cheio de honestidade, que Hattie
sentiu uma lágrima brotar nos olhos.
— Sim, você deveria, e sabe por quê? Porque daqui a alguns
anos, quando estiver velha e refletir sobre sua vida, você vai se
recordar da breve estada em Gibraltar e lembrar das escolhas que
fez. Que foi corajosa. Não ficará desapontada com a caverna.
Prometo que não vou deixar os macacos a machucarem. Confie em
mim.
Ela afastou a mão. O medo a segurava. Muitas vezes, Peter
Brown mostrou uma pequena dose de bondade apenas para revelar,
mais tarde, que não passara de um recurso para dobrá-la à vontade
dele. Ela seguiria seu próprio conselho.
Ainda assim.
Aqueles profundos olhos cinzentos traziam a promessa de calor,
do forte vínculo de amizade e muito mais. Ela estava dividida em mil
direções quanto ao que fazer.

O guia trouxe o burro e a carroça para onde eles estavam. Will sabia
que Sarah não estava certa quanto ao que fazer.
— Uma curta parada na caverna. Caso se sinta desconfortável,
no instante que for, só precisa falar e vamos embora imediatamente.
Combinado? — ele ofereceu.
— Combinado.
Ele se parabenizou em silêncio por tê-la conquistado, mas sabia
ser preciso avançar com cuidado. Esta tarde, ela estava tão
desconfiada quanto um potro.
Eu adoraria muito saber o seu nome verdadeiro.
Na estrada voltando do Europa Point, ele fez o seu melhor para
manter um diálogo inofensivo.
— Cheguei a contar que o navio em que consegui passagens
para nós retornarmos para casa é um irmão do Blade of Orion?
Chama-se Canis Major e, embora eu seja levado a acreditar ser um
pouco menor do que o navio em que você chegou, nos servirá bem.
Tendo decidido acompanhá-lo até a caverna, Sarah parecia
contente em sentar-se em silêncio e apreciar a vista da baía de
Gibraltar. Após divagar em torno dos espanhóis e de como as
mercadorias eram levadas de um lado para o outro entre Espanha e
Gibraltar, e recebendo pouco em troca dela, Will decidiu ser melhor
não dizer nada.
Na caverna de São Miguel, o guia liderou o caminho. Will
segurou a mão de Sarah e levou-a até a entrada. Ali, um homem
vendeu-lhes dois ingressos e uma tocha de grama. Will acendeu-a
enquanto ele e Sarah caminhavam devagar para a caverna.
A mão dela agarrava-se a dele. Ele se virou, oferecendo um
sorriso reconfortante. A luz da tocha nos olhos dela. Ela estava com
medo, mas estava com ele. Ele a manteria segura.
Vários macacos se sentavam na parte de dentro da entrada da
caverna. Will os afastou. Quando ficou claro que nem ele e nem
Sarah carregavam comida, os macacos se afastaram.
— Está tudo bem? — ele aventurou-se a perguntar.
Sarah desviou o olhar dos macacos em retirada e voltou para
Will.
— Sim. Só estava pensando nos macacos. Eles são bastante
mansos, não são? Vi alguns na Torre de Londres uma vez, mas
eram bastante agressivos. — ela respondeu.
— Sim, bem, estes podem ser desagradáveis quando o humor
lhes convém. Eu advertiria contra a tentar acariciar qualquer um
deles. Venha, vamos nos aventurar na caverna e, em seguida,
procurar algo para cear. Estou faminto.
Ele a levou mais fundo na caverna. A tocha logo se tornou a
única fonte de luz. Sarah apertou a mão de Will com mais força.
Ele levantou a tocha, e Sarah ofegou ao contemplar todo o
mundo subterrâneo diante dela.
— Nossa, nunca imaginei que um lugar assim pudesse existir. —
ela murmurou.
— Foi a mesma reação que tive quando vim no início desta
semana. — ele respondeu.
O teto da caverna principal erguia-se muitos metros acima de
suas cabeças. Enormes estalactites, parecendo lanças, pendiam do
teto, enquanto estalagmites subiam em formações semelhantes a
torres desde o solo da caverna.
— É maravilhoso. Até onde vai essa caverna? — ela perguntou.
— Bem, existem mitos antigos de que seria uma porta de
entrada para o submundo, mas suponho parar um pouco antes.
Ninguém fez esforço real e determinado de explorar mais a fundo as
câmaras inferiores por medo de nunca mais voltarem a ver a luz. —
ele respondeu.
Sarah soltou a mão de Will. Seu medo dos macacos e da
caverna parecia ter desaparecido. A caverna estava vazia de outros
turistas.
— Você está certo, é como algo da mitologia grega. Eu meio que
espero que um deus antigo ou monstro apareça na parte de trás da
caverna.
Alcançando a estalagmite mais próxima, ela colocou a mão.
— Está molhado! — ela exclamou, puxando-a de volta.
Will riu.
— A água do teto precisa ir para algum lugar.
Ele apontou para o teto da caverna.
— A água da chuva se infiltra no calcário pela superfície superior
da rocha do lado de fora e, ao longo de muitos anos, desce para a
caverna. Essa água que acabou de tocar pode ter levado trinta anos
para chegar aqui.
Sarah olhou para a mão e sacudiu a água das pontas dos dedos.
Will bateu palmas de prazer.
— Parece minha irmã mais nova, Caroline, quando o gato lambe
a mão dela. É a visão mais engraçada que se pode ter. — ele riu, e
Sarah fungou.
— A gata da minha família, Brutus, é mais propensa a tirar um
pedaço da sua mão do que dar uma lambida amigável. Então, tem
muitos irmãos? — ela perguntou.
— Tenho duas irmãs e um irmão. Evelyn, que chamamos de
Eve, tem vinte e poucos anos. Caroline é três anos mais nova. E há
Francis, que se encaixa em algum lugar no meio, embora sinta
dificuldades de caber em qualquer lugar devido aos seus 1,93m de
altura. Estou bem ansioso para me reencontrar com eles.
A sensação de alegria na voz dele, quando ele falou da família,
iluminou o humor de Will. Sentia falta da família. Retornar de vez a
Londres era algo que deveria ter feito antes.
Outro grupo de turistas entrou na caverna e começou a olhar ao
redor. O momento em particular deles terminara.

O sol afundava devagar a oeste e o ar esfriava depressa quando


começaram a lenta descida pela montanha, rumo à cidade.
Passaram várias horas na caverna, passeando ao redor e vendo as
várias formações calcárias. Will mostrara uma parte em que a
camada externa foi recortada e viam-se anéis de crescimento como
em uma árvore.
Ele era um excelente guia, terno e envolvente. No final do
passeio na caverna, Hattie sentia certa ternura brotar em relação a
Will.
A empolgação que ainda corria em suas veias, a fez se
perguntar se poderiam voltar para a cidade a pé em vez de
seguirem na carroça. Will pagou o guia e o dispensou junto do burro
quando deixaram a caverna de São Miguel.
Hattie estava exausta quando enfim chegaram à praça da
cidade, mas sua alma se sentia viva. O dia passado com Will estava
a um mundo longe da existência estrita e maçante a que ela se
acostumou tanto nos últimos anos.
— Vamos encontrar um lugar privado para desfrutarmos um
pouco mais da culinária local. Não sei você, mas estou morrendo de
fome. — ele disse.
Quando ele se virou e a olhou, Hattie logo fixou o olhar nos
lábios de Will. Apenas um dia atrás, ele a tomou nos braços e a
envolveu naquele beijo digno de desmaio.
Um rubor queimava suas bochechas, e ela levantou um dedo
hesitante para sentir o calor. Afastando-se, ela esperava que ele não
tivesse visto seu momento de tentação.
Eles encontraram uma pequena cantina a algumas ruas de
distância do hotel. Entrando no edifício de pedra fria, Hattie sentiu a
exaustão, após todo o calor do final da tarde, descer sobre seus
ombros. Ela dormiria bem esta noite.
As paredes da cantina haviam sido pintadas de branco. Diversas
cadeiras e mesas sem par lotavam o ambiente.
— Não há mais ninguém aqui. — ela disse.
— A maior parte da população local deve estar descansando em
casa até que o sol se ponha, estamos um pouco adiantados. Em
uma hora este lugar transbordará de gente. — Will explicou.
Ele a levou até uma mesa no canto. Ela considerou estranho ele
tomar o assento encostado na parede, deixando-a se sentar no lado
oposto. Ela conhecia o suficiente as regras da sociedade para saber
não ser o certo a se fazer quando em companhia mista.
Enquanto ponderava esse comportamento, Hattie observou
como Will perscrutava o salão com esmero. Os lábios dele se
moviam de leve nesse ínterim. Virando-se, ela olhou na mesma
direção que ele.
Olhou de relance para ele, antes de se virar mais uma vez. Will
estava contando os passos da mesa até a porta? Ela mesma fez
uma contagem aproximada e voltou-se para ele, convencida dessa
teoria. Que tipo de homem precisava saber o número exato de
passos de sua mesa até a porta da frente? Como ela, Will também
mantinha seus segredos.
— Ninguém fica em suas casas à noite aqui. Eles se vestem e
passeiam. Um pouco como o passeio das cinco horas no Hyde
Park, em Londres, durante a Temporada. Você já foi? — ele
perguntou.
— Não. — ela mentiu.
Apenas a nata da sociedade londrina ia para o Hyde Park à
tarde. Se ela tivesse dito sim, teria gerado a abertura perfeita para
perguntar quem ela conhecia entre a Sociedade. Ela não correria
riscos.
O dono da cantina trouxe uma garrafa de vinho e algumas
azeitonas frescas antes de desaparecer na cozinha para preparar o
peixe que Will escolhera do simples menu pintado nas paredes
caiadas de branco.
Hattie tomou um gole de vinho. Ela se esquecera do quanto
costumava desfrutar do simples prazer de uma taça de vinho no
jantar. Seu irmão Edgar tinha um nariz experiente para uma boa
garrafa de vinho tinto.
Ela sentia falta das noites em que, sentada ao redor da mesa
com os pais e o irmão, ela desfrutara da leveza de coração e do
simples prazer da companhia deles.
— Então? — Will disse.
Ela olhou para ele e viu um olhar agora familiar aparecer no
rosto dele. Seu olhar de Inquisidor Espanhol, ela o apelidou. O Will
descontraído desta tarde agora era substituído pelo Will cheio de
perguntas desconfortáveis.
— Perdão? — ela respondeu.
Qualquer que fosse a linha de questionamento em que Will
estava prestes a começar, ela sabia que trazia a intenção de fazê-la
tropeçar.
Decepção por ter perdido aquele clima de amizade tranquila da
tarde a fisgou. Ela não gostava de pessoas que jogavam, e doía
pensar que o comportamento amigável de Will na caverna fora
apenas um ato. Um ato para fazê-la relaxar e confiar nele o
suficiente para que, da próxima vez que ele a questionasse, ela
escorregasse e revelasse mais da verdade.
— Chegou a dizer que seu pai considera o vinho uma obra do
diabo. No entanto, a senhorita não parece compartilhar dessa
opinião. Essa deve ser uma história interessante para contar.
Hattie encarou a taça de vinho. O que ela deveria dizer? Que o
pai e a mãe fizeram uma súbita conversão a uma seita puritana e
renunciaram a todos os assuntos que consideravam maus? Da
cisão que causou na família, resultando no rompimento de laços por
parte do irmão e da esposa dele?
Não. Ela não trairia o que seus pais acreditavam. Apesar de não
concordar com as escolhas que fizeram ao longo dos últimos anos,
ela ainda lhes devia alguma lealdade. O trabalho que faziam para
salvar vidas e mudar futuros era irrepreensível.
— Não creio que me cabe contar a história do meu pai. — ela
respondeu.
Ela levantou a cabeça e endireitou as costas. Hattie era dotada
de uma teimosia que a mãe muitas vezes apontara como uma falha
grave em seu caráter. Até mesmo Peter comentou que, quando se
casassem, ela teria que deixar essa obstinação de lado e obedecê-
lo.
Will piscou devagar ao se recostar na cadeira. O rosto dele não
mostrava emoção. Sob a mesa, Hattie estalava os dedos de
nervoso. Ela odiava homens silenciosos e resguardados. Para ela,
esse tipo sempre escondia maus pensamentos e desejos.
— Claro. — ele respondeu.
Quando o dono da cantina veio com um grande prato com queijo
de cabra, tomates frescos e o peixe cozido, Hattie suspirou de alívio.
A chegada da comida teve o efeito que ela esperava. Will cessou
o interrogatório e pegou um tomate. Ele cortou ao meio e entregou
uma metade para Hattie.
— Café, é disso que precisamos. — ele disse, acenando para o
dono da cantina, sem se levantar da mesa.
— Vive nesta parte do mundo há muito tempo? — ela perguntou
assim que o dono da cantina desapareceu na cozinha.
Ela podia jurar que ouviu Will murmurar touchè sob a respiração.
As cartas estavam sendo usadas contra o inquisidor.
— Não muito. Tendo a viajar um pouco. — ele respondeu.
Hattie concentrou-se na tarefa de exibir um ar desinteressado,
muito parecido com o que Will parecia dominar.
— Ah. Então, o que faz, Will? — ela respondeu.
Ele diminuiu a mastigação, mas, além disso, não mostrou
nenhum sinal externo de desconforto.
Hattie rangeu os dentes. Ela conhecia o suficiente da família
Saunders para saber que Will decerto não era um homem que
praticava algum ofício. Era preciso ser bem contundente para ser
um membro da Sociedade. E o tio dele era o Duque de Strathmore.
Dois podem jogar esse jogo.
— Estou no comércio muito tedioso de importação e exportação.
Venho com frequência para a Espanha para obter mercadorias. —
ele respondeu.
Hattie estalou os nós dos dedos da outra mão. Eles estavam
fazendo um jogo de mentiras que ela sabia que não poderia vencer.
Ela olhou para Will. Sentado e sorrindo para ela, o desafio de
continuar a jogada escrito naquele rosto pleno de alegria.
Ela bocejou.
— Estou exausta, foi um longo dia ao sol.
Will assentiu e bocejou também.
— Sugiro que comamos e voltemos ao hotel. Temos um longo
dia pela frente amanhã.

Após voltarem para o hotel, e Sarah estar em segurança de volta ao


quarto, Will decidiu precisar dar um passeio. Uma longa caminhada.
Ele escolheu o caminho que ligava a parte mais longe da cidade
ao longo da praia até a Baía de Rosia, um dos poucos lugares no
lado ocidental da península de Gibraltar com uma praia acessível.
Lá ele tirou as botas, arregaçou as calças e caminhou pela água
fria do mar. O sol há muito se punha abaixo do horizonte. Um brilho
dourado iluminava o litoral. Em algum lugar próximo, uma banda
tocava canções locais. Um coro acompanhava a música. A noite
parecia mágica.
O dia passado com Sarah foi recheado de constantes
revelações, tanto dela como surpresas sobre si.
Ela sofrera nas mãos de algum malandro. O medo era real. O
que ele não conseguia entender era por que razão ela não estava
preparada para confiar nele.
— Tenho ares tão predatórios assim? — ele murmurou.
Ele enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta, incapaz de afastar
esse pensamento irritante da cabeça. Havia algo mais nela, algo
inesperado.
Olhando para o mar, observando os barcos de pesca saírem
com a maré do anoitecer, ele sentiu a totalidade do efeito dela sobre
ele.
Ele a conhecia a apenas um dia, nem sabia o nome verdadeiro
dela. No entanto, desejo se agitava em seu sangue. Por toda a
tarde, sempre que a olhava, ele se viu envolto em um impulso de
puxá-la mais uma vez para um abraço e beijá-la sem pensar no
amanhã. Para passar as mãos em torno dos quadris dela e puxá-la
com força contra ele.
Ele expeliu o ar dos pulmões de maneira audível, sentindo-se
enrijecer só de pensar nela. Como ele sobreviveria duas semanas
no navio para a Inglaterra com ela? Ele não podia ficar trancado na
cabine o tempo todo.
Se não quisesse enlouquecer nesse período, ele precisava
descobrir tudo o que pudesse da mulher misteriosa que havia tirado
do mar. Fazê-la revelar todos os segredos mais profundos para ele.
A primeira coisa que precisava fazer era descobrir o nome
verdadeiro dela.
Em seguida, ele a faria dele.
Capítulo Oito

A o deixar o hotel no início da manhã seguinte, Will dirigiu-se para


a Agência Marítima do Porto de Gibraltar, situado à beira-mar.
Antes que navegassem neste dia, ele estava determinado a
desvendar quem Sarah era de verdade. Ele não estava mais
convencido de que era apenas o ex-espião nele que o impulsionava
a descobrir a verdade dela.
Ele conhecia bem as rotinas marítimas para saber que o registro
dos Manifestos, armazenados no escritório portuário, daria as
informações vitais que ele procurava.
O Blade of Orion permaneceu no porto por vários dias pelo que
ele se lembrava. Os passageiros precisam se registrar junto às
autoridades locais de Gibraltar quando desembarcam. Nomes e
locais de origem estariam nos registros.
Ele caminhou sem pressa até o pequeno prédio de madeira
acinzentada que abrigava a Agência Marítima e abriu a porta. O
Intendente no comando era um cavalheiro careca e rotundo que
olhou para Will como se precisasse de uma noite de sono decente.
A farda do homem parecia servir mais pelo acaso do que por
propósito. Outra cerveja ou torta grande, e os botões dourados da
jaqueta azul poderiam estourar. As normas decerto haviam relaxado
desde o fim da guerra com a França.
O Intendente se arrastou de detrás da mesa para onde Will
estava no longo balcão de madeira. Quando o Intendente chegou ao
balcão, Will recebeu uma amostra desagradável do odor de suor
antigo e mau hálito. Ele deu meio passo para trás.
— Apenas capitães de navios e servidores navais oficiais são
permitidos aqui, senhor. — ele disse.
Will observou que o “senhor” foi adicionado como uma mera
reflexão tardia.
Sem emoção no rosto, Will deslizou um pedaço de papel
dobrado pelo balcão em direção ao Intendente.
E esperou.
Levou apenas um segundo para o comportamento do Intendente
mudar. Ele parou de ler e olhou para Will. Uma gota de suor nervoso
deslizou pela bochecha do homem.
Ele endireitou as costas e ajustou a frente da jaqueta. Não fez
nada para fazê-lo parecer melhor, mas deu toda a compreensão de
que Will precisava.
— Como posso ajudá-lo, senhor?
Will pegou a preciosa carta, assinada pelo rei George em
pessoa, e colocou-a de volta no bolso da jaqueta.
— Alguns minutos a sós com o registro de remessa da semana
passada, se puder ser tão gentil. — ele respondeu.
Sem demora, ele foi levado a um escritório próximo. O
Intendente arrumou alguns papéis na mesa e abriu espaço para Will
se sentar. Em seguida, o homem saiu correndo, retornando o mais
rápido que as pernas corpulentas podiam carregá-lo. Nas mãos, ele
trazia um grande livro verde, que colocou na mesa na frente de Will.
— Leve o tempo que precisar, senhor. Você aceitaria um copo de
vinho do porto, senhor?
Will o dispensou com um aceno. Apenas militares da Marinha
bebiam a esta hora do dia.
Will abriu o livro e começou a virar as páginas. No topo da
página com a data de cerca de seis dias antes, ele encontrou a
listagem para o Blade of Orion. Ele começou a ler a lista de
passageiros. Não demorou muito para ele encontrar o grupo de
viagem que melhor correspondia à descrição de suas suspeitas.
Sr. e Sra. Aldred Wright, Londres
Senhorita Harriet (Hattie) Wright, Londres
Pastor Peter Brown, Londres
Senhorita Sarah Wilson, York
Ele recostou-se na cadeira e olhou para a lista de nomes.
Havia uma Sarah Wilson a bordo do navio, isso era verdade.
Mas sua Sarah Wilson falava com o sotaque de alguém nascido e
criado em Londres, não com o sotaque distinto que uma garota de
York seria pressionada a esconder. Ele apostaria seu último centavo
que a verdadeira Sarah Wilson ainda estava a bordo do Blade Of
Orion e a caminho da África.
Isso o deixou com apenas outro nome possível.
— Senhorita Hattie Wright. Prazer em conhecê-la. — ele
murmurou.
Ele pegou uma caderneta e um lápis do bolso da jaqueta e
anotou os nomes do grupo de viajantes. Ele estava dedilhando na
mesa, contente, quando o Intendente retornou cerca de dez minutos
depois.
— Encontrou o que procurava senhor? — ele perguntou.
Will levantou-se da mesa e fechou o livro. Com um floreio,
apresentou-o ao Intendente.
— Sim, obrigado, encontrei exatamente o que procurava.
Capítulo Nove

V oltando para o hotel, Will espiou no cais, o Canis Major, o navio


em que ele havia reservado passagens para Hattie e ele voltarem à
Inglaterra.
Ele pensou no pedaço de papel no bolso. Era estranho pensar
em Sarah como Hattie. No entanto, de alguma forma, o nome
combinava mais com ela. Logo chegaria o momento em que ele a
confrontaria acerca do que descobriu nos registros navais.
Entretanto, essa conversa precisaria esperar até que estivessem em
alto mar. Will não se arriscaria.
Quando se aproximou do navio, seu coração afundou.
Pode ser um navio irmão do Blade of Orion, mas era aí que
terminava qualquer semelhança entre os dois. Enquanto o Blade Of
Orion era um navio robusto e bem conservado, o Canis Major já
havia passado de seus melhores dias.
O topo do bombordo, abaixo das correntes, era de um azul-
profundo com detalhes em ouro quando novo. Em alguns lugares,
manchas da pintura ainda eram evidentes, porém, a tinta havia
descascado ou desaparecido na maior parte do navio.
A figura de proa do navio parecia ter sido um cão pintado de
ouro segurando um escudo com estrelas escolhidas em vermelho.
Agora metade da cabeça do cão havia desaparecido, assim como
uma das patas.
Will começou a reconsiderar a sabedoria de navegar em tal
embarcação. Ele caminhou ao lado do navio até chegar à prancha.
Quando um membro da tripulação passou por ele, carregando um
grande barril, Will o parou.
— O capitão está a bordo do navio? — ele perguntou.
O marinheiro meneou a cabeça na direção de uma pequena
mesa, em que um cavalheiro de cabelos brancos se sentava,
escrevendo com fúria no manifesto do navio. Ele parecia bem-
vestido, o que deu um lampejo de esperança a Will. Ele se dirigiu
para o homem.
— Bom dia. Pelo que entendi, o senhor é o capitão deste navio.
— Will disse.
O capitão olhou para cima, mediu Will em um instante e ficou de
pé.
— Sou eu. Quem quer saber?
Will estendeu a mão, e o capitão, apesar de surpreso, ficou com
pouca escolha a não ser aceitá-la. O tempo de Will como um agente
disfarçado ensinou o valor de um aperto de mão oferecido de bom
grado, e o de uma moeda de ouro. Os homens, por natureza,
tendem a confiar em homens simpáticos.
— Tenho passagem reservada a bordo para minha noiva e para
mim. Você ainda pretende navegar com a maré desta noite?
O capitão assentiu.
— Se conseguirmos que toda a carga seja carregada a bordo até
ao meio-dia, então sim.
Will olhou para o convés do navio e pôde ver que ele já estava
repleto de barris e caixas, a tripulação amarrando tudo com corda
pesada.
— Tem uma carga e tanto ali. Não ficará um pouco apertado
para os passageiros se movimentarem no convés? — ele
perguntou.
O capitão balançou a cabeça e apontou para a parte de trás do
convés.
— Há apenas vocês dois, então não precisaremos de muito.
Este navio não deveria ir até Londres até a próxima semana, mas
um dos outros navios da empresa atingiu um recife ao largo das
Ilhas Canárias na semana passada e conseguiu um buraco grande
na lateral. Devemos levar o máximo de carga que pudermos nesta
viagem. Todas as cabines, exceto a sua e a minha, estão cheias de
carga.
Will franziu a testa, sem saber se ouviu bem o capitão.
— Disse que há apenas uma cabine para os dois passageiros?
— ele questionou.
— Sim, e teve a sorte de consegui-la. Contudo, não se preocupe,
há amplo espaço para os dois. Isso, é claro, se ainda desejar
navegar conosco hoje, tenho muitos compradores para a sua
cabine, se não.
Will olhou para o navio e o capitão bufou.
— Não se deixe enganar pela aparência desgastada, é uma
embarcação resistente. Estou prestes a me aposentar, vou morar
em uma pequena casa de campo em Dorset com minha esposa, eu
o farei até o final do ano. Eu não poria os pés em nada que me
enviasse para uma sepultura aquosa antes disso. Minha esposa me
mataria.
Will se animou. Por mais apertado que o navio pudesse ser, se
levasse os dois em segurança para casa, ele conseguiria suportar
um pouco de desconforto.
E por mais que não fosse o ideal, ele sabia ter pouca escolha.
Poderia passar mais uma semana antes que conseguisse garantir
passagens para a Inglaterra. Não ia arriscar esperar em Gibraltar.
Se as autoridades portuárias locais soubessem quem Hattie
realmente era, poderiam decidir levá-la sob proteção. No que lhe
dizia respeito, ele era o único homem que a protegeria.
— Seu navio nos servirá muito bem, obrigado. Minha noiva e eu
estaremos prontos para embarcar no início desta tarde.
Ele girou nos calcanhares e seguiu pela orla até a série de
degraus de pedra que levavam de volta à cidade e ao hotel.
Ele encontraria café forte e comeria um pouco do café da manhã
antes de dar a notícia, a Hattie, de que compartilharia uma cabine
com ele na viagem de volta para casa.
Capítulo Dez

W ill se resignou em ter que se virar a bordo do navio. Fazer isso,


revelou-se muito mais difícil do que ele esperava.
Assim que ele e Hattie embarcaram naquela tarde e foram para
a cabine, Will soube que a viagem seria interessante.
A cabine seria apertada mesmo para uma pessoa. Com dois, era
superlotação. Sem nenhum outro lugar a bordo para armazenar as
bagagens, o baú de viagem de Will foi arrastado para o espaço
entre a cama e a parede de trás. O arranjo inutilizava a pequena
escrivaninha, imprensada à outra parede. A cadeira ficou presa
entre o baú e a mesa. A mala de viagem que Will comprou para
Hattie foi colocada em cima dessa mesa.
Entre a mesa e a cama havia espaço suficiente para os dois
ficarem em pé, mas pouco mais. Era preciso certa desenvoltura
para alcançar a parede dos fundos da cabine.
A única característica redentora era o conjunto de janelas duplas
ao longo da parede de trás da cabine: a luz quente e a vista do mar
além davam a ilusão de mais espaço.
Quando ele fechou a porta, Hattie se virou para Will.
— Embora não seja o ideal, compreendo que o senhor e eu
tenhamos de aguentar o espaço apertado se quisermos chegar em
casa. O que eu não entendo é onde nós vamos dormir. — ela disse.
Em sua viagem até o cais naquela manhã, não havia ocorrido a
Will que uma cabine significava uma cama. Embora a cama em
questão fosse considerável e projetada para acomodar duas
pessoas, compartilhá-la com Hattie seria impossível.
— Falarei com o capitão. Tenho certeza de que ele terá uma
rede sobressalente nos aposentos da tripulação em que eu possa
dormir. Enquanto isso, desfaça sua mala e se acomode. Virei buscá-
la antes de partirmos, para poder dizer seu último adeus a Gibraltar.

Quando o navio com destino a Londres enfim se afastou do cais,


Will soltou um grande suspiro de alívio. Ele conseguiu colocar Hattie
a bordo do Canis Major e, em questão de dias, ela estaria de volta à
Inglaterra.
Ele olhou para as próprias mãos enquanto agarravam o guarda-
corpo, e se viu surpreso com o quão tenso ele esteve até que a
prancha fosse de fato levantada.
Na caminhada de volta ao hotel mais cedo naquela manhã, ele
considerou a situação de Hattie. Pelos trechos de informação que
ele conseguiu reunir no decorrer de seu curto tempo juntos, ele
descobriu o que considerava ser uma estimativa razoável da
situação.
O Sr. e a Sra. Wright, ele deduziu serem os pais dela. O deslize
da língua de Hattie quando estavam no Europa Point não passou
despercebido. O pai dela viu o Rochedo de Gibraltar enquanto
navegavam pela baía.
A verdadeira Senhorita Sarah Wilson devia ser uma criada da
Família ou outra missionária. Quando Hattie se viu forçada a
inventar um nome, ela usou o nome da primeira pessoa que veio à
mente.
Quanto ao último membro do grupo de viajantes, o Pastor Peter
Brown, Will poderia apostar ser o noivo de que Hattie estava tão
desesperada para escapar.
Isso deixava Will com um problema inesperado.
Quem restava em Londres para Hattie? Ele não podia levá-la de
volta à Inglaterra e largá-la no porto sozinha com o desconhecido.
— Não posso dizer que não estou feliz em ver este lugar
desaparecer no horizonte. — Hattie observou.
Will se virou quando ela chegou ao topo dos degraus e veio ficar
ao lado dele. Ela perscrutou a cidade de Gibraltar que diminuía aos
poucos. Enquanto isso, ele a estudou.
Ela recebeu a notícia das condições da viagem sem um pingo de
descontentamento. As coisas estavam tão ruins com a família e com
o noivo que ela estava disposta a passar por qualquer desconforto
apenas para chegar em casa?
Quando a proa do navio embicou para o mar, o vento começou a
pegar. Uma rajada repentina a fez cambalear. Por instinto, ele
estendeu a mão e segurou o braço dela.
— Obrigada, Sr. Saunders. — ela disse.
Enquanto ela se inclinou na grade do navio para ver melhor, ele
continuou a segurá-la firme pelo braço. A última coisa que ele
precisava era que ela caísse ao mar. Nos confins da mente dele, a
noção de que ela poderia pular ainda existia. Por mais tolo que
fosse, ele ainda se sentia desconfortável com sua protegida
chegando perto de qualquer pedacinho das amuradas do navio.
— Quando voltamos a ser formais um com o outro? — ele
perguntou.
Ele notou um resquício de carranca no rosto dela, quando Hattie
se afastou.
— Não sei. Parece um pouco íntimo demais, ainda mais agora
que estamos entre outras pessoas. — ela respondeu.
Considerando que passariam a próxima semana compartilhando
uma cabine apertada a bordo do navio, continuar um tratamento tão
formal parecia estranho. Ele havia decidido que continuar a fachada
de um noivado era a opção mais segura. Ele precisava convencê-la
a chamá-lo de Will.
— Apenas lembre-se de que a tripulação acredita que estamos
noivos, pode querer me mostrar um pouco mais de amizade, se não
carinho. — ele advertiu.
Se ela o fizesse, havia uma boa chance da máscara escorregar
um pouco mais, e ele conseguisse um novo vislumbre do verdadeiro
eu dela. Ele se perguntou o quanto ela já havia revelado a ele.
Qualquer que fosse a verdade dela, ele precisava saber mais,
antes de chegarem a Londres. Enquanto estivessem no navio, ela
não poderia se perder na multidão para fugir dele ou da avalanche
de perguntas que rodopiavam na mente dele.
Will franziu os lábios. Ele era um homem paciente quando de
bom humor, mas Hattie estava, para surpresa dele, testando sua
tranquilidade. Ele estendeu a mão e roçou os dedos com gentileza
na bochecha dela.
Ela estremeceu.
— A brisa do mar é fria. — ela disse. O toque foi tão leve que ela
pareceu não perceber.
Seu vestido de algodão espanhol proporcionava pouca proteção
contra o frio do vento do mar. Will logo desabotoou o casaco e o
ofereceu a ela. Quando comprou vários vestidos diurnos e práticos
novos para ela, ele não se lembrou de que ela precisaria de um
casaco. Gibraltar não era exatamente um lugar para casacos de lã
ingleses pesados.
— Muito obrigada. — ela disse, deslizando os braços pelo
casaco enorme dele. O casaco chegava aos pés dela. Parecia um
pouco ridículo, Will considerou totalmente encantador.
Ela está entrando na sua cabeça.
— Bem, você não sentirá frio no convés se usá-lo. — Will
observou.
Felizmente, ele retornava à Inglaterra com todos os seus
pertences, e em algum lugar no baú de viagem havia um segundo
casaco de lã.
Com o navio já fora do porto, o capitão virou a proa para o norte.
Hattie olhou por cima do ombro, em direção ao sul, para a África. As
montanhas do Marrocos tornaram-se, pouco a pouco, uma pequena
partícula à distância antes de enfim desaparecerem.
Ela fungou ante as lágrimas e enxugou os olhos com a palma da
mão.
— Arrependimentos? — ele perguntou.
Ela encontrou o olhar dele.
— Nenhum. — ela respondeu.
Conflito assolava o cérebro de Will. Se ele quisesse devolver
Hattie em segurança para a família, ele precisava saber quem em
Londres acolheria essa jovem e lhe ofereceria uma casa. Os pais
dela estavam a caminho da África, e não importava as
circunstâncias que a levaram a deixá-los, ele ainda deveria garantir
entregá-la a alguém na Inglaterra que cuidasse dela. As perguntas
dele exigiam respostas.
A vista do convés do navio logo se tornou repetitiva, o oceano
azul se estendia por quilômetros no lado do porto com apenas uma
fina linha marrom de terra a estibordo. Após uma hora, ambos se
retiraram para a cabine apertada. Hattie se enrolou e adormeceu na
cama enquanto Will se espremeu até a cadeira da minúscula
escrivaninha e continuou a fazer anotações para seus primeiros dias
de volta a Londres.
Ele trazia alguns pertences pessoais no baú de viagem, o resto
de suas posses foi enviado para casa direto de Paris, antes de ele
deixar a cidade de vez.
Tendo vivido em alojamentos por vários anos, ele não precisava
de muito em termos de móveis, mas ao decidir que voltaria a morar
na Inglaterra, Will começou a comprar peças de mobiliário elegantes
e caras o suficiente para encher uma casa. Quando chegasse a
Londres, ele pretendia reconstruir sua vida. Uma esposa e uma
família estavam no topo desses planos.
Quando Hattie começou a despertar de seu sono, Will decidiu
estar na hora de confrontá-la.

Ela sabia ser inevitável. A única coisa que de fato a surpreendeu foi
Will ter esperado estarem já na jornada marítima para começar o
questionamento.
Desde que subiram a bordo, ela esperava que ele a
pressionasse mais a revelar de onde vinha, a falar da família.
Ao abrir os olhos, ela o viu sentado na cadeira, de frente para
ela, as mãos firmes no colo.
— Hattie, precisamos conversar. — ele disse.
— Sim.
A palavra saiu de sua boca, antes que percebesse o que havia
dito. Will a chamou pelo nome verdadeiro, e tola como só ela
poderia ser, ela respondeu.
O sentimento de gratidão por a porta da cabine ter uma
fechadura foi logo diminuído pela visão de Will segurando a chave.
Qualquer esperança de fuga desapareceu na hora.
Como Will descobriu seu nome verdadeiro?
O único sinal de emoção que ele demonstrou com a resposta
dela foi endireitar-se na cadeira e assoviar baixo. O rosto dele
permanecia implacável. A partir da postura indiferente dele, ela
soube que esta não era a primeira vez que ele interrogava alguém.
Dizer trabalhar com comércio era uma mentira conveniente.
O que ele disse do tempo vivido no continente? Ela quebrava a
cabeça. Apesar de toda a evasão, ele também conseguiu revelar um
pouco dele mesmo e de seu passado.
— Bom. Bem, pelo menos estabelecemos seu nome verdadeiro.
— ele disse.
— Como? — ela questionou.
Ele se levantou e colocou a chave no bolso do casaco.
— Esta manhã fui à Agência Marítima do Cais. Quando você e
seus pais desembarcaram, todos foram registrados pela autoridade
portuária local. Não demorou muito para eu encontrar seu nome
entre a lista de passageiros do Blade of Orion.
Hattie pressionou-se à parede da cabine. Embora fosse pouco
em um sentido físico, pelo menos a ajudou a criar distância mental
entre eles. Lágrimas quentes surgiram nos olhos dela, e as mãos
começaram a tremer. Ela se sentiu à beira de perder o controle. Ela
apertou as mãos juntas e puxou várias respirações profundas.
Hattie olhou para as próprias mãos, unidas com força. O que ela
deveria fazer agora?
— O que quer? — ela enfim respondeu.
Ele encontrou o olhar dela. Uma suavidade inesperada apareceu
no rosto dele. A mesma ternura que ela viu na Caverna de São
Miguel brilhava naqueles olhos. Ela cerrou os dentes, recusando-se
a se deixar enganar por esse teatro mais uma vez.
— Eu quero a verdade, Hattie. Como eu disse antes, não posso
ajudá-la caso se recuse a me deixar fazê-lo. Eu não preciso saber
tudo, guarde consigo todos os segredos que sentir que precisa. No
entanto, após tudo o que fiz por você, mereço alguma explicação.
Ela se sentou e olhou para as mãos enquanto contemplava as
palavras dele.
Eles estavam no mar. O próximo pedaço de terra era a
Inglaterra. Se ela contasse a verdade, não havia muito que ele
pudesse fazer até que o navio atracasse em Londres. Por tudo o
que ele fez por ela, ele merecia mesmo a verdade. Ou pelo menos
um pouco dela.
— O que quer saber?
— Bom. Permita-me sugerir que um bom ponto de partida seria
uma explicação de como acabou ficando à deriva na Baía de
Gibraltar. — ele respondeu.
Hattie saiu da cama e caminhou até a janela. Sob a janela havia
um pequeno banco de madeira acolchoado. Seria o lugar ideal para
se sentar e ler um livro em uma longa viagem marítima.
Ela se sentou, aliviada, quando Will não deu nenhuma indicação
de se mover de seu lugar perto da porta.
Por onde exatamente ela deveria começar? Por tanto tempo, a
vida dela foi servir aos outros. Ninguém jamais perguntou sua
história.
— Meus pais passaram por uma conversão religiosa há vários
anos. Meu pai renunciou à grande parte de nossa vida privilegiada,
sob a justificativa de ser perversa e indigna do caminho que ele
escolhera seguir. Passei grande parte dos últimos dois anos
trabalhando na torre de St. Giles tentando ajudar os menos
afortunados do que nós. Cerca de um ano atrás, papai conheceu o
Pastor Peter Brown e todo o foco dele mudou. Peter Brown
convenceu meu pai de que os pobres de Londres não eram o
bastante. Os planos dele eram mais grandiosos. Prestar assistência
terrena não significava nada, quando havia milhares de almas que
poderiam converter. Foi quando tiveram a ideia de que uma missão
na África seria o trabalho ideal para a vida.
Falar as palavras em voz alta fez seu pai e Peter Brown soarem
frios e calculistas, mas era a verdade. Eles agora viam o trabalho de
caridade como apenas um número. O número de pessoas que
poderiam trazer para a fé sob sua orientação espiritual em Serra
Leoa era o que impulsionava os dois homens.
— E você e sua mãe seguiram o plano, mas em algum
momento, você decidiu tomar um caminho diferente. Quando
percebeu que não queria o mesmo que eles? — perguntou Will.
A mãe dela, sim. Desde que Hattie passou a compreender as
coisas, ela viu a mãe fazer tudo como o marido a instruía. O
casamento dos pais era prático. Mesmo quando o pai tirou Hattie da
cena social londrina no meio de sua primeira Temporada, a mãe não
disse nada para detê-lo.
Quanto a ela mesma, Hattie esperou por um tempo que a missão
para a África fosse um plano que jamais sairia no papel, na pior das
hipóteses. Mas, à medida que o dia da viagem se aproximava cada
vez mais, medo começou a dominá-la.
O Pastor Brown começou a dar atenção especial a ela. Os pais
costumavam comentar do bom caráter dele, recomendando-o a ela.
Ela havia ignorado os sinais óbvios e lançou-se no trabalho.
Entretanto, no fim, nem ela pôde ignorar os planos claros dos
outros.
Hattie fechou os olhos quando lágrimas começaram a escorrer
livres pelo rosto. Ela fez parte de uma família, mas sentia-se tão
sozinha.
Will levantou-se da cadeira, mas ela o dispensou com a mão. Se
ela contaria tal história, seria em seus próprios termos. Ela ficou
surpresa com a raiva crescente que começou a ferver no fundo de
sua mente enquanto falava do pai e do Pastor Brown.
Quando o pai anunciou o noivado com Peter Brown, ela temeu
que a batalha estivesse perdida. A cada dia, sua força de vontade
era atacada com planos e pronunciamentos de futuros combinados.
Ela chegou tão perto de capitular.
— No dia em que minha mãe me disse que minha gata não viria
conosco, foi o dia que eu soube. — ela respondeu.
Um som nervoso escapou dos lábios dela. Era absurdo pensar
que a perda iminente da gata, Brutus, foi necessária para Hattie
enfim vislumbrar um pouco de bom-senso.
— Eles esperavam que eu desistisse de tudo. Minha casa, minha
vida e tudo o que eu prezava. Faz dois meses. Desde então, eu
venho tentando encontrar uma forma de evitar ir.
— Entrei em pânico na manhã em que partimos de Gibraltar. O
Pastor Brown pressionou meu pai a permitir que compartilhássemos
a cabine, e meu pai concordou. Eu sabia que se eu não pulasse,
talvez eu já estivesse grávida quando chegássemos à Serra Leoa.
Ao chegarmos, não sobraria nada para mim a não ser me tornar
esposa dele.
Hattie sentiu náuseas. Não era o movimento do navio. Ela
vislumbrou a vida que decidiram que ela teria, e soube que seria
uma vida de miséria e solidão.
Ignorando os protestos, Will a puxou para um abraço e a
segurou com força. Ela sentiu a ternura e o conforto desse abraço.
Seu coração esperava com desespero que alguém enfim a
entendesse.
— Muito obrigado. Sei que foi preciso uma enorme coragem para
me contar. Obrigado por confiar em mim o bastante e enfim me
permitir ter compreensão.
Capítulo Onze

W ill Saunders não era um homem violento por natureza, mas


sabia que alguns homens só respondiam à violência. Anos como
espião na França ensinaram essa verdade desconfortável. Homens
morreram nas mãos dele.
O pai e o ex-noivo de Hattie tinham a sorte de estarem a muitas
centenas de milhas náuticas de distância neste momento, caso
contrário, Will temia que teria recorrido à violência contra eles.
Segurando uma Hattie soluçante nos braços, ele foi dominado
por piedade. Essa pobre garota não foi nada mais do que um peão
usado em um grande jogo, manipulada por aqueles que deveriam
tê-la protegido. Ele não sabia quem odiava mais nesse momento. O
Pastor Brown por ter a presunção de que Hattie seria uma esposa
confortável, ou Aldred Wright por ter considerado a própria filha
como nada mais do que moeda para oferecer a outro homem em
casamento.
Ela não teve escolha a não ser fazer o que mandavam.
Nenhuma voz quanto a própria vida. Por mais imprudente que fosse,
ela fez a única coisa ao seu alcance para fugir deles.
Quando as lágrimas enfim cessaram, Will sentou Hattie de volta
na cama, e retomou o assento oposto.
Com pais e noivo fora de cena, Hattie estava em uma situação
precária. Will agora enfrentava uma decisão difícil. Deixaria tudo
como estava, ou a pressionaria por mais informações?
Ele cerrou os dentes. Os próximos minutos poderiam mudar tudo
entre eles.
— Então, Hattie, que outros parentes a senhorita tem em
Londres?

Ela levantou a cabeça devagar e encontrou o olhar dele.


Se Will acreditava que ela não estava acostumada com os
truques de mentirosos, ele nunca esteve na torre de St. Giles.
Embora Hattie não pudesse se denominar uma mestra na arte de
mentir, ainda sabia o suficiente.
St. Giles era o lar de todos os ladrões, vigaristas e criminosos de
peso em Londres. Ela lidou com muitos deles ao longo dos anos.
Algumas lições foram bem aprendidas.
Embora os jornais escrevessem matérias regulares exigindo que
os cortiços e afins de Londres fossem dispersados e exterminados,
as autoridades não faziam nada a respeito. O pai dela era adepto da
teoria de que, se limpassem as favelas sórdidas, os pobres e os
criminosos seriam forçados a vagar pelas ruas de Londres. Os ricos
da paróquia de St. James não aceitariam muito bem ter mendigos e
batedores de carteira vivendo nas ruas fora de suas casas.
A tentativa de Will de confortá-la foi real, ele não era tão
calculista. No entanto, ela sabia se tratar apenas de um intervalo
momentâneo no longo jogo que ele estava jogando. Era hora de ela
mover uma de suas próprias peças no tabuleiro.
— Meu tio Felix tem uma casa na Rua Argyle. Pode me levar até
lá. — ela respondeu.
Ela se sentou e esperou. Observou Will processar suas palavras.
A linha marcando a testa dele relaxou apenas o suficiente para
mostrar que ele acreditava nela.
— Bom. Portanto, é para lá que eu a levarei assim que
chegarmos à costa. Qual é o número da casa do seu tio? — Will
continuou.
— Ah, não tenho certeza. Creio ser setenta e cinco.
— À direita ou à esquerda da rua, caso venha da Rua Oxford?
— Direita. É uma casa branca de quatro andares.
Will ainda estava tentando encontrar furos na história.
Felizmente, ela dizia a verdade sobre a casa e localização.
— Diz ser setenta e cinco. Seria a casa da esquina?
Ela franziu a testa. A casa do tio ficava no meio de uma fileira de
casas.
— Não, fica a quatro portas do final da rua.
— Sim, claro. Deve ser a setenta e cinco. Tenho amigos na casa
da esquina, o número da casa deles é oitenta e um.
Hattie prendeu a respiração, desesperada para não mostrar
nenhum sinal de alívio por Will acreditar nela. A verdade era que ela
não estava mentindo. O tio possuía uma casa na Rua Argyle. A
residência permanente dele era em Londres.
Quem ela era para falar que o tio Felix servia como Embaixador
Britânico em Washington, nos Estados Unidos da América, e não
morava na Inglaterra há quatro anos?
Houve uma batida na porta da cabine, e Will atendeu. Quando
ele se levantou e virou de costas, Hattie soltou a respiração que
estava segurando.
O Primeiro Oficial estava na porta, quepe na mão. Will havia
pedido para falar com o capitão, para tratar dos arranjos para
dormir.
— Não demoro. — Will disse.
Quando a porta se fechou atrás dele, Hattie deu um soco no ar.
Ela havia conquistado uma pequena, mas importante vitória. Ela deu
a Will o nome de um membro da família e um endereço para onde
ele poderia levá-la quando chegassem a Londres.
O tio era real, e ela sabia o suficiente da casa dele para
conseguir contar uma história convincente de uma casa que poderia
ser encontrada para ela lá. Ela conquistou um tempo valioso para si.
Tempo em que ela poderia traçar um plano para desaparecer da
vida de Will Saunders.
Capítulo Doze

W ill retornou à cabine pouco tempo depois, no mais estranho dos


humores.
Seu encontro com o capitão não correu bem. O navio estava
carregado ao máximo de mercadorias e não havia nenhuma rede
sobressalente entre a tripulação.
Somado a esse problema, havia o fato de o capitão não
conhecer a tripulação, pois recrutara os homens nas Índias
Ocidentais em uma viagem recente. Havia alguns que ele
considerava não confiáveis, outros até perigosos.
— Mesmo que eu tivesse um lugar para o senhor dormir, Sr.
Saunders, como na minha cabine, eu não lhe ofereceria essa
acomodação. Sua noiva pode ficar em perigo caso seja deixada
para dormir em sua cabine sozinha. — o capitão explicou.
A fechadura da cabine não era nada de especial. A mesma
chave se encaixava na maioria das fechaduras do navio. Will
precisaria dormir na cabine com Hattie.
Essa notícia empurrou outro pensamento para a vanguarda de
suas preocupações. O que ele diria a Felix Wright quando chegasse
com Hattie a Londres?
Ele a havia tirado do mar. Esteve seminu na frente dela. E para
completar, passaria boa parte de duas semanas compartilhando
uma cabine particular de um navio com ela.
Se o tio dela fosse algum tipo de cavalheiro, exigiria o óbvio. Will
teria que se casar com Hattie.
Ele parou do lado de fora da porta da cabine. Não seria a
primeira vez que ele se casaria por senso de dever. A razão inicial
para ele concordar em se casar com Yvette foi ajudar a construir
uma identidade falsa em Paris.
Ele era um jovem imprudente. Yvette era linda e de gênio forte.
Luxúria e aventura anularam quaisquer reservas que ele poderia ter
tido quanto a se casar com a agente secreta francesa. O pai dela
também teve uma mão firme na decisão.
Ele logo aprendeu a não se arrepender da decisão. Yvette era
uma mulher sensual. Ela logo conquistou o coração de Will, e com o
tempo ele conquistou o dela.
Embora Hattie fosse diferente da vivaz Yvette, ela trazia um
charme único. Havia poucas dúvidas de que, com o tempo,
chegariam a um acordo confortável. Havia até a chance de que
poderiam chegar a gostar um do outro.
Não sou um ogro completo, quem sabe, ela pode se apaixonar
por mim.
O tema casamento ficaria para mais tarde, quando estivessem
mais próximos da Inglaterra. Entre agora e lá, Will teria tempo de
conhecer um pouco mais a verdadeira Hattie Wright. Tempo para
preparar o cenário para a conversa inevitável.
Dentro da cabine, ele encontrou Hattie sentada na janela. Ela
observava as ondas e a linha costeira distante da costa da Espanha.
— Más notícias, eu receio. — ele disse.
— Sim?
Não fazia sentido tentar esconder a verdade dela. Se ela
trabalhou nos antros da paróquia de St. Giles, Hattie conheceria
bem os perigos da rua.
— O capitão não está convencido de que todos os homens da
tripulação sejam de boa reputação. Terei que dormir na cabine.
Ela deu de ombros.
— Tudo bem. A cama é grande o suficiente.
Will franziu a testa. Compartilhar a cama com ela não fazia parte
dos planos, pelo menos ainda não. Primeiro o casamento e só então
compartilhar o leito conjugal e os prazeres que o acompanhavam.
— Tenho algumas roupas de cama, o chão servirá — ele
respondeu.
Ela olhou para o pequeno espaço entre a cama e o resto da
mobília. Era bem apertado. Will teria pouco espaço para se
movimentar após se deitar no chão.
— Tem certeza? Não é como se fôssemos vestir nossas roupas
de dormir. Por mim está tudo bem, pode usar o outro lado da cama.
— Hattie respondeu.
Ela era uma garota de mente prática, mas Will suspeitava que
Hattie não estava muito familiarizada com a forma masculina e o
efeito que dormir ao lado de uma jovem mulher poderia ter em um
homem. Acordar ao lado dela com uma ereção furiosa era uma
possibilidade real que ele não queria ter que enfrentar. Ele não
queria que ela pensasse que ele a trataria da mesma forma que o
Pastor Brown claramente pretendia.
— Embora a senhorita possa estar longe da sociedade educada
por algum tempo, não pense, nem por um minuto, que se tornou
aceitável que um homem e uma mulher solteiros compartilharem
uma cama. O chão serve.
Com isso, a discussão terminou. Will precisaria esperar que o
movimento suave do balanço do navio e o som das ondas fossem
suficientes para embalar seu sono todas as noites.
Capítulo Treze

W ill andou de um lado para o outro ao longo de um curto trecho


do convés desordenado. Cada centímetro do convés do Canis Major
estava preenchido com caixotes de madeira e barris amarrados com
corda. Havia pouco espaço para entrar no convés, muito menos
para dar um passeio adequado.
Ele bateu o punho na lateral de um dos barris de carvalho,
estava cheio. Ele lambeu os lábios, pensando que uma boa dose de
rum seria perfeita agora. As caixas empilhadas ao lado do rum,
estavam marcadas como: AÇÚCAR. PROPRIEDADE PINNEY
NEVIS. HOMENS LIVRES PRODUZEM.
O trabalho nas antigas plantações de escravos nas Índias
Ocidentais passara a ser feito por homens livres e pagos por seu
trabalho. Pensar que, a certa altura, o Canis Major enviava bens de
trabalho escravo para a Inglaterra, e com regularidade, o enojava.
Bens que ele e a família compravam e usavam. A Inglaterra pode ter
vencido a guerra contra um tirano francês, mas com toda certeza,
não possuía uma ficha limpa.
O tapa de uma corda grossa contra suas pernas o tirou de suas
reflexões. Ele deu um passo para o lado quando dois membros da
tripulação passaram por ele e amarraram uma corda em torno de
uma pilha de barris próximos.
— À espera de mau tempo? — Will disse, meio em tom de
brincadeira.
— Sim. — os dois responderam em uníssono.
Ele olhou para onde um dos marinheiros meneou a cabeça. O
céu limpo do sul da Espanha havia desaparecido. Em seu lugar
havia um aglomerado quase preto de nuvens de tempestade.
Em poucos minutos, ele notou um aumento perceptível no vento.
As velas se debatiam no alto do mastro, e a tripulação que
trabalhava nas cordas lutava por controle.
Olhando pela lateral do navio, ele pôde ver as ondas subindo e
descendo em ritmo cada vez maior.
O capitão do navio chamou a atenção de Will com um puxão
firme na manga.
— Sr. Saunders, sugiro que se retire para sua cabine. O navio
está adentrando o Atlântico Norte e encontrará uma tempestade.
Será uma noite difícil. A dama pode precisar de seu conforto em
breve.
Will assentiu. Seria uma longa noite na cabine apertada, a
tempestade que se aproximava só acrescentaria outra camada de
desconforto entre os dois.
— O capitão diz que encontraremos uma tempestade. A
navegação será difícil até de manhã. — Will disse ao retornar para a
cabine.
Hattie estava sentada em silêncio na cama, com um livro na
mão.
— Notei que o movimento da embarcação estava ficando mais
forte. — ela respondeu.
Will olhou para o chão. Ela fez a cama dele enquanto ele estava
no convés. Embora Hattie tenha usado todos os cobertores e o
colchão macio dado a ele pelo capitão, não parecia nada
convidativo. Com o navio indo de encontro a uma tempestade difícil,
ele duvidava que iria dormir muito.
— Vão nos alimentar? — ela perguntou.
Comida. Ele nem pensou em perguntar. Hattie sempre prática.
— Vou verificar.
Com isso, ele desapareceu de volta ao convés.
Quando Will retornou pouco tempo depois, Hattie estava no
mesmo lugar de quando ele saiu. Ele foi para a cama e entregou um
prato com duas maçãs, um pouco de queijo e quatro fatias grossas
de pão. Uma pequena faca estava presa no queijo.
— Temo ser a totalidade de nossa ceia. O cozinheiro e o
grumete estão ocupados ajudando a proteger a carga abaixo do
convés. Não haverá comida quente esta noite. — ele disse.
— Melhor do que muitos terão para comer nesta mesma noite.
— ela respondeu.
As palavras deslizaram pela língua dela com tanta facilidade que
Will suspeitou se tratar de um ditado comum na casa dos Wright.
— Venha se sentar e comer algo. Lembro-me das condições do
tempo na viagem para cá. Mamãe continuou bem nauseada por dias
a fio durante a travessia entre mares.

Will sentou-se na cadeira em frente à cama e encarou Hattie. Não


havia mais que alguns centímetros entre os joelhos dos dois. Ambos
riram de como o espaço era apertado entre eles.
— Seremos os melhores parceiros de dança no mundo quando
esta viagem terminar. Mover-se um em torno do outro será uma
segunda natureza. Nossos corpos serão como um só. — Will disse.
Ele tinha os trejeitos de alguém que ela diria ser um dançarino
habilidoso. Ela sempre gostou de dançar quando era mais nova. O
irmão dela, Edgar, passou muitas horas ensinando-a, com toda a
paciência, a valsar para sua apresentação à sociedade. Ela mal
conseguiu colocar em prática todas aquelas lições antes que o pai
determinasse que dançar era um pecado e não era uma atividade
permitida para a filha.
Edgar. Ela não pensava em seu irmão há algum tempo. A
lembrança repentina a abalou.
— Você está bem? Minhas palavras sobre dançar talvez tenham
saído um pouco distorcidas. Quis dizer que nos moveríamos pela
área de dança como um só. Não quis dizer nada impróprio.
Ela ergueu o olhar e viu Will estudando-a, um olhar preocupado
no rosto. Ele se importava com ela, isso era evidente. Havia certos
maneirismos que, às vezes, denunciavam seu estado de espírito.
Neste momento, ele estava preocupado por tê-la ofendido de
alguma forma.
— Sim, claro que estou. Apenas acabou de me lembrar da minha
antiga vida. Às vezes, me esqueço que minha vida familiar nem
sempre foi assim. Meus pais adoravam dançar quando eu era mais
jovem. — ela respondeu.
Embora estivesse preparada para falar dos pais, Edgar Wright
era uma pessoa que não compartilharia com Will. A única pessoa
em Londres para quem Will poderia levá-la também era a última
pessoa que gostaria de vê-la.
Ela deu o mais terrível dos tratamentos a Edgar e à esposa
Miranda, os ostracizou por não aceitarem a missão de servir os
pobres. Quando o tempo dela estava no fim, e ela enviou uma
mensagem implorando pela ajuda dele para evitar ir para a África,
Edgar a abandonara à própria sorte. Não havia como voltarem a ser
irmão e irmã amorosos.
Ela se pôs a pensar na tarefa em mãos, de tentar comer antes
que a tempestade chegasse. Puxando a faca do bloco de queijo,
Hattie começou a cortá-lo em porções pequenas. Quando terminou,
ela colocou um pouco do queijo em um pedaço de pão e o entregou
a Will.
Quando ele o tirou das mãos dela, os dedos dos dois se
tocaram. Um frisson de calor subiu pela espinha de Hattie. Ela
tremeu.
Will retirou a mão devagar. Seja lá o que ela sentiu, ela sabia
que ele também sentiu.
Eles estavam o mais perto que podiam estar sem estarem juntos
na cama, mas ela ansiava por estar ainda mais perto dele. O toque
dele fez o coração dela disparar.
Ela não deveria se sentir assim com Will. A luta era real. Hattie
tentou forçar o sentimento para longe, acalmar esse tumulto, mas
era demasiado forte para se combater.
Em outro tempo e lugar, ela poderia ter chamado essa atração
de amor, mas aqui, e sob as circunstâncias atuais, ela não
encontrava a palavra certa. Seu corpo enviava sinais desconhecidos
até então. A reação a assustava e a empolgava.
— É um bom marinheiro? — ela gaguejou.
Ele olhou para o pão e queijo nas mãos.
— Não muito. — ele respondeu.
Ele deu uma mordida no sanduíche e deu mastigadas
vagarosas. Pela primeira vez desde que conheceu Will, Hattie sentiu
que ele não estava confortável. O homem do mundo, tão
autoconfiante, agora revelava um lado vulnerável. Ela podia dizer
que ele não gostava disso.
Hattie olhou ao redor da cabine, aliviada quando espiou um
balde no canto, preso à parede por um pequeno gancho.
— Então, o que está dizendo é que podemos precisar daquilo
em algum momento esta noite? — ela disse.
Um Will pensativo assentiu e pegou o balde. Ele o colocou no
chão ao lado da mesa.
Houve uma batida na porta e, quando Will atendeu, o primeiro
imediato entrou. Ele tirou o quepe para Hattie.
— O capitão me pediu para avisá-los para ficarem na cabine até
que ele diga ser seguro sair. As ondas estão crescendo bastante, e
seremos um pouco sacudidos. — ele disse.
O coração de Hattie afundou. Seria uma grande ironia se ela
morresse no mar a caminho de casa, da Inglaterra.
O primeiro imediato pareceu ler seus pensamentos e abriu um
sorriso encorajador.
— Nada para se preocupar, senhorita. Nós marinheiros viajamos
por essas águas durante o ano todo. Se o navio oscilar, parte da
carga pode se soltar das cordas. Não será seguro no convés. Eu e o
resto da tripulação vamos nos abrigar em breve para enfrentar a
tempestade. Amanhã de manhã, já deverá ter passado e estaremos
a caminho da costa de Portugal. Devemos chegar à Inglaterra em
dez dias após esse marco. Tenho certeza de que seu Sr. Saunders
a manterá segura.
Will trancou a porta de novo após a saída do primeiro imediato.
Ele se levantou e examinou a cabine antes de começar a pegar as
coisas do topo da mesa e colocá-las no baú de viagem dele. Hattie
o observou em silêncio.
Quando ele por fim completou a tarefa de deixar a cabine
segura, Hattie ofereceu mais um pouco de queijo e uma maçã
fatiada para ele, mas Will não aceitou.
— Pode não ser uma boa ideia eu ter muita comida no estômago
quando a tempestade chegar.
Hattie embalou o resto da comida com movimentos rápidos,
guardando o prato e a faca em uma das gavetas da mesa. Will
retirou-se para a cama improvisada no chão e deitou-se.
— Quando eu disse não ser um bom marinheiro, quis dizer que
fico um pouco tonto quando o navio vai para cima e para baixo das
ondas. Tolo para um homem adulto sofrer assim, mas aí está. — ele
disse.
O navio deu uma guinada súbita e violenta, jogando Hattie de
costas na cama. Antes que pudesse se sentar, uma segunda onda
atingiu o navio e a forçou a descer novamente.
Quando o navio enfim alcançou o vale da próxima onda, ela
rolou e colocou a cabeça para fora da cama para verificar Will.
Ele estava enrolado como uma bola no canto, as mãos
agarradas com firmeza ao baú de viagem. Ela murmurou uma
palavra que teria feito a mãe ficar vermelha de vergonha.
O chão era um lugar perigoso para Will estar no melhor dos
climas. Com o navio começando a dançar em meio às ondas
gigantes, o chão logo seria uma armadilha mortal.
— Will, por favor, você precisa vir para a cama. Se ficar no chão,
pode se ferir ou pior. — ela suplicou.
Ele não era tolo. Will logo se pôs de pé, pegou os cobertores e
estava a meio caminho da cama quando o navio foi atingido por
mais uma onda, e ele foi jogado de volta no chão. A cabeça de Will
e o chão de madeira dura fizeram contato doentio.
— Merde! — ele berrou.
Hattie se ajoelhou e colocou uma perna para fora da cama, mas
Will a impediu.
— Não, fique onde está. A última coisa que precisamos é que
nós dois comecemos a ricochetear pelas paredes e pelo chão da
cabine. Eu irei até você.
Ficando de pé pela segunda vez, ele se lançou na cama,
pousando com deselegância ao lado de Hattie com um “ufa” alto.
Ela verificou o rosto e a cabeça dele em busca de sinais de
sangue, aliviada quando ficou claro que Will não feriu a cabeça.
— Quando se cai de um cavalo tantas vezes quanto eu, acaba
percebendo que sua cabeça é muito mais dura do que se
imaginava. — ele disse.
Hattie se moveu pela cama e sentou-se com as costas na
parede. Seus pés estavam firmes contra a parede lateral da cama.
Will fez o mesmo.
Enquanto o navio continuava a se arremessar e oscilar, eles
pareciam estar em uma carruagem fora de controle. O estômago de
Hattie rezou por um conjunto de rédeas para puxar os cavalos
inexistentes.
— Se isso é uma indicação da noite que se aproxima, algo me
diz que não vamos dormir. — Will disse, cansado.
Ela olhou para o rosto dele e viu que ele fechou os olhos. Cílios
escuros beijavam a pele acima das bochechas dele, mas seu rosto
estava cinza. Piedade substituiu grande parte do medo que ela
sentia naquele instante. Com a tempestade dando sinais de
continuar inabalável por horas, Will enfrentaria uma noite tortuosa.
— Se parecer muito difícil continuar sentado, sugiro que se deite.
— ela disse.
— Sim. — ele demorou, mas respondeu. A fraqueza na voz dele
era uma indicação clara do crescente desconforto.
Com sua grande figura masculina totalmente esticada na cama,
Hattie ficou com poucas opções. Ela deitou-se de lado, as costas
voltadas para o peito dele.
— Sua cama é boa e macia. O acolchoamento é muito melhor
que o da minha. — Will observou.
— Feche os olhos e talvez isso ajude a impedir que a cabeça
continue rodando. — ela respondeu.
A força total da tempestade atingiu o navio pouco tempo depois.
Junto veio a chuva intensa. A porta da cabine tremia quando o
temível vento desafiava a moldura da porta. Felizmente, manteve-se
firme. O balde no chão não teve tanta sorte.
Hattie ficou acordada por um longo tempo, observando o balde
deslizar para frente e para trás, atravessar o chão da porta para a
cama e de volta. Quando o navio encontrou um conjunto maior de
ondas, o balde foi empurrado com força contra a lateral da cama.
Ela esticou a mão para baixo e o agarrou. Com o balde agora em
mãos, ela resolveu um dos problemas. A próxima pergunta era o
que fazer com o balde. Segurá-lo pelo resto da noite não era uma
opção.
Havia um gancho com uma corda amarrada a ele na parede
oposta, perto da porta. Devia estar a bons dois metros do chão. Ela
decidiu arriscar.
Ela deslizou uma perna para fora da cama e se sentou devagar.
Virando-se, olhou para Will. Ele estava dormindo bem, um ronco
suave ondulava de seus lábios.
Ele era mesmo um belo espécime de homem. Os dedos dela
coçavam para tocar os cabelos dele. Em seu sono, estavam revoltos
e um cacho perdido rebelava-se contra a franja.
O olhar dela recaiu nos lábios dele. Lábios que ela sabia serem
macios e quentes. Lábios que seu coração desejava possuir para
sempre.
— Ora, se ao menos você não fosse quem é, e eu não fosse
quem sou. — ela sussurrou.
Ela voltou para a tarefa em mãos. Eram apenas alguns passos
até o gancho que manteria o balde seguro.
Após um curto período sentada e contando, ela começou a
perceber os padrões das ondas. Vinte contagens para o navio se
inclinar a estibordo, dez segundos de quietude, depois uma nova
contagem de vinte para o navio se inclinar todo a bombordo.
Quando o navio começou a próxima inclinação a estibordo,
Hattie ficou de pé e, com o balde na mão, foi rápido até o gancho.
Pelas suas contas, ela teria quinze contagens para prender o balde
antes que precisasse estar pronta para voltar.
Dedos nervosos içaram o balde no gancho e envolveram a corda
em volta dele, uma e outra vez, prendendo-o firmemente no lugar.
Ela se virou assim que o navio a fez cambalear de volta para a
cama. Chegou à cama e se jogou no lado vazio. Conseguiu. A
satisfação de ter alcançado o objetivo, a fez sorrir.
— Bom trabalho. — um Will rouco disse.
— Pensei que estivesse dormindo. — ela respondeu.
— Eu estava, mas assim que saiu do meu lado, acordei.
Will jogou os cobertores sobre os dois e, em seguida, envolveu
um braço forte em torno da cintura dela.
— Não tente sair da cama de novo, a menos que seja
absolutamente necessário, o lugar mais seguro para nós dois é bem
aqui. Deve tentar dormir um pouco. — ele disse.
Eles estavam no meio de uma tempestade feroz no Atlântico
Norte, em um navio que subia e descia enormes ondas errantes.
Mas, com Will ao lado dela na cama, Hattie se sentiu segura pela
primeira vez em muito tempo.
Quando o sono enfim a dominou, ela teve um longo sonho
caloroso com um homem que sempre a seguraria firme durante as
piores tempestades da vida.
Quando a manhã chegou, a tempestade estava quase no fim. A
chuva ainda açoitava o convés. Após uma olhada superficial da
porta, Hattie decidiu haver pouco propósito em se aventurar, e
voltou para a cama.

Já era final da manhã quando o convés estava seguro o suficiente


para se aventurar. A tripulação passou a maior parte da manhã
verificando cordas e fazendo reparos no navio. Vários caixotes de
carga foram varridos ao mar à noite e perdidos nas águas. Apesar
dos esforços de Hattie para despertá-lo, ela não conseguiu acordar
Will.
— Sono dos justos. — ela murmurou.
Somente alguém com a consciência limpa poderia ter um sono
tão profundo. Enfim aceitando a derrota, ela vestiu o casaco de Will
e foi em busca de sustento.
A tripulação da cabine do navio, que consistia do cozinheiro e
um jovem de cerca de quatorze anos, ficou em silêncio em uma
extremidade da mesa da cozinha enquanto Hattie tomava seu café
da manhã. O cozinheiro, que usava um avental que já viu dias mais
limpos, limpou a garganta.
— A jovem senhorita precisa de algo mais? — ele perguntou.
Hattie ergueu o olhar de sua contemplação a um ovo cozido.
Tanto o cozinheiro quanto o grumete pularam em pé. Era como
assistir a um par de pombos dançando. Se um se movia para a
esquerda, o outro seguia.
— Sim, por favor. Meu noivo ainda está na cama. Ele teve uma
noite terrível. Será que poderia, por favor, separar um pouco do café
da manhã para eu levar para a nossa cabine?
Enquanto Hattie esperava o café da manhã de Will ser
preparado, ela foi sentar-se do lado de fora no convés. Perto da
cabine do capitão, ela encontrou um pequeno banco sólido que,
para todos os efeitos, era protegido do vento.
O sol estava à vista e as nuvens de tempestade da noite anterior
haviam desaparecido. O contraste da noite tempestuosa com a
manhã do céu azul era surpreendente. Além dos olhares cansados
nos rostos dos tripulantes, e várias velas esfarrapadas soprando na
brisa do mar, havia pouco que mostrasse que o navio teve uma
noite tumultuada.
— Bom dia.
Ela se virou e viu Will de pé ao sol, um cobertor enrolado nos
ombros. Os cabelos bagunçados por dormir tão profundamente. Ela
ficou animada ao ver que a cor natural havia retornado ao rosto
dele.
— Parece estar muito melhor do que ontem à noite. O cozinheiro
está separando seu café da manhã. — ela respondeu.
Ela olhou para o cobertor que cobria a forma masculina e quente
em que ela se recostou na noite anterior e de repente percebeu por
que ele o estava usando.
— Ah, sinto muito, me esqueci que peguei seu casaco. — ela
disse.
O grumete chegou com duas canecas de café. O rosto de Will se
iluminou.
— Café, o elixir dos deuses.
Hattie riu.
— Pensei que ambrosia fosse o elixir dos deuses.
Will balançou a cabeça.
— Não no meu mundo. Meu cérebro não funciona até que eu
tome ao menos uma xícara de café forte pela manhã.
O grumete correu para dizer ao cozinheiro que o cavalheiro
passageiro estava acordado e pronto para tomar o café da manhã.
Will bebeu o café, observando como o menino desaparecia na
cozinha.
— Não deveria estar aqui sozinha. Lembre-se de que o capitão
falou não conhecer muito bem a tripulação.
Hattie estava prestes a explicar a Will que caminhava sozinha
pelas ruas perigosas de Londres com frequência, mas decidiu não o
fazer. As lembranças de acordar nas primeiras horas da manhã com
Will dormindo ao lado dela ainda aqueciam seu coração.
— Perdão, me esqueci. O capitão esteve no convés na maior
parte do tempo em que estive aqui, e não me afastei deste ponto.
Não irá se repetir. — ela respondeu.
A verdade era que, por estar tão acostumada às ruas violentas e
inseguras da Paróquia de St. Giles, ela se tornara um pouco
indiferente a todos, exceto aos sinais mais óbvios de perigo. Após a
quarta vez em que foi abordada e assaltada na rua no início da
missão, ela parou de se dar ao trabalho de contar aos pais. O risco
vinha com o ato de dar ajuda aos pobres.
— Só quero garantir que chegue em segurança à casa do seu
tio. Não quero ser autoritário. Se pudermos concordar que não se
aventure fora da cabine sem mim, ficarei contente.
Hattie concordava. No que era uma questão de poucos dias, ela
estava preparada para ceder a tantas exigências de Will quanto
necessário. Ela disse para si que o fazia para garantir que ambos
desfrutassem de uma viagem cordial e agradável para casa. No
entanto, o coração dela estava começando a bater um tamborilar
diferente.
Com as canecas de café nas mãos, eles seguiram o grumete até
a cozinha.
Capítulo Quatorze

N aquela noite, Will tentou dormir no chão da cabine pela segunda


vez, mas às primeiras horas, Hattie sentiu-o deslizar ao lado dela.
Ele envolveu o braço em torno dela em um abraço agora familiar e,
pelos roncos suaves que logo vieram dele, ela soube que ele
adormeceu.
Hattie passou a noite acordada. A lua que se infiltrava pela
janela da cabine banhava o espaço com uma suave luz azul-pérola.
No fim, ela levantou o braço de Will e escorregou para fora da
cama. Vestindo o casaco dele, ela foi até o banco sob a janela e
sentou-se.
Na cama, Will rolou para o outro lado e dormiu.
Ela sorriu enquanto o observava dormir. Ele era um espécime
magnífico de homem. Sempre que ele envolvia os braços em torno
dela, ela sentia-se revolver por dentro. A mulher que um dia se
casasse com ele teria um marido maravilhoso.
Contudo, Will Saunders não era para ela. Ele era nascido e
criado para a vida da Sociedade. Um mundo de riqueza, festas
fabulosas e pessoas egocêntricas. Esse era o mundo que ela
abandonara. Sua vida agora trazia um propósito. O trabalho com os
pobres trazia esperança para as pessoas que, de outra forma, não
teriam nada.
Will, por toda sua bondade inerente, jamais a entenderia.
Quando retornassem à Inglaterra, seguiriam caminhos
separados. Com o tempo, ele a esqueceria. No entanto, ela sabia
que nunca o esqueceria. Nunca se esqueceria do primeiro homem
que conquistou seu coração.
Ela se virou e olhou para a lua. Estava perto de ser uma lua
cheia. A luz da lua brilhava nas cristas brancas das ondas. Pareciam
pequenas lanternas brancas dançando, para cima e para baixo, em
um ciclo interminável.
— Não consegue dormir?
Will havia saído da cama sem um único ruído e agora vinha se
sentar ao lado dela.
— Só estou pensando. — ela respondeu.
— No quê?
A lembrança de estar na prancha do Blade of Orion veio à
cabeça. A emoção que sentiu antes de dar o salto para uma nova
vida, apareceu mais uma vez.
Foi corajosa naquele instante. Por que não agora?
Ela deu uma risada baixa, e sentindo as bochechas corarem
bem vermelhas, virou o rosto. Will estendeu a mão e, tocando-a no
rosto, atraiu seu olhar de volta para ele.
— No quê, Hattie?
O olhar dela recaiu nos lábios dele. Aqueles lábios macios e
quentes que a cativaram quando Will a beijou naquele primeiro dia
na praça da cidade.
— De como seria ser sua amante.
Ela prendeu a respiração. O olhar permaneceu preso nos lábios
dele. Ela foi ousada o bastante para dizer as palavras, mas não
encontrava forças para sustentar o olhar dele.
Will segurou a mão dela e a levou até os lábios, beijou-a de leve.
— Compreende o que está dizendo? Quero dizer, o que ser
minha amante implicaria.
Hattie soltou o ar preso nas bochechas. Ela mantivera a pequena
esperança de que este seria um segredo que jamais seria forçada a
revelar a ele. Todavia, se fosse trazer o relacionamento entre os
dois para o patamar que desejava, ela precisaria ser honesta com
Will quanto o assunto fosse sexo.
Hattie levantou-se do banco e, curvando-se, deu um beijo
hesitante nos lábios de Will. Ela nunca tomou a iniciativa com um
homem, mas seu coração pedia que ela se arriscasse. O pior que
ele poderia fazer seria dizer não.
— Sim, eu entendo. Will, não sou virgem.
Ele retribuiu o beijo.
— Presumo que o pastor decidiu ter direito a liberdades sendo
seu noivo e as tomou antes de deixarem Londres.
Ela assentiu.
Hattie foi levada a acreditar que fazer amor era um ato bonito
entre um homem e uma mulher. Via os beijos e sussurros
compartilhados entre Edgar e Miranda nos meses após o
casamento. Como os olhos de Miranda se iluminavam sempre que
Edgar a tocava.
Moças nos bailes da alta sociedade contavam histórias
maravilhosas de segredos compartilhados pelas irmãs mais velhas
casadas, acerca da alegria da cama conjugal. De maridos luxuriosos
e momentos de prazer sexual inebriante.
Quando Peter chegou ao quarto dela na primeira noite, ela
esperava que fosse um encontro mágico. Em vez disso, foi doloroso
e degradante. Quando ela chorou, Peter ordenou que ela
permanecesse quieta e imóvel.
As repetidas visitas foram tão horríveis quanto a primeira. Ela se
submeteu a ele, mas ele usou de força física para dobrá-la à
vontade sexual mesmo assim.
— Sei que seria diferente com você. Você seria gentil.
Will passou a mão na bochecha dela e envolveu o rosto dela
entre as mãos. Puxou Hattie para ele e tomou os lábios dela com os
dele.
Lábios amorosos e ternos tocaram os dela. Ele era tudo o que
uma jovem sonhava em um homem.
A colônia dele era uma mistura inebriante de especiarias e tons
amadeirados masculinos. Ela se deliciou com seu aroma acolhedor.
Quando Will enfiou os dedos nos cabelos dela, ela sentiu calor
escorrer pela espinha. A língua dele escorregou em sua boca. Ele
brincou e a tentou a responder. Ela retribuiu com movimentos lentos
e responsivos da língua.
Will levantou-se do banco e puxou Hattie com firmeza contra ele.
Ela sentiu a dureza da masculinidade dele contra o quadril.
Encorajada pelo efeito que estava tendo sobre ele, ela abaixou a
mão e esfregou a parte externa dos botões das calças dele.
Will gemeu de apreço.
Ele aprofundou o beijo, e ela o seguiu. Esta era a paixão e a
conexão que tanto desejava com um homem. Duas almas se
conectando e compartilhando o silêncio da noite juntas.
Ele se afastou do beijo, e seus olhares se encontraram.
— Tem certeza de que quer isso? Vou entender se teve um
momento de precipitação e agora está repensando.
Não havia dúvida alguma em sua mente. Ela sabia exatamente o
que queria, Will explorando cada centímetro de seu corpo com mãos
e lábios.
— Sim. Tenho certeza.
Ela pegou o suspiro na respiração dele. Teria sido uma noite
muito desconfortável para ele, se ela tivesse mudado de ideia.
Will a beijou mais uma vez. As mãos dele a seguravam pela
cintura, enquanto ela agarrava os fortes braços musculosos dele. Na
cabine apertada, os dois corpos aquecidos começaram a aquecer o
pequeno espaço.
Embora eles estivessem dormindo vestidos, Will não vestia
jaqueta ou lenço, e sob o casaco de Will, Hattie estava apenas com
um vestido e um chemise leve de algodão por baixo. Ela tirou os
braços do casaco e colocou-o no banco.
Will foi célere com os botões no vestido de Hattie, antes de
retirá-lo pela cabeça dela e colocá-lo na cadeira próxima. Quando
ele pegou nas fitas da frente do chemise, ela afastou aqueles dedos
ansiosos com um movimento gentil.
— Permita-me. — ela disse.
Ela viu os olhos dele se arregalarem enquanto ela desfazia o
laço, com um movimento devagar e provocativo, e deixava o topo do
chemise se abrir. Seus mamilos enrugaram ao sentir o beijo frio da
noite.
Ela jamais ficou nua na frente de um homem. Seus encontros
com Peter aconteceram no escuro e ela vestida com uma camisola
do pescoço ao tornozelo. Agora, ela se sentia devassa e desejável.
— Tire a camisa. — ela ordenou.
Ela pretendia ser a parceira mais igualitária possível nesse
envolvimento sexual. Não haveria silêncio imóvel na cama, ela
rezando para terminar. Seus momentos com Will seriam limitados,
então aproveitaria cada minuto que pudesse.
Will curvou-se em aquiescência.
— Como desejar, meu amor. — ele disse.
Ao ver o peito coberto de pelos, ela estendeu a mão e o tocou.
Riu.
— O quê? — ele perguntou, colocando a mão em cima da dela.
Ela viu travessuras dançando no cinza profundo dos olhos dele,
a lua refletida neles. Travessura e a promessa de muito mais. O
coração dela disparou enquanto suas fantasias levantavam voo.
— Quando eu o vi pela primeira vez, após me tirar da baía, você
estava sem camisa, e eu fiquei sem palavras. Eu jamais havia visto
um homem tão bonito. Quando vestiu a camisa e seu corpo
molhado fez com que o linho úmido se agarrasse a você, eu desejei
tocá-lo. — ela respondeu.
Na época, ela pensou que o efeito que Will teve nela foi
resultado de sua experiência de quase morte. Agora, de pé mais
uma vez na frente dele e de seu corpo seminu, ela sabia ser algo
mais.
As palavras de apreço foram recompensadas com um beijo
apaixonado de Will. Ele envolveu o rosto dela com as mãos, e suas
línguas recomeçaram a dança lenta.
Hattie deixou as mãos deslizarem para a abertura das calças de
Will e começou a trabalhar nos botões.
A Hattie de um mês atrás teria tremido ante essa tarefa, mas
aqui, e com Will, suas mãos foram firmes. Ela estava certa do
desejo que sentia por esse homem.
Quando ele saiu das calças e as jogou na cadeira próxima, ela
sentiu a boca ficar seca. Ao luar, ela o assimilou. Ele era magnífico.
Cada centímetro dele.
Os ombros dele eram como os de uma estátua grega, largos e
musculosos. À medida que o olhar baixava, ela viu mais do que
jamais viu em uma escultura.
Ele até poderia ser um cavalheiro inglês, mas sob esse verniz
fervia um poder que ela desejava liberar.
— Antes de continuarmos, posso mencionar algo? Este encontro
é muito unilateral no momento. Estou nu, e você ainda está com
metade das roupas. — ele disse.
Bem devagar, Hattie pegou as alças do chemise, e deslizou-as
mais para baixo, liberando os seios para a visão dele. A
masculinidade dele se contraiu e se ergueu em toda a glória. O
coração dela batucava alto no peito. Era assim que ela imaginou a
hora da verdade entre um homem e uma mulher. Paixão e desejo
mútuos.
Encorajada pela reação dele, ela empurrou o chemise pelos
quadris e saiu dele.
Ele a beijou mais uma vez e sussurrou.
— Deite-se na cama.
Ela fez o que ele pediu. Quando Will se ajoelhou entre as pernas
dela e pincelou beijos em seu joelho, ela tremeu. Ele afastou as
pernas dela com cuidado, ainda deixando um rastro escaldante de
beijos pelo interior da perna dela.
Quando ele alcançou o punhado de pelos palha na entrada de
sua feminilidade, ele franziu os lábios e soprou ar frio em seu
clitóris. Quando ela tremeu pela segunda vez, ele riu de prazer
consciente.
— Feche os olhos e entregue-se a mim. — ele disse.
No instante em que a língua dele a tocou, o quadril dela se
mexeu. Ele deslizou as mãos sob os quadris dela, segurando-a,
abrindo-a mais plenamente às suas atenções.
— Doce… — foi tudo o que ela conseguiu dizer.
A tortura que ele trouxe ao corpo dela fez com que Hattie
segurasse os lençóis com as mãos firmes. Quando Will deslizou um
polegar em seu calor molhado, os olhos de Hattie se abriram.
Olhando para o teto de madeira da cabine, ela cedeu ao prazer,
cada vez maior, que Will lhe infligia. A tensão era crescente em seu
corpo. Ele era um mestre na adoração sexual do corpo de uma
mulher.
Ela se esforçou para manter a mente sob controle, não deveria
ser apenas sobre ela.
— E você? — ela gaguejou.
De entre as pernas, ela o ouviu murmurar:
— Tudo tem seu tempo.
A língua dele retomou o cárcere pecaminoso de seu calor.
Golpes longos e habilidosos em torno e sobre o botão sensível.
Quando o primeiro pulsar de orgasmo a atingiu, ele soltou as pernas
dela e se ergueu depressa acima do corpo dela.
Com um impulso firme e profundo, ele preencheu o núcleo dela,
se retirou e empurrou-se outra vez. Hattie mal teve tempo de
registrar a mudança no ato sexual antes que seu mundo
desmoronasse em um clímax devastador.
Will passou a mão atrás da cabeça dela e a puxou para ele,
capturando sua boca. A língua mergulhou profundamente entre seus
lábios enquanto ela se entregava com a boca. Ele continuou a
cavalgá-la em um ritmo cada vez maior de impulso e retirada. O
orgasmo dela chegou em ondas.
— É assim que sempre será. — ele rosnou.
Ele desacelerou os golpes, mas apesar da experiência limitada
dela com sexo, ela sabia que Will não havia atingido o clímax.
Afastando-se do corpo dela, ele se sentou nos calcanhares e a
olhou. Ela se apoiou nos joelhos e veio até ele.
— Diga-me como me quer, como posso lhe dar prazer. — ela
ronronou.
Ela trilhou beijos quentes no peito úmido e suado dele. O gosto,
inebriante e masculino, despertando-a mais uma vez para dar de
bom grado tudo o que ele poderia exigir.
— De joelhos, de frente para a parede. — ele respondeu.
Assim que ela fez como instruído, Will veio até ela. Ele envolveu
os braços ao redor do corpo dela, tomando os dois mamilos nas
mãos. Ele os apertou de leve, rolando os bicos apertados entre as
pontas dos dedos. Quando ela gemeu, um gemido escapou dos
lábios dele também.
Ele afastou as pernas dela com gentileza e enfiou dois dedos
bem fundo em seu calor. O corpo dela ainda latejava pelo prazer do
clímax, mas ele trouxe a necessidade sexual dela mais uma vez à
tona, com um habilidoso acariciar em seu botão.
— Will. — ela disse, as palavras um apelo para que a libertasse
da tortura.
Ele retirou os dedos e o corpo dela acolheu a masculinidade dele
mais uma vez. Com as mãos firmes nos quadris dela, ele a tomou
por trás. A posição permitiu uma penetração mais profunda do que
antes, o som de pele batendo em pele ecoou no silêncio da cabine.
— Quero que goze uma segunda vez. Não vou terminar até o
fazer. — ele murmurou no ouvido dela.
Mesmo que ela tivesse tal habilidade, Hattie não poderia recusá-
lo. Will aumentou o ritmo dos golpes, ele sabia exatamente como
aumentar a necessidade urgente dentro dela.
Sem parar, ele saqueou o corpo dela até ela se desfazer em um
grito desesperado e soluçante.
Quanto tempo Will demorou para gozar após este momento, ela
não tinha certeza. Não estava mais no controle do próprio corpo. Ele
a possuía completamente.
Toda a sua existência consistia no som dos gemidos dele e no
bater profundo do pênis dele em sua entrada ainda latejante.
O único pensamento dela, quando ele enfim gozou, foi de
gratidão porque os aposentos dos tripulantes ficavam do outro lado
do navio. O rugido dele teria feito um leão orgulhoso.
Eles caíram em uma pilha aquecida na cama, braços e pernas
entrelaçados.

Will acordou várias horas mais tarde. Ele e Hattie ainda estavam
entrelaçados. Em algum momento da noite, ele conseguiu jogar
alguns cobertores sobre os corpos nus dos dois. Hattie estava
quente. A respiração suave lhe disse que ela estava dormindo
levemente.
Ele se inclinou e deu um beijo terno na base do pescoço dela.
Ela se mexeu.
— Olá. — ele murmurou.
Hattie rolou e sentou-se. Os cobertores caíram, revelando seus
seios. Seu olhar foi atraído para seus bicos como rosas. No ar frio,
logo se tornaram pequenos brotos duros. Will sentiu o pau se
contorcer. Ele a queria de novo.
Ele a puxou e a beijou. Ela respondeu com naturalidade,
devolvendo o beijo com igual ternura e fome.
Quando eles enfim interromperam o beijo, ele viu os sinais de
um leve inchaço no lábio inferior dela. No calor do amor apaixonado
de mais cedo, ele mordeu o lábio dela.
Não seja um patife.
Eles já haviam feito amor esta noite, apenas um homem egoísta
pediria a uma mulher inexperiente para tomá-lo dentro dela mais
uma vez tão logo. Ele esperaria que Hattie viesse até ele quando
desejasse o corpo dele mais uma vez. Ele levantou o cobertor de
novo e envolveu-o em torno dela.
— Não vai querer pegar um resfriado, meu amor.
Hattie estendeu a mão e tocou-o no peito. Os dedos roçavam os
pelos finos e pretos em seu tronco superior.
— O que são? — ela perguntou.
Ele sabia que indagações acerca das tatuagens dele acabariam
por vir. Tatuagens não eram nada que as jovens solteiras costumam
ver, nem mesmo saber que existem. No entanto, eram comuns entre
os homens da nata social na Inglaterra.
Na França, apenas os dotados de extrema ousadia, ou aqueles
que viviam fora da lei, eram tentados a marcar os próprios corpos
com tinta. Yvette ficou indignada quando Will lhe mostrou a
tatuagem no ombro direito, pensando ter sido enganada, de alguma
forma, a se casar com um criminoso.
A tatuagem no ombro direito dele era de um cavalo rampante
com uma coroa acima, e abaixo do animal, três estrelas de quatro
pontas. Ele observou os dedos de Hattie traçarem o contorno das
marcas da tatuagem.
— O brasão Strathmore. Fiz em memória ao meu avô materno.
Eu teria um para a família do meu pai, mas sendo francês, meu pai
ameaçou me renegar se eu ousasse marcar o brasão da família
dele no corpo. — ele disse.
Ela tocou a pequena rosa tatuada em preto em seu outro ombro.
— E esta? — ela perguntou.
Will limpou a garganta. Ele não falara de seu estado civil até
agora, permitindo que Hattie presumisse que ele jamais se casou.
Informar as pessoas de que ele era viúvo, tendia a conversas
embaraçosas. Com Hattie, era algo que ele não podia mais
esconder.
— Essa é por minha esposa. Yvette. Ela morreu.
Hattie retirou a mão. Fez menção de se afastar, mas Will a
impediu. Yvette era parte de quem ele era, e Hattie precisava
entender.
Ela seria esposa dele pelo resto da vida, mas precisaria chegar a
um acordo com o fato de que Yvette conquistou o coração dele
primeiro.
— O que aconteceu com ela?
Ele havia praticado a mentira para a morte de Yvette por tanto
tempo, que às vezes quase se esquecia a verdade.
— Ficou doente, e os médicos não conseguiram salvá-la. — ele
respondeu.
A mentira era melhor do que tentar explicar como uma operação
nas ruas fora do Grande Arsenal de Paris deram terrivelmente
errado, resultando na morte de quatro agentes britânicos e de dois
apoiadores da monarquia francesa. Ninguém da sociedade educada
precisava ouvir como Yvette foi esfaqueada por um assassino e
deixada para morrer à beira do rio Sena.
— Lamento muito.
— Obrigado.
Ele se moveu para a parte de baixo da cama e sentou-se
recostado à parede. Ele estendeu a mão para Hattie, sorrindo
quando ela veio até ele. Ela se deitou nos braços dele com a cabeça
apoiada no peito dele.
Haveria tempo suficiente no futuro para falar do passado. Para
revelar, aos poucos, a verdade da vida que ele levou.
Eles se sentaram juntos em silêncio e observaram, através da
janela, os primeiros raios do sol da manhã anunciarem o
amanhecer.
Capítulo Quinze

C omo todas as coisas boas, Hattie sabia que seu tempo com Will
acabaria. Ela havia se concedido essa indulgência. A noite entre
eles foi tudo o que esperava que fosse, e muito mais. Will era um
amante apaixonado, terno e generoso. Mostrou prazeres além da
imaginação dela.
Agora, ela sabia o que uma mulher poderia experimentar com
um homem. Se amor estivesse em seu futuro, ela só entregaria o
coração a alguém que pudesse fazê-la se sentir como Will a fez
sentir-se.
Estavam perto do fim da longa jornada para casa. O Canis Major
seguia lentamente pelo Canal da Mancha. A bombordo, a costa
inglesa já estava à vista. Se tudo corresse bem, atracariam em
Londres no início da manhã seguinte.
Esta noite, seria a última noite deles juntos. Um último dia
vivendo a fantasia de ser a mulher de Will.
Assim que atracassem, ela voltaria à antiga vida. Voltaria a
ajudar as pessoas que tanto precisavam dela. Ela tentou colocar as
lembranças dos amigos no fundo da mente, sabendo não haver
nada que pudesse fazer até chegar a Londres. Agora, quando o
navio se aproximava da foz do rio Tâmisa, ela começava a se
perguntar o que encontraria ao retornar.
— Perdida em pensamentos de novo? — sussurrou Will.
Ela abandonou suas reflexões. Ela e Will estavam deitados na
cama, nus e nos braços um do outro. A longa tarde fazendo amor
terminava.
— Apenas pensando no que acontecerá quando voltarmos a
Londres. — ela respondeu.
Quando Will colocou um beijo quente em sua nuca, Hattie
estremeceu. O ar do navio estava, pouco a pouco, ficando mais frio
pelo avanço ao norte.
Ela desceu da cama, de repente, precisando colocar distância
física entre eles. Pegando as roupas, ela começou a se vestir. Hattie
tentou ignorar o sopro de decepção de Will quando ela o deixou. Will
saiu da cama e começou a se vestir.
— Eu esperava podermos discutir esse assunto hoje, embora
pudéssemos muito bem ter ficado na cama para o fazer. — Will
disse.
Hattie se apressou a amarrar as fitas na frente do vestido,
apesar da sensação de mau presságio que se apoderava dela
devagar. Quando Will se aproximou e segurou suas mãos, ela lutou
para encontrar seu olhar.
Não diga as palavras.
— Deve ser uma questão simples a de convencer seu tio acerca
da necessidade de nos casarmos. Após termos a permissão dele,
iremos para a casa de meus pais e os informaremos de nossas
boas novas. Tenha certeza de que minha família amará você.
Minhas irmãs ficarão encantadas com a minha escolha de nova
esposa. Estou certo de que ficará amiga de Eve e Caroline com toda
a pressa. Francis será como um filhotinho, ansioso para fazer o que
você mandar.
O coração dela afundou. O que Will diria quando descobrisse as
mentiras dela? Que seu tio Felix não estava em Londres. Não só
isso, nem mesmo na Inglaterra ele estava.
— Não creio que devemos nos apressar. — ela respondeu.
Will rosnou.
— Acredito que tempo é essencial. Você e eu temos
compartilhado a cama pela maior parte das duas últimas semanas.
Perdi a conta de quantas vezes já se entregou a mim. Pode estar
grávida.
As palavras dele a fizeram retesar. Não havia considerado o
risco de gravidez. Decerto demorava mais de duas semanas para se
engravidar. A esposa do irmão ainda não engravidou, apesar dos
seis anos de casamento.
— Não me sinto grávida. Com certeza, eu saberia se fosse o
caso. Então, como disse, podemos esperar. — ela respondeu.
O olhar no rosto de Will mostrava que ele não se sentia feliz com
a direção da conversa. Ele falou de casamento, e em vez de jogar
os braços ao redor dele e aceitar a proposta, ela estava recusando a
proposta, pedindo tempo.
Hattie pegou o casaco de Will, decidindo que uma volta no
convés poderia ser o mais sábio neste momento.
— Aonde vai? Não terminamos. — ele disse.
Ela endireitou a coluna e encontrou o olhar dele. Se ela não se
mantivesse firme, ele a obrigaria a fazer o que ele mandasse. Ela
colocou o casaco e se dirigiu para a porta.
Will estendeu a mão e a segurou pelo braço enquanto ela abria a
porta da cabine.
— Fique. Precisamos resolver isso. Não entendo por que diz que
devemos esperar. É quase como se estivesse dizendo não.
— Solte-me. E eu estou dizendo não. Não vou me casar com
você Will. — ela respondeu.
Ela saiu para o convés. Will a seguiu de perto.
— Não! O que quer dizer com não?
Hattie puxou o casaco para mais perto de si e continuou
andando. Will a alcançou e a agarrou pelo braço com firmeza. Ela
sabia que ele não fazia por mal, mas seu aperto estava um pouco
mais intenso do que o necessário.
— Ai! Está me machucando! Solte-me!
Ele suavizou a pegada, ainda segurando o braço dela. Nos olhos
dele, ela viu confusão e mágoa.
— Volte para a cabine. — ele implorou.
A última coisa que queria, era estar sozinha com Will. Ele era um
homem desacostumado a ouvir não, portanto, faria tudo o que
pudesse para dobrá-la à vontade dele.
— Solte-me. — ela exigiu.
O olhar dele subiu, focando em algo acima do ombro dela. Hattie
virou-se e viu boa parte da tripulação do Canis Major, trabalhando
no convés. Todos haviam parado suas tarefas e estavam
observando o desenrolar da discussão com grande interesse.
Lembranças dos comerciantes no mercado de Gibraltar vieram à
mente. Will conversou com a multidão e os conquistou. Ela poderia
fazer o mesmo?
Após tudo o que ele fez por ela, Will não merecia o que estava
por vir. No entanto, ele a havia encurralado tanto que ela não via
outra saída.
Desculpe-me.
— Não pode me obrigar a me casar com você! Sei que só me
quer pelo meu dote. Você é cruel e egoísta. — ela choramingou.
Um olhar de horror apareceu no rosto de Will.
— Não faça isso, Hattie. Esses homens não são simples
feirantes. — ele implorou.
— Não. Não, não vou mais ficar em silêncio. Quando chegarmos
a Londres, vou dizer ao meu tio exatamente o tipo de homem que
você é, seu monstro.
Todo o movimento no convés parou. A tripulação pareceu
fascinada com o desenrolar do drama.
Hattie se afastou do aperto de Will. Ela cambaleou em direção à
tripulação, fazendo seu melhor para se levar às lágrimas. O primeiro
imediato estendeu a mão e colocou um braço reconfortante em
torno dela.
— Tudo bem, senhorita, não vai se machucar. — ele disse.
Will, as mãos fechadas em punhos apertados, marchou. A
respiração era pesada, a postura reta. O mestre da ilusão estava
sendo esmagado em seu próprio jogo, e ele estava lívido.
— Senhores, estão sendo enganados por esta jovem mulher.
Agora, se a deixarem vir, ela e eu podemos voltar para a nossa
cabine e resolver esse assunto em particular. — ele disse.
Hattie se inclinou mais perto do primeiro imediato. Ela conseguiu
dar um soluço para efeito adicional.
— Sr. Saunders?
Quando Will se virou, Hattie avistou o capitão do navio. Os
acontecimentos no convés ganharam a atenção dele.
— Minha noiva e eu estamos tendo um pequeno
desentendimento. Lamento que ela tenha perturbado sua tripulação
e tenha interrompido o trabalho de todos. — explicou Will.
Will era um homem inteligente e melhor do que ninguém para se
retirar de qualquer situação. Hattie também sabia que o capitão
gostava dele. Nos últimos dias, ela e Will passaram bastante tempo
na companhia do velho marujo prestes a se aposentar. Em várias
ocasiões, os dois jantaram na cabine do capitão.
Como Will havia julgado a situação na cidade, Hattie sabia que
as apostas eram altas. Ela precisava estar à altura da ocasião.
— Desentendimento? Espere até que meu tio saiba das coisas
terríveis que fez comigo. Mostrarei os hematomas. Ele o verá pelo
bruto perverso que é, me salvará de você.
Ela enterrou o rosto no ombro do primeiro imediato e chorou alto.
— Ajude-me, eu imploro!
Dois outros membros da tripulação foram parar atrás do primeiro
imediato em uma clara demonstração de solidariedade.
— Isso é uma farsa maldita. — Will disse.
Hattie sentiu a mudança no humor. Will havia xingado na frente
de uma jovem. A dúvida de quanto cavalheiro ele era estaria agora
nas mentes da tripulação. Ela sentiu a vitória.
— Sr. Saunders, sugiro que você e eu nos retiremos para a
minha cabine. A moça pode se refugiar na de vocês até que tudo se
acalme. — o capitão pediu.
Hattie agarrava-se com firmeza ao primeiro imediato. O olhar de
medo logo substituído por esperança nas palavras do capitão.
Will encarou Hattie por um bom tempo. A mandíbula estava
tensa. Por fim, ele relaxou os dedos, abriu os punhos e se afastou.
— Vejo que não terei um julgamento justo aqui no convés.
Will seguiu o capitão até a cabine. O primeiro imediato
acompanhou Hattie de volta à sua cabine.
— Ficará bem, senhorita?. — ele perguntou, abrindo a porta.
Ela enxugou o rosto, afastando as lágrimas fingidas. Ela
esperava que ele não notasse a roupa de cama desarrumada,
evidência da atividade em que ela e Will fizeram naquela tarde.
— Não sei. Ainda falta um dia inteiro antes de atracarmos em
Londres. Quem sabe que mentira ele contará ao capitão para ter o
apoio dele. Temo o que o Sr. Saunders fará a seguir.
— Existe algo que os meninos e eu poderíamos fazer para
ajudá-la?
Hattie pensou por um instante. Ela fazia acordos regulares com
os mercadores em Covent Garden ao tentar garantir restos de
comida para a igreja paroquial. Ela sabia que as pessoas estavam
mais abertas a ajudar os outros se pudessem ver estarem tendo
algo em troca. Os comerciantes mãos-de-vaca ficavam felizes em
entregar legumes podres se seus nomes fossem lidos na igreja
todos os domingos, a benevolência em exibição para todos verem.
Além de se oferecer, o que não seria uma opção em nenhuma
circunstância, Hattie considerou o que mais a tripulação poderia
querer.
— O senhor tem uma senhora o esperando em Londres? — ela
aventurou-se.
Ela estava com uma mala cheia de vestidos e produtos de
higiene pessoal que Will comprou para ela. Embora os vestidos não
fossem do estilo correto para as senhoras da alta sociedade, eram
de excelente qualidade. Qualquer marinheiro esperto saberia que
encontraria uma recepção extra calorosa em casa, após a longa
viagem marítima, se trouxesse presentes.
— Há uma bela moça à minha espera. — ele respondeu.
Hattie sorriu.
— Então, acredito que podemos nos ajudar.
Capítulo Dezesseis

— E stá certa disso, senhorita? Seu noivo parece ser um


homem decente. Ele é sempre educado e amigável com a
tripulação. Talvez, a briga desta tarde tenha sido apenas um pouco
mais intensa? Minha senhora e eu brigamos o tempo todo. Dizemos
coisas que não queremos dizer, mas ainda nos amamos. —
perguntou o marinheiro.
— Sim, tenho certeza. Ser um cavalheiro em público é uma das
características mais admiráveis dele, é quando ele está sozinho
comigo que não é gentil. O senhor o ouviu xingar na minha frente.
Jamais ouvi tais palavras até conhecer o Sr. Saunders. O senhor
enfim teve um vislumbre do bruto sem coração que ele é, pode ver
por que eu devo escapar. — respondeu Hattie.
Hattie estava na lateral do navio, a corda amarrada com firmeza
em torno da cintura. Ela não assumiria riscos desnecessários ao cair
na água. Mal podia esperar para sair do navio e voltar para casa.
Um mergulho nas águas quentes de Gibraltar era uma coisa,
arriscar-se a chegar em terra pelas rotas marítimas movimentadas
do frio Tâmisa era outra bem diferente. Somando-se ao perigo,
havia a noite escura.
— Bem, sim, ele gritou com você e pareceu muito zangado. — o
homem respondeu.
Will Saunders era um homem decente. Ele fez tudo o que podia
para garantir a volta segura dela para a Inglaterra. Não merecia a
exibição de lágrimas dramáticas e lamentos dela à frente da
tripulação mais cedo naquele dia. Com toda certeza, ele não
merecia ser abandonado pela amante no meio da noite.
Ela pediu desculpas a ele em particular, mas Will, com razão, se
recusou a discutir o incidente com ela. Quando o grumete chegou
pouco depois carregando uma garrafa de vinho como oferta de paz,
Will aceitou o presente com um agradecimento grosseiro.
O navio estava ancorado a cerca de um quilômetro e meio a
jusante das docas. As docas estavam ocupadas, e nem sempre
ficavam disponíveis de imediato. O capitão largou a âncora um
pouco após o jantar e anunciou que precisariam esperar a maré da
manhã antes de conseguirem ancorar.
Hattie usou bem o tempo que Will passou na cabine do capitão.
Assim que a tripulação soube que ela estava disposta a vender seus
belos bens a preços módicos, eles apareceram um após o outro
para dar suas moedas, ganhas com trabalho árduo. Moedas que ela
estava desesperada para ter.
Ela entregou a escova de cabelo ao grumete quando o navio
entrou na foz do Tâmisa.
Após várias taças do vinho batizado com láudano, Will caiu em
um sono profundo. Em seguida, Hattie violou a confiança dele uma
última vez e levou seu casaco.
Seriam necessárias mais de cem menções do nome dela na
igreja no domingo para compensar todas as mentiras que disse.
O marinheiro no barco ficou em silêncio, a mente no lindo vestido
que ele comprou por um punhado de moedas. A mulher que possuía
seu afeto estaria bem inclinada a agradecê-lo como se deve quando
ele chegasse em casa no dia seguinte. Para ele, os problemas entre
cavalheiros ricos e suas damas não eram grande preocupação.
Quando o barco a remo se afastou do navio, Hattie puxou o
colarinho do casaco de Will e escondeu o rosto. Qualquer um que
virasse o olhar para o Canis Major neste segundo, só veria três
tripulantes indo para terra e não daria importância.
Ela conseguia distinguir as luzes ao longo do rio e ouvir o canto
barulhento nas tavernas à beira-mar. Um sorriso se insinuou nos
lábios dela ao ouvir as palavras de uma música de taverna. Estavam
cantando em inglês.
Já em terra, os marinheiros deram-lhe instruções apressadas de
como ela poderia chegar ao extremo oeste de Londres. Ela estava
prestes a subir uma pista escura próxima quando os marinheiros,
tendo pensado duas vezes na segurança dela, saíram para a rua
principal e chamaram um coche de aluguel que passava.
— Essa não é a parte mais segura de Londres para uma jovem
senhorita, ainda mais com um casaco de qualidade e caro e com
moedas no bolso. — eles a alertaram.
Após agradecê-los pela bondade, ela se despediu dos dois
marinheiros e deu o endereço de sua casa ao condutor do coche.
Acomodando-se no couro macio do assento, ela suspirou. Hattie
Wright estava de volta à Inglaterra.
Ela estava em casa.
Capítulo Dezessete

— C omo assim não consegue encontrá-la? — Will grunhiu.


Ele estava vermelho, as mãos nos quadris ao encarar o
capitão do navio. Seria preciso cada grama de autocontrole para
conter a fúria. O rosto do capitão, por sua vez, era um tom um
pouco mais branco de cinza pálido. A jovem passageira havia
desaparecido do navio em algum momento da noite, e o capitão não
tinha explicação.
— Mandei o grumete verificar sua cabine. — o capitão
respondeu.
— Após eu ter ido lá duas vezes. Posso assegurar que minha
noiva não se escondeu debaixo das roupas de cama. — Will cuspiu.
Era uma declaração ridícula, mas no espaço apertado da cabine,
era o único lugar que Hattie poderia estar.
Ele passou os dedos pelos cabelos em frustração. Onde ela
estava?
Lembranças da noite anterior vieram à mente. Ele foi tolo ao
aceitar a garrafa de vinho, pois jamais imaginou que Hattie tentaria
dopá-lo para dormir. A manhã trouxera consigo o sabor amargo do
láudano.
A raiva dele nesta manhã não era dirigida apenas a Hattie, mas
a si. Ele foi manipulado com pompa.
Ele precisava aplaudir Hattie. Ela aprendeu com a experiência
deles com a multidão na feira livre de Gibraltar. Ela aprendeu como
funciona a mente grupal de uma multidão e lidou com a situação
com maestria. A donzela em perigo logo trouxe a tripulação inteira
para o lado dela.
E o que ele, grande espião e agente disfarçado, fez? Dialogou
com ela, pediu apoio viril à tripulação? Não. Ele perdeu a paciência.
Ele mostrou a face canalha que ela havia afirmado.
Enquanto ele dormia, Hattie encontrou um jeito de escapar do
navio. Quando enfim acordou, muito depois de o navio atracar, ele
soube que ela havia ido embora. Mas como?
Will girou nos calcanhares e voltou para a cabine. O navio estava
sendo descarregado, e o baú de viagem dele precisava ser fechado
e protegido. Ele o enviaria para a casa dos pais enquanto
permanecia no cais e tentava chegar ao fundo do desaparecimento
de Hattie.
Dentro do baú de viagem, ele enfim conseguiu a primeira pista.
Quando foi fechar a tampa, viu um pequeno pedaço de papel
dobrado enfiado em um dos bolsos internos. Ele puxou-o e leu a
curta mensagem.

Will,
Você e eu vivemos em mundos diferentes. Por
favor, saiba que eu nunca quis mentir para você, e
estarei para sempre em sua dívida. Eu o amo de
todo o meu coração, nosso tempo juntos foi um sonho
que se tornou realidade, mas deve me deixar ir.
Eu te amo
Hattie

Uma onda de angústia o dominou, afundando-o em amargura. Seus


instintos mais uma vez falharam quando em relação à Hattie.
O que havia com essa garota? Ele não conseguia lê-la. Durante
a noite, Hattie escapou do navio.
A preocupação marcava sua testa. Se ela tivesse tentado nadar
até o porto com todos os pertences, seria um milagre se ainda
estivesse viva. Havia tantos navios e barcos subindo e descendo o
rio a todo instante, que ela poderia ser puxada para debaixo de um
deles sem nenhuma dificuldade.
Ele a trouxe de tão longe, apenas para perdê-la de vista já em
casa.
— Ó, Hattie… — ele murmurou.
Enquanto isso, o capitão fez perguntas à tripulação. A última
pessoa que a viu foi o grumete quando ele pegou a garrafa de
vinho. Ninguém mais saberia dizer o que aconteceu com ela.
Will arrumou o restante de suas coisas. Assim que deixasse o
navio, ele entraria em contato com a polícia do rio Tâmisa e pediria
uma varredura das águas.
Se Hattie havia se desesperado ao tentar escapar do navio, ele
só poderia rezar para que a morte dela tenha sido rápida.
Enquanto seguia a tripulação carregando sua bagagem até o porto,
Will ponderou o que deveria fazer. Eles levaram a bagagem dele
para a Agência Marítima nas proximidades com instruções para
despachá-la para a casa dos pais dele na Rua Dover. Na verdade,
ele deveria acompanhar o baú de viagem, mas não estava com
disposição para reuniões felizes.
Virando a gola do casaco de lã sobressalente para evitar o frio
matinal, ele desceu a Rua Pennington até a Delegacia da Polícia do
Rio Tâmisa.
A busca durou a maior parte do dia e a tarde já terminava
quando Will enfim perdeu a esperança de encontrar uma pista
quanto ao destino de Hattie. Hora após hora, ele sentou-se na proa
de um pequeno barco da polícia, o olhar fixo nas águas escuras e
amarronzadas do Tâmisa.
Quando a luz da tarde começou a desaparecer, a polícia
interrompeu a busca e voltou para a costa.
— Após a maré subir e descer, as chances de encontrar um
corpo são muito baixas, senhor. — o policial que o acompanhava
disse.
Não demorou muito para o policial completar a papelada de
praxe. Uma jovem desapareceu de um navio ancorado rio abaixo. O
policial entregou o relatório para ele, e Will anotou o nome e o
endereço dos pais na parte inferior.
— Se encontrarmos algo dela, o avisaremos. — disse o policial.
Ele pegou o papel e colocou-o no topo de uma pilha empoeirada
de documentos de aparência semelhante. Will agradeceu o homem
pelo tempo e esforço da polícia, mas não pela falta de tato.
Voltando para a rua, ele parou e olhou para a longa fila de navios
atracados no cais. Sob um deles, Hattie deve ter encontrado seu
destino.
A angústia fazia a mente dele girar. Teria ele levado uma jovem
desesperada à morte?
Grupos de marinheiros passaram por ele, todos se dirigindo a
uma taverna próxima. Ele estava louco por uma bebida forte, então
se colocou atrás dos marinheiros e os seguiu até a taverna.
A fumaça e o riso estridente da taverna lotada logo atacaram
seus sentidos. Não era um estabelecimento tão grande, mas estava
lotada de marinheiros, todos em diferentes estados de intoxicação.
Ele enfim conseguiu chegar ao bar e pediu um canecão de
cerveja. Seguindo o hábito adquirido no trabalho, ele encontrou um
canto para se sentar e saborear a cerveja com calma.
As prostitutas da taverna, que vieram oferecer-lhe companhia,
receberam uma moeda e um aviso para encontrar amigos em outro
lugar. Ele estava prestes a dizer à quarta garota consecutiva que
não estava interessado em seus serviços quando notou o vestido.
Em Gibraltar, ele encontrou roupas adequadas para repor as
roupas que ela deixara a bordo do Blade of Orion. Um dos vestidos
que ele gostou era verde com um caimento de renda branca. O
mesmo vestido que a jovem artista da noite estava usando.
Ele pressionou as botas com força no chão de madeira,
trabalhando para controlar o gênio.
Ele apontou para a cadeira ao lado dele e acenou para que ela
se sentasse.
— Esse é um belo vestido, minha jovem. — ele disse.
Ela riu e mostrou um conjunto de dentes castanhos escuros e
disformes.
— Não é? Meu amigo me deu quando chegou do mar esta
manhã. Sou a garota mais sortuda de todas as docas de Londres.
— ela respondeu.
— Com toda a certeza. Posso perguntar em que navio seu
amigo navega? Sou um entusiasta de navios e adoraria navegar
pelos oceanos algum dia. — ele comentou.
A ofensiva charmosa funcionou, e logo Will ouvia a história de
uma pobre moça cujo noivo era mau e ameaçou cortar todos os
seus cabelos assim que chegassem à terra.
— E ele disse que nunca mais a deixaria rever os pais. Que tipo
faz isso com a garota com que ele vai se casar, me diga?
O nojo indisfarçável no rosto dela fez o sangue nas veias de Will
ferver. Hattie deve ter contado um longo e lúgubre conto para a
tripulação enquanto ele esfriava os calcanhares na cabine do
capitão.
— E então, o que aconteceu com ela? — Will perguntou,
deslizando outra moeda pela mesa.
A menina a pegou e a deslizou em seu amplo decote. Então,
levantando a cabeça, ela encontrou o olhar dele.
Will sentiu que ela estava se perguntando por que um cavalheiro
como ele estaria interessado na história, quanto mais a ponto de dar
uma moeda extra para ouvir mais. Por mais inculta que devesse ser,
os olhos que o estudavam eram plenos da inteligência.
— Acontece que gosto de uma boa história, ainda mais quando
me é contada por uma moçoila tão bonita. — ele respondeu.
Ele empurrou o canecão de cerveja pela metade na direção dela.
Para seu alívio, ela o pegou e tomou um gole bem grande.
Arrotou e sorriu antes de limpar a boca com a manga do novo
vestido.
— Pois bem, ela convenceu alguns dos rapazes da tripulação,
inclusive o meu homem, a trazê-la de barco a remo, antes que o
navio atracasse de fato. Ela trocou todas as coisas que o terrível
noivo comprou para ela. Acredito que todos na tripulação acabaram
com algo. Até mesmo Eddie, o grumete, conseguiu uma nova
escova de cabelos para a mãe. Enquanto seu noivo estava
dormindo, a tripulação a baixou até a água e a ajudou a escapar.
Will se viu surpreso. O gênio dele já havia voltado a um nível de
quase civilidade. Um conjunto diferente de emoções veio à
superfície e assumiu o controle. Uma estranha mistura de alívio e
luxúria.
Luxúria pela perseguição.
Hattie o enganou e o superou o tempo todo. Toda vez que ele
pensava ter conseguido conquistá-la, ela lhe mostrava mais uma
parte de si.
Ela o fizera de bobo.
Agora, Will estava empenhado em encontrá-la. O que ele faria
quando enfim alcançasse Hattie, ele não sabia dizer ao certo. O
corpo dele endureceu, certo de que sabia exatamente o que queria
fazer. Hattie era uma droga que ele sabia que jamais tiraria por
inteiro do organismo.
A prostituta da taverna sentou-se, olhando para Will, uma linha
de expressão profunda na testa.
— Você não vai machucá-la, vai? — ela perguntou.
Will leu corretamente ao menos uma mulher. A garota sentada
ao lado dele havia descoberto seu papel na história.
— Não, não vou. Nunca o fiz e nunca farei. Acredite em mim
quando lhe digo que todos nós, um a um, fomos enganados por
uma mentirosa muito inteligente.
Ele levantou-se do assento. Conseguiu o que precisava.
Permanecer mais tempo seria arrumar problemas com qualquer
membro da tripulação do Canis Major que ainda estivesse na
taverna.
— Está linda nesse vestido, de verdade. — ele disse.
A menina terminou a cerveja de Will e ficou de pé. Passou um
tempo alisando as saias. A peça se encaixava nela como se tivesse
sido feita sob medida por uma costureira que a conhecesse bem.
Ela se virou e começou a se afastar, mas logo parou e voltou-se
para Will.
— Eu não viria aqui de novo se fosse você, senhor. Tenho um
dom para lembrar rostos, e meu homem saberá que você veio aqui
procurá-la.
Will assentiu. Ele esperava que seus dias rastejando pelo
submundo da sociedade tivessem acabado. Já fora da taverna, ele
fez sinal para um coche de aluguel. Quando subiu, o endereço dos
pais quase saiu, mas parou.
Como ele poderia encarar a família à espera de um retorno
alegre para casa? A mãe estaria cheia de perguntas acerca das
recentes viagens ao continente. As revelações da garota da taverna
quanto ao destino de Hattie deixaram a mente dele em polvorosa.
O reencontro precisaria esperar. Os pais e irmãos mereciam um
Will Saunders alegre e loquaz. Seu humor atual era tudo, menos
isso. Suas emoções e instinto estavam presos em uma batalha por
atenção.
Havia algumas coisas de que ele estava certo. Uma delas era
que, se Hattie pensou ter escapado com sucesso por entre os dedos
dele, ela estava tristemente enganada.
Também sabia precisar de um plano, e um bom plano exigia um
aliado.
O caminho para encontrar Hattie e desvendar os segredos dela
começaria na casa das duas pessoas que entendiam a vida de um
espião tão bem quanto ele. O Conde e a Condessa de Shale.
— Rua Duke. — ele instruiu o condutor.
Capítulo Dezoito

— F az ideia de que horas são? — Lorde Shale perguntou.


Ele estava ocupado amarrando a faixa do roupão ao
entrar na sala de estar do térreo da elegante mansão na Rua Duke.
Will notou os cabelos bagunçados e a falta de sapatos nos pés do
primo e franziu a testa. Ele havia arrastado o conde para fora da
cama.
Will olhou para o relógio de bolso. Era quase meia-noite. Um
horário em que, ele e Bartholomew Shale, estariam a todo vapor
pelas ruas de Paris conduzindo operações secretas.
— Envelhecemos, não é, Bat? — ele respondeu. Apenas os
amigos mais próximos do conde detinham o privilégio de chamá-lo
pelo apelido dos tempos de escola.
Bat levantou uma sobrancelha. Ele conhecia Will bem o
suficiente para sentir de imediato que algo o incomodava. Algo de
grande importância.
— E uma boa noite para você também, querido primo. Posso
deduzir por seu comportamento e sua aparência não barbeada que
não teve uma viagem agradável na volta do continente?
Will bufou. Foi um dia longo e difícil.
— Limito-me a dizer que foi interessante.
— Então é melhor me contar tudo. Sente-se. — Bat respondeu.
Lorde Shale e a esposa Rosemary, foram agentes britânicos
disfarçados e trabalharam ao lado de Will em Paris. Ele e Rosemary
eram as duas únicas pessoas na vida de Will que conheceram
Yvette. Bat esteve com Yvette na noite em que ela morreu, mas um
envenenador habilidoso o tornou incapaz de salvá-la. Lorde Shale
mal escapou com vida.
Will então começou a contar a Bat tudo, exceto os momentos
demasiado íntimos de seu tempo com Hattie. Era raro que
ocultassem algo um do outro. Quando Will terminou, ele se sentou e
esperou.
— E ela lhe passou a perna. Tornou-se um molenga, meu rapaz.
— Bat riu.
Will olhou para o seu copo com uma dose generosa de
conhaque. Ele ponderou a declaração por alguns segundos, antes
de encontrar o olhar inquiridor de Bat.
— As bordas podem estar um pouco desgastadas, cedo nisso,
mas esta missão está longe de terminar. É por isso que sua casa foi
o primeiro lugar que escolhi vir, assim que descobri que Hattie não
estava morta. Se alguém pode me ajudar a esclarecer a cabeça em
torno dessa bagunça, é você. — respondeu Will.
Ele colocou o copo na mesa, balançando a cabeça.
— Ainda não consigo acreditar que deixei que meu juízo fosse
obscurecido de uma forma tão terrível.
Ele estava enojado consigo mesmo. A ideia rodeou a mente o
dia todo, mas verbalizar feriu seu orgulho teimoso.
Bat descartou as palavras de Will com um aceno.
— E você é o primeiro homem no mundo a permitir que uma
mulher nuble seu discernimento?
O olhar de Bat se moveu para a porta, onde a beldade alta de
cabelos negros como um corvo estava. Will seguiu o olhar do primo.
— Rosemary. — Will ficou de pé.
Lady Shale deu-lhe um beijo terno na bochecha antes de permitir
que Will a abraçasse.
— Will, estou tão feliz que esteja aqui. Enfim está em casa.
Adelaide mandou avisar esta tarde que sua bagagem havia
chegado, mas você não. Pelo tom no bilhete da sua mãe, é melhor
ter uma razão muito boa para não ter ido para casa esta noite. —
ela exclamou.
Will fez uma careta.
— Não foi o retorno simples para casa que eu esperava, vamos
dizer. Só preciso de uma noite em Londres, para reorganizar meus
pensamentos, antes de enfrentar a família. — ele respondeu.
O relógio na lareira soou a primeira hora. As vestes cor de creme
de Lady Shale foram um lembrete adicional de que ele estava se
intrometendo no sono do conde e da condessa.
— Minhas desculpas, perdi a noção do tempo. Estou mantendo
os dois longe da cama.
Bat levantou-se da cadeira e foi ficar ao lado de Rosemary. Will
viu o brilho nos olhos do primo enquanto olhava para a esposa. Uma
faísca de inveja surgiu na mente de Will enquanto ele observava Bat
deslizar um braço preguiçoso em torno da cintura dela.
— Sabe que sempre que precisar de nós, estaremos aqui.
Sempre.
Ao lado dele, Rosemary sufocou um bocejo.
— Suba conosco. Pedimos aos criados que arrumassem um
quarto para você assim que a missiva de sua mãe chegou. De
manhã, podemos discutir melhor a situação durante um café da
manhã inglês decente e elaboraremos um plano para trazer sua
Senhorita Wright de volta à razão. Sono é o que ouso dizer que
você precisa agora. — disse Bat.
— Uma excelente sugestão. É claro que, até lá, meu querido
marido, você terá me informado todos os detalhes pertinentes. —
acrescentou Rosemary.
Ela segurou a mão do marido com um sorriso no rosto. O marido
logo se encontraria sob interrogatório.
— Boa noite, Will, bem-vindo de volta à Inglaterra.

No andar de cima, já no quarto, William se deixou cair na ponta da


cama e ficou olhando para o fogo que estava aceso há algum
tempo, a julgar pelo calor no ambiente. Era bom ter outros pensando
em seu bem-estar mais uma vez.
Ele não havia percebido como o buraco da solidão na vida dele
era grande. Com o desaparecimento de Hattie, ele estava mais uma
vez olhando para o vazio.
Ele se viu tentado a tirar o casaco e entrar sob os cobertores,
mas ainda estava muito inquieto. O dia o obrigou a enfrentar
algumas verdades desconfortáveis.
Ele puxou a pesada colcha da cama e se envolveu nela antes de
se sentar ao lado do fogo.
Will fechou os olhos, com a intenção de acalmar a mente. O
sono, no entanto, logo o levou, e ele entrou em um sonho profundo.
Por tanto tempo, a mulher em seus sonhos foi Yvette, porém,
fazia uns dias que outra passara a ocupar esse lugar.
Hattie.
Ele a viu de pé olhando para o mar no Europa Point. Ele sorriu
em seu sono, lembrando-se de como o sol enaltecia os tons
dourados em seus cabelos. Cabelos que beijavam seus ombros e
ganhavam cachos suaves nas pontas.
Ela se virou e sorriu para ele, felicidade evidente naquele rosto.
Ele foi o herói dela, a salvou de um destino terrível e lhe deu uma
nova vida. Ela estendeu a mão e ele sentiu o corpo leve ao tomar a
mão dela. Aproximando-a dele, ouviu-a sussurrar.
— Eu te amo.
Will acordou com um susto.
Ele ainda estava sentado perto da lareira, mas a lenha havia
queimado, restava apenas um brilho dourado de brasas.
Ele sentiu a boca seca, e uma ereção forçava os botões das
calças. Seu corpo exigia com avidez a liberação sexual que havia
redescoberto há tão pouco tempo.
— Você se esgueirou em minha mente. — ele sussurrou.
O sexo era apenas parte da razão para ele querer Hattie de volta
em sua cama. Ele queria saber tudo dela, possuir mente e corpo.
Conhecia o corpo, mas ela escondia o que habitava sua alma.
Quando Hattie enfim entregasse a verdade, estaria disposta a dar-
lhe tudo.
— Você, minha pequena atrevida, me contará tudo.
E isso incluía proferir as palavras que a tornariam dele para
sempre.
— Descanse bem, meu amor, onde quer que esteja esta noite.
Amanhã você se tornará a caça.
Capítulo Dezenove

— W illiam!
Will baixou a mala.
O lacaio que abriu a porta da casa da família Saunders na Rua
Dover logo se moveu para o lado quando Caroline Saunders se
lançou contra o irmão mais velho. Ela lançou os braços ao redor de
Will e o abraçou com uma determinação deprimente. Ele gemeu
quando sentiu o ar ser forçado para fora dos pulmões e corpo:
— Senti sua falta. Onde esteve? Seu baú chegou ontem. Mamãe
está tão chateada. Por que não voltou para casa?
As palavras de Caroline choviam, ela nem se preocupou em
parar para respirar. A volta de Will para casa nunca seria tranquila.
Sua primeira recepção em casa, no início do ano, foi marcada por
lágrimas e longos abraços emocionados de todos os lados. Quando
voltou para casa em maio, já fazia quase cinco anos desde que
deixara a Inglaterra. Até mesmo o irmão Francis, um jovem
conhecido pela falta de exibição emocional, mostrou-se, e nas
palavras do próprio rapaz, um caos choroso.
Agora, ele estava de volta de vez.
Enquanto seu pai afastava Caroline do irmão com um puxão
gentil, ele e Will compartilharam um sorriso. Will ofereceu a mão ao
pai, que foi logo aceita quando Charles Saunders puxou o
primogênito para o próprio abraço de boas-vindas.
— É tão bom tê-lo em segurança em casa mon fils, tão bom. —
ele disse.
— Estávamos esperando sua chegada ontem. Mamãe enviou
missivas para metade de Londres exigindo saber onde você estava.
— Caroline observou.
Will encolheu os ombros, não fazia sentido entrar em detalhes.
— O navio foi detido no Canal da Mancha devido ao mau tempo.
Eu precisava fazer algumas coisas ao atracarmos e, quando
terminei, já era tarde. Passei a noite na casa de Bat e Rosemary. —
ele respondeu.
Ele se sentiu obrigado a explicar as circunstâncias plenas da
viagem de volta à Inglaterra para o pai, mas não era a hora. Agora
deveria permitir que os pais e irmãos se alegrassem pelo retorno
dele. Abraçar o início dessa nova vida em Londres.
— Mamãe está fora? A casa está muito quieta. — ele
questionou.
Ele não ouviu nenhum grito animado da mãe, o que conhecendo
Adelaide Saunders era muito incomum.
Caroline revirou os olhos, ação que recebeu um olhar de
desaprovação do pai.
— Estão na Residência Rosemount fazendo uma visita à
Condessa Rosemount. — o pai respondeu.
— Nossa querida irmã, Eve, colocou naquela cabeça confusa
que quer se casar com Freddie Rosemount. Ideia idiota se me
perguntar. — Caroline disse.
Eve estava apaixonada? Will fez uma pausa, surpreendido por
esta revelação inesperada. Em nenhuma linha em toda a
correspondência regular de Eve ela confidenciou tais sentimentos.
Seria decepcionante se a irmã se casasse e saísse da casa da
família logo após o retorno dele. Ele presumira que, ao menos nos
próximos anos, ele conseguiria ver toda a família sempre que
visitasse a casa. O noivado iminente de Eve foi um lembrete nítido
de que, nos anos ausentes, o irmão e irmãs haviam se tornado
adultos.
Eve, sempre pensando no irmão, obviamente decidiu não contar
a ele tal felicidade futura. Não enquanto pensava que ele ainda
estava de coração partido pela perda de Yvette.
Em questão de meros meses atrás, ela estaria perto da verdade,
mas a vida dele mudara. Uma visita recebida em Paris, no final do
verão passado, da prima Lady Lucy Radley e do marido dela, Avery
Fox, abriu os olhos dele para a possibilidade de encontrar o amor
mais uma vez.
Os dias passados com Hattie fizeram com que essa ideia agora
parecesse real. O fantasma de Yvette o libertava. Empurrava-o para
a felicidade que ele sabia que a falecida esposa desejaria, com todo
o coração, que ele buscasse.
— Bem, espero que ele a mereça e a faça feliz. — respondeu
Will.
Caroline ergueu uma sobrancelha. Ela estava com quinze anos
quando Will partiu. Nos anos seguintes, Caroline floresceu,
tornando-se uma beldade deslumbrante. No entanto, a maturidade,
às vezes, parecia não acompanhar a aparência. Com sorte, ele
ainda teria tempo de vê-la crescer e se tornar uma jovem sensata,
antes que ela também caísse nos braços de um amor.
— Não vou sair do seu antigo quarto. É meu! — uma voz berrou.
Will olhou para cima para ver o irmão mais novo, Francis
acenando para ele do alto das escadas. Ele as desceu apressado
para cumprimentar Will. A saudação consistiu em vários golpes
amigáveis nas costas de Will e um aperto de mão esmagador de
ossos.
Francis estava com cerca de 1,70m de altura quando Will, que
tem 1,80m, partiu pela primeira vez. Agora, com bem mais de
1,90m, Francis eleva-se acima do irmão mais velho.
Will colocou uma das mãos na nuca, fingindo desconforto.
— Está nevando aí em cima? — ele brincou.
Francis, que possuía chocantes cabelos quase brancos, riu.
— Muito engraçado. Não posso fazer nada se você é um
tampinha. Você deve ter se misturado bem com todos aqueles
franceses baixinhos. É de se perguntar como nunca o descobriram.
Will riu. Quem quer que começou o boato em torno da baixa
estatura dos franceses nunca viveu em Paris.
— Vamos, deixe seu irmão se acomodar e então poderá
provocá-lo o quanto quiser. Ele não vai a lugar nenhum. — Charles
disse.
Will notou o tom feliz na voz do pai. Era bom estar em casa com
a família mais uma vez.
No quarto, mais adiante no mesmo corredor do quarto antigo,
Will esvaziou o conteúdo da mala e guardou tudo na cômoda. Ao
fechar a gaveta, seu olhar se fixou na parede.
O mesmo papel de parede familiar cobria as paredes deste
cômodo. Listras vermelhas, brancas e azuis cobriam a maior parte
do padrão. No meio, havia uma faixa com uma rosa vermelha e uma
flor-de-lis dourada entrelaçadas. Significava a união da Casa
Escocesa de Strathmore com a Casa Francesa de Alexandre.
Charles Alexandre, mudou o nome de família para Saunders não
muito tempo após o banho de sangue começar em sua região de
origem, a Vendeia. O pai dele, François, foi um dos primeiros e mais
vigorosos apoiadores da Revolução Francesa. Então, vendo a
loucura que acabou por dominar sua amada nação pelas mãos de
Robespierre durante seu governo assassino, François voltou a ser
um monarquista. Após a Batalha de Savenay, que esmagou a
revolta na Vendeia com brutalidade, François Alexandre encontrou
seu fim sob a lâmina da guilhotina.
Após a morte violenta do seu pai, Charles deu as costas para
seu país de origem e tornou-se o mais inglês que pôde. Foi Will,
nascido e criado na Inglaterra, que acabou sucumbindo à atração da
Mãe França e prometeu ajudar a livrá-la de mais um tirano,
Napoleão.
Do lado de fora, na rua, Will podia ouvir o grito dos vendedores
ambulantes. Era estranho ouvir o sotaque do leste de Londres do
lado de fora da janela. Ele estava em casa, mas uma parte de seu
coração permaneceria para sempre em Paris.
Mais cedo naquela manhã, ele deu um passeio pela Rua Duke e
parou na loja de tortas mais próxima. O lojista lhe deu um olhar de
desaprovação quando Will respondeu à sua saudação matinal com
um educado bonjour. Assim, enraizado nos modos de vida
franceses, Will ainda pensava com frequência na língua materna de
seu pai.
Caminhando até a janela, ele olhou para a rua. Larga e com
pavimentação de pedra bem conservada, a Rua Dover era bem
diferente das ruas parisienses, minúsculas e estreitas, que ele
conhecia tão bem. As casas eram tão coladas que um homem ou
uma mulher de pés seguros, como no caso de Yvette, poderia
passar sem ser detectado pelos telhados. Muitas vezes, foi
exatamente isso o que fizeram para evitar as patrulhas regulares do
exército francês.
Ele estava ansioso para ver o resto da família, certo de que
alguns dias em casa o ajudariam a acalmar a mente. Bat assegurou-
lhe que, durante esse tempo, faria investigações sutis para descobrir
o paradeiro de Hattie Wright.
— Ela usou fatos o bastante na história para facilitar a busca,
basta seguirmos a trilha de migalhas. — o primo tranquilizou-o.
Capítulo Vinte

W ill passou o resto do dia e o próximo se instalando na casa da


família. Fiel à sua palavra, Francis recusou-se firmemente a
abandonar o que outrora foi o quarto de Will.
— Posso fazê-lo mudar de quarto, se assim desejar. — Adelaide
ofereceu.
— Ele está bem onde está, a posse compreende nove décimos
da lei. Não seria justo eu voltar, após todo esse tempo, esperando
que ele desistisse do quarto. Além disso, tendo vivido como inquilino
em um pequeno quarto por tanto tempo, eu não saberia o que fazer
com um espaço tão grande. — respondeu Will.
Ele deu um beijo na bochecha da mãe. Adelaide estendeu a mão
para pegar a dele. Ela ficou em silêncio, sorrindo para ele por um
bom minuto ou mais.
Will sabia o que ela estava pensando. Tudo o que importava era
que ele estava dormindo sob o teto dos pais outra vez. Seu filho
mais velho voltou para casa, e a guerra com a França havia
terminado.
— Então, tem planos para o dia? — ela perguntou.
Will deu tempo suficiente para Hattie encontrar o caminho para a
casa de seu tio. Tempo de desfrutar da ilusão de o ter enganado.
Esta manhã, ele pretendia fazer uma visita a Felix Wright e
consertar as coisas com Hattie.
— Só reencontrar um velho amigo. — ele respondeu.
Ele chamou um coche de aluguel à frente da casa, e seguiu até
a Rua Argyle. Saindo da carruagem, ele pagou o condutor e, com
propósito, dirigiu-se para o número setenta e cinco.
Alcançando os degraus da frente, ele parou e verificou se o
colete e a jaqueta estavam alinhados. Ele preparou um discurso
com cuidado, bem como uma história plausível para manter Hattie
nas boas graças de seu tio. Era hora de terminar essa brincadeira e
fazer uma proposta de casamento formal por Hattie.
Ele bateu à porta. Quando o mordomo a abriu, Will entregou seu
cartão de visitas.
— Sr. William Saunders para o Sr. Felix Wright se ele estiver em
casa. — Will disse.
O mordomo franziu a testa.
— Sinto muito, senhor, eu não entendo.
Will sentiu uma ligeira sensação de desconforto se apoderar de
seu âmago. Ele limpou a garganta e tentou uma segunda
abordagem.
— Esta é a casa do Sr. Felix Wright, não é?
— Sim, senhor, é. No entanto, o Sr. Wright não está em
residência há algum tempo. No momento, ele está a serviço da
Embaixada Britânica em Washington, Distrito de Columbia, nos
Estados Unidos da América. — o mordomo explicou.
Will ignorou a tentativa do homem de mostrar seu conhecimento
da geografia mundial. Ele estava muito ocupado se preocupando
com a sensação desagradável se apoderando dele.
— Ah, peço desculpas. Uma amiga me deu esse endereço, ela
deve ter se enganado. Há quanto tempo o Sr. Wright está nos
Estados Unidos?
O mordomo pensou por alguns instantes.
— Quase quatro anos, senhor.
Quando a porta se fechou, Will permaneceu nos degraus da
frente. Ele estava com muita raiva para se mover. Hattie mentiu para
ele, desde que ele se ofereceu para levá-la para a casa da família.
O tempo todo que estiveram juntos no navio. Ao longo de todas
as longas tardes de amor apaixonado, ela planejava escapar. Ela
havia prometido não mentir mais.
— O engano por omissão ainda é mentira, Hattie. — ele
murmurou.
Para alguém que afirmava não ser habilidosa na arte do engano,
aos poucos, Hattie estava revelando-se bastante artífice. Will era
homem o bastante para reconhecer que essas mentiras eram o que
mais o machucava.
Ele compartilhou alguns de seus segredos mais profundos com
ela, confidenciou a dor que sentia pela perda de Yvette, mas Hattie,
em troca, continuou a viver uma mentira. Ela o usou e o traiu.
Ele cerrou os dentes. Chega de ser um cavalheiro. Quando ele
enfim colocasse as mãos em Hattie, ele iria fazê-la pagar por todas
as mentiras. Por roubar o coração dele com tanto descaramento.
Capítulo Vinte e Um

— S enhorita Hattie!
O guincho de uma menina soou pelo segundo andar da
casa alugada e suja na Rua Plumtree.
Annie Mayford se jogou nas saias de Hattie.
— Você voltou! Você voltou!
Hattie envolveu os braços com firmeza em torno da jovem
menina e deixou as lágrimas caírem. Durante semanas, ela só
conseguiu pensar nos Mayford, e em quão terrível a situação deles
seria desde a partida dela.
A Sra. Mayford, uma viúva de meia-idade, levantou-se com
dificuldade da frágil cama de madeira onde passava a maior parte
dos dias e deu um abraço em Hattie.
— Como está? — Hattie perguntou.
A Sra. Mayford assentiu devagar, o esforço necessário para falar
estava além dela. A batalha contínua contra a tuberculose e seu
curso fatal minava sua energia para todos, exceto os aspectos mais
vitais da vida. Ela comia pouco, e entre violentas crises de tosse
com sangue, dormia.
— Os meninos estão aqui?
Annie soltou as saias de Hattie e deu um passo para trás. O
rosto da menina foi de um de felicidade para um de raiva absoluta.
Ela levou as mãos em punhos aos quadris.
— Joshua e Baylee se tornaram perversos desde que foi
embora, se juntaram à gangue da Rua Belton. Estão com eles
agora.
Hattie e a Sra. Mayford trocaram um olhar de medo. A gangue
de Belton era uma das gangues criminosas mais violentas dos
cortiços de St. Giles. Joshua e Baylee morriam de medo da gangue.
Não fazia sentido. Ela não conseguia entender por que os dois
jovens gentis teriam se juntado a um bando de vilões e briguentos.
A porta do pequeno cômodo que servia como sala de estar e
cozinha da família Mayford se abriu, e Joshua Mayford a
atravessou. Ele carregava um pequeno saco em uma das mãos e
arrastava o irmão, Baylee, com a outra.
Ao ver Hattie, Joshua parou. Baylee bateu de frente com as
costas do irmão. O mudo Baylee, fez seu descontentamento
conhecido ao dar com o punho em Joshua. Ele, por sua vez, deu um
tapa forte no irmão.
— Sai de perto de mim, seu palerma.
O ato incaracterístico de violência, além das palavras duras,
pegaram Hattie de surpresa. Os irmãos Mayford costumavam ser
muito próximos. Era desnecessário dizer que Joshua costumava
proteger com unhas e dentes o irmão de mente atrasada, e Baylee
adorava o irmão.
— Baylee. Voltei. Vim vê-los. — Hattie disse.
Desde que conheceu a família, ela foi a única estranha que
Baylee já permitiu se aproximar dele. Ele confiava nela. Sempre que
ela vinha visitar a casa esparsa, ele a recebia de braços abertos.
Ela, em troca, sempre trazia uma maçã ou duas para ele.
Ela estendeu a mão para Baylee, mas ele balançou a cabeça.
Seu rosto estava contorcido de raiva. Lágrimas marejavam seus
olhos. Grunhiu com raiva para ela.
Annie se aproximou e pegou o irmão pela mão.
— Venha, tire o chapéu e sente-se comigo Baylee. Deixe-me
enxugar suas lágrimas. Não fique bravo com a senhorita Hattie. Ter
ido embora não foi culpa dela.
Hattie voltou o olhar para Joshua, que agora estava ocupado
esvaziando a sacola dele. Havia várias maçãs, duas cenouras finas
e um pedaço de carne seca. Era a maior quantidade de comida que
ela já viu entrar na casa dos Mayford.
— Bem-vinda de volta, senhorita Hattie. Nunca pensei que a
reveria. — Joshua disse.
Ele deslizou o boné da cabeça. Os belos cabelos castanho-
escuros que Hattie tantas vezes admirou, haviam sido raspados
rentes à cabeça. O corte deu-lhe um ar perigoso. Ele enfiou o boné
no bolso do casaco de lã preta suja e fungou.
— Nem eu. — ela gaguejou.
O coração dela batia no peito. Este não era o reencontro que ela
imaginava. A vida em Londres não parou no tempo em que ela se
foi. Ela limpou a garganta. Precisava de respostas.
— Sua irmã me contou que você e Baylee se envolveram com a
gangue de Belton. É isso mesmo? Pensei que os odiava.
Joshua a fixou com um olhar durão e jogou a sacola em um
canto mais próximo da porta. Ele chutou a porta para fechá-la.
— Bem, é a vida. Sem a comida que nos trazia todos os dias,
morreríamos de fome. Não houve muita escolha. Não é como se
existisse uma longa fila de senhoras finas, todas querendo entregar
comida para pessoas como nós. Pessoas como a senhorita são tão
raras quanto o ouro.
Ela uniu as mãos. O problema alimentar estava resolvido agora.
Ela estava de volta a Londres e poderia voltar a providenciar a
comida de que precisavam. Os meninos podiam se retirar da
gangue. Baylee poderia voltar a sentar-se com a mãe, e Joshua
poderia cuidar de Annie.
Ele leu a mente dela.
— Não se preocupe em me dizer que as coisas podem voltar a
ser como eram. Sabe tão bem quanto eu que não se pode apenas
levantar e ir embora, não se deixa a Gangue Belton assim.
Hattie sentiu-se nauseada. Entrar na gangue Belton era algo
para a vida, a morte a única saída. Ela rezou esperando pelo
melhor, com muito medo de pensar no pior cenário que poderia
saudá-la quando retornasse aos cortiços de Londres. Perder dois de
seus amigos para a gangue criminosa assassina foi de partir o
coração.
Joshua suspirou. Ele colocou um braço reconfortante ao redor do
ombro de Hattie.
— É bom vê-la de novo, Hattie. Não se culpe. Isso teria
acontecido mesmo se a senhorita não tivesse ido embora. A gangue
vem tentando nos recrutar há algum tempo. Precisei fazer algumas
escolhas difíceis, a fim de alimentar minha família. Entrar para a
gangue foi a mais difícil de todas.
— Por que você e Baylee estão brigando? Nunca ouvi você falar
com ele assim.
Joshua desviou o olhar, recusando-se a encontrar os olhos dela.
— Ele precisa ficar mais forte. Se não fizer isso, vai morrer. —
ele disse.
Annie começou a chorar.
— Eles fazem Baylee lutar. A multidão paga dinheiro para ouvi-lo
grunhir. A gangue o chama de Urso, e todos querem lutar contra o
Urso. — disse Annie.
Hattie sentiu como se tivesse levado um soco no estômago.
Bater na água após a queda do navio em Gibraltar não doeu tanto
quanto a revelação chocante de Annie. A gangue Belton estava
usando Baylee, um simplório, para ganhar dinheiro.
Joshua enfiou a mão no bolso e puxou um punhado de moedas
e as mostrou para Hattie. Eram poucas moedas, mas o suficiente
para cobrir o aluguel dos dois cômodos esfarrapados por várias
semanas. Nenhuma palavra foi trocada, mas ele saberia que ela
não o julgava pelo que estava fazendo. Joshua fazia o melhor que
podia para ajudar a família a sobreviver.
Hattie também não era tola a ponto de pensar que as situações
dela e a de Joshua eram iguais. Embora ela tenha sido forçada a
vender algumas das preciosidades da mãe desde que voltou, ela
teria opções. Ela poderia procurar o irmão, ou até mesmo Will
Saunders para pedir ajuda, se assim o escolhesse. Joshua Mayford
não tinha tais salvadores a quem recorrer.
— Acho melhor que vá embora. — ele disse.
Ele guardou as moedas no bolso. Hattie abriu a bolsa, pegou o
pão e as maçãs que trouxe e entregou a Annie.
Sem uma palavra, ela saiu.
Capítulo Vinte e Dois

O s planos de Will de procurar Hattie precisaram ficar em segundo


plano devido aos compromissos de sua família. Embora tenha
conseguido convencer os pais a adiar uma grande celebração de
boas-vindas por ora, ele ainda era pressionado a participar de
eventos sociais.
Uma pequena reunião na casa de um amigo da família
apresentou a primeira oportunidade de se encontrar com o jovem
que Eve havia posto os olhos pensando em casamento. Frederick
Rosemount, segundo filho do Visconde Rosemount.
Do outro lado do salão de baile, ele viu Frederick e Eve
caminharem de braços dados na direção dele. O rosto de Eve
estava iluminado de felicidade. Ela se apegava a cada palavra que o
jovem cavalheiro dizia.
— Pois bem, meu caro. Prepare-se para conhecer o fabuloso
Freddie. — Charles murmurou.
Will fez uma careta. Era atípico do pai encontrar falhas nos
outros. Era preocupante que não gostasse do pretendente escolhido
por Eve.
— Ele não pode ser tão ruim assim. — Will respondeu.
Frederick Rosemount caminhou com confiança até os dois
Saunders e estendeu a mão para Will. Ao lado dele, Eve irradiava
orgulho.
— William, prazer em conhecê-lo. Deve estar muito feliz por
estar livre de todos aqueles franceses irritantes e fedorentos.
Will riu do comentário. Não havia muito mais que ele pudesse
fazer. Ele havia se tornado imune aos muitos soldados ingleses
ainda baseados em Paris que sentiam precisar lembrar a todos, e a
todo tempo, o resultado da guerra. Londres era ainda pior. Estava
cheio de ingleses chauvinistas que não entendiam o sofrimento e
sacrifício que milhares de franceses passaram ao longo da
sangrenta revolução e sob as rédeas de Napoleão.
Freddie bufou uma aprovação à própria piada.
Will olhou na direção do pai. Charles havia forçado um sorriso
social, mas Will viu a tristeza nos olhos dele. Um novo futuro para a
França custou caro à família. Charles jamais poderia retornar à terra
em que nasceu, e reivindicar sua herança legítima.
— É bom estar de volta. Embora eu tenha a impressão de não
conhecer mais a cidade. Eu me perdi esta manhã indo para a
Residência Strathmore. — ele respondeu.
Mudar de assunto sempre pareceu a melhor opção diante de
tamanha ignorância.
Ele esperava encontrar um ou mais membros da Família Radley
em casa, mas nenhum dos primos retornara da temporada na casa
da família na Escócia. O único membro da família do Duque de
Strathmore que não estava na Escócia, David Radley, estava em
sua propriedade em Bedfordshire.
— Então, quais são os seus planos? Pretende entrar nos
negócios com seu pai e Francis, ou pensa em concorrer ao
parlamento? Meu pai sempre me fala de assumir alguma forma de
ocupação. Negócios cansativos. Eu preferiria estar ao ar livre com o
Four-in-hand club. — disse Freddie.
Will pensou por um minuto. Por enquanto, ele não saberia dizer
de pronto o que planejava fazer agora que voltou de vez à
Inglaterra. A perspectiva de assumir responsabilidades nos negócios
do pai trazia certo apelo, mas o irmão dele, Francis, mostrava um
talento para os negócios que Will sabia não poder igualar. Embora
Francis fosse bastante capaz de passar as noites em claro
embriagando-se e perdendo o controle ao lado dos amigos, ele
conseguia estar de pé e funcional no trabalho, no início da manhã
seguinte, verificando com total atenção cada folha do balancete das
mercadorias que Charles Saunders importava da América do Sul.
Na verdade, Will nunca considerou uma possível carreira
política, mas o tio Ewan Radley, Duque de Strathmore, apresentou-o
a várias figuras políticas no verão e seu interesse foi despertado. O
apelo de estar em Londres e participar de sessões parlamentares
era do seu agrado. Se Will poderia afirmar algo de si, sem dúvida
alguma, era que ele se sentia mais à vontade na cidade, seja
Londres ou Paris.
— Pretendo falar com Sua Graça quando ele regressar da
Escócia, ele mencionou que pode abrir uma vaga nos assentos
locais de Londres antes do final do ano. Creio conhecer o bastante
do que ocorre no mundo para ser útil na Câmara dos Comuns. —
ele respondeu.
Freddie deu um tapinha na mão de Eve. Ela riu.
— Isso vai mantê-lo ocupado, meu caro Will. Embora precise de
uma esposa antes de considerar uma carreira na política com
seriedade. O eleitorado não se interessa em eleger solteiros para o
parlamento, algo a ver com a não confiabilidade de solteiros. Esse
negócio entediante de casamento é assustador, mas diria que todos
nós precisaremos ser arrastados até o pároco em algum momento.
Um homem não pode ser feliz para sempre. — disse Freddie.
Ele inclinou a cabeça para trás e riu, de fato entretido consigo
mesmo. Will assistiu Freddie com raiva mal disfarçada. O
casamento não era motivo de riso. Ele não estava nem um pouco
impressionado com esse jovem e sua atitude arrogante, ainda mais
se tratando de um pretendente a casar-se com Eve.
Will nunca considerou o casamento como um empreendimento
cansativo. Sentia falta de estar casado. Somente ao estar com
Hattie que ele percebeu o quão vazia a vida vinha sendo.
Yvette transformou Will de um jovem egoísta e egocêntrico no
homem que ele era agora. Ele deveria agradecer à antiga esposa,
pelo que seria para a futura.
No entanto, a mente dele estava mais preocupada agora com o
homem que Eve decidira ser um potencial marido. Quando Freddie
e Eve se afastaram, Will sentiu-se tentado ao diabo de encaixar um
soco no rosto de Freddie. Ele se voltou para o pai.
— Não consigo, nem que minha vida dependesse disso, ver o
que ela vê naquele desperdício de juventude. Eve não pode estar
falando sério. E se estiver, não consigo acreditar que você e mamãe
permitiriam que ela fosse em frente. Ele só trará miséria a Eve. —
ele comentou.
O pai deu um gole no vinho.
— Ele é de uma boa família. O pai dele, o Visconde Rosemount,
conheço bem e sei ser um homem decente. É o primeiro ano do
rapaz em Londres sem o pai ou o irmão mais velho para mantê-lo
sob rédeas curtas. Concordo que ele esteja saindo um pouco do
controle. Entretanto, não o fomos todos nessa idade? Precisamos
dar o benefício da dúvida a ele, e esperar que ele caia em si antes
de fazer qualquer coisa estúpida.
Will não precisava do pai para se lembrar de que ele fugiu para a
França e se tornou um espião na mesma idade de Frederick. Ele
sabia exatamente como era ser imprudente, sem noção de seu lugar
no mundo.
O coração de Eve, no entanto, era uma questão bem diferente.
Ele não ficaria de braços cruzados enquanto um tolo despedaçava o
coração da irmã. Por mais charmoso e autoconfiante que Freddie
fosse, Will não dispensaria a ideia de o trazer para a realidade.
— O que mamãe está fazendo a respeito? — Will pressionou.
Ele conhecia bem a mãe. Adelaide Saunders estaria bem ciente
das deficiências de Frederick Rosemount. Não permitiria que a filha
jogasse a vida fora com um canalha se Frederick se revelasse ser
assim. Ela fecharia todas as portas das igrejas em Londres se fosse
o necessário para impedir que a filha fizesse uma escolha tola.
— Ela está sendo cuidadosa. Eve é espirituosa, e a última coisa
que qualquer um de nós precisa é que ela fuja para Gretna Green.
Confiei em sua mãe para criar bem vocês quatro, e todos se saíram
bem. Tenho plena confiança de que ela protegerá sua irmã de
qualquer dano. — Charles respondeu.
Will não estava tão convencido. Ele conhecia Eve, e se ela
estivesse determinada a prender Freddie, ela daria um jeito de se
casar com ele, tendo a aprovação dos pais ou não.
Capítulo Vinte e Três

— G ostaria de mais bolo, Srta. Hattie? — a Sra. Little


perguntou.
— Sim, por favor. — Hattie respondeu.
Um sorriso feliz apareceu no rosto da governanta de longa data
da Família Wright. Uma mulher que se debulhou em lágrimas
quando Hattie bateu na porta dos fundos, sem aviso, às primeiras
horas da manhã alguns dias antes.
Após Hattie explicar as circunstâncias de seu súbito
reaparecimento, o Sr. e a Sra. Little concordaram em abrigar Hattie
em segredo na casa da Família Wright. O dinheiro que o pai de
Hattie deixou para a manutenção da casa manteria o mordomo da
família e a esposa alimentados pelo tempo esperado até alugarem a
casa. Hattie era apenas mais uma boca para alimentar.
O que fariam quando um novo inquilino assumisse a casa era
uma questão para o futuro.
Hattie estava ocupada embrulhando o casaco de Will em papel.
Ela estava desconfortável em manter um item tão pessoal dele, e
queria devolvê-lo o mais rápido que pudesse. Sua principal
preocupação era como levá-lo a ele sem que Will conseguisse
rastreá-la. Ela segurou o casaco no rosto e respirou fundo.
O cheiro de Will ainda permeava o tecido ao redor do colarinho.
Os sentidos dela formigaram ante a lembrança do cheiro do corpo,
do toque dele.
— Esse casaco é uma bela peça de alfaiataria. O cavalheiro foi
gentil de dá-lo a você. Foi mesmo muito gentil da parte dele e da
esposa a acolherem e a trazerem em segurança de volta para a
Inglaterra. — a Sra. Little apontou.
Hattie engoliu em seco para suprimir a culpa. Ela odiava mentir
para a Sra. Little, mas ela não conseguiria suportar as perguntas
que decerto seriam feitas se qualquer um dos Little descobrisse a
verdade. O Sr. Little foi bem difícil de se conquistar quando Hattie
voltou para casa.
O mordomo da família quase marchou as três portas que os
separava de Edgar Wright, para informá-lo de que a irmã mais nova
dele chegara, de repente, a Londres e sem os pais. Felizmente, o
Sr. Little possuía um bom coração e, com certa persuasão gentil da
esposa, concordou em manter o ardil por ora.
Se a sorte continuasse do lado dela, Hattie jamais precisaria
explicar o papel que Will Saunders desempenhou em sua pequena
aventura. Ele permaneceria seu próprio salvador secreto. Um caso
de amor para se lembrar no escuro da noite, quando estivesse
deitada e sozinha na cama.
Onde quer que Will estivesse agora, ela sabia que ele estaria
pensando nela. Imaginando o que aconteceu com a mulher que
compartilhou a cama com ele, mas recusou o pedido de casamento.
Will era um homem de meios, e isso a preocupava. Ele também
não era tolo. Possuía família e conexões poderosas em Londres. Se
ele estivesse determinado a encontrá-la, ela precisaria ficar de
guarda.
Ela passou a sair de casa ainda de madrugada para manter sua
presença em segredo. Com um dos casacos velhos do pai para
cobrir as saias e um chapéu cobrindo bem a cabeça, ela ficava
parecida com todas as outras criadas cuidando de suas tarefas
matinais nas ruas.
Toda vez que ela colocava os pés no lado de fora da porta de
casa, ela agia cautelosa. Will poderia estar esperando por ela. Ele
poderia ter descoberto mais da verdadeira identidade dela e, por
conseguinte, seu esconderijo. A ideia de contar o endereço real da
casa do tio Felix, já não parecia tão inteligente.
Contudo, neste instante, Will era o menor de seus problemas. A
gangue de Belton era o mais importante em sua mente. Com
Joshua e Baylee agora membros de pleno direito, a tragédia para a
Família Mayford parecia inevitável.
— Já pensou melhor acerca de falar com seu irmão? — a Sra.
Little perguntou.
Hattie balançou a cabeça. A verdade é que pouco passou pela
cabeça dela nos últimos dias. Com muito medo de se aventurar
pelas ruas de Londres em plena luz do dia, caso alguém a
reconhecesse, ela passava horas tentando decidir seu próximo
curso de ação.
Em outras situações, ela não teria hesitado em procurar o irmão
para pedir ajuda. A Família Wright já foi próxima. Hattie chegou a
morar algum tempo entre as duas casas após Edgar e a esposa,
Miranda, se casarem há seis anos.
Todavia, no ano que antecedeu a partida da família para a África,
as discussões entre o pai e o irmão chegaram a um ponto em que
não conseguiam mais conversar. A própria Hattie falou coisas ao
irmão que agora se arrependia amargamente. Palavras duras
rejeitando o jeito dele de ver o mundo e defendendo o dos pais. Ela
chegou a acusar Miranda de alpinista social de coração frio. As
últimas palavras dela para Edgar afirmaram que nunca mais
desejava vê-lo ou à esposa.
— Não sei dizer como seria recebida. — Hattie respondeu.
A única outra opção era o tio Felix, mas os Estados Unidos
ficavam muito longe. A curta viagem de Gibraltar para a Inglaterra
pôs fim aos seus sonhos selvagens de atravessar o Atlântico para
procurar o tio bondoso.
Por ora, ela estava presa aqui, mas ao menos era sua casa.
Ela levou o bolo e uma xícara de chá fraco para o escritório do
pai e fechou a porta. Sentada detrás da mesa do pai, ela abriu a
gaveta superior e tirou uma pequena caixa de madeira.
Na caixa estavam os lucros da venda de algumas das joias
menores da mãe. O Sr. Little conseguiu um preço justo para a
maioria delas. O punhado de notas e moedas a manteria nos
próximos meses. Quando o inverno chegasse, ela precisaria de
botas novas, e a casa precisaria de um suprimento confiável de
lenha. Havia também os Mayford, e que apoio ela poderia se dar ao
luxo de promover.
Ela se sentou e encarou o dinheiro por um tempo.
— Não tem mesmo a menor ideia do que vai fazer, não é? — ela
murmurou.
Era impossível fazer planos quando as próprias circunstâncias
eram tão tênues. Em algum momento, um novo inquilino tomaria a
casa, e o mundo acabaria por descobrir que ela estava de volta a
Londres.
Por ora, sua escolha oscilava entre sentar-se e esperar para ser
descoberta, ou ela mesma procurar aqueles que teriam algo a dizer
em sua vida, assim que sua presença na cidade fosse a público.
Will e sua exigência de casamento eram inaceitáveis. O
envolvimento que tiveram no mar foi o interlúdio mágico que ela
desejava. Casamento com Will seria uma perspectiva diferente para
ela. Nenhum cavalheiro da Sociedade permitiria que a esposa
andasse pelas ruas de St. Giles e cuidasse, ela mesma, dos pobres.
A sociedade não funcionava assim. Bailes para angariação de
fundos eram uma coisa, ficar cara a cara com os habitantes da parte
imunda de Londres era outra.
Edgar, por outro lado, talvez fosse o menor de dois males.
Sangue os unia. Só havia uma forma de descobrir, e era procurá-lo.
Como amanhã era domingo, ela sabia exatamente onde o irmão e
Miranda estariam no final da tarde.
Ela colocou o dinheiro de volta na caixa e o trancou com
segurança na mesa do pai. No dia seguinte, ela iria à Catedral de
São Paulo e testaria as águas com Edgar.
Capítulo Vinte e Quatro

W ill subiu a gola de seu casaco ao chegar ao final da caminhada


constante até a Rua Ludgate Hill. Ele tremia. Se a Inglaterra estava
tão fria assim em meados do outono, ele se perguntava como
sobreviveria até o verão seguinte. Um punhado de dias de volta à
Inglaterra, e ele já estava ansioso pelos climas ensolarados da
Espanha. Por mais frio que fosse, ele sabia ter tomado a decisão
certa ao voltar para casa e tentar reconstruir sua vida.
No ápice da ladeira, a Catedral de São Paulo dominava o
horizonte. Ele se juntou à multidão de adoradores noturnos
enquanto subiam os degraus da saída oeste da catedral. Ao chegar
ao topo da escadaria de pedra cinzenta, ele se virou e olhou para
trás. À sua frente, a Rua Fleet serpenteava morro abaixo, passando
pela prisão e mercado Fleet até a esquina com a Rua Strand.
Em sua juventude, ele sempre gostou de fazer a caminhada de
final de tarde da casa da família até a Catedral de São Paulo. A
missa da noite atraía um tipo diferente de público em relação aos
frequentadores da missa matinal. Muitas vezes, ele espiou os mais
notórios libertinos da sociedade londrina agraciando os bancos de
madeira, sabendo muito bem que uma hora após o término da
missa, eles estariam à solta, se entregando a todo tipo de
devassidão lasciva que a noite trazia.
Uma promessa, no entanto, era uma promessa. A mãe o
pressionara quanto à necessidade de ele frequentar a igreja após
um retorno seguro à Inglaterra. Após toda a dor e preocupação que
ele a fez passar, não havia como dizer não.
— Seu tio virá jantar conosco esta semana, e se ele descobrir
que você não encontrou nem uma única oportunidade de pôr os pés
em uma igreja para ouvir uma missa, teremos que suportar uma de
suas palestras. — comentou Adelaide.
Ter um tio à frente de um ducado como o Duque de Strathmore
era um benefício para um homem da sociedade. Ter outro tio à
frente de um bispado, nada menos que o bispo de Londres,
acrescentava uma camada diferente e mais complexa de
responsabilidades.
Will tirou o chapéu e entrou na catedral. Já dentro, ele parou e
olhou para cima, contemplando a magnífica cúpula.
— Quase vinte e oito metros, do chão ao teto. — ele sussurrou.
Ele, o irmão, as irmãs e os muitos primos deles passaram horas
incontáveis na nave da catedral ouvindo o tio falar e falar das
dimensões da grande igreja. A cúpula pintada era a favorita de Will.
Suas oito cenas da vida de São Paulo, eram uma obra-prima da
arte e da arquitetura. Will vira templos religiosos o bastante, em toda
a Europa para saber que a Catedral de São Paulo se mantinha
firme.
— Melhor do que Notre Dame?
Ele se virou e encontrou o tio, Hugh Radley. Resplandecente em
suas vestes de ofício, o bispo de Londres era uma figura imponente.
Outros fiéis chegando à nave externa davam-lhe um respeitoso e
amplo espaço.
— Ambas têm seu apelo. Nunca seria tão ousado a ponto de
julgar qual das duas é melhor.
O tio concordou com um único aceno de cabeça.
— Excelente resposta. Somente Deus deve julgar. Bem-vindo de
volta à casa, rapaz. Suponho que sua mãe o enviou.
Will assentiu. Poucos acontecimentos no círculo familiar Radley
e Saunders passavam batido pelo tio.
— Ela mencionou que o senhor e Tia Mary virão para jantar
conosco no final desta semana. Ficou claro para mim que uma visita
à igreja antes disso seria uma ideia prudente.
O bispo riu.
— Apenas uma vez, cometi o erro de perguntar a opinião de sua
mãe acerca de um dos meus sermões em um jantar. Desde então,
ela faz toda a família Saunders ir à igreja antes de visitarmos. Seu
pai jamais deixará de comentar comigo devido a isso.
— A Catedral de São Paulo é sempre um lugar maravilhoso para
se visitar, parece uma segunda casa para mim. Além disso, é uma
boa oportunidade para esticar as pernas. Com mamãe
assombrando cada passo meu, foi difícil me afastar mais de duas
passadas de casa esta semana. — respondeu Will.
Ele esperava que o fervor da mãe logo cedesse. Já preocupado
com a não ocorrência disso, ele falou com o pai da necessidade de
ele encontrar a própria casa. Era surpreendente como a vida familiar
parecia enfadonha após viver sozinho.
— Espero que venha e se sente nos corredores laterais perto do
coro. Reservei um lugar para você. Basta encontrar um hostiário
quando estiver pronto para se sentar. Ah, e me procure em minhas
câmaras particulares ao término da missa, tenho uma excelente
garrafa de vinho que espero poder compartilhar com você. — disse
o bispo.
Após ver seu tio continuar a passear pela catedral verificando os
preparativos finais para a celebração, Will aproveitou a oportunidade
para caminhar e se familiarizar com a catedral interior. A obra-prima
da arquitetura de Christopher Wren sempre ocupou um lugar
especial em seu coração. Os pais se casaram aqui. Ele e todos os
irmãos foram batizados na pia batismal do altar.
Ele ia devagar em direção à área do coro quando avistou algo
que o impediu de dar um único passo.
Do outro lado da nave estava Hattie.
Will congelou. Ela só precisaria fazer um leve movimento de
cabeça para estar bem de frente a ele. Ele não se mexeu. Um corpo
imóvel não criava interesse aos olhos.
Uma onda inesperada de alívio o atravessou. Embora estivesse
certo de que ela havia chegado viva a terra, a prova diante de seus
olhos era preciosa. Ele ainda estava bravo, mas saber que ela
estava segura alegrava seu coração. Ele dormiria com mais
tranquilidade esta noite do que em todas as noites desde que se
separaram.
Quando, enfim, um pequeno grupo de outros fiéis noturnos
passou entre eles, Will conseguiu se mover para um lado. Com
passos lentos e medidos, ele avançou na nave e saiu da linha direta
da visão dela.
Agora ele poderia estudá-la com maior facilidade. Ela observava
um jovem casal, que se sentava na direção do grande arco do lado
direito da nave. Também era evidente que Hattie estava presa em
uma batalha interna consigo mesma quanto a se aproximar do casal
ou não. Ela deu vários passos hesitantes à frente, apenas para
parar e recuar até onde estava no início.
Will assistiu fascinado enquanto ela fez essa estranha pequena
dança mais meia dúzia de vezes.
Do outro lado do ambiente com piso de mármore quadriculado preto
e branco, Hattie ficou de pé e observou o irmão e a esposa dele.
Edgar e Miranda Wright eram um casal elegante na multidão de
fiéis. O pai dela fizera fortuna nos moinhos das Midlands, a região
central da Inglaterra, Miranda chegou ao seu casamento com um
dote substancial.
O casamento deles foi uma união de amor inesperada. Embora
os pais de ambos se vangloriassem em torno de dotes e conexões
sociais, Edgar se apaixonou pela filha do comerciante.
Nos bons tempos, como Hattie agora os chamava, ela e Miranda
foram próximas. Miranda via Hattie como a irmã mais nova que
nunca teve. Hattie e a mãe fizeram tudo o que puderam para ajudar
Miranda a se tornar um membro aceito da Sociedade.
Lágrimas brotaram em seus olhos. Ela engoliu em seco antes de
dar um passo vacilante à frente. Eles estavam tão perto, no entanto,
parecia que o chão da catedral possuía quilômetros de largura.
Ela cerrou os punhos. Tentou mais uma vez, mas falhou em
encontrar sua coragem.
— Ora essa. Você pulou de um navio. Consegue atravessar a
nave e falar com seu irmão. — ela se repreendeu.
Ela passou toda a tarde anterior fazendo uma longa lista de
todas as provisões que precisaria comprar para o próximo inverno.
A situação era mais precária do que as estimativas iniciais. O
dinheiro das joias da família que foram vendidas, e os fundos que as
demais peças trariam não durariam muito no inverno.
Ela havia descoberto o verdadeiro custo de vida em Londres. A
lenha era cara e a comida também. Com as safras perdidas em toda
a Inglaterra naquele verão, os grãos eram escassos.
Antes de sair da casa da família, Hattie havia preparado um
longo e bem pensado discurso de por que o irmão deveria ajudá-la
no âmbito financeiro. Fazia sentido ele vir em seu auxílio nessa hora
de necessidade. Era o certo a se fazer. Ela era a única irmã dele.
Foram próximos por boa parte da vida.
E esse foi o ponto em que a bravura dela falhou.
Nos dias que antecederam a partida de navio para a África, ela
se viu cada vez mais desesperada em suas tentativas de evitar a
viagem. Ela escreveu várias cartas para Edgar, mas o pai as
interceptara. Enquanto jogava as cartas uma a uma no fogo, ele a
repreendeu.
— Seu irmão é perverso e não se importa com o nosso trabalho.
A senhorita tem o dever de vir para Serra Leoa e ser a esposa do
Pastor Brown. Agora, pare com essa bobagem.
Naquela noite, Peter Brown foi autorizado a ficar na casa dos
Wright, e ele visitou Hattie na cama. Depois disso, ela quase não
era deixada sozinha.
Apenas uma única carta saiu com sucesso da casa e rumo à do
irmão. A Sra. Little, apesar do grande risco de ser demitida,
aventurou-se nas cozinhas da casa de Edgar e entregou o bilhete
nas mãos de um lacaio. Hattie esperou o dia todo e o próximo por
uma resposta, mas nada veio.
Na manhã em que ela partiu com os pais e Peter para o navio,
ela olhou pela janela da carruagem quando passaram pela casa de
Edgar, desesperada por qualquer sinal de que ele viria salvá-la.
Mesmo quando ela subiu pela prancha para ir a bordo do Blade of
Orion, ela continuou a rezar para vislumbrar a carruagem do irmão.
Para vê-lo correr pela prancha, perdoá-la por todas as
transgressões passadas e a salvar daquele destino.
No entanto, quando o navio se afastou do cais, ela viu apenas
trabalhadores portuários e marinheiros na costa. Edgar deixara sua
posição clara, ele lavara as mãos em relação à cansativa e hipócrita
irmã.
O som do órgão da Catedral de São Paulo começou a preencher
a nave e as câmaras do coral com música. Logo a missa começaria
e ela seria incapaz de falar com eles.
Hattie endireitou as costas e começou a caminhar em direção a
eles. Uma última vez, e ela conseguiria.
Ao fazê-lo, Miranda se mexeu no banco, e Hattie avistou um
pequeno pacote nos braços da cunhada. Edgar olhou para o bebê e
sorriu.
Hattie parou em seu progresso.
Edgar e Miranda estavam casados há pouco mais de seis anos.
Seis anos sem filhos. No entanto, ali estava uma criança recém-
nascida. O irmão e a cunhada pensavam tão pouco em Hattie e nos
pais deles que mantiveram a gravidez de Miranda em segredo.
Mesmo o nascimento de uma criança preciosa não poderia levá-los
a perdoar a família de Edgar.
Hattie se afastou devagar.
O abismo entre ela e o irmão era maior do que ela jamais
imaginou. Ela virou as costas para ele até o momento em que se viu
em extrema necessidade. Ele, por sua vez, fechou bem a porta para
a vida que uma vez conhecera com a família.
Ela se virou e saiu da catedral, toda a esperança de uma
reconciliação destruída.
A emoção da perseguição percorreu o corpo de Will, mas em vez de
amortecê-lo, alimentou as chamas.
Quando Hattie saiu apressada pelas portas da lateral oeste, as
chamas haviam se transformado em um inferno estrondoso.
Sentindo estar à beira de perder o controle, ele acalmou a
respiração. O autocontrole, sua mão de ferro, assumiu o comando.
Ele sentou-se em um espaço vago naquele banco, a poucos
passos do casal que Hattie examinou com tanto escrutínio, antes de
partir apressada.
Após controlar o próprio temperamento, ele se amaldiçoou por
não estar no comando de seus próprios sentidos durante o tempo
no navio. Tão tolo que era, se deixara seduzir por Hattie.
Antes de ela o despistar, ele começara a planejar uma vida com
ela. Muito antes daquela última tarde, ele sabia estar se
apaixonando. Apesar de surpreso no início, ele logo se viu
aceitando-a como seu destino.
Ardia profundamente saber que ele não foi nada mais do que um
brinquedo para ela. Algo a ser desprezado quando não mais
servisse a nenhum propósito útil.
Quando o tio começou a leitura do sermão, Will olhou para o
casal na mesma fila. A mulher embalava uma criança. De vez em
quando, o homem olhava para o bebê e sorria. Will sentiu a alegria
vista no rosto do homem.
O plano inicial de Will era seguir Hattie até o lado de fora,
confrontá-la nos degraus da catedral mesmo e fazê-la contar toda a
verdade quanto a quem era.
No fim, ele optou pela partida mais longa desse jogo. Hattie não
o viu. O elemento surpresa ainda estava a seu favor. Com o
administrador de Lorde Shale investigando a família de Felix Wright,
não demoraria muito para o paradeiro de Hattie ser descoberto.
Neste meio tempo, ele poderia se empenhar para preencher
mais algumas das lacunas na história de vida dela, começando com
o jovem cavalheiro sentado do outro lado do banco na Catedral de
São Paulo.
Assim que a missa terminou, Will se levantou e se aproximou do
jovem casal. O tio esperava que Will se juntasse a ele para aquele
copo de vinho pós-missa, mas levaria algum tempo até que o bispo
retirasse as vestes cerimoniais. Tempo que Will poderia fazer bom
uso.
— Boa noite. — Will disse.
O homem levantou-se e cumprimentou Will com um aceno
amigável de cabeça.
— Que bebê adorável os senhores têm. Permitam-me dar
minhas felicitações ao senhor e à sua esposa.
Ele estendeu a mão.
— William Saunders ao seu dispor.
— Edgar Wright. Esta é a minha esposa, Miranda.
Quando encontrou o tio pouco tempo depois, Will dispunha de
diversas cartas novas na manga. Ele agora detinha uma muito real e
importante. O vinho do bispo caiu muito bem.
Capítulo Vinte e Cinco

D eixando a câmara particular do bispo de Londres cerca de uma


hora mais tarde, Will decidiu que uma visita à casa de Bat e
Rosemary na Rua Duke seria importante. Se alguém em Londres
poderia ajudá-lo a juntar as peças do quebra-cabeça seriam eles.
— Edgar Wright? — Bat disse.
Ele devolveu o cartão de visita de Edgar Wright para Will. Bat
franziu os lábios, e Will sentou-se em silêncio enquanto o primo
queimava os miolos.
— O nome me é familiar, mas não sei bem o porquê. Posso
perguntar no White's amanhã se puder esperar.
Will levantou uma sobrancelha.
— Não se aventurará ao clube hoje à noite? — ele perguntou.
— Continuo a frequentá-lo de vez em quando à noite, mas tenho
outros compromissos e distrações mais convincentes nos dias de
hoje. — Bat respondeu.
Uma batida na porta precedeu a chegada de Lady Shale.
Rosemary entrou no cômodo carregando um bebê.
Ela logo capturou a atenção do marido. O brilho nos olhos de Bat
serviu como uma lembrança para Will da alegre distração que ter
uma esposa conferia a um homem.
Bat levantou-se da cadeira junto à lareira e segurou o bebê.
— Venha para o papai. — ele disse.
Will assistiu à feliz cena doméstica, sentindo mais desconforto do
que esperava por estar na casa de uma família tão calorosa e feliz.
— Então, fez progressos na busca por sua dama desaparecida?
— Rosemary perguntou.
— Bem, ela não está morta, o que eu consideraria um grande
avanço. Eu a vi na Catedral de São Paulo há menos de duas horas.
E enquanto eu estava lá, acredito ter conhecido o irmão dela. — Will
respondeu.
Ele entregou o cartão de visita de Edgar Wright à condessa. Ela
o examinou por um instante.
— Eu não os conheço pessoalmente, mas lembro-me de ter
conhecido Miranda Wright em uma festa. Havia algo estranho na
família.
Um olhar de reconhecimento apareceu no rosto de Rosemary,
seguido por um sorriso travesso.
— Havia uma irmã. Não me lembro do nome dela, mas Eve deve
saber. Acredito que ela pode ter sido apresentada à Sociedade na
mesma Temporada que Eve.
As palavras da amiga enviaram uma espiral de empolgação pela
espinha de Will. As peças do quebra-cabeça estavam começando a
se encaixar depressa. Agora, não faltava muito para desvendar o
resto do mistério de Hattie.
Nada melhor do que um avanço inesperado. A primeira
rachadura tentadora no plano habilidoso de um inimigo sempre
trazia uma certa promessa sedutora. Assim que ele vislumbrou o
contorno fino, Will começou a trabalhar para enfraquecer a fachada
da história de Hattie. Logo toda a estrutura que ela havia construído
desmoronaria ao seu redor.
Então ele saberia a verdade.
Ele sentou-se na cadeira, chocado com a paixão que rugia ao
nascer nele. A percepção de que pouco tinha a ver com a
perseguição à Hattie e quase tudo a ver com ela tê-lo rejeitado,
bateu forte em Will.
Inferno.
As emoções tumultuando a mente dele não eram nada parecidas
com o que sentia quando estava à caça de agentes franceses e
traidores ingleses. Mesmo o gosto na boca não era o mesmo.
Hattie não era uma presa.
— O que não entendo é o que ela foi fazer na missa. Se Edgar é
mesmo o irmão dela, por que ela não falou com ele? Eu a observei.
Estava tomada de indecisão. Uma e outra vez ela começou a
caminhar em direção a eles, mas parava e recuava.
Rosemary caminhou até onde Will se sentava e sentou-se ao
lado dele. Ela segurou a mão dele e deu-lhe um aperto suave.
— Esse comportamento seu é muito atípico, Will. Salvou essa
garota e a devolveu à Inglaterra em segurança. Por que, então,
ainda está tão preocupado com quem ela é? — a amiga perguntou.
Como uma ex-espiã, Lady Shale era tão perspicaz quanto Will
ao ler o subtom de uma conversa.
Ele a olhou, sentindo que agora que as perguntas começaram,
não parariam até que ele contasse tudo. Ele estava cansado de
manter tudo para si.
— Porque na volta para a Inglaterra, Hattie e eu compartilhamos
uma cabine no navio. Basta dizer que eventos ocorridos nesse
período exigem um acordo de casamento.
Rosemary soltou um assovio baixo. Will o tomou como
desaprovação.
— Eu não a arruinei. O canalha do noivo já o fizera. E não,
também não me propus a seduzi-la. Na verdade, foi ela quem
mencionou o assunto. Concordei com o proposto com toda a
intenção de me casar com Hattie assim que chegássemos a
Londres. Ainda quero. — ele respondeu.
O cômodo caiu em silêncio, fora o burburinho do bebê.
Rosemary se inclinou e brincou com o cabelo de Will.
— Você, meu querido Will, está apaixonado. Está escrito tão
claro quanto o dia em seu rosto. Não poderíamos estar mais felizes.
Você merece.
Bat assentiu em reconhecimento. Quando ele e Rosemary se
casaram, ele lutou com todo o seu ser para não se apaixonar pela
esposa. Foi Will quem o convenceu de que ele travava uma batalha
perdida. O conde se mostrava loucamente apaixonado pela esposa
desde então.
Will olhou para os amigos e riu baixinho. Não havia mais nada
que ele pudesse fazer.

Hattie esteve tão perto de enfim abordar Edgar, mas no último


minuto, a coragem falhou. Sua longa caminhada da Rua Newport
até Ludgate Hill e de volta não resultou em nada, exceto pés
doloridos e a ensopar-se com a chuva do início da noite.
Era a primeira vez, em quase dois anos, que ela entrava na
catedral. No passado, foi a igreja preferida do pai para a missa
dominical, mas agora ele via a catedral como uma exibição
ostensiva de riqueza obtida de forma ilícita.
— Deveriam demolir todos esses belos edifícios e usar a pedra
para construir novas casas para os pobres. — Hattie podia contar
com essa observação específica do pai toda vez que saíam de casa
e se aventuravam a chegar perto das casas mais finas nos
arredores de Hyde Park.
Aldred Wright argumentava que a redistribuição da riqueza era
um dos deveres fundamentais da nova igreja. Edgar, no entanto,
não compartilhava dessas visões tão radicais.
Semana após semana, as discussões entre o pai e o irmão
escalavam. Edgar não embarcou na fé recém-descoberta de seus
pais, preferindo a igreja tradicional. O que começou como uma mera
diferença de opinião acabou se tornando um abismo de crenças
diferentes.
No fim, Edgar e Miranda pararam de fazer visitas regulares à
casa, vindo apenas em dias especiais e alguns feriados. Após a
última troca de palavras duras, o casal parou de visitar de vez.
Chegando à casa dos pais na Rua Newport, Hattie se deixou cair
com desânimo no banco de madeira da cozinha baixa. Ela ficou
grata quando o Sr. Little não perguntou como foi tudo na Catedral.
Após uma pequena ceia com torta de porco fria, Hattie subiu e
foi para a cama. Ela estava sem ideias acerca de como poderia
resolver a situação atual em que se encontrava.
Capítulo Vinte e Seis

R eaver contato com os membros da família e resolver assuntos


de negócios, colocou a questão de Hattie no fim da agenda de Will
por vários dias. À noite, ela aparecia nos sonhos dele. Lembranças
de fazer amor com ela a bordo do navio misturavam-se à raiva e
dor, criando um estranho coquetel de imagens que o faziam acordar
na calada da noite encharcado de suor e dolorido de excitação.
Ele se consolava por saber que, quando enfim a encurralasse
nesse jogo de gato e rato, ela ficaria ainda mais surpresa. Agora,
Hattie estava vivendo a falsa realidade de ter conseguido escapar
de Will.
— Ansioso para esta noite?
O pai lhe deu um tapinha amigável no ombro. Eles estavam de
pé no saguão de casa, na Rua Dover aguardando a chegada do
bispo, da esposa Mary e de dois de seus filhos adultos.
— Sim, foi bom conversar com tio Hugh na outra noite após a
missa, estou ansioso para passar uma noite com o resto da família.
— ele respondeu.
As reuniões da família indireta do Duque de Strathmore eram
sempre ocasiões leves e, às vezes, estridentes. As celebrações de
Hogmanay na véspera de Ano Novo no Castelo de Strathmore, na
Escócia, eram uma época de madrugadas e intermináveis guerras
de bolas de neve.
Quando os Radley chegaram, os Saunders os esperavam para
cumprimentá-los.
— William! Já estava na hora de arrastar esse se traseiro tolo
para a Inglaterra!
Seu primo James jamais foi de se conter com as palavras. O
único menino de uma família com duas meninas, ele sempre foi
barulhento e agitado. Sempre pronto para rir, mas dono de uma
alma generosa. James Radley lhe daria seu último centavo se você
pedisse, e sua última libra se você não o fizesse.
Sentar-se para jantar com os familiares lembrou Will do quanto
ele sentiu falta de todos eles. Sabendo que a guerra acabara, e que
a Europa estava mais uma vez em paz, era um conforto após longos
anos de distância.
O único membro da família que não parecia estar se divertindo
tanto era Eve. Ela sentava-se em silêncio à mesa, mal dizendo uma
palavra. Will estava preocupado com ela. Ao se apaixonar por
Frederick Rosemount, ela parecia ter dado o coração a um jovem
incapaz de ver o verdadeiro valor dela.
— Anime-se Eve. — ele disse.
Ela deu um pequeno sorriso para ele, um que ele suspeitava ter
sido custoso para abrir. Uma estranha percepção recaiu nele. Ele e
a irmã estavam, os dois, com certa turbulência no amor. Freddie
valorizava as jogatinas, colocando os amigos acima de Eve, e Hattie
não conseguia encontrar uma razão boa o suficiente para se casar
com Will.
Um lacaio parou na cadeira de Will e entregou-lhe um cartão.
Will pediu licença da mesa quando Lorde Shale entrou na sala de
jantar.
— Desculpem-me o incômodo. Surgiu um assunto urgente que
preciso discutir com Will.
Adelaide Saunders cumprimentou o sobrinho.
— Bartholomew, é ótimo vê-lo. Venha e junte-se a nós. É uma
reunião de família.
Ele balançou a cabeça.
— Perdoe-me, tia Adelaide, eu só me aventurei a sair esta noite
para dar algumas notícias a Will. Rosemary e nosso filho estão me
esperando em casa. — ele respondeu.
Will entregou uma taça de vinho ao amigo e apontou para a
porta de uma sala adjacente. Ele seguiu Bat até lá e fechou a porta.
Bat abriu o casaco e retirou um grande envelope de couro. Com
um floreio, ele o entregou a um Will intrigado. Um sorriso digno de
um rapazote espalhou-se por seus lábios.
— Meu administrador teve dificuldades para rastrear Felix
Wright. Embora a trilha com Felix seja um pouco fria por ele estar
nos Estados Unidos, meu homem conseguiu algo. Ou, devo dizer,
outra pessoa. Um Aldred Wright, que partiu para a África com a
esposa e filha há pouco tempo, morava no número quarenta e três
da Rua Newport.
Will franziu a testa; um endereço não era muito para se
empolgar. Bat apontou para o envelope
— O número quarenta e três da Rua Newport é uma propriedade
de Locação.
Will abriu o envelope e tirou um documento, marcado com a
palavra SUBLOCAÇÃO. Seu coração começou a bater forte no
peito. Sua velha companheira, a adrenalina, corria livre pelas veias
dele.
— Estavam pedindo um pouco acima do preço de mercado, mas
é uma boa casa. Presumi que iria querer, então eu instruí meu
administrador a dizer ao agente que você a alugaria. O agente virá
vê-lo amanhã às dez para acertar os últimos detalhes. A casa é sua
até que a Família Wright retorne. — disse Bat, e bateu palmas em
deleite infantil.
Para Will, era um desenvolvimento muito inesperado, mas bem-
vindo. Mudar-se para a casa seria um modo bem eficaz de matar
dois coelhos com uma cajadada só.
Ele estava com dúvidas quanto a se mudar de volta para a casa
de seus pais de maneira permanente desde a visita no início
daquele verão. Ele amava a família e era maravilhoso poder vê-los
de novo, mas os anos haviam se passado, e ele não era mais um
jovem despreocupado. A casa em Newport era perto o suficiente
para permitir que visse os pais e irmãos com regularidade, sem
precisar viver sob o mesmo teto que eles.
Agora, ele desejava privacidade e uma casa própria para
restabelecer a vida. Criar a própria família.
Mudar-se para a Rua Newport também ajudaria a levar as coisas
adiante com Hattie. Havia uma boa chance de ela estar se
escondendo da sociedade e da família na casa vazia dos pais. Se
ele assumisse o contrato, ela seria forçada a sair do esconderijo e
enfrentá-lo.
Ele não estava ansioso para as conversas difíceis e inevitáveis
com ela, mas se fossem ao menos capazes de falar um com o
outro, cara a cara, seria um começo.
— Bat, é um gênio. Diga ao seu funcionário que estou devendo
uma bela gorjeta pelo trabalho que ele fez.
Ele deu um tapa firme nas costas do primo. Em seguida, apertou
a mão dele com vontade.
O conde sorriu.
— Já paguei um bônus de cinco libras em seu nome. Pode me
pagar da próxima vez que nos sentarmos em uma mesa de
carteado.
Capítulo Vinte e Sete

A pós a conversa com Bat, Will considerou ser impossível ficar no


jantar. Ele estava ansioso para ler o contrato de locação e ver a
casa. Após conseguir manter uma conversa educada pela próxima
hora, ele enfim pediu licença e se retirou para a noite.
Na frente da casa, ele chamou um coche de aluguel. Não
demorou muito para chegar à Rua Newport.
Quando a carruagem parou do lado de fora do número quarenta
e três, ele olhou para cima e verificou as janelas. Não havia luz a ser
vislumbrada nas janelas superiores da casa. Se Hattie estava
mesmo se escondendo na casa dos pais, ela estava sendo
cautelosa e certificando-se de não chamar a atenção para a casa.
Ele pagou o condutor e saiu. Esperou sob a chuva leve da noite
até que o coche sumisse de vista ao virar a esquina. Só então,
caminhou até o muro alto de pedra que escondia a maior parte da
casa da vista da rua. No meio do muro havia um portão de ferro. Ele
testou e descobriu, para seu aborrecimento, que não estava
trancado. Ele faria novos arranjos em relação à segurança assim
que se mudasse.
Ainda no portão, ele olhou para o jardim da frente. A porta estava
pintada de preto. Havia vasos pequenos de flores descuidados em
ambos os lados da porta. Um deles estava quebrado.
Com discrição calculada, ele destrancou o portão. Ele o abriu
apenas o bastante para permitir-se uma partida apressada, se fosse
necessário. Quem poderia afirmar que a Família Wright não deixara
um cão grande e hostil na casa? Will não se arriscaria.
A casa seria dele a partir de amanhã, mas ele queria entender
onde exatamente Hattie estava, antes de se mudar. Após esta noite,
ela ficaria vigilante. Esta noite, ela ainda acreditava tê-lo ludibriado.
Ele estava ansioso para enfim ver o rosto dela, quando
descobrisse que ele era o novo inquilino da casa da família dela.
— Tem algumas explicações para fazer, minha jovem. — ele
murmurou.
Era frustrante saber que a mulher a quem ele estava tão tentado
a estrangular era a mesma mulher que habitava seus sonhos
noturnos. Sonhos cheios de luxúria.
Invadir jardins alheios e bisbilhotar os outros era uma atividade
aquém de um cavalheiro com um berço como o dele. Se alguém
parasse e perguntasse o que ele estava fazendo, ele já planejara
uma cena bêbada convincente. Ser preso ou baleado como suspeito
de assalto não cairia bem para a família dele.
Chegando à porta dos fundos, ele tirou um conjunto de chaves-
mestra do bolso do casaco e começou a trabalhar na fechadura. Ele
se esgueirou para dentro e fechou a porta.
Ele subiu as escadas. A primeira coisa que notou enquanto se
arrastava pelos andares superiores da casa foi o frio no ar. Pela
sensação que tinha, as lareiras não eram acesas há muitos dias em
diversos cômodos.
Ele chegou a uma porta no meio do longo corredor e parou. Uma
luz fraca era vista sob a porta. Alguém estava morando na casa.
A tentação de abrir a porta e entrar ali foi mitigada pelo saber
não deter o direito legal de estar na casa ainda. Se Hattie estivesse
na casa, estaria bem dentro de seus direitos, atirar em um intruso
tarde da noite.
Ele colocou o rosto perto da porta e sussurrou:
— Amanhã, meu amor. Durma bem esta noite.

Na manhã seguinte, Will conversou com o pai antes de sair para se


encontrar com o agente cuidando do aluguel da casa dos Wright.
Não fazia sentido adiar a notícia de que não ficaria na Rua Dover
por muito mais tempo.
— Seus irmãos e irmãs ficarão desapontados, sem falar de como
sua mãe aceitará essa notícia. — Charles comentou.
Will fez uma careta. Nunca haveria um jeito fácil de informar à
família que ele estava de mudança da Rua Dover, para sua própria
casa.
— Desculpe-me, pai. No entanto, precisa ser assim. Vivi muitos
anos sozinho, é complicado viver aqui. Sem querer ofender. —
respondeu Will.
O pai assentiu.
— Não me ofende.
Assim que chegou a Londres, Will sabia que os dias que
conseguiria ficar na casa de infância eram contados. Nos anos que
seguiram à morte de Yvette, ele se acostumou em ter apenas a
própria companhia. O silêncio da casa em Paris onde se hospedara
com Madame Dessaint foi bênção. A quietude imperturbável o
permitiu lamentar a morte da esposa e tentar encontrar a paz interior
que tão desesperadamente desejava.
A interação quase constante com a família era desafiadora. Às
vezes, ele se via estremecendo ante o volume da conversa na mesa
do café da manhã.
— Não estarei longe. Bat conseguiu me encontrar uma casa na
Rua Newport. Por isso, ele veio ontem à noite. Além disso, quanto
mais cedo eu tiver minha própria casa, mais cedo posso procurar
uma esposa. — ele respondeu.
— Alegro-me por estar pronto para seguir com a sua vida. Não
que um dia vá se esquecer de Yvette.
Era reconfortante saber que agora conseguia falar de Yvette sem
sentir que a escuridão da dor o dominaria.
Quanto aos pais, eles não haviam escondido o desejo de ver
todos os filhos em casamentos felizes. Se Will permanecesse em
casa, então Francis e Caroline não se sentiriam obrigados a entrar
no mercado de casamentos. Ele devia a eles, e a ele mesmo, ter a
própria casa.
Havia outro bônus em ter a própria casa. Ao estar longe da Rua
Dover, ele poderia descobrir mais acerca do potencial marido de
Eve, Freddie Rosemount, sem o conhecimento dela. Salvar a irmã
de um casamento imprudente valia mais do que o ano de aluguel de
sua nova casa.
Capítulo Vinte e Oito

H attie fechou o portão do jardim detrás dela. Embora se


esforçasse para o fazer em silêncio, a raiva inflamando a mente a
fez desejar o contrário. Como ela desejava batê-lo com força.
— Quão difícil pode ser? — ela murmurou, lacônica.
Ela e os Little concordaram que, como parte do subterfúgio da
estada não-detectável dela na casa da família, era primordial que
qualquer transeunte considerasse a casa como desocupada.
Nenhuma luz deveria ser vista nos andares superiores à noite. A
única vela que ela usava no quarto sempre seria mantida bem longe
das janelas.
Voltando para casa no final da noite, após ter ajudado a Sra.
Mayford em um dia difícil, Hattie não estava disposta a lidar com
criados que não conseguiam seguir instruções simples.
Assim que ela virou na Rua Newport, ela pôde ver que todo o
segundo andar da casa estava banhado em luz.
— Parece um palácio de fadas.
Assim que entrasse, diria algumas palavras severas ao Sr. e a
Sra. Little. Ela atravessou o jardim pisando forte, apenas para ser
recebida pelo Sr. Little, que a esperava do lado de fora da porta da
cozinha.
Hattie levantou a mão e apontou-a para cima, para as janelas
bem iluminadas.
O Sr. Little suspirou.
— Agora, antes que fique toda chateada, senhorita Hattie, deixe-
me explicar. — ele disse.
Ela cerrou os dentes. Pela expressão preocupada no rosto, ela
suspeitava que o Sr. Little era o portador de más notícias.
— Sim? — ela respondeu.
— Alguém tomou a casa.
Demorou um segundo ou mais para ela processar as palavras.
Por mais que tentasse aceitar o que ele havia dito, a mente
bloqueava a mensagem.
Como alguém poderia ter tomado a casa? Esta era a casa dela.
Quem a tomara?
— Diz que tem o contrato e a papelada toda em ordem. O Sr.
Man, o advogado do seu pai, veio com ele hoje cedo. O advogado
nos mandou sair.
Hattie piscou.
— Ele os expulsou? — ela exclamou.
— Sim, mas o novo inquilino nos pediu para ficar. Disse que,
como a Sra. Little e eu conhecemos a casa tão bem, poderíamos
ser úteis para ele.
Hattie engoliu o nó de medo que se formou na garganta. A partir
de agora, ela estava desabrigada. De repente, ela sentiu uma forte
proximidade com aqueles a quem sempre prestava caridade. Fora
as roupas de qualidade e botas confortáveis, ela possuía pouco
mais do que eles neste momento. O que ela deveria fazer?
— Bem, eu e minha senhora tivemos uma conversa esta tarde.
Acreditamos poder mantê-la escondida no andar de baixo até que
encontre um jeito de consertar as coisas com o Sr. Edgar. — ele
disse.
Ele se afastou e deixou-a entrar na casa primeiro, antes de
fechar e trancar a porta. Por instinto, Hattie dirigiu-se para as
escadas que levavam aos andares superiores, mas o Sr. Little
estendeu a mão e a segurou pelo braço.
— Não por aí, Senhorita Hattie. — ele disse.
Ela olhou para a escadaria. Quantas vezes ela subiu aquelas
escadas sem pensar duas vezes? Agora, ela era uma estranha na
própria casa.
Em algum lugar no andar de cima, o legítimo inquilino do número
quarenta e três da Rua Newport estava desfrutando da primeira
noite em sua nova casa. Era mais do que provável que estivesse
sentado na cadeira favorita do pai dela, ou talvez estivesse
escrevendo uma carta à escrivaninha dele. Enquanto ela, a filha da
casa, era relegada a viver abaixo das escadas.
Com os próprios esquemas e planos em frangalhos, Hattie
seguiu o Sr. Little pelas escadas dos criados até a cozinha inferior.
A Sra. Little estava sentada ao lado da lareira, a gata de
estimação de Hattie, Brutus, dormia aninhada em seu colo. Ela
estendeu os braços, e Hattie logo foi ficar ao lado dela. Sentada ao
lado da lareira quente, olhando para as chamas, ela conteve as
lágrimas pelo tempo que pôde. Quando ela começou a soluçar, a
Sra. Little colocou a mão reconfortante em suas costas e fez uma
massagem consoladora.
— A chance de a casa ficar vaga por muito mais tempo sempre
foi pequena. Tenho certeza de que conseguirá resolver as coisas
com seu irmão, e tudo se acertará. Ele é um bom homem. — ela
disse.
Se ao menos fosse fácil assim.
— Fui uma tola. — murmurou Hattie.
Naquele último dia em Londres, quando o navio se afastou do
cais, ela teve esperanças avassaladoras de que o irmão surgiria nas
docas, subiria na prancha e a levaria embora. Mas o cavaleiro de
armadura brilhante não apareceu.
Edgar tinha uma nova família agora, não precisava da antiga.
Brutus pulou do colo da Sra. Little e veio ronronando para o lado
de Hattie. Um carinho sob o queixo fez a gata ronronar de
contentamento.
Hattie enxugou a última das lágrimas e sorriu. Chorar não
resolveria nenhum dos problemas.
O rabo de Brutus roçou contra a perna de Hattie. Ela saiu da
cozinha e se dirigiu para a porta. Hattie a observou partir.
Hipnotizada pelo balanço dos quadris e do rabo da gata, ela sentiu o
ânimo melhorar.
Ela estava segura pelo calor da lareira, não estava sem opções.
— Ainda bem que o novo senhor gosta de gatos. — a Sra. Little
comentou.
Ela olhou para a governanta grisalha da família. Em toda a sua
autopiedade, ela havia se esquecido por completo que um estranho
morava no andar de cima agora.
— Então, como é o cavalheiro, você o conheceu? — ela
perguntou.
Sua imaginação conjurou a imagem de um velho de barba
prateada, alguém que havia se retirado a uma existência silenciosa
e solitária de ler livros e ir para a cama cedo.
A Sra. Little abriu um sorriso secreto.
— Fomos apresentados esta tarde. Bem-criado, educado, e ele
é…
O olhar da senhora desviou-se para a lareira, e Hattie a ouviu
sussurrar “adorável”.
— Perdão? — ela perguntou.
A Sra. Little afastou os pensamentos particulares.
— Ele é bonito. — ela disse.
Bonito? Em todos os muitos anos em que conhecia a Sra. Little,
ela não conseguia se lembrar da governanta referindo-se a um
cavalheiro como bonito. Algo no novo inquilino decerto mexeu com a
senhora.
— Você diria que ele é bonito, não é, Sr. Little? — ela perguntou
ao marido.
O Sr. Little, que parecia estar prestando pouca atenção à
conversa, murmurou uma resposta incoerente. De onde Hattie
estava sentada, ela podia ver que ele estava tentando adicionar
várias camadas de picles e carne em uma fatia do pão assado
naquela manhã.
— Ele se parece um pouco com o nosso do meio. Não é? — ela
pressionou.
O Sr. Little franziu a testa e virou-se para sua esposa.
— Quem?
A Sra. Little sugou o ar entre os dentes em frustração.
— O jovem senhor que alugou a casa, o Sr. Smith. — ela
explicou.
Os dedos de Hattie pararam no meio de um estalar dos nós dos
dedos. Um calafrio jamais sentido antes, deslizou por sua espinha.
Ela se forçou a manter a calma. Havia muitas pessoas em Londres
chamadas Smith, mas algo a deixou no limite de repente.
— Esse é o nome do senhor que arrendou a casa? — Hattie
perguntou.
Desistindo da ideia de conseguir cear em paz, o Sr. Little baixou
o sanduíche no prato e se virou para ela.
— Sim, Sr. William Smith. Recém-chegado de Paris, França. Ele
trabalha com exportação e importação de seja lá o quê. E se não se
importa de eu dizer, senhorita Hattie, eu diria que ele tem mais do
que algumas moedas no bolso. Os móveis dele chegaram no final
desta tarde, e ele tem algumas peças muito bonitas.
O pai de Hattie passou meses tentando fazer com que alguém
alugasse a casa, mas aqui estava esse Sr. Smith assumindo um
contrato de cinco anos completos, em apenas alguns dias após o
retorno dela a Londres. As chances de isso ocorrer por pura
coincidência pareciam muito pequenas para se acreditar.
O que a deixou com uma pergunta enorme para refletir. Quem
era o Sr. Smith? Enquanto a mente lutava com as mil possibilidades,
seus sentidos gritavam apenas uma.

No andar de cima, na sala de estar formal da Família Wright, Will


estava de pé, considerando o arranjo de seus amados móveis
franceses. Custou-lhe uma pequena fortuna para transportá-los do
armazém em Paris para Londres. Ele tentou diminuir sua coleção de
pertences pessoais antes de voltar para casa, mas ele não
conseguia se separar de uma única peça. Todo homem possuía um
ponto fraco, e o de Will era um belo mobiliário artesanal.
Um pequeno corpo peludo atravessou a sala e parou no meio do
caminho.
— Olá, presumo que é a amada gata de Hattie, Brutus. — ele
disse.
A gata deu-lhe um breve olhar de cima a baixo, antes de se
dirigir a uma das inestimáveis cadeiras Georges Jacob. Quando a
gata alcançou a perna da cadeira, Will viu um conjunto de garras
aparecer e seu coração afundou.
— Ora essa, não, não vai não, seu rato peludo crescido. — ele
declarou.
Antes que a gata tivesse a oportunidade de afundar as garras
nas almofadas cobertas de seda felpuda, Will pegou Brutus no colo.
Acenou um dedo no rosto da gata.
— Fique longe das cadeiras Georges Jacob se pretende
continuar vivendo. Pode atacar aquele sofá de couro marrom
horrendo se precisar atacar algo. Pelo que parece, já teve algumas
oportunidades ao longo dos anos. Estamos entendidos?
A gata começou a ronronar. Will relaxou. Chegaram a um acordo
e tudo ficaria bem.
Uma fincada de dor tomou a mão de Will. Dentes afiados e
implacáveis tiravam sangue.
— Criatura ameaçadora dos infernos! — ele berrou. A gata pulou
sem esforço para o chão quando Will a soltou. Ela acelerou para
fora da sala.
Will olhou para a mão enquanto o sangue escorria das duas
perfurações. Puxando depressa um lenço do bolso da jaqueta, ele o
enrolou em volta da mão ferida.
— Primeira noite em minha nova casa e sou atacado por um
demônio felino. — ele murmurou.
Ele partiu para a porta, com a intenção de caçar a gata e
removê-la da casa. Ele desceu a escadaria principal devagar. Tendo
passado toda a infância rodeado de gatos, ele sabia que não se
chegava a lugar nenhum correndo atrás deles.
No fundo das escadas, ele viu a ponta do rabo da gata que
desaparecia pela escada dos criados e entrava na cozinha abaixo.
Ele estava com a mão no corrimão, pronto para descer as escadas
e encarar seu agressor, quando vozes soaram da cozinha. Ele
parou no meio do passo.
— Onde vou dormir?
A testa dele franziu-se. Fazia mais dias do que ele se importava
em lembrar desde a última vez que ouvira aquela voz. Uma voz que
chegou a pensar que nunca mais ouviria.
Ele sussurrou.
— E olá para você também.
Como o legítimo inquilino da casa, não havia nada que o
impedisse de descer as escadas e confrontá-la. Contudo, ainda não
era a hora certa.
Logo ele a faria entender que havia repercussões reais para o
comportamento dela. Que não se podia apenas escrever bilhetes
para as pessoas e, em seguida, sair de suas vidas, deixando-as
para lidar com corações despedaçados. Quando ele enfim a
confrontasse, Will pretendia ver Hattie implorar por perdão.
Hattie provaria a ele que ele representava algo mais em sua vida
do que um mero tolo. Que ela ficou mexida pelo que ocorreu no
tempo em que ficaram juntos. Ela poderia tentar se convencer que o
próprio coração estava guardado contra o amor, mas ela não era
uma mentirosa tão eloquente.
Will virou-se e voltou para o andar de cima. Era hora de criar a
próxima parte do plano.
Ao voltar para o calor da sala de estar, ele se lembrou das
palavras de Hattie. Ela estava preocupada quanto a onde ela
dormiria esta noite, o que significava que estava dormindo no andar
de cima até ontem. Em algum lugar nesta casa de muitos cômodos
estavam as coisas dela. Posses que, sem dúvida, continham a
chave de seus segredos.
Ele tocou a campainha, convocando os Little para virem limpar
os pratos da ceia. Seu estômago estava cheio, mas a mente ainda
precisava ser saciada.
Após citar o cansaço de um dia longo e cansativo, ele dispensou
os criados e deu boa noite a ambos. Assim que eles se foram, ele
pegou uma vela acesa da mesa e seguiu para o andar superior.
Quatro portas após a dele no longo corredor, ele encontrou o que
procurava. A porta do quarto em que ele parou na noite anterior,
agora com uma chave na fechadura. Assim que ele a abriu, viu os
sinais reveladores de habitação.
Dobrado na cama, um vestido de linho branco limpo e recém-
prensado. Uma fita azul pálida ao lado. No chão ao lado da cama
estava um par de sapatilhas combinando.
Entrando depressa no cômodo, ele fechou a porta com cuidado.
Confiante de que apenas ela e os Little estariam morando ali, Hattie
deixara a chave na porta ao sair mais cedo naquela manhã.
— Garota descuidada. — Will comentou.
Às vezes, ele imaginava que ela detinha as características
básicas para ser uma espiã decente. Com treinamento e tempo, ela
poderia ser uma boa agente.
Ele sorriu. Seus planos agora incluíam tirar um tempo para
promover sua educação sexual. Como esposa dele, ela seria a
senhora da casa, mas em pouco tempo aprenderia que ele sempre
seria o mestre da cama.
Ele trancou a porta, mas deixou a chave na fechadura. Se Hattie
fizesse uma visita no andar de cima, não apenas encontraria a porta
trancada, mas a visão bloqueada pela chave na fechadura.
Will atravessou o cômodo, até a penteadeira, e colocou a vela
ali. Ele buscava pistas, qualquer coisa que revelasse algo de Hattie.
Além de alguns itens pessoais simples, como uma escova de
cabelos e um espelho de mão, havia pouco de notável. Ele abriu as
gavetas, mas as descobriu todas vazias. O guarda-roupa e a
cômoda alta continham apenas algumas peças de roupa e alguns
livros antigos. Ele considerou a situação.
— Claro que ela tem poucos bens aqui em Londres, o resto de
suas posses ainda está a bordo do navio com destino à África. —
ele disse.
Ele estava a poucos passos da porta quando seu sexto sentido
entrou em ação. Virando-se de calcanhar, ele voltou para a cama e
caindo de joelhos, olhou sob ela.
— Aí está você, minha querida.
Debaixo da cama, havia uma caixa de madeira pintada de rosa.
Will se enfiou ainda mais debaixo da cama, enfim colocando as
pontas dos dedos na caixa e puxando-a para si devagar.
Satisfeito com seus esforços, ele se sentou no chão e
considerou a caixa. Que tesouro encontraria dentro? Ele virou a alça
para o lado, mas a tampa permaneceu fechada. Ele girou a caixa e
viu a fechadura. Fiel às expectativas, Hattie a havia trancado.
— Hora de colocar as ferramentas de trabalho em uso. — ele
disse.
Estendendo a mão para o bolso da jaqueta, ele pegou uma
pequena faca e começou a trabalhar na fechadura. Em menos de
um minuto, a caixa estava aberta. Página após página de letras
meio escritas preenchiam o topo da caixa. Ele pegou a primeira.
Caro William, sinto muito
Hattie riscou o nome dele e o mudou para Will, riscou de novo e
veio com um “Sr. Saunders”. Repetidas vezes, ela tentou escrever-
lhe uma carta de desculpas. No fundo da pilha, em cima de um
grande pacote embrulhado, havia uma carta dobrada e selada. Will
deslizou a faca sob o selo com habilidade e abriu a missiva.
Ele lambeu os lábios, surpreso ao descobri-los secos, assim
como o resto da boca. Ele não conseguia se lembrar da última vez
em que se sentiu tão inseguro consigo mesmo.
Se ele abrisse a carta e a lesse, cruzaria alguma linha invisível.
Violaria a confiança dela.
— Você se apoderou da casa dela e está vasculhando suas
coisas, Sr. Saunders. Creio que podemos nos esquecer quaisquer
argumentos morais neste momento. — ele repreendeu-se.
Ele desdobrou a carta.
Minutos depois, ele a dobrou de volta e sentou-se de olhos
fechados, imaginando o quanto foi preciso para ela escrever as
palavras.
Ele colocou a carta de lado, ele a selaria de novo, antes de
colocá-la de volta. Do fundo da caixa, ele retirou o pacote de papel
pardo.
No topo, em escrita limpa e clara, havia um cartão escrito: “Aos
cuidados do Escudeiro Sr. William Saunders – Londres.”.
Ele não precisou abrir o pacote macio para saber o que era.
Hattie havia embrulhado seu casaco com a intenção de devolvê-lo.
Um alívio inesperado invadiu seu sangue. Ele havia duvidado
das próprias impressões dela, mas agora Hattie enfim começara a
mostrar seu eu de verdade.
Will abriu a carta mais uma vez. Seu pedido de desculpas foi
sincero, mas foi o resto dos detalhes que faltavam que o
preocuparam. Nem uma única vez na carta ela mencionou o irmão
Edgar.
Algo a impedia de procurar a ajuda da família. O que havia
acontecido no seio da Família Wright para ela não se aproximar do
irmão em busca de ajuda?
O olhar dela, enquanto observava Edgar e a esposa na Catedral
de São Paulo, foi de partir o coração.
Na breve conversa com Will, Edgar Wright não pareceu ser um
canalha. Em vez disso, ele parecia ser um homem amigável e
decente, confortável em fazer-se ouvir falar da esposa e filho recém-
nascido em público.
Ele era o homem com quem Will precisaria lidar quando se
tratasse do plano dele para um futuro com Hattie.
— Uma coisa de cada vez, Will. Encontre um jeito de falar com
ela sem assustá-la. Só então poderá lidar com o irmão.
Capítulo Vinte e Nove

H attie dormiu aos trancos e barrancos. Mais de uma vez ela


acordou à noite e fez menção de pegar o castiçal que mantinha ao
lado da cama. Em vez disso, encontrou apenas uma parede de
tijolos sólidos.
Pouco antes do amanhecer, ela acordou e sentou-se. Apertando
os olhos ainda cobertos de sono, ela pôde distinguir a forma da
janela da cozinha. A crescente luz da manhã chegando pela janela
deu-lhe um lembrete nítido de que passara a noite no andar de
baixo em uma cama improvisada.
— Bom dia, senhorita Hattie. — a Sra. Little disse.
A governanta da família colocou uma grande chaleira na lareira,
enquanto o marido alimentava o fogão com lenha. Hattie colocou um
dedo do pé para fora dos cobertores, mas pensou melhor em sair da
cama.
— Que horas são? — ela perguntou.
A Sra. Little deu uma risadinha.
— É tarde. Um pouco depois das cinco, se não se importa. Toda
aquela limpeza e lavagem para o Sr. Smith ontem me fez dormir
profundamente. O Sr. Little teve que me sacudir bastante para me
despertar esta manhã.
Sr. Smith.
Hattie fez de tudo para se esquecer do novo mestre da casa,
mas visões de homens bonitos de cabelos escuros perseguindo-a
pelas ruas de Gibraltar preencheram seus sonhos.
— Eu estava pensando. Sei que podem achar isso um pouco
estranho, mas o que acham de eu fingir ser a filha de vocês? — ela
aventurou-se.
O Sr. e a Sra. Little trocaram um olhar conhecedor. Ela não era a
primeira a considerar a noção.
— Não nos opomos à ideia de que lhe ganharia um pouco de
tempo. — a Sra. Little respondeu. Hattie sabia que, na verdade,
ainda esperavam que ela fosse falar com Edgar.
— Muito obrigada. — Hattie respondeu.
A chegada do misterioso Sr. Smith colocou todos os seus planos
em desordem.
— Bem, então, é melhor se levantar depressa, o Sr. Smith, sem
dúvida, vai querer o café da manhã daqui a uma hora. — o Sr. Little
acrescentou com uma piscadela.
Hattie se vestiu e começou a ajudar a Sra. Little na cozinha. Ela
não se importava de ficar abaixo das escadas. A cozinha era quente
e ficar ocupada impediu-a de se preocupar com a situação.
Pouco depois das sete horas, o Sr. Little desceu as escadas, o
jornal da manhã debaixo do braço.
— Disse que nunca toma café da manhã antes das nove, e pediu
café se não for um incômodo. Também disse que, se não tivermos
grãos de café, há uma excelente loja para obtê-los na Rua Oxford,
que ele poderia recomendar. Ora essa. Vivi nesta cidade toda a
minha vida, sei onde estão todas as boas lojas. — ele resmungou.
Ele avistou Hattie limpando a mesa com afinco e suspirou.
Cavalheiros com horários estranhos era uma coisa, mas a filha da
família trabalhando como criada doméstica era bem diferente.
— Perdão, Senhorita Hattie, a linguagem aqui abaixo das
escadas pode ser um pouco mais colorida do que na sala de estar
de sua mãe.
— Ah, e o Sr. Smith deve sair no final desta manhã, então você
poderá subir para pegar suas coisas.
Alívio inundou sua mente. Enquanto trabalhava, ela havia
refletido quanto as possibilidades de remover todas as evidências
de sua presença na casa. No andar de cima, em seu antigo quarto,
suas roupas e posses estavam à vista de todos. Qualquer um que
entrasse no quarto dela pensaria que o ocupante saíra para um
breve passeio. Com toda a certeza, não parecia o quarto de alguém
que saiu há algumas semanas para viver um longo período na
África.
Havia também o problema de pegar a caixa debaixo de sua
cama e, enfim, enviar o casaco de Will para ele.
Assim que o Sr. Smith saísse de casa esta manhã, ela esvaziaria
o quarto.
Capítulo Trinta

O som de algo caindo no chão e se partindo em pedaços, seguido


pelo miado alto de um gato despertou Will de seu cochilo à lareira
no final da noite. Ele esticou os braços acima da cabeça antes de se
levantar, com toda a preguiça, do conforto da cadeira estofada.
— Deus, espero que seja aquela cópia horrível e malfeita de um
vaso Ming. — ele murmurou.
O pai de Hattie detinha um gosto mais do que terrível quando se
tratava das tais coisas boas da vida. O vaso em questão foi o
trabalho de alguém sem talento algum para segurar um pincel fino.
Embora Aldred Wright não tivesse bom gosto, estava claro que
passara a inteligência para a filha. Will precisou admitir estar
impressionado com a capacidade de Hattie de permanecer sem ser
detectada. Por quatro dias, ela viveu como um fantasma no andar
de baixo, nos aposentos dos criados. A única evidência de sua
presença na casa foi o desaparecimento dos pertences dela de seu
quarto. Até mesmo o casaco dele havia desaparecido, o que Will
percebeu ser uma fonte de aborrecimento. Ele sentia falta daquele
casaco.
Hattie teria conseguido manter sua existência secreta por mais
de tempo se não fosse pela gata. Brutus era sua única fraqueza
verdadeira. Brutus. Fiel ao nome, ela estava prestes a se tornar a
queda de outra pessoa.
Espreitando até o corredor, Will fechou a porta da sala de estar
com cuidado atrás dele. Após esperar por alguns segundos para
que os olhos se ajustassem ao escuro, ele seguiu em direção à
escadaria. Parando pouco antes do topo das escadas, ele se
recostou contra a parede e prestou atenção.
— Brutus, por favor, venha comigo. Preciso limpar essa
bagunça. — Hattie implorou.
— Boa sorte com isso. — Will murmurou.
As tentativas dele de impedir que essa ameaça felina arranhasse
as almofadas de suas cadeiras inestimáveis se mostraram
infrutíferas. Era de algum conforto saber que a verdadeira dona da
gata não se saía muito melhor quando se tratava de controlar seu
comportamento.
Um grito alto de Hattie confirmou sua falta de sucesso.
— Não acredito que me mordeu! — ela exclamou.
Escondido da vista no primeiro degrau, Will mordeu o lábio para
abafar a risada. Mais de uma vez ele tentou colocar o animal
insolente do lado de fora apenas para ganhar dentadas na parte
macia da mão.
O relógio na base das escadas anunciou a décima hora. Era
tarde.
Decidindo estar na hora de acabar com a farsa, Will se afastou
da parede e fez seu movimento. Ele começou uma descida
silenciosa e furtiva.
Na entrada frontal da casa, Hattie estava de joelhos, de costas
para ele. Na mão, ela estendia o que ele supôs ser um pedaço
suculento de frango que sobrou da ceia dele.
— Venha, Brutus. — ela sussurrou. A gata apenas fungou em
desaprovação à saborosa oferenda.
O pânico crescente na voz dela atraiu um instante fugaz de pena
de Will. Ele não invejava a tênue situação doméstica.
Quando se aproximou um pouco mais, ele parou. Embora ela
não tivesse notado a presença dele, Brutus decerto o fez. A gata
soprou e saltou para fora do alcance de Hattie.
Ela rodopiou. Ao ver Will, arregalou os olhos de choque.
Ele não teve tempo de agarrá-la, pois ela fez uma corrida
surpreendente e rápida para uma pequena porta sob as escadas.
Quando Will a alcançou, ela a fechou e trancou.
Ele sacudiu a maçaneta várias vezes antes de enfim chutar a
porta em frustração.
— Cacete!
Ele considerou a porta por um tempo. Parecia a abertura para
um pequeno armário de vassouras, com pouquíssimo espaço para
manter um corpo ali dentro.
Após um reconhecimento completo da área sob as escadas, Will
se convenceu de que não havia outra saída para Hattie. Puxando
uma cadeira próxima, ele a colocou na frente da porta e sentou-se.
Brutus assumiu sua posição sob a cadeira. Criatura dúbia que
era, ela parecia decidida a permanecer leal à dona, por ora.
— Posso esperar aqui a noite toda. — ele disse para a porta
fechada.
Despertados pelo tumulto, o Sr. e a Sra. Little apareceram no
topo da escada dos criados, ainda com roupas de dormir.
— Temos um intruso. — Will anunciou.
Eles trocaram um olhar que Will se certificou de que pensassem
que ele não viu. Um jogo familiar de gato e rato estava em
andamento.
— Sr. Little, poderia, por favor, subir ao quarto principal e buscar
minha pistola? Está na gaveta superior do meu armário de
cabeceira. — ele disse.
— Senhor? — o Sr. Little respondeu.
Brutus saiu de debaixo da cadeira e pulou no colo de Will. Ela
começou a ronronar, e Will imaginou que ela gostava do espetáculo
que estava se desenrolando.
— Não me ouviu? Temos um intruso. O patife está preso no
armário. Pegue minha pistola.
Quando o Sr. Little hesitou, Will insistiu.
— Ah, e tenha cuidado ao manusear a pistola. Está carregada.
As últimas palavras foram ditas alto o suficiente para Hattie ouvir.
Enquanto o Sr. Little subia as escadas com relutância, a Sra. Little
se movia com desconforto, mudando o peso entre os pés descalços.
As mãos unidas e firmes em uma oração distorcida. O desespero
gravava linhas profundas no rosto macio e enrugado.
Will acariciou Brutus enquanto a gata afofava as garras na perna
dele. Ele cerrou os dentes, determinado a manter o verniz de um
dono de casa indignado.
— Temos alguma corda? Gostaria de conter o vilão antes de
chamar batedores de Bow Street. — ele disse.
— Por que o senhor faria isso? — a Sra. Little gaguejou.
Ele sabia muito bem ser errado usar a governanta leal de um
jeito tão desonesto, mas Will estava determinado a fazer com que
Hattie entendesse as repercussões do que fez. Sob quaisquer
outras circunstâncias, os Little acabariam na rua sem referências
assim que um empregador descobrisse o papel deles na falcatrua
de Hattie.
Will os admirava pelo que fizeram. Eles não eram mais
empregados da Família Wright, e estariam bem dentro da lei se
tivessem se recusado a ajudar Hattie. Sem conhecerem a
verdadeira identidade de Will, eles apostaram alto na esperança de
que ele entendesse quando a hóspede secreta enfim fosse
descoberta, o que era inevitável.
Agora era hora de Hattie retribuir a lealdade.
— Bem, as autoridades em breve terão o vilão a sete chaves.
Atrevo-me a dizer que, amanhã de manhã mesmo, estará diante de
um magistrado, e que será posto a bordo de um navio para a
colônia penal de Nova Gales do Sul antes do fim do mês. Não
roubará de cangurus enquanto estiver por lá. — ele respondeu,
presunçoso.
Ele bateu o punho com força contra a porta atrás dele.
— Gostaria de uma longa viagem marítima, não gostaria? — ele
berrou.
Hattie, para seu crédito, permaneceu em silêncio, não dando
nada.
O Sr. Little reapareceu, a pistola na mão, e a entregou a Will.
— É mesmo necessário, quer dizer, não poderíamos apenas tirá-
la do armário? — ele perguntou.
Will empurrou Brutus do colo e se levantou da cadeira. Ele a
pegou e fez um grande show de movê-la para um lado da porta.
Então, voltando-se para o Sr. Little, o fixou com um olhar indagador.
— Ela? Quem disse que o nosso intruso era uma mulher?
A Sra. Little colocou a mão na boca e começou a chorar.
— Ó, por favor, não a machuque, Sr. Smith. Ela não tinha para
onde ir. A Senhorita Hattie é uma alma bondosa, sempre fazendo o
trabalho do senhor. Ela já passou por tanta coisa. Peço que mostre
misericórdia.
Com sincronia perfeita, a porta do armário se abriu, e Hattie saiu
para o saguão.
— O Sr. Saunders já me mostrou mais misericórdia do que
mereço, Sra. Little. Foi ele quem me resgatou em Gibraltar e me
trouxe de volta para a Inglaterra. Não posso continuar a me impor.
— ela disse.
Will assentiu. Saunders, não Smith.
Hattie partiu para a porta da frente. Will ainda estava com raiva o
bastante dela para ser tentado a deixá-la chegar ao portão. Um
olhar para a chorosa Sra. Little logo o fez mudar de ideia.
— Está frio e já é tarde. Eu diria que não durará muito lá fora
com esse vestido fino. — ele disse.
Hattie virou-se.
— Vou juntar as minhas coisas, se estiver de acordo, e encontrar
outro alojamento adequado. — ela respondeu.
Ele já não sabia mais como interpretá-la. Will já vira Hattie atuar
com deferência digna do palco quando lhe convinha, mas algo no
jeito como ela se abraçava disse a ele que desta vez não era um
ato.
Ele soprou o ar para fora das bochechas. Conseguiu o que
queria, Hattie estava fora do armário, e a presença dela na casa não
era mais um segredo.
— Ninguém vai a lugar nenhum. — ele respondeu com firmeza.
Ele deu um leve empurrão de lado em Brutus com o pé. A gata,
que estava mordiscando a borda da pantufa de Will, o olhou com
pouca afeição enquanto se afastava.
— Não olhe para mim assim, sua besta peluda. Se eu decidir
colocar alguém para fora de casa esta noite, você figura o topo da
minha lista atual.
A Sra. Little choramingou. Hattie arfou. O Sr. Little ergueu uma
sobrancelha de aprovação. Will viu um espírito afim no mordomo.
Foi reconfortante saber que não era o único a ver a gata sob uma
luz menos favorável.
As pessoas eram as criaturas mais estranhas quando se tratava
de animais de estimação. Brutus governava a casa como uma tirana
medieval, mas pensar em tentar derrubar seu reinado maligno fazia
com que todos prendessem as respirações em uníssono.
Estava na hora de chegar ao cerne da questão.
— Senhorita Wright, temos assuntos a discutir em privado.
Poderia, por favor, retirar-se para a sala de estar no andar de cima?
— ele disse.
— Qual delas? — Hattie respondeu.
A casa, embora não fosse grande para os padrões da alta
sociedade, contava com duas salas de estar separadas nos andares
superiores, sem falar as duas salas de visitas formais.
— A do topo das escadas à esquerda. Aquela que costumava ter
um horrível tapete listrado, laranja e preto queimado. Estarei com a
senhorita em breve, após ter uma palavra tranquila com os meus
empregados.
A Sra. Little disparou um olhar de consternação ante esta clara
violação do protocolo social. Uma mulher solteira não ia a lugar
nenhum com um cavalheiro que não fosse da família. Quando Will
sustentou o olhar dela, ela logo se juntou ao marido olhando para o
chão.
Bom. Já era tempo de alguém reconhecer quem paga as contas
nesta casa.
— Não é culpa deles eu ter me escondido de você em casa. Se
alguém deve ser punida, por favor, que seja eu. — Hattie disse.
Will apontou para as escadas e observou Hattie atravessar o
cômodo devagar e subi-las. Uma ou duas vezes ela parou e olhou
com desespero de volta para os Little.
Ela era tão parecida com a irmã dele, Caroline, que chegava a
ser estranho. Em defesa de Hattie, ela foi em silêncio. Caroline
Saunders teria parado a cada passo e insistido em defender seu
caso. Hattie enfim desapareceu ao virar da esquina no topo das
escadas.
— Se estiver ouvindo lá de cima, eu saberei. — ele a avisou.
Um bufo seguido pelo barulho das saias sinalizou a partida de
Hattie. Ele se virou de volta, para enfrentar o Sr. e a Sra. Little.
— Veja bem, eu entendo por que fizeram isso, mas não quer
dizer que esconder a senhorita Wright em minha casa foi o certo a
se fazer.
A Sra. Little limpou os olhos com a manga.
— Lamentamos ter-lhe enganado, Sr. Smith, digo, Sr. Saunders.
Esperávamos encontrar uma solução para o dilema da senhorita
Hattie sem que o senhor percebesse a presença dela. Dito isto,
ainda reconhecemos nosso erro. — o Sr. Little disse.
— Mas ela está sozinha, sem nenhum amigo no mundo.
Precisamos ajudar. — a Sra. Little implorou.
Eles se olharam e estenderam as mãos, entrelaçando os dedos
em uma demonstração tocante de unidade.
— Se nos quer fora daqui, senhor, juntaremos nossas coisas e
sairemos à primeira luz. Embora para onde iremos após vinte anos
de serviço à Família Wright, eu decerto não sei. — o Sr. Little
explicou.
Um caroço brotou na garganta de Will. O casal era o tipo de
criadagem familiar e fiel que a sociedade educada esperaria ser
cuidada pelos empregadores na velhice. Apenas um monstro sem
coração os jogaria na rua sem referências.
— O quê? Ora essa, pelo amor de Deus! Ninguém, e eu digo
isso pela última vez, ninguém será expulso desta casa. Agora, se
pudermos concordar que nunca mais me enganarão, então todos
nós podemos dormir um pouco esta noite.
Antes que o marido tivesse a chance de detê-la, a Sra. Little
jogou os braços ao redor de Will. As lágrimas marcando a frente do
colete de seda.
— Obrigada, senhor, eu sabia que o senhor era um homem de
valor, cuidará dela. — ela disse aos soluços.
Capítulo Trinta e Um

H attie abriu a porta da sala de estar do pai. Estava cheia de


familiaridade, mas não parecia mais o espaço de seu pai. Ele havia
levado apenas alguns pequenos itens pessoais preciosos com ele
para Serra Leoa, mas a perda de até mesmo esses detalhes
mudaram a alma da sala.
Ela olhou para o novo tapete abissínio dourado, preto e bege
que havia tomado o lugar do tapete listrado laranja e preto do pai
dela. Ela precisava dar o braço a torcer a Will, ele tinha um
excelente gosto. As cores no tapete combinavam com as dos pratos
de porcelana finos pendurados na parede.
Ela caminhou até eles. Cenas do mundo antigo, pintadas com
primazia, adornavam cada prato. Seus dedos coçaram para
alcançá-los e tocá-los.
— Absolutamente lindo. — ela sussurrou.
— Sim, e me custaram uma boa quantia. — Will disse.
Ela se virou para vê-lo encostado no batente da porta,
indiferente. Há quanto tempo ele estava lá, ela não fazia ideia. Ele
podia se mover como um raio silencioso quando o humor pedisse.
— Posso perguntar o que aconteceu com os Little?
Se Will tivesse encerrado os serviços deles, ela nunca se
perdoaria.
— O Sr. Little está em seu antigo quarto acendendo a lareira e
verificando se o quarto está pronto para você. A Sra. Little está no
andar de baixo, na cozinha, fervendo água para que todos
possamos tomar um pouco do chocolate quente que comprei no
início desta manhã em Fortnum e Mason. Não há nada melhor do
que uma xícara de chocolate espanhol temperado com canela após
uma noite agitada. — ele respondeu.
Hattie começou a sentir uma tremedeira incontrolável. Tensão e
nervosismo, tudo o que ela negou sentir nos últimos dias enfim veio
à tona.
— Sinto muito, desculpe-me por tudo o que fiz. — ela disse aos
prantos.
Will fechou a porta e foi para o lado dela.
Ele colocou a mão na bochecha dela e ergueu sua cabeça. Os
olhares dos dois se encontraram. Para sua surpresa, ela viu dor e
angústia naqueles olhos.
— Ó, Hattie. — ele murmurou.
Ela ouviu o desejo áspero na voz dele.
Ele a atraiu para um abraço. Os lábios dele desceram nos dela
em uma carícia ardente. Ele não foi terno ou gentil, mas era
exatamente o beijo apaixonado que ela sabia que ele precisava
naquele momento. Ela entregou a boca à dele, liberando-se da
culpa reprimida com esse enlace. Ele a puxou com força contra o
corpo, e ela sentiu a dureza familiar da masculinidade dele. Ela
sentiu o corpo gritar por liberação sexual com esse homem.
Enquanto as línguas se entrelaçavam em um ato apaixonado,
Hattie submeteu-se às exigências de Will. As mãos dela agarraram-
se com firmeza às laterais do colete dele.
Enfim, os lábios dele suavizaram o toque. A raiva se dissipara.
Seu amante do mar voltou aos poucos para ela. Os dedos dele
deslizaram pelos cabelos dela e a seguraram com leveza.
Quando ele recuou os lábios, continuou a segurá-la por um
instante, dando um beijo suave em seus cabelos. Então, ele a
libertou do abraço.
— Faz alguma ideia do que me fez passar? — ele perguntou.
Ela baixou os olhos. Os dedos da mão direita começaram a
estalar os nós dos dedos da mão esquerda.
Will segurou a mão dela. Ele a conhecia o suficiente para saber
quando o nervosismo dela aparecia. Ela olhou para ele. Ele ainda
estava bravo, e ela sabia que ele estava em seu direito. No entanto,
ela sabia que ele nunca faria nada para machucá-la. Proteger os
outros era uma parte fundamental de Will Saunders.
— Por que mentiu para mim, Hattie? Mesmo após eu ter
descoberto seu nome verdadeiro e nos tornarmos amantes, ainda
escolheu mentir para mim. Por quê? — ele a questionou.
Ele estava certo em exigir a verdade dela. A culpa era sua
companheira constante e indesejada. Ela havia criado uma teia de
mentiras grande o bastante para prendê-la para sempre.
— Eu não contei a verdade de minhas circunstâncias porque não
confiava em você. — ela disse.
O rosnado de frustração de Will ecoou na sala. Hattie
estremeceu. Embora tivesse aprendido a confiar um pouco nele, ele
possuía o hábito de fazê-la se sentir pequena quando tentava
confiar nele.
— Percebe que ficar com raiva quando eu tento explicar a
verdade não é o jeito ideal de lidar com a situação? Eu teria contado
muito mais sobre mim, se você não se comportasse como uma
besta ferida quando eu tento me abrir. — ela disse.
Will balançou a cabeça.
— Como consegue reverter tudo para que a situação seja minha
culpa? Foi você quem mentiu para a tripulação. Foi você que se
certificou de que eu estaria drogado a bordo do navio. E foi você
quem desapareceu no meio da noite antes de atracarmos em
Londres, deixando-me apenas uma breve nota de despedida. Faz a
mínima ideia de como me senti quando pensei estar morta?
Morta.
— Eu não sabia…
— Não, e esse é o problema. Você não se dá ao luxo de pensar
e refletir nada antes de agir, Hattie. Passei um dia inteiro com a
polícia do Tâmisa procurando seu corpo. E o tempo todo, eu tentei
descobrir o que dizer ao seu tio. Como eu explicaria a ele que falhei
em trazê-la em segurança para casa.
Ele esfregou as mãos no rosto. Quando as retirou, ela viu as
linhas de fadiga gravadas em suas feições.
A leveza que ela sentira apenas um minuto ou dois atrás
desapareceu sob o peso das revelações de Will. Após procurá-la em
vão, ele a considerou morta. Ela foi a causa da dor dele.
— Em seguida, descubro que seu tio partiu para os Estados
Unidos há mais de quatro anos. Vou confessar que foi preciso toda
a minha força de vontade para não marchar até você e torcer seu
pescoço quando a vi na Catedral de São Paulo.
— Ó — foi tudo o que ela conseguiu dizer em resposta.
— Sim, ó. Não tem ideia do que suas mentiras fizeram, tem?
O medo começou a queimar no fundo do estômago. Se Will a viu
na Catedral de São Paulo, o que mais ele viu? Ela se repreendeu
mentalmente por ter feito uma aparição tão pública após acabar de
retornar a Londres.
— Uma das coisas que precisaremos discutir é seu irmão, Edgar.
Falei com ele ao fim da missa.
— O que você disse para ele? — ela gaguejou.
— Não muito. No início, eu não sabia quem ele era. Só notei que
você parecia um tanto interessada nele e na esposa. Para ser
honesto, suspeitei até que pudesse ser um amante secreto. Alguém
que poderia ser a verdadeira razão para você pular do navio. Após
todas as mentiras que me disse, como eu saberia que ele não era
outro de seus amantes? Com o pouco que eu sabia, você poderia
ter fugido da Inglaterra, mas mudou de ideia e tentava voltar para
ele.
— Contudo, descobriu nossa verdadeira conexão?
— Sim, usei o nome do meu tio, o Bispo de Londres, para me
apresentar. Não demorou muito para descobrir o resto da história de
sua família. Meu primo, o Conde de Shale, descobriu que esta casa
estava disponível para alugar. Eu arrombei uma porta nos fundos na
noite anterior à assinatura do contrato. Até fiquei do lado de fora do
seu quarto. E sim, assim que me mudei, fui ao seu quarto e li todas
as suas cartas.
A coincidência de Will ter alugado a casa era como Hattie
suspeitava, nenhuma coincidência. Ela ficou em silêncio por um
tempo.
O tempo todo que ela pensou que em suas idas e vindas na
cidade fora cuidadosa, que passaram despercebidas, ela estava sob
o olhar secreto de Will. Na verdade, jamais escapou dele.
— Edgar sabe que estou em Londres? — ela enfim perguntou.
Agora que Will esclareceu a verdade da situação, havia pouco
sentido em fazer rodeios sobre o irmão.
— Não nesta conjuntura em particular. Ou, se ele sabe, não
ouviu de mim. Após vê-la na Catedral de São Paulo, e somar dois e
dois, eu supus que havia sérios problemas entre vocês dois. Decidi
descobrir mais antes de confrontá-lo. A última coisa que eu gostaria
de fazer seria ajudar a salvá-la de um membro da família sem
coração, para então colocá-la sob a proteção de outro que não
tivesse seus melhores interesses em mente. Até que eu possa ter
certeza quanto a Edgar e às motivações dele em relação a você,
seu segredo permanecerá seguro.
E ouvir o seu lado da história.
Ele não precisava dar voz à noção. Hattie entendeu a inferência.
Ela precisaria fornecer a Will algumas razões muito boas para
convencê-lo de não a entregar aos cuidados do irmão.
A maioria dos homens já teria feito isso.
Ele não é como os outros homens.
Uma batida na porta interrompeu a conversa. A Sra. Little entrou
carregando uma bandeja com duas xícaras de chocolate quente. Ela
o colocou em uma pequena mesa de um lado da porta.
— Trouxe alguns biscoitos de gengibre também. Pensei que
iriam gostar. — ela disse.
Ela deu um passo para trás, as mãos se entrelaçaram, e ela
ficou em silêncio. Quanto a Sra. Little ouvira desde sua chegada,
Hattie não sabia dizer, mas era evidente que ela não estava com
pressa de deixar Hattie e Will sozinhos outra vez.
— Obrigado, Sra. Little. A Senhorita Wright e eu estávamos
apenas nos pondo a par de todos os acontecimentos desde a última
vez que estivemos juntos. Parece que ela tem algumas coisas para
contar. — ele disse.
Hattie e a Sra. Little se entreolharam. Como Will segurava todas
as cartas, havia pouco que pudessem fazer além de esperar que ele
decidisse como o resto da noite correria.
Ele pegou uma das xícaras de chocolate quente e a entregou a
Hattie.
— Por favor, vá e verifique se tudo está em ordem no quarto da
senhorita Wright. Tenho certeza de que, quando voltar, ela terá
terminado a bebida. Obrigado, Sra. Little.
Após a Sra. Little se retirar, Will levou Hattie a uma cadeira ao
lado da lareira. Sentando-se em uma das novas poltronas de Will,
ela não se sentiu à vontade. Ela passou muitas tardes felizes nesta
sala, de pé ao lado da cadeira do pai, enquanto lia passagens dos
livros favoritos dela para ele. Grande parte de sua educação havia
ocorrido nesta mesma sala.
Will sentou-se na cadeira oposta. Ele não só tomou posse da
casa, mas agora movia a memória de Aldred Wright para segundo
plano de maneira inexorável. A casa da família dela estava
passando por uma metamorfose que ela não havia previsto.
Um dia antes de ela sair da casa com os pais e Peter, ela entrou
em todos os cômodos e tentou gravar uma imagem mental de como
era. Ela não pensava que estaria presente na casa quando o novo
inquilino começasse a fazer mudanças.
— Então, o que fez com o tapete do meu pai? — ela perguntou.
Will bebericou o chocolate quente e relaxou na cadeira. Era hora
de fazer uma pausa nas perguntas dele e se concentrarem em
questões menores. Amanhã seria outro dia, um em que ela
suspeitou que ele pretendia avançar com as investigações.
— Mandei enrolá-lo e guardá-lo em uma capa para protegê-lo do
pó e o movi para o sótão. Embora eu possa considerar o gosto do
seu pai para móveis muito diferente do meu, não tenho o direito de
destruir suas posses. Hattie, tenha certeza de que quando seus pais
retornarem da África, a casa estará como estava. — ele respondeu.
Confie em Will Saunders para ser o homem honrado e disposto a
não deixar que nada aconteça com as coisas do pai dela.
— De alguma forma, eu sabia que o senhor diria isso, embora eu
estivesse disposta a fechar os olhos se por acaso perdesse um ou
dois itens. Eu poderia fazer uma lista. — ela ofereceu.
Se Will quebrasse a coleção de jarros com compartimentos
secretos de seu pai, ela estava certa de que poderia dar um jeito de
perdoá-lo. Ela até confiava poder esconder os cacos. A própria mãe
dela desenvolveu o dom de deixar um ou dois deles pular do
aparador para o chão por acidente. Os dois últimos jarros que o pai
comprou haviam sido armazenados na prateleira superior de um
armário alto, em segurança e fora de perigo.
Um bocejo escapou dos lábios dela, e Will seguiu o exemplo. Ele
baixou a xícara.
— É tarde, sugiro que adiemos nossa discussão para amanhã de
manhã. Embora eu tenha uma ou duas coisas a pedir a você, Hattie,
antes de continuarmos esta conversa amanhã. — ele falou.
— Sim?
— Preciso que comece a ser honesta comigo. Eu estou
colocando meu pescoço em risco por você, permitindo que
permaneça sob o meu teto. Sua honestidade para comigo é um
preço justo a ser pedido. Pode não dar muito valor para sua própria
reputação, mas eu sim. Também tenho minha própria reputação e a
da minha família a considerar. Meu tio Ewan é o duque de
Strathmore, e meu tio Hugh é o bispo de Londres. Os dois são
homens poderosos e respeitados. Jamais gostaria de perder o
respeito que ambos têm por minha pessoa.
Ele a deixava com pouca escolha. O acordo já era uma
conclusão inevitável.
— E a outra coisa?
— Uma promessa de que, quando conseguirmos resolver os
assuntos mais urgentes, você reconsiderará meu pedido de
casamento.

Após retirar-se com o máximo de elegância possível, Hattie foi para


o antigo quarto.
— Bem, acabou sendo muito melhor do que o esperado. Digo
que eu estava bem certa de que ele nos expulsaria logo. — ela
disse.
Hattie pegou a camisola da cama. Estava bem dobrada. Ela deu
uma olhada na Sra. Little, ocupada em organizar a escova de cabelo
e o espelho de Hattie no topo da penteadeira.
As palavras de Will continuaram a chacoalhar em sua cabeça.
Ela estava à mercê dele agora. Não havia mais navios para ela
saltar, ele a tinha bem onde ele a queria.
— Ele é um bom homem, esse Sr. Saunders. Então, foi ele quem
a resgatou em Gibraltar. Engraçado como as coisas deram certo, e
que foi ele quem locou a casa. Eu me pergunto como é a família
dele.
A Sra. Little foi gentil nessa leve repreensão. Ela estava com a
família há tempo o bastante para Hattie se sentir terrível por mentir.
Para alguém que sempre protestava sobre falsidades e inverdades,
ela se tornara boa demais em usá-las quando sentia a necessidade.
A Sra. Little veio até o seu lado e retirou a camisola dos dedos
de Hattie com um puxão gentil.
— Tudo bem, minha querida, eu entendo por que sentiu que não
podia dizer a verdade. Voltou para casa em segurança, e é isso que
importa. Tenho certeza de que o Sr. Saunders foi um perfeito
cavalheiro enquanto a trazia para casa.
Hattie sentiu as bochechas queimarem. Se a Sra. Little fizesse a
mínima ideia do que ela e Will fizeram nas longas tardes e noites no
navio, a governanta sairia correndo da casa para bater na porta de
Edgar exigindo uma audiência.
Ela vestiu a camisola depressa e desejou uma boa noite à Sra.
Little. Sentada na beirada da cama, ela ponderou acerca dessa
reviravolta inesperada dos acontecimentos. Ela esperava
reencontrar Will em algum momento. O que ela não esperava era
morarem na mesma casa. E que ele ainda insistisse nessa
exigência de que se casassem.
Colocando a ponta de um dedo nos lábios, ela se lembrou da
maneira feroz como ele a beijara. Will ainda a cobiçava. O beijo
também era carregado de outra promessa. Ele se importava muito
com ela.
Quando ele a abraçou, a fome que ela sente por ele se agitou
mais uma vez. Ela desejou estar nua na cama dele, enquanto seus
dedos habilidosos faziam sua magia no corpo aquecido dela. Ansiou
por tê-lo enterrado nela mais uma vez, reivindicando-a ao levá-la até
o auge do prazer sexual.
Contudo, para tê-lo de novo como amante, ela precisaria
concordar com a exigência de se casarem. Casamento significaria
que Will teria o direito de palpitar em sua vida e em seu trabalho. As
esposas da Sociedade londrina não andavam pelas ruas de St.
Giles sem acompanhantes, e decerto não passavam seus dias
limpando igrejas.
Enquanto deslizava sob o calor dos cobertores, Hattie permitiu
que a mente se desviasse para Will e para o beijo que
compartilharam. Quando a mente começou a examinar seus
sentimentos por ele, ela se afastou. Permitir que o coração se
entregasse a Will era loucura. Só desgosto poderia se seguir.
Capítulo Trinta e Dois

H attie deixou a casa pouco antes do nascer do sol na manhã


seguinte. Já era de conhecimento da casa que Will não era um
madrugador. Na maioria dos dias, ele não descia para o café da
manhã até bem depois das nove.
— Horas continentais, é assim que ele chama. — o Sr. Little
observou.
O que quer que fossem, o desejo de Will de permanecer na
cama até tarde todos os dias significava que Hattie detinha controle
da casa por toda a manhã. Também significava que poderia sair
sem que ele a questionasse para onde estava indo.
Como parte da necessidade de recompensar não apenas Will,
mas o mundo, ela sabia que chegaria a hora em que teria que
enfrentar o retorno à igreja paroquial de St. John. Ao se vestir essa
manhã, ela percebeu que esta hora era agora.
Um dos resultados inesperados de seu trabalho na paróquia de
St. John foi os pais de Hattie concordarem com suas idas e vindas,
sozinha, entre a paróquia e a casa deles. Esta decisão foi a causa
da primeira de muitas disputas entre o pai e Edgar.
— Conheço essas ruas melhor do que qualquer um deles. — ela
murmurou.
Enfrentando o frio de uma manhã de meados do outono, Hattie
partiu. Ela fez um bom tempo ao longo da Rua Long Acre e da Drury
Lane, até chegar a Holborn.
Quando ela chegou à Holborn, parou no lado oposto da rua da
sede da paróquia de St. John. Ela passara muitos dias nessa
simples igreja de pedra, ajudando os pobres e necessitados de
Londres.
Em muitos dos dias, o caldo aquoso simples que ela preparava
na cozinha da igreja sempre que conseguia os ingredientes era a
única refeição que os paroquianos da igreja recebiam.
Ela empurrou os ombros para trás, atravessou a rua e subiu os
degraus até a porta da frente. Em questão de minutos, ela saberia
se era bem-vinda para voltar ou não.
Fechando a porta atrás dela, ela parou na igreja mal iluminada e
respirou fundo. Colocando a mão no coração, ela sussurrou:
— Casa.
Como esperado, nada havia mudado desde a última vez que ela
pôs os pés na nave decorada com simplicidade. Fazia apenas um
mês mais ou menos, mas parecia metade de uma vida.
Não havia belas janelas decorativas de chumbo na capela de St.
John, apenas vidro. O piso era de lajotas cinzas e funcionais. O
pouco dinheiro da paróquia era gasto em obras de caridade. Dois
vasos de cada lado do altar eram as únicas concessões às cores.
Repletos de rosas vermelhas e brancas do legado de um benfeitor
falecido, davam coração à alma do edifício.
A tosse cortante era a melodia anunciadora do Reverendo
Brown.
— Aqui vou eu. — ela sussurrou.
Enquanto o sacerdote atravessava a entrada da porta lateral a
passos vagarosos, Hattie esperou.
— Reverendo Severo Brown?
Ele se virou e apertou os olhos enquanto tentava reconhecer o
rosto dela. O olhar inicial de reconhecimento, foi logo substituído por
choque.
— Hattie? Meu Senhor Jesus Cristo, de onde veio? — ele
exclamou.
Ele olhou para o lado dela.
Hattie balançou a cabeça.
Seu “Sou só eu” foi recebido com uma carranca. O Reverendo
Brown se aproximou e segurou a mão de Hattie.
— Então, onde estão seus pais e Peter? Algo terrível aconteceu
a eles?
Essa era a pergunta que ela ruminou pela maior parte da manhã,
construindo uma resposta adequada.
— Meus pais e seu sobrinho ainda devem estar no mar, em
algum lugar ao largo da costa da África Ocidental. Devem chegar
em Freetown até o final do mês. Optei por não ir com eles. — ela
respondeu.
Hattie esperou. Ela havia concordado com Will que as mentiras
deveriam cessar. A verdade era que ela estava aqui em Londres e
os outros não. Não havia muito mais a dizer.
A mão envelhecida do Reverendo Brown apertou a dela de leve.
Ele sugou o ar com um ruído alto e começou a rir.
Quando ele enfim soltou a mão de Hattie, era quase um cacarejo
áspero. Ela o observou, perplexa.
Não era a recepção que ela esperava. Raiva, talvez, mesmo
uma dispensa sumária não teria sido surpresa, mas o riso decerto
não passou nem perto de seus pensamentos. Ela considerou
bastante inquietante.
Severo Brown era um homem que Hattie jamais compreendeu
de verdade. Ele era de fala mais mansa do que o sobrinho, mas ela
nunca se sentira à vontade na companhia dele. Seu nome sempre
lhe dera motivos para retesar.
— Não entendo. — ela enfim disse.
O riso do Reverendo Brown esmaeceu para um sorriso.
— É porque você não aceitou a plenitude do propósito de Deus
para você, minha filha. Embora estar aqui, e não a caminho de se
tornar esposa de um missionário, me diga que ele falou ao seu
coração. — ele respondeu.
Seus pais eram preto no branco quando se tratava do papel
deles na igreja, Peter ainda mais. Receberam o chamado para
pregar e converter, portanto, ela também deveria. Para eles, o papel
de vida dela estava mais do que definido.
— Eu disse a esse meu sobrinho cabeça-dura que ele não tinha
direito algum de forçá-la a se casar com ele. Ele, é claro, em sua
teimosia habitual, não ouviu. Seus pais nunca deveriam tê-lo
encorajado. Eu conversei com seu pai na semana em que partiram.
Ela ficou surpresa com as palavras. Alguém viu seu desespero, e
ela foi cega para isso. O Reverendo Brown, de todas as pessoas, a
defendera. Se ela soubesse, grande parte da dor que se seguiu
poderia ter sido evitada.
— Tornou-se uma moça corajosa, Hattie Wright, e estou certo de
que nosso Pai Celestial teve um dedo nessa evolução. Ele
precisava de você para o trabalho da igreja aqui em Londres.
Venha. — ele disse.
Hattie o seguiu pela porta de onde saiu. Logo estavam na
pequena cabana de pedra adjacente à igreja.
— O acendimento das velas pode esperar. Ninguém estará em
oração tão cedo no dia. — ele disse.
Enquanto Hattie se sentava à mesa da cozinha, o Reverendo
Brown puxou duas xícaras da prateleira e começou a se ocupar.
Uma vez por semana, uma das paroquianas vinha limpar a casa e
reabastecer a pequena despensa, mas fora isso, o Reverendo
Brown se cuidava sozinho.
— Seu irmão a acolheu? — ele perguntou.
Apesar de seu ponto mais baixo, Hattie sabia que nunca deveria
mentir para um sacerdote. Ela estava feliz por estar de volta ao
caminho de seu antigo eu, um livro aberto.
— Fiz outros arranjos a curto prazo. Meu irmão não sabe que
voltei à Inglaterra, mas vou procurá-lo quando estiver pronta. — ela
respondeu.
O Reverendo Brown entregou uma xícara de chá pálido e fraco.
As folhas de chá eram reutilizadas muitas vezes antes de serem
jogadas na terra da pequena horta na parte de trás do vigário.
— Entendi. Então, minha querida, voltou para continuar seu
trabalho comigo?
— Sim, por favor. Eu adoraria voltar para casa. — Hattie
respondeu.
O Reverendo Brown arranhou os fios desgrenhados de barba
branca em seu queixo. Ele apontou para um pequeno balde de
madeira no canto. Hattie levou esse mesmo balde para o mercado,
retornando com ele cheio, mais vezes que podia se lembrar.
— Bem, sugiro que comece a trabalhar nas míseras cenouras
que consegui obter de Covent Garden esta manhã. Os comerciantes
não são tão generosos comigo como eram com você. Creio que
alguns deles podem estar com raiva de mim por deixá-la ir. Quando
terminar com eles, eu ficaria feliz em ouvir sua confissão.
Hattie enxugou uma lágrima. Não havia nenhum outro lugar do
mundo que ela preferisse estar do que sentada no degrau quebrado
do lado de fora da igreja descascando cenouras.
Ela iria devagar com as cenouras. A lista de pecados para
compilar para essa confissão era bem longa.

O humor feliz de Hattie por estar de volta à paróquia de St. John e


por receber a bênção do Reverendo Brown durou até retornar à Rua
Newport. A reação de Will ao descobrir que ela havia se aventurado
para fora de casa desacompanhada não foi tão agradável.
— Pensei que concordamos que seria honesta comigo. — ele
disse.
As palavras dele, embora proferidas em tom uniforme,
contrastavam com a mão direita, que batia alto na mesa da sala de
café da manhã.
— Eu não menti. Apenas saí sem o avisar. Não pode esperar
que eu fique zanzando pela casa até que se levante. Metade da
manhã passaria até lá. — ela respondeu.
Após a alegria inesperada de descobrir que Severo Brown
estava mais do que feliz em recebê-la de volta ao rebanho, Hattie se
recusava a permitir que o mau humor de Will levasse a melhor. Ele
era bem-vindo a ficar tão zangado quanto quisesse.
Não era como se fosse a primeira vez que ela fazia a caminhada
até Holborn por conta própria. E não seria a última, se ela tivesse
algo a dizer sobre o assunto.
No entanto, a ideia a fez se retesar. Ela puxou uma cadeira e
sentou-se à mesa, não querendo argumentar seu caso como uma
criança recalcitrante obrigada a se sentar diante de um genitor
descontente.
— Lamento que não tenha conhecimento do acordo que existia
nesta casa antes de assumir a locação. Eu sempre vou a pé para
St. John e St. Giles. — ela explicou.
— Desacompanhada? — ele questionou.
E lá estava, a razão da ira dele. Ele temia por sua segurança.
Enquanto revirava o cérebro em busca de uma resposta adequada,
que não alimentasse mais a ira, Hattie observou Will. Era intrigante
ver um homem como Will precisar se esforçar para controlar suas
emoções.
Estava claro que ele não gostava da exibição do próprio mau
humor. Ela se perguntou se ele se sentia envergonhado com a
aparente incapacidade de controlar essa parte de si. Com toda a
certeza, ele era um homem que gostava de estar no controle
completo de qualquer situação.
As batidas na mesa cessaram.
— Não estou nada satisfeito com essa ideia de que você ande
por essa cidade sozinha, ainda mais porque seu bem-estar é da
minha responsabilidade. — ele acrescentou.
A voz dele estava tão calma quanto antes, mas ela pegou a
pitada de raiva ainda fervendo abaixo da superfície.
— O que gostaria que eu fizesse? Não posso tirar nenhum dos
Little do trabalho na casa. — ela rebateu.
— Eu poderia contratar uma dama de companhia. — as mãos de
Hattie se uniram com firmeza debaixo da mesa. O nó do primeiro
dedo estalou. — Sabe que isso é ruim para os seus dedos. — Will
disse.
Uma onda de calor tomou as bochechas dela. Quantas vezes a
mãe a instruiu a não estalar os dedos?
— Não sei, não observei nenhum problema em particular que
possa ser causado por isso. Tento não o fazer, mas é, como já
notou, um hábito gerado por meu nervosismo. — ela respondeu.
O que Will não sabia, para o prazer secreto de Hattie, era que
estalar os nós dos dedos também era algo que fazia quando estava
feliz.
Se ela andasse por aí com uma criada a reboque, havia uma boa
chance de ser reconhecida. Perguntas seriam feitas. Não demoraria
muito para que a verdade escandalosa da situação doméstica no
número quarenta e três da Rua Newport se tornasse pública.
O sobrinho viúvo do bispo de Londres vivendo com uma mulher
solteira da sociedade gentílica sob seu teto seria a conversa da
Sociedade. Pior de tudo, o irmão dela descobriria e seria o inferno
na Terra. Will conseguiria pressionar Edgar a aceitar a proposta de
casamento com Hattie. Ela não conseguiria fazer objeções.
— Preciso poder continuar o meu trabalho. Essa é a razão para
meu retorno. Uma acompanhante dificultaria meu trânsito nos
cortiços. Eu seria um alvo.
A resposta dela foi lenta e comedida. Ela não era tola para tentar
a besta protetora que vivia dentro de Will. Precisava dirigir a
mensagem ao outro homem que ele era, o homem com um passado
secreto. Um passado que ela sabia incluir viver com perigo.
Esse homem entenderia a necessidade de ela ser invisível nas
ruas de St. Giles. Uma acompanhante só traria atenção indesejada
dos vilões que também viviam nessa região.
Ele voltou a dedilhar na mesa. Hattie permaneceu em silêncio.
— Não me sinto nem um pouco confortável com esta situação,
mas até que eu possa convencê-la de que esta não é a vida que
deveria estar vivendo, estou preparado para acompanhá-la. Mas,
reservo-me o direito de mudar essa decisão caso eu sinta que seu
corpo ou sua reputação estão sob ameaça. Estamos de acordo? —
ele disse.
Hattie assentiu.
— Concordo.
Ela estava preparada para ameaçar se mudar para a casa
paroquial em St. John. No entanto, Will não era um homem que
aceitava ameaças com facilidade. Ela havia vencido essa rodada da
batalha e sabia que não deveria forçar a própria sorte.
Capítulo Trinta e Três

W ill acordou com um susto. Ele estava lendo um livro em seu


escritório após o jantar e cochilou.
Seu ouvido zumbia. Se um pelotão de gaiteiros escoceses
estivesse tocando na sala, não conseguiria soar mais alto.
Algo estava mais errado do que ele conseguiria imaginar
Algumas pessoas eram dotadas de premonições que as
advertiam do perigo, para Will era a orelha esquerda. Sempre que
alguém com quem ele se importava estava perto do perigo, um
súbito toque agudo começava.
Ainda jovem, ele chegou a pensar estar ficando louco quando
isso começou a acontecer. Voltando para casa após um passeio no
final da tarde no parque com as irmãs, o barulho encheu sua
cabeça. Ele parou, balançando a cabeça em uma tentativa vã de
afastar o som enlouquecedor.
Suas irmãs Caroline e Eve continuaram andando pela rua,
alheias à ausência dele. As duas não haviam avançado mais do que
cinco passos, quando de uma rua adjacente, um trombadinha
emergiu e tentou arrancar a retícula de Caroline com violência. O
pretenso ladrão recebeu vários golpes rápidos de Will na cabeça por
seus problemas e foi entregue às autoridades.
Foi só quando o zumbido aconteceu pela segunda vez que Will
começou a ver uma possível ligação. Ao longo dos anos, ele
aprendeu a não ignorar a mensagem óbvia dos deuses.
— Mas quem? — ele se perguntou.
Ele tirou o relógio de bolso do colete. Já passava das onze.
Quem ele conhecia e poderia estar nas ruas de Londres nesta hora
ímpia e se encontrando em perigo mortal?
Um calafrio gelado atravessou seu coração.
Hattie.
Ela possuía o hábito de sair de casa cedo e só voltar tarde. Ele
não a via desde a noite anterior.
Abrindo a gaveta superior da mesa, ele retirou sua fiel pistola.
Verificou-a. Estava carregada.
Em sua mão esquerda, ele segurava uma clava grossa, sua
arma de escolha para lidar com a escória vil que atacava inocentes.
Era de um peso reconfortante e se encaixava com perfeição na
mão fechada dele. Pelos anos em que andou pelas ruas escuras de
Paris, ele sabia que lhe permitiria segurar a maioria dos agressores.
Aqueles que fossem adeptos de brigar com faca ou punhos nus não
eram páreo para uma arma tão habilmente empunhada.
Chegando à base das escadas, ele encontrou o Sr. Little no
saguão.
— A Senhorita Hattie já voltou para casa esta noite? — ele
perguntou.
— Não, Sr. Saunders. Ela disse que chegaria tarde esta noite.
Ela ia ver alguns amigos, a família Mayford, após terminar o trabalho
na paróquia. A Sra. Mayford está muito perto da morte. A Senhorita
Hattie anda muito preocupada com ela. — o Sr. Little explicou.
— O senhor tem um endereço?
O mordomo balançou a cabeça.
— Não, só sei ser na Rua Plumtree.
Vendo a Sra. Little chegando pelas escadas inferiores, Will
sufocou a maldição que estava prestes a proferir. Hattie poderia
estar em qualquer lugar no labirinto imundo de casas superlotadas
na Rua Plumtree. Seria quase impossível encontrá-la se algo
tivesse acontecido.
Ele havia acabado de colocar o casaco e ia para a porta da
frente, quando a Sra. Little o parou.
— Ai, graças a Deus. — ela bufou, chegando ao topo das
escadas.
Atrás dela seguia um jovem, não mais do que dezesseis anos.
Ele estava com roupas imundas. Will girou a clava na mão, pronto
para usá-la, se necessário.
— Este é Joshua Mayford. Ele é amigo da Senhorita Hattie. Ela
está no jardim.
Will correu para as escadas. Os outros o seguiram de perto.
— Lá. — Joshua disse, enquanto saíam para o jardim.
À medida que seus olhos se acostumaram ao escuro, Will
conseguiu discernir a forma inclinada contra a parede de tijolos na
parte de trás do jardim. Quando o Sr. Little chegou segurando uma
lanterna acesa, Will deu a primeira olhada em Hattie.
Seu rosto era uma bagunça ensanguentada.
Ele ficou parado no lugar por um instante, enraizado.
Lembranças e imagens da noite fatídica em Paris com Yvette
atravessaram a mente dele. Ele estendeu a mão, desesperado para
tocar o fantasma que consumia sua visão.
— Hattie? — ele gaguejou, quando o feitiço se desfez.
— Sim, sou eu. Ou pelo menos o que resta de mim. — ela
respondeu com os dentes cerrados.
Will correu para o lado dela, e após escorregar duas mãos fortes
sob os braços dela, tentou ajudá-la a ficar de pé.
— Ai, ai! Solte-me, está me machucando! — ela chorou.
— Onde dói? — ele perguntou.
Hattie ofegou por ar.
— Em todo lugar. Creio que ele quebrou algumas das minhas
costelas.
Ela segurou a mão de Will e com grande esforço conseguiu
enfim se afastar da parede. Eles caminharam em direção à casa,
parando a cada poucos metros, para Hattie recuperar o fôlego.
Joshua os seguiu.
Assim que entrou, Will sentou Hattie com cuidado nos degraus
que levavam ao térreo da casa. A Sra. Little entrou na cozinha e
voltou com trapos frescos e uma tigela de água morna. O Sr. Little
foi enviado para localizar e trazer o médico da Família Saunders.
Will pegou um dos panos para limpar o sangue do rosto de
Hattie. Ela estremeceu quando chegou à fonte do sangue, um corte
feio no alto da testa. A aparência do corte denunciava que uma
lâmina foi a responsável. A ferida exigiria pontos.
— Segure isso com firmeza sobre o corte em sua cabeça. — a
Sra. Little ordenou.
Ele se virou para o rapaz que trouxe Hattie para casa e o
convocou.
— O que aconteceu? — ele perguntou.
Joshua olhou para Hattie, mas ela estava muito ocupada
tentando respirar para lhe dar qualquer resposta.
— A Gangue da Rua Belton. Eles não gostam de pessoas que
tentam ajudar nos cortiços. A senhorita Hattie enfrentou Tom, meu
chefe esta noite, e ele a espancou. Era para ensiná-la uma lição por
entrar no cortiço dele sem permissão. — Joshua respondeu.
Will fixou o olhar no de Joshua.
— Seu chefe?
Joshua deu um passo para trás. Os ombros caíram. Will pensou
que o menino estava perto das lágrimas enquanto observava a Sra.
Little mudar o pano encharcado de sangue na testa de Hattie.
— Tenho uma mãe doente e uma família para cuidar, senhor.
Quando a Senhorita Hattie partiu para a África, a gangue foi a única
oferta de ajuda. Não tive escolha.
— Não é culpa do Joshua. — Hattie disse.
Will controlou o gênio e a língua. Agora não era hora de
repreender Hattie por ser tão estúpida a ponto de entrar em uma
briga com uma gangue criminosa. Ele esperaria até que o rosto
tivesse sido suturado, e o médico examinasse seus outros
ferimentos antes de terem a conversa.

— A situação é insustentável.
Hattie abriu os olhos e virou a cabeça na direção da voz. À
medida que o olhar ganhou foco, fixou-se na figura sentada em uma
cadeira ao lado da porta.
— Will? — ela disse, a voz ainda cheia de sono.
Ele se levantou da cadeira, mas ao fazê-lo, outra figura ali se
mexeu e chamou a atenção dela.
Sentada ao lado da lareira, a Sra. Little bocejou e se esticou.
Vendo que Hattie agora estava acordada, ela correu para a
cabeceira da cama.
— Como está, minha doce menina? Ficamos tão preocupados
quando Joshua a trouxe ontem à noite. Devo confessar que quando
a vi pela primeira vez, temi o pior.
Hattie tentou sentar-se reta na cama, mas uma pontada de dor
aguda em seu lado esquerdo, logo a fez decidir pelo contrário.
Colocando uma das mãos no peito, ela sentiu a maior parte das
ataduras enroladas em torno das costelas. Ela voltou a deitar-se na
pilha de travesseiros.
— O médico diz que contundiu pelo menos duas, talvez três
costelas. Levará alguns dias para o inchaço diminuir, e podermos
descobrir se alguma delas foi quebrada. Para ser honesto, nunca
achei que as quebradas fossem um problema tão grande, são as
contusões que sempre me deixam sem fôlego. — Will disse.
— Ah. — Hattie respondeu, lembrando-se dos eventos da noite
anterior.
As coisas na casa Mayford escalaram depressa. Em um minuto,
ela estava ajudando a Sra. Mayford banhando-a na cama, no
próximo ela estava face a face com o chefe furioso da gangue
Belton.
Membros da gangue acompanharam Joshua e Baylee até em
casa e decidiram que assistir à Sra. Mayford, uma inválida,
enquanto ela estava seminua era um bom esporte. Quando Hattie
pediu que respeitassem a privacidade da Sra. Mayford, seu campo
de visão foi logo tomado por vermelho e a boca se encheu de
dentes quebrados. O chefe da gangue da Rua Belton deu um
discurso aos berros, antes de atacar Hattie com punhos e botas
pesadas.
— Fiquei aborrecida por ele sentir que ele e seus bandidos
poderiam tratar a Sra. Mayford com tão pouca consideração pela
dignidade dela. O que não percebi, até ser tarde demais, era que eu
havia desafiado a autoridade dele com plateia.
Punhos a acertaram até que caiu inconsciente, sendo deixada no
chão. Com o fim do esporte de espancar uma mulher indefesa, a
gangue logo se cansou da casa dos Mayford e foi embora.
Quando Hattie recuperou a consciência, ela ficou de fato
surpresa ao descobrir ter sobrevivido ao ataque.
— Foi Joshua quem me ajudou a voltar para cá. Demorou algum
tempo porque eu continuava desmaiando.
A Sra. Little ocupou-se com o quarto, adicionando mais lenha ao
fogo e alisando as cobertas da cama. Após procurar qualquer outra
tarefa menor para ocupar seu tempo, ela veio ficar de pé, perto de
Will.
— Concordo com o Sr. Saunders, senhorita Hattie. Não pode
continuar assim, algo ainda mais terrível do que a noite passada
acontecerá com você sem a proteção da família. Há muitos neste
mundo que não apreciam seus excelentes esforços. — ela disse.
Will assentiu, em óbvio acordo.
Hattie fechou os olhos e desejou que ambos saíssem. A dor dos
ferimentos agora se infiltrava nos ossos. O corpo inteiro doía.
Quando um farfalhar de saias sinalizou a partida da Sra. Little,
Hattie abriu uma fresta em um olho.
— Não tem tanta sorte. Eu ainda estou aqui. — Will disse.
Ele puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da cama.
— Quero que me ouça. Coloque seu orgulho teimoso de lado por
um segundo e pense na situação atual.
Considerando a dor que sentia, além das ataduras grossas,
Hattie teve pouca escolha além de se deitar e ouvi-lo. Ela levantou
os dedos das roupas de cama em aceitação silenciosa.
— Bom. — ele disse.
Will vasculhou o bolso da jaqueta e puxou um pedaço de papel
dobrado.
— Fiz uma lista enquanto estava dormindo.
Hattie gemeu em uma mistura de dor e nojo indisfarçável. Will
acenou uma dispensa a seus protestos.
— Primeira coisa. Entrarei em contato com seu irmão. Isso é
inegociável. Ao vivermos sob o mesmo teto sem acompanhantes,
fizemos o bastante para causar um grande escândalo.
Hattie franziu a testa. Ela pouco se importava com a sociedade,
e duvidava que fizesse qualquer comentário com o nome dela ou o
que ela fazia.
Will bufou.
— Pode não se importar com a própria reputação, mas eu tenho
uma para manter. Deus sabe o dano que os últimos acontecimentos
causariam às minhas chances de garantir um assento no
parlamento caso esse arranjo doméstico escandaloso se torne
público.
— E o resto da sua lista? — ela respondeu.
O que quer que ele tenha planejado, ela duvidava ser pior do
que lidar com Edgar.
Will amassou o pedaço de papel em uma bola apertada e jogou-
o na lareira.
— Na verdade, essa era toda a minha lista. Acredito que, assim
que seu irmão for informado de sua presença em Londres,
quaisquer outros planos que eu possa ter para você serão anulados
por ele. A partir daí, precisarei negociar com o Edgar. — ele disse.
Lágrimas quentes se formaram nos olhos dela. Um encontro com
o irmão estava fadado a acontecer, mas até agora somente ela
ditava a hora e o lugar. O sempre controlador Will, decidira tirar essa
decisão das mãos dela.
— Precisamos mesmo envolver meu irmão? Eu não poderia
apenas ir embora para algum lugar e enviar uma carta informando-o
da minha chegada segura? — ela ofereceu.
Will limpou a garganta.
— Precisarei de mais do que uma sugestão menos do que sutil
de “ficarei mais do que bem se partir sozinha” para me dissuadir de
falar com Edgar. Uma razão sólida e verdadeira talvez ajudasse em
sua causa.
A esperança dela se acendeu.
Se ela contasse para Will a causa real da divisão familiar, ele
poderia ser convencido da necessidade de encontrar outra solução
para o problema deles. Ao menos para ela, os arranjos atuais eram
mais do que satisfatórios.
Will era o inquilino perfeito. Ele mantinha a casa bem
administrada. A despensa estava sempre cheia de comida. E além
do desacordo contínuo no tocante à gata, Brutus, a harmonia
doméstica reinava. Ela era cem por cento a favor do status quo.
— Tudo bem, vou contar o que aconteceu entre mim e Edgar.
Após me ouvir, pode se ver mais inclinado a considerar me ajudar a
encontrar outra solução.
Ela fez alguns ajustes nos travesseiros e, em seguida, demorou
para ficar o mais confortável que os ferimentos permitiriam.
Enquanto isso, Will ficou em silêncio. Esperando.
Hattie o olhou bem nos olhos. Duas esferas quentes e
acolhedoras que a convidavam para se soltar e cair nelas. Ele deu-
lhe um sorriso encorajador.
Para sempre, ela marcaria esse instante como o segundo exato
em que ela percebeu com todo o seu ser que estava apaixonada por
Will. Pequenos lampejos de emoção vinham se agitando nela desde
aquele primeiro dia no mercado de Gibraltar. No navio, ela lutou com
bravura para não se apaixonar por ele. Contudo, ao olhar para Will,
tudo o que sentia por ele se fundiu em algo poderoso. Amor não era
mais um conceito, mas uma realidade inegável.
Ela desejou que ele a pegasse nos braços como naquele dia e a
beijasse mais uma vez.
Will ajeitou-se mais à frente da cadeira, as mãos entrelaçadas de
leve. Do lado de fora, a primeira luz do dia estava se rompendo. Via
de regra, Will não era um madrugador, então ela sabia que ele não
teria nenhum compromisso até mais tarde naquele dia. Ele agia
como se tivesse todo o tempo do mundo para ouvi-la, e ela ficou
grata.
Ele estava permitindo que ela tomasse as rédeas. Poderia ditar o
ritmo da verdade. Ela acolheu a confiança, sabendo que era difícil
conquistá-la após tudo o que disse e fez a ele.
— É uma longa história. — ela ofereceu.
— Não vou a lugar nenhum e nem você. — ele respondeu.
Hattie começou a rir do ridículo da situação, mas a gravidade
dos ferimentos nas costelas logo puseram fim à alegria. Ela se
perguntou se algum dia se sentiria inteira de novo.
Não havia mais nada a fazer a não ser contar a verdade e
esperar que ele entendesse.

— Quando meus pais se tornaram seguidores do Reverendo Severo


Brown, Edgar e eu ficamos chocados. Nós pensamos ser uma fase.
Mais uma das longas fantasias fugazes de Papai. — ela disse.
Will viu o suficiente das muitas coleções de objetos, papéis e
móveis espalhados por toda a casa para entender o que Hattie
queria dizer. Aldred Wright, estava claro, possuía o traço inglês de
excentricidade. Por que mais alguém iria querer uma coleção de
olhos de cerâmica?
— Era estranho que mamãe fosse às reuniões da igreja com ele.
Ela nunca foi mais religiosa do que a ponto de aparecer às missas
nas manhãs de domingo. — ela continuou.
Will assentiu. Para muitos, inclusive para a mãe dele, a missa
dominical era uma oportunidade de se encontrar com amigos e
compartilhar boas novas. A adoração não passava de uma parte
obrigatória de suas vidas.
A conversa foi interrompida neste instante pelo retorno da Sra.
Little carregando uma bandeja com um bule de chá e duas xícaras.
Ela a deixou na mesa de cabeceira.
— Gostaria de algo para o café da manhã, minha querida? —
Ela perguntou a Hattie.
Pouco importava que Will fosse o dono da casa e empregador,
era óbvio que a lealdade da Sra. Little estava com Hattie.
— Não, obrigada, mas estou certa de que o Sr. Saunders deve
estar com fome. — Hattie respondeu.
— Ah, sei que ele está, o café da manhã dele já está assando no
forno. — a Sra. Little disse e deu um sorriso feliz a Will.
A boa opinião acerca da governanta melhorara para Will. Talvez
houvesse esperança de que ele viesse a ser visto como o dono da
própria casa.
Após a Sra. Little sair, ele se inclinou e serviu uma xícara de chá
quente do bule que estava na mesa de cabeceira. Ele ofereceu a
Hattie, mas ela dispensou com um aceno.
— Meu estômago ainda não está em seu melhor — ela explicou.
— Deve ser o láudano que precisamos ministrar de madrugada.
Era a única maneira que o médico pensou para obrigá-la a ficar
parada por tempo suficiente para dar os pontos no seu rosto. Para
uma inválida, você decerto trava uma boa luta. Ele ficou muito
descontente quando você tentou dar uma cotovelada no nariz dele.
Ele bebeu o chá, lembrando-se de falar com o Sr. Little para
encontrar um fornecedor decente de grãos de café. Fazer a viagem
até a Cafeteria na Rua Oxford todos os dias apenas para conseguir
uma xícara de café palatável era uma tarefa árdua. O chá era um
substituto pobre para o preto sedoso dos grãos de café sul-
americanos.
— Estava falando da sua mãe. — Will disse.
Ele precisava extrair a verdade de Hattie se quisessem avançar
nesse relacionamento.
O pensamento o fez retesar. Havia um relacionamento entre ele
e Hattie. Era estranho e, às vezes, desconfortável, mas um
relacionamento mesmo assim.
Definir e solidificar a verdadeira natureza desse relacionamento
dependeria muito da resolução de sua atual situação doméstica.
Enquanto Hattie continuasse a residir sob o mesmo teto que ele,
Will sabia que ela nunca baixaria a guarda por tempo suficiente para
ele ter a chance de capturar seu coração.
Ele baixou a xícara. Uma calma agora aquecia sua alma. Ele
queria o coração dela.
— Minha mãe deu apoio total ao desejo de meu pai de fazer o
bem. Foi ela quem sugeriu que trabalhássemos com os pobres e
indigentes de Londres. A oração não era suficiente. Precisávamos
fazer algo nesta vida para corrigir as injustiças do mundo. No fim,
suponho que foi isso que me fez concordar com as ideias deles. Eu
cresci com o melhor de tudo. A família do meu pai vem da alta
classe latifundiária. Nunca senti falta de nada que desejasse na
vida.
As palavras dela foram encorajadoras. Até agora, a história fazia
sentido com tudo o que Hattie lhe dissera e o que seus agentes em
Londres conseguiram descobrir. No entanto, ele sentia que ela
estava arrastando o conto para adiar ainda mais a parte em que
falaria do irmão.
— Hattie, Edgar representa uma ameaça para você? Quando ele
descobrir que está na Inglaterra, ele procuraria colocá-la no primeiro
navio para a África?
A experiência o fez entender bem que dançar em torno de um
assunto difícil não era uma boa ideia. Chegar à verdade do assunto
significava que qualquer dor resultante seria tratada com mais
velocidade.
Hattie balançou a cabeça, e as esperanças de Will aumentaram.
— Não, Edgar jamais me prejudicaria, seja de que maneira. E
posso garantir que ele seria a última pessoa a me enviar para
nossos pais. Era ele que eu esperava que me salvaria de ir. — ela
respondeu.
Will fez o seu melhor para amortecer o entusiasmo. Ele sabia
estar se aproximando do cerne da questão. Decidiu se aventurar
mais perto.
— Entretanto, ele não a salvou, não é? Ele não chegou no
cavalo branco. A verdade é que seu cavaleiro de armadura brilhante
falhou com você. Se fosse eu, em vez de evitá-lo, eu gostaria de
saber o porquê. Se ele sabia que você não queria ir para a África,
então por que ele a abandonou?
Capítulo Trinta e Quatro

— É a coisa certa a fazer. A única. — Will murmurou para seu


reflexo no espelho.
Dia após dia, as barreiras entre Hattie e ele caíam. Passos
pequenos, mas seguros à frente estavam sendo dados na
campanha para conquistar o coração dela. Hoje, ele daria o primeiro
passo grande nesse caminho que agora via à frente dele. Hoje, ele
faria o que ele e Hattie combinaram. Ele se encontraria com Edgar
Wright.
Ao contrário do habitual, ele acordou cedo e estava pronto para
sair de casa bem antes do meio-dia. Antes de ir ao White's, ele
planejava parar em seu café habitual na Rua Oxford e se fortificar
com duas xícaras fortes de seu melhor café brasileiro.
Escorregando para fora de casa, ele fez questão de evitar Hattie.
Não precisava que ela mudasse de ideia no último minuto. Ela
estava se recuperando bem dos ferimentos e apenas na noite
anterior mencionou a pergunta, de quando Will acreditava que ela
poderia estar bem o bastante para retornar a Paróquia de St. John.
Ao chegar no White’s, Will verificou com o atendente do dia. Fiel
às fontes, o homem confirmou que Edgar Wright estava de fato
presente no clube pouco antes do almoço.
Teria sido mais simples visitar o irmão de Hattie na casa dele,
mas Will decidiu que o primeiro encontro dos dois deveria ser em
público. Não havia como saber que reação Edgar teria ao saber que
a irmã mais nova solteira estava vivendo sob o mesmo teto que um
jovem viúvo.
Ele escreveu um bilhete e pediu que o atendente do clube o
repassasse para Edgar.
Enquanto esperava, Will sentou-se em uma alcova. Virado para
a porta da frente, ele recitou as primeiras palavras que planejava
dizer. Uma saudação inicial bem ensaiada sempre ajudava a
estabelecer o controle no início de uma reunião.
O atendente logo retornou e escoltou Will até onde Edgar Wright
estava sentado.
— Sr. Wright?
Edgar olhou para cima, e Will viu o olhar de reconhecimento
cruzar o rosto do homem. O irmão de Hattie levantou-se da cadeira
e estendeu a mão para Will.
— Voltamos a nos encontrar. William Saunders ao seu dispor,
senhor. — Will disse.
Após sentar-se na cadeira oposta a Edgar, Will levou um minuto
para realizar um estudo mais detalhado do irmão de Hattie. Eles
eram bastante semelhantes em aparência. Compartilhavam os
mesmos olhos castanhos quentes e cabelos claros, cor de palha.
Ele ficou satisfeito em notar que Hattie não possuía as mesmas
características faciais longas, quase equinas, de Edgar.
— Enviou um bilhete pedindo para me ver. — disse Edgar.
Will respirou devagar e fixou-o com um olhar de aço.
— Vim falar de sua irmã. — ele disse.
Os olhos de Edgar se estreitaram, a desconfiança evidente
neles. O encontro na Catedral de São Paulo não era a grande
coincidência que ele havia sido levado a acreditar.
— Se minha irmã vem incomodando o senhor, ou os membros
de sua família por doações, peço desculpas. Tenha certeza de que
não vai incomodá-lo mais por muito tempo. Se é que o fará. Meus
pais a levaram com eles em uma missão na África.
Will notou o tom de angústia na voz de Edgar. Ele não esperava
rever a irmã.
— Não, não vim falar do trabalho filantrópico dela. O que diria se
eu lhe contasse que Hattie está em Londres, que está vivendo sob
minha proteção? — respondeu Will.
O comportamento de Edgar mudou de imediato. Ele pulou da
cadeira e pairou acima de Will. As mãos estavam estendidas na
frente dele, prontas para atacar.
— O que fez com ela, seu canalha? Se a machucou, vou acabar
com sua existência miserável. — ele disse.
Os olhares de soslaio de outros membros do clube deixaram os
nervos de Will no limite. Ele não gostava de ser o centro das
atenções, até mesmo festas o deixavam desconfortável.
— Por favor, retome sua cadeira, Sr. Wright, o senhor está
causando uma cena. Enquanto não o fizer, não continuarei esta
conversa. Eu vim aqui de boa-fé e apenas com o bem-estar de sua
irmã em mente. Se dependesse dela, eu não estaria aqui de jeito
nenhum. Agora sente-se. — Will disse.
O olhar no rosto de Edgar foi de choque. Estava claro que não
se tratava de um homem acostumado a ter outro falando com ele de
tal maneira. Bufou com o comando de Will, mas fez o que lhe foi
dito.
— Bem? — Edgar disse, voltando a sentar-se.
— Hattie está segura e morando na casa dos pais de vocês.
Assumi o contrato de locação há pouco tempo, e resido nesse
mesmo endereço.
Considerando os recentes ferimentos de Hattie, Will sabia que
sua declaração acerca do estado de saúde de Hattie era uma
deturpação da verdade. Entretanto, como Edgar descobriria a
verdade sobre Hattie em breve, Will decidiu que não precisava
obscurecer a conversa com essa notícia.
Primeiro, ele precisava estabelecer confiança.
Portanto, Will passou a próxima meia hora ou mais recontando a
história de como Hattie pulou do navio em Gibraltar, e como ele a
trouxe de volta a Londres. Will decidiu ser melhor não mencionar
vários dos aspectos mais delicados desse conto. Não ajudaria sua
causa se Edgar Wright pensasse que Will havia se aproveitado da
irmã vulnerável.
— E ela estava morando no andar de baixo todo esse tempo,
sem que você soubesse? — perguntou Edgar.
Will adotou seu melhor ar desinteressado.
— Sim. Foi um choque quando descobri o esquema dela. — ele
respondeu.
Assim que as palavras saíram de seus lábios, ele observou
atento à reação de Edgar. Ele endireitou-se na cadeira e respirou
fundo. Um movimento simples, mas que falava muito a Will. Hattie
havia acabado de ser chamada de mentirosa, e Edgar estava se
preparando para defendê-la.
Bom. Já era tempo de alguém na família importar-se um mínimo
com ela.
— Embora eu compreenda as razões dela com perfeição, Hattie
explicou a difícil situação que surgiu na família de vocês, antes de
os pais partirem para a África. Ela sentiu que não podia se
aproximar do senhor, e assim se abrigou com os criados mais
confiáveis da família. — Will acrescentou.
As últimas palavras tiveram o efeito que ele desejava em Edgar.
Os ombros do irmão de Hattie caíram, e seu olhar foi ao chão.
Sentado e observando como a mais triste das emoções se
desenrolava no rosto de Edgar, Will soube ter tido uma real
avaliação do homem. Edgar era exatamente o tipo de irmão que ele
esperava que fosse para Hattie.
— Será que ela quer me ver? — Edgar enfim perguntou.
Will sufocou um sorriso de satisfação consigo mesmo enquanto
seu plano se desenrolava diante dele.
— Isso poderá ser arranjado. Entretanto, em primeiro lugar,
precisamos resolver a situação relativa ao local de moradia. Como
pode entender, é muito inadequado que ela e eu vivamos sob o
mesmo teto enquanto não estamos casados. — Will respondeu.
Mais uma vez, ele escolheu as palavras com cuidado. Plantando
as primeiras sementes na mente de Edgar.
— Claro que sim.
— Estive esperançoso de que a receba em sua casa. Desta
maneira, permitiria que eu cortejasse sua irmã segundo as
expectativas da Sociedade. Fomos forçados a compartilhar uma
cabine no navio de retorno à Inglaterra, por isso sinto uma profunda
obrigação de pedir a mão da sua irmã em casamento. — Will disse.
Edgar olhou Will de cima a baixo. Will sabia quando outro estava
tentando avaliá-lo. Ele deu um aceno de cabeça silencioso ao irmão
de Hattie. Ela precisava de um campeão do seu lado, alguém que
não tivesse motivos de interesse próprio.
— Se deseja cortejar minha irmã, eu precisaria saber mais sobre
sua pessoa, Sr. Saunders. Como deve estar ciente, Hattie estava
noiva do jovem que acompanha minha família à África. Algo me diz
que ela pode ficar um pouco mais cautelosa com um segundo
noivado. Pode ser preciso algum convencimento da sua parte.
Hattie, por vezes, é conhecida por ter opiniões firmes e teimosas. —
Edgar respondeu.
Will riu.
— Não me diga. Qualquer um pensaria que o senhor
considerava que sua irmã tem vontade própria.
Edgar fez cara feia.
— É um homem corajoso, concordarei com isso. Contudo, conte-
me William Saunders, está pretendendo cortejar Hattie só porque
sente que pedir a mão dela é o gesto honrado, ou tem afeição
genuína por ela? Ela merece fazer um bom casamento. Não a
obrigarei a uma união que não seja da escolha dela.
Will decidiu que o futuro cunhado merecia ser informado o
máximo possível da verdade. Ele esperava que a discussão não
terminasse com ele sendo desafiado a duelar com Edgar ao
amanhecer em Hampstead Heath, ambos com pistolas em mãos.
— Tenho sim, um grande carinho por Hattie. Também é
necessário que o senhor saiba que compartilhamos a cama no navio
e assuntos de natureza íntima ocorreram entre nós. Dito isto, não
arruinei sua irmã. O Pastor Brown já havia se forçado a ela, antes
de deixarem Londres. Ao contrário da situação com o pastor, foi
decisão de Hattie dar início ao nosso caso. Também foi decisão dela
terminá-lo, antes mesmo de chegarmos a Londres.
Era indecoroso e nojento falar de Hattie assim. Will sentiu estar
traindo a confiança dela ao informar o irmão de tais assuntos
privados:
— Eu já havia decidido propor casamento à sua irmã antes de
nosso relacionamento avançar. A princípio, senti a honra vinculada.
Agora, a ideia de fazê-la minha esposa é algo por que anseio. Por
isso, é imperativo que ela saia da minha casa e vá para a sua. —
Will respondeu.
Edgar ficou em silêncio por um tempo. As revelações de Will
foram suficientes para fazer qualquer homem que valorizasse a irmã
e a reputação dela retesar.
— Responda-me algo, William. Pretende trazer Hattie de volta ao
rebanho da Sociedade? Minha irmã merece mais do que passar o
resto dos dias trabalhando na imundície e degradação de St. Giles.
Will assentiu. Se ele conseguisse o que pretendia, Hattie nunca
mais colocaria os pés na Rua Plumtree após casarem-se.
Ante essas palavras, Edgar levantou-se da cadeira e ofereceu a
mão mais uma vez para Will.
— Perceba que teremos uma luta imensa em nossas mãos.
Hattie não quererá sair do número quarenta e três da Rua Newport,
mesmo que o senhor ainda esteja residindo lá. Quanto ao trabalho
dela com os pobres, não sei como encontrará uma solução viável
para esse problema.
Ele chamou um atendente.
— Vamos selar nosso acordo com uma das melhores garrafas
do White’s e, em seguida, o senhor me acompanhará à minha casa
em Newport. Desejo que fale com minha esposa. Se alguém pode
ajudar com a nossa causa mútua, é Miranda.
Capítulo Trinta e Cinco

H attie estava parada do lado de fora da porta fechada da sala de


estar formal de seus pais tentando, sem sucesso, acalmar a
respiração. Ela se doía para estalar os nós dos dedos. Ela olhou
para o vestido, não havia mais vincos invisíveis para alisar.
— Está ótima, minha querida. — a Sra. Little disse e acariciou de
leve o ombro de Hattie.
Quando a porta se abriu, e Will apareceu no limiar, a Sra. Little
deu-lhe um sorriso encorajador. Will estendeu a mão.
— Venha, Edgar está esperando. — ele disse.
Hattie entrou na sala. O discurso sincero que ela passara a
maior parte do dia anterior ensaiando estava pronto em seus lábios.
Edgar estava na janela, as mãos cruzadas à frente dele.
O olhar dele caiu de imediato no corte profundo na testa dela,
ainda com um curativo, e ele suspirou. O médico da Família
Saunders fizera um excelente trabalho ao dar pontos bem próximos,
mas Hattie carregaria a cicatriz para sempre.
Ambos deram um passo hesitante em direção ao outro.
— Ed. — ela mal conseguiu proferir. Ele abriu os braços, pronto
para puxá-la para um abraço, mas ela o impediu.
— Tive um encontro com algumas pessoas desagradáveis há
pouco tempo. Por mais que eu adorasse abraçá-lo, de todo o
coração, hoje ficaremos em um aperto de mão gentil.
Ele olhou para Will.
— O que é isso? Não mencionou que minha irmã foi ferida.
Will caminhou para a porta. Eles haviam concordado que seria
Hattie a contar para Edgar a história do que houve com ela nas
mãos dos bandidos da Belton.
— Vou deixar os dois sozinhos para se reconectarem. — Will
disse.
— Está tudo bem, Edgar. Vou explicar. Obrigada, Will. — ela
disse.
Após Will fechar a porta atrás dele, irmão e irmã ficaram a vários
metros de distância se olhando. Nenhum dos dois esperava por este
dia, por este milagre de reencontro.
— Ora, H. Graças a Deus que está segura. Todos os dias, desde
que partiu, vivo um pesadelo em vigília. Miranda chorou para dormir
tantas noites. Eu desmoronei com a culpa.
Hattie deu um passo à frente e colocou os braços ao redor dele
com cuidado. Edgar a abraçou de leve, como faria com uma criança
pequena. As lágrimas que Hattie conseguira segurar, enfim
irromperam. Enquanto isso, Edgar fazia cafuné no topo de sua
cabeça com o mesmo carinho de quando eram crianças. Hattie
soluçou com mais força a cada passada de dedos.
Quando ele enfim a soltou e deu um passo para trás, ela viu
lágrimas cintilando nos olhos dele. Um de seus sorrisos enormes e
desequilibrados se formou. Ela abafou as lágrimas e chorou.
— Qualquer um que nos visse pensaria que ficou feliz em me
ver. — ela disse.
— Não faz ideia de quanto. — ele respondeu.
Eles repararam o grande e confortável sofá floral que ficava
perto da janela. Um sofá em que passaram muitas horas sentados
lado a lado nos anos antes de Edgar se casar e sair de casa. Ela
estava grata por Will ter considerado adequado mantê-lo.
— Como está Miranda? Eu vi vocês dois na catedral não muito
tempo após meu retorno a Londres. Will me contou que têm um
filho.
Edgar segurou a mão dela na dele, e com tanta força, que Hattie
temia que ele nunca a soltasse. O arrependimento por não o ter
procurado naquele dia na catedral trouxe ainda mais lágrimas aos
olhos dela.
— Foram-nos concedidos dois milagres em um ano. Muito tempo
após termos perdido a esperança, fomos agraciados com um filho.
Ele é a criatura mais perfeita que já vi. Miranda mal pode esperar
para você conhecer seu sobrinho. — ele disse.
— Qual foi o seu segundo milagre? — ela perguntou.
— Você, claro. Hattie, nunca mais esperávamos vê-la.
Edgar respirou fundo.
— Sebastian nasceu no dia em que partiram para a África.
Miranda e ele quase morreram no parto. Eu recebi sua mensagem e
pretendia confrontar papai na manhã em que partiriam. Contudo, eu
não poderia sair do lado de Miranda. Só mais tarde naquele dia,
quando minha esposa e meu filho estavam seguros, foi que eu
enfim pude sair de casa para buscar você. Eu cavalguei como um
louco para o cais, mas o navio já havia zarpado. Nem posso
começar a dizer quantas lágrimas derramei naquele cais, pensando
que eu a tinha perdido para sempre.
Hattie passou a mão na bochecha do irmão. Edgar foi
confrontado com um terrível dilema. Ele fez o certo ao colocar a
segurança da esposa e do filho em primeiro lugar.
— Eu não a abandonei, Hattie. Mesmo após ter dito tantas
crueldades para Miranda, de que ela estava muito mais preocupada
com aparência e dinheiro, jamais desistimos de você. Nós sempre
soubemos que você não foi feita para a vida de um missionário na
selva africana. Estou muito grato por você perceber isso também,
antes de ser tarde demais. O que fez em Gibraltar foi mesmo muito
corajoso.
Ela sorriu de leve. Não deve existir muitas outras moças em
Londres que conseguiriam essa façanha de ousadia.
— Ele é um bom homem, o seu Sr. Saunders, — Edgar disse.
Hattie piscou, surpresa com a súbita mudança de tópico.
— Ele não é o meu Sr. Saunders. — ela respondeu.
— Sério, não creio que ele veja a situação assim. Ele foi mais do
que vago quanto aos detalhes do que aconteceu entre vocês dois a
bordo do Canis Major, mas sei o suficiente para concordar com o
pedido do Sr. Saunders de cortejá-la. Hattie, você precisa de um
marido e conhecendo a família do Sr. Saunders, você seria um tanto
pressionada a repensar melhor. Existem algumas realidades que
precisará enfrentar e se casar com William Saunders é uma delas.
Ela se levantou do sofá. Meio que esperava essa posição de
Edgar. Will não era tolo, ele veria Edgar como o meio de pressioná-
la quanto ao casamento.
— O que acontece agora? — ela perguntou.
— Bem, o Sr. Saunders e eu concordamos que você se mudará
para a minha casa. Entretanto, antes que isso aconteça, preciso que
você me explique o que aconteceu com você. Por que eu não posso
abraçá-la tanto quanto preciso desesperadamente, e o que
aconteceu com o seu rosto?
— Irritei o chefe de uma das gangues criminosas da região da
Rua Plumtree. Ele me deu uma surra que me deixou com essa
cicatriz e uma série de costelas bem contundidas.
O choque e a angústia que apareceram no rosto de Edgar
coincidiam com os de Will na noite em que Joshua a trouxe para
casa. As jovens de seu círculo social levavam vidas protegidas.
Lacaios e criadas de confiança a tiracolo garantiam que ninguém se
aproximasse delas.
Jovens mulheres solteiras da nata da sociedade teriam um tanto
de dificuldade para apontar para St. Giles em um mapa, quanto
mais estarem dispostas a colocar os pés naquelas ruas perigosas.
Ele estava prestes a abrir a boca, e Hattie sabia que um
pronunciamento acerca das obras de caridade logo seria proferido.
Ela ensaiou bem seu próprio discurso.
— Estou preparada para ir morar com você e Miranda, mas não
vou desistir do meu trabalho.
Edgar bufou.
— Não pode esperar que eu aceite essa condição.
— O Reverendo Brown precisa de mim para ajudá-lo na
Paróquia de St. John. Em troca de me deixar realizar minhas visitas
diárias à igreja e ao mercado em Covent Garden, concordarei em
ficar longe dos cortiços. Viverei sob o seu teto até que o meu futuro
possa ser determinado.
Edgar considerou as palavras por um instante.
— Voltará à sociedade e permitirá que William Saunders a
corteje?
Hattie suspirou. Não havia outra opção a não ser aceitar esses
termos. No entanto, se encaixavam em seus planos. Ao se juntar à
sociedade e passar tempo com Will, entre os ricos e poderosos de
Londres, ela conseguiria mostrar a Will o quão inadequados eles
eram.
Quanto mais Will pressionasse para que ela se casasse com ele
e desistisse de seu trabalho, mais ela resistiria. Edgar não ficaria de
braços cruzados e a deixaria ser empurrada para um casamento
infeliz. Portanto, era apenas questão de tempo até que ela
conseguisse convencer Will de que uma união entre eles era uma
péssima ideia.
— Temos um acordo. — ela respondeu.
Capítulo Trinta e Seis

A pesar de seus protestos, Will e Edgar concordaram que os


objetos pessoais de Hattie deveriam ser levados para o número
trinta e sete da Rua Newport naquele mesmo dia. Houve uma ligeira
disputa quanto à que casa Brutus residiria, mas Edgar insistiu que a
gata fazia parte dos bens da casa dos pais, portanto, estava inserida
no contrato de locação. Brutus ficaria no número quarenta e três.
Hattie sufocou uma risada quando viu Will segurando seu inimigo
felino enquanto ela saía pela porta da frente da casa da família. Ela
conhecia Will bem o suficiente para saber que ele ficaria muito
irritado por ser deixado com Brutus e seus dois conjuntos de garras
rasgadores de seda.
Miranda Wright aceitou o retorno de Hattie com entusiasmo e,
poucos dias após a chegada de Hattie, organizou um guarda-roupa
inteiro novo para a cunhada. Ela teria ficado feliz em jogar fora as
roupas simples de Hattie, mas Hattie insistiu que precisava delas
para seu trabalho na Paróquia de St. John.
Hattie sentiu-se humilde quando Miranda aceitou seu pedido de
desculpas sincero com boa graça.
— Você é da família. Edgar e eu nunca deixamos de amá-la. —
Miranda disse.
Hattie manteve seu lado do acordo com Edgar. Ela ficou longe
da Rua Plumtree. A pequena Annie Mayford passava pela igreja a
cada par de dias e pegava algumas frutas frescas para Baylee, que
Hattie separava só para o garoto.
Hattie logo entrou em uma rotina confortável. De manhã, ela se
dirigia para a Catedral de São Paulo para ajudar o Reverendo
Brown, à tarde ela voltava para casa e passava um tempo com
Miranda e o bebê Sebastian.
Ela havia acabado de voltar para casa no final de uma tarde, e
Miranda a esperava na porta da frente.
— Depressa, minha querida, suba as escadas e troque de roupa.
Aquele vestido cor de café com listras azul-escuras será perfeito.
Pedi que sua criada o colocasse na cama. — Miranda disse.
Hattie franziu a testa. Ela trabalhava na igreja desde pouco
depois do amanhecer, e seus pés doíam. Ela não estava com
vontade de sair e passar mais uma tarde fazendo compras com
Miranda.
— O Sr. William Saunders está aqui para lhe fazer uma visita.
Sua criada a esperando no quarto para ajeitar seus cabelos.
Depressa.
Miranda deu um pequeno empurrão em Hattie na direção das
escadas.
Hattie subiu. Will lhe dera alguns dias de paz, mas ela sabia que
ele ficaria impaciente para levar as coisas adiante.
Quando ela entrou na sala de estar formal, pouco tempo depois,
Will levantou-se e a cumprimentou com uma reverência formal. Ele
vestia uma jaqueta azul-escura e calças listradas combinando. O
sutil cinza-carvão do colete era compensado com elegância pelo
linho branco puro da camisa e lenço. Nem um fio de cabelo estava
fora do lugar na cabeça dele.
O coração dela pulou uma batida. A Sra. Little estava errada em
suas estimativas de Will, ele era mais do que bonito. A mera visão
dele mexia com algo profundo dentro dela. Ela sabia que era
saudade.
— Hattie, é um prazer revê-la. Você está linda.
Ela olhou para Miranda, sentada em uma cadeira próxima,
ostentando um sorriso social. A cunhada estava empolgada com a
visita de Will. Hattie suspeitava que ela já preparara a lista de
convidados do casamento, e estaria escondida em algum lugar na
mesa de sua sala de estar privada. Assim que Hattie aceitasse o
cortejo de Will, os convites de casamento seriam enviados.
Toda a cena foi um pouco farsesca, sabendo o que já havia
ocorrido entre ela e Will, mas ela dera a palavra a Edgar, e sabia
que precisava fazer sua parte.
— O Sr. Saunders ofereceu-se para levá-la aos jardins de
Vauxhall. Não é maravilhoso? — Miranda disse.
Hattie sentou-se ao lado de Miranda, que a segurou pela mão e
deu-lhe um tapinha suave.
— Ah. Obrigada — respondeu Hattie.
Ela se perguntou o quanto da antiga vida dela, Miranda havia
revelado a Will. Will, sem dúvida, teria pressionado de um jeito gentil
por pistas de como poderia ganhar o favor de Hattie.
Os jardins de prazer já foram um lugar favorito dela para visitar.
A viagem de barco para a margem sul de Londres era um passeio
bem antecipado por ela em seus anos mais juvenis. Miranda saberia
muito bem o quanto uma visita aos jardins significaria para Hattie.
— Sim, minhas irmãs e meu irmão vão conosco. Eles estão
muito interessados em conhecê-la. Creio que pode se lembrar da
minha irmã Eve, de sua apresentação à Sociedade. — Will disse.
— Você precisa sair, socializar com pessoas da sua idade e se
divertir um pouco. — Miranda acrescentou.
Um pequeno borbulhar de empolgação começou no estômago
de Hattie. Ela não conseguia se lembrar da última vez que saiu para
algum entretenimento, muito menos diversão.
Era uma época do ano diferente da que ela costumava
frequentar os jardins, mas se usasse roupas quentes, a travessia do
rio e a jornada para os jardins poderia ser agradável. Uma noite com
Will e a família dele seria, no mínimo, interessante. Ela detinha
vagas lembranças de Evelyn Saunders, mas não conhecia nenhum
dos outros dois irmãos de Will.
— Obrigada. Eu adoraria me juntar a vocês. — ela respondeu.

— Ah, venha logo, Hattie! — Edgar chamou com impaciência da


base das escadas.
Ele balançava a cabeça em descrença.
Hattie apareceu no topo das escadas, o manto dobrado no
braço. Ela estava pronta há algum tempo, mas Miranda insistiu que
ela fizesse Will esperar.
Nunca pareça ansiosa demais para agradar, mesmo após se
casar. Mantenha a regra de que fazê-lo esperar cria uma certa
tensão. Um homem afobado é muito mais fácil de se curvar à sua
vontade do que aquele a quem você se apressa para agradar.
Quanto mais tempo Hattie passava com Miranda, maior a
compreensão que ela tinha de por que o irmão amava tanto a
esposa.
Chegando ao fim das escadas, Hattie entregou o manto a Edgar,
que logo o entregou a Will, parado ao lado dele.
— Divirta-se bastante. — Edgar disse, dando-lhe um beijo no
rosto.
Um calafrio subiu a espinha de Hattie quando Will colocou as
mãos em seus ombros e a envolveu com o manto. Era o mais
próximo que eles chegaram um do outro desde a noite em que ele a
beijou pela última vez. O corpo dela ansiava pelo toque dele.
O cheiro da colônia dele encheu seus sentidos, lembrando-a de
como foi bom estar naqueles braços. Conhecer o prazer do corpo
dele amando o dela. A presença sexual dele estava tatuada na
memória dela.
Quando saíram de casa, para o ar mais gelado do início da noite,
Hattie não sentiu frio. O simples toque das mãos de Will fazia o
sangue dela aquecer de desejo.
Um lacaio abriu a porta da carruagem, e Will ajudou Hattie a
subir. Ele subiu atrás dela.
Ela foi recebida por três rostos sorridentes e acolhedores. Um
jovem alto, com inusitados cabelos brancos, gritou seu nome
enquanto ela se sentava.
— Hattie, por fim nos conhecemos!
Ele estendeu a mão para ela.
— Sou Francis. Esta é Caroline. — ele disse apontando para a
jovem sentada ao seu lado. Will riu, enquanto seu irmão mais novo
agia com descaramento debaixo do nariz dele.
Caroline era uma jovem de incrível beleza. Ela foi agraciada com
cabelos louros pálidos e pele de porcelana tão impecável que faria
um artista chorar. Quando sorriu, seus olhos verdes-profundos
atraíram Hattie.
— Olá, Hattie, é adorável conhecê-la. — ela disse.
— Ah, creio que conhece Eve de sua primeira temporada. —
Francis disse.
Levou apenas alguns instantes, para que as lembranças da
Temporada inacabada de Hattie, dois anos antes, ressurgissem em
sua mente.
— Lembro-me de você, Eve. Usou um vestido roxo-pálido no
primeiro baile, e eu me vi desesperada para descobrir de onde saiu
o tecido. Eu jamais havia visto algo como ele, e devo confessar que
fiquei com inveja. — Hattie disse.
Eve sorriu.
— Minha mãe mandou contrabandear o tecido da França. Foi
muito perverso da parte dela, e papai ficou furioso. Lembro-me da
briga que tiveram quando ele descobriu. Ainda assim, mamãe
estava convencida de que a costureira iria usá-lo.
Hattie olhou para Will, mas ele não reagiu às palavras da irmã.
Will parecia ter decidido adotar um rosto social quando estivesse em
público com Hattie. Ela suspeitava que os irmãos sabiam pouco
dela, além de que o irmão a via como noiva em potencial. Ele estava
jogando esse jogo de cortejo com todas as regras.
Eve e Caroline pareciam moças adoráveis. Qualquer outra moça
ficaria satisfeita em tê-las como cunhadas. Pela forma como a
cumprimentaram, ela sabia que ficariam desapontadas quando
descobrissem que ela não se casaria com o irmão delas.
A decepção dela veio com a descoberta de que, em vez de
pegar um barco para Vauxhall, como os pais gostavam de fazer, a
carruagem dos Saunders atravessaria o Tâmisa pela Ponte de
Westminster. Will, sendo quem era, pareceu ler a mente dela.
— Cheguei a pesquisar acerca da travessia de barco, mas o rio
está congelado em algumas partes, e nenhum dos pequenos barcos
de passeio faz a travessia nesta época do ano. Aceitem minhas
desculpas. — ele disse.
Pouco tempo depois, eles chegaram aos jardins, situados não
muito longe da margem sul do Tâmisa. Um engarrafamento de
carruagens e pessoas fez com que encontrar um lugar para descer
fosse uma perspectiva difícil. No fim, um Francis frustrado saiu pela
porta e abriu uma clareira na estrada para que os outros se
afastassem.
Na entrada dos jardins, Will pagou o ingresso, e Hattie pegou o
braço que ele oferecia.
— Ah, lá está ele. — Eve exclamou.
Pegando as saias, ela correu à frente do grupo e se jogou nos
braços de um jovem parado em um dos lados da entrada. Eles
então se entregaram a um beijo muito apaixonado para um lugar tão
público.
— Calma, menina, seus irmãos estão nos observando. — o
jovem disse, enfim soltando Eve. As palavras pareciam trazer
protesto, mas o olhar presunçoso dele dizia o contrário.
Hattie sentiu o aperto de Will aumentar. Ela podia jurar que ele
falou um palavrão sob a respiração.
Eve segurou firme na mão de seu amigo e o trouxe para o grupo.
— Desculpem-me, esqueci-me de mencionar que Freddie se
juntaria a nós esta noite. Tenho certeza de que está tudo bem com
todos. — ela anunciou.
Pela forma como Will tensionava a mandíbula, Hattie sabia que
ele estava longe de estar satisfeito.
— Ah, e quem é essa? — Freddie disse, apontando de um jeito
grosseiro para Hattie.
Ela estava longe da sociedade educada há algum tempo, mas
Hattie sabia bem que tanto Eve quanto Freddie estavam se
comportando mal em público. Pelo olhar de desgosto nos rostos de
Francis e Caroline, eles não estavam impressionados com tal
comportamento mundano.
Will interveio.
— Senhorita Harriet Wright, permita-me que apresente o
Honorável Frederick Rosemount. Frederick é o segundo filho do
Visconde Rosemount.
De repente, lembrado das expectativas sociais, Freddie
mergulhou em um arco elegante.
— Ao seu dispor, senhorita Wright. Pode me chamar de Freddie.
Todos os meus amigos o fazem.
Ele estava vestido com toda a elegância, o casaco o abraçava à
perfeição nos braços e no peito. O colete vermelho-vivo, adornado
com botões dourados, gritava pela atenção de todos. Enquanto o
observava, Hattie notou que ele continuava mudando sua postura.
Estava claro que ele estava tentando encontrar a melhor pose para
impressionar os outros participantes do passeio. A única pessoa que
parecia pensar que ele era tudo menos um almofadinha pomposo
era Eve, que se pendurava a cada palavra dele, apesar de contra
todas as expectativas.
Ele era muito polido e suave para o gosto de Hattie. Se não
fosse filho de um visconde, ela o teria apontado como um vigarista.
O grupo caminhou pelo parque lotado. Para onde quer que
olhassem, havia diferentes formas de entretenimento para atrair e
encantar.
Centenas de lanternas foram penduradas em árvores e poste, e
iluminavam o caminho. A luz suave que lançavam deu a todos os
jardins uma aparência quase de conto de fadas. Hattie estava
encantada.
— O ambiente lembra-me de quando visitamos a caverna de
São Miguel. É como se fosse outro mundo. — ela sussurrou a Will.
Ele olhou para as árvores e, em seguida, sorriu para ela.
— Sim. Esperemos que não haja macacos.
Eles pararam por alguns minutos e observaram um malabarista
que conseguia manter cinco pistolas, supostamente carregadas, no
ar ao mesmo tempo. Quando o malabarista pegou a última das
pistolas, ele a disparou para o alto. A multidão ofegou e aplaudiu
com fervor.
— Não tente isso em casa, Francis. — Will disse.
Francis percebeu a brincadeira do irmão e riu.
— Por Deus, não. Usarei apenas três pistolas.
Eles caminharam junto à multidão que fluía ao longo da trilha
principal. Por fim, chegaram a uma grande clareira gramada.
Pontilhadas ao redor da margem da clareira havia uma série de
camarotes privados. Will pegou um ingresso do bolso e os guiou
para o camarote reservado por ele.
As mulheres se retiraram para um sofá estofado e macio e se
acomodaram. Enquanto isso, Will acenou para um garçom próximo.
Após uma breve conversa, o garçom partiu. Ele retornou minutos
mais tarde com uma bandeja de taças de champanhe, que ele
colocou na frente do grupo.
Will pegou uma taça e a entregou à Hattie. Seus dedos se
tocaram quando ela segurou a bebida. A sensação do toque da pele
dele lembrou-a de por que Will a convidara esta noite. Ele planejava
que tocassem um ao outro para sempre.
Hattie corou ao ver Will lamber o lábio inferior. Lembrou-a de
todas as coisas pecaminosas que língua e lábios dele fizeram ao
corpo dela.
Ao tomar o primeiro gole de champanhe, ela sorriu. Miranda
estava certa, fazia muito tempo que ela não se divertia. Não importa
como tudo terminasse com Will, esta noite ela se esforçaria para se
divertir. Seria uma noite para criar lembranças agradáveis.
Eve drenou duas taças de champanhe em rápida sucessão,
ganhando uma repreensão fraterna de Francis. Freddie, observou
Hattie, ficou de lado e deixou-a fazer o que quisesse. Quando ela
pediu uma terceira bebida, Will estendeu a mão e tirou a taça da
mão dela.
— Creio que deva ir um pouco mais devagar Eve, a noite ainda é
uma criança. — ele a advertiu.
Hattie ficou surpresa ao ver um bico aparecer nos lábios de Eve.
Ela parecia determinada a fazer o irmão penar devido a algum
desprezo desconhecido.
— Não pense que só porque voltou para Londres, que tem o
direito de me dizer o que fazer, Will. Sou uma mulher adulta.
Decidirei se quero outra taça de champanhe, não você. — Eve
respondeu.
Para a surpresa de Hattie, Freddie interveio neste momento e
tentou acalmar as coisas.
— Pois bem, Will, meu caro, que tal se eu levar Eve para um
passeio pelos jardins. O ar fresco pode devolvê-la ao bom humor.
Tenham a certeza de que permaneceremos à vista do público nas
trilhas principais.
Hattie conhecia muito bem o olhar no rosto de Will. Era o seu
olhar de “eu adoraria socá-lo na garganta, mas a Sociedade não me
deixaria”. Todos sabiam de sua intenção, mas Eve e Freddie eram
mestres em conseguir o que queriam.
— Não mais do que quinze minutos, ou Francis e eu iremos
procurá-los. — Will o alertou.
O comportamento de Eve mudou na hora, e ela segurou o braço
de Freddie, meio que o arrastando para fora do camarote, e em
direção à trilha mais próxima.
Hattie sabia o suficiente de Vauxhall para saber que havia trilhas
à disposição dos amantes que os desviariam da trilha principal.
Esses caminhos não estavam bem iluminados e todos os tipos de
comportamento escandaloso eram conhecidos por ocorrer nos
arbustos que estavam espalhados ao longo deles.
— Então, Hattie, onde conheceu Will? — Caroline perguntou.
Will veio sentar-se ao lado de Hattie.
— Na Catedral de São Paulo, ela estava lá com o irmão. — ele
disse.
Hattie tomou outro gole de champanhe, enquanto absorvia a
mentira de como eles se conheceram, em silêncio.
Demorou algum tempo até que Eve e Freddie enfim voltassem
para o grupo. Quando se aproximaram, Hattie captou o olhar de
raiva frustrada que Francis e Will trocaram.
— Nós nos perdemos, devemos ter feito uma curva errada. —
explicou Freddie, pouco convincente.
Soltando a mão de Eve, ele se afastou. Uma Eve sorridente veio
sentar-se ao lado de Hattie e Caroline.
O olhar que Will deu para Freddie teria derretido o sol, mas ele
não disse nada. Freddie estava, sem dúvida, confiando na presença
de mais pessoas para salvar a pele.
Antes da noite acabar, ela suspeitava que Freddie e Will teriam
uma conversa particular, mas não seria uma agradável.
— Precisa ter mais cuidado. — Caroline sussurrou.
Ela puxou uma folha da parte de trás do manto da irmã, e outro
de seus cabelos. Ela descartou a folha, mas não antes de Hattie e
Eve a virem.
— Ó. — Eve murmurou, corando.
Caroline fez uma inspeção rápida, mas não demasiado óbvia, do
resto dos cabelos e roupas de Eve. O que quer que tivesse
acontecido entre Eve e Freddie na caminhada, estava claro que
progredia em direção a um casamento inevitável.
Hattie ficou surpresa com a própria reação à indiscrição de Eve.
A Hattie de alguns meses atrás teria desaprovado tal
comportamento. Teria visto Eve como uma frondosa por permitir tais
liberdades a um jovem.
Agora que ela conhecia o prazer cru que vinha de estar com um
homem, sua visão de mundo era muito diferente. O calor que a
incendiava por dentro, revelava seu próprio desejo de ser tocada e
possuída.
Ela olhou de relance para Will. Ele havia recolhido as garras,
retornando à persona bem contida que ele adotara para a noite.
Desapontamento a dominou. Não haveria chance de Will arrastá-
la para os arbustos e tomar liberdades com seu corpo. Ela sufocou
um ronco. De onde veio essa ideia pecaminosa?
De saber que você o quer.
E lá estava. O fato indiscutível de que ela queria Will. Que
ansiava por ser tomada nos braços dele, por ser beijada sem que
houvesse amanhã. Quaisquer que fossem as liberdades que ele
exigisse ter, ela as permitiria de bom grado.
Este era mais um daqueles momentos em que ela desejava
estarem de volta ao navio, deitados nus nos braços um do outro. À
época, tudo era mais simples. Ela sabia exatamente o que queria.
Um caso breve e sem laços.
Ele se virou para ela e deu um sorriso. Era como se ele pudesse
ler a mente dela. Ela sorriu de volta, impotente para resistir à
atração de seu charme.
Terminar tudo com ele partiria o próprio coração em mil pedaços.
O clima no grupo era tenso. Eve e Freddie foram egoístas ao ponto
de deixarem todos em uma posição desconfortável. Se Will tivesse
interrompido a noite naquele mesmo instante, Hattie não teria ficado
nem um pouco surpresa.
Francis, para seu crédito, também leu o humor. Bateu palmas
alto e anunciou.
— Certo, hora de dançar. Não vou embora até que meus pés
doam. Venha, Carol, será minha parceira.
Caroline não perdeu tempo em se levantar e pegar o braço do
irmão. Eles partiram na direção de um espaço próximo em que uma
pequena orquestra tocava. Eve e Freddie seguiram logo atrás.
Hattie e Will foram deixados sozinhos no camarote, era a
primeira vez sozinhos em mais de uma semana.
— Vamos?
Will ofereceu a mão a Hattie. Ela a pegou, sentindo um tremor no
corpo inteiro, enquanto ele fechava os dedos fortes nos dela.
Quando a puxou para ficar de pé, Will deslizou a mão em torno da
cintura dela e a aproximou:
— Infelizmente, os únicos movimentos que você e eu podemos
fazer juntos esta noite serão os aprovados pela sociedade. Eu só
gostaria que pudéssemos estar em um lugar que nos permitisse
fazer a dança que compartilhamos no navio. É claro que, se
fôssemos casados, seria algo fácil de ser alcançado ao final desta
noite.
Will estava ansioso para pressionar essa necessidade de se
casarem. Ela temia o dia em que ele pediria permissão para falar
com Edgar.
— É melhor não. Faz muito tempo que não danço. A última vez
foi após eu ser apresentada à rainha. Faz mais de dois anos.
Mesmo assim, minha dança era adequada, na melhor das
hipóteses. — ela respondeu.
Se Will ficou desapontado com a resposta dela, ele escondeu
bem.
— Bem, então, que tal darmos um pequeno passeio e ver que
outro entretenimento há?
— Mas, e os outros? — ela perguntou.
— Todos deixaram bem claro que têm idade suficiente para
cuidarem de si próprios. Não precisam de mim para resguardar
todos os movimentos que fazem. Além disso, vim aqui esta noite por
você.
A multidão nos jardins chegou a um pico. Havia centenas de
pessoas se empurrando e forçando caminho para encontrar os
melhores lugares para assistir ao entretenimento.
Com Hattie a reboque, Will abriu caminho pela multidão. Ela
segurou firme nele enquanto ele abria caminho.
No fim, conseguiram encontrar uma área onde a multidão era
menor, e eles conseguiriam passear juntos. Uma fileira de pequenas
barracas vendendo bugigangas estava montada por toda a lateral
da trilha. Eles caminharam devagar, de mãos dadas, seguindo as
barracas, contentes apenas em estar na companhia um do outro.
Em uma das barracas, Will comprou um pequeno alfinete de
prata com um enfeite de cabeça de um leão para Hattie. Ela ficou
feliz em prendê-lo ao corpete do vestido.
Quando Hattie bocejou pouco tempo depois, Will aproveitou a
deixa e a levou de volta para onde o resto do grupo havia ficado.
Encontraram Eve sentada em uma cadeira com a cabeça entre as
mãos, os outros se movimentavam.
— Creio que a champanhe a alcançou, talvez seja hora de nos
despedirmos. — Francis anunciou.
Caroline ajudou a irmã a se levantar e o grupo se dirigiu ao
portão principal a passos lentos. Hattie caminhava ao lado de Will,
perdida em seus próprios pensamentos.
Do lado de fora do portão de Vauxhall, mendigos tomavam as
calçadas. O resto do grupo ignorava as mãos estendidas, pois
mendigos eram abundantes nesta parte de Londres. Hattie viu uma
jovem mulher de pé sob uma árvore segurando uma criança
pequena nos braços.
Ela se afastou do grupo e foi até a mulher. Outros mendigos a
seguiram, e logo ela estava cercada. Ela olhou por cima do ombro
brevemente, mas Will e os outros não estavam à vista. Ela abriu a
retícula e puxou um punhado de moedas, entregando-as à mulher.
— Abençoada seja. — disse a mulher.
Quando Hattie se inclinou para oferecer algumas palavras de
conforto à mulher, a criança agarrou o alfinete de leão de Hattie.
Quando o vestido foi puxado, Hattie avançou para impedir que o
alfinete rasgasse o tecido.
Um Will preocupado forçou a passagem pelo grupo.
— Hattie! — ele berrou.
As pessoas se espalharam ao som da voz dele. Na disputa que
se seguiu, alguém empurrou as costas de Hattie, e ela caiu com
força na mulher e na criança. Os três caíram no chão. A criança
gritou de dor quando seus pequenos dedos foram picados pela
ponta afiada do alfinete de leão de Hattie.
Will veio e ajudou Hattie a se levantar. Pegando a criança, ele a
entregou à mãe. A mulher deu uma olhada em Will e suas roupas
finas, e logo fugiu.
Ele tentou colocar um braço reconfortante em torno de Hattie,
mas ela o afastou com raiva.
— Por que fez isso? — ela disse.
Ela percebeu o grupo de mendigos desaparecer na noite de
Londres. Em sua retícula, o resto das moedas que ela pretendia dar
a eles. Enfim, ela se voltou para Will.
— Por favor, me leve para casa.
Capítulo Trinta e Sete

A viagem de carruagem de volta para casa foi longa e silenciosa.


No canto, Hattie sentava-se com o olhar no alfinete de leão que
segurava em uma das mãos. Ela estava com bastante raiva de Will
pela cena com os mendigos, mas o cerne da raiva era com ela
mesma.
Quando a carruagem parou na casa do irmão dela, ela não
esperou que Will ou Francis a ajudassem a descer. Assim que o
lacaio abriu a porta, ela se levantou, deu um boa-noite superficial e
saiu. Entrou na casa de Edgar sem olhar para trás.
Sabendo que Miranda iria querer saber como foi a noite, Hattie
esperou do lado de dentro da porta da frente até que a carruagem
da Família Saunders fosse embora. Em seguida, ela caminhou a
curta distância até a antiga casa e sentou-se no jardim dos fundos.
Pouco tempo depois, Will apareceu no lado de fora da casa,
carregando uma lanterna.
— A Sra. Little disse que estava sentada aqui, se importaria de
eu me juntar a você?
Ela ficou de pé.
— Sinto muito, velhos hábitos são difíceis de controlar. Este
sempre foi um lugar para onde eu vinha quando criança, caso
estivesse maldisposta. Perdoe-me por me esquecer que esta não é
mais a minha casa. — ela respondeu.
Ela começou a caminhar em direção ao portão do jardim. Will
segurou-a pelo manto, puxando-a de volta para ele.
— Contudo, pode ser sua casa. Deveria ser. Só precisa dizer
que quer que seja. Posso falar com Edgar hoje à noite?
As lágrimas ameaçaram, mas Hattie sabia que precisava se
manter forte desta vez. Fazer Will entender.
— Não posso me casar com você Will. Tive dúvidas o tempo
todo, mas esta noite a verdade ficou clara para mim.
Ele suspirou.
— Peço perdão se considera que fui um pouco intenso ao
resgatá-la daquele grupo de mendigos. Todavia, não deveria ter
vagado até eles por conta própria. Foi imprudente da sua parte.
Estava sem minha proteção, qualquer coisa poderia ter acontecido
com você.
No jardim escuro iluminado pela lua, Hattie teve dificuldades
para ler a expressão de Will, mas ela conhecia a própria mente.
— E é aí que reside o problema. — ela respondeu.
Ele perscrutou o rosto dela, enquanto ela via apenas confusão e
mágoa no dele.
— Eu desisto, não consigo entendê-la. Não tenho permissão
para me importar com sua segurança? Diga-me Hattie. Faça-me
entender. — ele insistiu.
Por um instante, ela ficou sem saber o que dizer. No entanto, Will
estava certo, ela precisava fazê-lo entender. Ela continuou:
— A primeira vez que nos encontramos eu estava tentando
escapar de uma vida onde meu marido controlaria toda a minha
existência. Meu coração me diz que se eu me casar com você seria
o mesmo. Assim que eu aceitar seu pedido, começará a me dizer o
que fazer. E tão importante quanto: o que não fazer. Que é
exatamente o que tentou fazer esta noite. Jogou-se naquele grupo
de pessoas sem pensar nelas. Estava com a mente tão centrada no
único objetivo de me arrastar para longe delas e de volta ao seu
mundo. — ela disse.
A centelha de bravura que ela sentiu naquela manhã ensolarada
na costa da Espanha reacendeu nela. Com as costas eretas, ela
levantou a cabeça e encontrou de igual para igual o olhar penetrante
de Will.
— Então está dizendo que sou um homem controlador. — ele
atestou.
Quando um bufo de desgosto escapou dos lábios dele, ela viu a
raiva acendendo no olhar dele.
— Sim. Você é um cavalheiro de certa classe, e eu ainda estou
para conhecer um de vocês que não acredita que as mulheres
existem para fazer o que mandam. Não consegue nem pensar em
me ver atendendo minha missão. Will, não parece querer entender
que os pobres e destituídos de Londres são o trabalho da minha
vida. Eu já entrei em multidões de mendigos muitas vezes, a cada
vez levava um pouco de esperança a eles. No entanto, esta noite foi
a primeira vez que eu trouxe medo e dor. Medo e dor causados por
você.
Hattie engoliu o próprio medo.
— Sinto muito. Perdi você de vista e entrei em pânico. Eu me
preocupo com sua segurança e bem-estar, Hattie, nada mais. E sim,
quando nos casarmos, espero que me ouça quando se tratar de sua
segurança. Está claro que não vê o perigo, mesmo quando está na
sua frente. — Will respondeu.
— Não entendo essa sua necessidade avassaladora de me
proteger. Trabalho em minha missão há muito tempo. Há muito mais
tempo do que eu o conheço. E sim, às vezes as coisas dão errado,
mas é o risco que vem com meu trabalho. Um risco que
compreendo e aceito.
Will passou os dedos pelos cabelos e suspirou. Ele estendeu a
mão para ela.
— Hattie, por favor, entre. Creio estar na hora de eu lhe contar a
verdade da morte de Yvette. — ele disse.

Hattie seguiu Will casa adentro, para a antiga sala de estar do pai
dela. Will serviu um copo de conhaque para cada um. Ele se sentou
na cadeira oposta à dela e ficou em silêncio por um tempo.
— Por muitas razões, algumas delas remetem à segurança
nacional, não posso compartilhar a totalidade da história. Quando
nos casarmos, precisará aceitar que há algumas coisas do meu
tempo longe da Inglaterra, que eu nunca poderei compartilhar com
você. — ele disse.
Hattie ignorou a declaração teimosa quanto ao futuro casamento.
Não fazia sentido recomeçar essa discussão. Se eles não
conseguissem superar essas diferenças, não importa o que Will
exigisse, não haveria casamento.
— Durante a guerra, eu fui espião do governo britânico. Passei
três anos disfarçado em Paris, trabalhando para ajudar a derrubar
Napoleão. Após toda a confusão que ele fez tentando invadir a
Rússia, o governo britânico e seus aliados estavam esperançosos
de que a base de poder dele era fraca o suficiente para uma
tentativa de derrubada. Eu me ofereci para ir para a França.
Hattie permaneceu sentada, encarando o copo de conhaque. Ela
jamais acreditou completamente na história de que ele trabalhava
no ramo das importações, não correspondia ao que ela sabia dele
como verdade.
Ter sido um espião fazia muito mais sentido. A necessidade de
constante contato, de repassar os detalhes. A necessidade de se
sentar de frente para a porta. A necessidade de controle.
— Yvette era uma agente francesa, parte de uma equipe secreta
que trabalhava com vários governos estrangeiros, inclusive com a
Grã-Bretanha, para derrubar Napoleão. Eu a conheci pouco após
chegar à França. Sermos casados era uma boa fachada para nós.
Acabou que nosso casamento de conveniência se tornou real. Nós
nos apaixonamos.
O olhar dele permaneceu fixo no tapete. Uma linha profunda
marcando a testa. Hattie se perguntou se Will já havia tido essa
conversa com mais alguém.
— Ser espião é um jogo perigoso. Um movimento em falso e
você pode encontrar-se na extremidade errada de uma lâmina.
Yvette saiu sozinha para se encontrar com um informante.
Acabamos descobrindo que esse informante, na verdade, era um
dos agentes de Napoleão, e ele a assassinou.
Will fechou os olhos quando as lágrimas começaram a rolar
devagar pelas bochechas. Hattie permaneceu sentada, o instinto
dizendo-lhe que pena era a última coisa que ele precisava naquele
momento. Ela queria estender a mão e tocá-lo.
Ele enxugou as lágrimas.
— Ela era tão parecida com você que, às vezes, me tira o fôlego.
Fala de conhecer as ruas de Londres, bem, Yvette conhecia muito
bem as ruas e telhados de Paris. Ela era destemida, assim como
você. Nunca duvidei de sua bravura, Hattie. Mas há mais uma
característica que compartilha com ela que me mata de medo. Não
sente perigo até que seja tarde demais.
Hattie não poderia discutir com Will acerca desse ponto. Ela fez
algumas coisas tolas e quase não escapou delas. O espancamento
pela gangue Belton foi uma lição dolorosa de ser aprendida.
— No entanto, não sou ela. Não pode nos comparar em um nível
tão simplista. Ela era uma espiã, algo que vem com um conjunto
totalmente diferente de riscos do que o de trabalhar com os pobres
nos cortiços.
— No entanto, se eu ordenasse que você não fosse para a Rua
Plumtree, ainda iria, não iria? — ele a questionou.
Uma preocupação rastejou para a mente de Hattie. Será que Will
se culpava, de alguma forma, pela morte de Yvette. E daí surgia a
necessidade de ditar os termos da relação deles? Ela sentia
estarem perto da verdade. Ela decidiu apostar em fazer a pergunta
certa, mas temerosa.
— Onde você estava quando Yvette morreu? — ela perguntou.
Era uma pergunta cruel, e assim que as palavras deixaram sua
boca, Hattie desejou retirá-las, mas ela sabia que se não
abordassem esse aspecto da morte de Yvette, jamais teriam uma
chance. A pobre moça que sofrera uma morte tão terrível e
prematura ficaria para sempre entre eles.
Ela não sentia nada além de tristeza e luto pela jovem que nunca
conheceria, mas em algum lugar no fundo do coração, sempre
haveria espaço para Yvette. Compartilhavam um vínculo que
ninguém mais teria.
Ambas amavam Will.
Ele colocou a mão no rosto e ficou em silêncio por um longo
tempo. Hattie sentou-se, as mãos apoiadas de leve no colo, rolando
os dois polegares em um círculo infinito.
Will enfim se levantou.
— Existem eventos em sua vida que gostaria de poder voltar e
reviver? Momentos que, na época, não entendeu o significado
iminente, mas que mudaram sua vida para sempre? Eu revivi aquele
dia em minha mente mil vezes. Como nossas vidas poderia ter sido
diferentes se ela tivesse seguido ordens. Se, em vez de ficar
bêbado e acabar desmaiando em uma taverna qualquer a
quilômetros de Paris, eu tivesse ouvido meus instintos e ido para
casa, para garantir que ela faria como eu a instruí. Entretanto,
quando senti que algo terrível estava prestes a acontecer, já era
tarde demais para salvá-la. Ela já estava morta quando voltei para
Paris.
Hattie engoliu as lágrimas. Suas piores suspeitas foram agora
confirmadas. Will se culpava pela morte de Yvette. A culpa que ele
carregava, obscurecia tudo o que ele sentia por Hattie.
Ela precisava fazê-lo ver que amar alguém significava aceitar
suas falhas e erros. Também significava permitir que fizessem suas
próprias escolhas, mesmo que ele não concordasse.
Quando ela se levantou, seus olhares se encontraram. Ela se
manteve firme enquanto Will perscrutava seu rosto, o olhar de
súplica era de partir o coração.
— Obrigada. Não posso imaginar o quão difícil deve ser para
você, enfim, confiar em mim. Compartilhar a verdade. Agora que sei
o que aconteceu de verdade com Yvette, compreendo melhor sua
atitude para comigo. De certa forma, também sinto que a conheço
um pouco melhor agora. A missão de salvar o país significava muito
para ela, assim como meu trabalho com os pobres.
Ela estendeu a mão, ficou na ponta dos pés e o beijou. Quando
Will tentou aprofundar o beijo, Hattie se afastou.
— O que precisa acontecer agora, Will, é você fazer uma
escolha. Deve decidir se consegue viver com uma esposa que está
exposta ao perigo como parte de seu trabalho. Eu o amo, Will, o
faço com todo o meu coração. No entanto, nem mesmo por você, eu
desistirei do chamado de uma vida.

Will levou Hattie até a casa de Edgar, ignorando os protestos dela


de estar segura pela curta distância entre as casas. Ao retornar ao
número quarenta e três, ele voltou para a sala de estar e serviu-se
de outro conhaque.
Era evidente para a mente de Hattie que eles estavam em um
impasse. Para Will, embora fosse uma noite desafiadora, ele
conseguiu ver que fizeram progressos inesperados.
Hattie agora sabia a verdade em torno da morte de Yvette. Esse
segredo não estava mais entre eles. Havia uma estranha sensação
de alívio em ter passado por essa pedra no relacionamento. Embora
Hattie não concordasse com a necessidade de Will de protegê-la, ao
menos ela possuía uma pequena compreensão dos motivos dele.
Ela sabia o que a inação custou a ele.
Ele colocou o copo na mesa e ponderou o outro
desenvolvimento inesperado, mas bem-vindo, da noite.
Ela o amava. Ela disse as palavras.
A decisão que ele agora enfrentava era o que fazer com esse
novo conhecimento. Ela queria mais do que a riqueza ou conexões
sociais que casar-se com ele poderiam dar, ela queria uma
verdadeira parceria. Um casamento em que ela poderia fazer as
próprias escolhas. Onde ele teria que deixar de lado a necessidade
de controlar.
O desafio agora seria descobrir como poderiam encontrar um
caminho a seguir. Como poderiam forjar um futuro juntos, um onde
ambos conseguiriam ser felizes.
O problema que ele enfrentava era o saber inabalável de que ele
jamais seria feliz se a esposa dele trabalhasse nas ruas perigosas
de St. Giles.
O relógio na sala de estar soou as doze horas. Ele estava
cansado, mas a mente estava inquieta demais para considerar
sono.
Hattie deixou claro que, para repensar em voltar ao mundo dele,
ela precisaria manter seu trabalho.
— Tolo. — ele murmurou.
Pegando o casaco, ele desceu as escadas e chamou um coche
de aluguel já do lado de fora.
— Igreja de St. John, Holborn, por favor. — ele instruiu o
condutor.
Capítulo Trinta e Oito

H ouve certa sensação de déjà vu na manhã seguinte, quando


Hattie e Edgar discutiram a recusa dela em levar uma criada ao sair
de casa. A mesma discussão que ela teve com Will apenas algumas
semanas antes.
— Andei diversas vezes pelas ruas de St. Giles sozinha, com a
aprovação de nossos pais, não preciso de um acompanhante.
Concordou que eu continuasse fazendo meu trabalho, desde que eu
ficasse fora da Rua Plumtree. — Hattie afirmou com firmeza.
Os homens em sua vida pareciam incapazes de aceitar que ela
não era uma mulher fraca. Era mais do que capaz de cuidar de si.
Hattie estava determinada a resistir a Will, e ele era muito mais
teimoso do que Edgar.
Tentando manter a cordialidade e evitar outra cisão familiar,
Edgar enfim admitiu a derrota. No entanto, deixou claro o seu
descontentamento.
— Não pode esperar continuar esta vida para sempre. Espero
uma oferta de casamento de William Saunders a qualquer dia agora.
Como ele é um bom homem, com riqueza e um histórico primoroso,
estarei muito inclinado a aprovar o pedido. Você precisa de um
marido para mantê-la sob controle.
Hattie enrolou o cachecol em volta do pescoço e empurrou o
chapéu para ajeitá-lo na cabeça.
— Sim, irmão, eu sei. — ela respondeu.
Ela estava com pressa para sair de casa e se afastar de Edgar.
Precisava de uma manhã longe dos homens sempre tentando dizer
como ela deveria viver a vida.
Quando Hattie passou pelo número quarenta e três, ela olhou
para as janelas do andar superior da casa. As cortinas do quarto de
Will ainda estavam fechadas.
Ainda era estranho pensar nessa casa como de Will. Ela nasceu
ali. Seria para sempre a casa dela.
Ela apressou os passos para passar da porta da frente. Mesmo
que Will mantivesse seus horários tardios habituais, ela sabia que
ele teria olhos observando a rua, procurando por ela.
— Maldito homem teimoso e protetor. — ela murmurou.
O dia de Hattie progrediu como a maioria deles desde seu
retorno a St. John. Ela passou um tempo ajudando a limpar a igreja.
No entanto, o Reverendo Brown ficou de mau humor o dia todo. Não
era o seu eu habitual. Pelo bocejo constante, parecia que ele não
conseguiu uma boa noite de sono.
Após completar o trabalho na igreja, ela foi aos mercados em
Covent Garden e coletou os restos de vegetais para fazer a sopa
para os pobres que iriam para a igreja mais tarde naquele dia.
Já era tarde quando ela terminou de preparar a sopa e alimentar
os paroquianos. Estava lavando a última das panelas de sopa
quando a pequena Annie Mayford apareceu na porta da cozinha da
igreja.
— Olá, minha querida, está atrasada. — Hattie disse.
Ela logo terminou de lavar a panela e secou as mãos. Deu um
abraço em Annie.
— Como está sua mãe? Lamento não ter ido vê-la.
Lágrimas se formaram nos olhos da menina.
— Joshua diz que não deve vir nos visitar por causa do que a
gangue fez com você, mas…
— Mas, o quê?
— Mamãe está morrendo. Ela não comeu nada nos últimos dias.
Tudo o que faz agora é tossir sangue. Estou com medo. — Annie
soluçou.
Hattie colocou os braços ao redor de Annie e a abraçou
apertado. Sempre soube que chegaria o dia em que a saúde da Sra.
Mayford falharia. Então, Annie seria deixada aos cuidados de dois
irmãos afiliados à gangue. Não demoraria muito para que Annie
fosse atraída para o mundo da gangue Belton. A vida nos cortiços
possuía certo padrão previsível.
Ela estava dividida quanto ao que deveria fazer. Na noite anterior
mesmo, ela disse a Will que não se jogava em situações perigosas
com conhecimento de causa. E nesta mesma manhã, ela prometeu
a Edgar que ficaria fora da Rua Plumtree.
Por outro lado, se a Sra. Mayford morresse, e Hattie não
conseguisse vê-la antes, ela não conseguiria viver consigo mesma.
— Joshua está em casa? — ela perguntou.
Annie assentiu.
A notícia era animadora. Se Joshua e Baylee estavam em casa,
significava que a gangue não precisava mais deles para a noite. Se
ela fosse cuidadosa, poderia entrar nos cortiços, visitar os Mayford,
e a gangue da Rua Belton nem notaria. Valeria a pena pela chance
de dizer um último adeus à Sra. Mayford.
— Eu irei com você. Deixe-me pegar meu casaco e chapéu.
Também tenho algumas maçãs que acho que Baylee iria gostar.
A subida da escadaria longa e estreita dos cortiços da Rua
Plumtree nunca foi fácil. Famílias inteiras viviam no espaço de cada
andar. As posses escassas só permitiam uma pequena lacuna para
que um visitante conseguisse passar de um andar até o próximo.
Annie correu à frente de Hattie e bateu na porta dos aposentos da
família.
Joshua abriu a porta. Vendo Hattie, ele saiu para o patamar das
escadas e verificou se alguém notou a chegada delas. Ele fechou a
porta rapidamente, assim que terminou de verificar.
— Correu um risco enorme vindo aqui, Hattie. Contudo, sou
grato. Mamãe não tem muito tempo de sobra neste mundo.
Quando ela olhou para ele, Hattie não sentiu nada além de pena.
Ele havia envelhecido no curto espaço de tempo desde que ele e
Baylee tornaram-se membros da gangue da Rua Belton. O olhar
juvenil de seus meros dezesseis anos havia desaparecido. Em seu
lugar, havia uma palidez cinzenta e olhos vermelhos.
— Ora, Joshua. O que fizeram com você?
Ele riu.
— Nada, estou bem. Baylee e eu estamos nos divertindo
bastante. É ótimo estar nas ruas com os rapazes todos os dias.
O olhar dele fixou-se na pequena Annie e na mãe, ambas
sentadas na cama, em um canto. Hattie entendeu a dica sutil. Elas
não precisavam saber a totalidade das coisas terríveis em que os
meninos eram forçados a se envolver quando saíam com a gangue.
Aceitando a sugestão de Joshua, ela abriu o pequeno saco que
trouxe e colocou o punhado de maçãs na mesa. Ao vê-las, Baylee
logo pegou uma. Hattie riu quando ele mordeu a maçã com um
prazer indisfarçável.
Em seguida, Hattie foi sentar-se com Annie e a mãe das
crianças. A Sra. Mayford conseguiu abrir um sorriso fraco. Pelo
olhar cansado naquele rosto e os esforços laboriosos para respirar,
Hattie sabia que não demoraria muito até que se fosse.
— Poderia, por favor, nos contar outra de suas histórias de
viagem, Senhorita Hattie? — Annie perguntou.
A mais nova das crianças Mayford se deliciava com os contos de
Hattie sobre suas aventuras na Espanha. Em especial, ela adorava
ouvir a que contava como um estranho alto e moreno ajudou a
resgatar Hattie do mar.
Ela havia acabado de começar a contar para Annie sobre a
maravilhosa caverna de São Miguel quando houve um batucar alto
na porta do aposento. Uma voz estrondosa veio do lado de fora, no
patamar.
— Abra!
— É o Tom, meu chefe! — Joshua sussurrou.
Hattie sentiu-se gelar de medo. O líder da gangue não aceitaria
bem se a encontrasse na casa Mayford pela segunda vez. Ele a
havia avisado que da próxima vez que a pegasse na Rua Plumtree,
ele faria muito pior do que dar-lhe uma surra. Ele foi gráfico ao
descrever como iria jogá-la no Tâmisa e segurá-la pela cabeça até
que se afogasse.
Hattie lamentou-se em silêncio por sua natureza teimosa. Will
ficaria lívido se soubesse onde ela estava agora e o perigo em que
ela se colocara. Seria um conforto indigesto saber que ele estava
certo ao afirmar que Yvette e ela não levavam a própria segurança
tão a sério quanto ele. E especialmente não quando havia uma boa
chance de que ela estivesse prestes a compartilhar o destino de
Yvette.
— O que vamos fazer? Tom vai encontrá-la aqui. Ele acredita
que alguns rapazes estão segurando bens roubados sem repassar a
parte dele. Verificará os dois cômodos para se certificar de que não
estamos escondendo nada dele. — Joshua disse.
Hattie respirou fundo e tentou acalmar a mente. Ela se lembrou
de como Will havia verificado os arredores quando estavam sendo
ameaçados pela multidão do mercado em Gibraltar. Ela fazia o
mesmo agora.
— Você consegue descer com segurança até o térreo a partir
daqui? — ela perguntou.
Quando Joshua foi discutir, ela segurou o braço dele com
firmeza.
— Ouça-me, Joshua. Você é o único que pode me ajudar agora.
Não há nada que possamos fazer para impedir que Tom e a gangue
entrem pela porta e me levem. Eu preciso que vá até a minha antiga
casa na Rua Newport e encontre William Saunders. Você se lembra
dele, o conheceu na noite em que me levou para casa. Conte a ele
para onde devem me levar.
Houve um segundo estrondo na porta, mais violento.
— Oy! Abram essa maldita porta!
Joshua correu para a janela e subiu até a pequena saliência
antes de desaparecer. Hattie fez uma oração silenciosa de
agradecimento já que a família morava no segundo andar.
Voltando-se para os outros, ela levou um dedo aos lábios.
— Nem uma palavra sobre Joshua. Nem olhem para a janela.
Ela respirou fundo e abriu a porta.
Capítulo Trinta e Nove

— T em certeza de que Hattie não se juntará a nós esta noite?


— Caroline perguntou.
— Não, ela tem alguns assuntos pessoais para tratar esta noite.
— Will respondeu.
Após os eventos da noite anterior, Will não estava disposto a
entrar nos detalhes mais sutis da ausência de Hattie na festa. Ele a
visitaria na casa de Edgar pela manhã e discutiria o acordo que fez
junto ao Reverendo Brown. Se ela concordasse com os termos, ele
falaria com Edgar para pedir a mão da irmã dele em casamento.
Ele rezava para ela concordar. As opções estavam cada vez
mais escassas.
Mulher teimosa.
No rescaldo da discussão com Hattie, Will se esqueceu por
completo da promessa que fez de acompanhar dois de seus irmãos
mais novos a uma pequena reunião na casa de um amigo da
família, Harry Menzies. Só se lembrou quando Caroline mandou
uma missiva no início daquela tarde.
Tendo passado tantos anos longe de casa, ele devia a eles
assumir o papel de irmão mais velho, agora que estava de volta a
Londres de maneira permanente. Ele jamais poderia devolver o
tempo em que esteve ausente durante a infância deles.
— Gosta do meu vestido novo? Mamãe diz que me faz parecer
bastante régia.
Will olhou para Caroline, mas a mente estava em outro lugar.
Todos os momentos do dia até aquele instante giraram em torno de
Hattie. Ela o queria, ele sempre soube disso. Agora sabia que ela o
amava.
Contudo, o amor seria suficiente para ela assumir o lugar ao lado
dele? Disso ele não tinha tanta certeza.
— Bem?
— Está adorável, minha irmã. Tenho certeza de que todos os
cavalheiros a quem deseja favorecer esta noite notarão. Irmãos
mais velhos com a mente entorpecida são a única exceção infeliz.
— Francis disse.
Will se sacudiu das reflexões com a clara repreensão de Francis.
— Perdoe-me, Caro. Sim, seu vestido é lindo, assim como você.
Perdoe-me pela divagação em que minha mente se encontra esta
noite.
Ele se concentrou na irmã mais nova. Caroline era uma
verdadeira beldade. Um dos diamantes da Sociedade. Por trás
daqueles olhos verdes surpreendentemente profundos havia uma
mente afiada. Que Deus ajudasse o homem que quisesse se casar
com ela apenas pela aparência.
Eles seguiram para os Estábulos, nos fundos da casa londrina
da Família Saunders na Rua Dover. Charles Saunders preferia o
modo francês de ir e vir de casa com discrição, em vez do grande
espetáculo que os ingleses faziam na frente de suas casas.
Will esperou até que Caroline e Francis entraram na carruagem.
— Podem me dar um minuto? — ele disse.
Ele se afastou da carruagem. Do bolso, ele retirou um pequeno
charuto, e um lacaio próximo o acendeu para ele.
Encostado na lateral da carruagem, ele tentou limpar a cabeça.
Ele havia enviado uma mensagem no início do dia para visitar
Hattie, mas recebeu uma breve mensagem afirmando que ela
estava na igreja trabalhando e não voltaria até o início da noite.
Na última hora, o início do que ele acreditava ser uma dor de
cabeça estava começando a tomar seu cérebro. A audição também
estava desordenada. Um longo apito baixo soava em seu ouvido.
Uma das criadas da cozinha apareceu, saindo de lá, com uma
grande tigela de madeira nas mãos. Ela se dirigiu para a parte de
trás do jardim e saiu por um portão lateral.
Adelaide Saunders cresceu na Escócia com ovos frescos das
galinhas da propriedade Strathmore todos os dias. Ela se recusou
terminantemente a ter ovos comprados nos mercados de Londres,
por isso, a família mantinha uma dúzia de galinhas em um pequeno
jardim nos fundos da casa.
As galinhas vieram correndo até o portão assim que a criada o
abriu. O bater de asas e os cacarejos animados permearam o ar
noturno enquanto as galinhas lutavam pelo melhor lugar para obter
acesso às sobras da ceia. Will observou como as galinhas não se
demoravam a bicar as cascas de cenoura e batata.
Will afastou o charuto da boca. Sempre haveria bocas famintas
para alimentar. As galinhas no jardim dos pais dele deviam comer
melhor do que a maioria dos amigos de Hattie em St. Giles.
Ele jogou o charuto mal aproveitado ao chão e esmagou-o com
sua bota. Após a reunião desta noite, ele seguiria para a casa de
Edgar Wright e falaria com Hattie.
Will subiu na carruagem.
— Então, quem estará no sarau desta noite? — Will perguntou.
A carruagem seguia em direção à Praça Bedford, onde a família
de Harry Menzies possuía uma nova e bela mansão.
Caroline bufou.
— Menzies convidou algumas de suas conexões comerciais,
algo com tendências entediantes. Harry chamou os amigos de caça,
então creio que não veremos Francis a noite toda. Eu esperava que
nossa prima, Lucy, e o marido Avery fossem comparecer, mas eles
desistiram. Portanto, teremos uma meia dúzia de perdidos, como
você e eu, com quem conversar durante a festa. Uma pena que
Hattie não pôde vir desta vez. Após a noite de ontem, faço questão
de conversar do trabalho que ela faz com os pobres. Ela parece ter
uma proposta bem nobre em torno disso.
O apito baixo no ouvido de Will começou a aumentar depressa,
logo se tornando som alto. Estava sendo difícil ouvir qualquer outra
coisa. Uma sensação de pavor absoluto o dominou quando
percebeu que seus sentidos estavam gritando por atenção.
— Vocês se importariam se virássemos a carruagem, e ela me
levasse de volta para casa? Não creio que serei uma boa
companhia esta noite. — ele disse. Will bateu no teto da carruagem,
e o cocheiro desacelerou os cavalos.
Um Will cada vez mais desconfortável, estava prestes a sugerir
que sairia para encontrar um coche de aluguel para si, quando
Caroline gritou de repente. Um chicote de equitação foi esmagado
com violência contra a janela lateral mais próxima a ela.
— Que diabos! — exclamou Francis.
— Parem! Parem, eu peço! — uma voz na rua gritou.
Will pulou para o outro lado da carruagem e puxou a janela. Ele
colocou a cabeça para fora, e foi recebido pela terrível visão de um
frenético Edgar Wright cavalgando com ímpeto ao lado da
carruagem.
— Parem a maldita carruagem! Parem! — Edgar berrou.
Francis e Will bateram com fúria na parede da frente da
carruagem, avisando ao condutor para parar.
Assim que a carruagem parou, Will pulou para fora.
— Espere aqui, Francis, mantenha Caroline segura. — ele disse.
Edgar freou seu cavalo. Nesse ponto, Will teve um vislumbre de
uma figura escondida atrás de Edgar no cavalo. Uma figura cujo
rosto era uma máscara de medo.
— Joshua?
Capítulo Quarenta

— A gangue da Rua Belton pegou Hattie, eles vão matá-la! —


Joshua gritou.
Will viu o olhar no rosto de Edgar. Um olhar que Will havia
rezado para jamais rever após a guerra com a França. Um olhar de
terror desenfreado.
— Fui à sua casa procurando por Hattie, quando esse rapaz
chegou. Seu mordomo me avisou que estava vindo nessa direção
esta noite. Graças a Deus, o encontramos. — Edgar explicou.
Will virou-se e, para seu alívio, viu que o cocheiro da família
Saunders já estava soltando um dos cavalos da carruagem.
— Para onde a levaram?
— Desceram para o rio, perto da nova Ponte Waterloo. A gangue
tem um esconderijo lá para o transporte de mercadorias roubadas
rio acima. Também trabalham com contrabando de cadáveres. —
Joshua respondeu.
Will sentiu um calafrio mortal percorrer toda a espinha. Não era
uma simples gangue de batedores de carteira com que ele lidaria
esta noite. A gangue Belton era conhecida, mesmo na sociedade
educada, como bandidos cruéis.
Edgar saltou do cavalo e entregou as rédeas para Will.
— Estávamos a caminho de lá quando vimos sua carruagem. Se
você é o homem que os rumores no White’s dizem ser, deve ir com
Joshua e meu cavalo. — acrescentou Edgar.
Para surpresa e alívio profundo de Will, Edgar retirou uma pistola
e uma faca do casaco. Will as aceitou depressa. Pulou no cavalo,
puxando Joshua para perto. Enquanto isso, Edgar se dirigiu para o
outro cavalo, ainda sendo separado da carruagem.
— Vá! Estarei apenas um minuto atrás de vocês. — ele disse.
Will esporeou a montaria que saltou para longe. Joshua
agarrava-se firmemente ao casaco de noite de Will.
Curvado sobre as rédeas, Will incitou o cavalo. As ruas estavam
cheias de carruagens nos dois sentidos. Várias vezes, eles pararam
enquanto pedestres saíram na frente deles.
— Saiam do caminho! — Will gritou.
Os londrinos assustados pulavam de volta para a calçada,
acenando de raiva com os punhos para Will e Joshua que se
afastavam. Descendo a Drury Lane, Will conseguiu recuperar um
tempo precioso.
Ele olhou por cima do ombro ao virar à esquerda para a Rua
Strand. Edgar Wright estava bem atrás dele.
— Rua Surry! — Joshua gritou.
Quando ele virou a cabeça do cavalo para a Rua Surry, Will
avistou a Ponte Waterloo. Ele estava grato por Joshua estar ali com
ele. A ponte era uma construção recente, e Will jamais a teria
encontrado por conta própria.
No final da rua, ele freou seu cavalo e pulou para o chão.
— Onde? — ele perguntou.
Joshua apontou para o rio, onde Will viu uma pequena fogueira
acesa no areal.
— Eles vêm para cá o tempo todo para procurar corpos. Eles
buscam encontrar qualquer item vendável e, em seguida, levam o
corpo para os ladrões de corpos. — Joshua disse.
Will se virou quando seus ouvidos captaram um som familiar.
Edgar teve o bom senso de trazer uma segunda pistola. Ele a
carregou e a engatilhou. Will tirou a própria pistola, que carregava
no casaco e fez o mesmo. Joshua tirou uma pistola muito surrada
do bolso. Will temia que não disparasse direito, mas não disse nada.
Bile subiu à garganta dele. Fazia um tempo que não se via
precisando matar um homem, mas a lembrança do fedor da morte
logo apareceu, como sempre que ele via uma arma carregada e
preparada. Ele viu centenas de homens ensanguentados e mortos
no campo de batalha em Waterloo. Ninguém jamais se tornava
imune aos gritos agonizantes de um homem moribundo.
Ele se virou para Edgar. Se estava prestes a entrar em uma
briga até a morte para salvar Hattie, ele precisava saber o calibre do
homem ao seu lado.
— Quão útil você é com uma pistola, Edgar? E não seja vaidoso.
A vida da sua irmã pode muito bem depender disso.
Ele não precisava mencionar que todos estavam em grande
perigo agora. Quanto a ele, estaria confiando em anos de
experiência e memória muscular.
— Treino com regularidade na galeria de tiro de Manton, na Rua
Davis. As pistolas estão bem conservadas. Fora isso, terá que
confiar que estou preparado para fazer tudo ao meu alcance para
salvar minha irmã. Isso inclui atirar em qualquer um que fique no
meu caminho.
As palavras de Edgar eram exatamente o que Will precisava
ouvir. Eles desceram a rua, mais próximos da água, mantendo-se
nas sombras para evitar serem vistos. À medida que se
aproximavam, Will conseguiu distinguir a forma de meia dúzia de
pessoas em pé ao redor do fogo. De um lado, havia um pequeno
carrinho de mão.
— O alto com a cartola surrada, é o Tom, ele é o líder da
gangue. Aquele carrinho ali, é o que a gente usa para carregar
corpos por aí. Eu apostaria tudo o que tenho que a senhorita Hattie
está nele. — Joshua disse.
Will rezava para que Hattie ainda estivesse no carrinho.
Que ainda estivesse viva.

Um rugido ecoou alto entre a gangue, quando uma briga começou.


Tom agarrava-se com o que parecia ser um menino com cerca de
dez anos. Ele deu vários tapas no rosto do menino. Quando o rapaz
implorou por misericórdia, levou um soco cruel no rosto. O menino
caiu no chão e ficou imóvel.
Will e Edgar se entreolharam. Sabiam que, quando entrassem na
luta, não haveria misericórdia a ser mostrada a eles.
Tom começou a andar arrastando os pés, uivando no ar da noite.
Quando ele chegou ao carrinho, o coração de Will afundou.
— Sua hora chegou, gracinha! Tenho certeza de que os peixes
vão adorar ouvir suas pregações bíblicas. — ele berrou.
Vários membros da gangue correram e arrastaram um saco para
fora do carrinho. Ele caiu com peso na margem lamacenta do rio.
Um som abafado vinha do saco. Hattie estava, por ora, ainda viva.
Os membros da gangue começaram a arrastar o saco para a
beirada da água. Will virou-se para Edgar.
— Não hesite se tiver mira clara. Não terá uma segunda chance.
Quando o saco com Hattie chegou à água, Will se colocou em
movimento. Brandindo a pistola com uma das mãos, ele correu para
o banco de lama do rio. Um membro da gangue apareceu,
brandindo uma grande espada militar. Will atirou nele quando ele se
aproximou.
Em seguida, Will ziguezagueou até Tom, que agora rolava o
saco para a água. Gritos dos capangas o alertaram para a chegada
de Will. Edgar estava em perseguição, perto.
Com um último rolamento, Hattie entrou na água e desapareceu
de vista. O líder colocou a bota em cima do saco, segurando Hattie
embaixo da água. Em questão de minutos, ela se afogaria.
Will lançou-se em Tom, sabendo que se não o tirasse de ação,
nenhum deles deixaria a margem do rio, vivo. Os dois caíram na
água marrom de sujeira.
Na lama do rio, com os pés afundando, ele e o líder da gangue
lutavam para ficar de pé. Agora, eles estavam entre Hattie e a costa,
cortando qualquer esperança que Edgar pudesse ter de tentar
alcançar a irmã.
Mesmo sob a luz fraca, Will viu o lampejo de uma lâmina. Ele
mergulhou para fora do alcance.
Pelo canto do olho, ele avistou Joshua acenando com a pistola
na direção dos demais membros da gangue. Felizmente, nenhum
deles foi estúpido o bastante para tentar um movimento para salvar
o chefe, e Joshua foi poupado de ter que disparar a arma.
Investindo, Will agarrou as pernas de Tom e tentou derrubá-lo.
Tom levantou o braço, em prontidão para esfaquear Will. Will viu a
lâmina começar sua descida mortal. Quando o atingisse, o golpe
seria em cheio nas costas. Ele se preparou para o impacto de tirar o
fôlego.
Um tiro soou na noite, e a lâmina se desviou do alvo pretendido.
O controle que Tom detinha em Will de repente desapareceu. Will
ergueu o olhar e viu o líder da gangue, cambaleando para trás.
Havia um grande buraco sangrento no meio da testa de Tom. Ele
caiu para trás e desapareceu sob as águas turvas do Tâmisa, e
Edgar baixou a pistola.
Os demais integrantes da gangue se espalharam para todas as
direções.
Will se levantou a tempo de ver Edgar e Joshua entrando na
água. Ele os alcançou enquanto conseguiam arrastar o saco de
volta para a costa.
Joshua cortou o saco, e Hattie se jogou na areia lamacenta. Ela
rolou e se esforçou para se apoiar em mãos e joelhos. Ela puxou o
ar com força diversas vezes.
Um alívio absoluto tomou conta de Will. Ela estava viva.
— Ó, graças a Deus. — ele murmurou.
Edgar puxou a irmã de pé e, por um instante, ela ficou ali o
olhando. O choque e angústia no rosto dela mostravam que ela não
esperava sobreviver à viagem ao rio.
Ela deu dois passos à frente e se jogou nos braços do irmão.
— Você veio me salvar. Você veio!
Edgar e Will trocaram um olhar de alívio. Haviam conseguido.
Quando Will chegou ao lado deles, Edgar soltou Hattie.
— Claro que vim buscá-la. Eu sempre estarei aqui para você.
Contudo, foi Will quem de fato a salvou. Aquele canalha iria segurá-
la sob a água até que se afogasse. Foi Will quem lutou com ele. Eu
apenas coloquei a bala na cabeça dele.
Ela se virou para Will, lágrimas escorrendo pelo rosto. No ar frio
da noite, ela começou a tremer.
— Juro, Will, não procurei a gangue. Fiz tudo o que pude para
evitá-los.
Ele meneou a cabeça para Joshua.
— Eu sei. Joshua me contou o que aconteceu. Fez exatamente o
que eu teria feito. Leu a situação e fez a escolha certa. — ele
respondeu.
Edgar soltou Hattie e empurrou-a de leve na direção de Will.
— Vá até ele. Seu lugar é com ele. Sempre serei seu irmão, mas
Will Saunders é o seu futuro.
Ela chegou a um metro ou mais de Will e parou. Ele sentiu a
hesitação. Will estendeu a mão e puxou Hattie para um abraço.
— Vem cá, minha menina.
Ela envolveu os braços em sua cintura e a segurou firme. Will fez
mil orações de agradecimento aos céus. Ela estava viva. Ele a
salvou.
Uma carruagem se aproximou do final da rua, e Francis pulou
para fora. Edgar e Joshua caminharam até lá, acenando.
Na areia, Will e Hattie se abraçavam com firmeza. Quando os
outros se afastaram, ela o olhou. Ele se abaixou e a beijou nos
lábios com ternura.
— Tem gosto de rio. — ele murmurou.
— Sim, preciso de uma grande dose de conhaque para lavar a
boca. Sempre pensei que o Tâmisa parecia imundo. Tendo bebido
ao menos um litro dele, agora sei que é, com certeza.
Ele ajeitou o que pôde dos cabelos molhados e emaranhados
dela, e a beijou mais uma vez.
— Prometa-me que esta será a última vez que terei que entrar
na água para salvá-la. Preferiria que não fizesse disso um hábito.
— Pelo que me lembro, eu estava indo muito bem em Gibraltar,
mas sim, prometo que esta será a última vez. — ela respondeu.
Will passou o braço ao redor dela, e eles começaram a caminhar
em direção à carruagem.
— Quando chegarmos em casa, tenho um plano que desejo
discutir com você.
Capítulo Quarenta e Um

D urante o banho, a Sra. Little limpou a água suja do rio dos


cabelos de Hattie, e Hattie cuidou da pele. Ela ficou submersa por
cerca de um minuto, mas temia que jamais se livraria do mau cheiro
saindo pelos poros.
Quando um baú de viagem com as roupas de Hattie chegou da
casa do irmão, a Sra. Little estava ocupada demais chorando para
notar o óbvio. Edgar decidiu que a irmã voltaria de vez para o
número quarenta e três.
Enfim seca, vestida e com os cabelos amarrados em um chignon
frouxo, Hattie foi encontrar-se com Will. Ela estava ansiosa para
ouvir o plano dele.
Ela o encontrou na sala de estar principal, sentado no sofá floral
favorito dela. Era reconfortante saber que seu cômodo favorito na
casa, também era o de Will. Ele a cumprimentou com um sorriso
travesso e estendeu a mão. Hattie a aceitou, soltando um gritinho
quando ele a puxou para os braços.
Ele tomou a boca de Hattie em um beijo surpreendente de
suave. Ela podia sentir que ele fazia de tudo para manter a paixão
sob controle. A hora de fazer amor viria mais tarde. Agora, havia a
séria questão de encontrar um jeito de fazer o iminente casamento
funcionar.
Will soltou Hattie.
— Precisamos conversar primeiro. — ele disse.
As palavras, no entanto, não fizeram nada para diminuir a faísca
que o reflexo do fogo produzia naqueles olhos. Ele a queria tanto
quanto ela o queria neste exato minuto. O calor entre eles rivalizava
com o do fogo bem vivo.
— Antes que eu faça a pergunta que este momento exige, e que
Edgar já aprovou. Tenho algo a discutir com você. Um plano para
poder ter o melhor dos dois mundos, Hattie. Poderia ouvi-lo?
Hattie apertou as mãos de leve uma na outra e assentiu. O
nervosismo a traiu, e logo estava estalando o primeiro dedo.
— Farei com que pague um centavo sempre que a vir fazendo
isso, e assim fazê-la parar. — ele disse.
Ela lhe deu um olhar sensual e lambeu o lábio inferior. Se ele
quisesse que ela abandonasse o hábito, ela só pagaria de uma
forma. Will levantou uma sobrancelha consciente.
— Fui ver o Reverendo Brown após sua saída daqui ontem à
noite. Ele e eu discutimos o trabalho que faz na igreja. Ele concorda
que sempre foi perigoso que você se aventurasse pelas ruas de St.
Giles. Após esta noite, terá que concordar que não é mais seguro
para você.
Hattie assentiu. Mesmo com Tom morto, a gangue Belton teria
um alvo na cabeça dela, caso ela voltasse a pisar na Rua Plumtree.
Ela arfou.
— E quanto a Joshua e a família dele? Eles também não estarão
seguros.
— Por isso, foram levados para outro lugar. Francis foi ver meu
administrador assim que chegou em casa. Não pensou que eu
deixaria os Mayford continuarem na Rua Plumtree por nem mais um
minuto, não é? — ele perguntou.
Hattie olhou para o chão, envergonhada por ter duvidado de Will
e da capacidade dele de ver todas as necessidades de uma
situação. Ele pegou a mão dela com as pontas dos dedos e colocou
um beijo terno nos dedos dela.
— Sabe o que o Reverendo Brown e eu discutimos até as
primeiras horas desta manhã? Um sopão é o mais necessário para
a Paróquia de St. John.
Hattie franziu a testa. Ao menos agora ela sabia por que o
Reverendo Brown estava tão cansado e mal-humorado o dia todo,
mas o plano de Will não era novidade.
— Reverendo Brown e eu já distribuímos sopa aos pobres. —
ela respondeu.
— Refiro-me a uma verdadeira cozinha, financiada por nós e
pelos nossos amigos. Uma abastecida com legumes frescos,
cevada e um pouco de carne. Com um forno para assar pão fresco.
Um sopão que funciona todos os dias. Algo que vai alimentar
dezenas de famílias carentes de St. Giles. Lembro-me do que disse
de seu pai e que a missão dele era fundamentada com números.
Com uma cozinha adequada gerenciada a partir de St. John, seu
trabalho continuará e poderá crescer.
O coração dela deu um salto. Will foi sincero em seus esforços
para encontrar uma solução para o impasse. Ele havia falado com o
Reverendo Brown e encontrado uma área em que poderiam fazer o
máximo de diferença na vida das pessoas.
Ela jamais precisaria voltar a se aventurar nos cortiços. As
pessoas que ela queria ajudar podiam vir até ela na igreja.
— E eu presumo que, em troca, terei dois lacaios corpulentos
comigo a todo instante. E eu vou mantê-lo informado da minha
agenda diária e mandar um aviso caso eu precise voltar para casa
tarde?
Nem seria necessário dizer que esses eram os termos de Will,
mas ela precisava dar voz a eles.
— Sim, e creio que concordaria que alguns rapazes úteis
poderiam trabalhar na igreja, fazendo reparos etc. O Reverendo
Brown não é mais um homem jovem. Os rapazes também podem
ajudar a descascar e cortar legumes.
— Obrigada por encontrar um jeito. Se alguém poderia, seria
você. A minha resposta é sim. — ela disse.
Ela não se atrevera a sonhar que seu desejo mais profundo de
ter o melhor dos dois mundos poderia se tornar realidade. Que Will
poderia mesmo ser dela.
Hattie lambeu os lábios, provocando-o. Will rosnou. Ela se
inclinou e plantou um beijo suave, mas atraente, nos lábios dele.
Seus corpos estavam próximos, a intimidade acenava. Ela dera a
resposta que ele precisava, agora ela permitiria que ele
reivindicasse a recompensa.
Os grilhões do bom comportamento social foram jogados pela
janela e, em seu lugar, havia uma fome profunda que exigia ser
saciada. Will reivindicou os lábios de Hattie com um beijo que não
deixava espaço para mal-entendidos.
Ela cedeu aos desejos mais profundos. Enquanto os braços
fortes de Will a puxavam com firmeza contra ele, as mãos dela
vasculhavam os cabelos dele. Ela afundou os dedos naqueles
cabelos castanho-escuros, oferecendo encorajamento tácito. Ambos
sabiam onde ela dormiria esta noite.
Quando enfim terminaram o beijo, Hattie percebeu que uma
pergunta ainda precisava ser respondida. Ela sabia que Will a
queria, mas não compreendia completamente o porquê. Em algum
lugar nos recessos profundos da mente dela, ainda havia a crença
preocupante de que ele se sentia compelido a se casar com ela.
— Antes que me faça a pergunta que sabemos que está por vir.
Eu preciso entender por que me quer. Para muitas mulheres não
importaria, mas como fugi de um noivado com alguém que não me
queria por mim, eu gostaria de saber.
Will a beijou mais uma vez.
— Eu a quero porque eu a amo. Amo a Hattie Wright que está
diante de mim. A Hattie Wright que tomou a decisão de reivindicar
seu papel no mundo. No instante em que a vi cair do navio e no
porto, você mostrou ser a mulher certa para mim. A garota que
Peter Brown tomou à força já não existe há muito tempo. Em seu
lugar está você, uma mulher que faz escolhas para a própria vida e
escolhe quem deseja amar. Só posso esperar e rezar para que esse
alguém seja eu. — ele disse.
Ela envolveu o rosto dele entre as mãos.
— Fiz tudo o que pude para não me apaixonar por você. Fugi
porque sabia que jamais conseguiria resistir a você se eu ficasse.
Conseguiu manter um poder sobre mim desde o primeiro dia.
Acredite, Will, quando eu digo que nunca vi você como algo para
usar e jogar fora. Quis que nosso caso no navio acontecesse porque
eu sabia que você era alguém cujo amor, mesmo que fosse vivido
em pouco tempo, valeria a pena. Para dizer a verdade, eu estava
com medo de como me fez sentir. Quando fizemos amor, eu me
senti renascida. Tocou uma parte da minha alma que eu não
acreditava existir mais, algo que eu não sabia se queria recuperar.
— Então, está dizendo que me ama?
Ela riu.
— Claro que amo. A mulher que não se apaixonasse por seus
encantos seria feita de pedra. Eu amo você, Will Saunders. Você me
resgatou, e eu prometo passar o resto da minha vida certificando-
me de permanecer assim. — ela respondeu.
Ela beijou-o na testa. Ele sorriu quando ela o beijou no nariz.
Quando ela se puxou para trás para absorver seu rosto bonito, ela
viu a luz da paixão acesa em seus olhos.
— Então, me dará a honra de a ter como minha esposa? — ele
perguntou.
— Sim.
— Graças a Deus.
A sensação de alívio na voz dele a deixou à beira das lágrimas.
Ninguém nunca a quis por ela ser quem é. Em Will, ela havia
encontrado alguém que a valorizava por ser apenas Hattie. A alegria
misturada com a humildade esmagadora deixou-a sem palavras.
— O que agora deixa a questão do que será de você esta noite.
— Will disse. Teria sido bem fácil pedir à Sra. Little para arrumar a
velha cama de Hattie, mas dormir esta noite em qualquer outro
lugar, exceto nos braços de Will, estava fora de questão. — Não vou
forçá-la a fazer nada que não queira. Nunca. — ele complementou.
Eles avançaram tanto desde o dia em que se conheceram. Ela
confiava nele, e o coração dela parecia prestes a explodir sabendo
que ele confiava nela.
— Quase enlouqueci de tanta falta que senti do seu toque.
Preciso de você dentro de mim. Preciso ouvir o seu rugido quando
gozar. — ela murmurou.
O rosnado de necessidade e desejo que veio do âmago dele
deu-lhe a resposta que ela desejava. Ele também sentia falta dela.
Saber que ele a queria, enchia-a com a necessidade furiosa de
estar nua e sob ele. De selar a conexão que não estava mais em
dúvida entre eles.
Ele se levantou, puxando-a de pé com ele.
— Venha para a cama.
Ela miou decepcionada e olhou para o sofá. O sofá era da altura
certa, e o encosto era macio o suficiente para ele a tomar com
facilidade, ela curvada sobre ele.
Ele balançou a cabeça.
— Para o quarto. Não será uma cópula rápida. Pretendo ser
meticuloso. Assim que eu a tiver nua na cama, vou deslizar minha
língua para dentro de você, e segurá-la enquanto eu a guio para o
abismo. Tenha certeza, meu amor, que não vou poupá-la desta vez.
Pode esquecer-se do sono hoje.

Já no quarto, Will puxou Hattie para ele. Ela respondeu com um


beijo que faria qualquer homem adulto sentir os joelhos fracos. Ela
aprendeu muito no tempo passado juntos no navio. Will
parabenizou-se em silêncio por ser um excelente tutor.
— Quero você. Quero agora e para sempre. — ela disse.
Ele ouviu a fome na voz dela, um eco da mente dele. Hattie
desabotoou a parte de cima do vestido e deixou-o cair aberto. Ele
assobiou em apreciação ao fato de que ela estava nua por baixo.
— Garota atrevida. — ele riu.
Ela arrancou as sapatilhas. Will ficou observando-a enquanto ela
deixava o resto do vestido cair devagar no chão. Agora, ela estava
completamente nua diante dele. Ele sentiu-se ficar duro.
Ele foi até ela e se ajoelhou no chão, diante dela. Com as mãos
no topo das coxas dela, ele a puxou em direção a ele.
Hattie gemeu quando Will deslizou a língua naquele calor. Ele a
segurou firme quando começou a provocá-la. Quando ele sacudiu a
borda externa de seu clitóris, ela estremeceu. Ela colocou a mão
gentil na cabeça dele, passando os dedos por seus cabelos quando
ele mergulhou a língua mais fundo ainda.
— Will. — ela sussurrou.
Ele aproveitou a deixa, sabendo que a havia despertado para um
estado em que estaria pronta para ele.
Will levantou-se e a guiou até a cama. Ele a jogou ali, onde ela
ficou deitada, observando-o livrar-se depressa da camisa e calças.
— Como quer fazer isso? — ele perguntou, subindo na cama.
Ela mordeu o lábio inferior por um instante. O pau dele tremeu.
Ele estava desesperado para se afundar nela e levar os dois ao
clímax.
Hattie se ergueu nos joelhos e empurrou Will para se deitar de
costas.
— Eu estava assistindo os cavaleiros e amazonas no Hyde Park
ontem com Miranda. Creio que eu gostaria de cavalgar agora, Sr.
Saunders. — ela respondeu.
Will deitou-se na cama, e Hattie jogou uma perna acima do
quadril dele e sentou-se em cima dele. Enquanto ela se ajeitava
acima, ele guiou o eixo duro para sua passagem lisa e molhada.
— Doçura… — ele murmurou.
Ela colocou as mãos nos ombros dele e começou a se balançar
para frente e para trás. Os pés agarravam-se com firmeza aos
quadris dele, enquanto ela aumentava o ritmo da cópula.
Will puxou a cabeça dela na direção dele e tomou os lábios dela
em um beijo abrasador. As línguas se entrelaçaram enquanto seus
corpos se encontravam em um ritmo impetuoso.
Quando Hattie choramingou, ele soube que ela estava perto do
ápice. Ele a virou de costas e se empurrou bem fundo dentro dela,
sabendo que essa era a melhor posição para ela alcançar o máximo
de prazer ao gozar.
— Will. Ó, Deus. — um gemido baixo e longo escapou de seus
lábios.
Ele a beijou à espera que a onda do orgasmo diminuísse.
Quando ela enfim conseguiu concentrar-se no olhar dele, ele soube
que ela estava pronta para a submissão que ele desejava.
Will se retirou do corpo dela, mas estava longe de terminar. Ele a
colocou com os joelhos dobrados e de costas para ele. Ele ficou de
pé fora da cama e a puxou para a beirada. Seus longos cabelos
louro-escuros, empilhados em um chignon frouxo, estavam
bagunçados do jeito mais perfeito.
Ele se inclinou e reentrou nela devagar. Com as mãos agarradas
com firmeza nos quadris dela, ele começou a empurrar
vagarosamente, dentro e fora. Ele fechou os olhos e deixou a
necessidade de tê-la assumir o controle.
No quarto, o único som era o dos suaves soluços de prazer de
Hattie.
Enquanto Will acelerava o ritmo dos próprios impulsos, ele
segurou os mamilos dela e os apertou com força. Hattie gemeu.
— Faz tanto tempo que eu não a tomo assim. — ele murmurou
no ouvido dela.
Tê-la à mercê dele, fazê-la entregar-se a ele completamente, era
seu desejo mais profundo.
— Não seja gentil comigo, Will. Preciso que me tome com força.
Preciso que me marque, que me possua. — ela implorou.
Ele fez o que ela pediu, empurrando com mais força e mais
fundo do que já havia feito com o corpo disposto dela. Os gritos
insistentes dela, até que ele enfim se viu em uma corrente ardente.
O rugido dele ao atingir o ápice sacudiu a noite.
Capítulo Quarenta e Dois

— T udo pronto?
Hattie deu um sorriso encorajador para Edgar.
— Sim. — ela respondeu.
Seu longo vestido branco ocupava um pouco mais da carruagem
do que ela esperava. A princípio, ela optara por um modelo simples
de vestido de noiva, mas Miranda a convenceu do contrário. Uma
mulher caminhava até o altar da Catedral de São Paulo para se
casar uma única vez na vida.
A multidão ao lado de fora da catedral quando a carruagem se
aproximou fez o coração dela batucar no peito. Ao sair para a
calçada, ela pôde ver muitos dos amigos que se afastaram da
família nos últimos anos.
De pé ao lado deles, estava alguém que ela agora chamava de
amigo. O Reverendo Severo Brown estava entre os simpatizantes,
as mãos calmas ao lado do corpo, segurando a amada Bíblia. Ela
soltou a mão de Edgar e foi até ele.
— Obrigada por vir. Significa muito para mim. — ela disse.
Ele beijou a mão dela.
— Ele é um bom homem, o seu Sr. Saunders. Escolheu bem. —
ele respondeu.
— Joshua pede desculpas por não poder vir ao seu casamento.
Ele não queria deixar a mãe, mas pediu para dar isso a você.
Ele abriu a bíblia e pegou um pedaço de papel dobrado, que
entregou a ela. Lágrimas se formaram nos olhos de Hattie, assim
que desdobrou o papel e viu o desenho simples de Annie, de uma
árvore e uma casa.
— O Sr. Saunders encontrou um lar para eles no interior. Em que
todos eles podem viver com segurança. A Sra. Mayford pode ser
feliz pelo tempo que lhe resta nesta terra por saber que a família
tem um futuro. Joshua será o aprendiz de um ferreiro local, e poderá
sustentar Annie e Baylee nos próximos anos.
Hattie dobrou o pedaço de papel e enfiou-o na manga do
vestido. Sabia que nunca conseguiria salvar todos os pobres de
Londres, mas ao ajudar a Família Mayford, ao menos uma família
teria um futuro melhor.
— Entrará para assistir a Will e eu nos casarmos? — ela
perguntou.
O Reverendo Brown olhou para a imponente magnificência da
catedral de São Paulo com uma careta. A capela da Paróquia de St.
John não era nada parecida com a maior catedral de Londres.
— Bem, creio que nada de desagradável venha disso. Além do
mais, está prestes a se casar com o sobrinho do Bispo de Londres,
talvez possa dizer uma ou duas palavras boas de mim.
Hattie pegou a mão de Edgar mais uma vez.
— Estou pronta para dar mais um salto para o desconhecido. —
ela disse.
De mãos dadas, o irmão a levou pelas escadas e para a catedral
até onde Will e uma nova vida a aguardavam.
Querida Harriet,
Seu pai e eu estamos aqui em nossa modesta casa de campo
em Freetown, abraçando-nos e agradecendo a Deus que esteja
segura e em casa em Londres. Sua carta foi o maior presente que
poderíamos ter recebido.
Filha, não precisa implorar nosso perdão por pular do navio,
somos nós que devemos oferecer nossas mais humildes desculpas
por tentar forçá-la a uma vida que estava tão claro que não queria.
O fato de se ver forçada a um ato tão perigoso, só nos mostrou a
profundidade de nosso fracasso como pais.
O luto que sentimos ao longo daqueles longos meses
acreditando que estava morta, nos fez questionar muitas escolhas
que fizemos. Por favor, acredite que, quando retornarmos à
Inglaterra, será com corações amorosos e a esperança de que você
e seu irmão possam encontrar nosso perdão em seus corações.
Escreveremos de novo em breve contando mais do nosso
trabalho e vida aqui, mas queria ter certeza de que este bilhete
fosse no navio que parte para a Inglaterra hoje.
Sua mãe e seu pai amorosos e muito aliviados.
PS: Também pode gostar de saber que Peter Brown se casou
com sua criada, Sarah Wilson. Eles formam um casal sensato e
adequado. Ele faz exatamente o que ela manda.
Romances em português

Série
O Duque de Strathmore
Senhores de Londres

Para outros lançamentos e edições internacionais, por favor, visite

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O Duque de Strathmore

A Carta Escandalosa do Marquês


Um Amor Proibido para uma Dama
A Filha do Duque
Meu Cavalheiro Espião

Senhores de Londres

Apaixonada pelo duque espanhol


Sobre o autor

Sasha Cottman, autora best-seller do USA Today, nasceu na Inglaterra mas


cresceu na Austrália. Ter o coração dividido entre dois lugares resultou num amor
por viagens, que na última contagem estava em 30 países. Sasha tem sempre um
guia de viagem na sua pilha de livros novos para ler.

Ela escreve romances ambientados no período da Regência na Inglaterra,


Escócia e Europa.

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