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Rosa Negra

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Por D. Cruz de Lima
Rosa Negra
Primeiro Ato
Capitulo 1
“Os mortos não louvam ao Senhor, tampouco nenhum dos que
descem ao silêncio. ” - Salmos 115:17
Ela era jovem quando aconteceu, a vida pode ser tão injusta com as
pessoas erradas. Quando ela se lembra, é inevitável aos seus olhos se
encherem de lágrimas. Talvez, fosse inevitável para qualquer um. A morte
sempre foi um absurdo inevitável, não pelo ocorrido, mas pela
impossibilidade de sua reversibilidade. E isso corta mais profundo que
qualquer faca já criada pelo homem.
Ela o perdeu por volta dos seus trinta e alguns anos, naquela época,
ninguém imaginava que ele fosse morrer tão jovem, tão forte, tão belo e
saudável. Mas dizem que o abraço da morte nunca fora dos mais justos,
apesar de alguns estarem na trilha mais do que outros. E a morte é o fim,
não se tem expectativa depois disso, digam o que quiserem, você é apenas
jogado numa cova a sete palmos e fica lá até o pó. Foi assim e sempre será.
Mas para ela, era diferente, a morte poderia ser modificada, poderia ser
derrotada. Poderia ser reversível, bastava apenas buscar nos lugares certos,
achar a coisa certa. Ela acreditou eu poderia, em meio a tantos sóis, tantos
planetas, tantas galáxias, tanta imensidão, por que a morte deveria ser a
única coisa imutável? Por que o homem deveria se limitar e aceitar o fim?
Por que deveria se contentar em imaginar céus e infernos? Por que, assim
como tudo, a morte deveria ser tão diferente? Ela estava disposta a mudar
isso, ela estava disposta a conseguir, não tentar, ela faria o diferente, ela
seria o diferente.
Por isso ela estava ali, por isso estava no Egito dez anos após a morte de
seu amado, dez anos após o fim de sua vida.

...
14 anos antes
Era verão, ela tinha terminado o segundo grau. “Você sempre foi
inteligente” falava sua mãe. “Sempre foi o meu orgulho” dizia seu pai.
Palavras clichês, mas quando ditas para uma adolescente, lhes enchia de
orgulho de si mesma. Mas não, ela não era uma adolescente, ela era uma
adulta, cheia de planos e objetivos. Entraria para a faculdade no ano que
vem, com sorte, encontraria um namorado adequado para projetar suas
vidas juntos, tinha de ser um homem de visão, como seu pai, mas sem o
bigode.
E ela sorria quando pensava em ter um namorado, um companheiro, mas
não dependeria dele e nem esperava que ele dependesse dela, ambos
tinham de ser independentes que se unem e formam um coração perfeito. E
talvez ela não tivesse dificuldade, apenas para escolher, era bonita, sempre
fora, sempre ouvira isso e o espelho sempre lhes confirmava. Seus cabelos
eram negros na altura das costas, lisos e bem cuidados, além da franja
lateral. Seus olhos eram de um dourado acastanhado, seus lábios recheados
como se tivessem sido moldados por um escultor habilidoso e dedicado ao
trabalho.
Ela estava entre o cruzamento quando viu o panfleto, era uma tarde de sol
quente e brisa deliciosa. Ajeitou sua bolsa e coçou o pescoço sem perceber
quando leu “Curso de Violino: Todas as terças, quartas e quintas, as
14:00. - Aviso: Primeira Aula Franca - Bairro Luiz de Songoza, Rua
Amélia - Nº72”. Ali estava uma proposta interessante, que horas eram?
Acabara de almoçar, talvez tivesse tempo, a rua não ficava muito longe
dali. Deixou de olhar para o poste e olhou para uma mercearia que estava
aberta, ajeitou o vestido rosado e entrou como uma dama.
O homem com os braços sobre o balcão lhe deu um olhar de
interrogação.
– O que a senhorita deseja? – ele perguntou e ela fitou o relógio que
estava acima, ele olhou o relógio também e bufou dando de ombros e
abaixando a cabeça como quem tem sono.
Ela sorriu e saiu às pressas, era uma e doze, poderia pegar uma
carruagem e estar lá em instantes. Mas sozinha? Ora, quem se importava?
Começou a andar depressa em direção ao cruzamento, atravessou a rua
com pressa tomando cuidado com as sapatilhas para não sujar nas poças de
lama e viu dois cavalos parados amarrados a carruagem, o dono parecia ler
o jornal despreocupado, mas logo lembrou-se que não tinha consigo
dinheiro para pagar tal aluguel, ficou dois instantes parada diante a
carruagem atraindo o olhar do homem e virou-se com pressa.
Apressou-se entre as ruas, poderia chegar a tempo se fosse a pé, afinal,
ainda era cedo, só lhes bastava ter disposição. E teve, caminhou em meio
ao emaranhado de ruas. Sempre quisera aprender violino, sempre achara
maravilhoso o som que o instrumento fazia, era como ouvir o som de um
anjo. Então, não seria a indisposição que lhe atrapalharia. Além do mais,
se gostasse da aula, poderia falar com o pai em pagar as próximas, afinal,
não deviam ser tão caras assim e com a influência certa pela sua mãe,
poderia dizer que era um dom que uma moça devia de carregar consigo,
tocar algo.
Começou a preferir as coberturas fugindo do sol e acelerou mais o passo
passando por diversas placas de rua até que encontrou a placa da rua
“Amélia”, sorriu, havia conseguido, tinha encontrado a bendita rua, sabia
que a acharia pois já estivera ali antes. Agora, procurava com os olhos o
número, foi caminhando deixando o coração se acalmar, não podia
exagerar na falta de folego, a asma poderia lhes atacar. Então, parou de
frente para uma estrutura de um andar feita de tijolos. Na parte debaixo
uma vitrine empoeirada e ao lado uma escada para um corredor escuro.
A placa sobre a porta para a escadaria dizia “Aulas de Violino – Terças,
Quartas e Quintas – Primeira Aula Franca”. Adentrou pela porta, tendo o
cuidado de limpar a sapatilha antes com pequenas batidas e se deu no
começo das escadas que subiam para uma fraca luz de lamparina.
Olhou em volta e notou a sujeira das paredes e as teias de aranha que se
acumulavam no teto escuro, sentiu um receio grande de estar ali, parecia
que a luz morria ao tocar a porta. Recuou um passo e parou de súbito.
Estava sentindo medo? Era medo o que sentia ali? O lugar não era de fato
assustador, apenas faltava-lhe luz e estava sujo, é verdade, mas que artista
não é descuidado?
No entanto não era estupida, sabia que poderia muito bem haver perigos,
bandidos talvez ou até estupradores? Não se via casos e casos nos jornais?
Devia ir embora, voltar para casa e conversar sobre ter aulas particulares ao
invés de se arriscar em uma tolice como aquela. Sim, de fato, se alguma
jovem seria estuprada e morta ali, não seria ela, ela não, ela era sagaz,
inteligente e acima de tudo, adulto.
Deu dois passos e para trás e se virou para sair, foi quando parou de
súbito. Seus olhos se aquietaram e seu peito se acalmou com o som do
violino que entrava em seus ouvidos convidando-a a ouvir. Ficou parada
ouvindo a melodia em silêncio. Se viu arrebatada pelo som, deliciada com
a sensação que a preenchia. O medo lhes deixara com velocidade e agora
um encanto único tomava seu coração, se virou, queria ouvir melhor.
Começou a subir os degraus, um, dois, cinco degraus, parou no meio da
escada, não era o suficiente, subiu o resto e parou em seu topo. Fitou o
corredor iluminado pelas poucas lamparinas com quatro portas, onde a
última estava aberta e iluminada.
Ela caminhou com delicadeza agora, seguindo o som, o som das
sapatilhas foi abafado pelo tapete bege e as lamparinas não tremeluziam
mantendo sua sombra estável. O som do violino cantava uma melodia
calma e romântica, até mesmo triste. Quando estava a poucos passos da
porta, esgueirou-se encostando o ombro na parede verde azul marinho com
detalhes de rosas em lilás.
Se apoiando na madeira branca do portal olhou para dentro do quarto.
Foi então que viu talvez a cena mais bela que já vira em todos seus
dezessete anos. Um jovem de cabelos marrons e longos sobre os ombros
tocava seu violino enquanto a luz da janela entrava e o iluminava junto as
partículas de poeira do ambiente.
As cadeiras em volta assistiam maravilhadas enquanto seus olhos
fechados e sua boca carnuda sorria com o som que suas mãos brancas
faziam. Ela olhou seu rosto quadrado, suas bochechas delicadas, seu nariz
curvado, sua posição perfeita e ereta. O modo como os fios lisos do seu
cabelo brilhavam ao sol, o modo como uma de suas orelhas estava a mostra
para ela, o modo como seu colete negro sobre a blusa branca não tinha um
amassado, como sua gravata azul era bonita.
Ouviu o som e admirou o anjo que a tocava, admirou mais quando ele
abriu os olhos azuis e profundos com um brilho estonteante. Então notou
sua perna balançando com a calça cinza e o sapato social negro seguir o
ritmo da melodia e pouco a pouco ele começou a encerrar a música. E
enquanto ele encerrava os olhos dela seguiam o ritmo de suas mãos. Até
que ele parou e a olhou com o violino ainda em posição.
Ela arregalou os olhos e escondeu-se com velocidade. Ele havia a visto,
engoliu em seco e deu um passo para a corrida para fora dali.
– Chegastes cedo, mademoiselle. – falou a voz terna e firme. –
Geralmente costumam chegar dez minutos antes da aula, mas você foi
excepcional. Mostre-se s’il vous plaît.
Ela não entendeu as últimas palavras, mas reconhecia o francês e mais
ainda o português que ele dissera anteriormente é claro. Se mostrou com
um passo e ficou diante da entrada enquanto ele a olhava.
– Você... Nunca lhes vi aqui antes. És aluna nova, correto? – ela
acenou que sim para a pergunta dele e ele sorriu. – Caso não saiba, a
primeira aula é grátis. Claro, a senhorita chegou antes, mas pode entrar, s’il
vous plaît.
Entrou com calma, escondendo o impacto que ele causara e torcendo para
que seu rosto não demonstrasse com nenhuma ruborização o que sentiu ao
vê-lo ali, mas calma, ele ainda podia se demonstrar uma decepção em
comparação ao belo violinista apresentado ali. Sua mãe sempre lhes dissera
que a beleza não garante o caráter, mas aquele rapaz... Não, o mesmo
deveria ser aplicado ali, sem exceção, começou a torcer der repente que ele
se mostrasse um cafajeste e que se decepcionasse logo, assim poderia sair
dali satisfeita. Mas o que ela estava pensando? Estava pondo a carruagem
na frente dos bois! Ela nem sabia o seu nome, nem qualquer coisa além de
que tocava violino de forma excepcional, afastou os pensamentos e sentou-
se em uma cadeira de madeira do lado mais extremo da sala.
– Você não fala, mademoiselle? – ele sorriu mostrando os dentes
retos e brancos.
– Logicamente, Senhor...? – respondeu ela erguendo as sobrancelhas
finas.
– Alain Beaufort. – respondeu ele pondo o violino na cadeira ao lado
como quem põe uma seda extremamente cara sobre o corpo de uma dama.
– E a, senhorita?
– Me chame apenas de “madame” e me darei por satisfeita. –
respondeu ela com as mãos sobre o colo, mas em nenhum instante
querendo demonstrar sua queda pela beleza do homem a sua frente.
– Perfeitamente, mademoiselle, perdon, madame, desde que me
mudei para o seu país tenho dado tropeços para esquecer o meu francês. E
meu português deixa a desejar, eu sei.
– Discordo. – ela respondeu e ele ergueu as grossas e bem
desenhadas sobrancelhas.
– Discorda? – ele sorriu.
– Sim, seu português tem um sotaque é verdade, mas não deixa a
desejar.
– Bom, se é assim, eu estou agradecido, madame. – falou ele a
fitando com os lábios entreabertos enquanto o sol fazia-o brilhar de certa
forma.
– Então, o violino. – ela falou ele pareceu despertar de algo e olhou
para o violino ao seu lado.
– Sim.
– Você é o professor, correto? – ela perguntou.
– Sim, sou o professor. – sorriu ele, ele sorria demais, isso costumava
incomodar ela nas pessoas, mas o dele, não incomodou, não parecia
forçado ou mascarado, era sincero.
– Pois bem... – disse ela e olhou em volta, sabia que era falta de
etiqueta, mas sua mãe não estava por perto para repreender. Seus olhos
olharam todos os estojos de instrumentos e a mesa velha e empoeirada no
canto, além da estante com dezenas de livros empoeirados. Seu olhar parou
nas várias folhas com notas. – O lugar é seu?
– Sim é. – ele olhou em volta como se nunca houvesse estado ali
antes. – Devo me desculpar por toda a poeira e a péssima iluminação, mas
por incrível que pareça, as aulas de violino não vão bem.
– Não? – perguntou ela deixando escapar a surpresa.
– Não, tenho alguns alunos, quatro na verdade. Mas não vem muitas
pessoas aqui, por isso o anuncio de aula grátis, assim as pessoas podem
conhecer e se encantar pela arte. – contou Alain.
– É uma boa ideia.
– Acha?
– Sim.
– Isso é muito para mim vindo de uma jovem tão bonita. – ele sorriu
a olhando e ela sentiu seu rosto enrubescer.
– ... A loja embaixo, está abandonada? Não a usa? – buscou ela dizer
desviando seu olhar do dele, sem dúvidas ele era belo...
– Ohhh, não, aquele lugar precisar mais de uma limpeza do que aqui
em cima. – falou ele passando a mão no cabelo para joga-lo para trás
mostrando melhor o rosto de traços finos. – Digo, não tenho tempo. Tenho
dado duro com as aulas e treinado bastante.
– Humm, compreendo. – falou ela. – Eu sempre quis aprender
violino.
– Jura? – ele ergueu as sobrancelhas, por um instante ela franziu o
cenho pensando ser desdém, mas depois reconheceu ser pura curiosidade.
– Sim... – ela deu um leve sorriso e ele sorriu menos contidamente
em resposta.
– Bem, os outros alunos estão um pouco adiantados, eu não poderia
te dar a atenção adequada. – disse ele pegando o violino e se levantando. –
Por que não aprendes agora? Venha, levante-se, permita-me.
Ela arregalou um pouco os olhos de nervoso, mas levantou-se apesar do
nervosismo que surgiu. Ficou em pé de frente a ele e Alain se aproximou
com o sorriso e lhes ofereceu o violino junto com o arco, ambos de madeira
escura. Ela ergueu a mão com cuidado e pegou a peça com estrema
delicadeza, em seguida ele lhes deu o arco e ela os segurou. Ela apoiou a
peça sobre sua clavícula e contra o pescoço com sutileza e apoiou o queixo
na peça, em seguida pôs o arco por cima das cordas sem esperar que ele
desse conselho algum.
– Céus, sua posição, está perfeita, me enganas, já tocastes antes, não?
– ele perguntou e ela sorriu acenando negativamente. – Só falta uma coisa,
relaxe, está demasiada tensa.
Ela suspirou e relaxou mais o corpo.
– Agora, vou te ensinar uma nota, o dó. – ele falou encostando a mão
na dela, ela o encarou e ele hesitou. – Me permite? – ela acenou que sim
com a cabeça e ele tocou sua mão, com um toque quente e confortável,
mãos ásperas, mais do que ela esperava, mas ela gostou. Com gentileza ele
pôs a mão dela junto com o arco sobre a nota. – Agora, empurre com
delicadeza.
– Isso, isso. – ele disse empurrando o arco junto a ela sobre as cordas
e o som começou a sair. – Agora, recue, recue. Isso. – ela sorriu ouvindo a
nota do dó saindo. – Perfeito, perfeito, agora de novo, vamos me dê o som
mais uma vez. Vê, o dó, fica a oito centímetros do da dispação do
instrumento. Lindo, não?
– Sim! – ela sorriu e em seguida recuou o sorriso com a mesma
velocidade que o fez.
– Que belo sorriso esse que você tem ai... – ele falou e ambos se
fitaram com um magnetismo surgindo em seus olhares.
– S-sua nota é quase perfeita, mas falta uma coisa. – ele falou.
– Falta?
– Oh sim, você não pode ser tão bonita e também ser perfeita na
primeira vez que pega em um violino, permita-me. – ele deu a volta em
torno dela tocando em seus ombros fazendo ela estremecer e pegou em
suas duas mãos, como em um abraço. – S’il vous plaît, vou te guiar de
melhor forma assim.
– Claro... – ela falou baixinho e ele foi guiando-a, fazendo o Dó sair
perfeitamente fluido, em seguida o Si e depois o La. E cada vez mais ela
ficava encantada com a fluidez que as notas tinham, então, ele ficou mais
próximo dela e suas instruções começaram a ficar baixas como um
sussurro.
– Muito bom, madame... Muito bom, meu doce... – ele falou
baixinho e ambos trocaram um longo olhar.
Ele tocou o violino com a ponta dos dedos e ela o abaixou permitindo
que seus rostos se aproximassem mais. Então ela olhou a boca dele e ele
olhou a dela como duas crianças e então ambos sorriram. A poeira na sala
brilhava como pequenas estrelas e o ar estava carregado com o perfume
adocicado dele.
– Eu poderia beija-la agora, madame... – ele disse baixinho olhando
os lábios dela e encostando a mão em seu maxilar.
– Poderia tentar. – ela disse e ele sorriu começando a aproximar os
lábios do dela e fechando os olhos.
– Cheguei tarde? – interrompeu uma voz e ele parou e virou o rosto
para a porta.
– Ohh, Salut, Pedro, chegou no horário como sempre, pegue uma
cadeira e se sente. – disse Alain e o garoto gordo entrou com seu estojo na
mão e se arrastou uma cadeira fazendo um som estridente e se sentando.
– Eu tenho de ir. – respondeu ela se afastando dele e entregando o
estojo. – Obrigado pela aula.
– Oh... De rien... Nos vemos depois? – ele perguntou enquanto ela
se dirigia às pressas para a porta.
– Não sei. – ela respondeu.
– C-claro, madame... A tout à l’heure. – Alain falou e ela saiu pelo
corredor, deu de encontro com uma mulher de vestido branco um pouco
mais velha e extremamente formosa, teria ela algo haver com ele? Deveria
ser mais uma aluna, saiu às pressas descendo as escadas e mal disse
desculpas.

Capitulo 2
Os camelos iam devagar, parecia que o sol não influenciava em nada na
disposição dos camelos. O vento soprava o emaranhado de pano que
protegia sua cabeça e seu rosto, pelas roupas masculinas, se vista de longe,
se poderia facilmente confundi-la com um homem. As botas marrons, a
calça bege e a blusa de botões branca com as mangas arregaçadas
entregavam uma imagem masculina em meio aos outros dois camelos.
Ela havia investigado durante dez anos de sua vida, lendo das mais
diversas mitologias, culturas, feitiços, mantendo distância apenas de pactos
e afins pois não tinha uma gota de crença em tais coisas. Viajou bastante
pelo “velho mundo” e um tanto pelo novo, não chegou a explorar tudo, isso
era verdade. Como mulher, teve seus problemas devido a alguns modos e
preconceitos, mas nada que não pudesse lidar com ousadia e coragem.
Foi numa exploração no Peru que ela encontrou relatos de um pesquisador
morto de febre amarela. Nos documentos se dizia sobre a imortalidade e o
Livro dos Mortos de Mahoki escondido em algum lugar no Egito, um livro
capaz de trazer os mortos de volta a vida e com outros feitiços
extremamente poderosos, desde chuva, até fogo dos céus. Não era a
primeira vez que ouvia falar dele, mas não era com esse nome. Descobriu
que o pesquisador havia feito um mapa com linhas traçadas que apontavam
para um ponto, ponto esse que ela estava chegando, estava finalmente perto
de trazer seu amado de volta?
A dama parou seus camelos os quais carregavam vários objetos como suas
roupas, galões de água, sua espingarda e dois revólveres que havia
comprado recentemente encantada tanto pela sua beleza prateada, quanto
pela sua potência, ainda não tivera a chance de testa-los infelizmente. Além
disso, uma pá, alforjes e outras tralhas uteis.
Desmontou do camelo e pós os coldres em volta da cintura com várias
balas e as armas, em seguida pegou um bastão de madeira que trouxera e
enchera dois cantis, colocando um na mochila de couro e o outro
pendurado por uma tira cortando caminho pelo seu tronco. Fincou uma
estaca e amarrou os camelos.
Olhou o mapa, estava no local certo, olhou em volta por um tempo, até
que viu. Havia um buraco escuro, quase imperceptível pelo modo como a
areia se modificava. Pegou sua luneta e a apontou para o buraco por um
tempo, em seguida olhou acima dele, para o horizonte e depois, toda a
volta, ninguém.
Jogou as coisas no chão, quase se esquecera de comer, como alguém
podia se esquecer de comer quando se tem tanta fome? Soube a resposta
antes mesmo de se perguntar, o objetivo a alimentava. Sentou-se a sombra
do camelo e comeu um pouco do pão que trouxera bebendo da água de um
dos cantis com velocidade quase pondo tudo pra fora por um instante. Em
seguida relaxou um pouco, sentiu a brisa do deserto, banho, faz tempo que
ela não tomava um, era disso que precisava. No entanto, em segundo lugar,
o buraco era mais prioridade que limpar a areia em suas curvas.
Se levantou e se alongou, em seguida com o bastão a frente foi
caminhando, usando-o de prevenção para ter certeza que não iria entrar em
nenhuma areia movediça, afinal, não havia ninguém para salva-la ali e nem
em outro lugar. Foi se aproximando cada vez mais do buraco, notando que
na verdade parecia a entrada de uma caverna e a areia havia tapado. Pegou
o revolver e o destravou se aproximando com ele apontado do lugar, se
houvesse alguém ali, algum bandido pronto para roubar forasteiros, ela não
cairia em suas mãos.
Poderia muito bem ser uma toca agora ou um lugar escondido para
guardar roubos, haviam várias possiblidades e ela tinha de estar pronta. Foi
se aproximando mais, até que chegou a frente do buraco, nada, apenas
escuridão. Não quis gritar ou chamar, não seria inteligente, mas o lugar
parecia ser profundo. E apesar da entrada estar quase impossível, se
cavasse poderia adentrar na caverna e a explorar decentemente.
Voltou aos camelos, pegou a pá e parou um tempo para pensar, largou
tudo, devia ficar leve. Sabia que seria exaustivo, fosse o que encontrasse,
mesmo não sendo o livro em si, mas a deixasse mais perto do Livro dos
Mortos de Mahoki, estaria satisfeita. Voltou a abertura e começou a cavar,
cavou, cavou, tirou os panos da cabeça e prendeu o cabelo com uma fita.
Em seguida lamentou-se por não ter usado o óculos de proteção quando a
areia atingiu seus olhos por causa do vento, como se esquecera de algo tão
importante? No entanto, ela tinha um buraco ali, estava cansada, mas era
aberto o suficiente para que passasse, no entanto, um homem não
conseguiria.
Já ia entrar quando se impediu, o lugar era escuro, ela precisava se
preparar melhor. Preparou duas futuras tochas e as amarrou as costas, pego
a mochila, os coldres, tudo de novo, agora sim. Foi a entrada da caverna e
escorregou para dentro. Agora estava na hora de bancar a exploradora.
Ascendeu a tocha com os palitos de fosforo e iluminou a caverna. Não
era nada mais que esperava, rocha e areia. Já ia dar um passo, quando
lembrou da possibilidade de haver perigos no chão ali também, pegou o
bastão e foi caminhando com ele sempre a frente e a tocha seguindo. A
caverna seguia por um corredor até dar em um grande espaço aberto com
rochas pontudas no teto e um lago a sua frente. Poderia usar para se
abastecer, mas não era tola, teria de coar e aquecer para se livrar das
infecções que a água parada pode trazer.
Ergueu a tocha para ver a extensão do lago, não era muito grande,
poderia circula-lo pelas beiradas rochosas sem dificuldade e começou a
fazê-lo usando os dedos da mão que seguravam o bastão de apoio para
agarrar nas rochas pontudas e deformadas da caverna.
Der repente viu um movimento na água e mexeu a tocha para a mesma,
mas o movimento havia desaparecido e o lago continuou como um buraco
sombrio, isso a amedrontou e a fez ficar parada, imóvel, apenas
observando.
A água estava quieta, silenciosa e calma. Os olhos dela buscavam,
nenhum membro seu se movia, sua testa começou a suar. O que escondia
ali? Peixes é claro... Mas e se não fosse isso? Já vira tanto, ouvira tanto e
quando pequena, sempre ouvira falar de lugares como esse, com águas
escuras e carregados de monstros pré-históricos isolados e famintos.
Monstros que esgueiram da água e agarram os pés na margem.
A dama recuou os pés enquanto sentia o suor. Então suspirou, estava
parecendo uma garotinha ali, parada, diante de um lago sentindo medo
dele. Tudo isso porque era escuro. Um absurdo sem dúvidas, ela continuou
seu caminho e atravessou, mas sem tirar os olhos da água, era inevitável.
Quando chegou a outra ponta do lago deu as costas, mas voltou a olhar
para ele mais uma vez, foi quando viu o movimento. Estava acontecendo,
bem ali, um movimento fluido e rápido na água. Começou a pensar nas
armas que tinha consigo, o bastão, as pistolas, a tocha, uma faca
embainhada junto as armas, mas o que adiantaria contra um monstro?
Largou o bastão e sacou o revolver destravando-o, o mostro que tentasse,
ela atiraria, era uma mulher armada e pronta.
Foi quando sua imaginação parou ao ver o que saiu da água, uma cabeça
grande e esverdeada com dois grandes olhos negros, seu formato era
triangular.
– Venenosa. – ela sussurrou sentindo o medo lhes preencher. Deveria
ter trazido a espingarda, mas pensou que não seria necessário, agora que
via a cabeça sair pra fora da água e lhes fitar, sabia que seria extremamente
útil.
A cobra se ergueu da água mostrando um corpo grosso e negro. Mostrou
suas escamas saindo do lago e olhando a dama, mostrando o quão poderosa
e deixando claro quem era o predador. Ela se preparou para atirar, então,
não muito longe viu a cauda da cobra com o chocalho balançando. Isso era
mal. Estava diante de uma cobra que deveria ter dez metros, que era
venenosa e que estava faminta e tudo que separava ela do monstro era uma
tocha e uma pistola com seis balas.
Já vira o que uma picada de cobra venenosa fazia... Vira cobras que
tinham um veneno tão terrível que quando picava alguém fazia o lugar
inchar e apodrecer, além de sua picada ser fatal. Essa, ela não sabia a
espécie, mas sábia que iria quebrar todos os seus músculos e ossos e lhes
engolir inteira. Ela precisava fazer algo, agora.
A cobra pôs a língua pra fora e abriu a bocarra mostrando os dentes
molhados de veneno, o chocalho. Iria atacar, iria atacar. Ela poderia pular
para o lado e desviar, certo? Não, ela não era uma atleta, fizera exercícios,
caminhadas, todos esses anos, mas não era uma atleta, era uma mulher
diante de uma maldita cobra faminta e teria de lidar com isso. Teria de
enfrentar.
A cobra atacou com a boca aberta, veloz e mortífera, a dama também foi.
Com um grito e com a tocha furiosa por ter sentido medo. O suor voou de
seu rosto enquanto avançava. A enorme boca se abriu contra seu rosto e os
dentes brilharam, tudo aconteceu extremamente rápido. A tocha entrou na
boca da cobra perfeitamente incendiando a mesma, a dama parou seu
avanço e continuou enfiando a tocha, no entanto fez um movimento rápido
pondo seu revolver na frente agora. Atirou diretamente na cabeça
incendiada, atirou mais uma vez enquanto a criatura se contorcia e atirou
mais e mais com um grito furioso, descarregou toda a arma na cobra.
O grito morreu junto com as balas, no entanto a cobra ainda se contorcia,
a chama se apagou e ela ficou no escuro apenas ouvindo o som do corpo se
contorcendo. Ascendeu a outra tocha e iluminou o corpo que agora estava
se contorcendo fora da água, era enorme assombroso. Guardou a arma,
pegou a faca e com o cenho franzido enfiou a faca no lombo da cobra,
começando um corte horizontal para remover a cabeça. O sangue sujou
suas mãos, mas estava vingada. Respirou agora, parecia que não tinha
respirado a luta toda, deixou a adrenalina ir embora, estava atônita, foi até o
lago e lavou as mãos junto com a faca.
Respirou, sentiu o suor no corpo, pegou um pouco de água e molhou o
rosto e a blusa para refrescar. Em seguida embainhou a lâmina, pegou a
cabeça da cobra queimada e a arremessou no lago, sem resposta, deu as
costas e seguiu caminho com a tocha em mãos e o bastão na outra.
– Vadia... – praguejou.
Foi caminhando caverna a dentro, sentindo a empolgação e a frescura da
caverna ao contrário do deserto lá fora. Sentiu-se orgulhosa de si por ter
enfrentado a cobra com tanta coragem, por ter conseguido matar aquele
monstro inacreditável, já havia enfrentado muitos desafios, a cicatrizes em
seu corpo mostravam isso, mas nunca enfrentara uma cobra tão grande,
será que era a maior do mundo? Não, o mundo era grande... Enorme e
aquilo, era só uma das feras que se escondia nele, uma das feras que ouvira
quando criança.
Parou de pensar nisso de súbito, encontrou a sua frente o fim do corredor,
rocha pura. Observou em silêncio, nós dez anos que carregava consigo
aprendera que aquilo não significava fim da linha, passagens secretas,
marretas, tudo era possível. Observou a parede, a tocou, buscou sinais de
que ferramentas tenham sido usadas nela, não encontrou nada, se sentou e
bebeu da água, a boca estava seca.
– O que eu faço? – perguntou-se.

...
14 anos antes
Ela estava deitada na cama, lendo, mas várias vezes se pegou perdida da
leitura nas mil coisas que pensava. E novecentas e noventa e nove dessas
mil coisas eram Alain... Maldito seja Alain... Ela o procurou, é claro que
procurou, levou três dias se agonizando consigo e resolveu finalmente
procura-lo, aquele momento... Foi especial e bonito até...
Ela tinha ido até lá, até sua sala, aonde ele ensinava violino, mas quando
chegou lá... Ele estava ensinando aquela mulher, sorrindo para ela, apenas
os dois e seus olhos se avermelharam vendo aquilo, ela correu para longe...
Mas ele não estava abraçando ela, apenas tocando a mão dela... E se ela
tivesse visto coisas? Deus não faria isso com ela, certo?
Tola, era isso que estava sendo, além de infantil, tiveram um momento e
só, não havia porquê de tanto alvoroço. Mesmo assim, não quis se levantar
da cama, queria ficar passando a mão sobre o cobertor de algodão e
sentindo seu calor. Então ouviu um bater apressado na porta, sabia que era
sua mãe pelo modo que batia, se fosse seu pai a batida seria mais contida e
com pausas maiores.
– Levante, você tem visita, um cavalheiro. – falou sua mãe.
– Que cavalheiro? – ela perguntou.
– Um rapaz de cabelos lisos, com sotaque estranho, disse que lhes
conhecia. Desça logo, seu pai está com ele.
Era ele, só podia ser ele! Mas como ele a achou? Isso não importa, tinha
de se arrumar, se arrumar e rápido! Não, não pode parecer que se arrumou
para ele ou coisa assim, tem de parecer natural, pouca maquiagem. Passou
um pouco de batom rosados nos lábios e um pouco de pó nas bochechas,
após isso, ajeitou os cabelos e desceu trajando um vestido simples de renda,
mas bonito.
Quando chegou a sala seu pai fumava por debaixo do bigode um
cachimbo e o outro homem estava sentado na outra poltrona, não era
Alain... O homem era talvez da mesma altura de Alain, mas era a única
semelhança, era mais velho, apesar de bonito, seus olhos eram de um tom
alaranjado e seus cabelos eram negros e lisos penteados para trás,
sobrancelhas espessas e nariz quadrado, deveria ter seus quarenta e oito
anos e uma barba grossa.
– Senhorita... – falou ele se levantando da poltrona e fazendo uma
reverencia.
– Prazer, senhor...? – perguntou a dama erguendo as sobrancelhas.
– Senhor Afonso Reis. – ele disse ajeitando o terno xadrez.
– O senhor Afonso, filha, veio aqui só para te conhecer. – falou seu
pai passando a mão nos cabelos grisalhos.
– E porque de tanto interesse em mim, posso saber? – perguntou ela.
– Filha... – o pai a olhou, mas o homem de cabelos negro apenas
sorriu por debaixo do bigode.
– Eu conheço seu pai a um tempo e bem, trabalhamos juntos,
entende? Então, eu lhes trouxe um presente. – o homem sorriu e pegou a
caixa em formato de coração que estava sobre a bancada ao lado da
poltrona que ela não havia notado.
– Obrigado. – ela agradeceu e pegou a caixa.
– Por favor, abra. – Alfonso disse e ela abriu vendo os vários bombos
de chocolate.
– Parecem uma delícia, Senhor Alfonso, nem sei como agradecer. –
ela sorriu.
– Só, Alfonso, por favor, ainda não estou tão velho assim. – riu ele. –
Só me permita, fazer mais visitas como essa a sua pessoa. Mais longas é
claro, vim hoje com certa pressa devido ao tempo que pouco tenho.
– Você é sempre bem-vindo a nossa casa, acredito, como amigo de
meu pai. – disse a dama, entendeu o que estava acontecendo quando o vira
ali e entendera mais ainda depois do seu pedido, no entanto. – E como um
tio. – o homem abriu a boca para responder, mas ela o abraçou e lhes deu
um beijo na bochecha. – Obrigado, tio Alfonso. Não se importa de eu
chama-lo de tio, certo? Todo amigo do meu pai com certa idade eu chamo
assim.
Alfonso ficou perdido e sorriu um tanto vermelho.
– Ora, melhor forma de agradecimento eu não poderia pensar. – disse
o cavalheiro. – Pois bem, acho que tenho de ir, o tempo voa e só vim trazer
isso e vê-lo Érico. Foi um prazer está aqui. – ele disse e beijou a mão dela
e cumprimentou a mão de seu pai, se retirando da residência.
– Tio?! – questionou sua mãe entrando na sala descabreada. – Tio? O
homem vem aqui, lhes traz uma caixa de bombom e você o chama de tio?
Pelos céus garota, quer ficar solteira para sempre? Érico, fale com a
menina.
– Feio ouvir conversa alheia mãe e antes que digam mais qualquer
coisa: não me tragam mais um homem que tem idade pra ser meu tio como
pretendente. – ela falou pondo a caixa debaixo do braço, a mãe ergueu a
sobrancelha e arregalou os olhos, mas o pai deu uma risadinha.
A dama subiu escada acima antes que a mãe começasse o sermão e se
trancou no quarto com a caixa e seus pensamentos, deveria ter sido ele,
deveria ter sido Alain... Não o “tio” Alfonso. Deveria tentar se encontrar
com ele? Poderia ir com a desculpa de que resolveu se inscrever na aula,
mas nem comentara com os pais... Ela poderia convence-los, mas e se ele
estiver com aquela mulher? Seus pais não a tirariam do nada das aulas,
teria de frequenta-las e ver aquela mulher perto dele....
Se levantou da cama e alongou o corpo, tinha de sair para tomar um ar.
Foi o que fez, assim que saiu se dirigiu para uma praça que não ficava
muito longe de sua casa.
O tempo estava fechado e ela comia um pedaço de bolo quando
aconteceu.
– Você sumiu. – falou ele fazendo-a virar e perder as palavras de
surpresa.
– Alain... – ela disse.
– O próprio, não foi mais as aulas, não gostou?
– Não é isso.
– Não? – perguntou Alain.
– Não. – a dama respondeu olhando para duas crianças que
brincavam de amarelinha. – Quem era aquela mulher?
– Que mulher?
– Uma mulher alta de cabelos loiros.
– Ahh, essa mulher, é a Senhora Patrícia.
– Humm.
– Mas porque a curiosidade? – ele falou ajeitando o casaco marrom.
– Nada. – ela respondeu sem dirigir o olhar a ele.
– Ahh, não. – ele riu e ela o encarou perdida. – Eu não tenho nenhum
envolvimento com a Senhora Patrícia, nem pensar. E também eu tenho dois
motivos que impedem isso.
– Não me interesso por eles. – estava irritada pela vergonha e com
ele também.
– Mas vou dizer mesmo assim. – ele sorriu e ela suspirou fingindo
desinteresse.
– Ela é casada. – ela sentiu um misto de alivio e surpreso com aquela
declaração. – E tem mais uma coisa.
– O que? – não resistiu perguntar e quando se deu conta já havia
feito.
– Aquele dia, você com o violino... Foi a coisa mais bela que eu já vi
em muito tempo. E o que eu senti quando fiquei perto de você... Aquilo...
Não vai me dizer nem ao menos seu nome antes de me dispensar?
– Pra que saber meu nome agora? – ela perguntou se aproximando
dele der repente e fazendo os olhos de Alain brilhar, então ela sorriu.
– Você não vai me dispensar?
– Não... – ela disse e ele expressou alivio se aproximando do rosto
dela assim como ela fazia o mesmo.
Então seus rostos foram se aproximando, foram ficando cada vez mais
próximos e suas bocas foram indo em direção uma da outra quando uma
forte chuva começou a cair fazendo os dois pararem e olharem para o céu.
– Não acredito. – suspirou Alain e ela se levantou. – Não vamos
terminar?
– Olhe para essa chuva, Alain, venha, vamos para uma cobertura. –
ela sorriu e os dois correram para não se molhar, se refugiaram num bar
que fechou as portas para as gotas não entrarem com o vento.
Sentaram-se numa mesa e olharam pelo vitror como a chuva ficava cada
vez mais forte.
– Mon Dieu, parece o fim do mundo. – falou Alain passando a mão
no cabelo.
– Sim. – ela sorriu.
– Garçom. – Alain acenou com a mão para o homem no balcão. –
Você tem café?
– Não servimos café, isso aqui é um bar. – respondeu o homem
coçando a barba.
– Mas você tem café?
– Tenho, duas xicaras? – ele sorriu.
– Perfeitamente. – respondeu Alain sorrindo e o homem foi preparar
as bebidas.
– Não precisava. – ela falou.
– Ora, nós passamos de um quase beijo para um primeiro encontro
num bar. Estamos indo rápido.
– Não era um beijo. – ela disse.
– Não?
– Não, eu só estava querendo te olhar nos olhos melhor.
– É claro. – ele riu. – Que bobo eu. – ele estendeu a mão para pegar
na mão dela, o lugar só havia mais dois clientes num canto bebendo os
quais não lhes deram atenção e ambos se olharam da mesma forma de
antes.
Dessa vez ela foi mais para frente com o corpo e ele avançou em seguida,
ambos sorrindo da mesma forma que das duas outras vezes. Suas mãos se
cruzaram e seus dedos entrelaçaram e então aconteceu. Finalmente seus
lábios se tocaram, finalmente suas bocas se abriram e finalmente
compartilharam seus sentimentos. E enquanto se beijavam, a fumaça do
café em sua mesa subia despercebida e a chuva lá fora banhava as pedras
da rua.

Capitulo 3
Estava irritada, sentada ali, com as costas contra a rocha que lhes parara,
deveria ter trazido uma picareta ou marreta? Não adiantaria pelo que estava
vendo da parede, era dura e grossa, talvez não tivesse nada atrás dela, era o
fim da linha, podia ver pois a parede e o teto eram um só, não era uma
passagem, não havia passagem nem para insetos, nem buracos, nem droga
de nada. Era como aquela barreira que nos impede de realizar nossos
sonhos.
Abaixou a cabeça e começou a fazer algo que evitava fazer, começou a
pensar em seu marido... Começou a pensar no quanto o amara... No quanto
ainda amava, se encolheu um pouco consigo e apoiou os braços no joelho,
mas não se abraçou. Deixou uma lágrima escorrer e deixou o coração sentir
as facadas um pouco. Não, não deveria sentir saudades, ele logo estaria de
volta, ela iria dar um jeito. Sim, e aquela parede não iria desanima-la,
talvez só precisasse – Dar uma olhada em volta. – falou se erguendo e
limpando a calça com tapas.
Voltou em direção ao lago, agora analisando tudo com cuidado, usando a
tocha para ver cada imperfeição nas paredes da caverna, qualquer coisa que
indicasse uma passagem, teve até a ideia de bater o bastão procurando uma
superfície oca. Nada.
Continuou caminhando até que chegou até o lago. Pensou olhando seu
reflexo com a tocha na superfície dele, mergulhar seria burrice, pelo
menos, por enquanto. Olhou o corpo da cobra, em seguida olhou para o
teto, as rochas pontudas, em seguida viu algo, um buraco, escuro, quase
impossível de se enxergar. Era uma entrada, tinha de ser pela forma
quadrada e as linhas esculpidas a sua volta.
A dama encarou a entrada, refletiu consigo mesma durante minutos a
fio, com uma concentração assombrosa, sua mente maquinou e maquinou,
deveria haver escadas, deveria haver formas, mas muito esquecidas,
cordas? Os egípcios são mais sofisticados que isso...
Olhou em volta, então foi para a margem do lago, foi indo mais para o
lado por onde tinha vindo, só que dessa vez prestando atenção na parede
que encostara as costas, foi ai que viu. Haviam degraus nela, quase
imperceptíveis e extremamente desgastados, deveriam ser mais grossos
antes, mas agora pareciam mais entradas na parede. Poderia escalar por ali,
sabia que sim, mas como chegaria até o buraco?
Ela tinha cordas, nos camelos. Poderia usar as cordas nas pontas, só
precisava voltar até eles. Atravessou o resto da margem e chegou até a
outra ponta, correu para o buraco, estava ansiosa, eufórica, sentia que
estava perto. Cavou pra fora com as mãos e saiu com certo esforço e suor
pelo buraco e foi em direção aos camelos amarrados que esperavam sobre o
sol pacientemente.
Abriu uma das mochilas e pegou o rolo de cordas, não era muito, mas
eram reforçadas e deveriam servir. Voltou a caverna às pressas, o sol já
estava se pondo, isso não era bom, a noite seria fria, sabia disso, por isso
carregou consigo os vários tecidos debaixo do braço.
Ao voltar a caverna pôs os tecidos grossos dentro da mochila e a pôs de
volta nas costas, voltou ao ponto onde achou a escada e começou enfim a
subir, estava avançando.
A escada era de difícil escalada apesar de tudo e segurar uma tocha na
boca não ajudava em nada, afinal, era uma estupidez, ela sabia bem. Subiu,
subiu, subiu até que chegou ao topo, era alto, definitivamente, ali amarrou a
corda em volta do corpo e fez um laço que pretendia jogar nas rochas
pontudas.
O plano todo era simples, jogaria a corda com o laço, puxaria
permitindo que ficasse rígido e bem preso, saltaria para a rocha, tiraria o
laço, arremessaria na próxima e assim ir fazendo até chegar ao buraco, mas
essa não era a parte mais difícil, sabia.
Preparou o laço, arremessou de cima para baixo na estaca e quando ele
estava no ponto mais alto da rocha, apertou. Nesse momento deu um forte
puxão para testar a resistência da rocha, não quebrou, nem mesmo tremeu
ou afrouxou. Pronto, agora só era saltar até ela, caso caísse, teria de confiar
que aguentaria seu peso.
Foi até a ponta e respirou fundo, era só saltar, vamos, ela podia fazer
isso, era forte e já fora a lugares mais altos... No entanto com mais
segurança.
– É só saltar! Vamos lá, não precisa ficar nesse receio, você só
precisa saltar e agarrar aquela rocha como se fosse a última coisa da terra. –
discursou. – Salte. – as pernas não se moveram. – Eu disse, salte. Eu não
consigo...
Fechou os olhos e pensou nele, pensou em seu amado, pensou no que
precisava fazer para traze-lo de volta... Pensou que ele era tudo de que
precisava, que ele era o homem de sua vida mesmo agora e a única coisa
que estava te impedindo de tê-lo de volta era ela mesma. Abriu os olhos e
franziu o cenho cerrando os punhos.
– SALTE, AGORA! – vociferou e correu em fúria contra a ponta
saltando no último instante e erguendo os braços para frente enquanto o
rastro de areia a seguia no ar.
Por um instante pareceu estar voando diante de tudo aquilo, pareceu
invencível, pareceu única. Agarrou a rocha pontuda com força, como um
abraço e gemeu sentindo os braços ralarem quando quase escorregou. Os
braços ardiam, mas deu a volta na pedra com cuidado enquanto o suor
descia pelo rosto sujo, tirando o laço com extremo cuidado e o preparando
para a próxima rocha.
Arremessou, perfeito como o esperado, fincou, puxou, saltou. Próxima,
arremessou, não conseguiu, de novo, arremessou, de novo, arremessou,
fincou, puxou, saltou. Próxima, próxima, próxima, chegou a última rocha e
agora só restava o buraco, teria de saltar pra ele, saltar da rocha para cima,
um salto extremamente difícil, mas não impossível.
Desamarrou o laço e o arremessou para dentro do buraco tentando
agarrar algo, nada. Tentou mais uma vez, nada, outra, nada, não havia nada
lá para que usasse, teria de saltar naquele escuro contando com suas
próprias habilidades. Não, não no escuro, amarrou a corda na rocha
novamente e ascendeu a tocha, em seguida jogou a tocha dentro do buraco
e visualizou onde agarraria.
Então, chegou o momento do salto, não poderia ficar ali agarrada a
rocha, mas orou antes, rezou o pai nosso três vezes e pediu a Deus que lhes
ajudasse a passar aquele obstáculo, que não lhes derrubasse, que lhes
deixasse triunfar pois o rio poderia ser mais raso que parecia e deveria
haver restos das escadas, restos que a fraturariam.
– Vamos mulher, salte logo ou você não quer ter filhos? – riu
sozinha.
Visualizou o alvo, apoio a sola de um dos sapatos na rocha, depois fez
uma jogada perigosa ficando de costas para a rocha com a mochila e se
segurando apenas com as mãos e com uma extrema força para não
escorregar enquanto apoiava o segundo pé. Franziu o cenho e prendeu a
respiração, soltando-a, precisava respirar para ter força e toda força era
necessária. A gota de suor caiu de seu nariz para despencar a enorme altura
para a água e ela o fez.
O salto foi como o de um leopardo, foi direto, ousado, feroz e veloz. Seu
corpo bailou no ar com as mãos indo a frente para dentro do buraco, a
corda seguindo seu corpo. As mãos tocaram a rocha e ela não esperou para
agarrar com toda sua força, gritou tanto de vitória quanto de dor, havia
conseguido, seu corpo se balançou para frente e na volta ela se ergueu com
toda a força que tinha, grunhiu, mas conseguiu pôr um dos braços mais
para dentro e o usou com esforço para por metade do corpo, deixando da
barriga para baixo pendurado. Gemeu se esforçando para entrar o resto do
corpo e gemeu de dor com a respiração ofegante.
– Certo, certo, estou dentro, estou dentro dessa maldita tumba! –
gritou socando o chão. – Agora, vamos prosseguir, vamos prosseguir...
Se ergueu e pegou a tocha para iluminar o corredor a frente. Olhou bem
para o lugar, os blocos do corredor levavam a uma sala, não trouxera o
bastão, então qualquer armadilha agora era mais fácil de pega-la. Mas não
houveram armadilhas, chegou a sala sem dificuldade alguma.
A câmara era um lugar quadrado e não muito grande, no meio dela havia
um baú e os tijolos das paredes pareciam desgastados. Era o que se
esperava, mas não havia mais anda no lugar além do baú, era simples
demais para os egípcios, nem pinturas nas paredes, nada, só o baú.
Olhou bastante para o simples baú de mármore, era algo até banal de tão
simples, parecia estar fechado a tempos pela poeira, nem mesmo fechadura
tinha, só a tampa. Estava quase decepcionada pelo que estava vendo, então
empurrou a tampa. Com um esforço forte a tampa se locomoveu e caiu para
o lado fazendo-a ficar por cima do que estava dentro.
O livro estava lá, era ele, tinha de ser, a capa de couro, as páginas
velhas. Só havia ele lá e mais nada, o pegou e o encarou por um instante.
Algum truque? Não, nenhum.
No entanto o truque estava dentro do livro, assim que o abriu todas as
páginas estavam em branco, virou cada página e nada. Fechou o livro e
olhou em volta. Arremessou o livro na parede com um grito irritada. Que
piada era aquela? Qual era a verdadeira intenção de toda aquela
engenhoca?
Lembrou-se de todas as informações sobre Mahoki, era conhecido por
sua inteligência e seus poderes divinos, conhecido por também por seus
truques simples apenas para demonstrar suas capacidades de intelecto sobre
os outros com ilusões, era egocêntrico, forte, estratégico, cego e velho.
Ilusões...
Se levantou e caminhou até o livro e o abriu, dessa vez o folheou com
menos velocidade, usando a tocha para iluminar as páginas. Foi passando,
foi passando, nada de novo, mas não o jogou fora. Fechou o livro e passou
suas mãos sobre ele, foi então que sentiu nos relevos... Ilusões, cego...
– Está escrito... Na capa... Numa espécie de... Como não notei isso?
– interrogou-se ela fechando agora os olhos e lendo as imagens escritas na
capa, eram complexas, ao olho não se podia ver, mas ao toque, sim. E ficou
durante alguns minutos lendo com os dedos, até conseguir formar a frase. –
Ahki arrai metu Mahoki.
A areia começou a descer a sua volta e ela ficou em pé de súbito vendo as
pontas das lanças surgirem, então a areia próxima aos seus pés também
começou a escoar e em um pensamento rápido saltou para dentro da tumba
com a tocha em uma mão e o livro debaixo do braço.
Quando se levantou haviam buracos no teto que permitiam o sol entrar e
iluminar o lugar e pode ver com clareza em volta do tumulo as centenas de
pontas negras, estava cercada. No entanto viu na parede, no canto direito
uma entrada escura após as lanças.
Soube que tinha duas opções, ou tentava ir para a saída ou tentava ir para
o buraco. A escolha, não era difícil, a nova entrada poderia levar até o
verdadeiro livro.
Ela se remexeu no baú tentando pensar, pegou a corda e se levantou, fez
um laço e observou o ambiente com atenção. Olhou para as lanças, ferro, a
solução estava nelas.
Girou a corda e arremessou em uma das lanças não muito longe, fechou o
laço e então em um ato de força se sentou e empurrou com os pés e costas o
baú enquanto puxava com a corda a lança. O baú se moveu, puxou de novo,
ele se moveu mais e logo foi para cima da ponta de duas lanças com uma
tremida da queda. Logo após isso pôs o braço pra fora e empurrou o baú
para que ele ficasse em cima da ponta das lanças, agora, só restava seguir.
Se levantou e puxou a corda, com cuidado, deveria retirar e arremessar,
assim o fez e assim seguiu seu plano. O baú virou uma canoa sobre um rio
de pontas mortais, não demorou muito para alcançar o buraco, saltou do
baú para o chão e olhou para o escuro túnel a sua frente.
Ascendeu a tocha e suspirou desgostosa.
– Novidade, mais rochas. – falou para si e seguiu pelo túnel.
Não demorou para sair em uma sala maior, a ela tinha ideia pela luz da
tocha não alcançar todas as paredes de tijolos. Deu alguns passos tocando a
parede e notou uma espécie de buraco na parede que deveria seguir como
uma linha em todo o lugar, ela então colocou o fogo da tocha no óleo que
corria dentro do buraco e toda a sala se iluminou.
Um sorriso apareceu em seu rosto ao ver todo aquele ouro e jias nos
mais diversos formatos que os egípcios ostentavam, apesar de toda a
poeira.
– Finalmente, algo digno dos egípcios.
A dama caminhou olhando maravilhada para as milhares de moedas até
notar o objeto no centro da sala, um sarcófago. Só podia ser ali que estava o
livro, um sarcófago em ouro puro com a imagem de um faraó imponente.
Buscou algo que pudesse usar como alavanco e avistou uma espada, a
forçou na tampa e o sarcófago se abriu cuspindo poeira.
– Então, me dê um presente Mahoki. – enfiou a mão na múmia
gloriosamente trajada e revirou o tumulo.
Havia um cetro e uma adaga em suas mãos, mas nada disso lhes
interessava, nem mesmo as belas joias em seu pescoço, pelo menos, não
agora. Então, num ato ansioso virou a múmia para olhar o que havia abaixo
dele e lá estava...
– Um bilhete? – indagou-se erguendo as sobrancelhas, o pegou com
cuidado e o leu. – Não...
O bilhete estava em inglês e escrito a tinta com uma caligrafia delicada e
bonita. Ela rangeu os dentes e o leu entre eles:

“A você que encontrou em meio a todas essas


tranqueiras o local onde deveria estar o livro, meus


sinceros pêsames. O livro está em minha posse no
momento, na posse do Príncipe Ducan de Cecidit. Seu
melhor e único dono.” – ela fechou os olhos irritada. – Ducan de
Cecidit, você é um belo de um filho de uma cadela...
Ela se ergueu e guardou o bilhete. O ar lhe faltou por um instante, suas
mãos tremeram, queria gritar, socar, xingar, mas ainda assim tinha uma
pista e uma pista era muito. Trabalhara por muito tempo com pistas e não
era diferente agora, mas estava cansada disso... Cansada de quebrar a cara,
no entanto...
Olhou em volta, todo aquele ouro, agora ela tinha mais recursos que
nunca para financiar sua exploração. Então, só lhes restava sair dali. Foi
quando ouviu um estrondo e seus olhos se ergueram para o teto. Sabia o
que havia acontecido, a saída para o túnel estava fechada e lá estava ela,
ferrada novamente pelo destino.
Cuspiu e olhou em volta, sempre havia outra maneira, uma saída, sempre
havia algo, pegou a tocha do chão e explorou o lugar. Não demorou para
ver um túnel, adentrou nele, com poucos passos se viu em um lugar um
tanto que apertado e sem saída. Sorriu nervosamente ao ver dois esqueletos
boquiabertos sentados na parede.
Então, em um ato talvez sábio, se sentou e respirou profundamente.
Sabia que desespero nenhum a salvaria, mas sim sua racionalidade. E foi a
racionalidade e a calma que a permitiu olhar para o chão de pedra a sua
frente e ver que de vez em vez, alguns grãos de areia caiam das rochas
sobre o montinho. Havia encontrado sua resposta, sorriu.
Se ergueu e deu um passo a frente e observou que as pedras não eram
uma só rocha, estavam amontoadas formando o teto, poderia cavar. Pegou
a faca e a usou para retirar as pedras com facilidade. A areia escoou e logo
ela começou a cavar mais. O deserto acima tinha areia suficiente para
inundar aquele lugar, ela mesma seria soterrada ali, por isso teria de ser
rápida.
Foi retirando pedras até que a avalanche começou. A areia entrou aos
montes contra seu rosto e ela tapou a respiração. Se forçou a escalar
enquanto a areia entrava no lugar e subia para seu joelho, foi usando toda a
força que podia e respirava o que lhes era permitido. Conseguiu começar a
cavar para cima, mas a intensidade da areia aumentara muito, era como
tentar sair de um funil que era preenchido com água. Ela cavou, cavou, mas
a força lhes ia embora e seu corpo estava sendo pouco a pouco imobilizado
como em uma areia movediça ao contrário.
Logo a areia tomara todo o lugar, logo ela foi enterrada, logo seus
gemidos foram calados em desespero e grãos amarelos. Logo suas mãos
saltaram para fora como um cadáver reanimado e seu rosto saíra com a
boca aberta buscando o ar e sentindo o sol forte nos olhos queimar.
Levou um tempo para cavar sua saída e quando saiu deitou-se no chão e
se arrastou para a sombra. Ali buscou o ar e limpou a baba da boca junto a
areia do corpo. Com o ar de novo em seus pulmões se ergueu e passou a
mão nos cabelos retirando os grãos. Apesar dos olhos irritados pela areia,
lacrimejando inclusive, notou que estava ao lado da pata da esfinge que
fitava o horizonte com um olhar inquebrável, franziu o cenho e se ajoelhou
dando um grito em fúria. Socou o chão nervosa.
– Morto! ELE AINDA ESTÁ MORTO! – grunhiu furiosa e as
lágrima vieram aos olhos. – Me desculpe, amor... Me desculpe.

...
Eles estavam juntos havia quase dois messes. Os passeios sempre
terminavam em beijos e ele sempre a levava para comer as melhores coisas
da cidade, não as mais caras, mas as melhores.
A maior parte do tempo ela passava grudada em seu braço, sentindo seu
cheiro e tocando seus cabelos lisos como se fossem de um anjo e ele era,
ele era seu anjo. Haviam dias em que ele lhes levava para ver o mar e se
sentar a praia sobre um sombreiro para ver os navios que navegavam ao
longe. E ela sempre sonhava neles dois embarcando em um daqueles
navios para a França, ver a linda Paris...
No entanto, ela ainda tinha de dividi-lo com as aulas de violino que ele
lecionava, mas elas também estavam no plano que ela construía para os
dois, pretendia reformar todo o lugar e atrair mais alunos. Com a beleza e
talento dele, ele se tornaria o maior professor do Brasil, se não do mundo e
ela, ela também seria grande ao terminar sua faculdade, seriam ambos um
exemplo de sucesso perfeito.
O problema talvez de sonhos de uma garota, na verdade, de qualquer
pessoa apaixonada, é que eles são sonhos e eles não dependem só de nós,
mas de quem nós amamos também. Ela aprendeu isso cedo demais, mas
outros aprendem mais cedo ainda.
Ela se arrumou como nunca naquele dia, seu mais belo vestido azul
marinho, suas mais belas joias, e um lindo chapéu redondo. No entanto,
antes de sair, notou que estava chovendo, teve de pegar o guarda-chuva
rosado tom pastel que tanto odiava e partiu.
É engraçado como sempre parece estar chovendo quando coisas assim
acontecem e se não está, em algum momento vai ou pelo menos nublar,
talvez seja como o céu responde ao humor que lhes é entregado. A dama
estava com pressa, iria encontra-lo na saída da aula de violino dele,
desejava fazer uma surpresa. Ela cruzou a rua com o guarda-chuva lhes
protegendo os chuvisco e olhou do passeio, ao lado de um poste negro.
Seus olhos de mulher se tornaram de menina ao vê-lo do outro lado da
rua com um belo colete marrom com botões, foi ela que lhes dera, foi de
presente... Por que aquela mulher estava com a mão sobre ele? Foi o que se
perguntou ao ver a mesma mulher que vira quando correu pelo corredor a
mais de dois messes atrás, parecia ter sido ontem. Por que aquela mulher
estava se erguendo e porque ele estava com a mão as suas costas? Por que
ela estava na ponta dos pés, quem fazia isso era ela... Por que eles se
beijaram? Por que?
O guarda-chuva rosado foi para baixo junto a sua mão, a chuva começou
a lhes molhar o vestido e a maquiagem das bochechas, deu as costas para
fugir e cerrou os punhos, mas não foi embora. Voltou a olhar para os dois e
cruzou a rua, cruzou furiosa como Aquiles quando seu primo lhes fora
tirado, cruzou a rua e fitou ambos agarrados. Ele parou e olhou para o lado
se sobressaltando e antes que abrisse a boca o soco lhes atingiu o rosto.
Alain se viu virando-se e indo ao chão, ela socava forte, a mulher que
beijara nem sequer se moveu e ficou apenas mirando a cena estupefata com
a cena. A dama, a dama chutou a barriga dele e partiu pela chuva deixando
o guarda-chuva e todos os sonhos que moldara naquele homem que com
vergonha a olhava do chão, que ficasse lá e que nunca mais tivesse de vê-
lo.
Correu, seu coração explodiu, seus lábios secaram e seus olhos se
romperam, mas só se permitiu uma lágrima e foi apenas isso que se
permitiu durante uma semana inteira. Não chorava, pouco comia e pouco
dormia. Ele a visitara três dias seguidos antes dela contar a sua mãe o que
ocorrera e seu pai o expulsar do passeio em que ele sempre se sentava com
flores aos chutes.
No sétimo dia, ela saiu de seu quarto e comeu com seus pais a mesa,
ninguém tocou no assunto. Passou o dia fazendo tudo que fazia antes de
conhece-lo, nada parecia ter o mesmo gosto que antes, ele lhes dera algo
melhor e depois arruinou tudo. Quando a noite chegou, então, sobre a luz
da última vela da casa, sobre um livro qualquer ela chorou e deixou suas
lágrimas caírem sobre as páginas e ali se eternizarem... Ali ficarem para
todo sempre.
Capitulo 4
Ela havia escapado da morte pelo menos duas vezes naquela aventura e
agora havia conseguido a recompensar da extrema riqueza, riqueza essa
que lhes permitiria viver bem e criar dez gerações, no entanto, não era a
riqueza que queria e nem as gerações, não ainda.
Estudou sobre o papel que havia encontrado e pensou no que faria com
aquilo, a resposta era óbvia: viajaria até o lugar e teria o livro em suas mãos
não importando o que acontecesse.
No entanto, era mais difícil achar Ducan de Cecidit que ela imaginava.
Primeiro tinha de encontrar alguém que conhecesse tal nome. Gastou
dinheiro aos montes para saber que o nome Cecidit era originada de uma
família antiga e era citada em um documentário inglês sobre sua riqueza e
renome. Infelizmente, não encontrou tal documentário em nenhum lugar,
seu autor havia morrido a tempos, sua obra se perdida, não lhes restou
escolha a não ser a de apelar para o mercado negro onde encontrou um
homem que o havia lido.
– Gruynebirn é citada diversas vezes durante o documento, fica em
algum lugar na Europa, no entanto, temo minha cara que não encontrará
esse nome pois já é muito datado. Talvez o lugar nem exista mais. – lhes
disse o velho professor que já estava com os cabelos grisalhos a cair.
Gruynebirn, buscou tal nome em todos os mapas, em nenhum encontrou
nada, em nenhum encontrou ao menos um resquício de onde ficava o lugar.
Até que em uma noite encontrou em meio a um antigo prédio que
hospedava uma biblioteca em Londres um apanhado de mapas velhos e
sujos.
Com a lamparina iluminou bem os mapas e os levou para uma das mesas
das vinte vazias do lugar, todas as luzes já haviam se apagado e o
recepcionista lhes pedira que trancasse a porta ao sair. Só restava ela e o
lampião ali naquele lugar velho e rangido. Foi na luz daquele lampião que
iluminou seu destino.
Os mapas eram diversos e retratavam lugares específicos, mas um lhes
chamou atenção, um mapa manchado em vermelho. O mapa mostrava toda
a Europa, mas parecia datado e antigo, não demonstrava a idade, mas a
mancha de sangue estava seca parecia anos. Ela o olhou com um sorriso de
empolgação com todo aquele mistério e sorriu ao ver o nome Gruynebirn.
Seu coração palpitou, havia passado dois messes em Londres fazendo tal
busca, os poucos que perguntou não conheciam o lugar e o mapa, o mapa
era a prova que o velho professor no Chile não mentia, o lugar existia e
Ducan, também deveria. Se recostou na cadeira e suspirou, a biblioteca
estava quieta.
Ela olhou para o mapa e o dobrou, pondo-o no bolso, foi quando ouviu o
som de algo se caindo nas tabuas de um dos corredores com fileiras escuras
de livros. Ficou parada e concentrou a respiração para ser mais silenciosa.
Um livro, logicamente, mas sempre fora precavida.
Se concentrou mais e ouviu os ruídos de botas no piso, seu coração
começou a acelerar, engoliu em seco a salivo e sacou o revolver pondo-o
sobre o colo, afinal, se fosse um funcionário não havia por que estar com
ele sacado. No entanto, sabia, que estava sozinha ali, quem quer que fosse,
com toda certeza era um invasor. Havia ouvido casos de estupros na
cidade, mas onde não havia? E assassinatos? Sempre havia assassinatos.
O som foi se aproximando e ela destravou a arma, estava pronta para
qualquer coisa, menos para a garotinha que surgiu com cabelos dourados e
cacheados de uma boneca. A garota ficou parada sobre a luz do luar
iluminando sua pele branca e fazendo seus olhos azuis brilharem enquanto
seu vestidinho de renda azul marinho brilhava.
A dama esperou a criança que aparentava ter oito anos dizer algo, nada
foi dito, a criança apenas colocou ao chão um objeto e voltou para a
escuridão do corredor.
Levou três minutos para a dama se levantar e ir em direção onde a criança
havia deixado o objeto, um crucifixo numa corrente de prata com um peso
razoável. Guardou a pistola no coldre escondido do casaquinho e olhou
para o corredor quase totalmente escurecido, apenas livros e poeira. Livros
e poeira, nada de garotinha alguma...
A dama meditou se deveria chamar ou se arriscar a fazer uma busca,
meditou e meditou. Já havia visto a garotinha antes, meditou mais, onde?
– Ainda está aí? – chamou a dama, nada respondeu, ouviu um tic,
seguido de um tac, em algum lugar o relógio que ela nem havia notado
antes estava funcionando e lhes dizendo que estava tarde.
Foi caminhando em direção ao saguão, com a sensação de estar sendo
observada e por esse motivo estava de braços cruzados ocultando o ato de
estar com a mão na pistola.
Passou pelo balcão e deu uma pequena olhade-la curiosa sobre a mesa
dele, em seguida olhou os papéis, nada de estranho, listas e números. Olhou
para o relógio que marcava três da manhã, já era madrugada? Três da
manhã? Havia realmente perdido o horário, no entanto o que a surpreendeu
foi o quadro acima do grande relógio.
A imagem pintada era da mesma garotinha que lhes deixara o crucifixo,
no entanto, na obra o objeto estava em seu pescoço e ela carregava um gato
consigo, um grande gato negro de olhos dourados. Olhou para o nome em
relevo dourado que estava na moldura e para data, seu coração parou. A
data constava que o quadro fora pintado a cinquenta anos atrás o que torna
impossível a presença daquela garota ali, era a mesma, tinha certeza, não
esquecia rostos facilmente e pior, eram três da madrugada o que aquela
criança fazia...
– Fantasma? – sussurrou pra si mesma e se arrepiou.
– Uhum. – respondeu uma voz e ela se virou para ver a garota parada
a observando.
– .... O que significa isso? – a dama questionou com uma sensação de
gelo total, não sentia mais os dedos, mas teve força para puxar a arma e
aponta-la para a menina.
– Quis apenas te dar um presente. – a menina deu de ombros de um
modo meigo. – Para proteção.
– Proteção.
– Sim, vai precisar.
– Por que?
– Vai ver. – a menina começou a se virar e seu rosto foi derretendo e
mostrando algo cadavérico enquanto um sangue escuro escorria. – Sim, vai
sim.
O fantasma se dissolveu totalmente em sangue escuro, ossos e órgãos
esparramando-se no chão com a dama soltando um gemido assustado e
dando um salto para trás, logo tudo foi absorvido pelas tábuas, até mesmo
os órgãos e o chão ficou limpo como antes. Sem delongas a dama correu
para fora da biblioteca rumo a rua e pela rua correu até que avistou um
policial que fazia sua ronda, então diminuiu o passo e agiu normalmente
lhes acenando enquanto ele lhes olhou com sonolência e nenhum aviso deu.
Mas estava claro o sinal de “tenha cuidado, está tarde, mas isso não
significa que vou te dar escolta”.
Preferiu que não tivesse, não confiava em policiais, já tivera problemas
com eles. Foi para o hotel e se perguntou sobre o crucifixo após o banho,
em sua cama se perguntou sobre o fantasma e tentou dormir, não conseguiu
e decidiu encarar o mapa, o fez até o amanhecer onde finalmente o sono
chegou.
Levou quatro dias até encontrar alguém que conhecesse o lugar e mais
dois para conseguir chegar a pessoa que lhes levaria. Foi mais difícil do
que esperava, havia se esquecido que as vezes é preciso ir a lugares sujos e
escuros para se conseguir o que se quer.
Foi numa taverna que conseguiu a informação sobre um carroceiro que
aparece uma vez ao mês ao crepúsculo numa rua da cidade. Os boatos
diziam que ele só trabalhava a noite, por isso demorava tanto de aparecer,
boatos que ela tiraria por si mesma, se ele lhes levasse a Cecidit.
Se sentou no banco húmido ajeitando o vestido preto de renda e
cuidando para que a arma não ficasse muito desconfortável em seu quadril.
Acima de sua cabeça insetos voavam em volta da luz da lâmpada enquanto
o cheiro de urina infestava suas narinas. Atrás dela um anjo lhes olhava
indiferente e a noite permitia a escuridão reinar a toda volta com exceção
do círculo protetor que o poste fazia. Londres estava silenciosa.
Ela fechou os olhos por um instante e voltou para um passado dourado,
um passado que ela tentava resgatar.
...
– Eu não quero ir! – a dama gritou.
– Mas você vai! – gritou a mãe debaixo, – Até arrumada está, agora
saia desse quarto, não tivemos todo o trabalho de te arrumar para que você
ficasse em casa.
– Eu já disse que não quero!
– Chega! – a mãe pegou a chave mestra em seu vestido e abriu a
porta encontrando ela sentada na cama ainda com o vestido azul e o cabelo
preso.
– Não sei porque todo esse drama, você está maravilhosa!
– Eu só não quero ir. – a dama disse e sua mãe suspirou indo se
sentar ao seu lado.
– Eu sei que está magoada e sei o quanto doeu, mas você não pode
ficar dependente pra sempre desse sentimento, querida. – ela disse com
aquela voz melodiosa e gentil que fazia quando via que o tom rude era
inútil.
– Já passou.
– Não passou.
– Não importa. – a dama retrucou – Apenas... me deixe aqui,
– A decisão é sua. – a mãe se levantou e saiu do quarto deixando a
porta encostada.
A dama olhou para a porta e abaixou os olhos para as mãos. Então as
cerrou e se levantou. Não iria deixar de fazer as coisas por causa do que
aconteceu, na verdade, agora era hora de fazer as coisas e de ter a atitude
que realmente deveria estar tendo a muito tempo.
Partiu na carruagem junto aos pais para a festa na casa do “tio” Alfonso,
iria ser uma reunião de classe como dizia seu pai, com várias pessoas
importantes e de grande poder aquisitivo. Nada disso importava para ela,
ela só queria se divertir naquela noite, o máximo que pudesse e assim foi.
O modo que utilizou foi evitar a todo o custo ficar sentada junto a mãe e
as outras mulheres. Sempre dizia que queria tomar um ar e saia para a
varanda, voltando eventualmente para a mãe não sentir sua ausência em
demasiado e ela ser obrigada a ouvir um zilhão de bobagens.
Em uma de suas escapadas roubou uma taça de vinho como uma gatuna e
a bebeu em um canto isolado da varanda, onde a luz não chegava tanto.
– É sem sombra de dúvidas uma noite agradável. – comentou uma
voz que a fez virar.
– Al – Tio Alfonso. – ela sorriu.
– Apenas Alfonso, não precisa mais me despistar. – ele deu uma
risada bondosa e ela retribuiu.
– Não tenho achado tão agradável assim.
– E porque não? – ele perguntou se apoiando ao lado dela no
murinho da varanda enquanto pegava um cachimbo preto.
– Está entediante. – respondeu ela enquanto Alfonso acendia o
cachimbo com uma risadinha.
– De fato essas festas podem ser lastimam-te para alguns de nós. –
ele assoprou uma baforada.
– Posso experimentar?
– P-perdão? – o homem se sobressaltou.
– O cachimbo, posso experimentar?
– Ora, não acho que seria muito correto, minha querida.
– Ninguém está olhando, só por curiosidade. – ela implorou – Uma
baforada e lhes devolvo.
Ele olhou em volta e notou apenas um casal conversando, pareciam
entretidos.
– Pois bem, aqui está. – ele lhes deu o cachimbo e ela sugou assim
que o pôs na boca – Devagar, devagar.
Ela assoprou com suavidade e devolveu.
– Sem tossir. – riu Alfonso.
– Não gostei muito, quem sabe pegue o gosto depois. – disse ela.
– Eu espero que não. – Alfonso ergueu as sobrancelhas e pôs o
cachimbo a boca.
– Fumando de novo? – uma voz perguntou e ambos se viraram para
mirar um rapaz de cabelo preso com um pequeno rabo de cavalo escuro e
costeletas retas.
– Ai vem ele. – Alfonso disse enquanto o rapaz se aproximou com
um sorriso.
– Já disse como o cigarro lhes faz mal, tio. – o jovem diz com um
suspiro enquanto ajeita o colete vermelho escuro. – E essa é?
– Uma amiga, estava me acompanhando no – Fumo? – o jovem
interrompeu a fala do tio.
– Algum problema? – perguntou a dama.
– Tirando que mulheres não fumam. – ele respondeu e Alfonso
balançou a cabeça com um suspiro.
– E quem é você para me dizer se devo fumar ou não? – ela franziu o
cenho.
– Um aprendiz de etiqueta infelizmente.
– Pois deveria saber que a boa educação prega manter-se cuidando
da tua própria vida. – ela sorriu com um ar áspero e Alfonso deu uma
risadinha.
– Só disse que não é de conhecimento mulheres bonitas fumarem.
– Agradeço o elogio em meio a frase, mas quem disse que não
podemos?
– Bem...
– Vocês? – ela ergueu as sobrancelhas.
– Vocês quem? – ele mostrou os dentes em resposta espremendo os
olhos escuros.
– Homens.
– Ora, exagero. Ninguém definiu isso. – ele riu mostrando os furos
longos na bochecha.
– E por que eu acataria então? – ela se aproximou e o rapaz ficou
calado em absoluto.
– Só a uma resposta para isso. – o jovem respondeu sério.
– E qual é?
– Bem... Tio, dê o cachimbo para essa mulher porque com toda
certeza quem disse que mulheres não podem fumar é um completo imbecil.
– ele gargalhou – Nem o papa manteria razão perante isso.
– Estás fazendo chacota de mim? – ela indagou.
– Não. – a risada diminuiu para um sorriso de dentes retos. – Só
aprendi que na vida um homem tem de admitir quando está errado e foi um
completo imbecil. Eu estava errado nas coisas que disse e fui um completo
imbecil, só não errei em uma coisa.
– O que? – ela perguntou ainda na defensiva.
– Que tu és realmente bonita, moça. – ambos se entreolharam e ela
deu de ombros se retirando da presença dos dois enquanto Alfonso riu.
Enquanto ela caminhava em direção ao outro lado do pátio ouviu o rapaz
gritar:
– Ora, espere, não me apresentei!
– Não tenho interesse em tua apresenteção. – respondeu ela enquanto
ele se correu até ela.
– Ainda bem, porque sou um péssimo artista. Me permita dizer-te
meu nome? – ele pegou na mão dela de forma delicada e ela o olhou nos
olhos, mas dessa vez ele a olhava de forma diferente, o olhar dele lhes
lembrou quando vira um encantador de cavalos selvagens na fazenda do
tio. Um olhar sereno e dócil, como se cedesse de todo. – Meu nome é
Gregório Oliva e se você me der a chance eu garanto que posso te levar
para uma festa melhor que essa.
– Não espere que eu concorde com isso, o que pensari.. – ela parou a
frase quando viu a risada dele começar.
– Ora, ora, parece que alguém se importa com a etiqueta afinal.
– Eu não me importo, dê o seu pior. – ela respondeu semicerrando os
olhos.
– Certo, me siga, ele a puxou para uma escadaria pela lateral do
pátio.
– Espere, minha mãe... ela...
– Ora, você vem ou não?
Capitulo 5
Ela despertou quando ouviu o som de patas no chão, sentiu o ar ficar um
pouco pesado a sua volta, já devia ser três da madrugada. Ela esperou
pacientemente então enquanto o trote vinha da escura rua. Foi quando viu a
carruagem preta com dois cavalos brancos guiados por um cocheiro. Ela
fez um aceno ao homem que parou em frente a ela, a luz do poste
iluminava o pelo cor feno do rabo dos cavalos enquanto suas cabeças na
escuridão demonstrava o brilho nos olhos de uma cor curiosa, um vermelho
escuro quase que imperceptível. Ela estremeceu e ficou encarando durante
um longo período.
– É melhor que pare. – a dama despertou ao ouvir a voz carregada do
homem sentado acima – Isso deixa eles nervosos, não é a natureza de
cavalo compreende? É a natureza de cão.
Ela então mirou o homem. Tinha uma estatura média, usava uma capa
cinza escuro de algodão e um cachecol de mesma cor sobre o rosto
permitindo apenas ver os óculos redondos e o cabelo grisalho sobre a pele
lisa e pálida.
– Deseja ir a Cecidit, não é mesmo? – ele pergunta e ela assente em
resposta. – Por que eu deveria leva-la?
Ela mostra um revolver a ele que começa a gargalhar por detrás do pano
do cachecol.
– Suba, a viagem será longa. – ele anuncia, ela dá uma última olhada
na carruagem e nota ser luxuosa, mas ao mesmo tempo com vários adornos
sinistros de criaturas meio homem e meio animal. Ignorando isso em
instantes ela está dentro.
– O quanto longa? – a dama pergunta.
– O suficiente. – o cocheiro dá a ordem e os cavalos partem.
Pouco tempo depois as luzes de Londres se afastam atrás e a escuridão da
estrada se segue a frente. Ela não abre a boca, apenas observa o escuro a
volta ser iluminado pelos lampiões da carruagem. Nota que o assento é
extremamente confortável, quando então olha para o teto e vê a imagem de
algo que parece o mar ou um rio que adentra a uma gruta. Tudo pintado
com os mais calculados detalhes possíveis, quase real.
– Sabe, eu nunca fui muito falante. – o cocheiro começou a falar –
Quer saber como comecei a falar muito? Foi num dia que estava levando
uma mulher, ahh, ela era linda, e todos que eu levava sempre foram tão
falantes. Mas ela só sentou e ficou calada a viagem inteira. Ficou tão calada
e eu fiquei tão absorto em lhes olhar, que acabei falando com ela, mesmo
assim ela não respondeu e eu a levei até o outro lado. Desde então nunca
mais parei.
– Quem era a mulher? – perguntou ela de dentro da carruagem.
– Quem se importa? Linda, era linda. – ele falou e os cavalos
aceleraram o trote.
O resto da madrugada se seguiu com o homem extremamente falante,
mas sempre que ela perguntava sobre a cidade ou sobre o conde, ele dizia
que não diria nada. No entanto, falava dos assuntos mais triviais do
cotidiano com um fascínio pleno, desde o tempo até sobre como o chá deve
ser servido. A manhã foi chegando e parecia que sua energia nunca
acabava, ele fez uma breve parada quando amanheceu para dar a dama um
pacote que quando ela abriu tinha um delicioso e recheado bolo de limão e
glacê, ela não questionara e quando ofereceu a ele, ele apenas balançou que
não e a viagem se seguiu. Quando ela sentia sede, ele parecia adivinhar e
dava a ela água para beber, quando tinha fome, vinha com mais do
delicioso bolo, a dama começou a supor que ele devia ter uma fábrica de
confeites debaixo da capa, mas ignorou mesmo assim.
Ao meio dia a dama finalmente adormeceu sobre a paisagem de campos
pálidos. Mais tarde quando acordou, já era crepúsculo e o cocheiro estava
em silêncio.
– Onde estamos? – perguntou ela pondo a cabeça para fora da janela
e vendo que iam em direção a uma montanha.
– Estamos na estrada. – ele respondeu por debaixo do cachecol.
– Isso é mais que óbvio. – retrucou pondo a cabeça para dentro
novamente. – Podes parar? Preciso fazer uma coisa.
Ele parou imediatamente e ela desceu indo em direção a mata sem
declarar nada, ele parecia saber que ela tinha de fazer suas necessidades.
Quando ela retornou ele passava a mão sobre a cabeça de um dos cavalos e
lhes dava de comer algo que ele mastigava com força.
– Eles são lindos, não? – disse ele.
– Sim são. – ela pôs a mão sobre o lombo do animal, musculoso, mas
ainda frio o que fez ela estremecer.
– Tem um caso demasiado quente dentro da carruagem se quiser.
– Vou usar sim, obrigada. – ela olhou para a mão enluvada dele,
notou que ele dava um pedaço de carne para o animal.
– Essa arma e o crucifixo não serão suficientes para onde vai, sabia?
– ela a olhou então com os óculos escuros que pareciam não ter armação e
que eram quase que seus olhos por ele nunca tira-los.
– Por que, não?
– Em quantos lugares já esteve?
– Muitos. – ela respondeu e ele pareceu sorrir por debaixo do
cachecol.
– Eu sempre quis viajar por muitos lugares. Oh sim, sempre.
– Por que o que carrego não vai ser suficiente? Como sabes o que
carrego ou não?
– Eu vi a arma, não vi? – ele indagou.
– Mas, o crucifixo, não tinhas como sabe-lo e da onde tu tiras a água
e a comida, como sabes quando tenho sede ou fome? – ela falou tudo
depressa, mas com cautela.
– O tempo está ruim, madame. – ele apontou para o céu, começava a
nevar – E temos uma escalada, melhor entrar para os seus aposentos, não
queremos acidentes no percurso.
A fala dele foi simples e sem tom, mas o suficiente para despertar nela
certos instintos primitivos de sobrevivência. Não foi o que disse, nem como
disse, mas outra coisa, alguma coisa em volta a ela, vinda dele, com ele.
Ela, no entanto, manteve a pose e não demonstrou nenhum abalo em sua
face ou corpo, apenas a pele arrepiou e ela voltou para a carruagem.
A viagem seguiu enquanto a neve caia, a subida tortuosa pela montanha
teria feito qualquer cavalo pestanejar, mas os cavalos brancos se
mantiveram firmes. Ela ficou pensando sobre o cocheiro, ele agora falava
sobre como o frio era bom por causa do calor dos cobertores e ela apenas
observava a neve cair devagar tornando-a sonolenta, até finalmente dormir.
O sono durou profundo, calmo, sereno, uma eternidade... Silencioso,
calmo, sereno, desligado, como deve ser...
Ela acordou. Ouviu um estalo forte vindo do lado direito e virou a cabeça
para ver de onde vinha o barulho. Ela estava mirando para o que parecia
uma parede de rocha, parte da montanha, mas havia uma enorme entrada
que a neve demoraria de encobrir, uma entrada escura, por onde a luz
entrava e mostrava um corredor escuro e cheio de formas e no outro
extremo do corredor uma saída, um ponto de luz. O corredor cruzava
aquele ponto da montanha. Ela então, olhou para o outro lado, uma queda
tão alta aguardava que ela cruzaria a neblina se saltasse. Pôs a cabeça para
fora buscando o cocheiro, não estava lá, apenas os cavalos parados, então
ouviu outro estalido mais forte, mais perto. Voltou a cabeça para o buraco
dessa vez pegando sua arma.
Pensou em chamar o cocheiro, mas não, sentia que seria estupidez, se ele
estivesse por perto, apareceria. Então, apenas segurou a arma e olhou o
longo corredor negro com a ponta de luz. Ficou observando o buraco, as
imagens que se formavam no que pareciam ser rochas. A escuridão olhou
para ela de volta. Espere. Pare. Pense, olhou de volta? Como poderia a
escuridão olhar de volta? Mas isso estava acontecendo.
Der repente ela começou a ver pequenos pontos de luz quase juntos na
escuridão, não eram da saída do outro lado e sim pequenos pontos, quase
imperceptíveis ali, no escuro. Reflexos em algo com toda certeza, algo
viscoso? Piscou repetidas vezes e os pontos estavam lá, começou então a
medir o tamanho da entrada, era grande, maior que a carruagem com toda
certeza, ela poderia passar por ali, seria a intenção do cocheiro cortar
caminho? Espere, lá está, os pontos, não sumiram, são pequenos reflexos,
mas não sumiram. Ela esfregou os olhos e destravou a arma se
aproximando um pouco mais da janela.
Numa tentativa de enxergar melhor começou a semicerrar os olhos.
Então, começou a ver contornos na escuridão, eram tortos, quase invisveis
ali no escuro, foi quando os reflexos pequenos sumiram e ela voltou a
busca-los. Ouviu um estalido novamente e notou os reflexos em outro lugar
após uma procura apurada, estavam agora acima do lugar onde estavam,
mirando ela. Foi quando em uma piscada ela notou que sumiram
novamente, mas em outras duas depois, lá estavam eles. Por que sumiam e
voltavam? Estava imaginando mesmo? Onde estava o maldito cocheiro.
Os cavalos deram um pequeno relinche que a assustou e disparou seu
coração, mas ela logo se acalmou, no entanto não arriscou colocar a cabeça
para fora da carruagem, estava sentindo algo ameaçador, extremamente
ameaçador. Um forte medo começou a tomar ela e ela começou a ir para o
canto contrário, para o lado do penhasco, parecia que pular para ele não era
mal ideia perante encarar aqueles reflexos. Contou quantos eram. Seis.
Começou a tentar enxergar além dos reflexos, buscando novamente os
contornos, foi quando reparou em algo curioso, os reflexos, eles sumiam e
apagavam a cada dois segundos, como... Como uma piscadela para ela...
Piscadela. Olhos?! Ela levou a mão a boca e franziu o cenho dessa vez se
encolhendo e mantendo a arma pronta para apontar. Começou a suar frio,
começou a encarar aqueles reflexos, aqueles pontos juntos e separados, o
que teria seis olhos? Por aqueles reflexos poderia se dizer que eram olhos
negros... Tentou calcular o tamanho, pareciam grandes, grandes até demais.
O suor começou a descer pelas sobrancelhas, pescoço, peitos e mãos. Ela
chegou a pensar em tirar o casaco naquele frio matador, mas não teve
coragem. Então, começou a reparar nos contornos próximos aos supostos
olhos que apareciam e sumiam e viu algo torto que cortava logo na parte de
cima a outra saída. Um declive debaixo para cima, usou toda sua
concentração para olhar aquilo e notou que não era reto, tinha distorções,
grossas linhas que saiam do declive para baixo, eram como... Pelos?
A dama fechou a mandíbula pressionando os dentes com força um contra
os outros quando viu aquele contorno se locomover vagarosamente e
mostrar sua extensão na luz, como uma enorme garra, não, uma enorme e
longa perna peluda com uma ponta se juntando ao resto do que quer que
fosse ali na escuridão. Se juntando a coisa dona daqueles reflexos, daqueles
olhos.
– Desculpe a demora! – a voz do homem a fez dar um pequeno grito
de sobressalto. Era o cocheiro que aparecia na janela ao lado do penhasco.
Ela virou a cabeça com velocidade para a direção onde estava a coisa...
Sumiu.
– Vamos seguir viagem, certo? – ele disse – Paramos aqui tempo
demais da conta, foi por causa de um reconhecimento que fiz a frente,
pensei até em cortar caminho pelo corredor.
– Melhor não. – ela falou, ele notou o medo nela e assentiu com a
cabeça olhando para o buraco escuro que dava no outro lado.
– Nunca alcançaríamos o outro lado. – confidenciou ele e ela
assentiu com um olhar e um comprimir dos lábios. – Bem, vamos seguir
viagem. Esse atalho ai acabaria com os cavalos, muitos buracos e rochas e
coisas do tipo. Vamos lá.
Ele voltou ao seu lugar e partiram. Seguiram para cima e logo para baixo,
seguindo um ritmo de variação cima, baixo, mais baixo, bastante para cima
e assim foi. Quando cruzaram a parte da saída do corredor ela devia estar
dormindo, pois quando acordou já estava numa parte baixa da montanha
podendo se ver a floresta por onde a estrada iria.
– Falta muito? – perguntou ela pondo a cabeça para fora.
– Falta o suficiente. – ele respondeu.
...
– Falta o suficiente. – respondeu Gregório disse puxando-a pra fora
da casa em direção a rua iluminada pelos postes, haviam saído pelos
fundos.
Seguiram pela grande avenida iluminada e arborizada a pé. De um lado a
praia e do outro as casas belas a distraiam. Logo chegaram até uma casa
escuro, um tanto velha e suja, mas de dentro vinha bastante som de música
o que a deixou receosa, apesar da música agradavel. Antes que ela
recuasse, le a puxou para dentro da casa passando pela porta como se fosse
uma porta giratória de um bar e entrando num corredor mal iluminado que
passaram com velocidade até através a próxima entrada e se verem num
grande salão arrumado com panos e mesas que formavam um círculo em
volta do centro no qual pessoas dançavam.
O clima era de bebida e animação enquanto uma banda tocava com
violão, gaita, tambor, cavaco e piano. O som eclodia pela sala com
estrondo enquanto as pessoas se beijavam, dançavam, pulava, riam,
conversavam. O cheiro de cigarro se misturava ao de bebida, petiscos
marinhos e carne assada.
– Que lugar é esse? – ela perguntou sobressaltada pela beleza e
simplicidade do vestido das damas e da leveza das roupas dos homens,
apesar de bem arrumados.
– É a casa de um amigo! – ele sorriu e a puxou para uma mesa –
Temos um clube, sempre fazemos a festa na casa de um dos membros no
mês, esse mês foi na casa dele.
– Incrível. – ela sorriu e ele respondeu com um sorriso rápido
pedindo uma bebida.
– Bem, não tão quanto você. – ele falou sorrindo enquanto o garçom
trouxe uma garrafa para os dois.
– Eu não bebo. – ela olhou para a garrafa suspendendo as
sobrancelhas.
– Ohhh.
– Qual o gosto?
– Por que não experimenta? – ele serviu a bebida dourada em um
copo de metal.
– .. Ta bom, mas só um gole. – a dama pegou o copo e bebericou um
pouquinho, em seguida sentiu o sabor um tanto quanto confuso de
descrever para ela, por isso se serviu de outro gole e deu uma leve tremida
por causa do álcool – É estranho.
– Estranho como?
– Estranho. – ela deu de ombros.
– Talvez você goste mais de vinho. – ele riu – Ou precise beber mais
para aprender a gostar.
– Talvez. – a dama olhou em volta vendo todas aquelas pessoas
dançando. – Vamos dançar?
– Com toda certeza vamos! – ele sorriu e a puxou para a dança,
ambos começaram a dançar de mãos dadas num ritmo veloz e a girar no
salão junto aos outros casais.
A música aumentou e a dança se seguiu. Todos pareciam estar em uma
mistura de excitação e alegria. Ele a pegou pela cintura e a jogou no ar
fazendo ela gargalhar enquanto seus cabelos balançavam. Em seguida ela o
abraçou na seguida e ambos riram, a música foi parando e ambos abraçados
no meio do salão. Foi quando eles se entreolharam e ela recuou, ele não
pestanejou e deu uma risada carregada.
– Que música não? – uma voz do palco chamou e todos voltavam a
cabeça para o mesmo, incluindo a dama e seu companheiro.
Um homem de bigode e cabelos na altura do maxilar acenava para todos
no palco. Ele tinha um olhar simpático, usava um terno simples branco e
uma calça bege.
- É bom ver que todos estão gostando da festa. – disse ele e todos
gritaram levantando os copos – É, eu senti falta de trazer visitas a minha
casa. E é bom ter amigos nela. O que acham de uma música então?
Todos gritaram que sim e aplaudiram. A banda começou a tocar e ele se
sentou em um banco que lhes trouxeram. A melodia era triste, calma,
serena, em um tom quase que sonhador. Como uma gota de esperança
numa tristeza profunda que no fim também se transformaria em tristeza. E
ele começou então a cantar.
Lá estava eu na minha portela
Foi ai que vi minha donzela
Mulher menina de olhos brilhantes
Sorriso tocante
Lá estava eu na minha portela
Me despedi da minha donzela
Mulher menina de olhos brilhantes
Sorriso tocante que eu nunca vi
Ah ali eu vi sim, ah ali eu vi sim
Ah ali que vivi
Olhando aquele sorriso tocante que nunca esqueci
Que nunca vi
Todos aplaudiram enquanto ele fazia uma rápida reverencia e descia do
palco para receber os aplausos, beijos e abraços.
– Quem é ele? – a dama perguntou a Gregório.
– É o nosso cavalheiro errante, Pietro de Camões. – falou Gregório
em tom de admiração – Um bom amigo, a esposa faleceu no ano passado.
– Mas ele é tão jovem.
– E não somos todos? – ela olhou então para Gregório que sorriu de
forma triste – As coisas boas duram pouco, por isso são boas.
– Tu tens pensamentos muito sombrios para alguém que sorri tanto.
Ele olhou então para Pietro que se aproximava e sorriu abraçando-o com
força.
– Eu senti sua falta irmão. – Pietro disse medindo Gregório.
– Eu continuo sendo o mais alto. – ambos riram.
– E essa quem é? – Pietro perguntou.
– Ahh, é só um embuste.
A dama deu um leve soco no braço de Gregório.
– É um prazer, madame embuste. – riu Pietro.
– Que fique claro que o embuste da noite foi ele. – ela sorriu
enquanto Pietro a cumprimentou.
– Ele é sempre.
– Ora, vocês dois, peguem leve comigo! – Gregório deu uma risada e
os abraçou. – Vamos beber algo?
– Sempre! – respondeu Pietro e os três se juntaram a um casal
amigos de Pietro que já bebiam.
Começaram a conversar sobre viagens e política, mas logo a dama
começou a se sentir um tanto quanto excluída devido a amizade dos quatro
e fez um sinal que devia voltar logo antes que dessem falta, já estava a
tempo demais ali. Gregório acenou que a levaria, mas Pietro fez questão de
acompanhar.
Os três vieram de braços dados, mas nem isso afastou o terror do rosto da
jovem quando ela viu seu pai ao lado de sua mãe esperando-a enquanto
Alfonso fumava seu cachimbo com um olhar preocupado. Os braços dos
três se desenlaçaram com velocidade enquanto um vento assoprou suas
vestes e os fez tremer, mas mais do olhar da mãe da garota e da pose de seu
pai do que da friagem.
– São seus pais? – Gregório perguntou.
– Sim. – ela respondeu caminhando mais devagar.
– Ainda da tempo de virarmos e correr. – Pietro comentou.
– Tu ainda tens aquelas passagens de trem? – Gregório indagou.
– Vendi para um traficante semana passada.
– Então estamos os três condenados. – concluiu Gregório.
– Vocês estão condenados, eu estou morta.
Os três se aproximaram e Gregório assim como Pietro iriam começar a
dizer algo, mas foram interrompidos por um olhar de Alfonso que dizia
“melhor que fiquem calados”.
– Venha conosco. – falou o pai de forma firme e a mãe a tomou pelo
braço levando-a para dentro pelas escadarias enquanto ela dava um último
olhar para os três homens.
...
– Está acordada? – a voz do cocheiro chamou.
– Sim. – ela respondeu enquanto lia seu antigo diário.
– Mantenha-se dentro da carruagem e use isso. – ele arremessou um
pano branco para dentro e ela o agarrou com curiosidade, parecia comum –
Coloque no rosto, como uma máscara, principalmente sobre o nariz e a
boca.
Ela o fez e por instinto trouxe o revolver para o colo. Em seguida prestou
atenção na vista. Estavam passando por plantações mortas e por sinais de
fumaça vindo de casas destruídas. O por do sol iluminava tudo de uma
forma dramática e logo ela viu um cavalo com a barriga aberta sendo
devorado por cães que pareciam doentes, com o vários buracos no pelo e
manchas negras no corpo.
Logo começaram os corpos, não amontoados, mas separados, como se
cada um tivesse morrido em algum ponto, todos com expressões
desesperadas. O fedor tomava todo o lugar. Então ela viu um grupo de
corvos sobrevoar um jovem garoto que estava deitado na lama. Quando viu
o garoto se erguer do chão e começar a olhar perdido em volta para os
corpos. Por instinto abriu a porta e se precipitou para sair.
– Pare! – a voz do cocheiro gritou enquanto ela punha o pé para fora.
– Ele precisa de ajuda. Olhe em volta. – ela respondeu em tom
neutro.
– Ele já está morto.
– Quem lhes garante?
– Não preciso dar garantias. – ele parou a carruagem. – Se quiser ir,
vá, sua vida ou não, não me interessa nem um pouco.
Ela sentiu então seu corpo gelar, mas ignorou o alerta e saiu indo em
direção ao garoto. Quando chegou perto dele o menino que parecia ter seus
seis anos começou a se engasgar com algo. Desesperada ela foi até ele e
tentou entender o que ocorria, com sagacidade entendeu que era o ar,
começou a tirar o pano do rosto quando uma mão forte segurou. Ela ergueu
os olhos e viu o cocheiro, alto e sombrio sobre ela fazer um sinal de
negação com a cabeça.
Ela então se esforçou, mas a força dele era descomunal. Voltou os olhos
para o menino que agora tossia sangue e sangrava por todas as saídas
possíveis. A criança parecia querer chorar, mas o sangue substituía as
lágrimas. Ela se desesperou e tentou acudi-lo, de nada adiantou. Logo o
pequeno peito parou de subir e descer arfando, para apenas se estabilizar na
morte.
Ela não chorou, apenas voltou para a carruagem enquanto ele a seguiu
voltando ao seu lugar e dando o sinal para a partida. Pelas próximas três
horas foi esse o cenário, nas outras duas vezes que ocorreu de ver alguém
na mesma situação que o garoto, ela não desceu. Apenas fechou as cortinas
e deixou toda aquela morte lá fora. Quando o cheiro azedo e pútrido passou
já era noite densa e eles eram a única coisa que iluminava as sombras do
caminho.
Depois de algum tempo, cansada do velho diário, das anotações e tudo
que já conhecia. Pediu para que ele parasse.
– Estamos dentro demais para parar agora. – avisou o cocheiro que
andava cada vez mais silencioso, até só falar quando ela falava e em
momentos, nem mesmo isso.
– Eu sou um ser humano, nós temos necessidades. – respondeu a
dama e ele não disse nada, após alguns instantes parou.
– Fique próxima da luz. – ele falou com uma voz metálica. Ela não
retrucou, não acreditou que seja o que ele fosse, ele iria querer olha-la, por
isso urinou próximo a carroça, ainda se escondendo dele, mas próxima da
luz do caminhão. No entanto enquanto o fazia sentiu algo próximo a
penumbra, como se a cercasse. Ela terminou com velocidade e foi até ele
que virou a cabeça de forma estranha para ela.
– Posso me sentar ao seu lado? – ela perguntou, sentia falta de
contato, de calor.
Ele chegou um pouco para o lado, como quem dá espaço e ela subiu e
sentou. Logo ele deu partida, enquanto seguiam pela escuridão ela encostou
um pouco no homem. Nesse instante seu corpo todo gelou e seus membros
paralisaram numa dor, como se tivessem sido movidos após muito tempo
parados, começaram a formigar e ela se agonizou toda. Anotou
mentalmente que não deveria toca-lo, mesmo que apenas nas vestes.
A viagem se seguiu, mas ele não a olhava, nem conversava, sempre
calado e olhando para frente. Isso fazia a mente dela viajar e a fazia apertar
com força o cabo de sua arma.
– Gosta disso, não gosta? – a voz grossa dele a assustou.
– Do que? – ela indagou.
– A arma, te traz segurança. – ele parecia estar concentrado enquanto
falava, ela olhou para ele e em seguida para a estrada, mas era quase
imperceptível ver a estrada, não sabia como ele estava avançando.
– É uma arma, tem isso como uma das funções.
– Tem. Mas existem horrores que nem mesmo suas armas podem te
proteger. – ele a olhou com aquele negro dos óculos que não permitiam ela
ver seus olhos, nem mesmo ali de perto. O que a levou a pôr a mão no
crucifixo de prata – Talvez isso ai possa mais. Talvez não.
– O que sabe sobre isso?
– Tudo...
– Quando diz horrores, você diz como aquele da caverna? Havia algo
lá não havia?
– Sim...
– E o que era?
– Algo do velho mundo, um horror, mas um horror desse mundo.
– E o que seria um horror de outro mundo? – ela perguntou e ele
pareceu sorrir por debaixo do cachecol.
– Já ouviu a história de Croatoan?
– Já estudei sobre tudo relacionado aos mais diversos mistérios desse
mundo, então, sim. O nome deixado na vila dos colonos que sumiram no
novo continente, sem deixar vestígio. Sem sinais de luta, sangue, nada,
apenas a palavra, mas todos desaparecidos. Os índios no local diziam que
ali eram terras de um demônio das sombras... – após suas próprias palavras
ela olhou em volta.
– Sim, é verdade. E o que acha que aconteceu? – ele perguntou.
– Eu não sei... – ela concluiu.
– Existem casos no mundo todo de pessoas que acordam no meio da
noite e dizem estar sendo observadas por algo, algo escuro... Nesse
momento, elas não conseguem se mover. É um fenômeno interessante, no
entanto pode ser explicado, o mundo dá um jeito de explicar tudo.
Ela assentiu.
– No entanto é curioso... – ele fez uma pausa e olhou em volta –
Todas as pessoas, sem exceção, em algum momento de suas vidas quando
fitaram a escuridão ou o desconhecido, sentiram uma sensação misturada
ao medo. Qual era essa a sensação?
– A sensação de se estar sendo observado. – respondeu a dama
olhando em volta enquanto a escuridão parecia se fechar sobre eles, cada
vez mais densa, cada vez mais opressiva e pesada. – Isso é natural, nossa
mente cria essa sensação.
– Cria mesmo? – ele questionou e ela sentiu um arrepio na espinha –
O homem deixou a muito tempo seus instintos primitivos serem
sobrepostos por seu falso raciocínio, mas eles ainda estão lá, eles ainda
estão escondidos por mais que se minta, eles nos movem e eles nos alertam.
O bicho homem não teme a escuridão atoa, por mais que ele seja racional,
ele sabe que eles estão lá, que eles estão o observando. Que croatoan sorri
para ele. Aquelas pessoas foram levadas.
– Pelo demônio das sombras?
Ele não respondeu.
– Tenha medo do escuro. – o cocheiro avisou.
– Está tentando me assustar? – questionou ela.
– Não, te aconselhar.
Um silêncio se fez e apenas o barulho das rodas e das patas dos cavalos
seguiu-se durante um bom tempo. A escuridão da floresta começou a
assusta-la de verdade então, era como se, como se houvessem pessoas ali,
no escuro, olhando para os dois e a presença daquele cocheiro, alto,
sinistro, não lhes dava nenhuma segurança, era como uma casca oca, sem
calor algum. Ela começava a sentir o peito subir e descer, estava sentindo o
arrependimento. Olhou para a luz do lampião e se aquilo se apagasse?
Ficou com medo de imaginar, com muito medo.
Pediu para voltar para dentro, para sua cabine, o fez. Lá dentro, fechou as
cortinas, mas sabia que as trevas estavam lá fora, se aquela carruagem
parasse ela morreria ali mesmo. Sua testa começou a suar, seu corpo a se
aquecer, foi quando lembrou do marido. Um frescor veio em seu rosto.
Sim, seu marido, seu amado, seu anjo, era por ele que estava ali e não seria
o medo do escuro que a faria desistir, mas a deixaria atenta, sim, isso,
atenta, muito atenta a partir de agora. Afinal, croatoan sorri para você.
Capitulo 6
Estava a seis dias trancada, não ligava, que os pais a trancassem para
sempre. Mas a surra, a surra foi o pior, não pela dor, mas a desnecessidade
da agressão. Os odiava por isso, havia quebrado algumas coisas de raiva,
como sua caixa de joias e algumas bonecas antigas. Lamentava também
que a única pessoa que podia visita-la era sua prima, odiava ela, estava
sempre falando sobre vestidos, ela gostava de vestidos, mas sua prima
conseguia faze-la odiar o tema, odiar qualquer coisa. Quando ela aparecia,
sentia vontade de acertar a cabeça dela na ponta da mesa e depois atira-la
do topo da escada.
No fim de tudo, encontrou algo para se distrair, observar a vida alheia,
nada como observar a vida alheia. Se sentava na janela com um livro e
enquanto lia observava como cada pessoa agia. Todos em sua cansativa
rotina, para cima e para baixo. Um garoto de bicicleta vendendo pão, um
casal que sempre se encontrava no banco em frente a mercearia, as
carruagens que passavam, os animais, o modo como a sindica do prédio da
frente sempre brigava com todos no lugar.
Tudo fora monótono, ela até tentou notar as diferenças de uma vida para
outra, mas nada daquilo a atraia. Certa vez viu um casal com seu filho
brincando no meio dos dois, aquilo a derreteu e se tornou a sua memória
favorita, eles pareciam completos ao pôr do sol. Se perguntou se teria um
marido e um filho um dia, isso a deu medo, mais medo do que achou ser
certo. Pensou até em perguntar para a mãe, mas não, estava sem falar com
ela desde a surra que o pai lhe dera. Estava sem falar com os dois.
Os dias se passaram, foi quando recebeu uma visita quase inesperada.
Alguém bateu a porta, e já estava irritada quando abriu, se fosse a mãe, iria
manter o silêncio, mas se fosse o pai, iria dizer umas poucas e boas. No
entanto, era o “tio” Alfonso, ela sorriu ao ver aquele homem que lhes fazia
uma reverencia.
– É bom te ver, minha querida! – ela o abraçou de alegria por ver
alguém diferente e ele deu uma risada, a mãe os deixou a sós e ela o
convidou para entrar no quarto, mantendo a porta aberta é claro, sabia a
confusão e desconcerto que geraria se fechasse.
– O que o traz aqui? – perguntou ela ansiosa ao ver um pacote que
ele trazia consigo.
– Eu te trouxe um presente. – Alfonso extendeu para ela o pacote.
– São bombons? – indagou a garota o que o fez rir.
– Não, minha querida, longe disso. – respondeu ele e ela abriu com
velocidade o envelope marrom enquanto ele sorria – É um velho diário
com anotações e estudos de quando eu era mais novo.
Ela pareceu interessada pelo livro de capa de couro e páginas velhas, isso
o surpreendeu.
– Sobre o que fala? – perguntou a garota sentando-se na cama.
– Bem, são pesquisas, sobre a natureza, a velha natureza. – ele falou
puxando a cadeira da cômoda dela – Vai me perdoar, mas preciso
descansar um pouco as pernas.
– A velha natureza?
– Bem, isso e mais um pouco, sobre o espaço também. Pode ter
alguns conceitos complicados, mas acredito que uma garota inteligente
como você vai entender.
Ela assentiu e ele parou por um instante e começou a olhar pela janela
dela enquanto o sol entrava com seus raios pelo quarto. Uma calmaria se
construiu e ela observou o olhar cansado do homem, era bonito, mas na
juventude deveria ser lindo. Ele piscou pensativamente e então voltou o
olhar para as próprias mãos.
– Nunca tive filhos, sabia? – sorriu ele pensativo – O tempo passa e
quando a gente se dá conta, estamos cortejando as filhas dos nossos
amigos.
Ela sorriu para ele e ele deu uma risadinha.
– Eu espero que goste do que vai ler e não fique por tanto tempo
brigada com seus pais, eles te amam. – ele se levantou – Mais uma coisa,
não fique falando do que vai ler ai para as outras pessoas, tudo bem? Eles
podem achar que você está louca. – ele caminhou até ela e ela ergueu os
olhos para os olhos alaranjados do homem, seus cabelos tingidos – Me
permite um beijo de despedida?
Ela assentiu e ele com delicadeza beijou a testa dela passando a mão por
seus cabelos.
– Sinto que você ainda vai deixar esse seu tio aqui orgulhoso, minha
menina. – ele se despediu retirou-se deixando ela sozinha no quarto.
Assim que ouviu ele partir, fechou a porta quase que na cara da mãe. A
mulher não reclamou, a dama achou que ela reclamaria, não ocorreu, se
sentia culpada pelo modo como castigou a filha? Ouviu os passos da mãe
irem para longe e se dedicou a abrir e ler o livro.
No começo teve dificuldade de ler a letra, havia muitos rabiscos por
cima, manchas, e a letra não era das melhores, era apressada, mas logo
entendeu. O diário, livro, o que fosse, era uma coisa de doido para ela, uma
loucura total. Começou de leve falando sobre conceitos da física, sobre o
espaço e sobre teorias da origem da vida, mas logo afundou em relatos de
viagens. Viagens em que o próprio Alfonso era o protagonista, ele parecia
estar buscando algo, ela demorou um tanto para compreender o que.
Os relatos eram de Alfonso estudando tribos tribais, isolados, com
culturas primitivas e complexas onde adoravam figuras diversas. No
entanto, uma dessas tribos foi a que mais chamou a atenção dele, uma tribo
que tinha descendência com os egípcios e veneravam os mesmos tipos de
deuses que eles, apesar de ambos estarem separados pelo mar.
Havia imagens de seres que misturavam partes animais como humanas, a
valorização do metal, não só pela sua beleza, mas pelas possiblidades de
manipulação e um certo credo no poder dos mesmos. Relatos sobre
maquinas que podiam criar, modificar e destruir matéria orgânica. Então
um estudo mais que aprofundado sobre o poder de ressuscitar os mortos e
mais, de alongar a vida daqueles que estavam vivos. Era como se Alfonso
buscasse ter controle total sobre a vida naquelas pesquisas, mas por que ele
havia dado isso a ela? Teria ele desistido do seu objetivo? Ficado velho
demais para isso? E agora, agora estava jogando tudo aquilo para ela.
Queria explorar mais, mas já era tarde da noite quando se deu conta e foi
dormir. Mas na cama não conseguia parar de pensar sobre os temas do que
lera, as ligações quase irreais entre tribos tribais, física e maquinas com o
controle sobre a vida e a morte. Quando finalmente adormeceu, sonhou que
estava no topo de uma pirâmide comendo biscoitos e contemplando a
imagem de um grande ser caminhando a luz do sol, tão grande que quase
tapa toda a luz do mesmo, ele vinha em sua direção, até sumir
completamente.
Ao amanhecer, tomou café apressada, malmente engoliu e quando estava
subindo as escadas para o quarto ouviu a voz severa:
– Pare ai mesmo. – ela se virou com o chamado, era seu pai – Está
livre do castigo.
Ela o fitou por um instante.
– Tá. – e subiu com pressa, no quarto reabriu o livro.
Começou a ler um relato de Alfonso sobre os templários, narrava a
exploração dos mesmos e como encontraram no deserto das catacumbas
inscrições e um mapa sobre a exitência de um livro dos mortos. Não era a
primeira vez que o tal livro surgia nas viagens de Alfonso, porém mostrava
que o homem europeu havia entrado em contanto com o mesmo. Alfonso
dizia em seu relato “... uma lástima da mais grave, o mero contato desses
porcos com o livro dos mortos arrisca a perca de um conhecimento sem
igual pela ignorância.”. Ela riu, achou o relato um tanto quanto exagerado
por parte dele.
No entanto, páginas seguintes compreendeu que Alfonso viria a
confirmar tal visão quando suas pesquisas foram atacadas e destruídas
quando estava em Lisboa. Tentara publicar um livro com o acarretado de
informações, mas fora pressionado pela própria editora e por imbecis
fanáticos. “ Não é tempo para a valora de culturas primitivas e conversas
pagãs e infundadas. É hora de valorizar o que é nosso e nos pertence. – foi
o que me disse o resto de estrume de uma porra sobre os meus escritos!
Talvez seja ele o culpado do incêndio criminoso ao meu material. Acidente
uma ova! Aquele sindico maldito! Aposto meus bagos que foi ele o
responsável por deixar entrarem em meu quarto e cometerem uma
atrocidade!”
Ela riu imaginando aquele homem educado dizendo tais coisas, mas
ficou tão irritada quanto ele. Muito parecia ter sido perdido, muito que ela
poderia estar olhando agora. Sentiu admiração pelo seu tio e uma pontada
de inveja por ele ter vivido tais coisas. Leu então um fragmento que
começou a imergi-la mais do que qualquer coisa até ali.
“Esses seres divinos valorizados por tais povos, talvez não sejam tão
sem fundamento assim. Tais seres parecem beber de um horror mais
antigo, costumam ser retratados como maiores que um homem comum,
com algumas deformidades, talvez exista uma linha de base. As figuras
meio humanas e meio animálias parecem ser na verdade dinvindade
menores que vem de seres maiores e deformados em aparência. Tais seres
dão indícios de não serem terrenos e serem elaborados demais para essas
tribos criarem. Não, tais seres vieram do céu, por isso um estudo tão
aprofundado de astrologia e tenho certeza essa noite, sonhei com eles, vi
eles chegando do céu. Eles ensinaram e lecionaram, criaram as divindades
que a tanto valorizamos e, no entanto, ainda sim, talvez tenham sido as
divindades filhos desses seres que tenham se misturados a nós. Será que
ocorre? Quantos relatos existem de deuses e humanos se deitando. Sim,
quantos? Existe algo mais aprofundado, meu sonho do meteoro vindo dos
céus a terra, com tais seres em sua crosta não pode ser coincidência...
Esses seres ainda, pais dos deuses ainda estariam entre nós? Ou teriam de
partido? Não, um sacerdote me disse que o arrebatamento viria de formas
diferentes, lugares diferentes, justificativas diferentes por vários que
seriam poucos. Poderiam esses seres se disfarçarem entre as tribos
primitivas e deixarem seus filhos nos distraírem enquanto realmente fazem
o que desejam conosco? Em relatos, muitos desses seres preferem o frio e
outros o escuro, sendo o fogo como uma faca, é tão valorizado quanto uma
arma por eles. Questões demais, mas para tal, deveriam se esconder, seus
tamanhos descomunais sugerem que devem se esconder em lugares
ocultos. Quando enumero as possibilidades me veem os mais diversos....
Mares, sim, mares são profundos e escuros... Mas também as sombras, as
sombras são longas e ternas, das montanhas, dos bosques, dos confins
fundos da terra... Questões demais!”
A dama passou as páginas onde viu apenas rabiscos sem sentidos e então
começou a ler um novo fragmento.
“Posso concluir sem medo algum de erro, que tais seres e seus filhos
valorizam o domínio da vida e a morte pois tal domínio nos surpreende e
nos faz seus servos. Sim, o fascínio pela longa vida, pela transcendência do
ser. É preciso buscar o ressurgir, o poder que permite trazer de voltar e o
de manter para encontrar esses seres. Sim, eles estão fracos, em
comparação a outrora, eles devem buscar resgatar esse poder. Prometeu
talvez não tenha roubado o fogo, ele roubou a vida. Uma analogia perfeita.
Afinal, um deus não é um deus por seus truques de mágica e sim por não
poder ser destruído, ser infinito em sua existência! Sim, sim, devo procurar
o imortal para achar tais criaturas e tentar compreender sua linha, sua
forma de pensamento. Mas não, não o velho mundo onde horrores antigos
se escondem nas sombras, mas o novo que é mais velho que o velho pois
esse, pouco foi tocado de verdade por nosso povo e nele estava o mais
antigo e esquecido.”
Ansiosa, começou a folhear as próximas páginas buscando os próximos
relatos quando viu.
“Encontrei a chama da vida, a chama do poder creio eu” – Você tem
visita. – chamou a mãe dela a porta.
– Não quero receber visita alguma. – respondeu a garota irritada por
ter sido interrompida.
– Venha logo, não seja mal-educada.
Ela fechou o livro e se levantou. Aquilo a irritou tremendamente, quem
viria incomodar a leitura mais interessante de sua vida?
...
A carruagem avançou com um ranger, estavam cruzando uma ponte
quando foram parados por dois homens encapuzados. A manhã estava
nublada e ambos tinham máscaras no rosto com grandes bicos que
pareciam de corvos e lentes para enxergar por debaixo daquela brancura
um tanto assustadora. Eram médicos.
– Queremos passagem. – a voz grossa do cocheiro anunciou.
– Vocês vem de uma área isolada. – falou um dos homens – Sua
passagem se torna complicacada.
– Queremos passagem. – repetiu o homem.
– Estão infectados?
– Não... E vocês?
– Traz alguém consigo. – perguntou o outro doutor.
– Sim... – o cocheiro respondeu com um aceno de cabeça – Mas não
devem incomoda-la.
– Estamos apenas checando, sabe disso. – o homem apontou para
uma pequena torre de guarnição onde estavam homens armados com
forcados, facas, foices e porretes. A dama olhou pela cortina a trupe curiosa
e suja.
– Queremos passagem. – requisitou o cocheiro, dessa vez em tom
impaciente.
– Uma moeda ao barqueiro para entrar no reino dos mortos. – o
doutor estendeu a mão.
O cocheiro começou a rir por debaixo do cachecol.
– Ironia. – falou então estendendo a mão para o doutor.
A dama observou calma, com a arma destravada, qualquer coisa, poderia
chegar a sua espingarda no bagageiro com velocidade. Quando o cocheiro
abriu a mão, uma moeda dourada caiu sobre a mão do outro que fechou e
fez uma reverencia. Foi quando o doutor gritou. Sua mão começou a
esfumaçar e ele a abriu enquanto o outro observou assustado, a moeda
começara a atravessar a mão do homem enquanto ele grunhia e se
ajoelhava. A moeda derretia tecido, pele, ossos e sangue. Quando caiu no
chão o médico estava ao lado ofegante e com um choro desesperado. O
cocheiro pareceu sorrir por debaixo do cachecol e deu a partida.
Os cavalos avançaram a trote, enquanto cruzavam pelos homens armados
e sujos, a dama olhou através da cortina e se assombrou com a visão. Eles
olhavam diretamente para ela, magros, sinistros, ameaçadores, seguiam a
carruagem com a cabeça juntos como um só. Então começaram a seguir a
carruagem a passos vagarosos. Um deles se arrastava com a perna
quebrada, ignorava totalmente isso.
No entanto, após alguns minutos, eles pararam e ficaram para trás, mas
estavam lá, observando. Quando estavam próximos a um rio ela pediu que
ele parasse a carruagem. Ela desceu e foi até a água corrente.
– Desejo tomar um banho. – falou ela, o cocheiro nem lhes
direcionou o olhar. – Não quero que olhe para mim, alimente os cavalos ou
coisa do tipo.
– A carne acabou.
– Cace, faça qualquer coisa, só não quero que me observe enquanto
tomo banho. – ela disse decidida.
O cocheiro deu de ombros e desceu.
– Você tem vinte minutos, após isso, seguiremos viagem. –
anunciou.
– Sem problemas. – parecia saber lidar com ele – Eu tenho uma
pergunta.
– Sim...
– O que foi aquilo com a moeda?
– Não se rouba do barqueiro.
O cocheiro sumiu então dentre a mata assim que fez a curva numa árvore,
ela esperou vê-lo caminhando mata a dentro, mas ele simplesmente sumiu,
como se tivesse ficado invisível.
Esperou um pouco para ver se não estava sendo espiada, manteve a
espingarda e a pistola por perto, não vacilaria. Depois de um tempo
aguardando, finalmente aceitou estar só, claro, havia os cavalos, mas eles
pareciam desprezar sua presença. Aproveitou então o momento e se despiu,
a água do rio fluía tranquila e parecia calma apesar de escura. A margem
ficava um pouco distante, poderia se exercitar bem nadando até lá, mas
preferiu só ficar ali na beirada, se banhando nua. Era tranquilizante sentir
finalmente a pele limpar de tudo que passou. Lavou o cabelo e o corpo sem
pressa, viveu o momento, aquele rio que fluía vagarosamente parecia ser a
melhor coisa naquele lugar, a viagem parecia já estar durando uma era.
Ela então bebeu da água, tinha um gosto diferente da que o cocheiro
servia a ela, talvez por ser fresca. Ela bebeu mais um pouco e começou a
olhar para o rio. Por que não mergulhar? Sim! Precisava disso, um bom
mergulho e uma boa nadada. Se levantou e saltou para dentro da água,
começou instantaneamente a dar braçadas e exercitar o corpo. Nadou e
nadou, até que por fim resolveu finalizar com um mergulho profundo, será
que conseguiria tocar o chão do rio?
Ali no fundo da água notou que podia enxergar melhor do que
imaginava, apesar de turvo, afundou mais um pouco e pôde ver não muito
distante o chão. Notou que havia um declive mais para o meio do rio, então
seguiu nadando para testar sua resistência, sua resistência já a salvara antes
de encrencas, tinha de manter boa.
Viu então a escuridão do rio ao longe, completa e longa. Parecia infinito
ali em seu fundo, foi quando lhe faltou ar e viu. Mulheres, mulheres presas
ao chão com pedras amarradas em seus tornozelos. Seus cabelos
balançavam e sua pele pálida parecia de cera. Assombrada começou a
nadar para fora o mais rápido que pôde, enquanto nadava em direção a
superfície ouviu um som ensurdecedor como o de pedra batendo na outra.
Se virou para olhar, olhou para as mulheres, elas continuavam paradas.
Foi quando viu algo se mover não muito longe, passando por cima da
cabeça delas. Parecia um homem, no entanto era esguio e nadava com
fluidez amedrontadora. A silhueta nadadora se aproximou então de uma das
mulheres e a abraçou. Aproveitou o momento que ele parecia se distrair e
nadou para fora da água, assim que saiu pegou sua arma e apontou em
direção ao rio em silêncio esperando enquanto recuperava seu fôlego.
Esperou durante três minutos, até que viu um contorno na água, um
movimento. E viu para a surpresa de seus olhos um braço sair, um braço
pálido, deduziu com certeza que era de uma das mulheres mortas. O braço
ia afundando vagarosamente e se erguia enquanto ia em direção a sombra
das árvores do outro lado do rio. Ali ela viu algo subir próximo ao braço,
algo escuro com rosto achatado e bochechas pontudas, destravou a arma
mirando naquilo. Então a coisa afundou e o braço junto. Esperou mais um
pouco, mas nada mais aconteceu. Com velocidade pegou as roupas e as
armas e se afastou do rio se vestindo com velocidade.
Ficou próxima aos cavalos com a arma em mãos, mesmo sinistros, já
estava acostumada a eles, mas aquilo não. Ficou mirando a água com os
nervos a mil, a arma em mãos e um cenho franzido tanto de susto quanto de
surpresa.
– Dizem que esse rio guarda muito. – ela disparou assim que se virou
na direção do cocheiro. A bala passou raspando por ele que por pouco não
é acertado na cabeça, o estrondo ecoou pelas árvores. – Entre na
carruagem, temos de seguir viagem.
– O que era aquilo? – perguntou ela.
– Aquilo o que?
– Não te faça de tolo, a criatura que vi.
– Eu não estava aqui. Mas se viu algo e está aqui conversando
comigo, teve sorte. – ele falou.
– Você sabia que havia um perigo no rio.
– Eu sei o que todos sabem, que todo rio é perigoso. – ele subiu em
seu lugar – Que todo escuro é perigoso. Vamos.
Partiram sem demora, mas durante a viagem, a estrada se manteve muitas
vezes a margem da água, permitindo-a fixar seu olhar vigilante sobre o rio.
Sabia o que eram aquelas mulheres, na idade média amarravam pedras as
bruxas e as atiravam nos rios. “A ignorância do europeu.” lhes diria
Alfonso. Ela então fez algo que não fazia muito, pegou um cachimbo em
suas coisas e começou a fuma-lo, não gostava, mas uma vez ou outra abria
essa exceção e forçosamente fumava. Observou então enquanto fumava e
via a fumaça tentar distrai-la, o rio, com suas águas escuras em nos de
verde que refletiam o nublado do céu. Uma ou duas vezes imaginou ter
visto algo, mas não passou de pedaços de tronco.
Mesmo após isso tudo, insistiu em olhar o rio, estava vidrada nele. Foi a
tardezinha enquanto cruzavam uma ponte para o outro lado que ela então
viu algo. Olhou para a margem que deixavam e viu um pássaro branco que
não identificou a espécie, pousar próximo a margem. Enquanto o pássaro
bebericava da água dois braços escuros saltaram da água sobre a ave e a
puxou enquanto se contorcia. Houve um rápido chacoalhar, em seguida
bolhas e depois mais nada. O rio foi sendo deixado para trás e seus
mistérios também.
Foi quase ao anoitecer que avistaram as luzes ao longe do que parecia ser
uma pequena vila. Ela se animou de dentro da cabine.
– Não falta muito para Cecidit, certo? – perguntou ao cocheiro da
janela.
– Não, essa vila é a última coisa em nosso caminho. – ele respondeu
em tom sombrio.
– O que há nela?
– O mais incomodo tipo de animal, gente. – ele apressou os cavalos.
Chegaram em frente a uma muralha de pedra arruinada com um portão
fechado.
– Passagem. – requisitou o cocheiro e um guarda no topo do muro o
encarou em silêncio.
– De onde vem e para onde vão? – perguntou o homem.
– Da Inglaterra para Cecidit.
O guarda ficou em silêncio segurando sua espingarda.
– Está ocorrendo um julgamento, são convidados a assistir. –
anunciou por fim – Temos uma pousada onde podem passar a noite.
– Agradecemos.
O portão se abriu e eles adentraram. As ruas de pedra estavam
silenciosas, os postes iluminavam com fraqueza e os sobrados velhos
estavam todos com janelas e portas fechados. A carruagem andou até um
sobrado de dois andares com um mural na frente e parou. O cocheiro
desceu e caminhou até a janela da dama.
– A nossa viagem termina aqui. – falou.
– Como? – indagou ela – Não vai me levar a Cecidit?
– Você já está no que pertence a Cecidit, em duas horas de viagem
chegará lá. – respondeu ele – Daqui, você segue sozinha.
Ela não questionou e desceu da carruagem. Pegou suas malas e armas.
Então ele lhes estendeu a mão, ela pensou que era um cumprimento, mas
logo entendeu que era a cobrança.
– Vou pegar o dinheiro. – falou ela.
– Uma moeda de ouro. – disse o cocheiro.
– Eu não tenho uma moeda de ouro aqui. – respondeu ela erguendo
as sobrancelhas.
O cocheiro deu as costas a ela e subiu em seu lugar, ela o seguiu
esperando o que ele diria. Ele apenas olhava para frente.
– Dentro de sete dias, nem um pouco depois, jogue uma moeda de
ouro em uma água não tocada pela luz maior durante pelo menos seis anos
entre as três e quatro da manhã. E sua dívida estará sanada.
– E se eu não conseguir ela perguntou? Onde vou encontrar isso?
Cocheiro e se eu não conseguir?
Ele girou o olhar para ela, removeu os óculos e abaixou o cachecol de seu
rosto. Os olhos da dama arregalaram, ela via um rosto que consistia
basicamente em uma caveira com cabelos. A caveira se aproximou fazendo
vários estalos e deu uma rufada fria no rosto da dama. Em seguida recuou e
colocou o cachecol no lugar partindo em velocidade. Ela observou ele
sumir, talvez a coisa menos assustadora em toda aquela viagem, no entanto,
tinha de conseguir uma moeda e água, água não tocada pela luz por pelo
menos seis malditos anos. Onde conseguiria isso?
Olhou para cima e leu o nome da pousada, “Pousada de Seriarth”, achou
o nome curioso e entrou na pousada. Estava vazia, não havia uma pessoa
sequer no lugar, foi até o balcão e bateu nele com o punho. Foi quando uma
mulher veio dos fundos com o vestido todo bagunçado e o cabelo
desgrenhado, a dama reconheceu as marcas no pescoço de mordidas e deu
um pequeno sorriso. Quis rir quando um homem saiu logo atrás da mulher
e ela fez um sinal com a mão para ele ficar onde estava.
– Desejo um quarto. – disse para a moça que refletiu por um instante
olhando para a lareira.
– Claro, Frield, hoje é noite de julgamento, correto? – falou a moça.
– Sim, Donna. – respondeu o homem do outro cômodo.
– Dezesseis libras. – a moça disse e a dama assentiu dando o dinheiro
a ela.
– Tem café da manhã? – perguntou para a estalajeira.
– Sim, janta também, só não servimos almoço. – respondeu a moça –
Seu quarto fica lá em cima, segunda porta a esquerda.
– Obrigado. – a dama subiu as escadas com as malas e ouviu a porta
do cômodo onde estava o homem bater, eles haviam voltado para o que
estavam fazendo.
Ao entrar em seu quarto reparou que não era muito espaçoso, quase uma
cela. A cama pelo menos estava limpa, assim como a mesa e havia também
um espelho. Aquilo a agradou. Se deitou na cama que era colada com a
janela e deu um suspiro grave. Estendeu o braço para abrir a janela, mas
não alcançou, deixou a preguiça dominar e ficou ali deitada.
Então começou a ouvir um som na janela, como um arranhado. Se
levantou e pegou sua pistola. O arranhado parecia insistente, abriu a janela
com velocidade e com a arma apontada. Era um gato, um gato preto de
olhos amarelados a olhando. O gato a encarou por um instante longo e ela o
encarou de volta com a arma ainda em mãos.
– Boa noite. – o gato falou.
...
Pietro havia convencido os pais dela a deixarem que ela saísse com ele.
Achou estranho o pedido dele de dar uma volta, mas entendeu quando no
final se encontraram com Gregório num parque.
– Então, hoje nós vamos para uma coisa mais que incrível. – falou
Gregório.
– Para onde? – perguntou a dama.
– Para um parque que tem nada mais nada menos: – começou Pietro.
– Um show de horrores! – gritou Gregório completando.
– Criativo. – disse ela.
– Extremo. – concordou Pietro desdenhando.
Os três pegaram um bonde e desceram não muito longe do parque.
Tiveram de andar pouco, mas a chegada ao lugar compensou o sol sobre
suas cabeças e os calos que ela tinha certeza que teria por causa das
sapatilhas.
Se divertiram nos mais diversos jogos do lugar e Gregório fizera questão
de comprar um cavalo de pelúcia para ela. Estava tendo um dia feliz depois
do tempo que passou enclausurada. A maioria das atrações eram pessoas
com algum tipo de deficiência, mas fora a vidente que mais chamara
atenção dela, o que fez ela quase implorar para seus amigos a levarem até a
mulher. Eles concordaram que ela fosse, mas queriam distância da vigarice
como afirmavam.
– Tanto faz. Quem perde são vocês! – disse ela rindo e os dois deram
de ombros e foram em direção a barraca de tiros.
Ela entrou na tenda e ficou surpreendida pela pobre iluminação de
lâmpadas penduradas e com o chão ser pura terra, sem forro, e para piorar
havia uma fumaça forte no ar que a deixava enjoada. Notou que vinha da
vidente que fumava. A mulher se vestia como mandava o estereótipo, lenço
na cabeça, cabelo cacheado e olhos cor de esmeralda, além é claro, dos
brincos dourados e anéis.
– Pode se sentar. – a vidente apontou para uma cadeira em frente a
sua mesa.
A dama se sentou e elas se entreolharam por alguns instantes.
– O que você deseja? – perguntou a mulher assoprando outra
baforada de fumaça do que paria ser um grande tubo de vidro com incenso
dentro.
– Eu quero que fale do meu futuro... – a jovem começou a ficar tonta
e cada vez mais enjoada.
– Extenda a sua mão para a minha bola de cristal, meu bebê. – a
dama obedeceu com dificuldade e pôs a mão sobre a bola assim como a
vidente – Oh meu Deus, minha pequena!
– O que...? o QuE esTÁ VeNDo.?.?
– EsTÁS SaNGRando! – a mulher se levantou, mas a dama
mergulhou de olhos fechados para trás.
Quando se ergueu em meio a luz esverdeada e azul do céu pôde ver um
grande campo verde cinza de gramados. E em meio aos campos ela
caminhou perdida, foi quando viu ao longe uma floresta com grandes
árvores retas, quase cubicas e com folhas tão grandes que se juntasse duas
delas se faria um telhado de uma casa.
Der repente o céu começou a ficar mais escuro e o coração dela começou
a palpitar. Um gelo se apossou de si e do seu arredor, notou que estava nua,
mas se preocupou em tentar se esquentar com as mãos do que cobrir as
partes. Tochas se ascenderam numa fileira a sua esquerda e direita. Ela
ouviu um som estrondoso de passos que fazia a terra tremer, assim como
pareciam esmagar algo gosmento o que fez a dama dar dois passos para
trás. Foi quando diante dela algo escuro e grande parou.
As tochas iluminavam apenas os pés que nada mais eram que um
conjunto do que pareciam ser lesmas brancas, as quais eram banhadas por
um liquido viscoso. Os pés recuaram então fazendo um estrondo e ela
seguiu paralisada sem saber para onde ir. Correu para trás visando chegar o
mais longe possível, mas esbarrou numa parede viscosa e caiu no chão.
Para seu espanto e horror era uma grande mão branca. No centro da mão
havia uma abertura negra que se mexia, como uma pálpebra. Logo ela
deduziu, era uma pálpebra. O olho na mão se abriu e a fitou. Grande escuro
apenas com o brilho da iluminação das tochas sobre ele.
Ela se afastou com cuidado enquanto o olho piscava e a observava.
Enquanto se afastava sentiu um forte vento a empurrar e em seguida a
puxar quase a tirando do chão. Ela virou-se devagar para observar o que
respirava em cima dela. Viu um queixo dos quais saiam vários braços que
tocavam o chão, mas não se extendiam pelo maxilar, logo um pouco acima
de sua cabeça viu uma boca longa e sisuda quase sem lábios na pele pálida
e branca. Não conseguia enxergar mais nada.
Ficou calada, suando frio diante da imagem, foi quando a boca se abriu e
de dentro dela escorreu um óleo negro e grosso que foi em direção aos pés
da jovem que recuou assustada. E de dentro da boca escura que começava a
demonstrar os dentes sujos com o óleo, viu sair do lugar que ficava a língua
um corpo se estendendo em sua direção. A figura se contorcia e estralava,
parecia a figura de um homem, esse homem feito de liquido negro limpou
com uma das mãos a boca para mostrar um sorriso e com a outra estendeu
um cumprimento para ela.
Ela recuou, mas a figura se estendeu mais e logo em seguida sua
plataforma que parecia ser a língua começou a se alargar em direção da
garota. Ela correu com velocidade até chegar próxima ao olho que olhava
inerte para ela dessa vez. Sem saídas se encolheu enquanto a língua preta
com o homem vinha em sua direção vagarosamente. Ele sorria.
Quando ele chegou perto, a dama em medo iniciou um grito enquanto as
lágrimas vinham a seus olhos. Desesperada estava. Ele então começou a
formar um abraço em volta dela vagarosamente para toca-la, foi quando ela
o socou. Socou com tanta força que seu punho pode ter quebrado.
Apesar do seu soco potente, a cabeça do homem só virou para o lado, ele
voltou a virar para ela dessa vez mais insistente se ergueu sobre a garota,
ela o socou de novo e de novo, mais uma vez, socou o máximo que pôde.
Mas não importava o quanto socava, só ficava mais cansada, foi quando
outros como ele surgiram, pequenos, grandes, vindos da língua e se
estendendo até ela para abraça-la. Ela pegou então uma das tochas e tentou
ataca-los com ela, mas eles deixaram a tocha os tocar, queimando um deles
sem nenhuma reação de dor, até que os outros engoliram esse e foram em
direção a ela. Conseguiram agarrar os seus braços, suas pernas e
começaram a engoli-la, a torna-la parte do grupo. Foram puxando-a com
força como se ela mergulhasse em um rio, ela sentiu ali um frio tão
profundo que seus ossos doeram, quis gritar, mas quando abriu a boca o
liquido ali entrou e o resto foi escuridão.
Ela acordou olhando um rosto preocupado de um homem que não
conhecia. Seus cabelos castanhos caiam sobre os olhos claros do homem e
seu semblante era calmo, mas concentrado. Ele franziu então o cenho com
suas sobrancelhas finas e por fim se afastou dela como um anjo deve fazer
com os recém mortos antes de leva-los ao céu.
– Acredito que ela vá ficar bem. – falo uma voz amena.
– Ainda bem, ainda bem. – disse Gregório pegando-a no colo e
beijando várias vezes suas testa, ela olhou em volta. Estavam ainda no
parque, Pietro segurava sua mão apreensivo e preocupado. Ao lado dele o
homem a olhava com as mãos no bolso e ao lado dele uma jovem de
cabelos lisos na altura do pescoço fazia o mesmo.
Ela se ergueu, não perguntou o que houve, tinha ideia do que havia
ocorrido. Levou a mão ao rosto, sentiu algo próximo as narinas, passou a
unha, sangue seco. Olhou para o homem desconhecido de terno buscando
explicações.
– Você teve um desmaio e um sangramento nasal. – disse ele pondo
os óculos – Posso não ser médico, mas acredito que tenha haver com toda
aquela fumaça, desencadeou uma reação atípica no seu cérebro.
– Espera, você não é médico? – perguntou Pietro erguendo as
sobrancelhas, a mulher que estava do lado do homem riu de forma vulgar.
– Haha, meu irmão? Nunca! – a mulher abraçou o braço grosso do
homem que sorriu com ternura como que para acalmar possíveis
discussões.
– Mesmo assim, obrigado. – falou Gregório – Eu e Pietro não
saberíamos o que fazer.
– Tudo bem, só fiz o que sabia. – respondeu o homem – No entanto,
gostaria de entender melhor o que aconteceu. Me desculpem a curiosidade,
principalmente você. – ele olhou para a dama – Recomendo uma consulta
com um médico e eu gostaria de atualizações sobre seu quadro.
– Ele é rápido. – riu Pietro coçando a bochecha.
– Ora. – semicerrou os olhos Gregório.
– Não vejo problema. – disse a dama fazendo todos a olharem, com
exceção do homem que já a encarava – Eu fico grata pela ajuda.
– Nós fizemos o que podíamos. – sorriu a irmã dele.
– Temos de ir. – disse Pietro – Não podemos levar ela tarde para
casa.
– Concordo, vamos. – Gregório falou e os três se despediram dos
irmãos e partiram.
Na carruagem um silêncio se fez, ninguém parecia tocar no assunto. Então
ela teve de tomar frente.
– Foi só um desmaio. – ela comentou.
– Não pareceu só um desmaio. – respondeu Gregório pensativo.
– Não sejam dramáticos! – ela suspirou fazendo Pietro dar uma
risada contida.
– Eu fico me perguntando o que sua mãe vai dizer, seu pai vai querer
atirar na gente. – riu Gregório – Não posso levar tiros a essa altura, vou
ficar tão furado que vão me usar como peneira. – os outros dois riram junto
com ele.
– Foi apenas um desmaio, juro. – falou ela.
– Ora, tudo bem. – Gregório deu de ombros – Não somos seus pais...
Mas se fossemos, você estaria encrencada mocinha.
Ela sorriu e encostou a cabeça no braço dele suspirando e fechando os
olhos. Ele fez um sinal para Pietro apontando para ela e fazendo um sinal
com o dedão enquanto sorria, Pietro deu uma risadinha e assentiu com a
cabeça.
Capitulo 7
Ela apontou a arma para o gato, já visando sacar sua faca caso não
acertasse todas as balas e ele chegasse perto demais.
– O que é você? – perguntou ela recuando para a porta.
– Não é óbvio? – o gato ronronou – Um gato.
– Mais uma resposta estupida e eu atiro. – ela destravou a arma,
estava irritada, apesar de assustada com a figura.
– Vejo que não estamos para o humor. – o gato respondeu com um
sotaque estranho e começou a amolar suas unhas na madeira da janela –
Meu nome é Levi.
– Você fala, mas sua boca, sua boca não se mexe... Está falando em
minha mente, certo?
– Exato. – o gato acenou afirmativamente – Em minha visão seria
uma perda de classe me rebaixar ao nível de vocês de precisar mover
minhas mandíbulas para emitir a voz.
– Você ainda não respondeu minha pergunta: quem é você?
– Sabe escrever? – o gato saltou do parapeito para o chão num
movimento tão rápido que a assustou.
– Sei.
– Sinal de inteligência mínima, poucos sabem isso por aqui. É
lastimam-te. – o gato sentou-se e começou a encarar ela – E então?
– Então o que?
– Vai ficar me encarando com essa arma ou vai se assentar?
– Desculpe, mas nada disso entra em minha mente.
– Como não?
– Gatos, não falam.
– Os seus não, assim como não fazem isso. – Levi olhou para o
espelho e ela seguiu seu olhar, der repente o espelho começou a se
contorcer e a borbulhar, até que derreteu e escorreu para o chão enquanto
fumaça saia dele.
– Como fez isso?
– Não fiz. – ele respondeu e ela olhou para ele com uma expressão
interrogativa. Ele voltou o olhar para o espelho e ele estava normal como
antes – Foi um truque de ilusão, eu poderia fazê-lo, talvez, mas não agora
quando posso te surpreender assim.
– O que você é?
– Um mago. – Levi saltou em cima da cama dela.
– Um mago em forma de gato?
– Não. Um gato, mago, demonstre a inteligência que as fêmeas da
sua espécie costumam ter. – o gato então parou em silêncio em cima da
cama.
– O que você quer?
– Dar um conselho.
– Qual?
– Volte para casa. – o gato deu as costas e subiu para o parapeito da
janela.
– Por que eu faria isso?
– Porque eu previ sua chegada. – o gato virou a cabeça para ela – E
tudo que ela acarreta.
Ela não falou mais nada por um instante, raciocinando o que estava
acontecendo.
– O que acarreta? – perguntou enfim.
– Em tudo. – Levi olhou para a lua que agora surgia no céu e
iluminava seu pelo – Em nada.
– Se continuar com enigmas eu atiro em você! – ela praguejou.
O gato a ignorou e saltou da janela. Quando ela foi até ela buscou com
seus olhos na rua vazia abaixo, mas não o viu, quando ergueu os olhos viu
o gato sobre uma chaminé não muito longe. Parecia enorme agora, do
tamanho de leopardo, ele a encarava de longe e a única coisa que ela via
era o seu olho esquerdo brilhar na silhueta escura. Ela ficou ali mirando ele
durante muito tempo e ele se seguiu imóvel, até que uma voz abaixo a
chamou.
– Ei moça, você não vem ver o julgamento? – perguntou uma menina
segurando a mão de quem parecia ser sua mãe abaixo. A mulher olhou para
a dama com um olhar sombrio e puxou a menina pelo braço, seguiram
caminhando.
A dama ergueu a cabeça e olhou para o gato, ele seguia ali imóvel. Ela
ergueu a mão e mostrou seu dedo do meio para o gato que diante do gesto
virou a cabeça e mirou para o horizonte onde as pessoas do lugar pareciam
ter ido. Ela irritada fechou a janela, a viagem a cansara e mais aquele
absurdo só a irritara. O que estava acontecendo?
Sentou na cama e respirou por um instante. Ainda teria do bolo do
cocheiro em suas coisas? Abriu a mochila de viagem e encontrou o
alimento enrolando num pano, pegou e o pôs sobre o colo. Desamarrou o
lenço e o bolo estava intacto com sua bela cobertura branca.
Mordeu o primeiro pedaço, começou a sentir o gosto extremamente doce
e macio quando der repente a comida azedou em sua boca. Sem pensar
mordeu outro pedaço tentando saborear, mas o bolo estava com um gosto
horrível, pior que qualquer remédio que ela já provou. Sentiu vontade de
vomitar. Foi quando olhou para o pedaço em sua mão e viu as moscas
saindo do bolo junto as larvas que faziam sua cobertura. Instantaneamente
vomitou o bolo para fora de sua boca e jogou o que tinha em mãos no chão.
– INFERNO! – gritou irritada e enojada – Como isso é possível?!
Buscou a água na bolsa como por instinto, mas antes de beber jogou
algumas gotas no chão para confirmar que não havia surpresas, enfim
bebeu. Bebeu até não sentir mais o gosto ruim e saiu do quarto batendo a
porta com força de tanta raiva, no instante seguinte voltou e pegou a pistola
em cima da cama.
Ela deu um suspiro descendo pelas escadas com pressa e saindo da
pousada. A mulher ainda transava com seu amante no quartinho e ela tinha
uma cidade para entender, além de informações a pedir. Viu uma lamparina
em cima do balcão e a pegou. Saiu com pressa pela porta e foi caminhando
pelas ruas, vazias ainda, não sentiu medo algum, a luz do luar lhes
iluminava o caminho, além de que, sua arma estava carregada. Chegou
então até uma esquina e viu uma enorme quantidade de pessoas.
– O julgamento que tanto falam? – se questionou analisando que
deveria estar a cidade inteira ali. Todos com tochas e lamparinas. Havia até
mesmo crianças e bebês no lugar, parecia uma grande mobilização. Tudo
em volta de um palanque onde um homem estava em pé segurando um
cálice. Ela se aproximou então da multidão que pareceu ignorar sua roupa
de couro e tecido, um tanto quanto estrangeira ali.
– É tempo de seguir. – falou o homem no palanque – Tempo de
deixar o passado para trás. E velhas manias, essas, devem ser enterradas.
Todos observavam em silêncio enquanto ele ajeitava o chapéu em sua
cabeça e seu sobretudo preto balançava ao passos que ele dava de um lado
para o outro.
– O que posso dizer? Tem coisas que não dá para deixar passar não é
mesmo? – ele sorriu e deu de ombros levantando as mãos e tirando o
chapéu para mostrar os cabelos grisalhos – E essa é uma coisa que
combinamos que não deixaríamos passar, correto? O que conversamos
sobre esse tipo de coisa? Alguém?
– Eu! – gritou uma voz fina e ele sorriu acenando para a dona vir a
frente. A menina subiu no palco com a ajuda de um adulto e o homem se
abaixou ao nível dela – Não se pode usar de rituais ou bruxaria!
– E por que minha pequena?
– Porque é do diabo! – ela tapou a boca como se tivesse falado um
palavrão e o homem fez o mesmo imitando fazendo todos rirem em
uníssono.
– E ela tem razão! – ele se levantou e ajudou a criança a descer – O
que fizemos a seis anos atrás? Para convivermos em harmonia?
– Banimos qualquer tipo de bruxaria! – gritou uma voz.
– Oramos juntos perante a grande fogueira! – outra sinalizou.
– Louvamos apenas ao Primogênito! – gritou outro.
– Todos verdade e nenhum mentira. – disse o homem de sobretudo –
Louvamos ao Primogênito, ao Único, ao verdadeiro. Apenas ao dono de
toda a verdade e o que conseguimos com isso? Paz... Temos nossos rituais
e o que sabemos sobre qualquer outro ritual? Que não passa de paganismo,
de atos banhados na mentira. Existe uma diferença vital quando
sacrificamos um cordeiro e quando outro sacrifica. Quando nós
sacrificamos o cordeiro, nós os discípulos do Primogênito que o fazemos,
nós que o fazemos para o verdadeiro bem que é somente e apenas um, a
paz.
O homem ficou sério e fez um sinal para a sua esquerda. Der repente a
dama viu um homem trazer arrastando uma mulher a qual os pulsos
estavam amarrados. Ele chamou a mulher com a mão e ela veio sem gritar
ou praguejar. A mulher tinha um vestido preto com adornos em vermelhos,
mas que estava aos trapos, seu cabelo ruivo bagunçado e seu rosto de
maquiagem borrada.
– Sabe o que você fez, queridinha e belíssima, Stelle? – o homem
perguntou pegando no maxilar da mulher.
– Nasci com os cabelos vermelhos. – ela disse em meio aos dentes.
O homem fez um sinal de negação com a cabeça.
– Não existe ligação alguma com seus cabelos com o que você fez,
Stelle. – o homem disse – O que você fez foi bruxaria, bruxaria do pior
tipo. Rituais distorcidos e monstruosos que enojam a toda a nossa
comunidade. Você questiona?
Stelle ficou em silêncio.
– Questiona, Stelle? – ele perguntou mais uma vez, ela não
respondeu. – Stelle, diante de nós e do Primogênito que olha todos nós
você foi julgada... Tragam a lenha.
As pessoas começaram a entoar em uníssono enquanto cada um pegava
um pedaço de lenha que havia aos seus pés. A dama não reconheceu o que
dizia em primeiro, mas em seguida reconheceu a língua morta egípcia
arcaica em que a citação se encontrava, em tradução ficava:
“Erguai da terra, pois teu ascendente se pousou no mar. Filho do único,
daquele que aqui está, mas não está. Todos por ti, todos ao Primogênito,
ao Primogênito, saudemos Miac’o, Miac’o, oremos ante Miac’o, Miac’o,
todos por ti, único e perfeito Miac’o.”
Ela observou eles fazerem a fogueira para queimar Stelle em silêncio. Se
afastou para mais longe da cerimônia com o coração a palpitar, pareciam
ignorar sua presença, mas não queria arriscar. Esgueirando pela parede de
uma casa prestou atenção quando todos pararam e o homem que havia
condenado Stelle se aproximou dela amarrada em cima da madeira no
centro da praça.
– Stelle, aqui, diante de nós você será purificada. – falou – Um
último pedido perante a misericórdia de Miac’o?
– Misericórdia, misericórdia para a minha irmã. – ela pediu.
O homem refletiu por um instante.
– Concedida. – o homem fez um gesto para outro que jogou óleo em
cima da mulher que começou a chorar – Stelle, com misericórdia concedida
e com o Primogênito olhando por nós, eu a purifico.
O homem atirou uma tocha em cima da mulher e se afastou enquanto ela
se incendiou e queimou. Stelle gritou ensandecida pela dor lancinante de
ter sua pele queimada e seus gritos preencheram os ouvidos de todos. A
dama assombrada com a visão da execução ficou imóvel sem reação,
passou pelo seu cérebro mais de uma vez reagir ao ato com sua arma, mas
poderia ela contra todos aqueles loucos? E o que Stelle teria feito? Talvez
fosse mesmo uma bruxa.... Nessas horas só queria estar em casa, com seu
amado...
Foi quando em seu momento de fraqueza viu uma jovem garota as
lágrimas sentada em um dos passeios. Ela observava a tudo extremamente
assustada, a dama deduziu que era a irmã de Stelle. Se aproximou da garota
com cuidado e a pegou no colo, muito leve até para sua terna idade que
aparentava.
– Vou tirar você daqui, minha querida. – a dama disse levando a
criança consigo para longe da multidão que começava a entoar a citação ao
Primogênito.
A menina não respondeu, levou ela até onde estava hospedada.
– Tape os ouvidos. – pediu para a criança quando entraram, a mulher
ainda transava com seu homem. Elas subiram para o quarto da dama. No
quarto ela pôs a criança na cama, havia parado de chorar e estava apenas
quieta deitada ali na mesma posição que a dama a colocou.
– Tem fome? – perguntou para a menina que com a cabeça fez um
sinal negativo. – Quer algo?
A menina lhes olhou nos olhos e por fim falou:
– Stelle.
A dama sentiu a saliva travar na garganta e os olhos arderem. Começou a
chorar sem nem ao menos notar e abraçou a pequena querendo protege-la
do mundo.
– Vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem. – disse enquanto a menina
começava a chorar junto a ela.
A noite se seguiu e ela ficou do lado da menina. Quando as duas pararam
de chorar, a dama olhou para fora e não viu mais o gato sobre a chaminé,
havia partido. Isso lhes deu um alivio.
A dama se levantou enfim e checou suas armas, resolveu limpa-las e
prepara-las. Após quase uma hora no processo minucioso, notou que a
menina dormia, se levantou e resolveu sair, trancando a janela e a porta do
quarto. Desceu para o térreo, a mulher havia parado e agora limpava o
chão, mas o lugar ainda estava vazio.
– Preciso saber uma coisa. – falou.
– Fale. – a mulher nem sequer ergueu os olhos para ela.
– Primeiramente, por que está limpando o chão a essa hora?
– Não tive tempo mais cedo. – a mulher sorriu vermelha e a dama
assentiu de volta.
– Sabe me dizer sobre o caso mais recente de bruxaria por aqui. –
quando ela terminou a frase a mulher ergueu a cabeça e mirou em volta, o
lugar estava vazio, mas ela parecia sentir receio.
– O caso de Stelle? – ela falou baixinho, a dama sorriu em resposta.
Conhecia o tipo, já havia visto pessoas assim que adoram uma fofoca, não
importa a gravidade, muitas davam na língua sem nenhum incentivo.
– Esse mesmo. – ela respondeu.
– Eu não sei muito, parecia bem normal para mim. – a mulher deu de
ombros – Soube que acharam coisas na casa dela, através de denuncias.
– E onde fica a tal casa?
– É um pouco afastada daqui, seguindo para o norte em direção a
Cecidit. – falou a mulher – Só precisa seguir para noroeste que você acha.
– Obrigada. – a dama começou a se retirar.
– Tem certeza?
– Do que?
– De que vai até lá?
– Não sei.
– Tome cuidado, moça. – ela voltou então a varrer e a dama após um
olhar reflexivo se retirou.
Caminhou com cuidado, não queria ser vista, mas quando passou pela
praça onde Stelle foi queimada, o lugar estava vazio, até os restos da
mesma não estavam mais lá, apenas as brasas. Seguiu para fora pelo portão
norte, sem muita dificuldade, os vigias estavam dormindo. Quando chegou
ao bosque usou de sua lamparina para se guiar em meio a mata.
Estava frio e os barulhos de grilo e cigarras eram ouvidos com facilidade.
Foi caminhando como foi instruída até que viu uma pequena casa. Deveria
ser a de Stelle. Foi em direção a edificação, a porta estava arrombada.
Entrou com a pistola em mãos e se arrependeu de não ter trazido a maldita
espingarda, não era hora para se irritar, queria entender o que estava
acontecendo ali. Isso era estupido? Talvez.
A casa parecia ter sido revirada, havia papeis no chão, uma cama
destroçada, armários abertos e roupas rasgadas.
– Animais. – falou com um rosnado.
Não havia nada demais ali, teriam eles removido tudo de bruxaria dali?
Ergueu a lâmpada sobre a cabeça e olhou para o teto, não podia se esquecer
dele, era uma regra que aprendera, todos os lugares devem ser olhados. No
teto estava uma imagem pintada em vermelho, um símbolo de uma forca e
correntes cruzadas por uma estrela de nove pontas. Não entendeu o
significado. Algo diabólico? Ficou se indagando por um instante e suspirou
sentando-se numa cadeira que estava caída, a qual ergueu. Ali sentada
olhou em volta.
Pensou na pequena criança que estava a aguardando, estava na hora de
voltar. Se ergueu e no ato notou algo no chão, algo metálico. Seu instinto
ativou e ela foi em direção a aquilo. Estava um pouco abaixo da estante.
Com força moveu o objeto de lugar e notou que era um alçapão, com mais
força ainda moveu mais e a passagem estava lá. Puxou e abriu. Uma escada
para a escuridão, ela sorriu, estava excitada.
Pensou então em voltar quando fosse dia, pois dali um fedor forte vinha.
– Não seja molenga. – riu e desceu as escadas rumo ao escuro.
Na escuridão notou que estava em uma sala, procurou então pontos para
iluminar o lugar. Na parede identificou duas tochas, ascendeu e viu o lugar
se iluminar. Seus olhos se arregalaram diante da visão do cadáver sobre a
mesa de pedra. Ficou uns instantes absorta na visão.
Após a paralisia, olhou em volta para a sala. Além do corpo e de alguns
instrumentos cirúrgicos na parede, havia diversos vasos de vidro com
partes de animais neles. Não conseguiu reconhecer alguns pela
decomposição, mas outros ela conhecia, urso, cachorro, cobra. Ela notou
então outra porta, se dirigiria a ela depois de dar uma olhada melhor no
cadáver.
Era um homem, jovem e tinha uma grande abertura na barriga. Isso a
deixou abismada, estava bastante pálido, mas conservado. Mumificado
talvez fosse o melhor termo, mas ainda fedia bastante. Ela ficou grata por
ele ao menos estar com um pano sobre a parte intima e deu de ombros se
dirigindo para a porta. Tentou abri-la... Trancada. Olhou para onde estavam
penduradas as ferramentas e notou uma chave. Sorriu.
Pegou a chave e acelerou em direção a porta. Estava ficando cada vez
mais empolgada. No entanto, ouviu o som de latidos, cachorros.
– Porra... – irritou-se e correu para as escadas, era tarde, eles estavam
próximos, ouviu a voz dos homens. Então num ato de impulso fechou o
alçapão e correu para a porta trancada. Abriu a porta e a atravessou,
trancando-a em seguida. Estava no escuro com seu lampião.
O ergueu e se viu em outra sala, maior que a outra sentiu. Ascendeu as
tochas que achou com facilidade e notou que havia uma pequena entrada
para outra sala.
– Calma. – disse para si mesma.
Foi em direção a entrada e se viu numa outra sala, mas não conseguiu
localizar nenhuma tocha e não quis se arriscar explorar ali ainda, voltou
para a outra sala. Começou a analisar a sala. Uma mesa cheia de aparelhos
de alquimia, livros numa estante sobre química, biologia entre outros,
incluindo uma enciclopédia. Nas paredes marcas parecidas com a de fora e
mais ferramentas. Fora isso a única coisa que se destacou foi um livro
sobre a mesa com uma pena ao seu lado. Ela o pegou e abriu, era um diário.

9 Mês - Dia 01 – Método 03 aplicado. Paciente demonstra regressão na


doença.
9 Mês – Dia 02 – Paciente aparentemente bem, sintomas minimizados.
9 Mês – Dia 03 – Paciente demonstra recuperação avançada.
9 Mês – Dia 03 – Paciente sofreu um ataque e morreu, desfiguração
corpórea.
9 Mês – Dia 06 – Método 04 aplicado, variação do método 03. Algo no
ritual está incorreto?
9 Mês – Dia 10 – O paciente durou mais que o anterior, mas morreu de
forma parecida, preciso notifica-lo.
9 Mês – Dia 19 – Novo paciente, método 05. Paciente demonstra avanços
rápidos. Bom sinal.
9 Mês – Dia 22 – Paciente está totalmente recuperado! O experimento é
um sucesso por completo!
10 Mês – Dia 02 – O paciente relata lapsos de memória e agressividade.
10 Mês – Dia 04 – Paciente transformado de forma completa. Enjaulado
para análise.
10 Mês – Dia 07 – Talvez se aplicado no meu sangue os resultados se
demostrem mais eficazes.
10 Mês – Dia 12 – Preocupações mundanas me distraem, mas os testes com
meu sangue demonstram sinais positivos. Devo reporta-lo.
10 Mês – Dia 22 – Não me resta escolha, devo testar e analisar.
10 Mês – Dia 23 – O paciente demonstra recuperação da doença, força
sobressalente e apetite normal. Doença sendo combatida com sucesso.
10 Mês – Dia 25 – O ritual parece ter sido um sucesso, o paciente se
encontra totalmente curado e bem.
11 Mês – Dia 04 – Paciente demonstra emagrecimento. Minha
preocupação é alta. Parece haver uma investigação sobre mim.
A dama suspirou, tudo parecia algo extremamente médico, mas na
verdade as citações de ritual demonstravam que havia algum tipo de
feitiçaria envolvido ali. As acusações então não foram infundadas. Ela se
levantou e foi até a outra sala.
Estava escuro, então ela caminhou com cuidado. Enquanto andava
esbarrou em uma cadeira e irritou-se com sua tolice. Na escuridão ouviu
der repente o som de corrente se arrastando e tilintando uma na outra. Seu
coração gelou. Apontou a arma ara frente e iluminou buscando a origem do
som.
Ouviu a corrente de novo e caminhou vagarosamente pela escuridão em
sua direção. Um passo de cada vez. Quando finalmente alcançou de onde
advinha o som viu apenas a rocha da parede. Refletiu por um instante,
então ergueu a cabeça e viu na parede algo que a assustou. As correntes
esticadas sobre sua cabeça presas a argolas naquela mesma parede, ouviu
respiração pesada as suas costas e suspirou.
Se virou com velocidade e deu dois tiros seguidos na direção da coisa que
estava ali. Seja o que fosse grunhiu e recuou. Ela iluminou o que era e viu
um homem com uma grande cabeça feia e deformada de cachorro preta
olhar para ela com olhos opacos e saliva saindo de sua boca canina. A
criatura rosnou e saltou para cima dela que desviou e disparou novamente.
A fera grunhiu e com suas longas unhas rasgou sua barriga cortando-a e
fazendo o sangue sair. Ela deu um pequeno grito e atirou na cabeça dele
que caiu no chão grunhindo e rastejando até ela que atirou todas as balas
que tinha na arma. Quando acabou recarregou e atirou mais, a criatura
parou de se mexer.
Sentiu o sangue manchar a roupa e arder a ferida, se moveu em direção a
outra sala e sentou-se a mesa suando e tentando recuperar o folego. Estava
ferida.
Começou a sentir uma forte dor de cabeça e uma forte tontura do fedor
advindo do monstro que matou. Ele já fedia antes, mas não relacionava o
cheiro a ele. Rasgou uma parte da manga e pôs sobre a ferida. Começou a
ofegar. Foi então que ouviu o som de botas acima de sua cabeça e fortes
barulhos. Estavam revistando o lugar de novo.
E agora, como sairia daquela situação? Levantou e foi até a porta.
Recostou o ouvido para ouvir a situação. Até agora não haviam encontrado
o alçapão, isso era bom, lhes dava tempo para pensar. O que aqueles loucos
pensariam ao encontrar ela ali? Que também era uma bruxa? Relacionariam
ela com aquele experimento? O diário citava outra pessoa...
Se levantou e pegou o diário, começou a folheá-lo buscando nomes.
Nada. Mas aquilo não era importante, nada daquilo era importante. Estava
correndo risco de vida. Já lidara com situações de combate contra pessoas
antes, obviamente, mas estava cansada e sabia que tudo em um combate
influenciava.
Raciocinou. Foi em direção a mesa de experimentos e tirou tudo de cima,
tomando o cuidado de não quebrar nada. Não queria cometer o erro de
deixar que aquilo caísse e a fizesse mal. Fez mais um rasgo na manga e pôs
no nariz, puxou o corpo do monstro até a porta e o largou ali, em seguida
analisou cada um dos produtos. Um deles parecia algum tipo de óleo, jogou
em cima do monstro e foi até a mesa. Puxou a mesa até a abertura para a
outra sala e a deitou de modo que fizesse uma barricada. Olhou para a
parede, variaria sua proteção entre ela e a mesa de modo a tornar seus tiros
imprevisíveis, contou as balas. Nove, iriam dar.
Esperou.
...
Dias haviam se passado e ela nem pensava no diário de Alfonso. Na
verdade, toda vez que ia atrás dele, acaba se distraindo com algo. Era como
se o objeto quisesse ser esquecido. Se divertia tanto saindo com Pietro e
Gregório. Haviam se tornado melhores amigos, principalmente de
Gregório. O adorava de todo coração.
No entanto a hora de reler o diário havia chegado, estava a mesa
comendo, o dia havia sido monótono e estava entediada. O pai havia saído
para pescar e a mãe estava a costurar. Der repente lembrou-se do parque e
de toda a história no diário, relacionou os eventos. Num passe de mágica
estava louca para ler do livro de Alfonso, mas tinha de terminar de comer
ou ouviria uma reclamação atrás da outra sobre sua magreza e como
parecia magra. Quando terminou se espreguiçou e dirigiu-se para o quarto,
devia ter lido o diário no dia anterior, mas a saída ao parque a deixou
reflexiva e até com medo de voltar ao diário. Estava na hora de ignorar
isso.
Parou no meio das escadas... Estava com medo. Aquela coisa que viu,
tinha certeza que se relacionava com o sonho e se relacionava com o livro
também, estavam interligados. Estava o livro afetando seu juízo mental?
Ou tinha algo maior ali? Finalmente foi até o quarto e abriu a gaveta.
Estendeu a mão para pegar o diário. Viu o sorriso no corpo escuro e se
afastou com velocidade do livro. Sentou na cama, o sol entrava pela janela,
não iria ter medo de nada de dia não é mesmo?
Resolveu tentar pegar o livro novamente, viu a imagem do gigante
caminhando no deserto em sua direção. Extremeceu.
– O que que eu tô fazendo da minha vida? – pôs a cabeça sobre as
mãos deixando os cabelos cair livremente.
Foi até a janela e observou um pouco o movimento da rua. Por fim
suspirou. Não seja idiota. Foi e até o diário e o pegou, dessa vez viu a
imagem da boca gigante na escuridão com a barba de braços, mas ignorou.
Sentou-se e abriu o diário, começou a folhear as páginas até que achou a
onde havia parado:
“Encontrei a chama da vida, a chama do poder creio eu. Tenho em minhas
mãos um dos maiores achados de todos. Escrituras que descrevem a
trajetória de um desses seres e relatam sobre o poderoso Livro dos Mortos.
Sim, preciso estudar as imagens analisa-las.”
Ela observou os desenhos e as legendas deles. O primeiro era do que
pareciam estrelas. O segundo era de um homem próximo ao mar.
“A busca de algo vindo das estrelas no mar”
O terceiro era um boneco estranho, parecia deitado e havia dois homens
próximos a ele. O quarto mostrava um homem sendo coroado faraó por
uma enorme figura que tinha o tamanho que apenas suas pernas tomavam
toda a folha. A figura se seguia nas folhas adjacentes, branca com o rosto
vazio e apenas uma boca e mãos com bolas pretas. Ela reconheceu em
instantâneo, parecia inofensiva ali, mas a assustava.
“Pode-se ver a visão de um ser de cabeça achatada e corpo robusto, muito
grande. Sua altura é de dimensões que creio que a terra não sustente. No
entanto sua representação é real, talvez uma forma de enaltecimento
diante de sua grandiosidade? Deve se entender o contexto das gravuras.”
A próxima imagem era do faraó ordenando que homens escrevessem
enquanto ele era iluminado pelas mãos do gigante e se alimentava de algo
branco. Em seguida o faraó segurando o livro escrito e com suas mãos
jorrando água sobre sua terra.
“Uma clara representação ao dom da chuva, mas estranhamente advindo
do faraó e não do céu...”
Na gravura consequente havia o faraó trazendo de volta o homem deitado
em sua cama.
“Uma clara referencia a ressureição? A figura parece ter traços de uma
múmia.”
Ela mirou a imagem durante um bom tempo. Viu então a imagem do
faraó e de várias estações ao seu redor, acima dele a gravura do gigante
como se o faraó estivesse em sua mão.
“Sem sombras de dúvidas existe uma relação próxima entre a divindade do
faraó e do gigante. Existe uma veneração atrelada a ambos devido aos
seus feitos, no entanto não fica clara até essa figura o que deseja o gigante
dando tais poderes ao faraó.”
Ela avança as figuras e finalmente vê uma enorme quantidade de pessoas
e vê o gigante colocar todas essas pessoas em sua boca. Na figura seguinte
o gigante faz o mesmo com diversos animais cedidos pelo faraó.
“O sacrifício, claro, mas um gigante de poder tão imensurável não
precisaria do faraó e sua permissão para consumir fracos mortais, por que
disso então?”
O faraó então ergue o livro e o gigante parece então tocar o livro junto ao
faraó. O gigante então é demonstrado tomando a forma de um homem fera,
com chifres e uma calda de cobra. Ele se deita numa cama com uma mulher
e a possui.
“Aqui vemos a consumação da divindade do gigante com uma mortal, por
alguma razão isso não era possível até agora”
Em seguida demonstra em uma gravura a imagem da barriga da mulher
se abrindo e saindo uma enorme cabeça com chifres dela. Na gravura
seguinte é mostrada a figura da criatura com chifres abrindo a boca do
faraó e entrando nele com seus pés de fera. O gigante então por alguma
razão se horroriza e parece não conseguir mais tocar o faraó.
“Aparentemente a cria o visitante gigante com o faraó deu origem a uma
possessão. Nas gravuras que se seguem e que vi, o mesmo faraó se deita
com várias mulheres e faz diversos sacrifícios, sendo seguido sempre por
seres com cabeças de animais. Não existe um ponto final, já que o mural
está destruído e irrecuperável e parece que isso é tudo que consegui. ”
Parou de ler e deitou-se refletindo o que acabara de ler. Resolveu ir tomar
um ar fresco para pensar melhor, desceu as escadas e foi para a porta de
casa. Lá ficou durante um tempo nas escadas da entrada pensando enquanto
via as pessoas andarem para lá e para cá. Ela deveria adquirir algum hobbie
para se distrair ou fazer alguma amizade que não seja a de um homem.
Foi quando Pietro apareceu com um pacote no braço. Quem precisava de
amigas quando se tinham um homem daquele? Ela sorriu ao ver seu amigo
vindo e acenando com aquele típico andar solto, poderia ser considerado
um vagabundo se não fosse as roupas pensou. Ele se sentou e deu um
abraço caloroso nela.
– O que você tem ai? – perguntou ela.
– É uma garrafa. – ele segredou sorrindo.
– Bebida alcoólica?
– Com toda certeza! – ele sorriu e fazendo sinal ambos saíram dali e
pegaram um dirigível direto para a praia próxima a casa dele.
Se sentaram em um banco e começaram a conversar enquanto ela
afundava os pés na areia e via o mar sendo tocado pelo sol e claro, com
várias gaivotas voando por perto.
– O que devo a sua presença? – perguntou ela.
– Só precisava de alguém para beber. – ele sorriu.
– E me escolheu?
– Bem, não temos muitas opções boas é verdade e essa bebida é
horrível, tem de ser compartilhada com alguém assim.
– Canalha! – ambos riram – Anda tanto com o Gregório que pareces
com ele.
– Bem que eu queria. – ele suspirou.
– O que houve?
– Gregório, ele vai embora. Viajar por uns tempos.
Ela ficou calada por um instante. Gostava por demais da presença dele e
do jeito dele, ele ir embora... Assim?
– Sirva a bebida. – ela pediu, ele acenou afirmamente e lhes deu um
copinho, ficando com outro. Ela virou de vez.
– Vá devagar.
– Eu fui devagar. – ela estendeu o copo para outra, essa segunda foi
só para as poucas lágrimas que abafou no abraço de Pietro.
– Vai ficar tudo bem. – disse ele de modo terno.
Ela se afastou e suspirou, então sorriu para ele.
– Você teve uma esposa não teve? – ela perguntou der repente.
– Sim, tive. – ele olhou então para o mar.
– Como ela era? – diante da pergunta dele ele sorriu e ergueu a
cabeça.
– Perfeita. Cada dia com ela era como hoje, um dia de sol. Eu lembro
que vinhamos a praia quando ela estava triste e estivesse como estivesse o
tempo, sentávamos nesse banco aqui e olhávamos para o mar. Eu a
enrolava em um cobertor e cantava para ela. – ele olhou para ela com os
olhos vermelhos e ambos estavam da mesma forma – Ora, acho que
estamos os dois afetados pela brisa do mar.
– É, estamos.
Ele sorriu tristonho e ela notou então que todas as vezes que ele sorrira
era daquela forma, triste, tão triste que doeu o coração dela não ter notado
antes. A tristeza dele estava sempre ocultada pela alegria da presença de
Gregório e do calor de sua risada que contagiava a ambos. Aquilo a fez
querer proteger aquele homem do mundo como se fosse uma criança.
Pietro limpou as lágrimas e bebeu um gole.
– Um dia, ela ficou doente, sabe? No outro... No outro ela tinha ido.
– ele suspirou – Não tem um dia que eu não queira pôr uma arma na boca e
você sabe... Bang.
Um silêncio entre os dois se fez e então ela o abraçou.
– Acho que você precisa de um cobertor. – ela falou e ambos riram
em sua tristeza.
Ficaram conversando sobre a falecida esposa dele e bebendo bastante, até
não poderem mais caminhar de tão bêbados. Foi quando um conhecido
apareceu.
– Parece que só nos encontramos nessas situações. – falou a voz que
ela reconheceu com dificuldade – Sou eu, o quase médico que te ajudou no
parque.
Ela acenou com os olhos entreabertos e ele sorriu.
– Vocês estão bêbados? – ele indagou.
– Ninguémmmmm tá bebadsosaooo aquiii, camaradda! – ressaltou
Pietro.
– Claro que não, camarada. – o homem riu – Deixe-me leva-los para
casa.
– Nãoooo encosta! – Pietro avisou e ele recuou – Leevaaa a moça,
ela não aguentaa beberrr.
– Eu vou levar vocês dois. Venham. – ele disse e com um braço a
pegou e com o outro ajudou Pietro a se locomover.
A casa de Pietro não estava longe, então foi fácil leva-lo até lá. A dama
despertou encharcada de água e se notou no quintal de Pietro.
– Onde estou? Onde estou? – indagou ao homem que riu.
– Está na casa do seu amigo, Pietro. – ele falou fazendo sinal para ela
se acalmar – Encontrei vocês bêbados e os trouxe para cá.
– Meu Deus! Que horas são?
– Em torno das três da tarde.
– Menos mal. – ela suspirou aliviada – Por que estou molhada?
– Nunca ficou bêbada? – ele riu de novo e estendeu com gentileza
uma toalha para ela a qual ela usou para secar os cabelos.
– Não... – se sentiu envergonhada, nunca se sentira assim perto de
um rapaz antes. Começou a torcer o vestido molhado e ele a ajudou a se
levantar – Onde está Pietro?
– Lá em cima. Em você joguei água quente, mas nele preparei aquele
balde gelado. Quer participar?
– Não perderia por nada. – ela sorriu e ambos subiram com o balde.
Pegaram o homem e o puseram no chão, em seguida jogaram o balde de
água. Pietro levantou gritando como um leão assustado e molhado com seu
cabelo no rosto.
– POR QUE?! – gritou e deu um forte suspiro se jogando para trás e
caindo no chão.
– Vamos, levante seu bêbado. – falou a dama.
– Me matem.
– Não. – ambos responderam ao homem encharcado.
– Me matem.
– Não.
– Por favor?
– Não.
– Então preparem um café, malditos ímpios. – ele se virou como que
para dormir e ambos riram descendo para a cozinha.
Em pouco tempo o café estava pronto e os três a mesa redonda da
pequena cozinha, apesar de que Pietro ficou olhando para sua xicara e
dormiu ali mesmo.
– Ele parece ter um fraco para bebida maior que você. – o rapaz
disse.
– Ele bebeu mais. – ela bebericou da xicara – Eu nem te perguntei.
– O que?
– Seu nome.
– Bernardo.
– É um nome.
– É, é um nome. – ele sorriu e ambos sorriram um para o outro –
Qual o seu?
– Não te interessa, marica. – respondeu Pietro levantando a xicara.
– Parece que enfim acordou. – ela falou.
– Nem me fale. – ele ergueu a cabeça e bebeu do café – Obrigado por
nos trazer para casa, serviu de algo.
– Não tem problema. – Bernardo bebeu do café e apertou a mão de
Pietro sorrindo e a dama pareceu não entender – Bem... Tenho de ir.
– Eu estava brincando, seu bastardo, pode ficar. – falou Pietro.
– Eu já acabei com seu café, se me mantiver por aqui por mais tempo
posso acabar com outras coisas, como sua masculinidade. – riu Bernardo de
modo gentil e Pietro correspondeu, pareciam se entender e falar a própria
linguagem aqueles dois.
– Será que ninguém atende a porta? – uma voz chamou e os três
viraram a cabeça. Gregório chegou a cozinha todo sujo e com o rosto
machucado.
– Meu amigo, tu sempre foi feio, mas hoje está excepcional. – Pietro
falou.
– Tenho de concordar. – falou Bernardo e Gregório sorriu.
– Vão se foderem os dois. – ergueu as sobrancelhas Gregório e
limpou o sangue da boca.
– Meu Deus, o que houve? – perguntou a dama se levantando e indo
em direção ao homem, assim como Bernardo. Ele fez um sinal para que
não se preocupasse, puxou uma cadeira e se sentou na redonda mesa.
– Tudo bem, tudo bem. Se acalmem. – Gregório pediu – Eu estava
indo comprar alguns suprimentos – Para sua viagem. – a dama o
interrompeu e todos miraram para ela e para a reação no rosto dele de
surpresa – Não pare a história.
– ... Falo disso depois. – ele deu um sorriso de canto de boca – Como
dizia, quando sai da loja tinha uns moleques mexendo com umas meninas e
pedi para pararem. Entrei numa briga e escurracei eles de lá, mas ai eles
voltaram.
– Em quantos? – perguntou Pietro.
– Eram uns doze bem fortões. – ele disse e todos o encararam – Está
bom, eram seis, certo? E só dois eram realmente fortes. E sim, eu levei uma
surra, mas eu garanto, vocês tinham de ver os outros.
– Vamos lá quebrar os imbecis! – falou o Pietro se levantando.
– Ora, não vamos perder tempo com isso, eu estou aqui. – Gregório
se acostou na cadeira.
– Vamos lá arrebentar eles. – falou a dama e todos riram com
exceção dela que ficou confusa – O que?
– Eles te roubaram? – perguntou Bernardo em tom sério e as risadas
cessaram.
– Sim. – Gregório afirmou.
– Vamos arrebenta-los então.
Todos se entreolharam.
– Eu não sei quem é esse bastardo, mas eu gostei dele. – Gregório se
levantou e todos riram.
Os quatro saíram da residência preparados para matar e apesar da dama
estar preocupada com a hora chegaram até a rua onde aconteceu. Se
esconderam na esquina e Gregório apontou para os seis homens que
conversavam, estavam com suas sacolas, realmente, apenas dois eram mais
musculosos.
– Certo, como vai ser a divisão? – perguntou a dama.
– Cada um pega dois. – falou Gregório.
– Mas assim alguém vai ficar sem.
– Não, oras, todo mundo vai ter dois para si. – falou Gregório e os
outros dois concordaram.
– Eu quero lutar também. – ela falou cruzando os braços.
– Isso é sério? – perguntou Gregório e Bernardo deu uma risada.
– Acho melhor você ficar aqui. – falou Bernardo com todo aquele
tamanho, mas toda uma gentileza como se falar aquilo fosse matar ela, mas
só fez irritar.
– Eu decido o que faço. – ela respondeu.
– Rapazes, eu estou meio bêbado ainda. – disse Pietro – Podemos
deixar ela pegar o mais baixinho, sabe, só de reforço caso eu não consiga
lidar.
Eles se entreolharam.
– Bem, pelo jeito dela, não vamos ter escolha, certo? – sorriu
Gregório e todos sorriram em concordância.
– Tudo bem. – assumiu a frente Bernardo – Eu vou cuidar dos dois
fortões, Gregório daqueles dois com chapéu e Pietro com os molengas já
que está bêbado, a garota fica por perto para garantir o sucesso da coisa.
– Por que você pega os maiores? – perguntou Gregório e todos
refletiram por um instante enquanto Bernardo apontava para a própria
fisionomia na camisa de flanela. – Faz sentido. Vamos.
Os quatro foram em direção ao grupo de arruaceiros e todos na rua
pareciam querer ver o encontro pois sentiram o que iria acontecer. Um
velhinho chegou a se acomodar com outro no banco e começaram a comer
pipoca animados.
– Ei. – chamou Gregório e os seis rapazes se ergueram estalando os
dedos.
– Devolvam as coisas do meu amigo. – falou Bernardo.
– Não tome a minha frente. – respondeu Gregório – Devolvam as
minhas coisas!
– Ou o que colega? – o mais alto se aproximou de Gregório que
sorriu desdenhosamente.
– Ou você vai voltar em de muletas para casa. – disse Bernardo
encarando o homem.
– Ei, da licença, tomou minha frente de novo. – Gregório se
intrometeu entre os dois. – Como eu estava dizendo – foi rápido, Gregório
acertou o soco em cheio no queixo do grandão fazendo-o ir para trás. A
briga começou.
Gregório levou um chute de outro homem e começou a brigar com o
mesmo. Pietro pegou um pedaço de madeira do chão e o balançou como se
fosse acertar alguém, mas seus reflexos horríveis não ajudaram e quem o
ajudou foi a dama que acertou o rosto de um dos homens tomando o
pedaço de pau da mão de Pietro e acertando em cheio na face de um dos
arruaceiros com a parte com pregos. Bernardo nocauteou um com
facilidade extrema, parecia um touro brigando e quando o outro tentou
imobiliza-lo, ele quebrou o nariz do homem com uma cabeçada e ambos
rolaram no chão aos socos.
Gregório conseguiu acabar com um e já estava arrancando cabelos de
outro. A dama estava assustada com a quantidade de sangue enorme que
saia do rosto do homem e Pietro tomava a frente dela para lutar sem
direção alguma contra outro. Bernardo levantou do chão e deu dois socos
fortes no rosto do grandalhão nocauteando-o e correu em socorro de
Gregório. Foi quando Pietro foi ao chão e o homem partiu para cima da
dama agarrando-a. Ela se soltou de suas mãos, foi quando todos ouviram o
tapa no rosto dela.
Pareceu que um silêncio se fez. Pietro se ergueu do chão e empurrou o
homem enfurecido. Gregório largou o seu e voou em cima do homem com
um grito insandecido. Mas pior foi quando Bernardo puxou o homem pela
manga tirando-o de um Gregório furioso tentando acertar o homem de
todas as formas enquanto o outro o puxava. Quando Bernardo fez isso,
levou o homem até a parede de tijolos e acertou seu rosto quatro vezes
contra os tijolos fazendo o sangue marcar a parede, teve de ser parado pela
dama desesperada. Ele se virou para ela com um olhar sombrio, então
voltou para aquele semblante gentil quando viu a expressão de desespero
no rosto dela.
O som de apto da polícia despertou os quatro da situação e Pietro os
chamou para que corressem. Começaram a correr quando Gregório parou
no meio do caminho.
– Minhas compras! – os quatro voltaram, agarraram as sacolas e
fugiram segundos antes da polícia chegar no lugar. Os velhinhos aplaudiam
exaltados.
Quando retornaram a casa de Pietro abriram uma garrafa de vinho e riram
juntos. Foi o suficiente para o próprio Pietro embebedar de vez e se soltar
em piadas e cantoria. Nesse momento Gregório chamou a dama para a
janela da sala enquanto Pietro e Bernardo bebiam e conversavam.
– Me desculpe não ter contado. – disse ele com um olhar triste pela
primeira vez desde que ela o conhecera.
– Está tudo bem. Você não me deve satisfações. – ela falou cruzando
os braços e encostando a cabeça no vidro da janela.
– Eu devo. – ele engoliu a saliva e a encarou – Eu devo porque você
é especial, digo, importante para mim.
– Você também... é importante. – ela sentiu os olhos ficarem
vermelhos.
– Eu não posso deixar de fazer essa viagem. Eu preciso me
redescobrir, conhecer, aprender. Me tornar um homem completo.
– Eu entendo. – não iria chorar perante ele, não mais, não depois
dessa fala.
– E preciso que alguém como você esteja do meu lado nisso. – ele
disse quase engasgado, ela não iria chorar... Chorou.
Capitulo 8
Ela esperou ouvindo ali na escuridão apenas a sua respiração e o
tremular da chama do archote em sua mão pronto para jogar no corpo do
monstro mutante. Ouviu os passos do lado de fora da porta e prestou
atenção para ouvir a conversa.
– Temos de encontrar a chave. – disse uma voz.
– Que se dane a maldita chave, vamos arrombar. – respondeu o
outro.
Ela ouviu o som deles perfurando a porta com as enxadas e se preparou.
Assim que a porta caiu ela deu um disparo que passou zunindo pela cabeça
de um dos homens. Eles sacaram as armas e um silêncio se fez. Eram
quatro homens fortes e armados com rifles contra ela com uma mesa e uma
pistola.
– Calma, calma, moça. – pediu um deles enquanto os quatro
evitavam entrar na visão dela – Quantas balas tem ai?
– Muitas. – vociferou ela irritada por ter se colocado naquela
situação.
– Pois bem, assim como nós. Apesar de eu achar que você não tem
tantas balas quanto afirma e que, bem... Você vai ter de fazer valer cada
bala, não acha?
– ....
– Por que não se rende em? Nós só viemos destruir esse antro de
perdição. – o homem se mostrou na luz com as mãos levantadas, apesar da
arma estar em uma delas.
– Só saio se todos vocês jogarem as armas ao chão e não ficarem no
meu caminho para fora.
– Bem... Quem garante que não vai atirar em nós enquanto estamos
desarmados?
– Vocês são quatro, eu sou uma, mesmo que atire, não seria rápida o
suficiente para matar a todos. – ela mentiu.
– O que acham rapazes? – perguntou ele.
– Aceitamos. – respondeu um.
– Pois bem. – o homem se afastou para a luz da antessala e todos
jogaram as armas no chão.
– Agora, fiquem todos no canto da parede, de costas para mim. – ela
exigiu.
– Isso já é pedir demais, madame.
– Tudo bem, tudo bem, apareçam na minha visão e mantenham as
mãos levantadas. Estou saindo.
Quando eles se mostraram de mãos levantadas e as armas aos pés ela fez
sinal para que se afastassem e dessem espaço. Ela entendeu que teria de
mata-los ou eles a matariam, era lógica pura e simples. O motivo de terem
cedido abaixar as armas era muito simples também, haviam a subestimado.
Talvez até se aproveitariam dela se a prendessem, por isso, mataria todos.
A dama se levantou e foi caminhando um passo de cada vez, estava
calculando, preparou a faca e a arma. Assim que saiu da sala todos os
homens a encararam.
– Falei que não teríamos problemas. – falou o que havia conversado
com ela, com uma voz mansa. Ele estava no caminho das escadas.
Agora ela precisava saber, quem sacaria primeiro. Ninguém fez nenhum
movimento, então ela andou mais um pouco, estava se distanciando das
suas proteções. Quem sacaria primeiro? A resposta era óbvia. Assim que
ela foi em direção a escada, o que estava no outro extremo da sala, as suas
costas foi sacar sua secunda pistola.
Ela se virou e disparou acertando em cheio a cabeça do homem. O que
interrompia o caminho para a escada saltou sobre ela, mas ela estava
concentrada em atirar no bucho do outro miserável que sacava uma pistola
das botas. Assim que o homem a agarrou ela não hesitou e desferiu uma
cabeçada em seu nariz fazendo-o gritar em ódio. Quando se virou, um
homem destravava a arma e se preparava para atirar nela, no mesmo
instante ela arremessou a faca em seu peito, ele gritou e ela disparou em
sua cabeça.
Foi quando levou um puxão de cabelo pelo homem as suas costas, ele
sorriu e acertou o rosto dela com uma bofetada. Em seguida segurou seu
braço e começou a medir força com ela, empurrando a arma para o rosto da
mulher. Ela rosnou e se esforçou, ambos ficaram medindo força e
grunhindo, quando ela fez um pequeno torcer com a mão e disparou para
baixo acertando a coxa dele. Ele fraquejou com o tiro, indo para trás, ela foi
para cima dele e começou a surra-lo com a empunhadura da arma. Bateu e
bateu em sua face até o sangue esguichar com o buraco que fez em sua
testa. Ofegante e triunfante se afastou dele e sentou-se no chão.
Foi quando ouviu o som de bota. Se levantou com velocidade, mas ele já
estava próximo a ela. O homem que havia matado Stelle. Seus olhos de
gelo a encaravam por debaixo de um chapéu e um sorriso presunçoso
aflorava em seu rosto.
– É, você é durona. – as mãos dele estavam para trás. Fosse o que
tivesse, ela teria de ser rápida.
– Não faz ideia. – sua arma foi em direção a testa do homem e ele fez
uma expressão de espanto diante do ato como se estivesse horrorizado, mas
a coisa foi de forma tão caricata que a irritou. Ela apertou o gatilho.
– Acho que morri. – falou ele e ela arregalou o olho, a arma estava
descarregada. Ela tirou o revolver da cabeça do homem que sorria
triunfante e se moveu par soca-lo, ele segurou seu punho.
Dessa vez quem levou a cabeçada fora ela. O sangue esguichou de seu
nariz e lábios e saiu mais ainda com o vomito que ela deu após ele a socar
com uma força assustadora na barriga. Ela cambaleou tentando se manter
em pé, mas ele a empurrou de leve com um toque do dedo desdenhando.
Ela caiu.
– Sabe, é uma situação complicada a que temos aqui. – ele disse
enquanto ela se esforçou para manter o rosto longe da poça de sangue do
homem que ela estourara a cabeça aos golpes. – Digo, você é uma
estrangeira, não tem cultura e nem demonstra interesse no caminho correto.
Ele pegou o rosto dela e arrastou no sangue do homem o que a fez gritar
furiosa. Tentou empurra-lo, mas ele não se moveu em nada.
– Já sofreu um interrogatório? – ele perguntou a puxando pelos
cabelos, era a segunda vez que alguém fazia isso e ela estava furiosa.
– Pare, filho da puta! – ela rosnou e ele a jogou contra a parede.
– O que vai acontecer é simples. Você vai me responder tudo que eu
perguntar. – ele a pôs sentada e a encarou – Entendidos?
– Vai se foder. – assim que terminou de falar o tapa acertou o rosto
dela. – Vai se foder em dobro.
Ele acertou outro tapa.
– Vai se foder! Vai se foder! VAI MUITO SE FODER! – ela gritou e
ele acertou mais três tapas, ela sangrava.
– Algo mais? – ele perguntou pegando no queixo dela.
– Um enorme.
– O que?
– Um enorme: VAI SE FODER! – ela cuspiu no rosto dele o sangue
e ele a pegou pela gola da roupa.
Começou a soca-la, um soco atrás do outro, socou e socou e socou. Ela
tentou reagir, mas foi em vão, nunca vira homem tão forte em sua vida,
talvez seu falecido marido. Não, não era hora de pensar nele, choraria e
seria fraqueza. Não havia lugar para fraqueza ali.
– Seja educada... Por favor. – ele pediu tirando o chapéu e pondo de
lado mostrando os lisos cabelos brancos – Me responda, querida, quem é
você?
– Uma mulher, viajante. – ela falou recostando a cabeça na parede,
seu rosto estava arrasada e inchado, mal podia enxergar com um dos olhos.
– E por que veio até aqui? – ele perguntou.
– Sou uma viajante, estou conhecendo o país.
Ele a encarou reflexivo, então com um suspiro a esbofeteou.
– Não me chame de burro... Por favor? – ele pediu virando a cabeça
dela com delicadeza para que ela o olhasse.
– Eu vim, eu vim para ir a Cecidit. – ela respondeu deixando a
cabeça pender, mas ele a levantou para olha-la.
– Por que?
– O príncipe tem algo que quero.
Ele pareceu preocupado com a fala dela e olhou pensativo para o chão.
Nesse momento com o olho direito que mal enxergava, mas pelo menos
enxergava enquanto o outro estava fechado, ela buscou uma saída. Viu as
armas no chão, mas ele pareceu notar o mesmo e sorriu para ela.
– Quer isso? – perguntou ele apontando para as armas, ele se
levantou e pegou todas, ela não arriscou se mover, estava sentindo muita
dor e estava sem forças. Ele jogou as armas na escada e voltou a ela.
– Você é uma mulher inteligente sabia? Percebi quando te vi. – ele
disse se agachando novamente – Sim, quando te vi. Me responda, o que o
príncipe tem que você quer?
Ela sugou o ar com dificuldade e olhou para o outro lado.
– Olhe para mim quando falo com você. – ele exigiu e ela voltou a
olha-lo. – O que ele tem?
– Um livro.
– Que livro?
– O livro do faraó.
Ele ficou pensativo por um instante e sorriu.
– Bem, não foi difícil foi? – indagou o homem – Digo, olhe para nós
dois, você toda cooperativa, depois de uma amaciada é claro. Você
cumpriu seu papel, eu cumpri meu papel, terminamos todos felizes não?...
Enfim, mais uma coisinha, é pequena, prometo. Quem a enviou?
A pergunta a fez pensar por um instante, perdida na falta de sentido da
questão.
– Ninguém. – ela respondeu com dificuldade.
– Errado. – ele a puxou pelo cabelo, ela não se esforçou para ir
contra o movimento – Quem a enviou? Foi aquele velho decrepto? Ele quer
tirar o papai do trono não é? Foi ele, não foi? É só dizer. Diz, diz logo para
que eu a mande direto para o inferno sua puta maldita. Diz aqui, para mim
que foi ele.
–.... Vai se foder. – ela rosnou e mordeu a bochecha dele rasgando-a
e fazendo o sangue sair enquanto ele rangeu os dentes e gemeu em ódio.
Ela o empurrou e se esforçou para se levantar, mas ele a puxou pelos pés
e foi para cima dela. Então pôs as mãos envolta do pescoço dela e começou
a sufoca-la. Ela começou a se debruçar e ele a sorrir.
Com um movimento rápido das mãos, ela puxou uma faca que estava na
bainha do cinto dele e enfiou em sua barriga. Ele praquejou e se lançou
para trás com uma expressão mais que de ofendido do que de dor. Ela pôde
deduzir no momento que ele puxou a faca que ele não era normal, o sangue
saiu junto a algo viscoso e de cor azulada que a deixou enojada.
– O certo seria queima-la, não é? Mas como? – ele indagou rindo e
se levantou olhando em volta – Ahh, uma tocha.
Ela ainda no chão tentando recuperar o ar, começou a buscar uma saída
da situação enquanto via ele indo em direção a tocha próxima a escada
pegando-a. Nesse momento ela correu com velocidade para dentro da sala
do monstro e anotações, ele a seguiu.
– Ora volte aqui. – ele caminhou a passos largos enquanto ela pegou
uma tocha na parede, irritou-se consigo mesma sobre o quanto foi estupida
em não ter pego uma das armas quando podia. Idiota.
Ele veio segurando a tocha e ela segurava a dela.
– Temos um duelo? – indagou ele rindo limpando o sangue da
bochecha que cada vez mais saia mais do liquido azulado do que do próprio
sangue – Quem acerta o outro? – ele balançou o fogo no ar e se aproximou
da entrada da sala fazendo uma expressão de repulsa pela imagem do
cadáver monstruoso.
– Eu acerto. – ela falou jogando a tocha no cadáver. O homem gritou
e se jogou para trás enquanto a chama tomou seu sobretudo.
O grito dele foi alto e estridente, a ponto de faze-la se assustar. Foi
quando ela notou que ele não era normal, enquanto gritava os ouvidos dela
começaram a doer repentinamente enquanto a chama o consumia. Ela
sentiu um liquido vazar pelos buracos dos ouvidos e começou a gritar de
dor, mas não conseguiu ouvir devido ao grito dele. O homem em chamas
correu escada acima como um louco enquanto ela tapava os ouvidos.
Quando ele se afastou o suficiente, ela correu para fora ignorando que
estava surda e só ouvia um eco constante. Pegou sua faca e duas pistolas no
chão, subiu as pressas com as armas em mãos, ele não estava lá. Quando
saiu da casa podia ainda ouvir os gritos dele, mas só via a imagem de algo
brilhante correndo mata a dentro. Viu então dois cachorros que estavam de
guarda tremerem com o rabo entre as pernas diante da imagem, os ignorou.
Ela então voltou para dentro e com uma tocha incendiou o lugar. Saiu as
pressas para longe dali e pouco a pouco recuperou a audição. Caminhou
pela floresta perdida por um tempo, mas se reencontrou e achou a trilha de
volta. Assim que se viu entre os muros de novo, começou a se apoiar nas
paredes das casas e a ir em direção a estalagem, ninguém apareceu para
ajuda-la e quem surgia, apenas a ignorava. Ela também não pediu socorro.
Assim que entrou na estalagem, cambaleante, notou que a entrada seguia
vazia, não era para menos devido a hora e o isolamento do lugar. Subiu as
escadas também ignorando a falta da presença da estalajeira, devia estar
transando de novo. Quando chegou ao quarto a primeira coisa que fez foi
pegar a espingarda, nesse instante parou e olhou em volta.
– Onde ela esta? – perguntou-se procurando a menina.
Começou a se desesperar, mas aprendera que isso não leva a nada. Foi até
uma bacia de água próxima ao espelho e molhou um pano na mesma
usando-a assim para limpar o rosto. Pegou algumas gazes e começou a
tratar as feridas. Tinha de deixar aquele lugar o quanto antes. Pegou a mala
e carregou o rifle, desceu as escadas as pressas em direção a porta, foi
quando parou ao ouvir um gemido.
Se virou para encarar o balcão. Apontou a arma e começou a suar frio.
Ouviu mais uma vez um baixo gemido e um barulho de estalos. Caminhou
vagarosamente, sem pressa, com cadencia, mirando com precisão. Quando
finalmente teve visão do que o balcão ocultava fechou os olhos. A lágrima
escorreu pelo rosto e a boca se contorceu. Respirou devagar olhando a
cena.
Uma figura pequena que era da menina estava agachada diante do corpo
da estalajeira. Poucas penas saiam de seus ombros enquanto no lugar da
cabeça havia uma grande cabeça de corvo que bicava o estomago da
mulher dando seus últimos suspiros. A dama rangeu os dentes e a enorme
cabeça de corvo se virou para ela fechando e abrindo os grandes olhos.
A criatura abriu o bico e ela atirou. O monstro caiu para trás e ela saltou
pelo balcão, em seguida ela deu um segundo disparo e a criatura começou a
se contorcer e grasnar foi em direção a ela com o corpo tremendo. Ela
atirou mais uma vez, mas não morria, parecia mais resistente que a fera no
laboratório. Foi quando a criatura começou a se mover com as mãos, se
arrastando enquanto a cabeça se esforçava para frente para tentar bicar as
pernas dela entre uma grasnada e outra. Ela buscou uma solução e viu um
machado perto do cadáver.
Saltou por cima do balcão e pegou o cadáver, em seguida subiu no
mesmo e pulou em cima do corpo cortando a cabeça fora. A criatura parou
de grasnar. Ela olhou aquilo por uns instantes enquanto o sangue saia do
corpo de criança e a cabeça de corvo a encarava com grandes olhos
assustadores.
Ela recarregou a arma e saiu porta a fora. Estava na hora de deixar aquela
imundice de lugar.
...
Ela tinha tido uma conversa séria com Gregório, mas no fim, escolheu
não o acompanhar. E não foi pelo tempo que se conheciam, foi por um
motivo maior, medo. Ela tinha medo de sair pelo mundo agora, não sentia
confiança e pior, tinha medo de não amar, enjoar de sua presença. Um
misto de segurança, naquele dia haviam seguido como amigos, apesar da
tristeza visível no rosto dele. Quem a acompanhou até em casa fora
Bernardo e por mais curioso que estivesse, ele não lhes fez nenhuma
pergunta e a distraiu como pôde da tristeza que a partida de Gregório traria.
Dias depois, estava tomando sorvete enquanto pousava para um pintor que
a viu passar em frente a sua casa e pediu para que ela se sentasse no banco
da praça. Ele lhes prometera o sorvete e cumprira, enquanto ela o tomava,
ele pintava o mais rápido que podia. O dia estava ensolarado, mas ela
prometera ficar ali no banco da praça até ele terminar. Além disso, Rafael
era um artista dedicado que estava fazendo de tudo para ter sucesso, era
vizinho dela a quatro anos e tinha quase se atirado ao chão para que ela
cedesse a ele como modelo. Ela só aceitou porque o dia estava quente e
queria sorvete, além de não ter mais nada divertido para se fazer naquele
domingo.
– Quando esse acabar, quero outro. – ela disse e ele sorriu distraído.
– Claro, claro, minha jovem, tudo para que fique da forma que está.
Esse vestido azul marinho é perfeito! – ele deu mais pinceladas.
– Obrigada. – ela sorriu se concentrando no sorvete de morango –
Vou ser paga não vou?
– Quantos sorvetes você quer?
– Quero o dinheiro pros meus próprios sorvetes.
– Dez por cento.
– Quarenta.
– Doze.
– Trinta e oito.
– Não se pode ter uma porcentagem tão alta assim, eu sou o artista! –
ele reclamou.
– Mas eu sou a modelo, sem mim não haveria tela. – retrucou ela em
resposta.
– Quinze por cento.
– Estou saindo. – ela se levantou do banco.
– Espere, espere. Vinte por cento.
– Trinta e cinco.
– Trinta.
– Feito. – ela sorriu e voltou a se sentar – Quero outro sorvete.
– ... – ele suspirou e foi comprar outro sorvete para ela. Enquanto
esperava, viu um rosto conhecido cruzar a rua e vir em sua direção. Era
Pietro.
Havia saído muito ultimamente com ele. Não só com ele, mas com
Bernardo também. Ambos eram ótimas companhias, no entanto pareciam
lançar um contraste sobre o outro. E ambos apagavam pouco a pouco
Gregório que era quem lhes deixava uma marca de saudade, apesar do
medo que ela teve de ir com ele, por que fora tão medrosa? Não, aquilo foi
lógico. Lógica pura, se fosse amor, não seria lógico, gostava dele, mas não
era tola.
– Olá. – ele disse.
– Oi. – sorriu ela limpando os dedos com o papel do sorvete.
– O que faz aqui?
– Sendo modelo de uma pintura.
– Olha só se não temos uma grande beleza rara. – ele sentou-se no
banco ao lado dela.
– Sim, sim. – ambos riram.
– Tão feminina que nem parece que participa de brigas de rua.
– Isso acabaria com minhas unhas.
– Ohh claro. – ele sorriu – Quer dar uma volta?
– Tenho de esperar ele terminar a pintura.
– Exatamente. – disse Rafael entregando o sorvete e voltando ao seu
lugar – Não falta muito, por isso, volte a posição e fique quieta como uma
estátua. E o senhor, poderia por favor manter distância da modelo?
– Claro, claro. – Pietro se afastou e a pintura se seguiu.
Quarenta minutos depois havia sido terminada, mas Rafael insistiu que ela
não deveria ver agora. Ela não insistiu, deu de ombros e ambos saíram dali.
Foram a praia próxima a casa dele, conversaram sobre a última festa do
clube que Pietro e Gregório participavam, a próxima seria na casa de
Gregório, como uma despedida e ela estava convidada.
– Seria bom chamar Bernardo também. – ela comentou.
– Por que?
– Porque sempre nos divertimos quando saímos com ele junto.
– Eu o acho chato. – Pietro pegou seu cantil e tomou um gole –
Quer?
– Sem vontade.
– Tudo bem. – ele tomou mais um gole – Como disse, acho ele um
pouco chato.
– Por que?
– Ele é cheio de coisa, não é de beber, age como se fossemos
inferiores a ele em algo, moral não sei.
– Bem, ele é mais alto que todo mundo que conheço.
– Não é questão de altura. – Pietro suspirou – Ele parece muito
certinho.
– Pensei que gostasse dele.
– E gosto, só é meio certinho demais como disse.
– Pietro, você mal conhece ele, ele não é “certinho”.
– Ahh não? – Pietro sorriu.
– O que?
– Me fale moça, como ele não é certinho.
– Ora, não comece, só quis dizer que ele é apenas contido. – ela deu
de ombros.
– Sei...
Ambos ficaram olhando a praia, o céu começava a nublar.
– Eu gosto da chuva, sabia? – ele falou pensativo.
– Eu não sou a maior fã, não me traz boas memórias. – ela olhou
para o céu e suspirou.
– Depois que você que você ficar triste por amor, você vai aprender
que qualquer memória fica ruim.
– Exemplo?
– Tudo, tudo mesmo. – ele bebeu outro gole, estava triste, Pietro
parecia sempre estar triste – Você se torna incapaz, sabe? Incapaz de sorrir,
de rir, o que você faz é forçado. Claro, os melhores atores nascem daí.
– Pietro, por que tanta tristeza? – ela perguntou com delicadeza o
olhando.
– Esse é o problema de perder alguém, sabe, todo mundo espera que
você supere. Você não supera.
– Mas isso não significa que você tenha de ficar assim. Você pode
seguir em frente, não falo esquecer, mas construir uma nova vida, amar
outra pessoa quem sabe.
– Se fosse você, você no meu lugar, se seu marido morresse, o que
você faria?
– Choraria, muito. Mas depois, seguiria firme e forte, porque eu sei
que seria o que ele queria.
– Mas é o que você queria?
– Era o certo.
– Tem certeza?
– Sim... – ela disse e ele se ergueu. Seguiu caminhando descalço na
areia.
– Onde vai? – ela perguntou.
– Dar um mergulho! – ele gritou em resposta.
– Mas está ficando frio!
– Ótimo!
Ela observou enquanto ele tomava mais um gole do cantil e mergulhava
no mar. Ele começou a nadar e a nadar. Mergulhando a cada onda. Logo o
tempo fechou de vez e começou a chuviscar, incomodada com a chuva ela
se levantou e foi chama-lo.
– Pietro! – ela gritou chamando – Volte!
Ele não respondeu e seguiu nadando.
– Volte logo, Pietro! – gritou mais alto.
– Não quero! – ele gritou em retorno – A água está ótima!
– Pare com isso! Deixe de ser idiota e volte!
– Me deixe nada em paz! Sou um peixe!
– Um peixe bêbado! Vamos, volte logo, Pietro...
Ele então começou a nadar de volta, seguindo junto a onda. Quando
chegou a margem ela molhou os pés e foi até ele. O vestido acabou
molhando também, mas não reclamou.
– E se você se afogasse? – ela perguntou e o vento ficou mais forte,
assim como a chuva engrossou.
– Então eu morreria. – ele disse caminhando e ela o puxou pelo
ombro para que ele olhasse para ela.
– Não faça mais isso.
– Certo.
– Prometa.
– Eu prometo. – ele respondeu e partiu na frente aos passos largos.
– Me espere, Pietro!
Ele se virou e ambos saíram dali. Quando foram até a casa dele para se
proteger da chuva, ele deitou-se na cama molhado e dormiu. Ela não disse
nada e foi para a cozinha. Começou a se sentir preocupada com ele e triste
também, se ela era tão importante, por que nunca vira um retrato dela na
casa ou nada dela? Será que ele se livrou de tudo?
Resolveu explorar a casa, foi de cômodo em cômodo e mexeu em gaveta
por gaveta, não encontrava nada de importante. O frio a estremecia, mas ela
continuava a procurar algo, qualquer sinal do passado dele e de sua esposa.
Foi no andar de cima, em um dos quatro quartos, um que estava trancado
que ela se convenceu de que seria ali que estaria o tesouro que procurava.
Mas onde estava a chave?
Voltou a buscar pela casa, até que foi até o quarto de Pietro. Procurou e
procurou nas gavetas, estantes, entre os livros, tudo. Então olhou para o
próprio Pietro, as chaves da casa estavam com ele, certo? Se esgueirou até
o homem que dormia e com delicadeza roubou as chaves do seu bolso.
Voltou então até a porta, o chaveiro tinha muitas chaves e ela ficaria ali
durante um tempo, mas era paciente. Tentou chave por chave, até que
finalmente conseguiu abrir.
Quando entrou no quarto entendeu porque ele trancara. Tudo no lugar
denotava felicidade. Era o quarto perfeito para um casal. As janelas para a
praia, onde o sol nascia, a cama grande de forros finos, o teto com uma bela
pintura de um grande jardim, o piso apesar de empoeirado, feito de
madeira. O guarda roupa, com adornos esculpidos com perfeição, uma
lareira, uma banheira espaçosa e um enorme quadro de Pietro sorrindo
carregando sua esposa no colo. Ambos sorriam tanto e ela era perfeita da
ponta dos delicados pés até os cabelos ruivos da cabeça. Era a mulher mais
linda que ela já vira.
Ela olhou para a cômoda branca com dourado. Sobre a cômoda, vários
retratos dela e dele, além de alguns bonequinhos de soldado e um revolver
prateado na vitrine com as balas ao lado. Leu a carta dentro do vidro.
Como presente de casamento ao meu único e eterno amor. Ao meu
lindo e perfeito Pietro. E apesar de eu odiar esse seu gosto por armas e
bebida, não teria me casado com você sem esse charme único.
- De sua amada Rebeca, hoje e sempre.
Ela sorriu com aquele gesto de carinho e abriu o vidro para ver de mais
perto a arma, era realmente linda, chegava a brilhar. Pôs no lugar com um
medo súbito de quebrar, era destoante do resto do quarto, mas se encaixou
simplesmente por ser uma lembrança. Era um quarto de lembranças.
Se virou e viu então algo que a surpreendeu mais ainda, não havia
notado, mas no canto do quarto havia um berço. Como não havia visto
aquilo? Ela se aproximou um passo de cada vez do berço e o tocou
vagarosamente, sua fina e branca madeira, a felicidade que ele deveria
transmitir. Se sentou na cama e observou a chuva atingir a janela.
– Faz tempo que não venho aqui. – ela se virou para ver Pietro no
vão da porta – Muito tempo.
– Me desculpe. – ela pediu.
Em silêncio ele olhou o quadro, em seguida foi até o berço e tocou sua
fina madeira com delicadeza. Ele se sentou ao lado dela.
– Quando ocorreu, eu vim aqui. Sentei exatamente aqui, nessa parte
da cama. – ela passou a mão no cobertor sentindo-o – Sabia que não podia
mais vir aqui, nunca mais, mas enquanto não saia... Eu aproveitei cada
segundo como o último, sabe? Como uma despedida.
– Pietro... – ela estava chorando.
– Prometi nunca mais vir aqui. – ele fechou os olhos e a lágrima
escorreu no seu rosto – ... Não sou bom com promessas.
Ele sorriu e olhou para o teto.
– Não tínhamos dado um nome ao bebê ainda. – Pietro apertou seu
peito – Iriamos esperar nascer. Eu dizia que seria uma linda menina, como
ela, compramos um berço branco só de garantia, mas eu tinha certeza que
seria uma menina...
– Como sabia? – ela perguntou pegando na mão dele.
– Sabendo... Eu acho. – ele sorriu – ... Pode ir embora?
– Pietro... Me desculpa...
– Por favor, eu só quero ficar aqui, um pouquinho com elas duas...
Ela não conseguia segurar as lágrimas, se levantou e caminhou até a
porta. Virou para dar uma última olhada para ele e sentiu um aperto e
arrependimento enormes. Saiu do quarto fechando a porta e limpando as
lágrimas, então caminhou até uma cadeira no meio do corredor, ficou
sentada ali do lado de uma pequena cômoda com flores e uma outra cadeira
vazia. Foi quando ouviu o som de alguém a porta.
Desceu com velocidade para atender, não queria que incomodassem
Pietro. A chuva lá fora parecia estar enfraquecendo, mas não pararia.
Quando checou quem era, viu que era Bernardo. Ela abriu a porta para o
homem molhado e fez um sinal para que esperasse e não entrasse.
– Como me achou? – indagou.
– Fui em sua casa, tomei café com sua mãe e ela me falou que você
estava pousando para um pintor, o mesmo falou que saiu com um homem
da aparência do nosso amigo. – ele disse orgulhoso de sua dedução
simples.
– Bom detetive. – ela deu um pequeno sorriso.
– O que houve?
– É complicado, talvez, devêssemos sair daqui.
– Pietro, está bem?
– Não, não está.
– Posso ajudar? – ele perguntou preocupado e isso a comoveu um
tanto.
– Se você puder ressuscitar alguém. – ela suspirou.
– Entendo. – ele olhou para a rua enquanto a chuva começava a ficar
mais forte de novo – Acho melhor ir então, você vem comigo?
– Entre logo. – ela falou – A chuva não vai passar e você precisa se
secar, além do mais, preciso que alguém faça um café decente. O seu é o
melhor que conheço e Pietro vai precisar.
Ambos sorriram e foram para a cozinha preparar o café. Na cozinha
tomaram o café em silêncio pensando no homem lá em cima, como estaria
ele?
– Quer ficar próximo a porta do quarto? – perguntou Bernardo – Ou
quer que eu o chame?
– Vamos apenas ficar próximos, caso ele precise. – disse ela.
– Vamos levar um pouco de café.
Ambos subiram com as xicaras. Ela pediu que ele ficasse sentado
esperando do lado da pequena estante de canto enquanto ela ia até o
homem.
– Pietro. – chamou enquanto batia a porta – Tenho café aqui, para
você... Está quente.
Nenhuma resposta.
– Pietro, por favor... – ela pediu e girou a maçaneta, a porta não
abriu.
– Me deixe. – uma voz falou alto de dentro.
Ela pôs o café na porta e retornou para sua cadeira.
– Vamos ficar aqui, até ele sair. – falou Bernardo encostando a
cabeça na parede e ela concordou com um aceno e um sorriso.
O tempo passou e ela adormeceu. Bernardo pegou um cobertor e a
enrolou, pondo agora sua cadeira ao seu lado e servindo de apoio para a
cabeça dela. Até que ele também adormeceu. Enquanto os dois dormiam a
chuva caia e o tempo passava, a casa estava silenciosa.
Der repente ambos acordaram com o som de passos.
– Dormimos. – comentou ela se levantando – Ele já saiu?
– Creio que não, eu teria percebido. – Bernardo pegou as duas
xicaras na mão – Vou leva-las lá para baixo.
– Eu vou pegar a da porta dele, vamos esquentar. – ela foi até a
xicara na porta de Pietro e pegou. Pensou em bater na porta, mas hesitou,
não era hora, quando ele estivesse bem, ele sairia.
Ela se virou para sair quando ouviu um estrondo e parou de súbito. Ela
ergueu os olhos para Bernardo e o mesmo abriu a boca vagarosamente
assombrado. A xicara caiu da mão de ambos junto aos pires e se partiram.
A jovem abriu a boca pondo a mão na mesma e começando a chorar
enquanto encostava na parede buscando apoio. Bernardo como um trem
correu em direção a porta do quarto e arrombou com o ombro. Ela não
precisava olhar para ele, assim como ele não precisava dizer nada.
Ela virou para mirar o grande homem que agora parecia um fantasma e
ele fechou os olhos e em seguida os abriu olhando-a. Ela se levantou e foi
até a porta do quarto mesmo com ele fazendo um sinal para que ela não
viesse. Ela mirou Pietro caído na cama com uma arma na mão e uma poça
de sangue saindo de trás de sua cabeça manchando os lençóis brancos. Ela
quis gritar, mas apenas sua boca abriu e o grito não saia. Como um
bombeiro em um incêndio, Bernardo a pegou no colo e a carregou para
longe dali enquanto ela chorava desesperada. Pietro estava morto.
Capitulo 9
Estava uma manhã fria e úmida, apesar de não ter chovido na noite
passada. Ela estava molhando os pés em uma correnteza de rio, só o fazia
por ser extremamente raso e isso lhes dava certeza que não teria nenhuma
criatura ali. Além disso, estava irritada, por isso qualquer coisa que aquele
lugar lhes desse ela descarregaria sua arma.
Ela bebeu da água e encheu sua reserva. Estava cansada, não havia
dormido e os últimos acontecimentos não tinham sido os melhores,
precisava descansar, dormir, só um pouco. Já ficará uma semana sem
dormir, mas as condições eram diferentes, a situação era diferente. Não
sabia como era Cecidit, nem o que a aguardava lá, mas sabia que o que
tivera poderia ser uma demonstração do que encontraria no lugar.
Enxugou os pés e calçou as botas. Foi caminhando entre a mata, podia se
guiar pelo sol para achar a cidade. Em meio as árvores seguia atenta a
qualquer movimento estranho, chegava a ser paranoico, torcia para que se
encontrasse algo que fosse uma cobra. Sabia preparara uma boa cobra.
Em um momento encontrou cogumelos, mas logo deduziu que não eram
bons para se comer.
– Nada de bom acontece aqui? – indagou.
Foi se esgueirando pela mata até que ouviu um estalo forte. Ergueu o
rosto sentindo a dor ainda dos inchaços e feridas e prestou atenção. Logo
notou as vozes que dialogavam. Afiou os instintos e prestou mais atenção
ainda.
– Eu estou cansado. – falou uma das vozes.
– Eu sei, também estou, mas temos de carregar o almoço até em casa,
por isso, colabore. – respondeu a outra voz.
– Acha que vão dar falta dele? – perguntou uma mais fina.
– Não, não vão, estamos fazendo um favor a família dele.
– Estamos?
– Sim, ele era problemático.
– Espero nunca ser isso pra você não ter de me matar.
– Você nunca vai ser isso. – riu a voz muito próxima agora.
– Eu espero que não. – disse a dama erguendo a espingarda e
apontando para os donos das vozes.
Ela se espantou um tanto com a visão, era um homem e seus dois filhos,
uma menina e uma menina. O homem de aparência simples, carregava um
cervo junto ao menino e a menina os seguia segurando um amontoado de
galhos secos.
– Crianças, fiquem atrás de mim. – falou o homem.
– Quem são vocês? – ela perguntou destravando a arma.
– Somos apenas caçadores, moramos aqui perto, por favor, aponte a
arma para outro lado. – ele pediu – Está os assustando.
Ela franziu o cenho e em seguida abaixou a arma.
– Tem um grande cervo ai. – ela disse.
– Pode leva-lo, mas não faça nada conosco. – pediu o homem.
– Não sei preparar, cervo. – mentiu – Prepare para mim e eu talvez
dê um pedaço para vocês.
O homem assentiu e os quatro seguiram juntos para onde o homem e seus
filhos moravam. Ele preparou o cervo enquanto ela ficou a porta segurando
sua arma, as crianças ajudaram ele sempre dando olhadas curiosas para ela.
– Nossa cabana é humilde, mas não precisa agir dessa forma. – ele
disse enquanto preparava o tempero do animal.
– Que forma? – ela indagou.
– Como um bicho,
– Passei por coisa demais nos últimos dias. – ela suspirou.
– Vejo que sim. – ele respondeu e ela o encarou, ele fez um sinal em
relação ao rosto dela – Posso tratar suas feridas.
– É médico?
– Minha esposa era uma curandeira, aprendi algo.
– Já conheci curandeiros antes, não são dos mais efetivos.
– E os médicos são? – ele questionou.
– Alguns... Vai do momento. – ela respondeu pensativa.
A manhã foi passando enquanto ela vigiava, mas ninguém apareceu, a
cabana era bastante escondida e não parecia chamar atenção. Ele serviu a
comida e eles se sentaram a mesa, que era uma grande rodela de tronco.
– Deem as mãos, vamos rezar. – o homem disse e as crianças
obedeceram, o menino e a menina estenderam as mãos para ela.
– Eu – Não reza? – interrompeu o homem e ela então deu as mãos
para eles.
Os quatro rezaram o pai nosso e em seguida começaram a comer.
– Pensei que iria rezar a reza daquela coisa. – ela disse e ele lhes
lançou um olhar e sinalizou para as crianças, como se fosse conversar com
ela depois, ela assentiu.
Após o almoço o homem ordenou que as crianças limpassem tudo e tanto
ele quanto ela foram para o lado de fora conversar.
– Você não é daqui, de onde é? – indagou ele.
– Do outro lado do mar, sul. – respondeu ela se apoiando na arma.
– E por que veio até aqui?
– Pessoal.
– ... Entendo, essas feridas, quem fez elas. Foram eles?
– Sim. – respondeu ela – Como sabe?
– Se fosse algum monstro não seriam dessa forma e talvez, você não
tivesse todos os membros.
– Você vive aqui, em meio a esse lugar maldito, não tem medo do
que pode acontecer com seus filhos?
– Todo lugar é tão ruim e perigoso para uma criança quanto qualquer
outro, essa é a nossa casa.
– Mas aqui, eu já fui em muitos lugares. Aqui é pior.
– Sim, é verdade. – ele concordou pegando um cachimbo do bolso e
ascendendo. Ele ofereceu a ela e só pela nostalgia de lembrar do passado,
de Alfonso, o aceitou.
Ambos observaram a mata enquanto o tempo nublado esfriava tudo e eles
dividiam o cachimbo.
– Você não pode sair daqui? – perguntou ela e ele a encarou.
– Não... Eles não sobreviveriam. – ele disse.
– Por que não? – perguntou.
– Você fez a viagem até aqui, não fez? Me responda você. Eu nunca
vi ninguém sair daqui depois de chegar, quando chegam...
Ela assoprou a fumaça em silêncio.
– Minha esposa morreu quando tentamos sair daqui. – ele disse –
Tem três messes e dezoito dias, hoje.
– Sinto muito...
– Agradeço.
– Pode tratar minhas feridas? Pelo menos, amenizar a dor.
– Posso.
– Eu o pago.
– E eu faria o que com o dinheiro? Não negocio com as pessoas
daquela vila e nem com os da cidade, não muito.
– Posso te dar isso. – ela mostra uma pistola a ele – Está carregada.
– Eu acho que preciso mais do que isso para matar o que tem por ai.
– Não se for para matar gente.
– No dia que eu precisar matar gente, eu e meus filhos já estamos
condenados. Venha, vou cuidar de suas feridas.
Ela se deitou em uma das camas e ele começou a passar uma pomada no
rosto dela, em seguida lhes serviu uma espécie de xá medicinal que fez o
corpo todo dela aquecer e os lugares onde ele passou a pomada arderem.
Ela rangeu os dentes de dor, mas logo sentiu um alivio extremamente forte.
– O que é isso que passou em mim? – perguntou ela curiosa.
– Coisas da floresta, não sentirá mais dor. – respondeu ele – As
deformações passarão logo.
– Obrigada...
– Não a de quer. Durma um pouco.
– Não. – ela se ergueu e ele pôs a mão dele em oposição o que fez ela
franzir o cenho para ele. Ele apenas fez sinal para que ela ficasse calma.
– Meu nome é Lebran, sou apenas um pai de crianças, pode dormir
em minha casa, está segura. – ele disse – Descanse.
Ela demorou uns instantes, mas por fim aceitou e deitou-se. Se acostou,
mas manteve a arma por perto, assim como a faca, não vacilaria. Fingiu
dormir por um tempo para ver se ele faria algo, mas só ficou fumando e
conversando com seus filhos. Nada aconteceu e ela enfim dormiu.
Acordou no escuro, a lareira da cabana estava apagada e todos estavam
dormindo, foi quando sentiu um enorme peso sobre o corpo. Estava
paralisada. Não conseguia mover um músculo e não entendia o do porquê.
O corpo não respondia de forma alguma aos seus movimentos. A única
coisa que se movia eram os olhos, tentou agarrar a arma, mas era inútil. Foi
quando conseguiu ver pelo canto do olho uma silhueta sobre suas pernas.
Seu coração começou a palpitar e seu corpo gelou.
Tinha algo ali, tinha certeza, tenhou falar e chamar Lebran, mas ele
dormia junto a seus filhos na outra cama e parecia estar em um sono
profundo. Ela se esforçou mais ainda, ordenou que o corpo se movesse,
nada se movia. Então tentou ver a aparência do que estava sobre sua perna.
Só conseguiu reparar que era branca e pálida. Isso a amedrontou mais
ainda.
Tentou mover o braço, mas nada aconteceu. A criatura então começou a
mexer os pés sobre as pernas dela. Foi quando ela conseguiu mover a
cabeça para olhar a criatura. Na escuridão da cabana pôde ver que o
monstro era corcunda, totalmente negro, era uma sombra ali na escuridão.
Sua boca era uma fileira de dentes aberta que apareciam e sumiam, como
se estivesse surpreendido com algo e seus dedos terminavam em longas
unhas pretas.
Ele a encarava e ela encarava de volta. Sentia um medo cruel, seu
coração estava a mil, se o monstro não a matasse, o coração a mataria.
Começou a suar frio e a reparar que o monstro lhes lembrou uma imagem
do passado. Isso a deixou mais nervosa ainda, lembrou que tivera pesadelos
com o que viu na cabana da vidente durante algum tempo e que aquilo
ainda voltava a ela.
A criatura parecia estar satisfeita com o resultado que causava. Foi
quando ela ficou em pé sobre a dama e desceu da cama, caminhou até o
meio do lugar e começou a fazer movimentos no escuro deixando um
rastro. Era como se dançasse e zombasse da situação toda. A criatura então
parou de súbito e olhou para cima, em um movimento horrendo torceu o
pescoço e sua cabeça girou para trás para fitar Lebran e seus filhos. Foi
quando a dama se desesperou mais.
A criatura estendeu o braço e começou a acariciar os cabelos da filha de
Lebran, então o menino acordou, mas antes que dissesse qualquer coisa a
sombra se ergueu sobre ele e o puxou para dentro de sua barriga. A dama
abriu a boca com um esforço monstruoso querendo gritar em ódio e fúria
enquanto via a criança sumir no corpo do monstro. Em seguida o monstro
ergueu os braços e pegou com cuidado a filha de Lebran, ergueu a menina
dormindo e começou a abrir a boca para engoli-la.
A dama começou a fazer um esforço extremo para mover o braço e
começou a sentir ele se desvencilhar da prisão em que estava. Foi quando
Lebran abriu os olhos e viu a cena, mas seu corpo também estava
paralisado. Ele olhou para a dama arregalando os olhos e ambos
entenderam que estavam impotentes. Ele começou a ficar desesperado sem
poder mover um músculo da face em fúria enquanto a criatura começava a
abrir a boca e a colocar a menina vagarosamente dentro dela, sem mastigar,
apenas engolir.
Os olhos de Lebran começaram a ficar vermelhos e as lágrimas a saírem
em meio ao ódio. A dama começou a rezar em sua mente e a gritar com
tudo que pôde. A cabeça loira da menina começava a desaparecer para
dentro do buraco escuro que era a boca do monstro. Até que desapareceu.
A criatura se moveu em direção a porta e a abriu, lá fora era pura noite,
tão escura e profunda, mais até do que dentro. O monstro virou a cabeça
mais uma vez para eles e saiu para a escuridão fechando a porta atrás de si.
Nos instantes que se seguiram Lebran levantou gritando insandecido e
abrindo a porta, assim como a dama o seguiu com sua arma. Não havia
nada, apenas o escuro. Ambos pegaram lamparinas e saíram para fora,
calados e loucos por sangue buscaram nos arredores. Não encontraram
nada.
Ela deduziu que não encontrariam antes dele, voltou para a cabana e se
sentou num dos troncos que ficavam a porta e servia de banco. Perto do
amanhecer foi ele quem voltou. Como um bom caçador se houvesse rastro
teria encontrado a criatura, não havia rastro. Apenas uma pegada em frente
a porta de pés que pareciam humanos, mas a origem deles denotavam outra
coisa.
– Irei montar vigília está noite, você dorme. – ele falou sem nenhuma
emoção na voz – Acordado, ele não pode nada contra mim.
– O que era ele? – ela perguntou mais para si do que para ele.
– Eu não sei, mas está morto...
– Está.
E assim foi, o dia se passou e ambos seguiram em silêncio. Não fizeram
cova alguma, apenas aguardaram a noite. Com dificuldade, ela dormiu, ele
sem dificuldade nunca mais dormiria. Mas em momento algum chorou. A
vigília não funcionou, nada aconteceu, ela dormiu e ele acordado nada viu.
– Vamos tentar novamente.
– Inverter os papéis? – perguntou ela.
– Não, só eu posso mata-lo. – ele mostrou uma lança com a ponta de
prata.
E assim foi, mais um dia se passou e mais uma noite chegou. E nada
aconteceu. Pela manhã traçaram um novo plano, ela pediu para que ele
dormisse, já que ele não dormia a duas noites, ele não aceitou, ela não
insistiu, entendia. Na noite que chegou, ela dormiu e ele fingiu dormir. A
noite se seguiu calada, apenas as corujas piavam de vez em quando lá fora.
Mas no fim, nada ocorreu.
– Talvez devêssemos ambos dormir. – ela disse amolando sua faca.
– Sim, vamos fazer isso. – ele falou – Vou caçar, no retorno
prepararemos uma armadilha que nos permitirá se levantar caso ele
apareça.
Quando ele voltou, comeram e prepararam a armadilha dele. Se deitaram
para dormir, mas levaram um tempo, estavam ansiosos demais, ele pensou
em preparar algo para que dormissem, mas talvez isso não atraísse a
criatura. Então aguardaram, até que dormiram. Sem conversas, só a caça.
– Acorde. – uma voz falou e ela abriu os olhos, era dia e Lebran
estava em sua rede olhando o teto – Mais uma noite.
– Mais uma.
– E sua viagem?
– Não vou até o matar. – ela disse e ele não reclamou.
Mais uma vez prepararam a armadilha e foram dormir. A noite se seguiu
fria e carregada de tristeza e medo. Ela se perguntou se perderia sua vida
para aquela criatura, esperava que não, aquela parada fora apenas uma
eventualidade... Quando se lembrou das crianças enfureceu-se tanto que se
perguntou se conseguiria dormir. Resolveu pensar no marido, a tristeza de
pensar nas lembranças dos dois sempre acalmavam ela e a fazia adormecer.
Ela acordou no meio da noite. Viu Lebran dormindo, mas ela não
conseguia se mover, foi quando sentiu o peso sobre o corpo, havia mais
uma presença no quarto. Algo que seus olhos buscaram em meio a
escuridão. Era ele. Estava em pé, alto e esguio a porta, com as costas
curvadas. Estava indo em direção a Lebran, notou que o mesmo acordara e
olhava para o monstro ansioso. Foi quando o monstrou notou que Lebran
sorria com esforço apesar do peso, não tinha medo. A criatura curvou a
cabeça e ficou parada como se estivesse refletindo.
Ela virou a cabeça para a dama e foi em sua direção. Foi quando
aconteceu, a água gelada dos baldes caíram em cima da dama e de Lebran.
A criatura havia disparado a corda que segurava a simples e eficiente
armadilha. Ela pegou a espingarda e disparou com velocidade no peito do
monstro que caiu para trás, sem emitir nenhum som. Lebran se levantou
com seu arco e mãos e disparou contra a criatura que agora se preparava
para atacar com as garras. A flecha perfurou a barriga do monstro, mas ele
removeu e grunhiu finalmente emitindo um som. A dama pegou e ascendeu
o lampião e o levantou fazendo a criatura recuar mais para as sombras.
– MALDITO! – rugiu Lebran com sua lança, mas o monstro de
sombra desviou e a lança entrou em cheio no chão de madeira. A criatura
então começou a correr para a porta, ela o abriu e Lebran foi atrás.
– Espere! – gritou a dama – Não entre lá com ele!
Lebran ignorou totalmente em sua corrida para alcançar o monstro. A
sombra abriu a porta e saiu por ela para a escuridão seguido de Lebran que
sumiu no instante seguinte dando um último olhar por cima do ombro para
a dama. Ambos sumiram na escuridão e a escuridão sumiu partindo pela
porta. Ela foi com seu lapião até a saída e viu apenas a noite da floresta lá
fora.
– Deus... – ela se ajoelhou e pegou em sua cruz. Rezou ali mesmo na
noite escura, com seu lampião ao lado.
Ao amanhecer ergueu três cruzes e partiu. Cruzou a floresta sem pressa,
havia perdido algo naquela cabana. Talvez tinha chegado a um ponto de
loucura onde toda sua sanidade estava sendo posta em dúvida. Seria tudo
aquilo real? Será que ela não estava em um hospício em algum lugar
imaginando todas aquelas coisas horríveis que pelo menos eram melhores
que a sua realidade doente?
Cruzou a floresta até onde as árvores começaram a parecer mortas, até
serem todas de galhos sem folhas. Em alguns desses galhos havia gaiolas
com esqueletos. Caminhou o dia inteiro, seguiu com firmeza, sem
reclamar, chorar pelo que houve, ou amaldiçoar os céus. A noite foi
chegando quando ela enfim chegou até um sopé de montanha e subiu.
Quando subiu o ar se modificou.
A luz brilhou no céu e iluminou uma enorme cidade negra que se
estendia até um grande castelo negro. A fumaça se erguia das chaminés e o
cheiro de morte vinha ao seu nariz, as luzes em meio as estruturas
demonstravam os postes e no céu a lua dizia: Bem-vinda, criança. Bem-
vinda a Cecidit.
...
A morte de Pietro havia sido uma grande perda. Todos do clube de
festanças que ele e Gregório participavam apareceram na casa dela para se
despedir. Gregório, como amigo mais próximo cumprimentava a todos com
um olhar tão triste que nem parecia o fantasma do Gregório que todos
adoravam.
Ela estava sentada não muito longe do corpo com Bernardo ao seu lado,
como ambas testemunhas do que aconteceu eram os únicos que entendiam
o horror de ver a cena do suicídio. Ninguém nunca os perguntou como
ocorreu, nunca perguntou como se sentiam, apenas os abraçavam e diziam
que sentiam muito.
Quando foi a hora dos discursos, todos levantaram uma garrafa de
bebida. Estavam onde havia sido a festa e era o desejo de Pietro, que todos
bebessem e comessem bem em sua morte, para que não se lembrassem de
suas necessidades básicas no momento de pesar e sim da satisfação. Era um
bom desejo.
Mais de cem pessoas apareceram, talvez mais de cento e cinquenta, ela
não conseguiu contar, passou a maior parte do tempo chorando. Todos
fizeram seu discurso, mas ela não quis falar, estava arruinada. Gregório
também não deu um passo para a posição de orador, as palavras não saiam
de sua boca. Bernardo então foi em seu lugar e atraiu a atenção de todos.
– Sei que é uma hora escura, muito escura. O dia lá fora não importa,
pois a noite está aqui dentro. – Bernardo olhou para todos e pousou seu
olhar em Gregório que segurava a mão dela assim como Alfonso segurava
a outra – Eu conheci muito pouco do Pietro, mas a pouca conversa que tive
dele ele conseguiu me expulsar e me chamar de feio de uma vez só. Achei
justo por estarmos roubando o café dele. – todos deram uma risada
carregada de tristeza – Isso demonstrava quem ele era, ele era simples,
espontâneo, tinha dinheiro, mas não se via Pietro esbanjar em mulheres
vulgares, não se via Pietro gastar com carros esportivos, não se via Pietro
se colocar como superior a ninguém. Ele era um homem completo, um
homem de caráter e um amigo. O que sei de Pietro é que ele doava parte de
sua riqueza a instituições que cuidavam de órfãos, não sei se sabiam disso,
mas eu soube, talvez ele tenha querido ocultar isso em vida porque ele era
assim. Ele não queria ser visto como um grande e bondoso homem, ele não
queria fama, ele queria sua família e acho que todos aqui sabemos que ele
está com ela agora. Seja onde estiver, não esperarei que esteja bem meu
amigo, porque eu sei que está. Fique com Deus.
Alguns choraram, outros aplaudiram, mas a maior reação foi a de
Gregório que passou por Bernardo e lhes deu um abraço.
– Obrigado, irmão. – falou ele.
– Hoje só agradecemos a ele. – respondeu Bernardo e Gregório
assentiu tomando a frente.
– Palavras bem colocadas. – falou Alfonso quando Bernardo se
juntou a ele e a garota.
– Eu não tenho muito o que dizer. – começou Gregório para todos no
lugar – Mas eu sei do fundo do meu coração que... que... – Gregório
começou a chorar aos soluços perdido – Eu sei que o amava... E eu ainda o
amo... Um brinde ao maior canalha que já amei nessa vida! Ao Pietro!
– AO PIETRO! – todos falaram em uníssono e beberam suas doses.
O dia se seguiu e ouve cantoria, comida e bebida. As pessoas tentavam
se divertir, mas era notável o abatimento pela ausência do anfitrião. A
dama, ela não conseguiu ficar muito tempo e pediu que Bernardo a levasse
para casa, quando ela estava saindo, Gregório se aproximou dos dois.
– Preciso falar com você. – ele chamou.
– Fale. – ela disse cansada.
– Pietro deixou tudo para mim. A casa, o dinheiro, metade ele doou
para a caridade, aquele Pietro... – ele sorriu triste – Mas o resto ficou
comigo... Eu não preciso muito do dinheiro, só de parte, a casa não me é
útil e não posso cuidar dela, então pensei em...
– Eu não posso fazer isso. – ela deu as costas a ele.
– Por favor, pelo Pietro.
Houvesse um silêncio. Então ela consentiu e se virou para ir embora.
– Eu vou partir amanhã. – ele falou passando a mão no pescoço – E
você nunca mais me verá de novo, nenhum de vocês.
Ela se virou e o olhou. Então o abraçou com força. Ela sentiu as lágrimas
no rosto e ele beijou sua testa.
– Prometa que vai se cuidar. – ela pediu.
– Prometo.
– E que vai enviar uma carta sempre de onde estiver.
– Eu vou. – ele passou as mãos no cabelo dela e ambos se afastaram.
– Adeus...
– Adeus... – ela falou e entrou na carruagem.
Enquanto partia olhou para janela para Gregório, sentiu um aperto no
coração e fechou os olhos. Estava mais arrasada que nunca. Ao chegar em
casa estava adormecida, Bernardo a levou até sua cama e se despediu de
seus pais. Ela adormeceu com a imagem de Pietro na cabeça, tanto que
sonhou com ele.
Ele estava em uma plataforma sentado no banco esperando um trem. Ela
o viu e acenou para ele, ele o fez de volta e mostrou que estava deixando o
cantil no banco. Ela foi até ele, mas seu corpo não obedeceu e sem que ela
permitisse seu corpo abriu a porta enorme para que Pietro entrasse no trem.
Ao mesmo tempo que ela gritava para ele não entrar, ela mantinha a porta
aberta. Ele entrou no trem e ela gritou desesperada enquanto via ele esperar
a porta fechar. Seu braço fechou a porta sem que ela quisesse e ela deixou o
trem partir com Pietro dentro. Acordou com o rosto cheio de lágrimas.
Pela manhã seu café estava a esperando ao lado da cama, se sentiu grata
pelo carinho dos pais. Enquanto comia as torradas, ouviu alguém bater a
porta.
– Entre. – falou – Estou acordada.
– Você tem visitas. – disse sua mãe abrindo a porta e por ela entrou
Alfonso com um sorriso no rosto.
A mãe os deixou a sós e ele se sentou no pé da cama dela.
– Como você está? – perguntou ele.
– Eu não sei... – ela olhou para a xicara e como a luz do sol refletia
nela – Ele estava tão triste, mas não esperava que...
– Está tudo bem, tudo bem. – ele pegou na mão dela.
– ... Foi minha culpa sabia?
– Perdão.
– A morte de Pietro, quando ocorreu. Tinhamos voltado da praia, ele
estava triste, então bebeu e foi dormir... Eu resolvi explorar a casa e
encontrei o quarto dele e da sua esposa, de sua filha. – ela começou a
chorar e soluçar – Entrei e explorei... Ele nunca abria aquele quarto, nunca
ia lá e quando fiz isso, ele foi lá e... Viu tudo aquilo sabe? Havia uma
pequena vitrine com uma arma, ele se trancou lá com aquilo e bem...
– O que houve a Pietro foi consequência de uma tristeza profunda
minha querida. – ele disse, mas ela o ignorava e apenas chorava – Olhe
para mim. Olhe para mim. – ela o encarou – Pietro morreu porque estava
doente, é nisso que acredito, doente de magoa e tristeza. Doente a ponto de
não poder ser mais verdadeiramente feliz... A bebida apenas o empurrou
para o final, você não tem nada haver com isso, aconteceria de uma forma
ou de outra. Compreende?
Ela não respondeu.
– Compreende? – ele a fez olha-lo.
– Sim.... – ele a abraçou.
Ambos ficaram em silêncio durante um tempo e ela suspirou.
– Gregório já partiu? – a dama perguntou.
– Sim, pegou o trem mais cedo possível. Logo, logo estará em um
barco para o continente Africano.
– Eu não queria que ele fosse...
– Ele precisava disso, mas deixou algo para você. – Alfonso tirou
algo do bolso, um pequeno broxe prateado com uma brilhante pedra verde
no meio.
– É lindo... – ela olhou estupefata para o círculo com a pedra.
– E valioso. – ele sorriu – Ele realmente tem apreço por ti.
– Sim... – ela se lembrou do pedido dele e sentiu uma pequena
pontada de arrependimento – Estou me sentindo só...
– E não nos sentimos todos, minha querida? – ele a puxou para um
abraço – Vai ficar tudo bem, sempre fica tudo bem... No entanto, tenho
uma notícia.
– Fale.
– Não queria aborrece-la hoje, mas a polícia deseja interrogar você e
aquele moço sobre a morte do nosso amado Pietro.
– Meu Deus... – ela se afastou rapidamente assustada – Eles pensam
que fizemos algo?
– Se acalme, se acalme, é apenas uma formalidade. – ele apressou-se
em dizer.
– Isso me assusta, nunca estive em uma situação assim.
– Envolvendo a polícia, ora, não a do que temer.
– Não, morte.
– ... Ohhh sim, morte... – ele olhou para a janela – Que ouvir uma
história?
– Com toda certeza. – ela falou ansiosa e ele sorriu.
– Uma vez eu estava no Cairo, em uma de minhas viagens. Minha
carreira como arqueólogo fora de muitas aventuras e vi muitas belezas.
Enquanto estava lá testemunhei das mais diversas coisas e fiz das mais
diversas coisas, algumas não me orgulho... Havia esse homem, esse nativo,
ele estava me seguindo, provavelmente para me roubar. Me escondi em
uma cabana e quando ele passou entramos em uma briga, ele tinha uma
faca, eu uma arma. Não é preciso muita matemática, atirei no homem sem
pensar duas vezes, acertei sua barriga em um lugar que não dá para tratar.
O tipo de tiro que mata... Eu o encarei, achava que ele merecia aquilo, mas
não tinha coragem de disparar mais uma vez contra ele... Foi quando eu
ouvi ele pedir.
– Pedir o que?
– Comida, ele só queria comida. Estava desesperado por comida...
– O que você fez?
– Eu lhes expliquei que não tinha comida comigo da melhor forma
que pude, ele compreendeu e aceitou da melhor forma possível. Com um
aceno...
Alfonso sorriu der repente para ela.
– Minha mãe dizia que alguns nasceram para morrer e outros para
viver, que quando cumprimos nosso papel nós simplesmente partimos. –
ele se levantou entregando um pequeno pacote endereçado por Gregório
para ela – Nunca ouvi tamanha tolice na vida.
Ambos sorriram um para o outro.
– Eu tenho uma pergunta. – ela disse olhando o pacote – Eu tive um
sonho... Uma visão e desmaiei... O que vi tinha haver com as coisas que li e
vi no diário que me entregou.
Ele olhou com um ar preocupado para ela.
– Me conte tudo, desde o começo. – ele disse.
Ela contou cada detalhe da visão que teve, o monstro, o sangue, tudo com
um esforço para não sentir medo pelo que vira. E ele ouviu pacientemente,
ouviu sobre o gigante ao sol, sobre cada detalhe da visão dela sobre as
coisas no diário dele. De vez em quando ele interrompia o relato para fazer
uma ou outra pergunta, como a aparência do que viu, se sentiu cheiro ou
não, ela relatou ter sentido cheiro, perguntou sobre o que mais a assustou
assim como outros detalhes. Após ela terminar seu relato, ele ficou em
silêncio.
– O que foi? – ela o chamou enquanto ele estava absorto em seus
pensamentos.
– Você não está sozinha no que viu. – ele olhou para suas mãos – O
que viu, eu também vi e senti.
– E como foi?
– Parecido, mas em minha experiência a criatura me atacou de uma
forma um tanto mais animalesca. – ele disse puxando a manga do braço
esquerdo e mostrando uma grande marca branca em sua pele, como uma
cicatriz – As experiências que ambos tivemos, foram reais.
Ela ficou calada por um momento.
– Reais? – indagou.
– Sim, aconteceram. De alguma forma nossas mentes foram levadas
a outro lugar.
– Mas e os nossos corpos, eles ficaram no lugar em que estávamos.
– É verdade, mas existe o seu corpo físico e o corpo de identidade
espiritual. Sua alma preenche seu corpo e quando a alma é tocada, o corpo
também é afetado. Em outras palavras, se a sua identidade for cortada, seu
corpo também será.
– Isso não tem sentido...
– Eu também achava... – ele passou a mão no queixo pensativo –
Aconteceu mais de uma vez?
– Não.
– Se acontecer, me procure, não hesite. Me procure imediatamente,
está me entendendo?
– Está me assustando, Alfonso... – ela se afastou dele.
– Apenas me procure, eu só quero o seu bem, por favor. Prometa que
irá me procurar.
– Eu prometo... – ela fez um aceno com a cabeça, apesar do bizarro
que aquilo soava.
– Pois bem, tenho de partir. – ele se levantou e se espreguiçou –
Espero que goste do presente de Gregório. Adeus!
– Até...
E ele partiu deixando-a com o pacote e com o pensamento naquelas
palavras que ele falou. Esperava nunca mais sonhar com aquela coisa de
novo, com nada mais daquilo...
Capitulo 10

C ecidit, finalmente havia chegado a ela... e já queria ir embora.


Atravessou o portão vendo as estruturas com telhados pontudos e gárgulas
demoníacas tanto quanto imagem de anjos e imagem chorosas. O cenário
era escuro e ao mesmo tempo cinzento, as poucas luzes existentes em
maioria eram dos postes com lampiões, pois as casas estavam escuras. Uma
neblina se formava sobre as ruas de pedra e uma chuva fraca caia. Ela
caminhou olhando para as árvores retorcidas e para as casas de portas
fechadas. Quase um cenário de terror.
Ouviu uma badalada então, o sino da torre da igreja da cidade soava
ecoando pela cidade. O barulho foi tão estrondos que a assustou, se moveu
em direção a um beco, se sentia observada. Foi quando viu um olho na
escuridão de uma fresta de janela, que sumiu assim que ela olhou de volta.
Ela foi em direção a porta da casa de onde vira o olho e bateu. Ninguém
respondeu. Bateu mais uma vez. Nada.
– Só desejo informação. – pediu enquanto a chuva lhes molhava.
– Vá embora. – a voz de dentro respondeu.
– Clássico. – ela suspirou mirando o céu nublado e escuro.
Ela se virou e resolveu escalar o telhado de um sobrado no final do beco,
dele subiria para outros telhados e poderia ver o castelo, assim como uma
rota para chegar até ele, mesmo sendo ao norte, tinha pressa de alcança-lo.
Cercou o sobrado e notou uma escada velha, tinha de arriscar. Subiu sem
dificuldade, apesar do cansaço das últimas noites. Assim que chegou ao
topo do telhado andou com cuidado para não escorregar nas telhas
molhadas e cair, por sorte a chuva ainda não engrossara.
Quando finalmente chegou ao topo se agarrou numa cruz de metal e
observou a vista. Notou que não era uma cruz, mas sim uma criatura em
formato da cruz, algo como uma espécie de diabrete ou coisa do tipo.
Ignorou a imagem enfim e se centrou no que seus olhos mostravam, devido
a neblina e a chuva mal podia ver em volta, apenas as pontas das torres do
castelo. Isso a irritou.
No entanto, ali em cima viu em meio as ruas um homem andando
desvairado com uma criança no colo, sangue escorria de sua cabeça. Ela
então prestou mais atenção, havia um grupo de homens seguindo-o.
Com pressa ela desceu escorregando pela telha e saltou para o próximo
telhado. Pôde ver de relance os homens com pedras nas mãos e porretes.
Acelerou os movimentos e saltou em cima de um monte de caixas pulando
em seguida para a rua. Com pressa sacou a espingarda e virou a esquina em
direção de onde o barulho vinha.
– S-socorro... – o homem pediu enquanto corria desesperado.
Ela foi até ele com a arma em mãos e ele lhes ofereceu a criança para que
ela a pegasse no colo. Ela largou a mala, pegou e tomou frente da situação,
o homem se ajoelhou e abraçou sua perna como uma criança chorona. Ela o
ignorou e prestou atenção em seus adversários. O grupo era de cinco, com
um tiro ela acertou o pescoço de um e o peito do outro os derrubando. Isso
desmotivou os outros dois por um instante, mas eles vieram mesmo assim,
ela precisava recarregar, com a criança no colo e um homem barbudo
agarrado a sua perna não conseguiria. Ela jogou a espingarda no chão e
sacou a pistola. Deu três disparos certeiros, dois nas cabeças e um no
pescoço.
Olhou para o homem a sua perna.
– Médico, médico, médico, médico. – ele falava repetidamente. Ela
olhou para o menino desmaiado em seu colo e em seguida fez um
movimento com a perna afastando o homem.
– Vamos ao hospital então. – disse.
– Não, não, não, perigo, Deus, perigo, muito perigo.
Ela franziu o cenho e estendeu o menino ao homem. Ele olhou para a
criança e em seguida a pegou como se fosse uma trouxa de roupas, ela se
manteve indiferente e pegou de volta sua espingarda.
– Médico, médico, médico. – o homem fez um sinal com a cabeça
para o menino – Por favor...
– Onde vamos encontrar o médico? – ela indagou ao sujo homem.
– Seguir, seguir... – ele se levantou, nesse mesmo momento mais
pessoas surgiram na esquina, um grupo maior dessa vez. Mulheres,
homens, crianças, todos sujos.
– Parem com isso! – gritou ela para eles que vinham vagarosamente
em sua direção.
– Pelo Primogênito! – ecoaram eles.
Ela suspirou irritada.
– Vamos ao médico. – falou ao homem.
Ambos começaram a correr enquanto a multidão vinha atrás. Ela pôs a
espingarda as costas e começou a disparar com a pistola contra eles
enquanto tentava carregar a mala sem cair no caminho. Seguiram pelas ruas
estreitas evitando as largas para não dar margem para os loucos os
cercarem pelas laterais. A cada cinco passos ela tinha de fazer um disparo,
estava errando cada vez mais devido à exaustão e derrubava menos do que
pretendia.
Viraram numa esquina e se viram por fim em uma viela. Ela olhou para
as janelas ao redor buscando ajuda, mas sabia que não viria, já estivera em
situação parecida. Os loucos do primogênito apareceram e começaram a rir
e a entoar a mesma citação na vila em que ela vira a morte de Stelle e
enfrentara aqueles horrores.
Erguai da terra, pois teu ascendente se pousou no mar. Filho do único,
daquele que aqui está, mas não está. Todos por ti, todos ao Primogênito,
ao Primogênito, saudemos Miac’o, Miac’o, oremos ante Miac’o, Miac’o,
todos por ti, único e perfeito Miac’o.
– Foda-se seu Miac’o. – praguejou ela apontando a arma para eles –
Vamos, quem vai ser o primeiro? Onde está o médico?!
– MÉDICO! MÉDICO! MÉDICO! – gritou o homem se ajoelhando,
a dama olhou sobre o ombro para seu ato diante de uma parede que a única
coisa que tinha era um pequeno vitral para entrada de ar e se arrependeu
amargamente de ter ajudado o homem.
Der repente as luzes dos potes na esquina que iluminavam a multidão se
apagaram e a multidão parou em instantâneo ficando calada.
– Vão embora. – uma voz disse e a multidão ficou imóvel ainda.
– Servimos a Miac’o! Tudo pertence a Miac’o! – gritou uma mulher
no escuro, a dama ficou buscando a origem das vozes.
– Não o meu distrito. – falou a voz.
– Esse distrito pertence ao príncipe! – rugiu a mulher.
– Não o meu distrito! – a voz fora tenebrosa e os lampiões
explodiram em chamas queimando o poste mesmo com a chuva.
A multidão ameaçou fugir, mas não foram rápidos o suficiente. Um vulto
cortante passou e o som de lâmina fez o sangue jorrar para todos os lados
tanto quanto as cabeças. Em instante só restava um amontoado de corpos
no chão. A dama ficou calada observando a grande poça de sangue que se
formava na lama. E o homem carregando a criança permaneceu de joelhos
em silêncio e a dama começou a buscar a presença que sentia. Mas a chama
dos postes desapareceu por completo e ela recaiu com os olhos em trevas,
não lhes restou escolha senão o diálogo.
– Você é o médico? – perguntou apontando a arma em todas as
direções que achava que ele estava.
– Simm... – a voz respondeu.
– Trouxe-o até aqui, ele busca seu auxilio para a criança, agora parto.
– Ele não busca auxilio para a criança e você, você não pode partir
sem minha permissão.
Ela não respondeu, sabia que no momento, fosse o que fosse, não teria
chances, tinha de fazer o jogo certo.
– Como assim, não busca auxilio para a criança? – ela questionou
enxergando apenas a silhueta do homem ajoelhado para o vitral segurando
a criança.
Foi quando ela viu duas bolas brilhantes violetas a mirando pela abertura
que era agora o vitral.
– Ele busca auxilio para ele... Está doente... – falou a voz advinda
dos dois olhos – A criança é sua oferenda.
Em um gesto rápido deu um tiro na cabeça do homem fazendo-o ir ao
chão com a criança em seu colo.
– Oferenda feita, salve a criança. – ela disse puxando o menino para
longe do recém morto.
Os olhos brilharam mais e ela apontou sua arma para eles.
– Você é mais cruel do que eu. – a voz falou.
– Isso não pode ser medido ainda. – ela estava impaciente – Mostre-
se logo e faça seu trabalho, ou derrubarei a parede. Estou cansada.
Os olhos sumiram e um escuro completo se fez. No entanto, ela ouviu o
som de rocha se mover e notou que uma passagem se abrira a sua frente.
No escuro da passagem um lampião segurado por pálidas mãos brilhava e
um homem de jaleco branco a olhava com olhos violetas e um rosto liso a
olhava.
– Venha. – o homem disse e ela entrou carregando a criança.
Enquanto caminhavam no corredor, a porta atrás se fechou. Ele então
abriu um pequeno portão de metal e ela se indagou porque aquilo estava
ali. Entendeu quando notou que fazia parte de pedras mais antigas e
desgastadas do que a entrada. Eles foram mais a frente e ele abriu uma
porta que os levou a uma sala iluminada por candelabros nas paredes.
O lugar era uma sala e ele haviam saído por detrás de uma estante onde
os pratos ficavam. Havia um sofá fino de cor vinho e uma grande mesa de
jantar, as paredes com losangos feito em dourado e verde e um tapete de
urso cobria o chão. Eles seguiram descendo por uma escada na lateral da
sala e acabaram numa sala com uma mesa de metal e os mais variados
aparelhos de medicina que se pode imaginar. Ele ordenou que colocasse a
criança sobre a mesa e acenou para que ela se sentasse num banco enquanto
a luz de uma lâmpada no teto iluminava o lugar de ladrilhos brancos.
– Como vai trata-lo? – perguntou ela – O que ele tem?
– Além da óbvia desnutrição, ele está sofrendo de alguns males que
não posso descrever no momento. – o doutor respondeu – Suba para o
andar de cima e sirva-se de comida, tenho bastante e logo daremos a esse
jovem também. Assim que desperta-lo.
Ele abriu os olhos do menino e começou a analisa-los, em seguida sua
boca e dentes.
– Você é pálido. – ela analisou.
– Aqui não faz muito sol. – ele também era belo.
– O que está havendo por aqui?
– Como assim?
– Existe uma seita obvia aqui, a alguém que nunca ouvi falar em
minha vida.
Ele ficou em silêncio por um momento.
– Suba e logo conversaremos sobre isso. – ele fez um sinal para que
ela se retirasse e ela o fez.
No andar de cima ela explorou a sala e pegou um cacho de uvas da
fruteira. Se questionou se deveria explorar o resto do lugar. Conteve-se.
Olhou então pela janela para o lado de fora. A rua estava escura e quieta,
não havia um poste aceso ou uma alma vagando.
– Por que? – perguntou-se tentando enxergar algo em meio a
escuridão, notou que a frente da casa havia um beco que estava um breu
total.
Se lembrou de Lebran e do monstro nas sombras, ele estaria ali? Será que
se entrasse naquele beco o encontraria? E seu marido? Estaria ele em
algum lugar tão horrível... sentiu um aperto quando pensou nele, as coisas
estavam tão ruins que mal podia pensar naquele que a motivara a ir até ali...
Sentia sua falta... Queria chorar.
Olhou para o beco e ficou o observando enquanto a chuva parava
vagarosamente lá fora. Estava tudo tão quieto e calmo. Ela apoiou a cabeça
na mão e enquanto mirava a escuridão sentiu algo diferente. Franziu o
cenho e começou a prestar mais atenção para onde olhava. Encarou e
encarou como se pudesse extrair algum conhecimento oculto e místico dali.
Fez isso durante muito tempo, de modo que fizesse o breu do beco ir e
voltar em sua direção. Ficou então na expectativa, sabia que algo
apareceria, fosse um sorriso de uma criatura pertencente a algo maior ou
olhos brilhantes de algum monstro do mundo antigo, isso fez sua pele
estremecer. Aguardou, e aguardou, até que começou a ver uma silhueta se
formar na sombra, como uma enorme cabeça de cão. Seu coração começou
a bater rápido.
– Não se esforce tanto. – uma voz a despertou e ela se virou para
olhar o doutor ao lado do garoto que tomava uma sopa na mesa. – Não faz
bem ao seu diagnóstico.
Ela se virou novamente para o beco e não havia nada. A mente prega
peças demais as vezes, tudo aquilo estava acabando com ela.
– Como sabe que eu não estava vendo nada? – perguntou ela.
– A mente cria monstros extras as vezes, só precisamos aprender a
deixá-los em seu lugar. – ele falou vindo agora em direção a ela, tinha
curtos cabelos loiros penteados para trás.
Ela concordou com um aceno de cabeça, no entanto olhou para as uvas
em sua mão.
– Pode terminar isso também. – ele sorriu e ela se envergonhou pelo
seu roubo – Coma algo, fiz sopa, sente-se a mesa e se alimente. – ele
sentou-se a mesa e ela olhou para o prato servido e a tigela com pães.
Foi a mesa e se sentou de modo desconfiado, mas não pode deixar de
admirar a prataria fina. Ele no entanto não se serviu de nada.
– Não vai comer? – perguntou ela direta.
– Não tomo sopa. – ele suspirou se recostando na cadeira. Ela olhou
para o menino, parecia concentrado em molhar o pão e se alimentar.
– Para que servem os sacrifícios?
Ele ergueu as sobrancelhas e riu tapando a boca com a mão de forma
educada.
– Você é direta. – ele recostou o queixo nos dedos cruzados – É
simbólico de certa forma.
– Sacrificar uma vida para salvar outra? – ela parecia incomodada.
– Sim.
– Isso não é contra seu código como doutor.
– Não para o tipo de doutor que eu sou. – ele falou de modo rápido e
ela olhou para a sopa – Não tem veneno se é o que se pergunta.
– Isso me surpreende.
– Por que?
– Porque desde que comecei minha viagem quase tudo quer me
matar. – ela sorriu e ele fez o mesmo em resposta.
– Eu não quero te matar, apenas te alimentar. Coma, gosto de ser um
bom anfitrião. A sopa é bem recheada apesar da situação atual.
– E qual seria a situação?
– Insanidade. – ele respondeu em tom sério.
Ela ficou em silêncio olhando para o caldo laranja no prato de porcelana
e seus pedaços de carne boiando. O cheiro era bom e era quente também...
Pegou a colher e ele desviou o olhar fingindo desinteresse. Mergulhou
vagarosamente e brincou um pouco com o caldo, até que o pegou e o
ergueu. Nesse instante moveu-se para frente e seu colar com a cruz
balançou prateado e brilhando. Ela sentiu o pingente balançar e olhou para
o homem que olhava para ele de forma curiosa. Afastou a colher da boca e
recostou as costas na cadeira.
– Isso o incomoda? – ela perguntou.
– Não, mas me faz querer rir. – ele sorriu mostrando os dentes longos
e brancos – Não imaginei que era supersticiosa.
– E não sou. – ela buscou a pistola em seu coldre.
– Não faça isso, por favor. – ele pediu com um aceno de cabeça em
desaprovação.
– Isso o que? – ela destravou a arma.
Ambos ficaram em silêncio e uma tensão se criou tão pesada quanto uma
cortina de ferro entre os dois.
– Terminei. – a voz do menino com o prato vazio fez ambos o
olharem – Posso ir?
O doutor sorriu.
– Claro que pode, meu pequeno, mas não acha perigoso lá fora? – o
doutor se ergueu e foi até ele, a dama manteve a arma no coldre.
– Minha mãe me espera. – ele falou.
– Nesse caso, tem certeza?
– Sim.
– Vai deixa-lo ir lá fora sozinho? – perguntou ela.
– Vamos deixa-lo ir lá fora sozinho? – retrucou o doutor de volta.
– Vamos leva-lo até sua mãe. – ela se levantou e o doutor acenou em
aprovação.
– Suba e tome um banho meu pequeno e a senhorita, termine sua
sopa. – ele acenou para que ela continuasse, como se ela já estivesse
tomando.
O menino ouviu as instruções do doutor e as seguiu, enquanto o mesmo
foi ao sofá e sentou-se de forma polida.
– O que você é? – ela perguntou girando a colher no prato.
– Meu nome é Eren. – ele respondeu recostando a cabeça nas
almofadas quando deitou – Eren Markov de Gustini.
– O que você é, Sr. Eren? – ele a olhou estranhando o modo como
chamou pelo primeiro nome e não pelo sobrenome.
– Um médico. – ele bocejou em tom despreocupado.
– Além disso?
– Um médico vampiro. – ele olhou o estado das próprias unhas
enquanto ela o olhava atônita.
– Faz sentido. – ela voltou-se para a sopa e se indagou o quão louca
seria de ainda cogitar tomar, quis rir.
– Não acredita em mim?
– Acredito.
– Não parece.
– Esperava que reação? Que eu atirasse em você? Puxasse minha
cruz ou qualquer coisa do tipo?
– Sim... Não.
– Vai tentar me matar? A mim e ao menino? – perguntou ela.
– Não, vocês só são meus convidados.
– Então posso tomar da sopa. – ela molhou o pão na sopa e começou
a comê-lo, ele sentou-se no sofá agora curioso.
– Você não é comum.
– Você também não. – a sopa estava deliciosa, o que a fez comer
com mais vontade.
– O que você quer em Cecidit?
Ela parou de tomar a sopa.
– Assuntos pessoais... – ela olhou para a luminária no teto.
– Você sabe o que sou e quase quem sou, não tem porque esconder
quem você é e o do porquê veio a esse lugar. – ele a encarou.
– O príncipe tem algo que eu quero.
– E o que seria?
– Um livro.
– Eu tenho muitos, posso ter o que deseja.
– Acredite, não tem. – ela o encarou.
Ambos ficaram se encarando por um tempo.
– Pois bem. – ele disse por fim – Eu vou com você.
– Como? – ela se sobressaltou.
– O príncipe também tem algo que eu quero. – ele disse em tom
sombrio.
– O que seria?
– Assuntos pessoais.
Ela suspirou e franziu o cenho para ele.
– Estou pronto. – o menino surgiu na entrada da sala vestindo roupas
um pouco mais arrumadas e limpas, seu cabelo preto estava molhada ainda,
mas sua aparência estava bem melhor.
– É sua vez. – Eren falou para ela – Suba, tome um banho e vista
algo mais confortável.
– Não espere que me banhe em sua casa, muito menos vista um
vestido. – ela se levantou – Estou em uma missão aqui.
– Acredite, não é um vestido. Se quer ir comigo atrás do príncipe,
tem de estar pronta. Siga meu conselho.
Se encararam e ela foi até sua mala e espingarda. Pegou ambas e o fitou.
– Se eu sentir sua presença... – ela disse.
– Não vai, mas se vamos fazer isso, vamos fazer direito. – ele deu de
ombros.
– E por que não fez antes?
– Isso lhes conto enquanto levamos nosso garoto a sua mãe.
Ela se virou e seguiu para a saída da sala que levava as escadarias e por
consequência o andar de cima. A situação era adversa, mas tudo até ali fora
e aquele homem, vampiro ou não, tinha as informações que ela precisava
do lugar. Em todas as viagens que fizera fora assim, informação com um
nativo primeiro e plano depois. Ali não deveria ser diferente, largar os
costumes ao menos comuns era perigoso em terreno desconhecido e tinha
de se apegar o máximo possível ao normal.
...
O presente de Gregório fora uma linda caixinha de música daquelas que a
bailarina dançava com um giro. Ela se entretinha mais com a canção do que
com a imagem da moça de vestido branco dançando. Chorou por ele é
claro, tinha se tornado mais chorona do que imaginava ser possível,
chegava a se irritar e brigar consigo mesma por isso. Odiava pessoas assim,
dramáticas, ela não queria ser assim. Mas vivera tanto até ali, tanta coisa
passou. Passou dias chorando por Pietro e mais alguns por Gregório, os
amava, amava os dois tão profundamente que doía.
Sua tristeza fora tanto naqueles dias, que mesmo seu pai, católico
fervoroso não ousou dizer o destino de um suicida de acordo com suas
doutrinas e sua mãe, sua mãe estava mais carinhosa que nunca com ela. As
únicas luzes em seu dia eram as visitas de seu tio Alfonso e de Bernardo,
que não ficava muito por uma lógica tola de desrespeito. Ele dizia que não
queria que pensassem errado. Pensar errado? As vezes Bernardo parecia
seus pais, mas não fazia por mal, ele a respeitava e gostava por demais
dela. Era o suficiente para faze-la sorrir, isso com toda certeza. Uma vela
em meio a escuridão.
Naquele dia em especial, estava entretida, queria se arrumar de modo que
ficasse mais bela que nunca, iria fazer um passeio com Bernardo e estava
ansiosa. Eles estavam cada vez mais próximos e queria estar incrível.
Vestiu o belo vestido azul de renda que sua mãe tanto dizia que a deixava
linda, prendeu os cabelos em uma trança deixando um fio caindo sobre a
testa e calçou uma sapatilha branca que chegava a brilhar ao sol.
Bernardo havia chegado pela tarde com uma carruagem, por volta das
duas. Logo estavam no sitio de seu tio, onde ele a levava para um passeio
entre as árvores seguindo o curso do rio que cruzava o lugar.
Enquanto caminhavam o sol iluminava os dois, ele estava em um traje
quase que formal, bege e todo quieto carregando a cesta com comida.
Estava tímido?
– Por que não está conversando tanto? – ela perguntou olhando para
cima, para olhar o rosto dele.
– Só estou admirando a paisagem. – Bernardo respondeu meio
desconcertado e ela se segurou para não rir.
– Compreendo perfeitamente. – ela o encarou e ele sorriu olhando
para a imagem do rio dourado tocado pelo belo sol no céu.
– Deveríamos dar um mergulho. – ele disse a levando em direção a
água.
– Não sei. – eles se aproximaram da margem e viram pássaros
passarem voando por cima da água, em seguida ele se sentou na terra e ela
fez o mesmo sem pestanejar, o que o fez rir – O que foi?
– Você.
– O que tem eu?
– Não faz cerimonias ou reclama por ter de fazer certas coisas.
– Frescura?
– Isso, você não tem isso. – ele olhou para o rio dourado com um
olhar pensativo e o maxilar reto parecia duro.
– É ruim?
– Não, é bom.
– Obrigada. – eles observaram o rio.
Depois de muitos minutos observando o curso da água, ela tirou as
sapatilhas e ele ajudou. Em seguida ele tirou os sapatos e ambos
mergulharam os pés descalços na água. Estava perfeita.
– Eu sinto falta. – ela apoiou o rosto nas mãos como uma criança
enquanto olhava as pequenas ondulações que os peixes faziam.
– Do que? – Bernardo perguntou cruzando os braços sobre os
joelhos.
– Do nosso pequeno grupo.... Principalmente do Pietro.
– Eu também, garota.
– Ele não deveria ter feito aquilo... – ela começara a chorar e ele a
abraçou puxando-a para seu peito – Não deveria mesmo ter feito aquilo...
Ele beijou a cabeça dela enquanto a luz do sol tocava os dois e os
aquecia em meio aquele sentimento triste e pesado.
– Acha que ele está bem? – perguntou ela fungando.
– Acho que ele está em paz. – respondeu Bernardo com sinceridade –
Ohh sim, ele está em paz...
Ele a olhou com um sorriso dócil e ela se sentiu grata por aquilo
abraçando-o ainda mais. Ficaram abraçados por um tempo enquanto as
lágrimas cruzavam as bochechas dela. Der repente ela sentiu água fria no
rosto, ele estava molhando-a.
– Ora se anime! – riu ele e ela pôs a mão na frente do rosto e se
levantou com velocidade chutando com os pés a água nele o que fez sua
calça encharcar.
– Nesse jogo não tem como eu perder. – ela riu começando a chutar
jatos de água nele que apenas os recebeu se erguendo.
Ela havia molhado a roupa dele quase toda e ficou séria quando notou
que ele ficou calado encarando ela com os braços na cintura.
– Me desculpe... – mal terminou ela de falar e ele correu para cima
dela e a pegou no colo jogando-a na água – BERNARDO! – o grito foi em
vão, ela caiu totalmente na água fazendo respingar para todos os lados
enquanto ele ria.
Em um ato rápido ela se ergueu e o puxou com toda sua força pela gola
da camisa dele para o rio e ele caiu levando-a junto para dentro da água
dourada daquela tarde. Ficaram mergulhando e brincando durante bastante
tempo naquela tarde ensolarada e quando se aquietaram na areia comeram
o bolo e tomaram do vinho que ele trouxe.
Enquanto comiam e bebiam, Bernardo contava sobre seu dia, o modo
como as vezes sua altura intimidava as pessoas até mesmo de seu trabalho
na redação do jornal. Sendo que para ela, ele não passava de um grande e
dócil garoto, o que fazia rir quando ele dizia que intimidava as pessoas.
Claro, nesses momentos ela também se lembrava do modo como ele podia
ser agressivo, como quando surrou o rapaz que a bateu. Sim, ele era grande
e intimidador também, mas não para ela e no fundo, ela até sentia que
podia vence-lo numa luta. Porque não? Era esperta, certo?
Se empanturram até não aguentar mais e ela ouviu as histórias dele de
como ele passou bastante tempo carregando peso como uma mula enquanto
trabalhava na mercearia e ajudava no sitio. Riu da narração do primeiro
beijo dele, o modo como ele derrubou a garota da cerca. Quis chorar sobre
como ele contou quando perdeu a mãe, mas riu satisfeita pelo modo como
ele falava esperançoso sobre ela, como se ela ainda estivesse lá fora em
algum lugar. No fim da tarde eles haviam tido um dia maravilhoso, mais
que perfeito se comparado aos outros.
– Obrigado por isso. – ela deitou na areia olhando o céu azulado com
poucas nuvens e ele fez o mesmo ao lado dela enquanto o sol secava suas
roupas.
– É lindo, não? – Bernardo a encarou.
– O que? O céu?
– O céu, esse lugar, você. – ele sorriu para ela e um silêncio se fez
enquanto ambos sorriram.
– Isso foi calculado?
– Não sei do que você tá falando. – ambos riram e suas cabeças se
aproximaram no sorriso. Em algum lugar um pássaro cantava não muito
longe enquanto ambos se beijavam ali, naquele pequeno pedaço do paraíso.
Após o beijo ele deitou novamente e ela deitou abraçada com ele, ambos
deram um suspiro e começaram a rir. Riram como duas crianças bobas
descobrindo um segredo novo que só eles sabiam. Riram como se tudo que
passaram fossem um sonho e aquilo ali, aquilo ali era vida. Estavam
contentes na companhia um do outro naquela tarde, que para ela, poderia,
deveria, tinha de durar para todo sempre.
No entanto deviam ir para casa, o sol já havia quase se posto quando
seguiram pela estrada entre as árvores para casa. Caminhavam conversando
e sorrindo, mas o frio os interrompeu, ainda estavam molhados. Ele passou
o braço por ela e seguiram juntinhos enquanto ventava fazendo os galhos
balançarem.
Seguiram em silêncio enquanto a noite chegava, mas a lua iluminava o
caminho. Ela então começou a sentir um incomodo, como se estivesse
sendo observada por algo. Olhou para trás, sobre o ombro, mas nada viu. E
apesar da segurança dos braços de Bernardo, se sentia pressionada por algo,
uma força que suprimia ela.
– Algum problema? – Bernardo perguntou.
– Nenhum. – eles seguiram juntos e ela começou a olhar para a
direita, para o rio que corria iluminado pela luz da lua.
No rio ela notou uma pequena ondulação se formar, algo branco e grande
nadava ali, como uma baleia. Quando parou para olhar melhor, a coisa
havia mergulhado. Bernardo parou ao lado dela com um rosto de
indagação, mas ela fez um sinal de negativa com a cabeça e seguiram
estrada. Logo, se viram na escuridão das sombras das árvores que tapavam
a luz da lua, caminharam assim durante um tempo e por coincidência ali
naquele escuro ela sentia cada vez mais forte a força opressiva, como se
alguém a empurrasse para baixo. Foi quando Bernardo ascendeu um
isqueiro e iluminou ao redor com a fraca luz.
Ela o abraçou mais enquanto a chama tremeluzia e ele a confortou, ele
parecia não sentir nada. Ali no escuro ela buscou a luz da lua e o rio em
meio as sombras das árvores, mas ao invés disso viu uma forma gigante e
negra. Pensou ser só o amontoado de galhos, mas era maior e a luz da lua
delineava bem sua forma. Uma criatura gigante os seguia, caminhando
como que por quatro patas e com uma grande cabeça branca sem olhos.
Seus movimentos eram tão sutis que não se permitiam ouvir e sua boca
abria para sugar o ar e soprar fazendo um vento frio. A criatura parecia a
que vira na vidente, de suas costas surgia uma asa solitária com penas
negras fazendo a jovem ficar boquiaberta com a cena.
O monstro levantou a cabeça para o céu e de sua boca saíram grandes
pernas como as de uma aranha que começaram a se mexer em direções
variadas de forma repugnante, então a criatura ergueu a mão e enquanto
fazia isso ela puxou Bernardo e apontou. Ele parecia não conseguir ver
nada e ela não conseguia se expressar, o que o deixou assustado tentando
compreende-la. Ela apontou para cima e ele parecia não ver a grande mão
que se aproximava dos dois. A mão parou diante do rosto deles enquanto
ela estava paralisada de medo, sem conseguir mover um músculo e ele
encarava perdido buscando o que ela mostrava. O olho se abriu e a encarou,
ela desmaiou.
Quando acordou estava em um hospital. Ao seu lado estava Bernardo
dormindo e próximo a ele sua mãe fazendo o mesmo. A única pessoa
acordada era Alfonso que lia seu diário que dera e ela e tomava uma xicara
de café em silêncio.
– Aconteceu? – perguntou Alfonso.
– Sim. – ela respondeu cansada – Dormi por muito tempo?
– Três dias.
– Por que isso está acontecendo?
– Ele te escolheu...
– Para o que? – ele parou de ler diante da pergunta dela.
– Eu não sei... O mesmo ocorreu comigo, ele me perseguiu durante
um bom tempo e depois parou.
– Simples assim?
– Não... Sofri muito diante da presença dele, da perseguição dele...
Ele interrompia muitos dos momentos e só tive paz quando ele partiu.
– E porque ele te seguia? O que ele quer?
– Ele quer nos induzir a fazer algo para ele, ele não parece ter efeito
sobre nosso mundo de maneira direta.
– Ele tapou a luz da lua.
– Não totalmente direta quis dizer.
– Ele quer nos induzir a fazer o que? – ela perguntou e Alfonso
permaneceu em silêncio – Fale.
– Ele te toma como hospedeiro, creio eu. Seguir você e te obrigar a te
levar onde ele deseja ir para conseguir uma meta um tanto quanto terrível...
– Que meta seria essa?
– Nas figuras antigas demonstram que ele instruiu o faraó e através
disso criou uma espécie de filho, uma besta. Ele já o fez antes, no Egito
antigo. Agora parece desejar fazer de novo...
– Com que intuito? Adentrar em nossa realidade? – ambos olharam
enquanto a enfermeira veio até o quarto e trocou o soro dela, saindo em
seguida. Bernardo e sua mãe ainda não tinham acordado, tanto Alfonso
quanto ela pareciam estar gratos por isso.
– Não sei, acredito que ele queira outra coisa, seus motivos são
obscuros.... Ele nunca tentou me ferir, mas me induzir e coagir. Talvez
esteja apenas se divertindo conosco.
– Isso não tem sentido.
– Nunca brincou com besouros ou formigas?
Ela ficou calada refletindo.
– Todos esses anos podem ter sido apenas diversão para ele e sua
verdadeira razão de estar aqui é o puro prazer e diversão em manipular
nossas vidas. Talvez, nossa história...
– Quando ele o abandonou?
– Eu não sei exatamente a data, perdi as anotações sobre aqueles
tempos, mas suas visitas se tornaram esporádicas durante um ano inteiro,
até desaparecerem de vez e eu finalmente ter paz. Muitas vezes tive medo
de seu retorno, mas nada ocorreu.
Ambos ficaram quietos enquanto ela pensava olhando para Bernardo com
a cabeça recostada no travesseiro.
– Não recomendo que conte a ele. – Alfonso se levantou e foi até ela
pegando em sua mão – Não queremos ferir de nenhuma forma aqueles que
amamos, minha querida.
– Mas sou eu que estou sendo perseguida. – ela falou e ele deu uma
pequena risada.
– É verdade, mas como acha que ele vai se sentir se não puder
enfrentar isso? Nós homens somos mais sensíveis que parecemos com
nossas mulheres.
– Não sou mulher dele.
– Ohhh, claro que não. – ele sorriu e lhes deu um beijo na testa –
Seja feliz como puder e deixe que eu e você lidaremos com essa coisa.
Ele começou a se dirigir a porta.
– Qual o nome? – ela perguntou.
– Do que? – Alfonos se virou para olha-la.
– Da criatura, do gigante?
– Eu chamo apenas de Antigo. – ele deu de ombros e acenou em
despedida.
– Antigo... – ela viu Bernardo abrir os olhos devido ao som da porta
se fechar e sorriu para ele enquanto ele coçava os olhos.
...
Ela vestiu a blusa de tecido branco fino, em seguida calçou a calça de
couro e as botas, por último o sobretudo e um cachecol no pescoço. Estava
quase pronta.
– Esqueceu isso. – o vampiro lhes jogou um chapéu preto de abas
curvadas com penas e flores negras de tecido como enfeite em sua fita.
Ela olhou admirada para a peça e a pôs sobre sua cabeça.
– Agradeço pelas roupas. – ela falou.
– Vai agradecer mais por isso. – Eren trouxe uma caixa grande de
madeira e a abriu sobre a cama derrubando várias armas sobre ela.
A dama notou um rifle com entalhes em prata, duas pistolas, duas
machadinhas, um sabre, uma grande faca com coldre e caixas de balas,
todas de prata.
– Você vai precisar. – ele disse tocando no próprio sabre na cintura e
apontando para ela pegar tudo.
Assim ela o fez, passou o cinto com o coldre na cintura, pondo as pistolas
nas laterais e as machadinhas as costas. Em seguida passou a bandoleira do
rifle pelo tronco pendurando-o as costas e finalizou tudo com o sabre, como
a lâmina prateada era fina só precisou encaixa-lo em seu lugar e ele coube
perfeitamente. As balas foram para os alforjes e para os espaços no
cinturão, estava pronta.
– Por que está me armando tanto? – ela perguntou enquanto desciam.
– Você ainda não faz ideia do que você vai enfrentar não é mesmo? –
ele perguntou.
– Eu? Pensei que iria comigo até o príncipe.
– Não, iremos nos dividir e nos encontrar lá, logo você entendera o
do porque.
Na sala ele sinalizou para o garoto os acompanhar. Quando saíram a rua
estava escura, mas não demorou para estarem a luz dos postes. Não havia
neblina, apenas o vazio e Eren parecia despreocupado enquanto
caminhavam.
– Seu “território” é bem quieto. – a dama falou olhando para as casas
de luzes apagadas.
– Todos dormem a essa hora, mas de dia também é o mesmo. – o
vampiro explicou – É o bairro mais tranquilo, poucas vezes feras caçam por
aqui ou invadem as casas de meus moradores.
– Feras?
– Por que acha que lhes dei tanta prata?
– Porque é caro e você é rico?
– Não aja assim, não combina com você. – Eren revirou os olhos –
Esse é o bairro chamado de “Canto”, nada significativo acontece aqui em
tese. O dia é mais perigoso é claro, mas em Cecidit o dia só dura quatro
horas e a noite muito mais que isso.
– Por que?
– É um fenômeno extraordinário. – ele deu de ombros – Como dizia,
aqui no Canto, pouco acontece e todos estão sobre minha proteção. O
hospital não fica muito longe, ficando no próximo distrito e temos até uma
pequena igreja, que claro, não se compara a central e está em ruinas, mas o
que conta pontos é a estrutura correto?
Ela não respondeu, apenas analisava o silêncio e o ressoar dos seus
passos enquanto cruzavam as ruas guiados por Eren que parecia saber
exatamente onde chegar.
– Quero saber mais desse lugar. – ela falou enquanto cruzavam uma
rua escura.
– Claro que quer. – Eren deu de ombros quando parou de súbito e
seus olhos violetas brilharam – Não devem vir ao meu território.
Uma sombra se fez na saída da rua e os três puderam ver um grande
monstro curvado com sua cara de lobo e baba escorrendo de sua boca. E
atrás ouviram o rugido de outro que a fez sacar o rifle e aponta-lo.
– Animais. – falou Eren estalando os dedos – Não dispare... Se
retirem.
O lobisomem atrás deles ficou de quatro e saltou sumindo na esquina. O
que interrompia o caminho dos três apenas os encarou com os olhos
brilhantes, partindo por fim. O garoto que havia abraçado a dama com
medo se afastou e respirou finalmente aliviado.
– Eles entendem o que você diz? Como? – indagou ela.
– Controle mental, persuasão, as palavras em meus lábios são mais
finalizadoras para meu próprio cérebro. – eles seguiram andando – Velhos
costumes nunca nos deixam.
Quando chegaram a uma área de cortiços e prédios colados o garoto
correu para uma das barracas deixando os dois parados diante das várias
barracas e fogueiras onde pessoas pobres se alimentavam e se aqueciam. O
menino abraçou a mãe que os encarou e sem demonstrar nenhum gesto de
agradecimento recuou para dentro de seu barraco deixando-os ali
observando o lugar que refletia pobreza de todos os ângulos.
– Por que perseguiram o pai dele? – ela questionou olhando a cena.
– Porque ele estava são. – Eren a olhou – Curado dessa doença que é
a religião. Vamos tem – antes dele terminar a fala uma grande fera pulou
sobre suas cabeças e começou um massacre rasgando quatro pessoas de
uma vez só com suas garras. O lobisomem uivou chamando outros dois que
saltaram para o meio do lugar e começaram a massacrar as pessoas que
gritavam desesperados – Não fique parada.
Ela sacou o rfile e começou a disparar em um dos monstros enquanto
Eren passou correndo por ela numa velocidade tremenda perseguindo os
outros dois.
O lobisomem que ela mirava começou a correr do lugar e ela o seguiu
entrando nas ruelas e becos que ele se direcionava. Os tiros eram ouvidos
como ecos e o sangue era deixado por onde o monstro passava por carregar
um corpo em sua boca. Assim que ela estava por alcançar, ele largou o
cadáver e começou a escalar um sobrado. Ela atirou e a bala passou
raspando, em um instante ele havia sumido e um corpo estraçalhado de um
velho sangrava no fim do beco.
Ela olhou em volta e recarregou o rifle. Estava se direcionando para voltar
quando ouviu o som das pegadas derrubando tijolos acima de sua cabeça,
ela desviou com um reflexo notável e apontou a arma para onde
supostamente estava a criatura.
Estava brincando com ela, sabia disso, tentaria fazer ela se perder em
encontra-lo para pega-la de supresa, ela resolveu brincar com ele então. Se
moveu para fora da rua correndo e cruzou para a frente de uma grande casa
com jardim, adentrou pelo portão de metal e se postou ali a luz da lua
minguante. Estava em terreno aberto, ele não teria como se basear em se
apoiar em outras estruturas além da casa, só precisava esperar.
Esperou buscando e mirando, haviam três possíveis entradas para ele,
além dos telhados, mas tinha quase certeza que ele viria de uma das ruas.
Nesse instante ela ouviu um grito de dor vindo da casa atrás e se virou com
o rifle para atirar, foi quando a janela do andar de cima se quebrou e o
lobisomem saltou em direção a ela. Atirou. A fera caiu em cima dela com a
bocarra aberta, ela gritou em fúria.
O lobisomem rolou para o lado e estava agonizando e se contorcendo no
chão enquanto o o sangue saia de sua boca, o tiro havia partido a mandíbula
ao meio e saído por detrás da nuca da criatura. Ela se levantou e observou o
grande monstro peludo, depois se voltou para a casa. O grito havia sido de
mulher, se perguntou se deveria investigar. Suspirou e virou as costas, tinha
de voltar.
– Socorro! Socorro! – uma voz feminina chamou de dentro da casa.
Ela suspirou e se direcionou para casa, arrombou a porta da frente. A
poeira se assentava pelos móveis, subiu a escadaria a sua frente e se dirigiu
ao quarto de porta aberta.
Quando entrou viu uma mulher no chão tentando tapar um corte na
barriga, sangrava demasiadamente. A mulher manchava os cabelos loiros
no sangue e chorava desesperada.
– Me ajude, por favor. – implorou ela.
A dama olhou o corte, na situação dela... Talvez Eren pudesse cura-la?
Se não estivesse morto... Mas só o ato de carregar ela até ele, de encontra-
lo, levaria tempo que aquela mulher não tinha... Apontou o rifle para a
moça que começou a chorar.
– N-não, p-p-por favor, não faça isso! – a dama disparou na cabeça
da mulher e se retirou em silêncio do lugar.
Em silêncio vagou pelas ruas buscando o caminho de volta, até que
finalmente encontrou ao reconhecer a estátua de um ceifador. Passou por
ele e chegou até o lugar onde se separara de Eren. Havia mais cadáveres
que imaginava, havia ocorrido ali um massacre. Eren estava no meio de
tudo, sujo dos pés a cabeça no sangue enquanto os lobisomens jaziam
estraçalhados ao chão.
– Pensei que havia lutado para proteger essas pessoas. – ela falou
olhando a quantidade de corpos, incluindo o menino e sua mãe, quis ter um
momento para lamentar, chorar e até mesmo rezar por eles. Permaneceu
imóvel.
– Eu lutei por mim, não por essas pessoas. – Eren se moveu em
direção a ela.
– Não é seu território? Não pagam por sua proteção?
– Poderia ter sido bem pior, acredite, muito pior. – ele falou – Eu me
esforcei para protege-las, não sou perfeito... – deu uma olhada em volta e
seu rosto se contorceu em uma expressão infeliz.
Em seguida ele se dirigiu a uma fonte não muito longe dali, numa
pequena praça em frente ao que parecia ser um museu. Se banhou na água
deixando-a vermelha e sacudiu sua capa negra visando seca-la. Ela o
avaliou, sua beleza sobrenatural lhes causava tanta estranheza quanto
encanto. Por um instante pensou em seu amor... Abaixou os olhos para o
chão e olhou o sangue em suas botas, seriam do monstro ou da dama?
Preferia nunca saber... O que ele pensaria dela agora?
– Você disse que tínhamos de nos separar. – ele concordou com um
aceno de cabeça e sentou-se no banco – Não podemos atacar o príncipe se
não eliminarmos sua influencia da cidade.
– Podemos sim. – ela deu de ombros – E não quero ter de mata-lo, só
preciso do livro.
– Ele não dará nada de bom grado, por isso, me ouça.
– Temos de matar os outros, os filhos dele.
– Filhos?
– Sim... O príncipe tem filhos que estão espalhados por Cecidit e
mantem sua influência sobre tudo.
– Por que você quer matar o príncipe?
– Tudo que faço visa ajudar as pessoas. – respondeu ele direto.
– Como vamos fazer isso?
– Se dirija para a mansão Lintwood, lá vai encontrar um de seus
filhos. Recomendo que no caminho aprenda a matar um fantasma.
– Como?
– Quanto a mim, vou conseguir informações do próximo alvo.
– Você é um vampiro, é poderoso, deveria me ajudar e não agir dessa
forma. Sua força em um combate seria decisiva. – ela reclamou.
– Não posso sair ainda desse lugar, não percebeu ainda? – ele disse
impaciente – Existe um pacto que mantem o equilíbrio dessa cidade, eu sou
o santo e eles os demônios, pelo menos, é o modo como vejo. Eu
provavelmente vou estar no hospital central, é o único lugar que tenho
acesso através de vias secretas, mas se não estiver lá, vou estar no hospital
daqui. São os lugares onde via me encontrar.
– Onde fica o central? – ela perguntou e ele apontou na direção
noroeste.
– Eu levaria horas investigando as localizações, como vou saber que
onde você vai estar?
– Telepatia. – ela ouviu Eren responder em sua mente. – Coopere
comigo e eu prometo que terá seu livro... Se encontrar algum sobrevivente
da loucura do Primogênito, envie-o para o hospital central.
– Por que?
– É território neutro. – Eren se dissolveu então em uma nevoa e
desapareceu por completo.
Ela rangeu os dentes e partiu em sua busca pela Mansão Lintwood. O
miserável nem para dize-la em que bairro ficava... Precisava de um mapa,
um dos bons o quanto antes e só havia um lugar de certeza que encontraria
isso, na biblioteca.
Capitulo 11
Na calada da noite ela seguia pelas ruas de Cecidt. Havia uma luz fraca
da lua no céu enquanto ela corria pelas ruas vazias, sempre se esgueirando
e sempre atenta a presença de qualquer criatura que poderia vir a surgir.
Escalou a escada que estava apoiada em uma casa e dos telhados dela
buscou encontrar um prédio que fosse a biblioteca. Após olhar por bastante
tempo viu um prédio de pedra com a escritura “Library” entalhada.
Desceu do telhado e começou a ir em direção ao lugar com pressa. Assim
que chegou em frente ao prédio notou que suas grandes portas de madeira
estavam abertas, entrou com cautela. Lá dentro tudo parecia no lugar e
arrumado, com exceção de uma trilha de papéis e livros ao chão em certos
lugares, a trilha parecia seguir para cima.
Começou a buscar tudo que pôde sobre a cidade, mas não havia nada
entre os livros, nenhum denotava falar sobre Cecidit. Subiu então as
escadas para a plataforma acima da biblioteca, buscou entre as prateleiras.
Ouviu der repente um farfalhar nas páginas de livros acima. Sacou o rifle e
apontou para o local, apenas folhas velhas voavam do terceiro andar. Não
houve mais som.
Seguiu fazendo a busca quando viu um livro sobre espectros. Pegou-o e o
olhou em silêncio. O abriu e folheou por um tempo. Falava sobre a
presença de espíritos e como eram intangíveis. Leu alguns relatos também
que ali estavam, sobre fantasmas que atacaram ou tocaram pessoas, até
mesmo possuíram. Mas como tocaram se são intangíveis? Isso significava
que talvez só fossem intangíveis quando quisessem. Leu mais, nada sobre
como derrotar.
Fez uma busca mais aprofundada entre os livros e encontrou um
especifico sobre arte das trevas e proteção. Se adiantou logo para seção de
fantasmas, no livro dizia que o único modo de se livrar de um fantasma é
queimar seus pertences. Tinha o que precisava em uma só tacada. Antes de
guardar a obra, buscou sobre vampiros, tinha de se precaver. Não seria tola
de confiar plenamente em Eren assim.
“Vampiros são mutantes e sua origem na ordem das espécie é
desconhecidas, mas devem ser tido como predadores naturais dos seres
humanos. Para derrota-los, o método é de uma estaca empalhadora,
apesar de que o fogo tudo purifica e nada poupa”
Ela guardou o livro de volta na estante, não teria espaço para carrega-lo.
Tinha de achar os mapas da cidade. Seguiu caminhando pelo andar, agora
em direção as escadas para o terceiro, ouviu novamente um farfalhar e em
junção a isso um som como o de um “hummmm” continuo e grave. Sua
pele se arrepiou.
Começou a subir ao último andar preparada para disparar a qualquer
momento. Quando estava no meio da escadaria viu surgir entre as estantes
do terceiro andar uma grande cabeça de gato no corpo de um homem
adulto. Os grandes olhos verdes na cabeça alaranjada olharam para ela e
encararam-na. O homem gato pôs as mãos sobre o rosto e abriu a boca, ela
aguardou e der repente o homem gato subiu no corrimão e se jogou do
terceiro andar. Caiu até acertar a grande cabeça em uma das estantes e
depois o corpo cair no chão morto, o sangue se avolumou a sua volta.
Ela ficou observando o corpo lá em baixo durante um bom tempo, estava
assombrada com a cena. Por fim parou de olhar e subiu com medo de
encontrar algo igual a aquilo. Como as luzes iluminavam tudo, estava grata
a Deus por pelo menos isso. Enquanto procurava passava a língua nos
lábios secos, estava com sede. Encontrou então o que buscava, em meio a
arquivos achou as plantas da cidade, pegou toda a pasta e começou a se
retirar, foi quando olhou para os andares abaixo e viu todas as luzes do
térreo começarem a piscar. Seu coração começou a bater forte e seus olhos
se arregalaram.
Observou então algo surgir dos cantos, dois seres horrendos dos cantos
escuros do térreo. Duas enormes centopeias, mas com um diferencial
horrendo além dos seus enormes tamanhos, tinham faces humanas. As duas
criaturas foram em direção ao corpo do homem gato e começaram a
devora-lo. As luzes no térreo apagaram de vez e as do primeiro andar
começaram a piscar. Ela não esperou, correu buscando uma saída, não
poderia descer para aquele escuro, por isso buscou uma janela.
Quando notou que não iria encontrar nenhuma janela, entrou em
desespero completo, olhou para cima, havia um teto de vidro, tinha de
alcança-lo ou lutar no escuro com aquelas coisas. O andar abaixo ficou
escuro.
Ela subiu em uma das estantes de livros e quebrou um dos quadrados de
vidro do teto. Em seguida saltou para tentar alcançar as barras que
seguravam o vidro. Não obteve sucesso. As luzes começaram a piscar
enquanto ela ouviu o som das patas das aranhas caminharem na sessão em
que ela estava. Entrou em desespero.
Saltou novamente, conseguiu agarrar e apesar das luvas de couro, sentiu
os cacos de vidro entrarem em suas mãos e o sangue fluir. Começou a se
erguer com sucesso e estava quase subindo no teto quando uma mão
totalmente escura de uma das patas agarrou sua perna e a puxou para baixo.
Ela caiu com um grito na escuridão do chão da biblioteca. Removeu com
velocidade uma das luvas da mão que sangrava e arrancou o caco de vidro
com velocidade. Em seguida viu a silhueta de uma das aranhas com rosto
humano pousar a sua frente. A criatura se ergueu em duas patas, ela
disparou com o rifle na face da criatura que gritou e caiu para trás se
agonizando. A luz da lua iluminou a outra que estava caminhando na
estante de livros do outro lado.
A dama se ergueu e correu enquanto a aranha que estava agonizando
gritava com sua voz humana metálica, ela se levantou e se ocultou na
escuridão. A dama voltou a escalar a estante com velocidade, o rifle as
costas. Quando conseguiu chegar ao topo da estante, a mesma oscilou e se
virou com seu peso caindo sobre ela. Uma fileira de estantes começaram a
cair uma sobre a outra como dominó. Por sorte a dama sobrevivera ao
esmagamento da estante, mas os livros caíram sobre ela machucando um
pouco seu rosto.
Irritada por sentir o dolorido na bochecha ficou ali, soterrada, poderia sair
com facilidade, mas preferiu ficar parada. Se perguntou se aquelas criaturas
não estavam violando o território de Eren, mas estaria ela ainda nele?
Ali torceu para que o vampiro aparecesse e a tirasse daquela enrascada,
qualquer pessoa aparecesse e a ajudasse a sair daquela escuridão que
apenas a luz da lua quebrava.
Ouviu o som das aranhas caminhando sobre as estantes derrubadas, como
que procurando por ela, seus passos eram demasiado incômodos e sempre
faziam batidas na madeira com a palma de suas mãos, como para assusta-
la.
– Comer, comer, comer. – repetia uma das aranhas com uma voz
deveras sinistra.
– Comer, comer, comer. – repetia a outra mais próximo de onde a
dama estava.
Ela fechou os olhos e se concentrou, começou a traçar um plano. Se
saísse dali com velocidade, não poderia mais alcançar o teto e a descida,
com toda certeza ela não seria mais rápida que aquelas criaturas. Estava
condenada. Poderia lutar, mas gastaria todas as balas no escuro antes de
acertar algo, tinha certeza. Ainda havia o sabre as machadinhas, no entanto,
qual era o nível de força daquelas coisas? No mínimo deveriam ter uma
força sobre-humana.
– Comer.... Comer... – o monstro falava enquanto se aproximava da
estante dela – Comeeerrrrr.., – o sibilo fez a dama morder os lábios, sentiu
a dor na mão, o caco de vidro fazia-a sangrar e o suor a pele querer coçar.
Estava começando a ficar mais que desesperada, quase desejava que a
criatura a achasse e devorasse logo, a pouparia de todo aquele sofrimento
de esperar a hora.
Sentiu a aranha passar por cima dela e parar por um instante, em seguida
seguir a busca. Quando iriam embora? Uma hora tinham de ir embora... Ou
não...
– Comer, comer, comer. – ela ouviu e ouviu e ouviu e ouviu
repetidas vezes. Comer, comer, comer, comer, comer, comer, comer,
comer. Estava ficando furiosa e o medo começava a deixa-la, estava quase
resolvendo a se levantar e atirar como louca, estava a um passo de fazer
isso, mas não queria arriscar se tinha uma saída melhor, pois sabia que teria
de levantar a estante antes de enfrentar as aranhas e nesse tempo sofreria o
ataque letal.
Ali, no escuro, com livros e uma estante cobrindo-a ela fechou os olhos e
pensou no passado. Nos tempos felizes de amizade e amor... Nunca mais
teria aquilo... Nada daquilo....
– Não se eu morrer aqui. – sussurrou.
O som das aranhas parou no instante seguinte e ela arregalou os olhos
engolindo a saliva em seco. Estupida! ........ Silêncio............ Passos,
pegadas, velocidade. Uma das aranhas vinha em sua direção com
velocidade, a dama levou a mão esquerda, a ferida, a sua boca
vagarosamente. A aranha se posicionou sobre sua estante, caminhando
vagarosamente buscando com um rosto masculino e pálido por ela. Dois
olhos brancos, que ela consideraria cegos se não fosse um pequeno ponto
preto neles, buscavam por ela. Ela aproximou a mão da boca e com os
lábios começou a puxar o caco de vidro.
A dor alucinante tomava seu corpo, ela queria grunhir, mas como o faria?
– Comer. – o rosto se contorceu para gerar a fala e suas mãos no fim
das longas patas pressionavam a madeira enquanto sua cabeça olhava para
todos os lados com velocidade – Comer.
Ela tirou o caco e o soltou da boca sentindo o gosto do sangue. Em
seguida começou a soltar vagarosamente a respiração e a levar a mão
esquerda a pistola, pois a direita estava presa por uma quantidade de livros
que se ela movesse, faria muito barulho, então ela manteve essa sobre o
rifle.
Assim que tocou na arma começou a puxar novamente o ar. Foi quando a
poeira atacou seu nariz. Sentiu uma enorme vontade de espirrar, o peito
começou a rufar e o nariz a se contorcer de dentro para fora. Enquanto isso
acontecia uma gota de sangue da aranha pingou sobre a dama fazendo-a
misturar o momento de repulsa ao desespero pelo espirro que queria sair.
Começou a abrir a boca para espirrar, mas por milagre enfiou o rosto para o
lado esfregando o nariz em um livro fazendo a vontade passar. Suspirou
aliviada.
A aranha acima começou a sair, enquanto o sangue saia de si. Ouviu a
aranha descer da estante, quando isso aconteceu, uma enorme camada de
poeira subiu, os olhos da dama arregalaram, ela espirrou.
– COMER! COMER! COMER! – a aranha gritou retornando. A
dama sacou a pistola e disparou nela enquanto ela tentava alcança-la. A
aranha rolou para trás agonizando e se levantou novamente dessa vez
tentando alcança-la com as mãos pela fresta que as estantes derrubadas
deixaram, dessa vez a dama deu dois disparos com o rifle acertando em
cheio a face do monstro e deixando-o com o rosto estourado e sangrando
um sangue branco ali.
A dama suspirou aliviada. Der repente a estante se ergueu, era a outra
aranha.
– COMER! – gritou ela jogando a estante para frente e indo para
cima da dama que rolou para o lado quando a criatura enorme pousou. A
dama sacou a outra pistola e começou a disparar com as duas contra o
monstro que pulou para o teto e continuou vindo.
A dama apontou para a criatura que saltou por cima dela a pondo contra a
madeira do parapeito. A aranha colocou a mão em sua garganta e
aproximou o rosto de criança do seu com um sorriso. Começou a abrir a
boca e de dentro da boca saíram quatro coisas que pareciam garras e no
meio delas havia vários dentes afiados. Em um movimento desesperado a
dama puxou uma machadinha e cortou a mão da criatura fazendo o monstro
se desequilibrar para frente em direção a ela.
O peso foi demais para o parapeito que quebrou e ambos caíram para o
breu. No ar com um movimento rápido a dama se prendeu a aranha que
tentava se segurar em algo e enfiou a machadinha na face de criança do
monstro. Se chocaram enfim numa estante quebrando-a. A dama rolou para
o lado. Estava no escuro, machucada e no escuro.
Grunhiu de dor e começou a se erguer, seu rifle estava lá em cima, teria
de ir busca-lo. Não havia condições de perder arma alguma, no entanto,
tinha de buscar as pistolas que caíram ali em algum lugar. Pegou um
isqueiro e após alguns instantes as encontrou. Começou a subir de volta,
usando a luz da lua para se guiar.
Após uma longa escalada, pôs o rifle as costas e voltou a descer. Nessa
escalada e descida, estava com tanta dor que estava com os nervos à flor da
pele, qualquer monstro que surgisse sofreria uma tortura sem precedentes
antes de ser mutilado por ela. Quando alcançou o térreo saiu pela porta e se
sentou na escadaria em frente a biblioteca.
Abriu os mapas e fez uma busca pela mansão, não foi difícil. Mas a
cidade era maior que imaginava e tinha mais coisas do que pensava
também. Ela olhou para o céu com poucas nuvens e refletiu por uns
instantes. Esperava que o sol não demorasse muito, no entanto, sabia que
demoraria. Fez um curativo com um pedaço de sua blusa na mão, se
levantou e seguiu em direção a mansão.
...
Seis messes juntos, o tempo que ela e Bernardo tinham. Viviam colados,
faziam de tudo juntos com exceção de assuntos pessoais de família que
Bernardo tinha. Assuntos que ela sempre perguntava querendo ajudar, mas
ele negava explicar.
Em um dia qualquer ela estava voltando do museu e com uma forte ideia
na cabeça. Queria ser arqueóloga. Queria explorar o mundo e se aventurar
por todos os lugares possíveis. As conversas com Alfonso faziam esse
sentimento ficar cada vez mais forte. Foi em uma noite estrelada que
compartilhou esse desejo com Bernardo.
– E se viajássemos? – perguntou ela enquanto olhava o céu estrelado
deitada na toalha junto a ele.
– Para onde? – ele fechou os olhos sentindo a brisa do vento.
– Para todos os lugares do mundo, explorar e descobrir tudo que não
descobriram ainda.
– Parece ser uma viagem longa...
– Mas é! Essa é a ideia. – ela se ergueu para olha-lo.
– Eu não posso fazer isso, querida.
– Por que?
– Preciso cuidar da minha família. – ele respondeu e ambos ficaram
em silêncio.
– Eu entendo... – ela se deitou novamente. – Mas você não cansa
daqui? É sempre as mesmas coisas, as mesmas pessoas...
– É seguro.
– É, é verdade.
Eles ficaram em silêncio.
– Me desculpe, eu nem dei chance a ideia. – Bernardo disse se
sentindo culpado.
– Não, você tem razão. – ela suspirou – Um dia talvez.
– Sim, um dia talvez. – ambos sorriram – Pode me dizer uma coisa?
– Sim?
– O que você viu na floresta? Que a fez desmaiar?
– Não quero falar disso...
– Mas você fala disso com Alfonso.
Ela ficou calado por um instante.
– Está com ciúmes? – ela pareceu surpresa.
– Não, estou preocupado. – ele se sentou e a olhou reflexivo –
Aconteceu naquele dia com a vidente e aconteceu agora.
– Os médicos disseram que não tenho nada, não sei o do porquê da
preocupação.
Ficaram em silêncio.
– Seja sincera comigo. – Bernardo pediu.
– Seja sincero comigo você primeiro. – retrucou a garota e ele
suspirou pegando um relógio de bolso e olhando-o.
– Está no horário, venha comigo.
Ambos saíram dali e pegaram uma carruagem. Durante a viagem ficaram
em silêncio e ela não perguntou nem mesmo quando estavam em um lugar
totalmente estranho para ela. A carruagem parou em frente a um sobrado
modesto que Bernardo sinalizou para que descessem e entrassem. Assim o
fizeram.
A casa parecia antiga e a mobília pobre, mas era bem organizada e limpa.
Bernardo a levou pela sala para o andar de cima e lá a levou por um
corredor que o chão rangia aos passos deles. Ele parou diante de uma porta
e fez um sinal para que entrassem sem muito alarde. A garota se virou
quando ouviu o som de uma porta se abrindo atrás.
– Você a trouxe aqui? – perguntou a irmã de Bernardo, Ophelia,
sobre a presença da garota.
– Estava na hora. – Bernardo respondeu e Ophelia deu de ombros
dando um pequeno sorriso para ela e descendo as escadas. Nunca trocou
muitas palavras com ela.
Bernardo abriu a porta vagarosamente para o quarto, e ela viu uma mulher
deitada na cama. Estava debilitada, magra e com um rosto pálido, seus
cabelos escuros estavam com vários fios brancos, no entanto ao vê-los ela
abriu um belo sorriso de alegria.
– Querido! – ela abriu uns braços para um abraço e Bernardo se
adiantou para abraça-la.
Ele a abraçou e a beijou, em seguida se afastou permitindo sua mãe ver a
garota que sorriu.
– O que está esperando? – interrogou a mãe de Bernardo – Venha cá,
me dê um abraço.
A jovem sorriu e elas se abraçaram. A mãe dele cheirava a menta, isso
fez a garota querer não largar mais ela. Após se afastar Bernardo puxou
uma cadeira e sentou-se, fez o mesmo para a garota, mas ela se negou e
ficou em pé com a mão pousada sobre o ombro dele.
– Mãe, como está se sentindo hoje? – ele beijou a mão da mãe e a
olhou enquanto mantinha a mão dela perto de seus lábios.
– Eu estou muito bem, mais que boa na verdade. – a mãe de
Bernardo sorriu e se jogou para trás nos travesseiros como uma criança.
– Mãe...
– Eu falo sério, não seja chato. Agora me fale, essa é aquela garota
não é mesmo?
– Eu não sei quem é essa garota, mas sou eu. – a jovem sorriu.
– Sim, tem de ser você! É bonita! – a mãe de Bernardo concordou e
ambas riram.
– É ela mãe, é ela.... – Bernardo sorriu suspirando.
– Vem cá, mocinha, sente na minha cama. – a mulher pediu a ela e
ela obedeceu prontamente – Me fale, é verdade que você lutou numa briga
de rua ao lado do meu filho?
A jovem ficou meio perdida sem saber o que responder e olhou para
Bernardo.
– Ora, não precisa se preocupar, ele me conta quase tudo! – a mulher
riu – E pelo que ele disse, você é uma das pessoas que mais sabem lutar
que ele já viu! No mínimo incrível, queria eu ter estado lá para ver tudo
aquilo.
– Não foi grande coisa, eu acabei atingida. – ela respondeu a mãe de
Bernardo tímida.
– Haha, isso é perfeitamente normal. Na minha época, nós
roubávamos pneus de carros e acabei sendo pega uma vez, mas foi só uma
vez. Se bem que – Mãe, por favor.. – Bernardo interrompeu e a mãe dele
suspirou erguendo as sobrancelhas e cruzando os braços.
– Por que não posso contar a sua noiva minhas histórias? – a mãe
dele indagou.
– Ela não é minha noiva, mãe. – Bernardo suspirou novamente.
– É mesmo? – ela indagou para a garota que confirmou com a cabeça
– Pois se adiante então, Bernardo, ou vai perder essa coisa magnifica!
As duas riram e Bernardo deu uma risadinha em resposta.
– Enfim, como está a noite lá fora? – a mãe de Bernardo perguntou
com um sorriso e ele se levantou e abriu um pouco a janela para o ar entrar
melhor.
– Não está perdendo nada. – Bernardo olhou o céu.
– Ora, porque não deixa ela descrever para mim hoje? Sei que está
mentindo, nenhuma noite com um céu desse pode ser ruim.
– Descrever? – a garota indagou olhando para Bernardo.
– Sim. – quem respondeu foi a mãe dele – Eu não posso sair muito,
meus filhos acham perigoso.
– E é. – Bernardo recrutou acostando-se na parede.
– Calado ai. Enfim, eles acham que não posso, então todos os dias
peço que me contem como está lá fora. Hoje, quero que você me conte,
estou cansada desses dois chatos com sua visão de mundo.
– Isso tudo para convence-la? – Bernardo sorriu.
– Cada um tem suas armas, você seu físico e eu minha lábia, me
deixe. – a mãe dele então olhou para a jovem dama ansiosa – Me conte.
– .... Tudo bem... – ela pareceu meio perdida sem saber por onde
começar, mas os olhos da mulher brilhavam, então se esforçou – A noite na
cidade está agitada, eu estava em casa quando o Ber veio me buscar, desci
com velocidade, estava animada.
– Sim, sim... – a mulher se recostou no travesseiro e fechou os olhos
para ouvir.
– Quando saímos, fomos caminhando pelas ruas de pedra. As casas e
postes iluminavam nosso caminho com suas lâmpadas e havia uma
movimentação grande nas ruas, é noite de festival no centro e todos se
dirigiam para lá. Demos uma pequena passada... Lá caminhamos de mãos
dadas, havia muita barulheira, mas boa música, muito boa música e um
cheiro doce de algodão e pipoca no ar. Acho que comi uns dois saquinhos
de pipoca e um grande de algodão doce, estavam tão deliciosos que quando
comi parecia que eu estava no céu. E também, também havia pessoas
dançando na praça, eles dançavam e bailavam como se estivessem em um
enorme salão, foi lindo de se ver... Mas seu filho não quis dançar, sabe
como ele é tímido para essas coisas. – Bernardo fingiu não ouvir e olhou
pela janela sorrindo – Depois fomos para um descampado não muito longe
da cidade, forramos uma toalha sobre a grama e nos deitamos nela. Ali
observamos o céu por um tempo... A brisa estava deliciosa e o ar tão puro
que os pulmões inflavam a toda para sentir. Nossas mãos se tocaram e
mesmo com o vento, tudo parecia tão quente e confortante e o céu, que céu
de matar... Foi uma noite maravilhosa, como sempre é... – ela olhou para
Bernardo que sorriu para ela gentilmente.
– Obrigado. – a mãe dele disse sugando o ar pela boca e sorrindo
docilmente – Quero que volte de novo e me conte mais!
– ... Seria um prazer. – a jovem respondeu.
– Mas agora, precisamos ir, mãe. – Bernardo disse – Preciso leva-la
para casa.
– Claro, claro. – a mãe de Bernardo deu um beijo na bochecha dela e
se despediram.
– Prometo voltar logo. – disse Bernardo.
– Não tenha pressa e foi ótimo conhece-la menina. – a mãe dele
sorriu como uma criança e Bernardo e ela saíram deixando a mãe dele na
cama olhando o céu pela janela.
Após descerem para o térreo encontraram a irmã de Bernardo no sofá da
sala fumando.
– Pensei que houvesse parado. – Bernardo falou.
– Me deixe. – Ophelia respondeu de modo seco.
– Estou indo leva-la para casa, volto logo.
– Eu não ligo. – Ophelia assoprou uma baforada – Leve a plateia.
– O que quis dizer com isso? – Bernardo perguntou franzindo o
cenho.
– O que? Trazer uma garota para ver o estado da nossa mãe como se
fosse um showzinho de entretenimento.
– Como você ousa? – ele falou em tom severo.
– Não, como você ousa?
– Ber... – a garota pegou no braço dele, mas ele seguiu incinerando a
irmão com os olhos.
– Nunca mais fale uma besteira dessa. – Bernardo avisou.
– Ou o que? – Ophelia irritou-se de vez por fim – Vai nos deixar?
– Como?
– É o que vai fazer não é? Nos trocar, previsível, Bernardo.
– Em momento alg – Ora, eu não sou a nossa mãe, mas até ela sabe
que é questão de tempo, aposto que nessa mesma hora daqui a um ano não
vai mais estar conosco. – Ophelia voltou a fumar balançando a perna.
– Eu não vou deixa-las...
– Já nos deixou, só não notou isso ainda. – Ophelia passou por eles e
subiu a escada.
Após isso Bernardo ficou com um ar sombrio e saiu junto a garota da
casa. Na volta para a casa dela, ele pareceu extremamente distante e quieto,
ela se perguntou se deveria quebrar sua casca.
– O que sua mãe tem? – perguntou a ele.
– Não sabemos exatamente. – Bernardo olhou para os calos na mão
distraído enquanto caminhava – Só que não tem cura.
– Mas como não se sabe o que é, amanhã mesmo ela pode ficar bem.
– É sempre uma possibilidade. – ele sorriu de forma doce e a
abraçou, mas era ele que precisava de um abraço – Eu e minha irmã
começamos isso juntos de contar como estão as cosias aqui fora sabia?
Mesmo que só por um minuto, nós contávamos como era esse minuto para
ela, muitas vezes juntos... O tempo passou, e agora só quem conta sou eu.
– Por que?
– As histórias da minha irmã não tem estado das melhores... acho
que ela se perdeu um pouco.
– Se perdeu?
– Elas fazem minha mãe chorar. – Bernardo olhou para o céu e em
seguida para ela que assentiu em silêncio.
– E as suas?
– As minhas... Só tem sido sobre você ultimamente. – ele riu e ela
sorriu em resposta o abraçando mais.
– Sua mãe vai ficar boa, você vai ver....
Eles seguiram em silêncio pela rua.
– Eu gosto muito de você. – Bernardo disse.
– Eu também gosto muito de você. – ela respondeu.
Capitulo 12
Demorou mais do que esperava para encontrar a mansão, mas isso foi
justificado, os mapas eram um pouco datados e a mansão havia se tornado
um orfanato. Ela estava diante dele conferindo suas armas e sempre a tenta
aos arredores, as pessoas ainda se escondiam em suas casas com temor,
dela ou das outras coisas que habitavam a cidade. Chegou a ver mais uma
daquelas aranhas e até um grande monstro que se ocultava por detrás de um
pano, mas nenhum desses atacou ela pois estavam concentrados em devorar
suas vítimas já mortas.
Ela estava pronta. Abriu a porta da frente e ascendeu o lampião que
trouxera consigo. Se viu em uma sala escura, após dois passos a porta atrás
dela se fechou, ela se virou pronta para atirar com a pistola, mas não havia
ninguém. Sorriu, estava nervosa de medo e ao mesmo tempo excitada pela
curiosidade do que a aguardava ali.
Seguiu pela sala, passando por vigas onde encontrou manchas de sangue
secas, iluminou o chão e encontrou três corpos, uma mulher e duas
crianças, sendo a mulher ter sido partida ao meio. Querendo vomitar,
amarrou um lenço vermelho no rosto e seguiu caminhando sobre o piso
sujo de cerâmica. Até que chegou ao tapete da escada, subiu a escada
observando os quadros de homens e mulheres nobres, ignorou
completamente seus nomes e sua história, apesar de curiosa, estava ali por
um fantasma.
No corredor começou a checar as portas, a maioria estava arrombada ou
abria com um leve girar da maçaneta. No entanto, os interiores só
demonstravam lugares destruídos e cadáveres mortos das mais variadas
formas, além de esqueletos que pareciam estar a eras ali. Ela voltou ao
corredor e seguiu caminhando.
Nessa caminhada viu uma imagem no fim do corredor. Uma forma
espectral e brilhante se mostrava para ela. Logo notou que eram duas
crianças espectrais de mãos dadas que a olhavam. Os fantasmas pareciam
ter sido feridos, um não tinha metade da cabeça e o outro não tinha um
braço. Ela apontou a arma, mesmo sabendo que não poderia feri-los. Então
outra imagem surgiu por detrás deles, uma lâmina passou cortando-os e
varrendo-os.
Tudo sumiu. Pensou em sair dali naquele momento, mas tinha de
continuar, tinha de encontrar o fantasma e tinha de destruí-lo queimando
seus pertences. Mas quem seria o fantasma? Seriam aquelas crianças? Ou
outra coisa? Caminhou na direção de onde as crianças haviam aparecido e
se viu diante de uma grande porta. Abriu-a.
A luz da lua entrava pelas janelas e iluminava a sala de jantar. Em um
canto da sala ela ouviu um choro. Caminhou com cautela e prestou atenção
na figura que estava ao lado da lareira chorando. Apontou a pistola e
destravou-a.
– Quem é você? – perguntou.
A figura se virou para ela. Era um homem, jovem e assustado. Ele ergueu
as mãos e foi até ela de forma desesperada.
– Meu Deus, uma pessoa, uma pessoa! – o rapaz limpou as lágrimas
– Meu nome é Elliot, estou preso aqui, estou preso.
– Preso?
– Eu tenho medo, medo de andar por aqui, fui avisado para não vir
para esse lugar, mas tinha pessoas aqui, eu juro que vi na janela e quando
entrei, não consegui sair.
– Por que não quebrou um dos vidros e saltou para fora?
– Fora? Não existe saída para fora. – ele apontou para as janelas e
der repente a luz da lua enfraqueceu e uma escuridão tomou o mundo lá
fora. Como se tudo tivesse apagado.
– Mas a lua, eu a vi, estava ali, iluminando. – ela se aproximou das
janelas e as estudou, em seguida chutou o vidro, nada aconteceu – Merda...
– Compreende? Estamos no mundo dele, no mundo dele!
– De quem?
– Do homem, do homem do saco. – ele chorou.
– Homem... Homem do saco? – ela quis rir, mas ficou séria quando
viu sua expressão.
– Ele, ele que matou todos aqui, foi ele, ele entrou aqui e matou
todos do orfanato. Tomou esse lugar como lar, foi o que me contaram, juro,
juro por tudo que é mais sagrado.
– Certo. – ela pôs o lampião sobre a mesa – Preciso saber, onde estão
as coisas dele, preciso destruí-las para que ele morra.
– Eu não sei...
– Certo. Onde ele está? – ela perguntou tentando não olhar para a
escuridão além da janela.
– Ele vaga pelos corredores.... Espere, existe uma sala, lá embaixo,
onde se tem pilhas de sabão.
– Pilhas de sabão...? – ela raciocinou por um instante e se lembrou
sobre a primeira vez que ouviu falar do homem do saco.
Ele pegava crianças na rua e a as transformava em sabão... Nesse caso,
sua gordura.
– Eu estou indo até lá. – ela se moveu em direção a porta.
– O que? Você está louca?! Ele vai mata-la!
– Ele está entre mim e meu marido. Não se intrometa. – ela
respondeu e abriu a porta.
Ele a seguiu. Foram caminhando pelo corredor e desceram por um lance
de escadas, estavam no térreo. Ela chegou até o que deveria ser a porta da
cozinha, mas essa tinha escombros na frente.
– Deve haver outra entrada. – falou pegando as plantas e dando para
o rapaz segurar a lamparina.
Checou as plantas e encontrou uma entrada que passava por um dos
quartos e por fim em um pequeno corredor. Pensou como as crianças
deveriam ter se divertido usando aquela passagem para roubar comida. Se
ergueu e seguiu em direção ao quarto.
Sendo a única luz no lugar, ambos entraram em um quarto escuro, com
vários beliches sujos e quebrados. Caminharam entre as fileiras, até que
pararam no meio do quarto por causa do rapaz que a cutucou. Ela se virou e
olhou para onde Elliot apontava. Um garoto estava sentado, pálido e com
sangue pingando de sua boca no piso, ela não tinha notada o som do liquido
caindo ali até agora.
Ela sinalizou para Elliot que seguissem caminho, mas ele não conseguia
se mover. Olhou então para suas calças, havia se mijado. Incomodada o deu
um puxão e ele correspondeu o movimento seguindo-a. Foi quando o vulto
do menino passou correndo gritando por eles, aquilo fez ambos darem
grunhidos de susto. A criança desapareceu na escuridão, mas outro som se
fizera atrás.
A porta ao fundo havia sido aberta e fechada. Tinha mais alguém na sala
com eles. Ela tomou o lampião da mão de Elliot e sacou a arma apontando
para o escuro. Foi quando ouviu pisadas e um arrastar.
A dama ficou ouvindo os passos enquanto Elliot estava tão perto dela que
dava para sentir sua respiração em seu ombro. E passo por passo ela ficou
com a arma pronta para disparar. Logo os passos pararam e os dois pararam
de respirar na expectativa do que espreitava ali. Ela direcionou a lamparina
um pouco mais para baixo e viu no fim da luz dois pés grandes com unhas
longas e pútridas. Em seguida ergueu o lampião para o alto e disparou sem
pensar duas vezes.
A bala acertou o peito do homem do saco, mas pareceu só faze-lo dar um
leve recuo no tronco com o som de metal atingindo metal. A criatura era
um homem um pouco mais alto que ela carregando um enorme saco nas
costas e seu corpo era coberto por um pano sujo bege, sua pele era
avermelhada e tinha uma barba grisalha, a cabeça careca, um rosto quase
humano se não fosse os olhos dilatados e a bocarra carregada de dentes
afiados em um sorriso. O homem ficou encarando ela e ela fez o mesmo,
ambos ficaram assim até que ela apontou a arma para o rosto dele e fez um
disparo.
A bala atingiu entre os olhos do homem do saco fazendo sua cabeça
pender para trás. Ela se recuou um passo para trás e enquanto ela fez isso a
cabeça dele voltou para o lugar. Quando ela viu que do buraco do tiro saiu
uma gosma branca em tom de amarelo e não sangue, ela chutou ele e fez
mais um disparo, puxando Elliot pelo braço para correrem para longe dali.
Nem mesmo chegou próxima a porta e já chegou arrombando-a com um
chute. Assim que a atravessaram se viram em mais um corredor, ela se
virou e deu mais dois disparos contra o escuro. Não prestou atenção no que
atingiu e seguiram correndo pelo corredor até chegarem na cozinha.
– Temos de impedir a passagem dele. – ela falou iluminando em
volta e ouvindo os passos que se aproximavam.
– Mas como?! – ele gritou desesperado.
– Me ajude aqui. – ela viu um grande armário e ambos o derrubaram
na frente da porta, em seguida viram a porta que dava para o porão –
Temos de seguir para o porão!
– Não, eu não vou para lá! Sem chance!
– Como? Ficou louco?
– Eu vou me esconder e ele, ele nem vai me encontrar. – ele falou
olhando em volta, nesse momento ela acertou um soco em seu rosto.
– Cale a boca e me siga! – ordenou ela enquanto ele limpava o
sangue dos lábios.
– Sem chance!
– Que se foda você então! – impaciente ela abriu a porta para o porão
sentindo o cheiro de decomposição misturado ao de sabão e desceu as
escadas metálicas com velocidade.
Se viu em uma sala iluminada por um fogão a lenha, barras de sabão
empilhados e corpos de crianças amarrados na parede com as barrigas
abertas. Vomitou. Após limpar o vômito pegou um pedaço de lenha aceso e
sentiu der repente no palpitar do coração uma lágrima descer em seu rosto.
A cena não era só horrenda, era de enche-la de tristeza e ódio.
Tinha de destruir aquilo tudo.
– Você é um fantasma não é mesmo? Tenho de destruir tudo seu não
é? Que tal tudo isso bastardo! – começou a atear fogo nos cadáveres e na
lenha não queimada, levou a chama consigo para as escadas quando viu ele
ficar entre ela e a porta, no topo.
O homem olhou para a chama consumir o local e a encarou. A fumaça
começou a tomar o lugar e ela apontou o tacho de chama para ele.
– É sua vez. – disse com um olhar mortal.
A criatura começou a descer as escadas balançando o maxilar como se
esse tivesse solto e ela foi para cima do monstro disparando com o
revolver. Apenas uma bala acertou seu ombro, quando ela se aproximou
havia descarregado a arma, ela então moveu o archote em direção a ele,
mas ele respondeu segurando o braço dela e a ergueu no ar.
O archote caiu de sua mão e ela buscou sacar o sabre. Enfiou a arma
dentro da goela do monstro que grunhiu e a deixou cair no lance de escadas
atrás dele. Após isso ela correu para fora dali e fechou a porta. Foi quando
se esbarrou em Elliot que gritou e levou um outro soco no rosto devido ao
susto que deu nela.
– Me desculpe! – ela disse tentando respirar – Como ele não te
achou?
– Me escondi na despensa. – ele respondeu e ela viu seu rosto suado
devido a luz da chama que começava a consumir a porta.
– Temos de sair, agora. – ambos correram para fora da cozinha e se
viram no corredor. Não havia janelas e atravessaram pelo quarto dos
garotos até chegarem ao próximo corredor onde as janelas iluminavam o
lugar pela luz da lua.
Ambos quebraram os vidros. Ela saiu pela janela para o jardim do lado
direito da mansão e ele começava a sair. No entanto, algo o agarrou e o
puxou para dentro. Um fantasma de um garoto o segurou contra a parede e
começou a arrastar Elliot pelo chão.
– ME AJUDE! – gritou ele.
Ela observou enquanto o fantasma carregava o rapaz para a sala de jantar
e ficou boquiaberta com a cena. Refletiu por um instante e resolveu entrar.
Pulou de novo a janela e se assombrou quando viu que a fumaça já saia da
cozinha. O fogo se alastrava rápido. Correu atrás dos gritos de Elliot
carregando seu revolver e xingando o máximo que sua boca permitia.
O fantasma levou Elliot sobre a mesa e começou a arrasta-lo pela
escadaria machucando seu rosto e fazendo-o desmaiar. Ela seguiu gritando
atrás. Quando atingiu o topo das escadas viu que o fantasma levou Elliot
para um dos quartos. Parou por um instante para respirar e se direcionou a
ele.
Dentro do quarto velho e acabado Elliot jazia no chão. Ela se aproximou
e checou sua respiração. Estava morto.
– Vocês me fizeram perder tempo. – ela falou se erguendo e a porta
atrás se fechou, um dos fantasmas surgiu e ela se virou para ele – Todo esse
lugar vai arder em chamas, ficar em meu caminho ou a morte dele não
muda em nada... Nada mesmo... A morte só afeta aqueles que estão vivos,
pareco viva o suficiente para você?
O fantasma do garoto a observou em silêncio com seus olhos vazados.
– Fique em paz e deixe o fogo te libertar. – ela falou caminhando em
direção do fantasma enquanto ele desaparecia. Ela deu uma última olhada
para Elliot e suspirou.
Foi até ele e o pôs nas costas tirando-o dali. Quando saiu pela porta da
frente o fogo se alastrava por toda a mansão. Enquanto assistia a cena ela
postou Elliot apoiado numa cerca e começou a cavar com uma pequena pá.
Enquanto cavava a mansão queimava e enquanto queimava ela apenas
depositou a terra sobre o corpo do rapaz. Não fez uma cova, apenas pôs
terra sobre o corpo, em meio aquilo tudo, não queria que nada passasse
batido.
Se sentou encostada em um poste, resolvera ficar ali até amanhecer. Foi
quando das chamas ela ouviu um grande estrondo. Em meio ao fogo o
homem do saco vinha em sua direção. Assombrada com a cena de ver a
criatura incólume caminhar com sua espada em mãos ela se contorceu em
medo. O homem arremessou o sabre para ela e em seguida enfiou as mãos
por debaixo do pano que protegia seu corpo, de lá removeu um longo e
afiado pedaço de metal. Como uma lâmina de barbeiro.
Ela pensou em fugir... Pensou mesmo, mas ainda restava fúria dentro de
si. Se levantou pegando o sabre e o encarou. Balas não matam, espadas,
fogo. Ele não era um fantasma, afinal, os seus supostos pertences
queimavam ao fundo. Então o que ele era? Isso não importava, tinha de
mata-lo, mas como?
Ele atacou primeiro, veio correndo segurando o saco e a lâmina. Ele a
girou sobre a cabeça e desceu com ela em direção ao rosto dela que saltou
para o lado. A lâmina dele cortou o poste ao meio desligando sua luz e
fazendo-o cair no chão. Ela observou assombrada, mas manteve a
concentração.
O homem do saco correu em direção a ela fazendo um novo ataque, dessa
vez da direita para a esquerda, ela se agachou e sacou a pistola disparando
contra ele. As balas acertaram seu peito. Mas o som, o som era de metal...
Os olhos dela arregalaram com o reconhecimento. Ele estava usando uma
placa de metal, mas por que? Não teve tempo de se responder, a lâmina
voltou contra ela, no entanto, ela pôs a espada ao lado de seu corpo e
aparou o golpe numa atitude estupida.
O sangue fluiu do seu braço enquanto seu sabre prateado segurava a
longa lamina dele. O homem do saco sorriu com sua bocarra e puxou sua
arma fazendo o sangue fluir do braço dela que gritou de dor. Irritada ela
correu em direção a ele o surpreendendo pela decisão e cortou na altura do
ombro. Ele recuou sem entender o movimento dela. Foi quando parte do
tecido que ocultava o corpo dele caiu junto com a placa de metal que ficou
pendurada mostrando o peito dele nu.
– Você não é um monstro ou fantasma. – ela avaliou o peito nu dele
– É apenas um assassino... Como eu. – ela correu em direção a ele e ele fez
o mesmo. Parecia que as lâminas iam se chocar com um estrondo, mas ela
só fez desviar e disparou no peito dele, ele parou. Ela descarregou a arma
no peito do homem do saco – A maior diferença entre mim e você, é que
por alguma razão você foi modificado.
Ela então afundou a lâmina do sabre no peito onde havia feito os
disparos. A gordura saiu e junto com ela sangue, sangue aos montes. Ela
puxou o sabre e o homem do saco caiu. Ela observou enquanto ele tremia
na poça de sangue e gordura, enojada pela cena cuspiu nele. Olhou então
para as chamas do orfanato e se dirigiu até elas. Pegou um tacho de fogo e
voltou a ele enfiando o pedaço de pau em chamas na cabeça dele
transpassando-a. Dessa vez, ele queimou, junto a fúria dela. Ela se deitou
ferida no chão permitindo os longos cabelos se libertarem do chapéu que
caiu e fechou os olhos. O dia começava a amanhecer em Cecidit.
Camilla: O senhor deveria tirar a máscara.
Desconhecido: Deveras?
Cassilda: De fato, é hora. Todos colocamos de lado nossos disfarces, exceto o senhor.
Desconhecido: Não uso nenhuma máscara.
Camilla: (Apavorada, ao lado de Cassilda.) Nenhuma máscara? Nenhuma máscara!
O REI DE AMARELO, Ato I, Cena 2.
- O Rei de Amarelo; Robert W. Chambers (1895)

Segundo Ato
Capítulo 1
Ela estava em frente a uma casa, sentada no banco duro de pedra olhando
os mapas e plantas, estava memorizando tudo que podia. Havia adquirido
essa mania quando começara a viajar e seu único material de leitura eram
os mapas. Com isso, seu cérebro foi treinado, era como memorizar um
labirinto, na verdade, como memorizar seu próprio bairro, a diferença era
apenas que as coisas marcantes do bairro era apenas a organização das
letras e palavras.
Após um tempo sentiu o corpo que já estava dolorido, gritar com ela.
Precisava descansar e comer. Começou a se dirigir pela rua enquanto o sol
nascia vagarosamente mudando a tonalidade do céu para o azul. Estava se
dirigindo ao território do doutor vampiro, quando começou a notar as
pessoas saírem de suas casas e começarem sua rotina. Reparou que todos a
encaravam enquanto faziam isso, como se ela fosse uma espécie de animal.
Notou então que paravam de varrer, conversar, comer e alguns assim que
colocavam os pés para fora de casa paravam instantaneamente e a
encaravam. Começou a ficar assustada e adiantou o passo. Quanto mais
rápido andava, mais nervosa ficava, estava cogitando sacar a arma e
disparar nem que seja para cima para afastar os olhares.
Logo estava sozinha de novo, quando entrou em um beco. Seguiu por ele
e viu um gato fugir de um cachorro sarmento. Sentiu o cheiro do esgoto e
soltou um pequeno palavrão.
Quando se viu no território de Eren, reparou que era mais vazio que os
outros em questão de pessoas a caminhar pelas ruas. Ignorou o detalhe.
Sem demora chegou em frente a casa de Eren. Lembrou que teria de
arrombar, mas assim que começou a forçar a fechadura ela magicamente
entrou. Não se surpreendeu. Entrou e fechou a porta trancando o mundo de
malucos do lado de fora.
Ali na casa de Eren buscou tratar suas feridas e se alimentar. Achou com
facilidade tudo que precisava para se curar e na cozinha bebeu leite e
comeu grandes porções de carne e queijo. Além de comer de um bolo que
ele tinha sobre a mesa. Havia se esquecido completamente do medo de
comer a comida do vampiro, só lembrou quando estava deitada no sofá de
barriga cheia. Se fosse morrer, bem... fechou os olhos e aguardou. Apenas
dormiu.
Quando acordou já estava escurecendo novamente, ficou atordoada, por
quanto tempo dormiu? Se lembrou que o dia em Cecidit durava apenas
quatro horas e ficou mais atordoada ainda. Ficou sentada no sofá pensativa.
Lembrou-se do seu amado.... os dias belos que teve com ele.... as vezes
em que com medo o acordou no escuro do quarto e pediu seu abraço, as
vezes que chorou pelas amizades que perdeu e as vezes que... Estava
chorando.
Após esse momento, levantou-se irritada consigo mesma. Para ela, todo
aquele chororô era um empecilho, uma fraqueza que atrapalhava em sua
meta.
Subiu para o quarto de Eren, tinha uma certa curiosidade. Ao entrar no
quarto parou com o susto. O vampiro jazia sobre sua cama com os olhos
abertos mirando o teto. Ficou parado por um minuto até notar que ele
estava em algum transe e se aproximou do dossel. Quando chegou ao lado
dele pôs os dedos abaixo do nariz da criatura, havia uma respiração quase
indetectável. Passou as mãos em paralelo aos olhos dele, nenhum
movimento. Por fim se afastou reparando nas veias em sua testa, estava
mais pálido que o normal, talvez fosse a falta de sangue?
Após a cena, resolveu não se arriscar em explorar o luxuoso quarto e
desceu para o térreo. Estava na hora de sair, mas qual o próximo território?
Eren não havia lhes falado. Pensou em esperar até o horário de interroga-lo,
quando viu um grupo de pessoas passar pela rua como uma procissão.
Todos vestiam mantos brancos com a imagem de um rosto branco de olhos
pretos como emblema. Ela observou em silêncio.
Vendo a cena, a dama saiu pela porta da casa e seguiu a procissão ao
longe. Estava intrigada com a cena. A noite estava chegando, mas eles não
pareciam temer nada enquanto caminhavam com seus robes.
Ela os seguiu e logo notou que chegaram ao centor da cidade, onde
estavam diante da enorme catedral. O sino tocou. Enquanto o sino tocava
acima ela olhou para as cadeiras que eram postas diante de um grande
palco com cortinas e tudo que se espera. A catedral de pedra cinzenta
carregada de gárgulas e adornos parecia ser ofuscada pelo grande palco e
suas luzes.
As pessoas se amontoavam e se sentavam nas várias fileiras de cadeira
que tomavam toda área verde que deveria ser o lugar. Ela se manteve
afastada na esquina, quando visualizou uma grande caravana vir da avenida
que levava ao castelo. A frente da caravana homens com armaduras
medievais com mais de dois metros de altura seguiam a frente com longas
lanças e no meio mais deles carregavam a grande caravana de tecido
dourado que ocultava quem estava dentro. Eles se dirigiram com seus
cavaleiros, sacerdotes e freiras a uma torre que ficava ao lado esquerdo do
palco. Lá pararam.
Ela não pôde ver quem desceu, mas todos na praça se ajoelharam em
direção a torre a qual também era coberta por cortinas que ocultavam quem
estava em seu interior.
Ficou parada observando enquanto os tons de alaranjado se despediam e
a escuridão se aproximava. Todos estavam sentados em silêncio olhando
para o palco. Enquanto faziam isso, ela se armava e deduzia que quem
estava naquela torre não poderia ser ninguém menos que o príncipe. Era
uma oportunidade.
Se esgueirou até próximo a torre com total cuidado. Havia dois grandes
cavaleiros a porta com suas lanças. Não poderia mata-los sem invocar uma
zona contra ela ali, teria de ser diplomática. Mas existia diplomacia naquela
cidade?
– Hoje vamos encenar uma grande peça! – ouviu então o anuncio
vindo do palco para a plateia silenciosa – Em honra a esse dia glorioso,
vamos encenar o Rei de Amarelo.
Já havia lido sobre o Rei de Amarelo, na verdade, havia lido pouco tempo
antes da morte de seu amado e muito tempo atrás na juventude quando lia
várias peças para se distrair. Achara simples, mas extremamente criativo,
era uma obra que beirava a perfeição, no entanto, as consequências de sua
leitura eram um tanto quanto exageradas. Ela suspirou, pelo menos eles
tinham bom senso.
Ela olhou para os homens de armadura e foi em sua direção enquanto o
apresentador falava.
– Desejo falar com o príncipe. – a dama disse com autoridade, mas
eles não moveram um musculo e o capacete fechado impediu ela de saber
sua postura – Ele tem um livro que desejo. Um livro dos mortos.
Os guardas seguiram parados e der repente abriram caminho dando um
passo cada um para um lado. Ela passou pronta para sacar o sabre e espeta-
los, mas nada ocorreu. Passou entre os dois gigantes e subiu as escadas.
Quando chegou ao topo o coração parou vendo as figuras que ali se
encontravam. Havia um homem sentado vestido num traje formal branco e
tinha uma grande cabeça de porco que babava sobre sua roupa, ele parecia
entretido com o apresentador. Além dele havia um homem que ela
reconheceu em instantâneo pelo rosto queimado, mesmo em seus trajes de
sacerdote brancos agora, ele demonstrava um sorriso e um olhar que ela
reconheceu de imediato enquanto ria e tecia comentários sobre a
apresentação. Além deles dois, havia o que mais lhes chamou atenção até o
momento.
Um homem que tinha como barba tentáculos de polvo e um capuz por
cima de sua cabeça. Desse homem escorria água por toda sua veste negra
de marinheiro, com um broche de um navio em seu peito. Ela virou sua
visão para mais uma das criaturas ali.
Ao lado de um grande trono de pedra, se sentava uma mulher tão bela que
sua beleza chegava a fazer até mesmo o coração da dama bater. Os pretos
cacheados e a pele de cor negra a hipnotizaram tanto quanto seus olhos
dourados. Ela trajava um vestido dourado que realçava sua beleza delicada
e seu sorriso maquiado fez a dama soltar um suspiro de inveja.
Ao lado desta mulher, como dito, havia um trono de pedra de presença
soturna e densa. A dama caminhou até próximo ele enquanto as figuras
fingiam não vê-la, com exceção do homem queimado. Estava pronta para
matar a todos sacando as duas pistolas. Mas nenhum deles demonstrou
interesse em infligir lhes dano algum. Ela ficou diante do trono enquanto
todos olhavam para a peça pelas cortinas abertas.
– Hoje estamos aqui para saudar o nosso príncipe, em honra ao
Primogênito que nos guia! – gritou o apresentador enquanto ela olhava a
figura – Em honra a tudo que representa o príncipe e seus poderes! Em
honra ao príncipe que nos protege pelo nosso rei!
O príncipe a olhava por detrás de sua máscara branca que lembrava o
rosto de uma coruja. Seus cabelos pretos caiam em seus ombros
entrecortados na testa por uma tiara com belas pedras, seu corpo era
encoberto por uma longa capa dourada enquanto ele segurava um cetro
com um olho em sua ponta. Por debaixo da máscara que não permitia ver
os olhos do príncipe, mas sentir sua presença, ela sentiu uma súbita força
tomar o lugar. Como se o tempo congelasse enquanto os dois se miravam.
O momento durou uma eternidade para ela, como hipnose, era como se ela
estivesse de algo que transcendia a presença humana, apesar do corpo
encurvado do príncipe e de sua mão parecer mais garras do que uma mão
propriamente dita.
– O que desejas? – o príncipe indagou com uma voz tranquila e
serena enquanto todos olhavam a peça que começava.
– Me perdoe interromper seu entretenimento, vossa majestade. – ela
falou de forma educada, fingindo que não sabia que ele tinha conhecimento
do objetivo dela ali, afinal, ele de alguma forma autorizara sua passagem
até ele – Preciso lhes pedir algo de imenso valor para mim.
A figura da mulher ao lado do príncipe se entrelaçou nos braços do
mesmo, mas ele a repudiou com um movimento rápido sem mover a cabeça
da direção da dama.
– O que vem pedir a mim? – perguntou o Príncipe Ducan.
– O livro de Mahoki. – ela foi direta e isso fez ele dar uma pequena
risada por detrás da máscara, ela sabia que ele não zombava dela, por isso
não se irritou. Aquela figura grotesca tinha uma presença de serenidade
plena e sinceridade também.
– Por favor, se sente ao meu lado. – ele pediu e ela se sentou em uma
cadeira a esquerda do trono, queria olhar a peça, mas estava mais
concentrada em observar o cetro na mão do homem – Já viu essa peça?
– Já li.
– Saúdo-a como quase uma igual. – ele a olhou.
– Por que quase como uma igual?
– Homens e mulheres nunca serão iguais, apesar de eu não ser mais
homem.
– E o que você é?
– Eu sou algo quase transcendental. – ele ergueu a cabeça para o céu
de poucas estrelas – Logo serei totalmente.
– Desejo sorte a você... Eu só preciso do livro. Eu fui a tumba e
apenas encontrei sua mensagem.
– Por que?
– Por que o que?
– Por que eu te daria o livro?
Ela olhou para a figura do homem queimado que aplaudia e ria
maravilhado da peça, ele era doentio.
– Ele tem um ritual, pode trazer alguém que desejo de volta. – ela
respondeu sem rodeios.
– Você me magoa. – ele falou repousando a cabeça na palma da mão
e assistindo a peça.
– O que?
– Você matou um dos meus, partiu um coração com isso.
– Está falando do homem do saco?
– Uhum... – ele se recostou no trono.
– Foi necessário.
– Por que?
– Ele matava pessoas.
– Você se hospeda no território dos meus inimigos. – Ducan agora a
olhava – Você me insulta, insulta a minha coroa e meu trono.
– Pensei que o trono pertencesse ao seu pai.
– O trono pertence a quem se senta nele. – ele falou de forma
inquisitiva.
– Seu homem do saco iria me matar.
– Porque você foi até o território dele.
– Por que deixa fazerem o que fazem ao seu povo?
– Porque meu povo faz o que faz a si? – ele fez um movimento
expansivo com a mão, como se tomasse a vida de todos ali e as comandasse
– Todos são meu povo, serão, foram.
– Você fala como se fosse um deus.
– Não pareço um? – ele pergunta a olhando – O que é um deus para
você?
– Eu não sei, mas você não é. E pelo que vejo, é como aqueles que o
cercam.
– Nos considera monstros. – ele olha a plateia – Quando se mata um
filho, se parte um coração. – ele suspirou reflexivo.
– Me dê o livro e não me verá mais. – ela já estava começando a
ficar irritada.
– Não te darei o livro. Você partiu meu coração e se assim eu
desejar, eu não a verei mais. – o príncipe a encarou – Eu tenho uma
proposta a você.
Ela já estava para puxar a arma e atirar ali mesmo na face dele só de
raiva. Ele tinha de lhes dar o livro, que se fode-se quem o que ele
acreditava ser, aquele livro era tudo que ela precisava para trazer seu
marido de volta e mandaria todos naquela cidade para o inferno se fosse
necessário.
– Fale. – a dama disse entre os dentes.
– Saia da minha cidade ao amanhecer e nenhuma fera do velho e
novo mundo lhes tocara ou fará mal se não pisar em suas moradas de modo
descortês. – ela pode ver os olhos dourados no escuro dos da máscara dele.
– E se eu não o fizer? – perguntou ela.
– O segundo ato é o melhor! – gritou o homem queimado aplaudindo
como criança enquanto a dama se voltou o olhar para o público que
começava a parecer que enlouquecia – VEJAM! O SEGUNDO ATO! O
SEGUNDO! É PERFEITO!
– Se você não o fizer. – o príncipe olhou para a multidão que gritava
e se espancava, não demorou para os assassinatos começarem e as pessoas
começarem a adentrar em casas e tirarem de dentro seus moradores para
cometer as mais variadas atrocidades da mente humana. Ninguém estava
sendo poupado. – Se não o fizer vou espalhar suas tripas sobre a entrada
dos portões da minha cidade e mantê-la viva no ato, todos os dias será
alimentada e trada enquanto a mantenho como minha boneca de diversão
para as mais diversas torturas da terra. Antes disso, é claro, lhes darei para
meus garanhões e para mil homens a molestarem e destruírem toda e
qualquer dignidade que guarda nessa sua face impassível diante das minhas
palavras. Sofrerá tanto em minhas mãos que não terá nem mesmo a
capacidade da fala para implorar a morte, não poderá falar, mas poderá ver
e ouvir tudo. Secarei seus olhos das lágrimas e prenderei fios em sua face já
enlouquecida pelo meu toque de forma que nunca poderá expressar
qualquer tipo de sentimento, de forma que os anzóis e fios não a permitam
que expresse o mínimo de contorção na face.... Sofrerá tanto em minhas
mãos que o próprio inferno se apiedara de ti. E no final... No final você
ainda vai desejar beijar minhas mãos quando eu e somente eu lhes conceder
a humilhação de morrer e ser esquartejada pelos cantos desse mundo... O
motivo disso é mais do que simples, suas transgressões, sua ousadia,
apenas o ar que você respira me ofende e eu trarei de arrancar até mesmo
isso de seus pulmões, compreende?
Ela manteve uma expressão vazia e sem demonstração nenhuma do que
sentia em seu interior. Ele levou a mão ao queixo dela apertou fazendo
sangue escorrer de seu rosto. Ela olhou para o homem queimado que ria
aplaudindo a insanidade da praça e em seguida para os outros que se
retiravam, com exceção da mulher que assistia a tudo horrorizada e de vez
em outra usava de um leque para tapar sua repulsa. Por fim olhou para a
máscara no rosto do príncipe e sentiu o rosto ficar vermelho.
– Compreende? – ele perguntou novamente na voz serena.
– Perfeitamente. – ela disse entre os dedos dele o estrondo se ouviu.
Ducan soltou o rosto dela e recaiu para trás no trono com movimentos que
denotavam que não acreditava no que acabara de acontecer. A dama se
levantou segurando a pistola e apontou para ele que a olhava de forma
sórdida. Antes que qualquer um fizesse algo ela descarregou a arma no
peito do príncipe que grunhiu em fúria. Quando sacava a outra, a mulher se
ergueu, mas foi interrompida pelo homem queimado que tomou a frente e
acertou um soco no rosto da dama e a ergueu no ar. Ela tentou se defender,
mas ele gritou com um rosto contorcido em fúria e a jogou de cima da
torre.
Enquanto caia ela disparou contra o homem queimado e contra qualquer
coisa que pudesse. Caiu como uma boneca, leve, magra e pousou no chão
sentindo o choque da queda na grama. O mundo a sua volta era pura
gritaria e perversidade enquanto o palco se incendiava e os atores
queimavam e riam. Ela fechou os olhos.
...
Cada dia mais Bernardo dedicava mais tempo a sua mãe que piorava de
estado e ela tentava acompanha-lo. Mas a doença da mãe dele infestava o
quarto com um cheiro terrível a respiração e mesmo o humor sempre
positivo da mulher não podia manter a situação aceitável. Ela estava
preocupada, pois o tanto que a mãe de Bernardo morria, ele parecia morrer
também.
Raramente ela conseguia faze-lo rir como antes e muitas vezes ele estava
pensativo e tinha diálogos com ela sobre o que faria da vida, sua meta, qual
era sua meta?
Esses pensamentos de Bernardo a magoavam. Não por ele não conseguir
enxergar um objetivo, mas sim por não parecer incluir ela nesse ciclo de
objetivo. Lhes partia um pouco um pedacinho do coração, no entanto,
conversava tranquilamente com ele sobre o tema e até dava opiniões. Eram
amigos antes de amantes. No entanto estava vendo cada vez menos ele e se
dedicando mais a buscar outros hobbies, como leitura, pintura, caminhadas,
pesca com seu pai e até mesmo costura, o que deixava sua mãe orgulhosa.
Certa noite, em seu quarto, ela lia uma peça de teatro com fascínio, peça
a qual ela abandonaria e só voltaria a terminar de ler anos depois, assim
como várias outras de artistas como Shakespeare. A razão para isso fora
que naquela noite em especifico, enquanto sentia menos saudade de
Bernardo que costumeiramente, ouviu uma música vindo de fora de sua
janela.
No começo achou ser uma canção em sua mente, mas logo notou que
realmente estava ouvindo uma música. Se levantou dos cobertores e ficou
em pé, no meio do quarto buscando a origem do som. Quando reconheceu
de onde a triste melodia vinha, acelerou-se em direção a janela. No entanto
ao olhar para fora, não havia nada e o som havia parado. Limpou os
ouvidos com os dedos e voltou para cama quando reconheceu que nada
seria tocado. Apagou as luzes e deitou.
Na cama sentiu o corpo relaxar e o sono começar a vir, fechou os olhos
ansiosa, amava a sensação. Foi quando ouviu o som de novo de música, seu
sistema de alarme despertou, ela ergueu a cabeça do travesseiro e prestou
atenção.
Foi quando reparou que a melodia vinha de dentro do quarto. Com um
rápido movimento buscou a origem do som e não encontrou. A música sem
instrumento definido havia parado novamente... Ela ficou sentada agora.
Olhou em volta, o guarda roupa, a cômoda, o espelho, tudo parecia normal.
Pensou em ir a janela, mas desistiu da ideia e voltou a se sentar. Teria haver
com aquela coisa que viu? Estaria ele lá fora tocando para ela agora?
Querendo assusta-la de novo? Não o temia mais tanto assim, talvez por
nunca mais telo visto...
Foi quando ouviu a melodia de novo. Dessa vez mais alta, se ergueu e
reparou de onde ela vinha. Vinha de seu guarda roupa. Ficou hipnotizada
fitando a mobília em silêncio enquanto ouvia a triste música.
Se levantou e foi até o guarda roupa sentindo um nó na garganta. Parou
diante dele. Que se dane o guarda roupa. Saiu correndo porta a fora do
quarto, no corredor escuro ouviu a música se distanciando e foi direto para
o quarto dos pais, lá não precisou implorar muito para que permitissem que
ela se juntasse a eles. Apesar do pai pedir para ela tentar não se mexer
muito.
No outro dia, pela manhã, após tomar o café e responder o do porque a
saudade fez ela se deitar com os pais, subiu para o quarto. Ao entrar notou
um silêncio não esperado, esperava ouvir a melodia. Se dirigiu ao guarda
roupa e tocou sua maçaneta. Esperou alguns instantes para a coragem lhes
possuir e o puxou de vez. Suas roupas a fitaram, não havia nada ali.
A manhã se seguiu tranquila, almoçou sozinha pois seus pais foram a
casa de amigos e ela se recusou em gastar seu tempo com tal coisa. Na
tranquilidade do almoço finalizado, postou a cabeça sobre as mãos e ficou
na mesa da cozinha pensativa.
Olhou a prataria tão amada por sua mãe, os adornos do armário e sentiu o
sol da janela nas mãos. Sorriu. Começou a pensar então em Pietro, sentia
sua falta... Gregório também, de ambos, que baita trio eles eram... Os
melhores... Pousou a cabeça entre as mãos esticando a pele da face e
pensou em Bernardo. Ele era bonito, disso não havia dúvida, mas estava tão
soturno, em uma constante de tanto faz. Como se não fizesse demasiada
questão dela, o amor não tinha de ser assim. Ela postou as costas no apoio
da cadeira.
Lembrou-se de Alain, riu. Alain, como pôde confiar no francês? E se ele
surgisse de novo pela porta dela? Nunca o desejaria novamente, não era
tola, sabia que se errava uma vez, ele poderia fazer de novo afinal, quando
se erra e conhece as consequências, se erra, mas com mais cautela. Sim,
aprendera isso, riu de novo, que piada era Alain e que piada ela fora
naqueles tempos.
Parou de rir e suspirou olhando para seu prato. Tinha de lava-lo.
Levantou-se e o levou a pia, lavou-o sem pressa alguma, sentindo a água
fluir entre os dedos e banhar sua pele. Assim que fechou a torneira e secou
o prato, guardando-o em seguida, ouviu uma melodia.
Reconheceu de imediato o som, o mesmo da noite anterior. Estava baixo,
como se estivesse no interior de seu ouvido, mas estava lá. Prestou atenção,
o som estava aumentando. A medida que ia aumentando ia foi franzindo o
cenho e reconhecendo sua origem, do seu quarto, obviamente.
Sem pensar duas vezes se dirigiu a porta de casa e saiu. Ficou sentada no
passeio enquanto ouvia a música vinda de dentro. Observou o movimento
típico da rua fingindo que não estava com seu traje de dormir.
– Está ouvindo uma música vindo de dentro de minha casa? –
perguntou a uma senhora simpática que passava. A mulher a olhou com
estranhamento, mas sorriu educadamente e respondeu com uma negativa.
Ficou ali sentada imaginando o que causaria a melodia e quem a tocava.
Refletiu, refletiu, por fim se irritou e entrou. Da sala olhou para as escadas
e para o andar de cima. Tomou uma rufada de coragem e subiu as escadas
ouvindo a melodia que cada vez mais se tornava mais densa e até mesmo
triste.
Ao chegar a porta do quarto olhou em volta e viu recostado num canto da
parede um martelo jogado no chão, seu pai devia ter se esquecido ao pregar
o quadro do moinho na noite anterior. Ela pegou o martelo e abriu a porta,
mas não entrou, deu um chute de leve para que o peso da porta a abrisse.
O quarto permanecia vazio, mas o guarda roupa, o guarda roupa ainda
emanava a música. Ela foi em direção do mesmo com o martelo em mãos e
a determinação de uma fera. Girou a maçaneta devagar. Parou de girar
quando ouviu o som de click. Puxou um pouco a porta do guarda roupa e se
afastou decidindo que o que estivesse dentro que saísse. Nada saiu, mas a
música aumentou. Reparou que seu instrumento era uma flauta, pelo menos
isso descobriu, mas era tocada de forma tribal demais, confusa demais para
ela.
A porta do guarda roupa começou a se abrir vagarosamente com seu peso
e ali ela viu algo que a fez largar o martelo. Pietro parou de tocar a flauta e
sorriu para ela de forma simpática.
Capítulo 2
Ela abriu os olhos olhando para o teto alto de rocha. Estava deitada em
uma cama e sentiu um cheiro forte no ar que a fez querer espirrar. Quando
ergueu a cabeça notou que tinha uma bolsa de sangue fluindo para seu
braço e que sua cabeça doía como se fosse um sino sendo martelado.
– Você quase sofreu uma atrocidade. – falou Eren ao seu lado – Se
tivesse tido atraso em seu resgate, não sei se poderia ter sobrevivido ou ao
menos, não ter sido tocada.
Ela olhou em volta, diversas pessoas em suas camas, alguns no chão.
Todos feridos.
– Estamos no hospital central, era o mais próximo. – o vampiro
explicou.
– Você me salvou? Obrigada. – ela disse se esforçando para sentar-
se.
– Não fui eu.
Ela o olhou com olhar de interrogação, mas ele só apontou para a bolsa
de sangue.
– Estou te dando uma quantidade considerável do meu sangue, seu
corpo não gostou muito dele e foi necessário dar mais do que pretendíamos.
– Eren se ergueu e removeu a bolsa, tirando a injeção do braço dela em
seguida – Você é uma mulher forte, daria uma boa vampira.
– Não, obrigada. – a dama respondeu e ele sorriu. – Se não foi você,
quem foi? Quem me salvou?
– Eu. – ela reconheceu a voz de imediato, não havia reparado a
presença dele até aquele momento. O gato negro se levantou dentre as
cobertas dela e a olhou com seus olhos intimidadores.
– Já estava com saudades. – ela ironizou e o gato a encarou baixando
um pouco a cabeça fazendo-a sorrir, Eren também sorriu.
– Você foi inconsequente.
– Eu fui negociar. O método de vocês é falho.
– Vocês? O método tanto de Eren quanto o seu é falho. Diplomacia
tanto quanto guerra, ambos mal executados só causam o que vemos a nossa
volta. Principalmente em um ato de vingança.
– Eu não queria vingança do príncipe, até agora. – retrucou a dama.
– Não estou falando de você. – o gato olhou para o vampiro.
– O que ele quer dizer?
– A vampira que estava com o príncipe é a ex esposa do nosso amigo
aqui. – Levi lambeu a pata.
– Você me usou como arma para atingir o príncipe e recuperar sua
ex? – a dama parecia irritada.
– Primeiramente. – Eren se levantou – Ela não é a minha “ex”, ela é
a minha esposa. E em segundo, depois do que ocorreu, resta alguma dúvida
entre nós três de que o príncipe precisa morrer?
– O príncipe não precisa morrer, seu poder só precisa ser minado e
seus objetivos parados. – Levi começou a furar o lençol – Principalmente
se ele cumprir seu objetivo.
– E qual é o objetivo dele? – a dama encarou o gato – Porque parece
que sou a única aqui que não sabe nada, mas a que mais faz.
– Você não é a que mais faz. – Eren respondeu.
– Mas é a que menos sabe. – o gato complementou – O príncipe
deseja trazer uma criatura que posso descrever para você como um gigante
do espaço com poderes que nenhum de nós pode competir. Fim.
– ... – ela olhou para as próprias mãos – Como é essa criatura?
– Grande, do espaço, tem olhos nas mãos.
– Eu já o vi. – a fala dela chamou atenção de Eren.
– Por isso não queria que ela viesse? – Eren perguntou a Levi.
– Sim... – o gato respondeu – E antes que se pergunte, mulher, eu
explorei sua mente antes mesmo de nos encontrarmos e lhes dei um
presente quando vi que minha primeira influencia não surtiu efeito sobre
você.
Ela refletiu por um instante.
– A menina fantasma na biblioteca? – a dama se sobressaltou.
– De qualquer forma. – o gato a ignorou – Você está aqui e a
escolhemos para ser nossa ferramenta por ter essa conexão com o mal
antigo que o príncipe quer, além de poder transitar entre os territórios.
– Certo, calado, me explique, por que vocês não podem transitar
entre os territórios.
– Pensei que tivesse explicado. – o gato olhou para o vampiro.
– Não achei de total necessidade. – Eren deu de ombros.
– Ele me armou e me mandou para morte, simples assim. – ela
reclamou.
– E você foi? – Levi desdenhou e ela cruzou os braços ignorando-o –
Não podemos cruzar os territórios por causa de um pacto, o príncipe tinha
poder ilimitado até mexer com o nosso vampiro aqui. A briga dos dois,
causou o que causou, quanto a mim, eu e o príncipe assim como com o
vampiro, temos uma história. Nós três temos, mas o que você precisa saber
é, não podemos ameaça-lo diretamente e ele não pode fazer o mesmo.
– E os monstros que transitam pela cidade? – ela perguntou.
– Eles não respondem exatamente a ninguém, o príncipe tem certa
influência sobre eles, mas isso não significa muito, não é um controle total.
Mas todos servem ao Primogênito.
– Quem é esse? – ela perguntou ansiosa.
– O Primogênito é um mal antigo, assim como o que o príncipe quer
trazer. Ele foi o senhor dessa cidade no passado, mas o príncipe usurpa de
seu poder e se autointitula como o mestre de sua vontade, ou representante
dela, como achar melhor.
– No caso, ele mente.
– Não exatamente. Mas isso não vem ao caso. – o gato olhou em
volta.
– Eu só quero o livro. – ela disse por fim.
– Você o terá, mas precisamos minar o poder do príncipe, com isso,
creio que poderemos mata-lo.
– Matei o homem do saco, isso conta como algo?
– Com toda certeza conta. – falou Eren sorridente – Você matou um
dos corações do príncipe, faltam os outros.
– Então isso explica o modo como ele falava que o feri, pelo que
entendi, o príncipe tem uma ligação vital com aquelas pessoas que estavam
com ele na peça correto? – ela refletiu por um instante – Tenho de matar
todos?
O gato olhou para o vampiro e em seguida voltou o olhar para ela.
– Sim. – ele disse por fim.
– Não sabemos. – Eren recostou-se na cadeira – Talvez não seja
preciso todos.
– Para ela, quanto mais fraco o príncipe estiver, melhor. Isso
significa, todos.
– Ela é diferente, a minha é diferente! – Eren pareceu se irritar com a
fala de Levi.
– Ela tem um dos corações com ela. – o gato respondeu com frieza.
– O que exatamente ela e eles são? – perguntou a dama.
– São filhos do príncipe.
– Como?
– Filhos do príncipe. – quem respondeu foi Eren – Ele os criou,
concebeu, teve eles. Não são poderosos como ele, que foi advindo de uma
concepção carnal e ritual, mas foram criados através de alguma espécie de
magia antiga.
– Ele pode ter usado o livro para isso? – perguntou ela.
– Pode. – o gato respondeu.
– Maldito o dia que deu aquele livro a ele. – Eren irritou-se.
– Ele havia feito uma promessa a mim! – o gato mostrou as presas.
– E você acreditou naquele manipulador de uma figa?
– Ele sempre foi um bom manipulador, tão bom que conseguiu sua
esposa não foi?
O vampiro pegou o gato pela garganta e o ergueu enquanto as veias
dilatavam em sua testa. Foi tão rápido que ela nem vira o movimento. O
gato começou a esbugalhar os olhos.
– Eu posso arrebenta-lo em um instante, Levi! – vociferou o vampiro
e sua voz tomou todo o hospital assustando todos os dentes em suas camas.
Der repente o vampiro soltou o gato e começou a grunhir de dor pondo a
mão na cabeça enquanto lágrimas de sangue corriam de seus olhos.
– Não se esqueça, quem eu sou, fera. – Levi se postou diante do
vampiro enquanto o mesmo ia ao chão e se contorcia em seu jaleco branco.
– Pare. – a dama pediu agoniada com a cena.
O gato parou e Eren ficou no chão ofegante.
– Se é dessa aliança que esperam que eu participe, eu estou fora. –
ela falou.
– Não, não está. – Levi encarou – Você está mais que dentro agora,
sabemos disso. Você quer mais do que o livro, você quer o fim do príncipe,
viu seu poder e sei que sua moral é maior que a minha e do nosso médico
aqui.
Ela ficou calada e acostou-se no travesseiro reflexiva.
– Não sei se posso fazer sozinha. – ela falou olhando para as mãos.
– Provavelmente não, mas que escolha nós três temos? – o gato falou
lambendo sua pata.
– Nós confiamos em você. – disse o vampiro agora recomposto –
Você foi mais longe que qualquer um.
– Houveram outros? – ela perguntou surpresa.
– Sim. – o gato foi direto.
Os três ficaram em silêncio.
– Se tentarem me enganar... – ela os encarou.
– Não temos porque fazer isso. – o gato pareceu estar entediado –
Você é uma de nós.
Ela começou a descer da cama e se levantou, estava em roupas de
hospital.
– Quem é o meu próximo alvo? – perguntou olhando pelo vidro da
janela o céu de poucas estrelas.
– Eren vai te informar tudo, tenho trabalho a fazer. – o gato desceu
da cama e foi em direção a saída da ala instantes depois.
Ela olhou para os feridos e doentes a volta enquanto o vampiro encarava
suas próprias botas refletindo.
– Faltam cinco corações. – o vampiro falou para ela – Um do papa
dele, você deve ter conhecido, ele administrava uma pequena vila não
muito longe daqui. Outro do cabeça de porco, um do senhor das águas, um
do próprio príncipe e outro dela...
– Quando eu encontrei com o príncipe, eu descarreguei minha arma
nele. – ela lembrou-se.
– Se não atingir seu coração, é inútil. – Eren deu de ombros – E suas
balas devem ter sido cuspidas pelo corpo dele em seguida.
– Ele era monstruoso... Por que ela está com ele?
– Por minha causa.
– Como?
– Eu matei um dos filhos dele.. Uma criatura horrenda que fez um
massacre, naquela época, eu era só um homem e ainda tinha o que
chamamos de humanidade... Quando me transformei o príncipe veio
cobrar, uma briga aconteceu, mas perdi e a paz foi feita com um custo, que
eu o desse um novo coração.
– E foi ela.
– Sim, ela se voluntariou, nada pude fazer naquele tempo, pelo
menos é o que me digo. Ela tem um coração dele agora, como ela não é um
de seus filhos, me pergunto por quanto tempo ela vai durar e como isso
influencia tudo.
– Se eu cruzar com ela, vou mata-la. – a dama o olhou por fim.
– Poderia tentar outra opção se possível?
– Eu só sou uma humana. – ela respondeu e ele assentiu melancólico,
por um momento, lembrou-se de Pietro e sua tristeza. Lembrou-se da sua
própria tristeza. – Mas vou fazer o que tiver ao meu alcance por vocês dois.
Eren a olhou e sorriu com gratidão.
– Venha, você precisa se vestir, tem trabalho a fazer. – o vampiro a
levou até onde suas coisas estavam e ela se arrumou.
Em seguida saiu do hospital avaliando em seu mapa seu próximo alvo a
luz de um poste. O senhor das águas, iria ela para o oeste então. Iria ver o
mar.
...
– Aconteceu. – Bernardo falou olhando a água tocada pelo reflexo
das árvores – Eu fui comprar pão e leite e quando voltei, ela não estava
mais lá.
– Eu não compreendo... – ela falou perdida olhando para ele.
– Ela... Ela simplesmente estava no chão, no chão da sala. – ele
começou a tremer – Eu não sei se ela tentou descer a escada, eu não sei...
Os pássaros voaram sobre o rio, estavam no lugar onde se beijaram a
primeira vez e estar ali tornava todo o relato pior, talvez.
– Quem, Bernardo? Quem? – ela questionou confusa.
– A minha irmã. – ele pôs o rosto entre as mãos – Eu deveria estar lá!
Eu deveria estar cuidando dela.
Naquele dia confuso ele chorou nos braços dela e ela o abraçou. Foi o
começo de tempos sombrios e nublados. Dois dias depois do enterro da
irmã de Bernardo, a mãe dele piorou, doze dias depois ela veio a falecer.
– Filha, está tudo bem? – perguntou seu pai ao vê-la sentada na
cozinha olhando um prato vazio.
– Sim... – ela bateu a ponta da unha no copo.
– Não vai ver aquele, rapaz hoje?
– Ele não quer me ver.
– Entendo. Eu acho que você deveria ver ele de qualquer forma, ele
deve estar precisando de você.
– Talvez. – ela recostou a cabeça para trás e mirou o teto – Estou
subindo.
Ela se levantou e foi em direção ao seu pai e a saída, mas ele se postou
prontamente em frente a porta. Em seguida ele a abraçou, a envolvendo
com amor em seus braços e a apertando bem. Sentiu as lágrimas aflorarem
aos olhos, mas não as permitiu descer, ao invés disso se desvinculou dos
braços do pai e foi para o quarto.
Ao entrar se jogou na cama com o rosto contra o travesseiro, o que sentia
ela?
– Está tudo bem? – perguntou Pietro fazendo ela se virar para olha-
lo.
Ali a luz do crepúsculo ele brilhava quase que branco, como se irradiasse
uma luz própria e a fitava com um olhar de pura compaixão.
– Não. – ela se encolheu na cama quando ele deu sinal de que viria
até ela.
– Está com medo de mim? – Pietro foi até a janela e olhou por ela
para a rua pondo as mãos no bolso.
– Nunca teria medo de você.
– Mesmo morto?
– Mesmo morto.
– Obrigado. – Pietro olhou para o céu da noite que chegava – Sinto
falta de estar vivo.
– E eu queria estar morta.
Pietro a olhou e sorriu.
– Por que? – perguntou ele.
– O Bernardo, ele está distante, sozinho, não me quer por perto.
– Eu o entendendo.
– Entende?
– Quando se perde a pessoa amada, se quer a solidão e quando a
esquece finalmente, não quer relembrar. Eu não queria relembrar por
exemplo.
– Me desculpe... – ela falou querendo chorar.
– Agora está meio tarde para desculpas, não acha? – Pietro sorriu
tristemente – No momento dói muito, sabia?
– Como assim? A dor, não passou?
– Como passaria? – ele indagou – Eu sou um suicida! A dor, nunca
vai passar, na verdade, eu sinto a todo momento minha cabeça sendo
estourada...
– Eu não queria ter entrado naquele quarto, me perdoe... Por favor! –
ela começara a chorar aos montes enquanto Pietro a olhava em silêncio.
Der repente alguém bateu a porta chamando a atenção dela, quando ela se
voltou para olhar Pietro, ele não estava mais lá.
– Não quero visitas. – anunciou se deitando.
– Nem minhas? – reconheceu a voz de Bernardo e abriu a porta.
O homem estava com uma expressão quase de um defunto. Ela o abraçou
e ele correspondeu o abraço entrando no quarto.
– Precisamos conversar. – ele não se sentou, estava pálido.
– Claro... – ela sentou-se, sentia que vinha uma rasteira.
– Preciso de um tempo.
– Certo.
– Sozinho e longe de tudo.
– Certo.
Um silêncio se fez entre os dois enquanto ela o olhava impassível.
– Me desculpe. – Bernardo pediu a olhando no fundo dos olhos.
Ela assentiu com a cabeça e cruzou os braços olhando para o lado.
– S-sinto muito pela sua família. – ela gaguejou.
Foi Bernardo que assentiu dessa vez, ele se virou para partir e a encarou
por um último instante.
– Não vá. – ela pegou no braço dele fazendo-o olhar para ela – Por
favor...
– Uma última noite. – ele sorriu tristemente e a beijou.
Em seguida a pegou no colo e a levou para cama e se deitou com ela.
Fizeram amor com carinho e cuidado para com o outro. Quando
terminaram, ela estava nos braços dele e ele beijava o rosto dela. Ela
adormeceu.
Quando acordou no meio da noite, ele já havia partido a muito. Seus pais
não pareciam estar em casa e ela foi a cozinha comer algo. Enquanto
tomava a sopa começou a ouvir o som de flauta de algum lugar na sala
escura. Seria Pietro?
Estava triste, queria se desmanchar em lágrimas, na verdade, estava
chorando naquela hora e queria a presença do fantasma dele ali. Queria
pedi-lo um abraço. O som de flauta se intensificou e ela ficou em silêncio
ouvindo a melodia.
Ela viu então Pietro chegar ao portal de entrada da cozinha e a olha-la.
Ele continuou a tocar a flauta enquanto ela limpava as lágrimas do rosto e
sorria.
– Não lembro de você tocar flauta. – ela pousou a cabeça sobre a
mão.
– Eu tinha mais dons que demonstrava. – Pietro encostou o corpo na
madeira com um olhar sereno, parecia ele, mas de uma forma diferente,
uma presença mais forte – Aprendi alguns também. Por que está chorando
tanto?
– Você não ouviu?
– Ouvi.
– Então, sabe...
– Por saber, não vejo razão para que chore... – ele sorriu e caminhou
até ela fazendo a luz da cozinha ficar mais fraca enquanto ele se mostrava
no brilho branco que emanava.
– Não?
– Nem um pouco. – ele se sentou próximo a ela e pegou em sua mão,
ela sentiu um frio mortal e também algo gosmento, mas já esperava isso.
Ao ver que ela se arrepiou, ele sorriu e ela se acalmou, der repente a
palma da mão dele começou a esquentar e se tornou quase que humana ao
toque.
– Melhor? – ele perguntou e ela acenou que sim com a cabeça –
Estar morto tem suas vantagens, sabia?
– E quais são? Você não disse que tinha a dor?
– E tem, para mim, tem de ter. – ele sorriu – Mas isso, logo vai
passar. E logo, logo eu vou estar no ápice da tranquilidade, se você pudesse
ver a paz, a calma que é. É como se tivessem tapado seu nariz a vida toda e
der repente você respirasse.
– E se eu quisesse apenas o nada?
– O nada?
– Sim, nada, sem mais nada para me atormentar ou pensar. Apenas o
descanso eterno e vazio, apenas tranquilidade. Você pode ter isso?
– Claro que sim... Você quer?
Ele sorriu com ternura e ela refletiu sorrindo de volta.
– Eu não sei... – ela recostou-se na cadeira e começou a brincar com
a colher de sopa.
– Eu posso te dar isso.
– Tem certeza?
– Sim, tenho.
– Quando ocorrer, não terá mais volta. – ele falou – Talvez fosse
melhor que pensasse um pouco.
– Não, eu quero, quero deixar tudo isso. Quero que tudo isso fique
para trás, Pietro.
– Tudo bem... – ele assentiu e se levantou – Venha comigo.
Os dois foram em direção a sala e em seguida para o pé das escadas, ele
subiu um degrau e estendeu a mão para ela.
– Vamos ao seu quarto. – ele explicou – E mais acima ainda.
Quando ela foi dar a mão a ele, alguém chamou a porta. Ela se virou
indagando quem seria.
– Venha, isso não importa mais. – Pietro sorriu e ela começou a
estender a mão, mas alguém bateu mais a porta e ela voltou o olhar para
mesma – Pegue a minha mão, meu anjo e tudo isso vai desaparecer em um
piscar de olhos, sem mais dor, sem mais sofrimento, apenas o nada. Eu
prometo.
– Alguém ai? – a pessoa a porta chamou, com uma voz de homem.
Ela olhou para a porta curiosa e em seguida para Pietro que a encarava. O
homem chamou novamente e ela deu um passo em sua direção. Pietro
levantou as sobrancelhas e ela lhes deu as costas e foi abrir a porta. Quando
abriu a porta abriu a boca surpresa com a visão.
– Olá, princesa. – sorriu Gregório mostrando os brancos dentes
enquanto limpava sua capa.
...
No topo da torre ela observou todo o gueto em contemplação ao mar
infinito e escuro que nunca acabava e parecia despencar em seu fim. Subira
ali para ter uma visão de sua rota entre as ruas, estava se adaptando a
cidade, sabia que uma rota errada poderia significar a morte em meio a
loucura que se espalhava após a peça.
Viu na direção sul um grupo de homens reunidos em circulo fazendo o
que parecia ser uma oração, enquanto uma mulher em meio a eles se
autoflagelava com um chicote as costas nua. Ao norte viu um grupo de
crianças que brincavam de ciranda com um cadáver sem maxilar de um
velho homem.
Ela se virou então e viu uma mulher gritando no alto de uma casa
enquanto dois homens subiam com machados em sua direção. Sem hesitar
sacou seu rifle e mirou, finalizou o primeiro com um tiro no pescoço
derrubando-o, o segundo foram necessário três, mas o resultado foi
satisfatório. Incêndios começavam em certas partes e gritos eram ouvidos
tanto quanto tiros. Uivos eram comuns e mais ainda orações. Era uma noite
de insanidade.
Ela se moveu escadas abaixo em meio a torre abandonada e foi a rua. O
cheiro de peixe podre tomava o lugar, ela caminhou entre as ruas e se
escondeu dos loucos, não queria perder tempo em lutas desnecessárias.
Vagou pelos becos e em um dado momento parou para analisar o mapa,
não estava longe.
Seguiu sempre com as armas em mãos até que se viu olhando o farol que
iluminava o mar, próximo ao farol o cais tinha poucos barcos que
balançavam.
– Se tem um farol aceso, existe alguém lá, talvez um local que não
tenha enlouquecido. – refletiu e se dirigiu a estrutura.
Estava cruzando a rua as pressas, quando ouviu o som de carruagem e
cavalos relinchando e cavalgando a toda. Virou-se num passe e viu a
carruagem em chamas com um homem gritando segurando uma foice em
sua mão.
Quando ela viu que o louco vinha em sua direção tratou de desviar do seu
caminho enquanto disparava, mas a carruagem continuava a vir. Disparou
mais e se jogou contra uma porta de uma casa quebrando-a em pedaços, a
carruagem se chocou com os valos contra a estrutura fazendo as paredes
desabarem enquanto ela saltava para as escadas e disparava.
O homem que montava a carruagem desceu dando uma risada e começou
a girar a foice enquanto vinha na direção dela. Sem tempo para recarregar,
ela sacou o sabre e partiu para o combate. Ele cortou o ar com a foice que
passou raspando na face dela e ela respondeu cortando a garganta dele com
um ataque curvo. O sangue saiu e ele caiu para trás, ela suspirou sentindo
as gotas de suor descerem pelo seu rosto. Olhou para os cavalos mortos e
seguiu para fora do cômodo que começava a se incendiar também.
Cruzou a rua em direção ao cais dando uma olhada para a praia vazia que
se estendia pelo litoral da cidade enquanto o mar lhes beijava. Enquanto
caminhava pelo cais de pequeno porte sentiu a brisa marítima lhes refrescar
as têmporas, apesar de sempre estar atenta aos sons da cidade, se bem que
após a carruagem as gritarias e grunhidos próximos aquele local haviam
cessado.
A dama se aproximou do farol branco e empurrou a porta aberta, em
seguida a fechou as suas costas. O lugar estava bem iluminado, com várias
tralhas de marinheiro e objetos de conforto pessoal. Subiu a escada com a
espada em mãos e um olhar atento a tudo, tomou um leve susto com um
rato que cruzou seu caminho e pela ousadia o fatiou jogando-o para fora da
escadaria, estava de mal humor e cansada. Quando chegou ao topo
encontrou o sinaleiro do farol fumando sentado em um banco, ele a olhou,
mas não fez nenhum movimento de agressividade. O homem parecia são.
– Quem és? – indagou o homem assoprando a fumaça por debaixo da
suja barba grisalha.
– Uma estrangeira. – ela respondeu guardando a arma – Vim em
busca de informação.
Ele assoprou outra baforada e a mediu avaliando a quantidade de sangue
em sua roupa.
– Está uma loucura lá fora não? – ele se levantou e passou por ela,
levando-a para baixo, para dentro.
– Sim, a cidade está louca. – ela confirmou seguindo-o e ambos se
sentaram a uma mesa onde ele lhes ofereceu um pedaço de queijo.
– Tem de acontecer, acontece duas vezes todo ano. A cada seis
messes mais o menos. – o sinaleiro comeu um pedaço do queijo
mastigando de boca aberta e a encarando com os olhos avermelhados,
parecia doente.
– Por que?
– Para manter todos com a cabeça no lugar. A politica do pão e circo,
conhece? – ela assentiu em resposta – A peça serve para isso.
– Não a assistiu com os outros?
– Nunca gostei de teatro. – o homem deu uma rápida tossida –
Requer atenção e silêncio, coisas que tenho demais por suficiente aqui.
– Vem muitos barcos a essa costa?
– Não mais. – ele fumou mais do cachimbo.
– Essa cidade, ela é diferente de todas que já visitei e pouco ou quase
nada ouvi falar dela. – não sabia porque estava contando isso ao homem,
mas estava, talvez sua aparente fraqueza a fizesse se sentir mais confiante.
– Entendo, eu moro aqui desde menino e digo com toda certeza, o
mundo lá fora acontece só para ele e essa cidade acontece só para o
príncipe.
– Mas nem sempre foi assim, não é mesmo?
– Que eu saiba não, mas não sou o melhor a responder isso, o
príncipe é príncipe desde que sou gente. Nasci e vou morrer e ele seguira
sendo príncipe.
– Já o viu? De perto? A máscara e tudo mais?
– Sim, pelo visto, você também. – ela assentiu a fala dele.
– Então entendera o que vou te pedir.
O velho pegou uma fatia do queijo e mordeu deixando um pouco de
saliva molhar os lábios. Ambos se encararam, pareciam se conhecer a
séculos, mas aquilo ainda era um primeiro encontro.
– Onde está o senhor das águas? – ela o perguntou e o homem passou
a mão na barba deixando de mastigar e pondo o cachimbo que estava em
sua mão sobre a velha mesa – Eu vim até aqui, meu mapa indicava que
aqui ele estaria, mas só encontrei o farol e você. E eu já o vi, você não é
ele, além desse lugar aparentar – Ser seco demais para ele. – interrompeu o
velho e ela assentiu.
– O senhor das águas, também conhecido como o afogado de
Cecidit. – contou o velho – Não é difícil de achar, é só entrar no mar e
nadar, nadar, nadar e nadar, até que seus pulmões se encham de água e seu
corpo fique pesado demais. E ele virá te buscar.
– Então, devo me afogar. – ela o olhou com desdém – Qual a outra
forma?
– Nade até o seu palácio.
– Palácio?
– Um grande castelo negro próximo a uma cratera no fundo do mar.
Mas para chegar até ele, terias de cruzar o guardião... Um ser tão grande e
assombroso que sua mera sombra na água faz o mais bravo marujo apagar
de temor.
Ela manteve o rosto impassível.
– Esse lugar me parece mais um copilado de lendas. – a dama se
ergueu e o velho sorriu para ela.
– Talvez você consiga o que quer.
– Por que acha isso?
– Porque todos que chegaram perto foram obrigados ou por acidente,
você, você caça a morte. – ela notou que as gengivas do homem sangravam
– Tome cuidado se chegar ao palácio dele e não se perca, quem se perde no
palácio do senhor das águas dele nunca sai e vaga nele por toda a
eternidade.... É tão vasto quanto o oceano.
– Já esteve lá?
– Não... Mas já vi suas torres, negras... Elas me chamaram.
– Como escapou?
– Dei algo em troca.
– O que?
– Meu filho. – o homem parou de sorrir e ela o fitou em silêncio por
um instante.
– Agradeço a informação. – ela se virou e deixou o velho da torre.
No cais ela se dirigiu a um pequeno bote e nele entrou. Começou a remar
ali, em direção a escuridão da noite marítima, poucas estrelas tomavam o
céu, brilhando como guias para seu caminho.

Capítulo 3
Ela remou durante bastante tempo, até o farol se tornar diminuto e a
praia se tornar de difícil acesso ao nado. Deixou o mar cuidar um pouco do
bote enquanto descansava as águas escuras. Olhou em volta, tinha de
chegar ao castelo dele, teria de mergulhar para isso? Permaneceu quieta
deixando a água balançar o bote, se houvesse um chamado, ela ouviria
correto?
Remou mais um pouco, até a praia e a cidade se tornarem diminutas. Der
repente o céu se escureceu e uma sombra sinistra se fez abaixo do seu
pequeno bote, ela se ergueu assombrada e sacou seu sabre, sentia que
armas de fogo seriam inúteis. Então, do balançar da água se ergueu uma
grande mão, a mão da qual escorria uma gosma e vários crustáceos
começou a se fechar em volta do bote fazendo-a dama saltar para fora
enquanto ela se fechou.
Dentro da água ela buscou entender o que acontecia. Mas só via uma
grande forma a observar com dois olhos imensos e vermelhos. Ela nadou
para longe da forma, mas o gigante pareceu não se dirigir a ela, como se
ela fosse inferior. A criatura ao invés de afundar mais, se ergueu para cima
emergindo da água para o céu enquanto a dama afundava no turbilhão de
bolhas.
Quando se deu conta a luz penetrou no mar e mostrou uma visão que a
hipnotizou, fazendo-a esquecer da criatura. Um grande castelo negro de
cabeça para baixo se mostrava a ela. Era seu alvo.
Subiu para fora da água e respirou o quanto pôde, nesse instante buscou a
visão da criatura ciclópica, mas só viu um buraco nas nuvens do céu que
mostravam as estrelas e uma tímida lua que quase parecia uma linha no céu
iluminando sua face molhada. Após encher os pulmões ela desceu com
velocidade em direção ao castelo.
Foi ali, enquanto nadava, que compreendeu. O chamado. As torres
pareciam atrai-la para ali, até mesmo a água do mar fazia, como se quando
o mar puxasse com sua correnteza as pessoas, puxasse ela também. As
torres de metal negro parecidas como grandes lanças de espinho a atraiam
cada vez mais.
Ela nadou com mais velocidade e notou que as torres estavam de
encontro com um profundo abismo, como se apontasse para o mesmo, é ali
que o gigante morava? Ela não se ateve as questões e procurou uma entrada
no imenso castelo. Mas se viu assombrada pelas torres se equilibrarem com
suas pontas na ponta do precipício, como se desafiassem toda e qualquer
física ali embaixo. A base da estrutura invertida era pura rocha que
convergia como num funil extremamente aberto que eram as torres, um
brinquedo para um deus talvez.
Nesse instante de contemplação, uma porta se abriu e a sugou para
dentro. Seu corpo se chocou contra paredes duras de metal e seu grito não
pôde ecoar na água, foi quando ela se chocou contra alguma espécie de
pilastra e caiu no chão. Abriu os olhos sentindo o corpo encharcado e os
cabelos grudando no rosto e olhou em volta.
Luzes de pedras pálidas iluminavam o salão, ela estava sobre rocha
esculpida na imagem de uma enorme concha e a sua volta sentia o gosto de
metal na boca. Viu a sua frente uma escadaria que ao invés de subir como
de costume, descia. Ela desceu.
Notou nas paredes de metal limos crescendo e animais dos mares
caminhando como aranhas. Um caranguejo chegou a passar perto dela e a
seguir por alguns instantes. Quando chegou ao final da escadaria se viu em
uma sala iluminada com grandes velas de barco nas laterais, servindo como
cortinas velhas e no meio de isso tudo um trono se mostrava. Não passava
de um banco cercado por plantas aquáticas e crustáceos, mas a criatura
sentada no mesmo atraia em demasiado sua atenção.
O mesmo homem que vira no camarote do príncipe, com sua barba de
polvo e seu capuz sobre a cabeça. O broche com a imagem de navio
brilhava em seu longo casaco marrom e úmido e seus olhos negros
repousaram sobre ela enquanto guelras de peixe se mostraram próximas aos
tentáculos, mesmo assim, havia um nariz cadavérico em seu rosto e um
olhar nublado em seus olhos. Seria cego?
– Sua mente está perturbada com a visão? – ele interrogou a dama
com uma voz que parecia doente.
– Não tanto quanto lá fora. – ela falou sem tirar os olhos dele e
apertando com mais força a empunhadura de sua arma – O silêncio desse
lugar é tão assustador o barulho da cidade lá fora.
Ela ouviu um ranger dos barcos destroçados a volta que pareciam
concordar.
– O mar é em suma carregado de silêncio. – ele refletiu pegando uma
lagosta que se contorcia em seu chão molhado e mordendo sua cabeça
enojando-a.
Enquanto ele mastigava ela notou a água que estava na altura do seu
calcanhar e como pequenas criaturas nadavam nela. Se admirou com a
cena, mesmo ouvindo o som de mastigação do homem sentado ali.
– É belo? – o afogado perguntou a ela enquanto ela via o reflexo das
luzes das luminárias na água.
– Um tanto. – concordou ela vendo um pequeno cardume se
aproximar.
– Pode ser mais. – ele ergueu a mão e todo o lugar se iluminou com
luzes coloridas das pedras brilhantes cravadas nas paredes de metal. A água
ficou cristalina e refletia tudo fazendo os olhos da dama brilharem de
admiração – É possível encontrar a beleza até mesmo na ruína mais escura,
não concorda?
– Sim... – a dama se agachou para estender a mão a um pequeno
peixe palhaço que nadava próximo a sua bota.
– No entanto. – o senhor das águas se ergueu e as luzes voltaram ao
normal – é na escuridão e no grotesco que a verdadeira beleza do mar se
mostra.
Ela notou o volume da água subir a sua volta e começou a recuar em
direção as escadas.
– Não se apavore, por favor, não se apavore. – pediu ele de seu trono
com uma voz rouca.
Com surpresa consigo mesma, ela se acalmou e ficou parada até que a
água subiu na altura de sua barriga e na altura da cintura dele, mesmo
sentado, era mais alto do que tinha parecido.
– Observe. – falou ele e na luz pálida ela pode ver algo passar com
velocidade na água.
Uma quase escuridão total se fez quando as luzes diminuíram e o chão
pareceu se iluminar como o teto se iluminara antes, só que agora, apenas
onde ela estava. Um peixe nadava solitário onde todos os outros haviam
estado antes. O animal parecia perdido, pequeno e diminuto em meio
àquela escuridão. Nadava a frente dela quando um pequeno foco de luz se
acendeu e o peixe o seguiu.
– A beleza, ela se encontra no irremediável. – a voz do afogado falou
e ela olhou hipnotizada para o peixe – No solitário e mais profundo oceano
mora a mais bela das sereias, é verdade, eu bem sei.
Ela viu então o pequeno peixe seguir a toda o foco de luz que brincava.
Der repente a luz iluminou um grande pedrador diante do pequeno peixe,
os dentes da fera tragaram o pequeno animal que tentou correr e a mesma
seguiu nadando próximo a ela.
– E mais bela ainda é a beleza mortal. – ele contava enquanto o peixe
com a luz dançava.
Ela sentiu raiva da criatura, pela sua feiura e armadilha e quis transpassar
a lâmina nela. Mas não o fez, pois nos momentos que se seguiram algo
grande e escuro com uma barbatana veio e tragou o peixe iluminando o
corpo longo e extenso do que parecia uma enguia com barbatana. A cobra
marinha, a serpente grotesca e lisa passou por ela como um trem, reto e
imparável sumindo com sua calda na escuridão.
Quando se deu conta ela agora olhava para o escuro, se cercava por ele.
Sentiu o medo.
– É engraçado como o escuro nos assusta, tanto quanto o mar parado
e vazio. – a voz dele estava próxima – Vazio como um copo de metal que
não se pode ver o interior.
Ela olhou para cima e viu o rosto dele com olhos cegos fitando-a e os
tentáculos se movendo junto com as guelras que abriam e fechavam em um
movimento que parecia combinar com aquela aparência. Ela ergueu a
espada em direção a ele, apontando para seus tentáculos e insinuando
atravessa-los para acertar seu pescoço. Ele com delicadeza tocou a lâmina e
a colocou em direção ao próprio peito, ela o olhou com estranheza.
– Se eu atravessa-lo ai, acertarei seu coração? – ela perguntou.
– E onde mais ele estaria? – o afogado respondeu.
– Em qualquer lugar, menos no mais óbvio. – ele assentiu com a
afirmação dela.
– Você não tem chance contra mim, é uma verdade irremediável.
Ela não respondeu.
– Eu desejo que consiga me matar. – o senhor das águas falou
deixando que a ponta da arma pressionar contra si – Mas não posso
permitir que seja fácil.
– Por que não?
– Quando me olha, entende o porque.
– Você tem tormento, sinto quando você fala. – ela o olhou com
ternura para tentar persuadir o homem.
– Você não denota tormento algum na fala e por isso está mais
atormentada que eu. – rebateu ele com um sorriso – Talvez sim, esteja eu
atormentado, mas sua espada, não pode me libertar, creio.
– Se me deixar, posso sim te libertar.
– Matando-me?
– Se houver outra forma de minar o poder do príncipe sem mata-lo...
– Não, isso creio que não tenha. E sua forma de libertação seria a
morte...
– Sim...
– E existe liberdade na morte?
Ela ficou em silêncio.
– É tudo uma loucura. – o afogado pareceu sentir um peso sobre suas
costas e se sentou em frente a ela, como um grande gigante a diferença de
altura ainda assombrava, principalmente pelas longas pernas dele que se
cruzavam.
– O que é você?
– Eu? – ele pareceu sorrir – Sou um filho.
– Do príncipe.
– Sim... Todos nós.
– Mas o que é exatamente você?
– Um dia um marinheiro veio estava perdido no mar, em seu
desespero ele rezava para que achasse o caminho de volta a sua casa pois
de dia não havia sol e de noite não havia estrelas. E ele se amarrou em
loucura ao mastro do seu navio, rezou e rezou e rezou. O mar, balançava e
balançava ameaçando derrubar o navio e afogar o marinheiro. Mas ele
continuou a rezar crente que seria salvo... Uma noite ou dia, o marinheiro
avistou uma pequena ilha, diminuta, nela parecia estar sua salvação. Então,
o marinheiro agradeceu e parou de rezar, um vento forte bateu e uma
grande onda se fez tragando o barco e afundando-o. O marinheiro,
amarrado a vela, não pôde se soltar e ali afogou-se...
Ela o olhou em silêncio. Depois de um tempo finalmente falou:
– Você era o marinheiro?
– O mar, era a mente. – ele respondeu.
Ambos se fitaram na escuridão, ela olhava os olhos cegos dele e ele
olhava a alma ruída dela.
– Eu tenho uma proposta para você. – ele falou por fim pegando um
peixe da água e rasgando-o com os dentes fazendo o sangue pingar aos
montes – Você terá três noites em meu castelo para encontrar o meu
coração, se no final da terceira noite você não o encontrar e não matar-me...
Você desistira de sua busca pelo livro e ficará aqui, com todos nós, para
todo o sempre.
– Três noites..
– Se souber onde procurar, meu coração difícil não será de achar. –
ele sorriu – No entanto, você tem de saber se guiar, pois meu palácio é tão
grande quanto o mar.
– Uma boa rima. – ela avaliou.
– Eu sei. – ele sorriu e ela se permitiu rir diante do afogado.
– Qual a dica?
– Dica?
– Sempre existe uma dica, não posso sair às cegas buscando seu
coração.
– É claro, por que não? – ele refletiu e por fim falou – O que está
embaixo, está acima, isso já foi notado, mas meu coração não está nem em
cima nem embaixo, está no contrário e tudo que é o contrário é onde pode
estar. No contrário deve achar, no contrário encontrar, o coração do mar
não vai pulsar pois cheio de água está, mas para ele identificar só basta
encontrar o que não há de brilhar.
Ela refletiu por um instante.
– Quer que eu repita? – ele perguntou com gentileza.
– Não... – ela o olhou com seriedade – Quais perigos vou encontrar.
– A mim, é um erro perguntar.
– Você não é o senhor do mar? O afogado?
– O mar não tem um senhor, nunca se esqueça disso. – ele tocou a
testa dela com seu longo e magro dedo.
– Não vou. – ela deu as costas a ele e o caminho se iluminou, as
escadas haviam sumido e agora um corredor se mostrava.
Ela olhou para ele sobre os ombros, esperando um ataque. Ele apenas
deitou com calma para trás mergulhando o corpo na água como se estivesse
relaxando. Ela seguiu então corredor a dentro.
Enquanto seguia pela escuridão que ia e voltava, devido as lamparinas e
pela iluminação fluorescente que surgia em diversos pontos, notava como
as paredes eram agora rochas úmidas e com plantas marinhas em suas
superfícies. Também ouviu o som de goteira na água baixo e era constante
o som de coisas se movendo na água nos seus pés ou borbulhas. Havia
momentos que descia escadarias de madeira e mergulhava em corredores
profundos para emergir na linha que seguia com a água em sua cintura. O
lugar era como uma gruta em forma de castelo, raramente encontrava uma
porta e quando tentava abri-la, algo bloqueava o caminho.
Após uma longa caminhada misturada a nado, ela chegou a um local que
a fez parar por um instante. Um relógio marcando dia e noite se mostrava
na parede, de acordo com ele, cinco da manhã e estava amanhecendo. Ela
suspirou, estava entre dois caminhos, pensativa os fitou. Ambos pareciam
levar a mais água e escuridão.
– O que está embaixo, está acima, isso já foi notado – ela olhou em
volta – mas meu coração não está nem em cima nem embaixo, está no
contrário e tudo que é o contrário é onde pode estar. No contrário deve
achar, no contrário encontrar, o coração do mar não vai pulsar pois cheio de
água está, mas para ele identificar só basta encontrar o que não há de
brilhar.
Refletiu enquanto escolhia o caminho e se direcionou no da esquerda,
apenas porque viu menos crustáceos nele. Enquanto ia pensava cada vez
mais. “meu coração não está nem em cima nem embaixo, está no contrário
e tudo que é o contrário é onde pode estar.”, a dama olhou para o teto
buscando algo, claro o teto era o chão e o chão o teto, estava em um castelo
invertido, seria isso?
Seguiu caminhando por mais algum tempo prestando atenção no teto, ou
piso. Até que se cansou de vez, seus pés doíam e os pés, estavam molhados
por tempo demais, por tempo demais naquelas botas. Encontrou um sofá
que não estava encharcado e se sentou nele. Removeu as botas e deitou-se
sobre a almofada sentindo a pele arrepiar de frio. Ficou ali durante um
tempo observando como a água ficava brilhante com a iluminação do chão
e os peixes nadavam sem pressa.
Ficou repetindo o que o senhor das águas dissera como um mantra até que
adormeceu. Acordou com um susto, um relógio em algum lugar batia
anunciando a hora. Ela levantou despertada, sentiu a boca seca e buscou a
bolsa de água. Quando abriu jogou toda a água fora, salgada. Se levantou e
der repente notou um fenômeno estranho, a água, estava escoando para
algum lugar levando consigo toda a fauna que havia ali.
Começou a seguir o desaguar com velocidade, correndo para acompanhar
a cascata. Os pés descalços e cheios de dor a trapacearam e ela caiu. No
chão molhado sentiu a vulnerabilidade da situação. Diante dela as luzes
mostraram no final da curva do corredor água sendo jogada contra a
parede. O som ensurdecedor acompanhou junto a um tremor. A água vinha
com toda a força em direção a ela como uma avalanche destruidora.
Desesperada a dama se ergueu e começou a correr não ousando olhar
para trás enquanto a água vinha desgovernada tomando tudo. Correu com
tanta velocidade que as canelas queimaram e quando viu a escada para
baixo que estava a sua frente só pôde saltar, não foi o suficiente. A água
afogou-a jogando-a em um turbilhão de bolhas e um sacode sem fim.
Abriu os olhos e mesmo vendo tudo turvo notou que agora vinha uma
outra parede em sua direção, essa com mais velocidade ainda. Atravessou
ela e se viu caindo em mais água do que imaginava. Chegou à conclusão
que acabara de enfrentar uma onda das grandes.
Com a água no pescoço começou a nadar exausta para se manter acima
da água. Foi quando viu a barbatana. Encostou-se na parede e sacou a
espada enquanto via a imagem da barbatana negra vir em sua direção. Era
uma orca. Não sabia se estava em seu cardápio, mas naquele estreito
corredor em que a criatura vinha, se lembrou das histórias que ouvia sobre
o animal e sua predileção por brincar com suas presas.
A grande mancha negra veio nadando vagarosamente, como se caçoasse
dela. A dama rangeu o dente ante o animal monstruoso. Foi quando a orca
passou por ela arrastando seu grosso corpo e pressionando a dama contra a
parede, esmagando-a. Ela grunhiu, mas não ousou enfiar o sabre na
criatura, deixou-a passar arrastando seu corpo escuro e pesado contra ela.
Após os instantes torturantes a orca seguiu desaparecendo e a dama
vomitou seu sangue sobre a água. Voltou a nadar.
Após um tempo, já estava confusa, não sabia mais nem para onde estava
indo em meio a tudo aquilo. Tentou pôr a mente no lugar, pensar no seu
amor, em como o amava. Olhou para as paredes que agora não eram rocha
e sim argamassa e meia parede de madeira. A água na altura do joelho e um
cansaço sem igual. Se sentou em um canto.
Pensou e pensou em seu marido, a dica do afogado quase esquecida em
sua mente e o corpo pedindo descanso. Der repente ouviu um ranger de
correntes, distante, mas reconhecível. Elas se arrastavam e tilintavam a
medida que eram movidas. A dama sacou a pistola e a apontou para o que
fosse aparecer na curva do corredor.
As correntes ficavam mais altas em seu som. Ouviu também os passos na
água. Ela sentiu uma tontura e viu então a imagem de um homem com
correntes por todo seu corpo e atrás dele uma procissão de pessoas
carregando uma vela com correntes atadas aos seus pulsos. Observou
enquanto se aproximavam, todos molhados, todos com cabeças baixas,
marujos, senhoras, meninos, mendigos, ladrões, todo tipo de gente vinha
em sua direção com o homem de correntes e face pálida os liderando. Ele
parou a sua frente em silêncio e as correntes pararam também. O homem
puxou então uma de suas correntes e jogou a ela.
Ela olhou para ele e para a corrente, em seguida fez um sinal de negativa
com a cabeça. O homem ficou a encarando com dois olhos que na verdade
eram dois buracos negros em sua face. Ele não disse nada, puxou sua
corrente de volta e começou a andar junto a sua procissão.
Antes que ela conseguisse forças para se levantar a multidão já tinha
partido e ela continuava ali. Voltou a dormir e a acordar grogue. Levantou-
se e se obrigou a arrastar-se pela água. Caminhou pelo mesmo corredor
eterno até que se assustou ao ver que a sua volta havia alguns corpos
boiando na água, todos com cabeças de animais diferentes. Ignorou-os e
seguiu até não vê-los mais.
Após um longo tempo lembrou-se do verso do afogado e o recitou para si
mesma, como uma estrela guia em meio as trevas. Mas nada disso
importava se ela não resolvia a situação. Iria morrer de sede antes de
morrer de fome, sabia disso. Olhou para seu reflexo na água, não havia
reparado nele, na verdade, não se lembra dos momentos em que pôde olhar
o reflexo de algo durante toda aquela caminhada.
Sorriu admirada com a cena de ver seu estado deplorável, na verdade, riu
de si mesma, aprendera com seu marido que era necessário rir de si mesmo
de vez em quando, para tornar as coisas menos sombrias. Após dar uma
gargalhada teve um surto de fúria e socou seu reflexo, a resposta estava ali,
qualquer um teria pensado, mas toda a atmosfera do lugar parece ter
impossibilitado a mente dela de trabalhar como a de uma pessoa normal. Só
precisava entender como a palavra reflexo se encaixava no conselho do
afogado e se era realmente aquilo que ela estava vendo que era a resposta.
A má interpretação podia matá-la.
Durante um bom templo refletiu, tentou mergulhar em seu próprio
reflexo, ideia idiota, mas valeu a tentativa. Em seguida buscou um lugar
onde a água lhes cobrisse tudo e fosse até o teto para poder toca-lo, não
serviu de nada também. Aquilo tudo a estava irritando, chegou até a ficar
parada no fundo da água refletindo, ignorando todos os animais que por ali
passavam e a beliscavam.
Abriu os olhos e nadou até alcançar mais uma escadaria que a levou para
o raso. Ali fez uma busca dos objetos em volta. Tinha de encontrar uma
forma de acessar o lugar onde o coração estava. Sim, ele não podia estar
ali, na verdade, aquela intercessão de corredores não passava de um
labirinto para faze-la acreditar que ali repousava o coração, sentia que
aquilo não teria fim e se o coração estivesse em algum lugar, não seria ali.
Caminhou até chegar a uma encruzilhada, ali ela meditou sobre que
caminho seguir. Foi quando ouviu o som que sabia o que era. A forte onda
se aproximava, dessa vez, a onda vinha de dois lugares diferentes, ela
escolheu a que a levaria em direção contrária de onde veio. Esperou a onda
vir e dessa vez se posicionou para seguir junto a ela. Pensado e feito.
A onda a carregou a frente com velocidade em um turbilhão sem fim, se
concentrou em manter-se surfando junto a ela até que notou que se bateria
contra uma parede a frente e permitiu que a onda a afogasse em suas
bolhas. Após ser sacudida pela água olhou o que a mesma tinha trazido.
Além dos animais, móveis velhos e ossos, ela viu um brilho sem igual
refletindo no chão. Pegou o caco de espelho quebrado com pressa e acabou
por se cortar. Irritada quis arrebenta-lo em mil, mas se concentrou e o
pegou com delicadeza. Nadou para a superfície e pôs o pedaço de espelho
no teto. Assim que o fez, o espelho refletiu os reflexos na água e um
diminuto buraco se abriu no chão abaixo, como uma passagem secreta. Só
notou ele direito por mergulhar a cabeça e se esforçar a enxergar.
Seus olhos se arregalaram com a visão e ela se moveu em direção ao
pequeno buraco, mas quando fez isso, o mesmo desapareceu. Compreendeu
que era o espelho que o criava, mas tinha de mantê-lo ali e além disso, seu
tamanho tinha de ser maior.
Mergulho de novo e fez uma busca minuciosa, nadou e nadou até que
encontrou finalmente um grande espelho, mas seu tamanho e peso eram
consideráveis demais para ela. Então, ela o quebrou ao meio pegando a
maior lasca. A solução para mantê-lo refletindo a água foi simples, mas
árdua. Teve de erguer um afogado e grande armário. Quando finalmente o
conseguiu após um longo tempo de esforço, pôs o espelho em cima dele e
observou o buraco escuro se abrir no chão. Um sorriso se abriu em seu
rosto e no buraco ela mergulhou para o desconhecido.
...
– Não vai me convidar para entrar? – perguntou Gregório. Aos
gaguejos ela olhou para trás, Pietro não estava mais ali, só estavam eles
dois. Voltou seu olhar para o homem.
– Q-q-quer ent-trar? – gaguejou ela.
– Se insiste. – ele sorriu com os dentes grandes e brancos, era o
mesmo Gregório que a deixara, só que agora com uma barba.
Ele entrou e olhou em volta dando um suspiro.
– Por que está tão escuro? – procurou o interruptor e ascendeu as
luzes – Ainda quero ver sua beleza.
– Como sempre, você – Sou sincero. – Gregório se sorriu e se sentou
ao sofá pondo a bengala que trazia consigo de lado e encostando as costas
no estofado – Senti saudades disso.
– De estofado?
– Sim, não imagina o que eu passei. – ele fechou os olhos por um
instante.
– Por que não me conta? – perguntou ela animada.
– É claro! – ele se sobressaltou sorrindo – Tenho mil coisas para
contar, vi cada coisa que te deixaria perdidamente encantada!
– Aposto que sim... – ela sorriu sem jeito.
– De qualquer forma, pode se encantar com meu relato. – ele deitou-
se no sofá pondo os pés no braço do mesmo – Por onde começo? Fui a
Amazônia.
– Mentira. – ela falou e depois se contraiu de vergonha.
– Ora, continua com a língua rápida! – Gregório riu – Fui sim! E
foi... Péssimo.
– Péssimo?
– Floresta linda, mas, mosquitos demais, ambiente abafado, no
mínimo, ruim. O que salva foram os nativos, conheci alguns por demais
incríveis e aprendi a caça também, o que me ajudou muito no norte.
– Norte?
– Norte da China.
– Você esteve na China?! – ela se animou como uma criança no sofá.
– Estive! E tenho provas. – ele mostrou uma tatuagem no braço de
um dragão chinês voando.
– Isso não é prova.
– Você é bem descrente não acha?
– Um pouco.
– Mas estive sim, certo? E também estive em lugares que você nem
imagina.
– Que tipo de lugares.
– Certo, houve uma noite, na África, em que eu estava na savana a
quatro dias. Exausto, louco por um banho e por uma cama confortável.
Então eu encontrei um lago abaixo de uma árvore, um lago onde a água
brilhava por causa da luz que se formava no céu.
– Uma luz?
– Era como se as estrelas fizessem ondas e elas viessem a terra.
Deus, foi a coisa mais linda que já vi na vida. – os olhos dele brilhavam
enquanto falava – E havia um calor imenso, mesmo na noite, eu lembro de
ter deitado abaixo da árvore e dormido como um bebê.... Foi maravilhoso.
– Eu imagino... – ela olhou para os próprios pés descalços – E você...
Não encontrou ninguém por lá?
– Teve, alguém. – Gregório sorriu olhando para o teto – Assim como
você teve, não foi? Bernardo... é, ele sempre foi um partidão.
– Não estamos mais juntos...
– Ahh, não? Deve ter sido minha presença que enxotou o senhor
certinho.
Ambos sorriram e depois ficaram em silêncio.
– Ele é um bom homem. – Gregório falou divagando – Sei que vocês
não acabaram por canalhice dele, não é?
– Não, não houve “canalhice”. – ela entrelaçou os dedos.
Após um silêncio ele finalmente falou.
– Eu conheci uma mulher. – ele olhava para o teto enquanto dizia
isso – Ela era, fenomenal. Tinha mais descendências que posso contar e
sabia mais coisas que jamais vou saber. Estaríamos casados a essa hora... E
bem, eu não estaria aqui.
– O que houve? – perguntou ela repousando o braço sobre o braço do
sofá e a cabeça sobre a palma da mão.
– Ela me traiu.
– Ahh... Sinto muito.
– É, eu também. – ele sorriu se sentando.
Um silêncio entre os dois se fez.
– Eu nunca te agradeci. – ela refletiu.
– Pelo o que?
– Por aquela noite em que você me tirou da festa e iniciou uma
cadeia de acontecimentos na minha vida que... me mudaram para sempre.
– Nem tudo foi bom, então, não tem porque agradecer.
– Mesmo assim, com tudo de ruim... obrigada.
– Eu tinha de salva-la não tinha? É o que os mocinhos fazem...
– Falo sério, obrigada...
– Não, obrigado você.
– Por?
– Por ser mesmo depois de todo esse tempo uma das melhores coisas
que já conheci. – ele sorriu, mas não galante e sim de forma sincera sobre
suas palavras, isso a derreteu.
Ela não soube responder e um silêncio se fez com ele recostando-se no
encosto do sofá.
– Acha que poderia ter sido diferente? – ela o perguntou.
– Diferente como? – Gregório voltou a olhar o teto.
– Se eu tivesse ido com você.
– Aquilo foi coisa de criança... E as coisas acontecem como tem de
acontecer, não existe nada que possamos fazer para remediar.
– Acho que você só acredita nisso porque não tem nada para que
você tenha de remediar.
– Tem certeza? – ambos se entreolharam por um momento e ele
sorriu voltando a olhar o teto da casa dela – Tem tanto que eu queria ter
feito diferente... Tanto...
Ambos ficaram olhando o teto de argamassa da sala por um bom tempo.
– É melhor eu ir indo. – ele se ergueu espreguiçando-se – Vamos
sair, amanhã ou depois.
– Claro. – ela sorriu animada com a ideia.
– Então, até depois. – Gregório se aproximou do rosto dela, mas ela
se manteve imóvel e então ele lhes beijou a bochecha, sorriu e saiu porta a
fora deixando-a ali no sofá.
Pouco tempo depois seus pais chegaram, ela deu boa noite e subiu para o
quarto. Dormiu sem sonhos. Um sono limpo. No outro dia, pela manhã,
quando desceu para tomar café encontrou Bernardo conversando com sua
mãe na cozinha.
– Bom dia. – Bernardo sorriu para ela e ela respondeu apenas com
um aceno.
– Ele veio aqui desejando conversar com você e não pude deixar o
rapaz com fome é claro. – falou sua mãe bebendo do café.
– Claro, podemos conversar na varanda? – a garota pediu e viu um
aceno de satisfação no rosto de sua mãe.
– Certo. – Bernardo se levantou e ambos foram para a varanda da
casa.
– O que você quer? – ela nem ao menos se sentou no banco, ele em
respeito fez o mesmo.
– Só quero conversar, um pouco... – Bernardo respondeu e ela
desviou o olhar para um grupo de crianças que brincava na rua.
– Sobre o que? – ela respondeu de forma áspera, mas se arrependeu
quando viu a expressão no rosto dele.
– Ainda, podemos.. – Ser amigos? – ela interrompeu – Você me
destruiu noite passada...
– É só uma proposta... – ele parecia arrassado.
– Por que isso importa tanto?
Ele ficou calado e ela não fez esforço para falar.
– Ontem... – ele olhou para a rua – Quando cheguei em casa... não
havia ninguém.
Ele baixou a cabeça e ela passou a mão sobre o ombro dele.
– Nós nunca vamos deixar de ser amigos... – ela sussurrou e o
abraçou, ele correspondeu, o abraço durou durante um bom tempo até que
ela o convidou para almoçar em sua casa e almoçaram com os pais dela.
Claro, houveram os comentários sugestivos por parte deles em relação aos
dois, mas nada que as piadas e risadas não traduzissem.
Após isso, Bernardo e ela ficaram conversando na sala, precisavam de
um pouco de interação, mais ele do que ela. Em momento nenhum tocaram
no nome dos mortos, se mantiveram em conversas leves e alegres. Foi
quando alguém chegou a porta. O pai dela atendeu e deu espaço para
Gregório e seu tio Alfonso entrarem.
Gregório sorriu para ela e para Bernardo, talvez ela não esperasse por
isso, mas não eram todos amigos antes?
– É bom revê-lo, Bernardo – Gregório cumprimento o alto homem.
– É bom revê-lo também companheiro. – ambos sorriram e se deram
um abraço carregado de camaradagem, após isso Gregório de forma galante
beijou a mão da garota, Bernardo apenas se concentrou em cumprimentar
Alfonso que se dirigiu a ela e lhes deu um abraço em seguida como um tio
gentil.
Por fim todos se sentaram a sala para conversar, nada demais aconteceu.
Tirando a óbvia vontade de Gregório de leva-la para dar uma volta, mas ele
se conteve.
– Talvez seja hora de partir. – Bernardo se levantou atraindo a
atenção de todos.
– Besteira, fique mais um pouco, rapaz. – falou o pai da garota, mas
ele fez um sinal de negativa com a cabeça.
– Tenho realmente de ir. – ele olhou para ela e em seguida para
Gregório – Deveríamos marcar uma saída depois.
– Concordo, precisamos colocar a conversa em dia. – falou Gregório
com um sorriso e se levantou para apertar a mão de Bernardo que o
cumprimentou de forma neutra e se despediu de todos com apertos de mão,
incluindo ela. Em seguida saiu pela porta sem olhar para trás.
– Vamos dar uma volta? – Gregório perguntou a garota fazendo com
que a conversa entre Alfonso e seu pai cessassem – Claro, com a permissão
do pai.
O pai dela olhou para ela e em seguida para ele.
– Que seja nesta rua. – ele fez o sinal para que saíssem e se levantou
para ir buscar uma bebida para Alfonso e ele mesmo.
Enquanto ela e Gregório caminhavam pela rua, o fizeram em silêncio, ele
não tentou seus galanteios e nem ela seus olhares. Apenas seguiram
quietos. Pararam ao lado de um poste e sentaram-se num banco. Um
homem passou vendendo algodão doce que ele comprou para os dois e
ambos comeram com satisfação.
– Sabe, eu quero seduzir você, mas não sei o nível de envolvimento
que você tem com o Bernardo atualmente. – Gregório umedeceu os lábios e
cruzou os braços de forma hiperativa – É que sabe como é, existe um
código dos homens.
– Existe é? – ela riu perguntando.
– Existe, pelo menos entre os decentes.
– E você é um? – ela ergueu as sombrancelhas com um sorriso e ele
se fez de ultrajado com a pergunta dela.
– Como pode duvidar da minha decência, madame? – Gregório pôs a
mão sobre o peito – Eu sou o cavalheirismo encarnado!
– Sei... – ela cruzou as pernas por baixo do vestido e ambos olharam
para um pequeno canteiro frente a uma residência que se erguia a frente
deles.
– Somos apenas amigos, só podemos ser isso. – ela falou pousando a
cabeça no ombro de Gregório e ele deu uma leve olhada para a porta da
casa dela para checar se o pai dela não saia a porta, com um sorriso passou
a mão sobre o ombro dela e a contraiu contra si.
– Eu sabia. – Gregório balançou a cabeça.
– Uhum. – ela sorriu e fechou os olhos por um instante ouvindo o
som das aves e o barulho das pessoas que passavam a conversar por ali. O
céu estava límpido e a vida, a vida melhoraria, ela sentia isso no calor do
casaco dele.
Capítulo 4
A dama mirou a volta sentindo o ar metálico e a pressão da
quinquilharia de coisas a sua volta. Milhares de objetos brilhantes de ouro e
prata, todos reluzindo a luz das tochas que iluminavam o que parecia ser
uma sala subterrânea. Ela achou previsível de acordo com o verso, só
precisava achar o que não brilhava e isso, seria fácil em meio aquilo tudo.
Ela buscou em meio as taças, espadas, moedas, jóias, mergulhou entre o
ouro como um pirata louco. Procurou por mais de duas horas, fazendo
pausas para respirar e descansar as mãos, em meio a uma dessas pausas
quando estava sentada numa pilha de ouro viu algo curioso.
Em meio as pilhas e o assoalho de madeira, ela viu um pequeno objeto
quase imperceptível no chão. Ela se agachou e ergueu a mão para pegar o
curioso objeto. Quando o pegou e virou se surpreendeu, não era nenhum
objeto mágico e misterioso, não era nenhuma arma ou mesmo um portal,
não para ela. Era apenas uma pequena moldura com a imagem de um casal
pousando sobre um jardim ensolarado com montanhas ao fundo.
Ambos de mãos dadas e ambos se olhando apaixonados. Ela mirou os
traços realistas e sentiu o calor daquela imagem toca-la. Tentou associar a
imagem ao afogado, mas não surtiu efeito algum, então mirou a bela
mulher de cabelos escuros e vestido azulado.
Olhou em volta, tinha de sair daquele lugar e subir novamente para o
resto do castelo. Buscou entre nas paredes, tocou elas, nenhuma oca, pura
rocha. O assoalho? Quebrou a madeira com um castiçal de prata. Nada
demais, apenas rocha. Refletiu. O castelo era do afogado, então ele teria
controle total daquele lugar correto?
– Senhor das águas, eu tenho o que acredito ser seu coração. – ela
disse olhando para cima – Mas preciso que me ajude a sair daqui para que
eu lhes entregue.... Pode me ouvir?
Nada respondeu. Ela se sentou para meditar sobre que atitude tomar. Fez
isso durante alguns minutos, até que por fim acabou deitando no chão e
adormecendo.
– Acorde. – uma voz falou e ela abriu os olhos sentindo a água no
rosto.
Estava no chão da sala do Senhor das Águas. A sala estava clara com a
luz do chão e uma fina camada de água cobria o chão. Assim que ela se
levantou, a água se elevou até seus joelhos e os peixes surgiram nadando
tranquilamente.
– Não pegou da minha mão? – perguntou ela segurando a moldura.
– Não... – o Senhor das Águas repousou a cabeça sobre sua mão
molhada e a olhou.
– Como pode ver, tenho seu coração...
– Isso parece um coração para você? – ele sorriu.
Ela não respondeu. Ele se ergueu e foi até ela com toda sua altura. Após
isso, se sentou com um estrondo e cruzou as pernas estendendo a mão a ela.
Ela ergueu a moldura, mas ele fez um sinal de negativa com a cabeça.
– A sua mão. – ele falou.
– Eu ainda estou dentro do prazo. – a dama respondeu.
– Está? – ele indagou e ela pareceu confusa e perdida, um leve raio
de horror passou pelo seu rosto – Não se sabe, não se pode saber, mas eu
sei... Apenas sente-se aqui comigo.
Ela após um momento pegou na mão dele e se sentou próxima a ele, os
peixes brincavam em volta dos dois com suas várias cores.
– Está com medo? – ele a mirou no fundo dos olhos.
– Não. – a resposta fez ele sorrir.
– Antes que me entregue isso, que não sabes o que é, quero te fazer
uma pergunta.
– Faça.
– Se tivesse perdido o acordo, acredita que poderia me amar, ficando
aqui? – ele olhou em volta e depois voltou a olhar para ela – Ficando
comigo e com meu mar?
– Eu não sei, eu não o conheço.
– Mas conheceria, teria todo o tempo do mundo para conhecer.
– Por que quer tanto isso? – a pergunta dela fez ele sorrir com
tristeza.
Ele suspirou e fechou os olhos por um instante.
– Sempre fui infantil, brincando com meus castelos de areias e
animais de estimação. – a mão dele mergulhou na água e trouxe-a para
cima fazendo-a escoar entre os dedos – Sabe qual o pecado das crianças?
– Eu pensei que elas não tinham pecado. – a dama respondeu.
– Ohh, por favor, não me entenda mal. – ele sorriu – Não é um
pecado, mas um reflexo... Elas desejam, a ponto de invejar.
– Inveja é uma palavra forte.
– Sim, é... – ele pegou o retrato da mão dela e o estudou – Esse
retrato não é meu coração, mas representa o que é meu coração.
Ela olhou para o casal com roupas sociais e belas, descalços ao sol com
sorrisos nos rostos.
– Um dia dois amantes visitaram o mar, se banharam nele e deitaram
sobre o luar em sua praia. – o Afogado segurava agora o retrato pousado
pequeno entre suas grandes mãos – Eles se amavam tanto, mas tanto, que
quando se abraçavam uma estrela explodia. Então, o mar, apaixonado e
carente de inveja os desejava. Queria aquele amor para ele, em um ato de
egoísmo, quando o jovem entrou no mar, o mar o tragou em sua violência e
falta de compostura. A sua amada, gritou, mas o mar não ouviu e nunca
devolveu o que ela perdeu. Pouco tempo depois a amada se entregou ao
mar, mas esse calmo estava, em águas calmas ela se jogou e afundou.
Mesmo calmo o mar a tomou, pois até em sua forma mais tranquila é
ameaçador... Foi uma perda desigual... Sim, foi...
– Foi você? – perguntou a dama, mas ele agora lhes olhava com água
escorrendo os olhos.
– O mar... Tolo, mar, grande e desigual... Monstro esse mar... O
amor pequeno de duas crianças jamais poderiam preenche-lo.
Ela olhou para o retrato e em seguida par ao homem de cabeça baixa que
derrubava algumas poucas gotas sobre ele.
– Aqui... No fundo do mar, não há ninguém... – o Afogado sorriu e
então a encarou – Mas poderia ter você...
Ela sentiu os olhos se avermelharem e a vontade de chorar por ver
naquele homem a fraqueza de todos os homens que conhecera em sua vida.
E amava-o ali como amara eles.
– Mar... Eu não posso amar o mar... – ela sorriu e limpou a lágrima
dos olhos – Sou pequena demais para ele... nunca poderia preenche-lo.
Então ela beijou as bochechas dele e acariciou seu rosto com ternura. Ele
fechou os olhos e ela sentiu então em sua outra mão algo úmido e duro
como rocha. Ela dirigiu o olhar e viu o coração trazido pela água. A dama o
pegou e observou a rocha que não demonstrava palpitar se incendiar em cor
e começar a bater em sua mão.
– Este retrato, não é meu coração, é bem verdade... Mas representa o
que ele representa. – o Afogado entregou a ela uma faca velha e sorriu
fechando os olhos pondo o retrato contra seu peito enquanto cruzava os
braços em seu movimento.
A dama então o abraçou, o máximo que pôde. Pondo os braços em volta
da cabeça dele como uma mãe faria com seu filho e então cravou a faca no
coração do homem. E pouco a pouco ele foi se desfazendo no abraço dela,
encolhendo, até virar água e enquanto isso acontecia as luzes pareceram se
fortalecer enquanto a água começava a entrar e tragar o lugar. Ela se
levantou enquanto a água entrava por todos os cantos e quando tudo se
inundou, saiu pela primeira saída que pôde para o fundo do mar, nadando
em direção ao sol.
O castelo afundado agora na escuridão e ela agora, indo para a superfície.
Com esforço se postou sobre o mar e viu as gaivotas voarem ao pôr do sol.
O mar pareceu arrasta-la para a praia e quando nela chegou, viu o faroleiro
sentado na areia e bebendo de uma garrafa.
– Cinco dias se passaram desde que você foi, pensei que não haveria
mais. – o homem disse.
Ela recuperou o folego e se levantou sentando-se na areia.
– Estrelas negras surgem sobre nós. – o faroleiro falou e ela mirou
para o céu vendo três estrelas que brilhavam com uma luz escura em seu
interior.
A dama se ergueu e se voltou em direção a cidade. Pôde ver o castelo ser
erguer ao longe. Respirou profundamente e começou a caminhar.
...
Tinha passado muito tempo nos últimos dias ao lado de Gregório, mais
do que o cabível. Poucas vezes encontrou-se com Bernardo apesar da jura
de manter amizade, esse afastamento era mais por parte dele do que dela,
ele estava se centrando em novas coisas, novos hobbies, novas metas, dizia
estar planejando pôr a vida nos trilhos apesar da dor que sentia e ela
admirava isso.
E o tempo começava a passar. Antes que pensasse que não, ela e
Gregório conviviam juntos tanto na casa dos pais dela quanto na casa de
Alfonso, quanto por toda a cidade, eram como donos do mundo e o mundo
se dobrava a vontade dos dois. Ela já sentira a sensação antes, mas agora,
era diferente por um motivo óbvio até demais, era completo. Como um
ciclo, completo, infinito em si e perfeito, impossível de explicar a quem
nunca teve, mas compreensível ao olhar de quem tem.
E eles tinham, era visível, pelo modo como nunca ficavam sem assunto,
pelo modo como ele reparava quando ela ajeitava seu cabelo para o lado
direito do ombro, pelo modo como ela reparava que ele dava quatro giros
na xicara de café, pelo modo que ele notava que ela escrevia com a mão
inclinada e com mais força nas letras retas num esforço de mantê-las
realmente retas. Mas acima de tudo, pelo modo como eles se olhavam em
qualquer situação e ambos sabiam o que o outro queria dizer, como dois
bons amigos de longa data.
Além disso, ela nunca mais tinha visto Pietro, não que sentisse sua
presença de vez em quando, mas a presença de Gregório parecia ter feito-o
sumir, na verdade, ter feito muita coisa sumir. Agora ela havia começado a
trabalhar em uma floricultura que seu pai montara, ele lhes dissera que era
um pequeno investimento para ela e Gregório, não lhes faltava dinheiro
pelos tesouros que achara assim como seu tio, então ele investia em
pequenos empreendedores e ideias visando edificar um império de
criatividade. Tudo parecia perfeito.
Certo dia, enquanto ela estava fechando sua loja, ao entardecer, Gregório
veio visita-la para leva-la até sua casa como de costume. Quando chegaram
em frente a casa pararam diante do poste, estava tudo vazio e apenas os
dois se olhavam ali.
- Eu tenho algo para você. – Gregório falou.
– Já sei, uma aliança de casamento? – ela sorriu e ele deu uma breve
risada.
– Não, não, já quer casar? – ele riu.
– Vou deixar você dizer que quer primeiro. – ela disse recostando o
ombro sobre o poste.
– É claro que vai. – ele cutucou a testa fazendo ela revidar com um
breve chute.
– Então, o que é?
– Bem, é uma surpresa, só abra a meia noite de hoje. – ele entregou o
saquinho de presente vermelho a ela.
– Por que só a meia noite?
– Porque faz parte do ritual que aprendi.
– Ahh, é algo relacionado as suas viagens.
– Sim. – ele assentiu.
– Ótimo. – ela pegou ansiosa o saquinho, mas não tentou desfazer o
laço dourado. Ambos se olharam e sorriram, ele olhou para a porta para
checar se os pais dela apareceriam e a beijou.
– Até. – ele disse se afastando.
– Até. – a garota se despediu e foi para sua casa acenando para ele
antes de entrar.
Subiu para o quarto as pressas e lá se sentou olhando o saquinho. O
abriria ou não? Não, esperaria até a meia noite... Mas queria ver o que tinha
dentro, pensou em passar a mão por cima do tecido vermelho, mas quando
apertou sentiu que o que tinha dentro era de tecido também. Suspirou e o
pôs de lado, tinha de se distrair até a hora, que tal se dormisse? Sim,
dormiria até a meia noite? Melhor, leria até a meia noite.
Buscou entre as peças que tinha, ainda tinha muitas que ainda não lera,
muitas mesmo. Passou os olhos e por fim ainda ficou com Shakespeare,
tinha outras que lhes chamavam atenção, mas não cansava de Shakespeare.
Leu por muito tempo, até o pescoço doer e resolver deitar-se na cama para
relaxar o corpo, mas seguiu lendo.
– Está ansiosa. – a voz de Pietro a desperto do Rei Lear.
– Estou... – ela sorriu pegando o cobertor devido ao frio que se fez
no quarto.
– Eu sinto falta. – ele foi até a janela e deixou a lua iluminar sua
forma pálida.
– Do que?
– Do calor, pensei que iria encontra-lo em morte. Talvez esse seja o
preço do suicídio não?
– Talvez, você esteja me visitando para achar a luz? – a garota o
perguntou, mas ele apenas sorriu em resposta, do mesmo modo que sorria
quando vivo, mas diferente.
– Talvez eu já sei onde está a “luz”... Vejo que está com Gregório.
– Sim.
– Ele é um bom homem
– Vocês dois são. – ela sorriu e ele assentiu em resposta.
Der repente, uma badalada no relógio do corredor chamou a atenção de
ambos e ela se virou para o saquinho.
– É a hora. – ela se animou e acelerou em direção ao pequeno
saquinho vermelho.
– Espere. – Pietro pediu – Eu tenho algo a dizer.
Ela o olhou com a mão na fita dourada.
– Eu preciso de pedir algo. – Pietro se aproximou dela pegando com
suas mãos geladas na dela.
– Fale.
– Eu partirei ao amanhecer, minha querida... Pretendo nunca mais
visita-la. – a voz dele parecia triste enquanto falava e carregada de solidão
– Mas gostaria que me fizesse um favor, eu sei que talvez seja pedir
demais...
– Pietro. – ela o olhou nos olhos – Peça.
– Me deixe possui-la até o amanhecer, digo, sentir o ar de novo, o
toque, tudo... Apenas mais uma vez.
Ela pareceu confusa com o pedido dele e se sentou na cama pondo o
presente de lado e refletindo.
– Como seria isso? – os olhos dela repousaram em suas mãos.
– Seria rápido, nada demasiado assustador, você não sentiria nada,
prometo. – Pietro explicou – Mas preciso de sua permissão, preciso que
seja de bom grado para não brigarmos dentro de seu corpo.
– De bom grado... – ela refletiu por um instante.
– Prometo que terá tudo de volta ao amanhecer. – ele lhes estendeu a
mão – Quando eu perguntar, você só precisa dizer sim...
– ... Apenas, me dê um instante. – ela abriu o saquinho enquanto
Pietro esperava pacientemente.
Após abrir o saquinho ela notou que era um linho branco enrolado, o qual
ela desdobrou e abriu. Do tecido caiu um pequeno objeto sobre a cama. Os
olhos dela pousaram então sobre o anel. Seu coração estancou, sua
respiração parou, o mundo colidiu e explodiu e seus lábios se abriram em
um sorriso enquanto as lágrimas molhavam seu rosto.
– Meu Deus, meu Deus! – ela saltou de alegria segurando a aliança
na mão e depois dirigiu o olhar para o tecido e o leu – Se você deseja, abra
a janela e grite sim.
Ela voltou o olhar para Pietro e se dirigiu a janela.
– Espere, antes disso, me permita possui-la! – Pietro implorou, mas
ela já tinha aberto a janela e olhava para Gregório na rua que mostrava a
mão com uma aliança no dedo a ela e segurava um buque na outra.
– O que vai ser?! – Gregório gritou com um enorme sorriso no rosto.
– Sim... – ela sussurrou e então se esgueirou para frente para dar um
enorme grito abrindo a boca e tomando todo o ar da terra.
Assim que ela o fez, o fantasma de Pietro entrou pela sua boca e Gregório
apenas viu sua amada desmaiar e cair sumindo do parapeito da janela, no
escuro.
Quando ela abriu os olhos estava em um lugar escuro e úmido. Olhou em
volta buscando algo e uma neblina se formou a volta. Der repente ela viu
uma luz se acender no céu e algo enorme tomar frente a luz. O gigante a
olhava com sua silhueta sombria. Ali, no escuro, sozinha com ele, ela
sentiu. Medo.
...
Ela olhou para os cadáveres no chão. Um deles tinha a cabeça de uma
coruja e tinha um olho pendurado em seu bico, olho que pertencia a mulher
morta ao seu lado. Ficou sentada na mesa bebendo do suco, impassível a
visão. Havia invadido a residência para evitar os loucos que vagavam pela
cidade, estava cansada de lutas e aqueles corpos ali, não foi ela quem
causou. Tinha de ir até o hospital, se atualizar sobre a situação e tinha de
encontrar os outros corações.
Olhou para o homem com cabeça de coruja e refletiu enquanto o cheiro
de sangue entrava em suas narinas. O que o tornara daquele jeito? Lembrou
da mulher e seus experimentos... Sim, aquela criança... Refletiu.
Levantou e revistou a casa em busca de pistas, era pequena, mas não
havia nada. Então se voltou para o homem, virou o cadáver com o pé.
Roupas modestas e sujas, nada de extravagante. Notou no braço furo de
agulha, mas fora isso, a cabeça parecia ter nascido ali. Saiu da casa.
Na rua o fogo queimava certas partes. Poucas pessoas caminhavam agora
armadas e enlouquecidas. Na verdade, um silêncio se fazia. Os sinais de
morte e devastação estavam claros em todos os lados que se olhava, mas os
culpados estavam tranquilos e serenos. Enquanto caminhava com
autoridade, ela viu uma mulher em sua cadeira de balanço segurando um
bebê. Olhou de relance e notou que o bebê não passava de um braço
enrolado em cobertores. Seguiu tentando não pensar onde estava a criança
que deveria estar ali.
Passou por uma grande cortina de fumaça e viu alguns vândalos
revistando os destroços de uma casa. Ignorou-os. Enquanto caminhava viu
uma ponte onde uma das aranhas com rosto humano brincava com um
cadáver e mordiscava sua pele. A cena a enojou menos do que deveria. Viu
dois cachorros comerem um corpo de uma mulher com cabeça de pombo,
aquilo lhes chamou atenção. Os cães sarnentos se alimentavam com
vontade enquanto a cabeça de pombo olhava para ela de forma fria.
Ela quase deu um pequeno grito quando a cabeça piou e a mulher pegou
um dos cachorros e começou a bica-lo enquanto o outro cão mordia seu
braço. A pomba bicou a cabeça do animal matando-o, mas caiu para trás
em seguida e foi devorada pelo outro feroz cão.
A dama seguiu seu caminho. Nada disso importava, minar o mal não
significa nada se não corta-lo pela raiz, mas ela não estava ali para nenhum
dos dois. Será que seu marido a reconheceria quando voltasse?
Ela parou então para ver uma mulher com uma bengala sentado num
banco. A mulher a olhou e depois desviou o olhar, não parecia louca como
os outros.
– O que quer? – a mulher perguntou.
A dama encarou a mulher.
– Você é louca, todos são loucos. – a mulher chacoalhou sua bengala
– Eles querem que todos nós morramos! As pessoas com cabeças só são o
começo.
– Quem quer? – a dama perguntou.
– Eles.
– Eles quem? – estava impaciente.
– As joias, eles querem tudo, só para eles. – a mulher deitou der
repente no banco – As cabeças só são o começo.
A dama refletiu por um instante.
– Sabe onde tem mais pessoas com cabeças dessa forma? –
perguntou ela para a mulher de deitada. Por que estava fazendo isso? Não
era da sua conta... Mas a menina... – Sabe onde encontro mais?
– Casa das Vermelhas. – a mulher respondeu e fechou os olhos.
A dama seguiu caminhando. Procurou seu mapa. Estava molhado, abriu-o
com cuidado e entrou em um beco para ter certeza que nada a atrapalhasse.
Observou o mapa, não estava muito longe do lugar que ela disse. Mas antes
precisava repor seu estoque, buscou mais e encontrou uma pequena loja
que poderia servir.
Se dirgiu ao lugar sem pressa, estava exausta e se desgastar não ajudaria
caso se iniciasse um combate, no entanto, ninguém a atacou. Quando
estava chegando no lugar, viu uma cena que a fez parar na rua escura.
Debaixo de um foco de luz, quatro homens puxavam mulheres para fora e
as seguravam no chão. Eram duas e ambas não expressavam nenhum grito
ou pedido de socorro. A dama observou calada.
Notou que todos vestiam preto e todos só gritavam uma coisa “Honra ao
primogênito”. Quando um deles abaixou a calça para abusar de uma das
mulheres silenciosas, a lâmina dela atravessou sua cabeça saindo com a
ponta pela testa. O outro fez um movimento de quem iria sacar uma arma,
ela cortou seu antebraço fora e cortou sua garganta.
Os dois últimos ficaram de frente a ela, ambos segurando porretes.
– Estamos fazendo o trabalho abençoado, temos permissão, livres
somos. – um deles vomitou para ela.
– Então me deixe liberta-los. – ela saltou sobre o homem e perfurou
seu tórax, enquanto o outro vinha a sua direita com o machado, tolo, ela
arremessou a machadinha em seu nariz perfurando profundamente seu
rosto. Ele caiu de imediato.
Ela se levantou e desamarrou as mulheres. Ambas apenas voltaram para
dentro da casa, não disseram uma palavra. Estava cansada. Pegou sua
machadinha de volta e o machado de um deles, seguiu seu caminho.
Chegou a pequena loja de armas, entrou pela porta no local escuro e
destruído e buscou ascender uma lamparina.
Enquanto caminhava pela loja pegou munição e lubrificou suas armas.
Após isso sentou-se sobre o balcão e apagou a lamparina. Ficou ali no
escuro refletindo. O que estava fazendo ali, naquela cidade? Não notara o
quanto era humana? Chegara longe é verdade, mas morreria tentando
ressuscitar o marido.... E se fosse isso? E se ela fosse suicida? Apenas
suicida? Deitou-se sobre o balcão, não seria tão ruim.
Suicida... Ouviu então um estouro lá fora que a fez se levantar num salto
e sacar as armas. A luz de um poste havia estourado... Ficou observando a
escuridão, buscando a origem do que ouvira, então viu uma pequena luz se
acender. Uma vela na verdade. Ela observou a chama e refletiu sobre sua
origem.
A vela começou a se mover subindo e descendo, como se passeasse
brincando no escuro. A dama ficou parada fitando a imagem. Foi então que
ela sentiu um arrepio na pele, o que estaria segurando a vela? Quem estaria
segurando a vela? Ela se indagou durante um momento.... Um monstro?
Um ser humano louco?
A vela começou a vir em direção a ela, a dama recuou para o fundo da
loja, sentiu as costas tocarem a parede. A vela parou em frente a porta, ela
não via quem carregava. Então a vela se moveu um pouco em direção a ela
e ela destravou a pistola. Nesse momento viu a figura de manto vermelho
escuro, encapuzada com um capuz negro que ocultava seu rosto, a única
coisa que se destacava realmente era um pequeno alfinete dourado no
tecido de seu manto.
A figura encapuzada se aproximou e estendeu a mão, a dama continuou
parada. Ela reparou então que vinha um sussurro da figura, prestou mais
atenção enquanto o suor descia por sua testa.
– Miac’o, Miac’o, Miac’o. – a figura movia os lábios velhos
repetidamente chamando-a, como se proferisse algum encanto. – M-mas...
Ele parou de súbito, como se tivesse entendido que não iria funcionar o
que tentara. Quando reparou isso vendo a posição dela imóvel e com a
arma apontada para ele, deu as costas.
– Ei. – ela falou sentindo o pulso parar – Você não falar disso na
minha frente sem levar isso de presente. – ela atirou nas costas dele
fazendo-o cair em seguida. Após isso ela se aproximou com um alivio –
Que susto maldito...
Olhou para as vestes dele, um manto escarlate e um capuz, fora isso,
perfeitamente humano... Mas o que exatamente ele queria? Estaria
realmente tentando fazer algum tipo de encantamento proferindo aquelas
palavras nojentas? Ela seguiu seu rumo, após menos de dez minutos
caminhando pôde ver uma grande casa iluminada em meio a escuridão.
Se moveu para um pequeno canteiro de rosas e misturou-se entre os
arbustos para observar o local. Um edifício de dois andares com telhados
vermelhos e frente de tijolos cinzas. Nada de especial fora as luzes acessas.
Reparou logo numa dupla que chegava, ambos encapuzados e com mantos
escarlate, além do pequeno alfinete dourado no peito.
Esperou eles entrarem para voltar a loja de armas e tirar o manto do
homem junto a seu capuz. Após vesti-los se dirigiu ao lugar as pressas.
Sentia a curiosidade arranhar o cérebro e o peito subir e descer.
Subiu as poucas escadas até a porta e leu o letreiro. “Casa Vermelha –
Hotel”. Abriu a porta com cuidado, mesmo disfarçada, tinha receios. O hal
de entrada era como de um chique hotel, um grande tapete vermelho
estendido no chão, sofás confortáveis e claro, uma recepção. Havia escadas
laterais com paredes enfeitadas de quadros com figuras bem trajadas e além
das escadas, havia duas entradas ao lado das mesmas que levava ao que
parecia um lugar extremamente mais iluminado do que o hall de recepção.
Seria um salão?
Começou a ouvir um som de violino, vinha dessas duas entradas, mas ao
invés de seguir para elas, subiu a escada. Quando as subiu, se viu em uma
plataforma que levava a várias portas, possivelmente os quartos. De onde
estava podia ver o grande salão iluminado com lustres no teto, estava
espantada.
Não, não estava espantada com o grande salão e sim com as pessoas
sentadas. Havia de um lado em torno de vinte pessoas sentadas em cadeiras
com mantos vermelhos e capuzes negros como ela e no outro extremo mais
vinte pessoas, essas vestiam mantos vermelhos também, com um
diferencial, tinham máscaras pretas de gato cobrindo a face. E todos, sem
exceção tinham um alfinete vermelho.
Ela reparou que alguns, demonstravam anéis brilhantes e colares, assim
como a boa arrumação do cabelo. Mas nada disso importava comparado ao
toque estranho de uma cascata de liquido vermelho que advinha de cima e
respingava numa espécie de fonte de vinho com um sátiro esculpido, essa
fonte drenava o liquido junto ao vinho e abastecia várias taças a sua volta.
Quando elas enchiam, alguns deles se levantavam e pegavam, voltando a se
sentar.
Ela reparou também que a fonte que fazia tal divisão tinha pequenas
rodas, para ser movida e notou que todos ouviam a violinista com máscara
de gato tocar, ouviam com um profundo silêncio, parados como estatuas. A
única coisa que interrompia o som da música, era o caldo vermelho
pingando fino na fonte de vinho.
Foi com a parada da queda do liquido que ela olhou para cima, além dos
lustres. O que viu fez suas mãos se fecharem em volta do parapeito com
uma raiva contida e fria. Jazia o cadáver estirado de uma jovem mulher
com os braços amarrados por correntes e a expressão pálida e morta. Ela
reparou na nudez da mulher que a mesma tinha marcas roxas por todo o
corpo e pior, lhes faltava os dedos dos pés, haviam sido cortados para que o
sangue desce e alimentasse os “demônios” abaixo.
A dama sentiu o sangue subir a cabeça e fez uma longa aspiração para
poder se concentrar. Quando o sangue parou, dois se levantaram, um de
máscara e outro de capuz, ambos empurraram a fonte para um lado da sala.
Quando fizeram isso, as luzes se apagaram aos poucos deixando apenas um
lustre no centro acesso. O violino havia parado.
Ela ouviu apenas os passos de seus sapatos no assoalho e observou ambos
no centro mirando um ao outro. Então ambas as figuras começaram a
caminhar se mirando, como dois amantes antes de uma dança, mas a dança
que começou foi diferente. A figura com máscara de gato socou a outra e a
outra correspondeu puxando uma faca e avançando contra ele.
Ambos começaram a lutar, não demorou para os mantos saírem e o capuz
da figura baixar mostrando o rosto maquiado da mulher enquanto o sangue
descia de sua boca. Seu adversário de máscara de gato sangrava com um
corte no braço de sua lâmina.
A luta se seguia com ferocidade de animais. O homem removeu a faca
da mão da mulher e chutou sua barriga, mas ela não fraquejou, arranhou
sua face e buscou uma cadeira. Acertou a cabeça do homem com o objeto e
em seguida arrancou uma e suas pernas. O homem tentou reagir, mas a
mulher enfiou a estaca em seu peito, puxou e enfiou de novo, de novo e de
novo. O sangue se espalhou no assoalho.
Após isso a mulher ergueu os braços e desceu o corpo sobre o homem
beijando sua boca. Começou a remover sua roupa enquanto fazia
movimentos sexuais. A dama começou a sentir o estomago embrulhar.
Enquanto observava ouviu um som de tosse as suas costas. Se virou
ignorando por um instante as duas figuras no meio do salão e se dirigiu a
uma das portas de quarto. Era a número 1, girou a maçaneta e olhou no
chão do quarto uma figura.
Um jovem rapaz de corpo esquelético e cabelos finos a olhava com um
olhar de pavor.
- Não vou machuca-lo. – a dama falou e o jovem recuou mais para o
escuro.
Com um pouco de dificuldade seus olhos se adaptaram e conseguiram ver
a silhueta dele. Se aproximou e removeu o manto estendendo a mão a ele.
Ele não parecia querer aceitar de inicio, mas por fim pegou na mão dela,
tentou levantar, mas caiu.
- Devagar, devagar, eu vou te tirar daqui. – ela explicou.
Então vendo que ele não conseguiria andar, pegou-o no colo, pesava
como uma pena. Vestido apenas com uma calça o coitado parecia estar
quase morto. Deu uma última olhada em volta, mas não conseguiu nada,
apenas seu nariz que começava a reconhecer o fedor de urina e fezes do
quarto. Saiu dali com ele que repousava o rosto em seu peito.
Quando saiu se recusou a olhar para a cena abaixo, se permitindo ouvir
apenas os gemidos. Enquanto carregava o rapaz para fora do hotel, sentiu
um aperto no peito, como alguém poderia fazer aquilo com outrem? Se
perguntou quem eram aquelas pessoas? Seriam a elite de Cecidit? Todos
aparentavam abranger riqueza.
Já fora do hotel pousou o menino atrás de um arbusto.
- Eu vou voltar e resgatar mais, não se mova. – falou a ele, quando se
moveu para voltar ao hotel.
- Não.... Não ter mais... – falou o jovem com dificuldade.
Ela o encarou por um instante, ele a soltou e ela se moveu como uma fera
com sede de sangue em direção ao hotel. Quando entrou estava com as
pistolas em mãos, faria um massacre. Parou um instante na recepção para
decidir se tentava resgates primeiro ou fazia uma chacina, a resposta de seu
ódio foi obvia.
Entrou no salão onde vira todas aquelas pessoas antes. Estava um escuro
tão cheio quanto o silêncio. Sentiu o coração palpitar, eles poderiam pega-
la a qualquer momento. O corpo suava por debaixo das roupas, suava tanto
que elas grudavam nela, foi dando passos curtos, com as costas tocando a
parede e uma das mãos procurando o interruptor.
O encontrou, hesitou antes de usa-lo. Estariam eles cercando-a nesse
momento? Não tinham como saber que ela estava ali, correto? E ela estava
armada... Mas e eles? Quem eram eles e por que faziam aquilo? Imaginou
as figuras ali cercando ela, quando acendesse, aqueles monstros estariam
ali, quando acendesse.... Recuou a mão e por fim imaginou a mulher
pendurada no teto, o jovem lá fora que estava entre suas próprias fezes, as
pessoas que poderiam estar trancadas naqueles quartos. Rangeu os dentes,
franziu o cenho e acendeu.
O salão estava vazio. Apenas as cadeiras e o sangue no chão. Nem
mesmo a fonte se encontrava ali. Todas as pessoas haviam sumido. No teto
a figura da mulher não se encontrava. Com velocidade se dirigiu para as
escadas e invadiu quarto por quarto, em nenhum encontrou pessoa, apenas
vestígios de roupas rasgadas, fezes, urina e sangue. Enlouquecida e cheia
de questões deixou o hotel. Parou na sua porta fazendo uma busca na rua,
ninguém.
Se dirigiu até onde deixara o rapaz. Ele estava deitado de costas para ela.
O virou. Os olhos fechados não se abriram, pegou-o no colo e tirou o rapaz
morto dali.
– Está livre, pequena criança. – sussurrou para a cabeça do cadáver
em seus braços e lhes beijou como uma mãe diz boa noite a seu filho antes
de deixa-lo em um sono tranquilo e seguro.
...
Enquanto caminhava no escuro ela viu um pequeno ponto de luz que
seguiu. O gigante havia desaparecido e ela estava sozinha seguindo o
ponto. Caminhou sem se concentrar, apenas andando um passo de cada
vez. Assim que atravessou a luz se viu numa praia cinzenta. O mar também
tinha a cor e o céu estava nublado. Tudo parecia morto e sem vida.
Uma neblina não a permitia ver o resto do que parecia ser uma ilha. Ela
seguiu neblina a dentro buscando algo, não sabia o que, estava assustada.
Enquanto andava começou a se ver dentro de uma floresta. As árvores
convergiam para o céu dando cada vez mais uma sensação opressiva.
Enquanto arrastava seu pijama pela floresta sentiu que estava sendo
seguida, se virou para procurar quem a seguia, mas não viu ninguém.
- Pietro? – chamou buscando vê-lo – Não seja burra... Aquilo não era
o Pietro... Era aquela coisa.
A coisa a enganara para tomar o controle dela, mas de alguma forma ela
sabia que aquele gigante não estava comandando seu corpo, podia sentir
como se um instinto superior a falasse.
Caminhou durante horas floresta a dentro, não sentia o corpo cansar, mas
a mente, a mente se abalava a cada passo. Quando parou por um instante
encostando as costas numa árvore, ouviu o som de estalo em algum lugar a
volta. Arregalou os olhos e procurou saber de onde vinha o som. Não
conseguiu identificar, mas ouviu mais, de passos, se aproximando. Ficou
paralisada contra o tronco da árvore.
Parou de respirar, os passos se aproximavam. Parou de piscar os olhos, os
passos se aproximavam. Correu, correu sem olhar para trás. Fosse quem
fosse, não queria saber. Enquanto corria desesperada cedeu e olhou por
sobre o ombro. Viu apenas ao longe na neblina a silhueta de um homem
extremamente alto e esguio. Seu coração travou e em seguida acelerou
como um cavalo de corrida.
Quando finalmente desacelerou após sentir as canelas queimarem e o
suor ensopar o rosto, parou para respirar e levou um tempo até notar que
tudo que estava sentindo era projetado pela sua mente. Mesmo assim, ainda
fugia de controle. Não era seu corpo de verdade, tinha de se lembrar disso,
era sua mente e ela estava sozinha nela. Não, não sozinha, ela e aquela
figura.
Parada ali tentou ouvir o ambiente. Nada. Se concentrou novamente até
que ouviu uma voz chama-la. Ouviu um “volte”, começou a buscar a voz.
Correu atrás dela, seria sua saída? Após alguns metros correndo, a voz
sumiu e ela se viu caminhando por folhas secas abandonada novamente.
Caminhou mais, entre as milhares de árvores, buscando a voz, mas nada.
Horas e horas depois de caminhar, se virou buscando na neblina algo de
diferente. Nesse momento viu a figura a seguindo ao longe, porém, dessa
vez ela não correu, se postou e ficou esperando ele vir.
Ele ficou ali, ao lado de uma árvore ao longe na neblina, quase como
uma miragem a observando. Ele não vinha e ela não ia. Ambos ficaram
parados. O medo ia e voltava enquanto ela o olhava. Ele não fazia um
movimento, não parecia nem mesmo respirar, ela, estava em igual estado.
Um era o reflexo do outro.
Ele se moveu. Deu um passo a frente com as longas pernas e outro, outro.
Ela voltou a correr. Ele avançava e avançava como uma sombra gigante
que a seguia. Quando ela estava pegando distancia, sentiu algo acertar sua
perna, como um arpão. Gritou, nesse momento esqueceu toda a filosofia de
que aquele não era seu corpo e sentiu a lâmina erguê-la do chão enquanto
ela gritava.
Ele a ergueu até sua face. Agora mais alta em relação ao chão. Ele havia
se modificado, ficado como o gigante que ela virá no parque, que virá
quando foi ao sitio com o Bernardo. Sua face branca se contorcia enquanto
ele abria a boca para mostrar da língua preta se erguer um humanoide. A
criatura começou a ir em direção a ela, o que fez com que em meio as
lágrimas ela tomasse uma atitude desesperadora. Começou a se mover na
ponta da garra que atravessava sua perna para escorregar por ela. A cada
movimento gritava, a dor era tanta que se tornava quase impossível de
sentir, ela aproveitou isso enquanto as veias saltavam a face e as lágrimas
aos olhos. Caiu.
Quando atingiu o chão começou a rastejar para longe da enorme figura
que a observava faminta. Ele movia sua mão de novo em direção a ela
enquanto ela tentava levantar. Quando conseguiu começou a correr aos
tropeços enquanto ele observava.
Não andou muito arrastando a perna para ele colocar sua enorme mão
com olho a frente dela. A reação dela não poderia ter sido melhor. Socou
com um grito feroz o enorme olho negro que fez o gigante cambalear e
recuar de dor para trás. Aproveitou esse momento para seguir neblina a
dentro. Nesse instante de desespero pôde ouvir a voz chamar.
Volte. Não estava longe. Começou a segui-la e a falar todos os palavrões
que podia como motivadores. O gigante agora voltava-la a segui-la
vagarosamente, um passo dele era vários dela afinal. Mesmo assim, ela
seguia firme. Volte para mim. Nesse momento compreendeu quem era,
sorriu.
Com mais esforço ainda, correu. A criatura a seguia derrubando árvores e
esmagando terra e ela tentava esconder-se entre as árvores e caminhar
mais. O gigante cósmico parou tentando compreender onde ela estava, teria
perdido ela ou estava brincando? Não importava, ela seguia a oração que a
voz agora fazia.
Quando se deu conta havia chegado a praia, o mar cinzento ainda
banhava a areia e não havia nada além do infinito oceano. A voz vinha do
mar, chamando-a, orando por ela. O gigante agora se aproximava as costas
dela, derrubando tudo. Em uma atitude de desespero entrou na água.
– Estou aqui! – chamou desesperada – Estou aqui!
Avançou pelo mar afundando todo o corpo e atravessando as ondas
fortes. Por favor, volte. Me escute.
– Eu estou ouvindo! – gritou e a água adentrou sua boca fazendo-a
tossir. Uma onda a cobriu e começou a se afogar.
Quando subiu para a superfície outra onda a sufocou. Com esforço subiu
novamente e olhou para trás, para ver o gigante entrando no mar. Volte e
me dê sua resposta. Volte e seja a minha rosa. Volte e case-se comigo. Está
ouvindo. Casa comigo?
– Sim! – gritou desesperada enquanto o mar a afogava e o gigante se
aproximava.
O monstro a pegou de dentro da água e a ergueu enquanto ela lutava para
se soltar de suas poderosas mãos em meio as tossidas.
– Sim... – falou vomitando.
O gigante abriu a boca escura e ela fechou os olhos sentindo as lágrimas
afluírem a face.
– Sim, somente sim. – rezou a prece implorando aos céus.
Olhou para a boca abaixo, sentiu os dedos a soltarem, uma língua com
várias mãos surgir e uma figura escura para agarra-la. Cada vez mais perto
de ser tragada. Cada segundo. Tudo se perderia ali... Tudo.
Chutou a face da figura na língua tomando-o como impulso e jogando-se
de volta no mar com uma risada.
– Sim. – falou sorrindo e afundou novamente no mar.
A mão do gigante afundou buscando-a, mas ela escapou entre seus dedos
e foi afundando cada vez mais dizendo sim, sim, apenas sim, tudo sim.
Abraçou a si mesma no frio e com a palavra nos lábios.
– Sim. – disse abrindo os olhos e olhando para Gregório ao lado da
cama de hospital.
– Como? – ele sorriu arregalando os olhos enquanto as lágrimas de
sua face eram tocadas pelo sol da janela.
– Sim... – ela repetiu tonta, ele se levantou e a abraçou.
– SIM! – gritou ele chorando.
– Sim, sim. – respondeu ela rindo.
– SIM, SIM E SIM! – ele riu.
Sim
Capítulo 5
Olhou para o relógio do outro lado da rua. Quebrado, com o ponteiro
marcando onze horas e dez minutos. O sol iluminava a cidade, mas as
estrelas negras brilhavam quase imperceptíveis no céu, se alguém que
usassem algum tipo de óculos as olhasse poderia pensar que era sujeira.
Ela deu um suspiro olhando ao redor, a rua vazia com exceção dos corpos
no chão. Parecia que o dia acalmava a loucura a volta e fazia as pessoas
retornarem para suas casas. Ou o dia era noite para eles assim como para
ela. Pensou em seu marido... A noite passada havia sido um atraso, não
podia haver mais atrasos.
Se levantou e começou sua caminhada até o hospital. O cheiro de
queimado era constante e o de metal também. A fumaça era comum tanto
quanto suas casas incendidas. Entrou e saiu de becos, passou e olhou para
feridos, não se dispôs a mexer com nenhum deles.
Quando chegou as portas do hospital viu o gato preto parado a porta a
olhando pacientemente. Ele lambeu a pata com zelo e se moveu em direção
a porta que abriu sozinha permitindo a passagem de ambos. Ela o seguiu
pelos corredores até chegarem a uma sala vazia e fria sem janelas. O gato
olhou para cima enquanto as velas o iluminavam e ela seguiu seu olhar.
Acima deles o vampiro dormia de cabeça para baixo deixando-o os cabelos
seguirem a gravidade.
– Ele vai ficar assim até o anoitecer provavelmente. – falou Levi
com um tom de lamuria.
– Ele pode ouvir o que digo? – ela disse em voz alta.
– Não sei. – Levi ronronou e espreguiçou-se.
– Tenho perguntas. – ela foi até o canto da parede e sentou-se –
Quero faze-las a ambos.
O gato a encarou como que pensativo e em seguida se dirigiu a saída.
– Você precisa de descanso. – o gato parou a porta – Tenho um
quarto para você onde nada poderá te incomodar. Venha.
Ela o seguiu. Ele a levou a um quarto diminuto que a fez querer pedir
uma das alas com os doentes e feridos. Mas apenas se deitou na cama de
lençóis limpos e apagou num sono profundo.
Horas depois, quando acordou no quarto sem janelas, Eren estava
sentado num banco ao canto. Na penumbra da luz ele bebia uma taça de
vinho enquanto Levi dormia sobre um banco ao lado dele. Ela observou a
cena sem fazer movimento algum.
– Levi disse que você tinha perguntas. – Eren sorriu simpático, o
gato abriu os olhos e bocejou se levantando.
– Tenho. – ela sentou-se na cama sem pressa.
Os três ficaram em silêncio por um tempo.
– Fui ao hotel. – a dama ficou olhando para os pés descalços, eles
haviam trazido botas novas para ela assim como roupas e postado ao lado
da cama numa cadeira – A Casa Vermelha.
Nenhum dos dois esboçou reação, então, ela contou tudo que viu.
Nenhuma reação.
– O que significou tudo isso? – ela indagou – O que ambos querem?
– Conhece a lei do contrário? – perguntou Levi – Funciona muito
com crianças.
Ela não respondeu.
– Tentei aplica-la a você. – o gato a olhou como um leão –
Funcionou. No entanto, ainda sim tive previsões com você, em relação a
cidade. Parece que sua estadia aqui desencadeou muitas coisas ou essas
coisas iriam acontecer e sua presença só foi um detalhe nelas. Nunca
saberemos com toda certeza.
– Vá direto ao ponto. – ela respondeu entre os dentes cerrados.
– As pessoas no hotel. – foi Eren que respondeu – São crianças.
Crianças brincando por estarem entediadas, tanto crianças do príncipe
quanto do nosso amigo felino aqui. Gostam de sangue e rituais e fazem
joguinhos de “poder” no hotel, mas no fim, tudo não passa de diversão.
– É diversão para você o que eles fazem? – ela franziu o cenho.
– Nunca disse que era divertido para mim. – Eren parecia chocado
pela fala dela, ela só quis soca-lo.
– Quem são eles? – ela perguntou.
– A resposta estava a sua frente.
Todos ficaram calados e ela suspirou.
– Mais uma pergunta. – a dama se levantou indo em direção a suas
armas que eles disporão no chão, estavam limpas e lubrificadas. Ela pegou
o sabre. – Tenho encontrado pessoas com cabeças de animais e não sei
porque, meu cérebro quer relacionar isso a você... Levi.
Ela olhou para o gato que pareceu ignorar a fala dela e matar uma
pequena barata que passava com sua pata.
– Seu cérebro está certo. – o gato arrastou o corpo da barata pelo
chão e limpou sua pata na calça de Eren que o ignorou se concentrando no
sangue – Eu e Eren temos feito experimentos.
- Por que? – a dama pergunta apertando a empunhadura do sabre.
– Não é por motivos malignos. – Eren explicou – Somos monstros,
mas não como parece. As pessoas com partes modificadas não duram
muito, eu havia uma correspondente que estava fazendo tais estudos e me
reportando sobre os mesmos. Estavam tendo certos avanços.
– O que significam esses estudos?
– Estamos usando a biologia animal combinada com a humana e
bem, um toque de magia eu diria para conseguirmos avanços significativos
no ramo da medicina e cura.
– Por que sinto que essa não é a resposta correta? – ela indagou e
Eren deu de ombros – É verdade isso?
– Talvez. – o gato respondeu e Eren virou a cabeça para Levi
franzindo o cenho e semicerrando os olhos.
– O que quer dizer com isso? – o vampiro pôs a taça no chão e se
levantou formando uma sombra sobre o gato que com os olhos brilhantes o
encarava.
– Isso importa? Sua participação foi uma troca para acharmos uma
forma de trazer sua esposa de volta. – Levi olhou para a dama agora – A
resposta a essa questão está ali.
– Você está me enganando, gato? – os olhos de Eren ficaram
vermelhos.
– Você não foi enganado, se foi, foi por si mesmo. Apenas isso.
O vampiro acertou a mão na parede fazendo-a rachar, Levi não moveu
um pelo.
– Isso não importa. – a dama pegou as roupas e as postou sobre a
cama – Nós três temos objetivos. – sua voz estava mais fria do que
qualquer um dos dois pudesse conseguir – Ainda faltam corações para
matar.
– Menos do que imagina. – Eren respondeu – Eu tratei de eliminar o
cabeça de porco.
– Como?
– Ele pisou em meu território devido aos assassinatos de seus irmãos.
– Eren sorriu orgulhoso de si mesmo – Não foi trabalhoso, mas agora estou
com um baita conflito em mãos naquela região.
– Estou cansada de vocês dois e estou cansada dessa cidade. – ela
sentou na cama e os encarou – Não posso permitir que continuem
transformando crianças em monstros em busca de qualquer motivo oculto.
– ela apontou as duas pistolas que havia pego no chão para os dois – Isso
não vai mata-los, mas vai me dar o tempo que preciso.
– Não seria tão preciptada se fosse você. – Levi foi direto – Vamos
fazer um acordo, totalmente reformulado. Nós três.
Ninguém respondeu e então o gato continuou.
– O príncipe tem uma pedra consigo, provavelmente em seu cetro,
bengala, seja o que for. Ele não pode tê-la.
– Por que? – a dama indagou.
– Não sei quando com precisão, mas logo, um cometa em especial
irá passar. As estrelas negras, elas já estão no céu e quando o cometa
passar... Digamos que não será bom para nenhum de nós. É de suma que
tenhamos domínio da pedra no cetro antes que ele possa usar.
– E para que ele usaria? – perguntou Eren.
– Ele vai trazer seu avô para nós. – Levi o encarou – E se ele vier,
nenhum de nós terá chance de reverter a tragédia que vai ser... A pedra
não tem nada haver com ressucitar seu marido, é verdade, mas se
consegui-la, eu posso te ensinar a ler o livro que trará seu marido de volta.
– Eu sei ler o livro. – a dama falou.
– Não, você sabe ler as palavras, interpreta-las, mas não usa-las.
A dama suspirou.
– E a coisa dos corações, como fica? – perguntou a dama.
– Segue o mesmo plano. – Levi foi até ela – Os últimos corações
estão no castelo de qualquer forma, então, não muda em nada. A meta é a
mesma, execução, diferente apenas, creio eu.
– O que mais?
– Você precisa encontrar o Primogênito. – Levi disse e todos
ficaram de súbito sem respirar.
– Ele não é o príncipe? Ou coisa do tipo?
– Não, o príncipe usa o nome dele. – Levi caminhou pelo quarto
enquanto tomava a forma de um grande gato – Isso me irrita... Miac’o é o
pai do príncipe. Eu o servi no passado.
– Quer que eu o liberte? – a dama perguntou.
– Esse seria o último conselho que eu te daria. – o gato respondeu
incisivo – Liberta-lo envolve consentimento de sangue, na terra nenhum
ser ousaria tal tolice... Enfim, de qualquer forma, será ele que lhes dará o
conhecimento para ler o livro?
– O que me impede de conseguir o conhecimento e usar o livro, não
pegando a pedra e não cumprindo o trato?
– Eren. – Levi respondeu – Ele vai com você. Além do mais, caso
não saiba, talvez descubra quando ler o livro. A pedra faz parte do
encantamento. Ela pertenceu a o primeiro dono do mesmo e o príncipe tem
ambos, só lhes falta a situação correta... De qualquer forma, Eren vai
contigo.
– Você não teria chance sozinha naquele castelo. – respondeu Eren.
– Eu sobrevivi sozinha até agora. – a dama o encarou.
– Acredite em mim. – Eren foi até ela e falou em um tom
extremamente sério – É diferente, totalmente diferente lá dentro.
– Eu consigo minha pedra, você seu marido, Eren vê sua esposa e
matamos o príncipe. – Levi olhou então para Eren – De qualquer forma, o
príncipe deve morrer. Concorda?
Eren assentiu com certo temor nos olhos.
– Pois bem, temos um acordo. – o gato se moveu em direção a porta.
– Levi.
– Sim?
– Se eu for traída, se eu conseguir tudo e for a única que sair
perdendo...
– Ameaças vazias para mim. – Eu o empalo. – ela interrompeu ele
com o seu aviso e o gato seguiu para fora do quarto.
Eren deu uma risadinha da cena e então se voltou para ela.
– Ele não é mal. – Eren explicou.
– Mas eu sou. – a dama respondeu gélida – Pelo menos... pelo menos
agora.
– Você também não é má. – Eren se dirigiu para fora do quarto e ela
ficou sentada na cama.
Após um tempo ali refletindo sobre tudo, se trajou com as roupas limpas
e vestiu o grande sobretudo, junto ao seu chapéu. Estava quase pronta, só
faltava uma coisa. Ajoelhou, cruzou as mãos e.… entre lágrimas e soluços
rezou.
...
Quatro messes haviam se passado desde que ela ficará internada após o
apagão na janela. Pietro ou o que se disfarçava de Pietro, nunca mais
apareceu. Ela estava em pleno. Gregório não desgrudava dela e ela dele, a
data do casamento estava marcada e tudo fluía para que o mesmo
acontecesse logo, logo.
A última vez que falara com Bernardo, ele estava bem e se tornara grande
amigo de Alfonso conversando ambos de partir em uma última grande
viagem de Alfonso pelo mundo e com Bernardo como seu companheiro. A
notícia deixou todos felizes, seria como uma época de descoberta para um e
uma finalização para outro. Naqueles dias eles estavam cada vez mais
unidos.
O casamento seria no campo, no sitio que fora com Bernardo, havia a
fazenda do tio da dama, mas Bernardo insistira que fosse lá. Era como dizer
que não havia mais nada de ressentimento entre eles, ela teve de aceitar
após muita insistência. Todos se dirigiram para o lugar e ficaram no
casarão. Estava uma barulheira só, todos os parentes de ambos pareciam ter
brotado do chão e Gregório convidara todo mundo do clube.
Ela havia já escolhido seu vestido, claro, depois de sua mãe desaprovar
uns doze apesar de ela já ter escolhido o principal no segundo. Suas primas
vinham com mil falas diferentes, as tias deram os mais variados presentes
de casa e o único presente realmente útil para ela foi que Alfonso insistiu
em pagar seu vestido, aquilo a deixou tremendamente feliz.
Ela e Gregório mal conseguiram passar a semana do casamento juntos e a
única noite que passariam, era a noite anterior ao casório, noite em que
Gregório, Bernardo, seu pai e Alfonso junto a outros rapazes na casa foram
para a cidade beber.
A jovem no entanto se sentou a mesa que na verdade era um tabuleiro de
xadrez. E deu uma boa olhada no aconchegante quarto. Muito luxuoso, mas
quente. Após isso ficou observando pela janela o céu cheio de estrelas. Iria
realmente casar? Quer dizer... Se casar? Queria realmente aquilo? Refletiu
e começou a lhes faltar ar, era muita pressão casar, ter de jurar e ficar com
aquela pessoa para sempre. Sentiu enjoo, foi quando sua mãe entrou no
quarto.
– Filha. – a mãe falou em tom dócil entrar no cômodo.
– Oi. – ela respondeu passando a mão no cabelo jogando-o para trás.
– Eu sei que amanhã é um dia importante.
– É sim.
– E você está nervosa.
– Nem sei do que você ta falando. – ela deu de ombros e sua mãe
sorriu.
– Quando me casei com seu pai, digo, um dia antes, eu estava muito
nervosa sabe. – a mãe dela se sentou em frente a ela numa cadeira e
colocou uma vasilha fechada sobre a mesinha que era um tabuleiro de
xadrez – Eu tinha medo de que as coisas não saíssem como o planejado e
que... Que a minha vida mudasse demais.
– E mudou?
– Muito... Mas foi melhor do que qualquer coisa que já tive. Mas é
claro, eu não sabia disso, então fiquei louca, quase toquei fogo no vestido e
fugi.
Ambas riram imaginando a cena.
– E o que você fez então? – a jovem perguntou.
– Eu peguei exatamente esta vasilha. – a mãe abriu a vaslinha de
metal – E ela estava cheia de biscoito de povilho.
– Meu Deus. – ela riu vendo os biscoitos dourados e crocantes.
– E comi tantos enquanto bebia água que minha barriga inchou e eu
só pensava em deitar na cama e dormir.
– Isso te acalmou?
– Por que não testa? – a mãe dela pegou um dos biscoitos e mordeu,
ela fez o mesmo.
Então as duas começaram a comer os biscoitos com velocidade, logo era
como um vício imparável. Quando acabaram, a mãe fez um sinal para que
esperasse, saiu do quarto e voltou com dois grandes sacos que elas abriram
e comeram com água.
Fizeram isso até não aguentarem mais, chegando até a metade do saco.
Após isso ela se jogou na cama e a mãe saiu deixando-a sozinha, mas
alimentada e relaxada. Der repente sentiu um peso em suas costas e foi
olhar quem era. Gregório deitava sua cabeça sobre ela e a encarava.
– Voltou cedo. – ela disse com a cara no travesseiro.
– Sim... – ele sorriu – Fingi que ia no banheiro e fugi.
– Meu Deus... Eles vão ficar preocupados.
– Com toda certeza, vão me procurar até a hora do casório! Mas
assim eu posso dormir aqui com você.
– É claro que pode... – ela fechou os olhos.
– Ohh, então vamos dormir mesmo... – Gregório sorriu quando ela
não respondeu e fechou os olhos.
Depois se moveu para o lado dela e a abraçou. Todo o resquício de receio
desapareceu por completo naquele amado abraço. Ambos dormiram. Ao
amanhecer ela encontrou Gregório dormindo ainda, levantou e desceu para
tomar seu café.
Todos se sentaram na grande mesa de madeira da varanda e comeram um
grande café. O converseiro maior foi a grande questão de onde estavam
todos os rapazes, afinal, apenas dois meninos estavam a mesa porque eram
menores demais para saírem na noite passada. Ela riu vendo a dúvida na
expressão de todos.
– Só espero que cheguem a tempo. – comentou sua tia bebericando
de seu chá.
Não demorou muito após ela dizer isso e um grupo esfarrapado chegou
pela estrada de pedras. Bernardo, Alfonso, seu pai, seus tios, primos, alguns
mais chegados do clube, todos vinham com expressão de derrota e com as
roupas sujas. Quando chegaram até a mesa ficaram de cabeça baixa.
– O que houve? – perguntou a mãe dela.
– Nós... – seu pai começou.
– Eu falo. – Bernardo começou, mas o pai dela interrompeu e ele se
calou.
– Nós perdemos o noivo. – o pai dela brandou erguendo a cabeça e
não olhando para a cara de desaprovação da esposa.
– Como conseguiram perder um homem tão grande? – perguntou
Gregório da entrada para a sala com uma caneca na mão da qual ele bebia.
Todos a mesa riram da expressão dos homens diante da cena do rapaz
sorridente e sua caneca.
– Ora, o-onde você estava?! – Alfonso perguntou estupefato.
– Aqui, oras. – Gregório deu de ombros – Acho que beberam demais
e não notaram quando me despedi.
– Vocês exageraram a esse ponto na bebida? – a tia dela encarou a
todos.
– Deveriam ter vergonha. – falou a mãe da jovem.
– Ora, não vamos pegar tão pesado com eles. – Gregório veio e
passou a mão pelo ombro de seu sogro – Não é mesmo. Pai?
– É.… né. – o pai da jovem concordou e todos riram da cena.
– Vamos comer então. – Bernardo falou e todos começaram a se
servir.
Gregório se sentou ao lado da jovem e pegou em sua mão, era um sinal
feliz para todos a mesa. No fim da manhã a arrumação do casamento se
seguiu. E ela vestiu o vestido duas horas antes da hora correta, ficando
sentada na cama esperando o momento.
Lá fora erguiam-se lâmpadas e mesas, várias fileiras de cadeiras e
buques por todo o lugar. Ela olhava pela janela, seu cabelo, maquiagem,
vestido, estava toda pronta, por que tinham de demorar tanto?
– Também estou ansioso. – uma voz falou e ela gritou de desespero
ao virar e puxar a cortina pra se cobrir.
Era Gregório que sorria na entrada do quarto. Ao mesmo que sorria pela
surpresa dela, sorria pelo modo como seu cabelo estava arrumado numa
trança e com um fio caindo sobre o rosto abaixo da tiara, estava
maravilhado com a perfeição da visão e como ela não parecia mais aquela
moça que conhecera e ao mesmo tempo que parecia. Ele amava isso.
– Qual o seu problema?! – ela gritou desesperada – Saia daqui!
MÃE!
– Ei, calma ai, noiva. – ele riu – Eu só vim te perguntar se precisava
de algo.
– Não! Não preciso! – estava agoniada, ele estragara tudo e ela não
estava com o humor dos mais estáveis então sentiu vontade de chorar.
– Calma, calma. – ele entrou fazendo um sinal com a mão ao ver o
olho dela avermelhar – Ei, ei, calma.
– V-você estragou...
– Não, não estraguei, amor. – ele abraçou ela segurando a cortina –
Não vi nada ainda. Ei, ei. – Gregório pegou o rosto dela e a fez o olhar – Eu
não vi nada do vestido, certo? Mas eu sei que você está linda.
– Acha mesmo? – ela perguntou e Gregório a abraçou.
– Apesar de que sem o vestido e todo o resto ficaria melhor. – ele riu
e ela o deu um tapinha.
– Não estrague o momento.
– Eu não estraguei... – ambos sorriram enquanto ele a abraçava.
– Você estragou quando entrou no quarto.
– Já to saindo. – Gregório a largou e saiu porta a fora.
– E se arrume logo. – ela falou animada.
Ela começou a abaixar a cortina, mas a ergueu de volta quando a porta
reabriu de vez.
– Eu já estou arrumado. – disse ele apontando para a camisa de
algodão e a calça preta.
– Você quer que eu tenha outro surto? – ela indagou erguendo as
sobrancelhas.
– Me arrumo em um segundo. – ele fechou a porta e a deixou.
Ela sorriu, estava satisfeita com sua escolha. Por volta das quatro e meia
Gregório estava de terno no altar, as pessoas em suas cadeiras brancas, as
lâmpadas nos cordões ligadas e o padre pronto. Todos os convidados
acomodados e a comida na mesa. A banda começava a tocar.
Enquanto a banda tocava Alfonso acompanhava com comentários
pertinentes e uma expressão de emoção, Bernardo ao seu lado sorria, como
padrinho colocava as mãos no ombro do outro e sorria, sua felicidade era
sincera.
Foi quando ela apareceu. Na ponta do longo tapete vermelho uma mulher
esplendida em um vestido longo branco com detalhes em renda e em
pedrinhas brilhantes se mostrava. Um sorriso estampava seu rosto
maquiado e com uma tiara enfeitada com pequenas rosas. Seu pai ao lado
mantinha-se como um touro orgulhoso, mas era clara seu controle ante a
emoção.
Ambos começaram a caminhar enquanto o pôr do sol sobre as árvores
iluminava com seus últimos raios a passagem dela. Gregório dava pulinhos
no altar enquanto Bernardo e Alfonso tentavam contê-lo de tanta alegria e
nervoso que ele estava. As mulheres da primeira fileira já choravam, as
crianças observavam encantadas como se a jovem fosse uma criatura
mágica.
Uma menina cutucava a mãe e jurava que era uma princesa que vinha ali.
Talvez ela tivesse razão, era realmente uma princesa que a jovem parecia.
Quando o pai a entregou ao noivo no altar, as lágrimas vieram aos seus
olhos, ele beijou sua testa e foi ao encontro da esposa e de Alfonso. Era um
homem de valores antigos aquele pai dela e ela, ela pegava na mão de
Gregório e olhava o sorriso dele com tanto amor quanto alguém poderia
sentir, ao ponto de sentir que explodiria.
A jovem subiu no altar junto ao seu Gregório de mãos dadas. O padre fez
todo ritual e as perguntas que se fazem nessas cerimonias e ela nunca
considerara importante, somente agora, tinham um toque talvez especial.
Mas o que realmente especial foi quando o padre perguntou:
– você aceita?
Ela olhou para Gregório por um instante e buscou qualquer medo que
pudesse impedi-la de realizar aquilo e fugir. Olhou para sua família, para
Alfonso e por Bernardo. Em seguida voltou o olhar para Gregório.
– Aceito. – ela não tinha medo algum.
– Muito bem, pode beijar a noiva. – o padre finalizou e ambos se
beijaram com um sorriso de satisfação.
Após o beijo eles se encararam.
– E é isso. – ela sussurrou.
– E é isso. – ele respondeu, então a pegou no colo e gritou – É
MINHA! – todos aplaudiram e levantaram jogando arroz e ambos saíram
dali rindo enquanto ele a beijava várias e várias vezes. Na metade do tapete
ela jogou o buque para o alto deixando as mulheres se engalfinharem atrás.
Estava feliz, muito feliz.
Capítulo 6
Estava sentindo um nervoso sem igual enquanto caminhava com Eren
ao seu lado. O castelo não estava longe, se erguia com suas torres pontudas
e com seu bosque ao redor. Seu muros já podiam ser vistos com ameias
vazias, sem guardas. No caminho não houveram ataques, talvez a presença
de Eren tenha causado tais efeitos, talvez o próprio príncipe desejara dessa
forma, só descobririam ao alcançar a entrada.
As poucas pessoas nas ruas se escondiam no escuro enquanto os dois
caminhavam, quem ousava se aproximar menos que dez metros ela
cogitava em erguer seu rifle, mas o temor de tais observadores era maior.
Isso a tranquilizava um pouco.
Quando chegaram ao portão, ouviram um uivo vindo de cima dos muros.
Ambos ergueram os rostos para olharem para o lobisomem se ocultando em
parte na ameia. A fera rosnou e recuou sumindo.
– Vamos encontrar mais destes lá dentro? – ela indagou.
– Talvez. – Eren tocou no grande portão de madeira com adornos em
metal – Talvez coisa pior, esse castelo é grande e antigo.
Eren empurrou o portão e o mesmo se abriu com sua força descomunal,
se havia algo impedindo a entrada de ambos, se quebrou com aquele
empurrão. Entraram e se viram em uma ponte larga que cruzava um lago
levando a uma estrada que dava para bosque a dentro.
A dama foi a ponta da ponte e olhou para o lago abaixo. A água parecia
calma, se não fosse pela visão que teve.
– Tem uma mulher no rio. – a dama constatou e Eren se aproximou
dela.
– Não é mulher. – o vampiro respondeu enquanto a figura que
parecia uma mulher nua de cabelos castanhos nadava a luz do luar.
– O que é?
– Uma sereia. Vamos.
– Temos de mata-la? – ela tocou no rifle as costas.
– Não se tivermos o mínimo de humanidade.
– Pensei que fosse perigosa.
– E é. Vamos... – Eren respondeu.
Ela não fez mais perguntas e ambos se direcionaram entre o bosque.
Enquanto cruzavam a floresta ela sentiu um frio de súbito. Apenas a estrada
estava iluminada, mas os arredores estavam tão escuros e densos quanto
um buraco no chão e ali ela sabia que havia algo. Cogitou perguntar a ele
se deveriam se preocupar, mas preferiu ficar calada. Só se esforçou em
manter a visão para a estrada a frente.
Tudo que pensava enquanto caminhava era em não olhar para os lados.
Não olhe para os lados, não olhe para os lados. Existe algo nas sombras,
esperando, aguardando o momento certo, a demonstração certa de atenção
para se materializar. Apesar de tudo que passou, não confiava nas suas
habilidades para enfrentar o que quer que fosse que tivesse ali. Não olhe
para os lados, nem mesmo para trás, ou você pode virar sal.
Der repente, ouviu um estalo e quis parar de caminhar, até mesmo
hesitou o passo. Quando viu que Eren seguiu caminhando, ela acelerou o
passo para acompanhar o homem. Então, sem hesitação ela o seguiu,
ignorando todo e qualquer suor que pudesse vir a escorrer pelo corpo.
Estava realmente suando?
A presença de Eren trazia menos segurança do que ela imaginava,
esperava que o vampiro trouxesse ao menos algum alivio com sua
presença, ledo engano. A presença dele era como ser acompanhada por
uma pedra numa corda, não mudava, não tinha calor, não tinha nada,
apenas o objeto material.
Eren parou de súbito. Uma nuvem cobriu a lua e ele abaixou a cabeça.
Ela não entendeu de princípio, mas logo sacou o rifle em resposta ao
movimento dele.
– Problemas? – sussurrou para o vampiro.
Ele não respondeu. O momento se seguiu e um misto de sensações se
destilaram em seu medo. Ela começou a sentir no balançar das folhas a
presença de alguma coisa sombria os olhando. O que estava ali? Ela
apontou o rifle em diversas direções buscando a presença inimiga enquanto
Eren se concentrava.
Até que ouviu um som e parou por um instante para olhar na direção de
sua origem. Encarando as sombras entre as árvores com um rifle em mãos
ela ficou. Nessa pose de ataque e com medo de engolir a saliva ela se
manteve. Começou então a ver uma forma na escuridão, algo com extensão
de um humanoide, se formava e ia, quase como um espectro. Ela mirou,
mas seria sombra ou não? Impressão? Imaginação? Destravou a arma.
– Se acalme. – pediu o vampiro. Dessa vez, foi ela que não
respondeu.
Ficou observando a forma parada como uma leoa acuada. Ficou
esperando qualquer movimento daquilo. Foi quando a forma se moveu
pondo o longo braço na árvore, ela disparou. Eren pegou em seu rifle
virando-se para olhar no que ela atirou e a lua iluminou tudo novamente.
Não havia nada onde ela dera o tiro, isso a fez se sentir uma completa
idiota. Coisa que o olhar de Eren confirmou. Nesse instante o vampiro
saltou para o lado e ela foi atingida por um peso enorme. Caiu ao chão.
Quando se ergueu com velocidade tentando mirar no que atingiu ela.
Olhou para o cervo morto no chão. O sangue escorria de sua boca e a luz de
seus olhos havia sumido. Ela olhou para cima e em meio as sombras seu
atacante apareceu.
Era uma figura curiosa monstruosa a que os observava. Não tinha cabeça
e por isso sua face ficava na barriga, seus braços eram longos e peludos
assim como suas pernas. Para a dama, foi como ver a ilustração de um
demônio antigo ganhando vida.
A imagem horrível da criatura escura de barriga pálida e face no local fez
ela estremecer ficando até mesmo sem reação. Mas foi Eren que tomou
frente. O vampiro se postou a frente da dama e mostrou suas presas com
um olhar carregado de ameaça.
– Vou atirar. – a dama falou.
– Não, aguarde, estou falando com ele. – Eren fez um sinal para que
ela abaixasse o rifle.
– O que?
– Telepatia... Ele disse que quer você.
– Como?
– Quer devora-la.
– Ele pode devorar isso. – ela disparou e acertou o peito do monstro
que recuou sangrando, mais indignado do que ferido pela bala.
A fera gritou e Eren a puxou pelo braço.
– Por que não o enfrentamos?! – ela gritou enquanto corriam.
– Porque não é somente um. – quando ele terminou de falar ela viu
vários surgindo entre as árvores – Por que achas que nunca ataquei essa
maldita ruína? Não é só o príncipe que tenho aqui como inimigo.
– Foda-se! Vamos mata-los!
– Você não sobreviveria! – os monstros saltavam das árvores, mas
eles estavam sempre a frente, desviando o máximo que podiam do inimigo.
Quando chegaram a mais uma ponte que dava para a porta de entrada do
castelo, Eren parou de súbito.
– Dispare. – ele ordenou e ela atirou com o rifle.
– Vou abrir o portão, atire o máximo que puder. – ele falou.
Ela guardou o rifle as costas e sacou as duas pistolas, começou a disparar
freneticamente em todas as direções.
Der repente o portão de metal atrás dela se abriu com um arrastar e ela
recuou entrando no castelo junto a ele enquanto os monstros se
aproximavam cada vez mais, ela não matou nenhum. Com dificuldade Eren
fechou o portão, cortando ainda o braço peludo de um deles fora e
esguichando sangue tanto nele quanto na dama.
– Nojento. – ela suspirou guardando as armas.
– Concordo. – Eren pegou um pano e passou no rosto limpando as
gotas de sangue e ofereceu a ela que aceitou e passou no corpo todo
encharcando o pano que por acaso ele não aceitou de volta.
Ela olhou em volta, estavam na entrada, armaduras enfeitavam os cantos
menos que teias e poeira, as trevas tomariam totalmente o lugar se não
fossem as poucas velas vermelhas. Tanto ela quanto Eren concordaram que
pareciam estar em mausoléu.
– Quem vamos procurar primeiro? – ela perguntou enquanto subiam
uma escadaria em espiral.
– Você vai atrás de Miac’o e eu da minha esposa. – o vampiro
explicou pegando um castiçal no topo da escadaria.
– Pensei que estivesse aqui para me proteger.
Ambos se encararam.
– Inferno, eu vou com você. – Eren disse e ela assentiu – A missão
em primeiro lugar.
Ambos caminharam com cautela entre os corredores, evitaram fazer
barulhos desnecessários e sempre buscavam as escadas para baixo. E
quanto mais desciam, mais tenebroso e menos iluminado o castelo se
tornava. A argamassa era trocada por pedra e a pedra por limo, os móveis e
poeira eram trocados por esqueletos e jaulas. Mas continuavam a descer,
até o castiçal se tornar a única luz que tinham consigo.
– Quanto mais teremos que descer? – reclamou ela limpando as mãos
após sentir as paredes úmidas da escada.
– Talvez até depois do inferno.
– Tenho uma pergunta.
– Fale. – o vampiro a olhou por cima do ombro enquanto guiava a
descida.
– Sua esposa, ela o deixou?
– .... não em exato.
– Ela ainda o ama?
– Sei que ama, por que está perguntando isso?
– Só quero saber... Quando fala dela, você me lembra um velho
amigo.
O vampiro ficou em silêncio.
– Quando nos conhecemos, eu era humano. – Eren contou em voz
neutra – Deus, lembro de como foi cada detalhe do maldito dia. Eu estava
sentado a beira do sena, escrevendo como um garotinho poesias tão ruins
que fariam um surdo agradecer por não poder ouvi-las e ela veio a mim.
Disse que tinha ouvido cada uma das minhas palavras enquanto eu
proclamava.
– Assim der repente? – a dama perguntou.
– Assim, der repente. – Eren confirmou – Vamos parar um pouco,
descanse as pernas.
Ambos se sentaram na escada e ele pôs o castiçal de lado assoprando sua
chama e os deixando no escuro.
– Por que fez isso? – ela perguntou levando a mão a sua espada.
– Economia, logo acendemos. – o vampiro respondeu, ela só podia
ver seus olhos brilhantes – Isso vai nos poupar de consumir nosso pequeno
estoque e qualquer ameaça eu sentirei pelo cheiro apesar do fedor desse
lugar.
– Continue a história. – ela pediu.
– Não desejo...
– Por que?
– Má lembrança.
Ambos ficaram em silêncio.
– Só por doer, não significa que seja ruim. – a dama concluiu para o
vampiro, suas pernas relaxaram.
– Mas dói.
– O que você faria por ela?
– Apagaria o fogo do inferno com meu cuspe. – o vampiro riu em um
tom um tanto estranho, triste – Apagaria o mundo...
– Você é belo, Eren. – ela falou na escuridão.
– Eu sei.
– Eu quis dizer, por dentro. – ambos riram.
– ... obrigado, faz tempo que não ouço palavras mais gentis.
– Não há de quer, Eren... Não há de quer.
Ficaram calados ouvindo suas próprias respirações, mais dela do que
dele.
– Você quer ressucitar seu marido, correto? – Eren perguntou por
fim.
– Sim.
– Como tem certeza disso?
– Tanto quanto você tem de que não quer perder sua esposa, não
importa o que ela tenha feito. – ela pousou a cabeça contra a parede tirando
o chapéu.
– Talvez. Se ela me ferisse muito, eu poderia me enfurecer e mata-
la...
– Não acredito que faça isso.
– Não é o que você acredita que importa, não é mesmo? – Eren se
ergueu – Suas pernas estão descansadas?
– Sim, agradeço a gentileza. – ele ascendeu o castiçal diante da
resposta dela e ambos voltaram a descer.
Finalmente após mais um enorme lance de escadas, chegaram ao final.
Caminharam por um corredor escuro de paredes lisas até chegarem a uma
porta velha. Eren a abriu sem dificuldade e ambos entraram no que parecia
o fundo de uma masmorra.
Der repente a dama ouviu o som de metal na água, quando olhou para os
lados uma tocha se iluminou na mão do que parecia ser um cavaleiro com
dois metros de altura e uma lança em mãos. Uma pena amarelada enfeitava
seu capacete fechado e ele apontava a lançara para ela e Eren. Em um
instante ouviram o som e notaram outro cavaleiro também de mesma
aparência os fitando.
– Guardiões... – Eren franziu o cenho, luzes se acenderam nas
paredes.
Os archotes iluminaram a sala circular que só havia a entrada e uma outra
porta de metal lacrada com correntes como alternativa. Os cavaleiros
começaram a cerca-los, a dama sacou suas duas pistolas e se preparou para
o combate, Eren também parecia estar em uma posição hostil.
– Não seja atingida, aquilo pode atravessar mais que um javali –
o vampiro advertiu.
Os cavaleiros partiram para o ataque, ambos desviaram das lanças. Ela
deu dois disparos no peito de seu inimigo e o vampiro saltou por cima de
seu cavaleiro puxando-o pela cabeça para trás jogando-o ao chão. No
entanto quando ele derrubou o cavaleiro, uma lança transpassou-o fazendo
o vampiro ser cravado na parede com uma lança na barriga.
A dama soltou um gemido de surpresa, fora seu adversário, as balas
mesmo penetrando não mataram. Desesperada começou a atirar nos dois
cavaleiros que vinham em sua direção.
– Corra. – Eren falou – Eu vou sobreviver.
– Merda. – ela recuou para a porta de metal atrás de si e começou a
usar toda sua força para puxa-la.
Os cavaleiros vinham em sua direção um passo de cada vez enquanto a
armadura prateada rangia. Ela olhou para trás enquanto puxava a porta que
se movia vagarosamente e viu um deles erguer a lança. Soltou a porta no
momento correto em que a lança a atingiria, pois, a arma perfurou a porta.
Desesperada guardou as pistolas e começou a usar o rifle como alavanca.
Segurando no cano começou a forçar e a forçar. Os cavaleiros a cercaram.
Cercada ela sacou sua espada para lutar. Foi quando uma lança atravessou
um deles e ela pôde ver enquanto ele se contorcia que Eren estava
brandindo a arma. Não desperdiçou o momento em que eles mudaram sua
atenção e forçou a porta abrindo-a. Após passar viu Eren ser agarrado pela
garganta, e fazer um sinal para que ela fechasse a passagem, assim ela o
fez.
Olhando a porta de metal e ouvindo grande estrondos do outro lado junto
a gritos do vampiro, recuou dois passos enquanto o fogo das tochas
balançava nas laterais. Foi quando sentiu o toque de uma mão e o balançar
de correntes.
– Carne... Humana. – uma voz grotesca e grossa falou na escuridão
fazendo ambos sentirem um arrepio dos pés aos cabelos.
...
Acordou ao lado de Gregório. Haviam tido uma longa noite de amor e ela
queria mais. Estavam na casa de praia de Alfonso. Mas após a lua de mel,
chegaram a conclusão que talvez morassem na antiga casa de Pietro, agora
em reforma e deles.
Se deitou sobre as costas de Gregório enquanto o sol entrava pela janela e
o vento balançava as cortinas brancas. Ele despertou e a abraçou beijando-
a. Ambos nus abaixo dos lençóis se entrelaçaram novamente e em meio as
risadas se debruçaram em beijos e por fim no sexo de prazer e paixão sem
iguais. Quando terminaram, foram ao banho e após isso sentaram-se a cama
e tomaram um café com suco e torta. Estavam satisfeitos.
– O que faremos hoje? – ela perguntou nos braços dele.
– Mais sexo? – Gregório respondeu.
– Também. – a dama riu – Mas mais coisas, precisamos sair um
pouco e aproveitar os passeios não?
– Ahh, essa parte. – ele se jogou para o lado imitando uma cara
emburrada.
– Sim, essa parte. – ela sorriu beijando o rosto dele, estava áspero –
Faça essa barba.
– Ahh nãooo. – lamentou Gregório – Sinto uma preguiça enorme!
– Faça, ou não vou beija-lo o resto da lua de mel.
– Mas e as outras coisas? – ele sorriu olhando de soslaio para ela.
– Também não! – eles riram enquanto ela socava seu braço.
– Também não?
– Também não.
– Então faça ela para mim. – Gregório fechou os olhos e pôs o rosto
contra o travesseiro.
– Eu nunca fiz isso antes. – ela se imaginou com a lâmina raspando
no rosto dele – Quero.
Ele riu e levantou. Foram para o banheiro e ela começou todo o processo.
Lavou o rosto dele, passou a espuma, animada como uma criança e quando
finalmente chegou ao trabalho da lâmina, pediu que ele se sentasse no vaso
para que ficasse melhor para ela raspar a face dele. Vagarosamente foi
tirando a espuma e limpando a lâmina, com o maior esmero para não corta-
lo. Quando terminou o rosto de Gregório estava limpo como uma folha e
melhor ainda, sem cortes.
– Você é melhor que meu barbeiro! – seu marido a aplaudiu
sorrindo.
– Eu sei. – a dama respondeu e ambos se beijaram.
Após isso saíram com roupas leves para uma caminhada na praia e lá
passaram o resto do dia, brincando e nadando. A noite foram para um show
de música num restaurante e dançaram tanto quanto beberam, quando
chegaram na casa, Gregório teve de carrega-la escadaria acima por ela estar
exausta.
– Esta bêbada? – ele perguntou colocando-a sonolenta na cama.
– Ainda não. – ela sorriu e se enrolou.
– Eu te amo, minha pequena e bela rosa. – ele beijou a testa dela e se
deitou abraçando-a.
– Eu também... te amo. – ela apagou.
Passaram mais duas semanas com ambos passeando e se divertindo, mas
por fim voltaram para a realidade. Mas a realidade, a realidade era ótima.
Assim que voltaram de viagem deram alguns presentes, fizeram algumas
visitas, mas a antiga casa de Pietro e agora deles, se tornou um grande
paraíso.
A dinâmica dos dois era perfeita, seus hobbies, trabalhos, horários, tudo
conspirava em favor dos dois, até mesmo o tempo. E toda noite se
sentavam no sofá e liam um livro juntos, como um ritual. Em meio as
páginas contavam como foi o dia e se abraçavam enquanto se beijavam ou
conversavam por coisas triviais, a história do livro era apenas segundo
plano.
Também criaram o ritual de todo domingo almoçar com os amigos ou
família e na hora da janta faziam sanduiches e iam para a praia olha o céu,
sentavam-se no mesmo banco que pertencera a Pietro e sua esposa e ali, ali
ficavam lanchando e abraçados.
E assim foi durante muito tempo, uma noite antes de marcarem uma
viagem de férias ela estava sentada sozinha no banco da praia enrolada em
um cobertor enquanto sentia a brisa no rosto.
– Está frio demais para estar aqui fora. – Gregório se sentou
abraçando-a – Vamos partir amanhã, meu tio e Bernardo estão muito
animados e seus pais também, vai ser uma grande e feliz aventura em
família.
– Eu quero ter um filho. – ela falou der repente fazendo ele ficar
calado.
Ouviram as ondas quebrarem contra a praia e em seguida se entre
olharam. Para a surpresa dela, Gregório estava sorrindo.
– Um pequeno e vivo e que vai brincar, e aprender, e correr, e não
nos deixar dormir por noites? – Gregório perguntou.
– Sim... – ela pareceu preocupada com a fala dele.
– Perfeito! – ele sorriu pegando-a no colo rindo e girando – É a
melhor ideia que você já teve! – Gregório a colocou no chão – Digo, eu
estava meio que sem jeito de propor isso, mas Deus, como eu quero isso!
– Jura?
– É claro que quero!
– Então, vamos ter um filho?
– Vamos ter um filho, com toda certeza!
– Vamos ficar grávidos! – ela riu.
– SIM! VIVA! HAHA! – ele a jogou no ar e beijou profundamente.
...
Ela se virou para olhar o musculoso e grande monstro diante dela. Sua
face enrugada com dentes pontudos para fora da boca, seus olhos
puramente negros como duas bolas no rosto brilhavam e seus chifres
curvos puxavam a testa para trás em meio aos poucos fios de cabelo. As
costas dele uma cauda com escamas balançava com um tufo na ponta e
seus pés eram como garras assim como mãos, ambos presos por correntes.
O monstro abriu um pouco a boca deixando uma baforada sair sobre o
rosto dela entre os dentes. O fedor foi tanto que ela vomitou.
– O que é você? – indagou ela.
– Você está diante de Miac’o. – ele respondeu com a voz grave e
erguendo a mandíbula acima da cabeça dela para olha-la mais ainda de
cima – O único e verdadeiro Primogênito.
– Isso facilita as coisas. – a dama se afastou mais dele – Vim aqui
com uma meta, preciso que me ajude.
– Humm... Não me teme?
– Já acostumei as visões de coisas como você.
– Curioso... E o que você quer?
– Quero que me dê o conhecimento de ler o livro dos mortos. – ele
sorriu ao ouvir a fala dela.
– Feito.
Ela ficou calada analisando ele balançar a calda, se indagando onde
estava a armadilha.
– Qual o truque? – ela indagou.
– Estou entediado... – Miac’o suspirou.
– E por isso vai me ajudar sem nem mesmo saber a razão?
– Eu sei a razão, seu marido.
– Como – Eu sei de tudo que acontece na cidade, tudo que se fala e
faz. – ele respondeu – Aprendi a ouvir aqui no escuro.
– Mesmo assim, ainda ganha algo com isso. O que me evitaria de te
matar agora mesmo?
– Não pode me matar.
– Como tem tanta certeza?
– Eu sei. – ele suspirou – Você é a primeira pessoa que vem aqui em
muito, muito tempo. A única coisa que desejo é que continue conversando
comigo após eu lhes dar o que quer. – por um instante o monstro pareceu
triste.
– Vocês todos tem uma certa carência, não? – ela sorriu.
– Talvez. – ele deu um sorriso com os enormes dentes pontudos, mas
foi tão sinistro que a fez recuar um passo assombrada. – Apenas faça um
corte em sua mão e a estenda para mim, vou lambe-la e em seguida tocarei
sua testa com a minha. Não se surpreenda com o que ocorrer... entendido?
– Ainda não confio em você.
– E não deve... Mas é pelo seu marido não é mesmo?
Ela ficou calada olhando para o chão úmido e sujo.
– Sim... – semicerrou os olhos para ele e sacou a pistola, apontando
para o monstro – Se me enganar, eu descarrego a arma em você.
Ele não respondeu, a dama passou a mão na lâmina e sentiu o corte se
abrir, estendeu a mão e destravou a arma. Uma grande língua como a de
uma serpente saiu da boca dele e ele lambeu a mão dela que sentiu um
calafrio devido ao frio daquela áspera coisa. Após isso ele aproximou o
rosto dela.
– Posso? – indagou o monstro.
– Faça. – ela disse. Foi quando a porta arrombou e ambos viraram
para olhar quem entrava.
Eren se dirigiu até ela e a puxou para trás tomando a frente, mesmo
estando todo sujo de sangue. O vampiro fitou o primogênito por um
instante.
– O que você fez? – perguntou a dama sem tirar olhos do monstro
que os encarava sério – Você perdeu o controle da coisa?
– Eu fiz um trato, somente isso. – ela falou, der repente Miac’o
agarrou o pescoço do doutor vampiro e o ergueu no ar enquanto ele lutava.
– Maldito! – ela gritou disparando no monstro que continou enquanto
as balas atingiam e apenas o sangue descia dos buracos.
– Eu realmente iria cumprir com o trato. – o monstro explicou –
Você ao menos fez sua parte.
As correntes caíram e ela sacou a espada e enfiou na mão de Miac’o, o
sangue esguichou, mas ele pareceu não se afetar. Eren a encarou enquanto
era apertado cada vez mais e os olhos se esbugalhavam.
– P-p-por que? – questionou e sua boca se abriu, ele não deixou de
encarar ela – P-p-pare.
Ela começou a recuar para a porta e a chorar, der repente ouviu-se um
estalo e o sangue vazou por todas as saídas da cabeça do vampiro. A dama
correu porta a fora.
– Não sinta culpa, não sinta culpa, não sinta culpa. – repetiu para
evitar que parasse para chorar.
Pegou um archote limpando as lágrimas e correu o mais rápido que pôde
em direção ao corredor e as escadas, ignorando os cavaleiros mortos. Sobe
as escadas com velocidade, chegando a tropeçar e a cair nelas batendo o
rosto no chão. O nariz sangrava. Ela ergueu a cabeça e ouviu os passos ao
longe, ele estava vindo. Tinha de correr, tinha de fugir, tinha de sair dali já.
Foi subindo correndo as escadas e nos poucos momentos que parava para
respirar podia ouvir o som ao longe das pisadas pesadas dele. Tinha de ser
mais rápida. Correu e correu a toda, cada degrau sentia que ia destroçar sua
perna. E cada degrau sentia que não era o suficiente para se afastar dele.
Der repente, os passos as suas costas pareceram parar, não esperou e
começou a acelerar sua escalada degraus acima. Após um tempo
incalculável para ela naquele lugar, ela alcançou a porta. Tentou ouvir
passos, mas se estivessem ocorrendo ela não conseguiria possivelmente
ouvir. Então, atravessou a porta e a trancou com os ferrolhos. Olhou com
desdém para os pequenos pedaços retos de metal e tentou não se ater a esse
detalhe, aquilo acalmaria um pouco seu medo.
Começou a caminhar se apoiando nas paredes. Quando alcançou acima
de todas aquelas descidas, estava em um dos corredores do castelo, que
variavam em sujeira no mesmo ritmo que de luxo. Em um dado momento
se sentou ao lado de uma armadura e começou a focar na respiração. Seria
aquele castelo tão vazio assim?
Nesse momento de pensamento ela ouviu um som de arrastar e passos no
corredor a esquerda. Se levantou e escondeu-se por detrás de uma pilastra
com o sabre em mãos e uma pistola na outra. A luz do corredor alcançava
apenas uma pequena parte que a entrada para o outro corredor permitia, de
resto, ele era totalmente obscuro e profundo. Isso a amedrontou, fosse o
que fosse, passaria ali a qualquer momento.
Esperou, esperou, o som foi se aumentando assim como as batidas de seu
coração. Seus dedos começaram a ficar duros e sua respiração ofegante
mesmo com todo o controle que ela tentava ter sobre a adrenalina em seu
sangue. Antes de tonar o som estava alto e anunciando sua passagem, ela
recuou mais o corpo para detrás da pilastra, mantendo apenas a cabeça a
olhar o que quer que fosse passar no outro corredor.
A visão do homem fez ela engolir a saliva em seco. O homem que a
torturara, que matara Stella estava passando pelo corredor com um olhar
sério enquanto trazia o corpo de um homem morto consigo. Arrastando-o
pelo chão com um olhar de desprezo ele entrou no corredor trazendo o
corpo consigo com uma das mãos.
Ela traçou sua estratégia, iria, iria mata-lo quando... A expressão dele, era
pior e mais amedrontadora do que qualquer outra. Aquilo embaralhou a
mente dela, o desprezo pela vida humana que carregava consigo ao mesmo
tempo o orgulho de si ou de algo. Ela sentiu a aterradora sensação de algo a
esmagando, como se ele fosse a maior ameaça que ela já encarará. Ele
passou a mão concertando o cabelo liso e dando um suspiro forte enquanto
passava por ela ocultada na sombra da pilastra.
Foi quando ele parou. A dama se esforçou para apontar a arma para ele,
mas sua mão não se movia. O homem balançou a cabeça em uma negativa
e pôs uma das mãos na cintura sem largar o corpo do velho. Ele sorriu.
– Você já foi melhor. – ele virou o rosto para encara-la com um
sorriso.
Ela arregalou os olhos. Ele soltou o cadáver e se virou para ela, a dama
levantou a arma e disparou. Ele se moveu para o lado e a bala passou
raspando em seu cabelo. Ela se preparou para o próximo tirou, mas ele foi
em direção a ela e segurou sua mão torcendo-a com uma força sobre
humana. A espada dela foi em direção ao peito dele, mas com um
movimento de esquiva dele a lâmina da espada apenas atravessou o tecido
do ombro, foi a deixa para que ele socasse o queixo dela fazendo-a ir para
trás.
Ela bateu a cabeça na parede e quando se voltava para revidar, ele
empurrou a cabeça dela contra a parede de novo batendo-a. Ela grunhiu e
tentou chuta-lo, ele soltou a mão com a arma e parou o chute, a dama
tentou se aproveitar do momento para apontar a arma para o rosto dele que
apenas se esquivou e socou-a com força na têmpora. O mundo dela girou e
se abalou, ele acertou-a com um golpe na nuca e ela foi ao chão apenas
ouvindo as palavras:
– Eu amo essa parte!
Capítulo 7
Estava olhando a paisagem das belas araras voando enquanto Gregório
remava. O rio seguia seu curso enquanto as canoas de seu pai e mãe,
Alfonso e Bernardo seguiam nas laterais. Todos estavam com chapéus e
roupas leves parecendo um bando de desbravadores enquanto as aves
voavam no céu azulado e as árvores ocultavam as belezas interiores da
floresta.
Em um dado momento, enquanto ela admirava a paisagem, olhou para
seu marido e notou que Gregório fazia um esforço tremendo chegando a
suar. Foi quando notou que ele olhava para o lado a todo momento, ela viu
então Bernardo o encarando e sorrindo e ambos trocavam sorrisos. A dama
balançou a cabeça em negativa ao ver a competição que se encontrava ali.
– É só isso que pode fazer? – gritou Gregório para Bernardo que
dava fortes braçadas enquanto Alfonso escrevia em seu caderno.
– Na verdade, quem faz essa pergunta sou eu! – gritou Bernardo de
volta acelerando mais ainda as braçadas e a força empregada.
Gregório arregalou os olhos e franziu o cenho ao ver a demonstração de
força do homem que já estava meia canoa a frente e a encarou com
desespero.
– Querida! Querida! – ele chamou ela – Torça por mim!
– Estou torcendo. – a dama deu de ombros e ele fez uma careta de
desaprovação.
– Não, não está! Não estou ganhando.
– Não está ganhando porque você é mais lento que ele.
– Amor, você sabe como me motivar! – Gregório respondeu
forçando mais a canoa enquanto ela sorria e dava de ombros em resposta.
Começou a alcançar Bernardo, quando esse se preocupou e impregnou
mais força ainda. Ambos variavam a forma como aceleravam e
desaceleravam.
– Você é lento! – gritou Gregório.
– Mas ainda mais rápido que você! – respondeu o outro com orgulho.
– Não parece. – sorriu Gregório enquanto as canoas competiam lado
a lado.
– Veja, minha querida, que lindo felino aquele ali. – apontou Alfonso
a uma onça que bebia na margem do rio a direita, a dama sorriu e
concordou.
– Ei, querida, teria como abanar com seu chapéu a minh – Gregório
não terminou a frase enquanto o suor descia e a dama fazia uma negativa
com um sorriso e dar de ombros.
– Estou vendo felinos com meu tio. – ela constatou e Gregório deu
uma bufada agora empregando esforço.
Bernardo sorriu, estava ganhando novamente. Ambos se encararam e
Gregório com os olhos fechados colocou mais esforço ainda nos
movimentos alcançando o outro homem. Nesse instante um terceiro rufar
na água fizeram os dois olharem para o lado.
– Está quente não? – disse o pai da dama passando pelas duas canoas
com a sua com um sorriso tranquilo e simpático enquanto sua esposa
tomava um suco de limão.
Gregório e Bernardo pararam para olhar a cena e desistiram de sua
corrida dando suspiros. Logo estavam todos em uma margem. Desceram e
se dirigiram até a entrada da trilha, dali fizeram alongamentos e se
prepararam para a incursão mata adentro.
A caminhada seria de uma hora e a mãe da dama teria todo o tempo da
terra para o interrogatório sobre como estavam indo as coisas com
Gregório. Um interrogatório que ela queria evitar, mas antes que notasse,
Gregório já a tinha abandonado com uma risadinha e estava junto de
Bernardo discutindo o que quer que fizesse os dois darem gargalhadas.
Ao lado dela sua mãe perguntava os detalhes da vida conjugal, perguntas
que ela respondia apenas pincelando. Quando finalmente se livrou da mãe e
foi ao lado de Alfonso ouviu o mesmo dizer:
– Eu conheço essa trilha com a palma da minha mão. – falou ele
olhando para os ramos das árvores acima com satisfação – Eu a fiz, mais de
quatro vezes, confie em mim.
– Tem certeza? – perguntou o pai dela.
– Em absoluto! – Alfonso afirmou.
– Qual o fim dessa trilha mesmo? – a dama perguntou a ele.
– Uma enorme e bela cachoeira, minha querida. – ele explicou em
resposta – A satisfação será das grandes afirmo eu.
– Bom.
Alfonso realmente demonstrou habilidade e pericia como guia, após
quarenta e cinco minutos de caminhada já se encontravam na dita
cachoeira. Estavam no topo dela e olhavam a mesma desaguar abaixo num
lago.
– Quem vai pular? – Gregório sorriu perguntando e todos recuaram,
com exceção de Bernardo.
– Por que não você primeiro? – e empurrou Gregório que sorriu e o
puxou, ambos caíram juntos enquanto a dama corria para a ponta
desesperada de preocupação.
O estrondo abaixo dos dois rapazes caindo na água foi alto. A dama
olhou para os pais e Alfonso, deu de ombros, tirou apenas as botas e
chapéu e se jogou. Logo os três estavam jogando água no rosto um dos
outros como crianças e em pouco tempo todos estavam na água.
Passaram o resto do dia ali, comeram, conversaram e se divertiram na
cachoeira. Por volta das cinco e meia, já estava na hora de partir e
retomaram para a trilha. A dama se agarrou ao braço de Gregório enquanto
caminhavam entre as árvores e pedras. As folhas faziam uma camada no
chão e cigarras eram ouvidas em algum canto na floresta.
Foi quando Gregório se desvinculou dela para tirar uma água do joelho.
Ela sinalizou para que pudessem ir na frente e ficou esperando ele com as
costas para uma árvore. Der repente ela se assombrou ao ver algo se
arrastando nas folhas baixas da árvore próximas a ela, recuou um passo
para ver a cobra escorregando entre os ramos do galho indo em direção a
ela. Ficou paralisada com a cena enquanto a cobra mostrava sua língua.
Observou as escamas marrons com detalhes negros, seria aquela a última
visão dela? A cobra fez um formato de S com seu longo corpo e a dama
respirou vagarosamente. Quando a cobra avançou contra a face dela ela
tentou esquivar recuando em vão a cabeça e fechando os olhos com um
grito.
Mas não sentiu a picada. Gregório estava com o braço na frente do rosto
dela. A dama olhou enquanto ele puxou a cobra que se balançava com e a
arremessou para longe irritado. Após isso pegou o braço dele desesperada e
olhou para a ferida que sangrava da picada. A dama o olhou nos olhos e ele
sorriu.
– Você tem de tomar mais cuidado. – riu Gregório olhando para seu
próprio braço.
– Rápido, temos de correr e tratar isso. – a dama explicou – Pessoal,
corram aqui! RÁPIDO!
Em um instante todos voltaram às pressas ao encontro dos dois. Assim
que Alfonso olhou a picada da cobra no braço de seu sobrinho abaixou a
cabeça em um tom sombrio.
– Como era a cobra? – Alfonso perguntou.
– Era uma surucucu. – Gregório respondeu com cadência.
Alfonso ficou com uma expressão sombria.
– O que isso significa? – a dama questionou encarando os dois.
– Todos para as canoas. Agora. – ordenou Alfonso e aceleraram o
passo pela trilha, mas ninguém a respondeu.
O braço de Gregório estava inchado e ele suava tremendamente fazendo
caretas de dor. Antes que pudesse dar mais que um passo, caiu. A dama
correu para segura-lo e Alfonso fez o mesmo. Apoiaram-no numa árvore.
Suas gengivas sangravam.
– O que está havendo? – repetia a dama – o que está havendo? O que
está havendo?
– O carregue, rápido. – ordenou Alfonso a Bernardo que foi pegar o
outro no colo que fez um sinal para que ele parasse.
– O que? O que está fazendo? – indagou a dama ao seu marido.
Alfonso estava com os olhos vermelhos.
– Foi uma cobra muito letal, amor... – Gregório sorriu pegando com
delicadeza na mão dela – Não vamos alcançar as canoas a tempo e
também... Não vamos chegar a um médico a tempo.
– O que está dizendo? – ela o perguntou começando a chorar e
passando a mão no rosto suado dele.
– O ve-veneno desta cobra em especial é muito forte... – Alfonso
limpava as lágrimas dos olhos enquanto o pai da dama abraçava sua esposa
e Bernardo dava apoio a Alfonso que parecia estar perdendo as forças.
– O quanto? – a dama perguntou.
– Uma gota, é muito. – Gregório falou de maneira séria para ela.
Ela o abraçou com a cabeça dele contra ela e começou a chorar.
– Ei, ei, ei... – a visão de Gregório estava turva enquanto falava e
sua cabeça pendia – Não vamos desperdiçar o tempo, me dê um bom beijo.
Ela o beijou desesperada enquanto as lágrimas dela caiam aos montes.
– Olhe para mim. – pediu Gregório enquanto ela abaixava a cabeça e
chorava aflita – Por favor, minha linda rosa, olhe para mim.
Ela ergueu o olhar para ele.
– Eu te amo, muito, muito mesmo. – Gregório sorriu enquanto suas
batidas diminuíam e ele se esforçava buscando o ar, mas sem deixar de
sorrir – Te amo hoje e sempre.
Gregório repousou a cabeça contra o tronco da árvore, seus braços cheios
de hematomas assim como outras partes do corpo, a dama pegava em seu
rosto esperando resposta.
– Eu também te amo, eu também te amo. – repetia ela, mas Gregório
não respondia – Eu te amo muito, eu te amo tanto, nossa, como eu te amo,
por favor, eu te amo, eu te amo. – ela o puxava e soluçava – Meu Deus
como eu te amo, meu Deus, por favor, me responde, eu te amo tanto, tanto,
mas tanto. Por favor, por favor, não faz isso comigo. Vamos, sorria para
mim. Sorria só um pouco, faça uma graça, vamos. Eu te amo, eu te amo, eu
te amo, por favor, eu te amo.
Ele não respondeu. Ela gritou e chorou. Alfonso se sentou no chão e
começou a chorar sentindo o ar lhes faltar os pulmões enquanto Bernardo
ficava ao seu lado dizendo para que ele respirasse. Os pais da dama a
cercaram com seus braços e a abraçaram.
Ela se desvinculou e começou a gritar o nome de Gregório com as
lágrimas aos montes escorrendo pelo rosto. Abraçou-o novamente e olhava
para o rosto dele pondo-o em seu colo e tentando faze-lo acordar.
Implorou, rezou, chorou, mas apesar de tudo, ele não sorriu. Não sorria,
não sorria nem um pouco. Não sorria.
...
Ele sorria enquanto trabalhava, dissecava o corpo sobre a mesa de
madeira com uma satisfação assombrosa enquanto a fornalha esquentava a
sala e fazia a dama querer se jogar em qualquer sinal de água fresca. A todo
custo evitava olhar o que o homem fazia, logo notou que uma porta se abriu
e alguém entrara na sala.
Era o homem com cabeça de porco, ele começou a grunhir e vir em
direção a ela animado.
- Ela está ai para sua diversão irmão. – respondeu o homem de rosto
queimado com um sorriso – Ora, eu bem sei que você gosta de coisas
assim, divertidas!
O porco acenou afirmativamente com a cabeça para o homem de face
queimada e começou a cheirar a dama. Ela tentou ataca-lo, mas suas mãos
e pés estavam bem presos na estrutura de madeira que formava um “x”. O
porco pareceu se divertir.
– O que vai tirar primeiro irmão? – perguntou o homem queimado e
animado, o cabeça de porco se voltou para as ferramentas, a dama engoliu
em seco e começou a pensar em uma saída da sala infernal enquanto ouvia
o cabeça de porco grunhir e o queimado dissecar o cadáver na mesa.
– Eu vou – Matar todos nós? – o homem queimado a interrompeu –
Claro que sim. – ele sorriu e se concentrou novamente em seu trabalho.
Ela ficou calada, então o cabeça de porco a encarou com os olhos
diminutos e cheios de maldade. Ele ergueu a mão enluvada e mostrou para
ela a colher. A dama buscou entender a razão, mas não demorou muito para
deduzir o que ocorria. O cabeça de porco veio em direção a ela e com a
outra mão arregalou o olho esquerdo dela.
A dama começou a gritar enquanto a colher entrava e começava a puxar
seu olho. Gritou até ficar rouca e quando voltou a si o cabeça de porco
segurava o seu olho entre os dedos e mostrava a ela. Ela se agonizou com a
visão e começou a grunhir de raiva enquanto o sangue escorria por seu
rosto. O cabeça de porco a ignorou e levou o olho até o focinho, der repente
sua língua o sorveu para dentro e ele começou a mastigar.
Ela virou o rosto para o outro lado furiosa e começou a fazer mais força
ainda para tentar se soltar, não funcionou. O cabeça de porco se virou para
ela com a colher em mãos e ela sentiu um arrepio olhando aqueles
diminutos e escuros olhos.
Toc, toc. Alguém batia a porta.
– Atenda. – falou o homem queimado, o porco foi em direção a porta
e a abriu.
Quando ele abriu, uma enorme mão agarrou seu pescoço e ele começou a
guinchar.
– O cheiro de medo eu sinto de longe. – Miac’o entrou na sala e
sorriu para o homem queimado enquanto o cabeça de porco guinchava
desesperado.
Ele estrangulou até o porco parar e jogou o corpo dele no outro
arremessando ambos contra a parede. A respiração da dama começou a
acelerar em ritmo as suas batidas cardíacas enquanto o grande monstro a
encarava com um olhar sério.
– Já sofreu demais acho. – ele concluiu e saiu da sala com suas
pesadas patas.
Ela suspirou e começou a sentir as lágrimas chegarem aos olhos.
Miseráveis, todos eles malditos miseráveis! Começou a olhar em volta,
buscando uma saída do que a prendia, chegou a uma conclusão, teria de
torcer a mão para elas se desvincularem. Se preparou e grunhiu fazendo
força batendo a região do polegar com força contra a madeira. Fez isso
durante um tempo tortuoso até sentir a fratura e gemer de dor rangendo os
dentes, então puxou a mão e com ela tremendo se livrou de tudo que a
prendia.
A dama ficou no chão querendo desmaiar de tanta dor, mas tinha de
levantar, se o porco e o outro não estivessem mortos, ela os mataria agora.
Começou a se levantar e buscou alguma água na sala, viu um balde, nele
ela enfiou a mão para sentir o alivio e lavou o rosto. Rasgou a blusa e
enfaixou o olho.
Após enfaixar olhou para os instrumentos em cima da mesa, pegou um
cutelo e foi em direção aos dois homens. Primeiro arrastou o cabeça de
porco para perto da fornalha, se ajoelhou e fez a primeira fatia. Fatiou
mutilando cada membro do corpo enquanto o sangue vinha em seu rosto e
corpo enquanto cada parte se soltava. Após isso, no silêncio da sala ela
pôde ouviu o som das batidas do coração, estavam vindo da cabeça.
Ela olhou para o porco de olhos fechados e vomitou. Quando ergueu a
cabeça após terminar o vômito viu que os olhos dele agora estavam abertos
e olhando para ela. Não esperou nenhum instante e jogou a cabeça na
fornalha.
– Para o inferno! – praguejou pegando os outros membros e fazendo
o mesmo em fúria.
Agora era a vez do outro, ela começou a se erguer e sentiu um empurrão.
Caiu ao chão e se virou, o homem queimado estava em pé diante dela com
uma enorme faca em mãos e um olhar de congelar até o inferno.
A dama se arrastou para longe dele e o homem queimado veio em
direção a ela mancando. A dama fez força para levantar, justamente com a
mão esquerda, a que machucou, gritou e se ergueu para correr em direção
as suas coisas que estavam sobre um caixote. O queimado puxou seu
cabelo, mas ela se virou e atacou ele com o cutelo. Ele segurou a mão dela
soltando seu cabelo e atacou com a faca.
Ela chutou em resposta o que fez a faca acertar sua coxa. Gritou. Ele
sentiu o pé dela entrar em sua barriga e soltou a faca na coxa da dama ainda
segurando a mão dela. Irritada ela foi em direção ao rosto dele com sua
cabeça e acertou seu nariz. A cabeça dele foi para trás enquanto o nariz
sangrava, mas ele não largou a mão dela com o cutelo, problema dele. A
dama se virou e estendeu o braço o máximo que pôde pegando uma de suas
machadinhas. Ele já ia ataca-la com um bisturi que pegou, ela cortou a
barriga dele de um lado ao outro com o machado. O face queimada a soltou
gritando e ela desceu com o cutelo no ombro dele, a dama enfiou a
machadinha então na garganta dela deixando a lâmina travada ali.
Dando um passo para trás sacou seu sabre e enfiou nele que revirava os
olhos enquanto o sangue vazava. O sabre o atravessou e ela foi o
empurrando para trás, parou na fornalha. Nesse instante ela sorriu para ele
que arregalou os olhos assombrado para ela.
– Essa é a minha parte favorita. – a dama falou e empurrou o maldito
para dentro da fornalha. Ele gritou, gritou como uma fera, como um
animal, as chamas o consumiam e ela segurou ele ali enquanto seu corpo
queimava de dentro pra fora e de fora para dentro. Ela removeu a espada e
começou a bater a porta de metal da fornalha contra ele com violência.
Furiosa ela seguiu batendo até o braço cansar, então, deixou-o queimar e
observou para ter a plena certeza de sua morte.
– Deus... – a dama se sentou no chão ensanguentado e fechou os
olhos por um instante – Vamos acabar com isso, não é mesmo, amor?
Ela puxou a faca da coxa e rasgando a blusa amarrou o tecido sobre a
ferida. Então se ergueu e mancou até suas coisas, vestiu-se e armou-se. Iria
matar o príncipe e conseguir o livro custe o que custasse.
...
Não houve belos discursos, nem mesmo gritos de choros por parte dela.
A única coisa que conseguiu fazer foi jogar uma mão de terra sobre ele. E
isso foi muito....
Desde a morte dele, ela adoecera, ficara arrasada em um estado tão alto
que nada fazia. Não sentia vontade de comer, nem de dormir, mas ficava
em sua cama. Não chorava, ficava apenas ali, deitada. Após três messes
seus pais haviam parado de tentar falar com ela, apenas cuidavam e
observavam.
Bernardo a visitara uma última vez para anunciar sua viagem com
Alfonso, esse ficara em um estado tão problemático que desejava viajar par
o Egito e morrer no rio Nilo. Alfonso talvez fosse o único que a entendia,
quanto ele a visitava, contava-lhes histórias de suas viagens e sempre
finalizava falando de Gregório, nessas horas ele chorava. Alfonso não se
despediu, mandando apenas uma carta, era doloroso demais para ele vê-la
naquele estado, era doloroso demais lembrar de Gregório também.
Havia dias que a dama ficava a janela, sentada, o café sobre sua mesa
esfriando e sua mãe preocupada a porta. Havia outros em que seus pais
ouviam sons estranhos e quando chegavam ao quarto, havia coisas
quebradas e ela em um canto calada.
Após um ano e quatro messes nessa situação, seus pais lhes disseram que
a situação era insustentável e fizeram uma “proposta” a ela, uma casa de
“repouso”, um lugar onde pessoas poderiam auxilia-la de verdade, cuidar
dela e onde ela não poderia quebrar nada. Ela não reclamou.
Na manhã seguinte foi levada para a clínica. Lá não mudara muito,
apenas o ambiente talvez. A levavam de cadeira de rodas para cima e para
baixo, a medicavam tanto que ficava quase todo o tempo dopada e quando
voltava a si e tinha uma crise furiosa, a trancavam em uma cela acolchoada
onde ela não podia quebrara ou mesmo ferir alguém.
As enfermeiras conversavam com ela e algumas até gostavam dela, era
boa ouvinte e não reclamava enquanto elas fumavam. Se houve alguma
tortura a dama? Algumas, esses lugares têm seu estilo, mas nenhuma tão
grave quanto surras, ela nunca fez nada, exatamente nada. Por isso levava
algumas agulhadas aqui, medicamentos ali, comida ruim cá e uma
monotonia exaustiva.
O tempo passou e ela ainda estava ali. Seus pais a visitavam cada vez
mais e em seu quarto pouco a pouco ela ia sendo esquecida, como um
fantasma, a juventude não demoraria a desaparecer e o vigor havia morrido
a muito tempo.
E o que acontecia em sua mente? Em sua mente ela via, várias e várias
vezes o passado, o visitava e nunca se desligava. Vivia cada momento, de
novo e de novo, o que esquecia, criava por cima, o passado se tornava cada
vez mais dourado. E cada vez mais distante. Estava condenada a ficar ali,
ficar ali para sempre em uma nostalgia particular, em um sonho louco.
Em uma noite, uma das enfermeiras de quem até sentia simpatia a
colocou na cama e ficou em seu quarto contando histórias sobre o marido e
filhos. Ela gostava de ouvir.
– O meu menor, ahh, como eu o amo sabe? – a enfermeira sorriu –
Todos os dias ele arranca uma flor do canteiro do outro lado da rua e trás
para mim, queria que o pai fizesse o mesmo.
A enfermeira recostou-se na cadeira e ascendeu um cigarro.
– Tenho de fumar aqui, não posso em casa, crianças. – ela explicou –
Você entende, não é, amiga? Claro que sim.
A moça espreguiçou-se e der repente ouviu o som de alguém entrando a
porta, se sobressaltou. A dama continuou imóvel deitada, olhando para o
teto. Era um colega enfermeiro dela.
– Você quase me matou de susto! – a enfermeira falou revirando os
olhos.
– Fumando em serviço, você sabe que não pode fumar aqui. – o
enfermeiro riu.
– Sei, sei.
– Então, o que faz aqui nesse quarto.
– Eu? Eu estou com o meu diário e você?
– Só checando as coisas.
– Essa ala não é sua.
– É, mas sabe como é, gosto de que esteja tudo nos conformes. – ele
fechou a porta e trancou a enfermeira semicerrou os olhos.
– O que está fazendo? – ela sorriu nervosa.
– Você sabe que bem, eu sempre tive algo por você, certo? – o
enfermeiro falou sorrindo e isso assustou sua colega, ele começou a vir em
direção a ela – Sabe, eu sempre achei que quem entrava nessa profissão
queria algo mais.
Ele pegou a mão dela que puxou com velocidade.
– Se afaste. – avisou a enfermeira se levantando e indo para o canto
da parede.
– E por que? – ele a beijou agarrando seu braço, ela então o
empurrou e o esbofeteou.
O homem a olhou então e foi para cima dela dando um tapa no seu rosto
e calando a boca dela.
– Fique calada! – ordenou ele e começou a pegar no corpo dela de
forma lasciva.
A enfermeira tentou gritar, mas seu grito foi abafado e o homem só ria. A
cabeça dele foi para trás, dedos perfuraram seus olhos e ele gritou, a dama
o puxou enquanto os olhos dele sangravam e ela pressionava mais os
dedos. Em seguida ela bateu a cabeça dele contra a parede e ele caiu. A
dama montou sobre ele e enquanto a enfermeira assistia boquiaberta ela
pegou uma pedra que estava sobre a cabeceira e acertou a cabeça dele
várias vezes seguidas até estourar.
A dama se levantou com as mãos sujas de sangue e olhou para a
enfermeira.
– Precisamos se livrar do corpo dele. – a dama falou com a voz um
tanto rouca por quase nunca falar, então ela cuspiu no homem e suspirou
para a enfermeira – O que está esperando?
A mulher assentiu as lágrimas e ambas pegaram o cadáver. Não foi difícil
se livrar, levaram ele para um bueiro do lado externo da construção e o
atiraram ali mesmo, ninguém viu pelo horário e pelo vazio que era o
terreno murado.
– Vamos, precisamos lavar suas mãos e voltar para seu quarto. – a
enfermeira disse.
– Estou indo embora. – a dama respondeu.
– Não, você não vai, se for vão te acusar do sumiço dele.
– Loucos não fogem daqui?
– Minha amiga... Nunca houveram fugas. – a enfermeira explica e a
dama compreende.
– Me ajude a fugir.
– Amanhã a noite. – a enfermeira pede, a dama nota agora que a
mulher tremia.
– Feito. – a dama estende a mão e surpresa a enfermeira aperta com
um sorriso nervoso – Amanhã estou fora daqui.
...
– Céus... – a dama suspirou se sentando no chão de um corredor
exausta de tanto andar. O ferimento vermelho na perna dela a incomodava
tremendamente.
Mas tinha de seguir, levantou-se e voltou a caminhar em frente, pelo
corredor de argamassa e candelabros. Sempre com as pistolas em mãos,
sabia que tinha pouca munição e havia deixado o rifle para trás, peso
demais. Quando chegou ao fim do corredor, se viu em uma escadaria. Dali
começou a descer vendo em seu fim uma luz iluminar fracamente a parede.
Quando entrou naquela luz, se viu num grande salão de chão feito com
quadrados de rocha brancos e as paredes circulares enfeitadas com grandes
alicerces lisos e em forma cônica. No fim da sala e centro da parede estava
o trono onde o príncipe se sentava com a bela mulher que fora esposa de
Eren sobre seu colo.
– Demorou. – o príncipe falou em alto som enquanto a luz da lua
entrava pelo teto e lâmpadas iluminavam a sala com sua luz branca –
Demorou em demasiado.
A mulher se levantou do colo dele e se postou ao seu lado enquanto ele se
levantava e vinha em direção a dama que empunhava suas duas pistolas em
mãos. A dama olhou para os lados, buscando outras ameaças, mas apenas
viu as janelas laterais entre os alicerces, só haviam eles ali, mas sentia que
estava diante do pior dos males.
– Acaba aqui. – ela apontou as duas pistolas para ele e disparou.
As balas atingiram o príncipe no peito, ele sangrou, mas não demonstrou
dor ou pareceu esboçar reação. Der repente ele mostrou de dentro de sua
capa seu cetro e na outra mão mostrou o livro a ela, de capa escura com
adornos metálicos.
– É isso que veio buscar não? – perguntou ele em tom adocicado.
– Me dê. – ordenou a dama se preparando para descarregar as armas
nele.
O príncipe jogou o livro ao chão e deu as costas a ela.
– Hoje é um dia especial. – anunciou – Muitos acasos caminharam
para isso, mas eu não poderia faze-lo sem sua presença aqui.
– Minha presença? – a dama indagou.
– Sim, sua presença. – o príncipe sorriu – Você não se lembra?
– Me lembrar? Do que?
– Ohh minha querida, nada disso, nada disso importa. – o príncipe
largou o cetro der repente e caminhou até ela que se preparou para disparar,
mas hesitou – Tente se esforçar, tente se lembrar... Você nunca escapou do
passado.
O príncipe tocou sua face. Você nunca escapou de nada ele falou como o
gato também conseguia falar, em sua mente.
A dama se lembrou de como ela se fingiu de morta com a ajuda da
enfermeira e foi levada para fora da clínica em direção ao necrotério,
lembrou de como despertou na ambulância e causou um acidente como
única maneira de fugir. Na memória veio como caminhou pela estrada
antes de conseguir uma carona para a cidade e lá ao invés dos pais, foi a
sua casa.
Na casa abandonada tomou um banho e dormiu na banheira, na casa
abandonada se vestiu e saiu trancando para um dia voltar, ela nunca voltou.
Lembrou-se de como foi a casa de Alfonso e lá encontrou um triste
Bernardo que a contou tudo que aconteceu. Sobre como Alfonso faleceu
em uma cadeira mirando o pôr do sol sobre a sombra de um oásis, sobre
como suas últimas palavras foram uma declaração de amor e felicidade ao
mundo. “Eu amo cada grão, cada pedra, cada folha e tijolo, cada ave, cada
relíquia, cada segundo e ano, eu amo demais da conta.”, ela lembra de
chorar, lembra de abraçar Bernardo e contar suas pretensões de partir, ele
não tentou impedi-la.
A última coisa que fez, foi invadir a casa de seus pais e enquanto
dormiam ela os perdoou e beijou suas faces, deixou-lhes uma carta e se foi.
Isso foi o que ela se lembrou. Mas foi assim mesmo? ouviu a voz do
príncipe falar em sua mente.
O que você lembra? Não vê as paredes acolchoadas? Não vê seu braço
batizado de furos? Não vê os cortes suicidas que tentou mais de uma vez
fazer? Ela olhou para os braços cortados por cicatrizes e cheios de furos,
agora a voz não falava em sua mente, mas saiam dos lábios do rosto calmo
e sereno dele. Eu estou aqui para te ajudar, minha querida, deixe agora,
junto comigo toda essa fantasia, deixe agora. Não precisa mais fugir, mas
sim enfrentar, enfrentar junto a mim o que quer que lhes atormente. O
doutor estendeu a ela ou foi o príncipe? Ela pegou o cetro, não, não era um
cetro, era uma fotografia, dela e de Bernardo. Ela começou a chorar, os
pedaços de metal que tinha em mãos que ela usara para o ameaçar agora
estavam no chão e ela chorava enquanto ele abraçava.
Ele se foi, mas você está aqui, você está de volta. Agora só precisamos
manda-lo embora, mandar o gigante embora. O doutor passou a mão em
seus cabelos. Não sinta medo, nós vamos fazer juntos e a sua amiga que
tanto narrou sua vida está ali conosco. Ela viu a enfermeira que salvara
assentir para ela com um olhar de confiança.
– Você quer que ele vá embora? – ele perguntou – Quer voltar para o
mundo lá fora e se livrar de todo esse peso e dor para sempre.
– Quero. – ela soluçou desaguando tudo que segurava.
– Sou eu, Jean que está aqui, sou eu, você me reconhece, sei que sim.
Então agora, chore, chore tudo e deixe-o vir, sem medo, eu estou aqui!
Vamos derrota-lo juntos, vamos chamar e mostrar para ele que não temos
mais medo.
– Venha. – ela falou.
– Sim, venha. – ambos deram as mãos enquanto na outra mão ela
apertava a fotografia sua com seu marido.
– Venha. – repetiram os dois enquanto ela chorava – Venha!
– Vamos enfrenta-lo. – falou o médico – Juntos.
A dama ergueu a cabeça em lágrimas e soluços e viu o gigante se erguer
sobre ela, sobre o teto do hospital. Sentiu um pavor enorme enquanto ele se
aproximava abrindo o teto para pega-la.
– Ele está aqui! – gritou ela desesperada em agonia, quis correr, mas
o médico segurou sua mão.
– Olhe para mim. – Jean pediu – Olhe para mim!
Ela virava a cabeça, mas ele continuou pedindo como em um exorcismo.
– Eu estou com você! – Jean clamou – Olhe para mim.
Ela olhou e ele encostou sua testa na dela.
– Eu estou aqui! Estamos juntos! – o médico falou e ela fechou os
olhos.
Der repente ouviu o som de gosma e viu a boca do gigante se abrir e a
língua dele sair em direção a ela. Ela viu a cena e se desesperou, empurrou
o médico para longe de si soltando suas mãos e recuou para trás.
Caiu no chão se vendo com o cetro em mãos e o príncipe caído diante
dela a olhando nos buracos da face.
– Não! Não o olhe! – o príncipe gritava enquanto o gigante a
encarava sobre o teto aberto do lugar – Não o olhe! Olhe para mim! Você
precisa lutar contra ele! Eu estou do seu lado.
– Não... – ela tremeu recuando – Não...
– Você precisa enfrenta-lo, ou nunca vai se ver livre! – o príncipe
levantou e começou a ir em direção a ela – Chame-o e enfrente-o! Você
pode!
– Fique longe! – ela gritou e sacou sua lâmina.
– Isso é apenas um objeto cortante, minha querida. – explicou o
príncipe – Vai me machucar. Você quer machucar mais alguém? Quer ferir
mais alguém?
– N-não! – ela gritou chorando.
Ela se viu enforcando Eren, se viu ameaçando um jovem médico que
cuidava dela. Se viu sufocando uma mulher com as mãos. Começou a
tremer mais ainda, como se alguém a chocalhasse.
– Devo intervir? – perguntou a esposa de Eren.
– Não! – ordenou o príncipe – Lute! Chame-o e enfrente-o! Você
pode! – ele voltara a se aproximar dela e agora pegava na ponta da lamina,
quando pensava que não, estava abaixando a arma para o médico – Feche
os olhos. – ela obedeceu – Chame e enfrente. Eu estou aqui.
– V-venh... NÃO! – ela gritou e atacou-o no rosto, ele se jogou para
trás e der repente a enfermeira avançou, mas parou de súbito, ela agora
estava sobre ele com a espada sobre sua garganta.
– Você quer isso? – indagou o médico no chão – Eu sei que não, por
favor, eu sei que você não é assim. Você é melhor que tudo que você
passou, você é melhor que tudo isso!
– Nunca fui... – ela franziu o cenho e chorou começando a abaixar a
arma, ela olhou para o caderno do médico e lembrou-se de Gregório, seu
sorriso, sim, seu sorriso... Viu o livro dos mortos e seu rosto se contorceu
em raiva.
A dama assombrou-se então com o que viu. Miac’o surgiu a frente dela e
tomou o cetro de sua mão jogando-o longe, então pegou o príncipe pela sua
cabeça e o ergueu enquanto ele lutava. A dama sentiu a dor da ferida nas
pernas e tentou se apoiar em algo, acabou recostando o corpo em um
alicerce e enquanto o príncipe era esmagado ela assistiu assombrada.
Miac’o então foi até o trono e o esmagou com suas patas, ela viu o sangue
se esvair ao monte no chão enquanto a esposa de Eren gritava horrorizada.
Miac’o olhou então para o gigante acima e rugiu furioso: – VÁ
EMBORA! – ordenou – O RITUAL FOI INTERROMPIDO, VOLTE
PARA O COSMOS LOGO!
O gigante grunhiu num grito fino e estridente desaparecendo. A dama viu
Miac’o então se virar para ela e caminhar em direção a ela. Ela correu para
a janela as pressas enquanto ele a seguia com um olhar sombrio. Assim que
alcançava a janela ele a ergueu no ar pelos cabelos e a virou para ele.
– Você é fraca demais para me suportar. – ele bradou – Desapareça
logo. – Miac’o olhou para a esposa de Eren diminuta num canto da sala –
Já ela, eu creio que ela aguente um herdeiro, sim... Violência e pânico, as
palavras casam-se!
O grande monstro então ergueu a dama acima de sua cabeça e a atirou
pela janela. Seu corpo atravessou o vidro enquanto ele sorria. O vento da
noite a tomou e ela sentiu a corrente no pescoço com o crucifixo se enrolar
em seu pescoço como uma forca, puxando-a com leveza e libertação para
trás, guiando-a como uma força contrária ao seu corpo que queria voltar
para o chão firme. Então ela caiu, caiu sem gritar, fechando os olhos e
aceitando. Se encontrou com a telha instantes depois chocando-se com
força.
A chuva começava a cair vagarosa sobre ela enquanto sangue escorria do
seu nariz e lábios, seu corpo agora dormente, sua mente se despedindo e
seus olhos agora abertos olhavam as gotas pingarem sobre a imagem de um
anjo ajoelhado e tristonho na chuva, sempre achara as estatuas carregadas
de tristeza, agora ela se tornaria uma? O sangue descia junto a água para o
telhado e as estrelas negras brilhavam acima. Cecidit sumia como névoa e
ela também como uma rosa despedaçada.
“Muitos foram os que desceram pelo abismo do inconsciente, sem conseguir voltar. Os
manicômios são suas moradias, pois deles é o reino da insensatez. Outros — muito
poucos, apenas os escolhidos — seriam capazes de contar o que há por trás da loucura...”
H.P. Lovecraft

Capítulo 8
A escuridão profunda e vasta do vazio a envolvia. Em meio a ela a dama
ficou deitada respirando devagar ou não respirando? Ela viu então um
barco vir vagarosamente em sua direção e nele um homem encapuzado
carregava uma lamparina. O barco parou diante dela e agachou-se.
– Você me deve. – o barqueiro falou.
– Sim... – ela lembrou-se olhando para ele que foi ele que a levou até
Cecidit, isso a fez querer rir – Eu me esqueci.
– Sim... Mas não foi sua culpa, de todo. – ele suspirou – Todos se
esquecem que me devem.
– Mas a hora chega. – ela se levantou do chão e sentou-se na água.
– Chega.
– Como vai ser agora? – a dama o encarou.
– Não sei, eu só sei o final. – o barco começou a andar.
– E não é o final?
– Parece o final?
– Bem... – ela olhou em volta – Bastante.
– Então não é. – o barqueiro foi se distanciando.
– Espere! E minha dívida?! – gritou ela.
– Será paga, em seu devido tempo... Quando os ossos se erguerem
em pele, após oito estações será paga, sim, paga...
O barqueiro sumiu e ela ficou ali até que sentiu algo úmido e áspero em
sua bochecha e despertou.
– Levi! – ela grunhe de dor tossindo sangue enquanto a chuva corre
entre as telhas.
O gato a encarou enquanto uma espécie de barreira impedia a chuva de
molha-lo e ele a encarava sentado.
– Parece que você está em péssimo estado. – Levi falou em sua
mente.
– Me ajude... – ela pediu.
– Não sei se deveria... Vejo você e vejo apenas uma falha. – ela
encarou o gato irritada. – Ainda tem força para sentir raiva?
– Mais que isso. – ela estendeu a mão para tentar agarra-lo, mas ele
recuou com leveza e miou.
– Você continua mortal. – o gato se aproximou dela – Talvez eu a
salve.
Ela o ignorou e ficou olhando a chuva cair.
– Vou carrega-la para longe daqui. – Levi disse.
...
A dama despertou numa cama no hospital, seus ferimentos haviam
desaparecidos e sentia a energia de volta. Levi a observava, agora tão
grande quanto uma pantera.
– Eu deveria ter devorado você e me aliado a Miac’o. – ele disse.
– Mas não vai fazer isso. – ela se sentou na cama e apoiando os
braços nas pernas.
– Não, cansei de servir. – ele espreguiçou-se.
– Estamos no hospital?
– Sim. – Levi respondeu.
– Está quieto.
– Meus testes... Morreram muitos.
– Eu deveria mata-lo agora.
– E quem mataria Miac’o? – o gato a encarou sério.
– Eu posso mata-lo.
– Talvez, se souber como.
– O que me impede de matar você depois que eu conseguir o que
quero?
– Quem vai cuidar de Cecidit e das pessoas destruídas aqui?
– Você é que não. – ela bufou com desprezo.
– Você ainda tem humanidade em você, sabe que posso ajuda-los.
Meus experimentos finalmente me levaram a descoberta máxima, essa
cidade vai prosperar e o mundo, se quiser.
– Mantenha suas garras apenas em Cecidit ou eu vou garantir que
você suma!
– Você vive de ameaças. – ele foi até a porta – Mas quem te resgata
sou eu! Venha, temos o que conversar.
Ela pegou suas coisas e o seguiu. Só dispunha das machadinhas e pistolas
agora. Enquanto caminhava com ele, notava o vazio do lugar, tirando as
manchas de sangue por vários corredores. Logo, chegaram aos corpos,
haviam pilhas em diversos cantos, a maioria com cabeças de animais. Ela
ignorou o fedor e a visão e apenas o seguiu.
– Ele só pode ser morto com sangue do seu sangue. – explicou o
gato.
– E como espera que eu faça isso? – chegaram a porta do lugar que
se abriu com um movimento de cabeça dele – Matei todos sangue de seu
sangue... Existe a esposa de Eren, mas acredito que ela não serviria.
– Não, e se estou certo, mesmo ela a essa hora já deve ter sido
violada e morta por ele.
– Por que?
– Talvez para procriar. Criar uma nova geração.
– Ele faria isso?
– Não sei, mas sei que você não tinha força para isso. Tanto que foi
descartada.
Ela sentiu um arrepio ante a possibilidade de ser violada por aquele
monstro, sentiu pena daquela linda mulher no castelo e ao mesmo tempo
ódio, sim, estava transbordando ao ponto das mãos tremerem.
– Como o mato? – ela rosnou sentindo as veias na testa saltarem.
– Pegue um cadáver de um dos filhos dele, molhe as armas nele e
pronto. – Levi saiu para olhar o céu nublado.
Ela o seguiu, imaginou em ir buscar o homem do saco, mas havia
queimado ele. O afogado estava no mais profundo possível do mar, e os
outros dois queimados. E agora?
– Não existe restos de nenhum correto? – perguntou Levi.
– O príncipe, no castelo. – ela respondeu.
– Esqueça-o, a essa hora Miac’o já devorou seu corpo.
Ficaram em silêncio imaginando a cena.
– A solução é mais que simples, vamos até a grávida. – o gato falou
soturno.
– Existe uma maneira de chegarmos até ela sem ameaças? – a dama
indagou.
– Não sem ameaças e não seremos nós dois. – ele explicou – O
interior do castelo, não posso entrar, não que ela esteja no interior. Ela
está em uma cabana na floresta do castelo, tenho certeza. É o único lugar
que aguenta o tanto de magia sombria liberada.
– É por isso que existem aquelas criaturas?
– Sim, elas ajudam a canalizar a magia negra daquele lugar, ferindo
e matando a todos sem distinção. – explicou ele – O lugar é mais bem
guardado que o castelo, tenha certeza.
– Como mato aquelas coisas de forma eficiente?
– Não mata.
– Então como vou chegar até ela?
– Vai queimar tudo.
A dama ficou calada e por fim sorriu.
– Como farei? – ela indagou.
– Eu farei o feitiço, posso pisar na floresta.
– Não seria mais fácil enganar o Miac’o? Fingir que é seu aliado.
– Acredite, se eu pudesse fazer isso com a certeza de que
sobreviveria, eu não estaria te ajudando a me ajudar. – o gato a encarou
com os olhos cristalinos – Vamos.
Ela montou no lombo dele que agora estava enorme e andaram com
velocidade, as vezes diminuíam o passo para ele descansar, as vezes por
atalhos por cima e por baixo. Ela o indagou se conseguiria armas para a
luta, o máximo que ele pôde lhes conseguir foi uma foice curta, disse que
seria mais que suficiente, ela achou que não, mas tudo a mais era bom.
Enquanto iam em direção ao castelo, as pessoas os ignoravam por
completo e monstro nenhum era visto, algumas sentadas, outras
conversando, seguiam sua rotina normal, algumas varriam e até mesmo
passavam a vassoura sobre o sangue de mortos. A dama observou a cena
curiosa.
– O que ocorre aqui? – ela perguntou ao gato.
– Estão em choque, mas tem algo mais, uma cortina, pode sentir no
ar? – Levi falou.
– Sim... Sinto um gosto de algo na minha boca e um cheiro estranho.
– É consequência do ato de alguns. Tudo deixa marca.
Caminharam entre as ruas, em algumas chegaram até mesmo encontrar
pessoas sujas de sangue orando ao chão sendo guiadas por um pastor mudo.
Seguiram pelas ruas pintadas pelo laranja do céu até tempo depois estarem
ao crepúsculo no portão do castelo.
– Como vamos fazer? – ela indagou olhando para as árvores que
balançavam lá dentro.
– Vá até a estrada e atraia-os para perto, a magia que vou lançar
será a sua volta e queimará a todos.
– Em resumo, sou a isca e tenho de sobreviver até lá.
– Sim, após eu lançar o feitiço, o fogo vai queimar a sua volta, nesse
instante pegue a brasa que conseguir e fuja com ela em chamas contra
quem se aproximar, isso vai assusta-los. E não importa o calor que sentir
ao atravessar o incêndio, não toque na água.
– Você garante que o Primogênito não estará lá, com ela?
– Garanto, em suas tentativas em ter um filho ele sempre se afastava,
seria magia negra demais para o lugar absorver, existe um limite para o
nosso mundo suportar em um só ponto. Garanto. Não é à toa que esse
castelo se mostra extenso, a energia aqui é tão maldita que mesmo as
folhas das árvores se postas em água para um chá podem matar.
– Já vi exageros, mas você está de parabéns, Levi. – ela sorriu e o
gato a ignorou, estava animada, sentia que estava mais perto de Gregório,
cada vez mais.
Ela cruzou a ponte, olhando para o rio abaixo que corria circundando o
castelo e desaguando abaixo da cidade. Era escuro esverdeado e temeu ver
o que se escondia ali, mas nada viu. Então caminhou para além da ponte, o
sol se pôs e as árvores estavam paradas, como se estivessem petrificadas.
Ela olhou para trás e viu o gato parado mirando ela, se sentiu até segura
sabendo que ele estava a sua retaguarda. Andou mais próxima de uma
árvore e adentrou na mata. Sua decisão era bem pensada, ali se ele lançasse
a magia, o fogo se alastraria melhor e no escuro da mata ouviu os grilos e
insetos aguardando os monstros que ali moravam.
A dama ouviu passos velozes na sombra e virou a cabeça buscando suas
origens, começou a ouvir som de galhos quebrados e de risadas grotescas
desdenhosas do fundo da mata. Isso fez a espinha dela congelar. Armada
com a foice esperou o inimigo vir e ele não demorou em aparecer, e ele
estava ali o tempo todo.
De trás das árvores as sombras saíram cercando-a e ela notou então que
eram vários ao seu redor, todos estavam escondidos ao seu redor, cercando-
a o tempo todo. Começou a ver as formas, os rostos nas barrigas, as bocas,
as feições amedrontadoras, mas nada disso a pararia, nada na terra a deteria
então ela falou:
– Venham.
Os monstros saltaram para cima dela e ela escorregou entre um deles
cortando sua perna em fúria. A foice que Levi a dera cortava mais que bem,
pois não acreditava que seria útil ali. Usou o momento para correr, eles a
seguiram derrubando as árvores em fome e risadas insaciáveis dela, para
eles aquilo só era uma brincadeira tola, ela não era real ameaça mesmo
tendo ferido um deles que se rastejava no chão rindo.
Ela saltou para cima de uma árvore e dali começou a disparar e
recarregar, eles derrubaram a árvore e a dama pouso atirando para todos os
lados. Foi quando notou vários deles a cercando novamente. Pegou a foice
e começou a lutar, em um instante, sentiu a mordida. Um deles agarrou
seus braços com seus enormes dentes, todos os outros começaram a vir
enquanto seu antebraço sangrava, parecia que ele iria morder até cortar e
isso estava acontecendo.
Ela grunhiu e tentou cortar o rosto do monstro com a foice, mas outro
agarrou seu braço. Nesse instante um fogo forte começou sobre a cabeça
dela e se estendeu por dois metros ao redor, formando um círculo, todos os
monstros se afastaram, alguns incendiados em chama. O fogo começou a
queimar as árvores e também os demônios que grunhiam e corriam em
pânico. A chama se alastrava e a fumaça era tanta que ela começou a tossir
desesperada. Buscou saída e não encontrou, começou a correr entre o fogo
enquanto árvores caiam e monstros explodiam jorrando sangue para todos
os lados. Ela viu então uma pequena cabana onde o gramado pálido era
intocado pela chama, em direção a ela foi.
Quando se aproximou da cabana notou que a fumaça e nem o fogo ali
penetravam, mas notou também um peso enorme sobre suas costas e que
quando pisava na grama ela se tornava cinza, a única coisa que enfeitava o
lugar era uma árvore retorcida com um enforcado o qual ela não se deu o
trabalho de estudar. Se aproximou da porta e notou que lá dentro uma vela
iluminada fracamente tudo. Entrou.
A vampira estava numa cadeira de balanço suando enquanto encarava
uma vela. A presença da dama atraiu sua atenção de imediato.
– O que você quer? – ela questionou pegando um pano e passando
em seu próprio rosto.
– O que houve com você? – a dama indagou e der repente a mulher
vomitou sangue no chão.
O fogo mais forte lá fora pôde iluminar o pequeno casebre em total e fez
a dama se assombrar no como a madeira era escura e cheia de fungos que
pingavam ácido. Insetos se moviam por toda a parte e a mulher chiava de
dor.
– Me mate... – ela pediu.
– Como?
– ME MATE PORRA! – ela gritou em resposta a indagação da
dama, as veias saltaram, os dentes pontudos apareceram e uma face
desesperada surgiu.
– Eu não... – a dama suspirou – Tenho de esperar seu filho nascer.
– Não, não... Ele é um monstro, não o quero, não quero, não é meu!
É o anticristo! Eu não o quero!
A dama puxou uma cadeira e se sentou, uma grande lacraia entrou numa
fenda da parede.
– Me mate! – a mulher estendeu a mão, não conseguia se mover, se
pudesse, a vampira já havia tratado de se matar.
– Vou esperar o bebê nascer. – a dama respondeu fazendo a mulher
ficar calada e seu rosto se contorcer em meio as lágrimas que surgiam.
– V-você é um monstro! Como eles! Exatamente como eles, apenas
liga para seus objetivos pessoais.
A dama não respondeu, ouviu calada olhando para a pistola em sua mão.
– Como pode? Como pode? – a esposa de Eren se debulhava em
lágrimas – Porque eu não fiquei com ele? Eu o amava... o amava... Eren...
Meu amado Eren...
A dama olhou para fora, para o fogo que consumia os demônios, logo
nenhum surgia em meio a elas. Mas ela via uma silhueta negra, encapuzada
segurando um remo em meio ao fogo. Encarou durante um tempo, até os
olhos arderem, então piscou várias vezes e havia sumido.
– Está vindo. – a vampira falou desesperada – ESTÁ VINDO!
Ela começou a gritar e a gemer de dor desesperada, a dama foi até ela e a
mulher agarrou sua mão. A mulher começou a apertar os ossos da mão da
dama enquanto essa começou a grunhir sentindo os ossos da mão esquerda
se partirem. Ambas começaram a gritar de dor, mas o da vampira era muito
mais alto.
A dama então desesperado ajoelhou-se de dor e com sua arma apontou
para a mão da vampira, mas a cena que viu a assombrou. A barriga
começou a murchar como um balão e o peito da mulher a inchar. A dama
abriu a boca assombrada ao ver dedos saírem de dentro da boca da vampira
e esticarem seu rosto quebrando os ossos. O sangue borbulhou para fora e
braços molhados em sangue também.
A dama sentiu os dedos afrouxarem em torno de sua mão e se
desvinculou para longe. Observou enquanto a criatura saia da boca da
vampira morta. Um ser esguio, molhado pelo sangue, com longos
tentáculos no lugar de cabelos que se mexiam com vida própria. Com fome
ele se acocava sobre o cadáver da vampira. A criatura se agachou e pegou a
mulher destroçada e começou a dar a carne para os tentáculos atrás da
cabeça, que a engolia.
Em um ato de horror vendo a cena, a dama agarrou sua foice com força e
atacou o monstro. Com um golpe de cima abaixo, mas ele rolou se
esquivando e em seguida a atacou como um lobo. Isso foi um erro,
esperado de uma criatura recém-nascida. Ela cortou-o no ar e ele caiu
partido ao meio no chão. Seu sangue escuro esvoaçou por todo o lado, as
gotas que pingaram nela fizeram-na gritar, eram acidas. Após olhar suas
queimaduras se dirigiu até a criatura.
Banhou sua foice seu sangue, em seguida jogou as balas sobre o sangue
das tripas dele também. Foi quando ouviu um som estranho, pensou ser de
um dos insetos. Mas era a cabeça dele, os tentáculos se moviam arrastando-
se pelo chão, haviam feito a cabeça sair do corpo e iam em direção ao canto
mais escuro da casa. A dama pegou a espada e foi perfurar a cabeça, mas
assim que cravou a lâmina, a coisa havia voado para o teto e fugido para o
escuro.
– Sem tempo. – ela praguejou voltando-se para o resto de cadáver no
chão. Molhou novamente as machadinhas e saiu dali. O fogo havia
abrandado e se movia pelas cinzas e brasas, parou um instante e olhou para
a casa. Aquela coisa se tornaria um perigo futuro? Deixaria Levi sobre
aviso.
Criamos refúgios, ilusões, castelos e montanhas que por mais sombrios e escuros,
somem que o ascender e aparecem com o apagar, mutáveis e imutáveis, eternos e
provisórios. São os alicerces e os pesos da loucura e da não loucura, a linha que une e
não separa. Ohh nobres lugares escuros, foram e são melhores que a realidade que nos
cerca. São e foram, melhores.
- Autor Desconhecido, Um Ensaio em Laranja
Biblioteca de Cecidit

Capítulo 9
– Minha espada está pronta. – disse ela olhando a entrada do castelo.
– É claro que está. – o gato suspirou – Boa sorte.
– Nenhuma dica ou conselho? – ela indagou.
– Não. – o gato lhes deu as costas e ela entrou pela grande porta.
A dama entrou vagarosamente para o corredor pouco iluminado. Um som
que ela nunca ouvira vinha de algum lugar no castelo, como vários
sussurros ditos e embrulhados em uma confusão. O som a incomodava.
Foi andando sem pressa entre as salas e corredores, vazio, nenhum som,
nem mesmo de um misero rato era ouvido. A respiração dela fazia tanto
barulho quanto uma manada de elefantes, isso a incomodava. A única
coisa era o som que parecia vir de algum lugar e ao mesmo tempo parecia
vir dela própria.
Ela abriu uma porta de madeira que dava em uma escadaria em espiral. A
desceu passo por passo, a cada passo fazia uma pausa lamentando o som
que suas botas faziam ao tocar o chão. Isso a incomodou tanto que ela
desceu correndo os degraus para não fazerem tanto estardalhaço a cada
pausa.
Ela foi andando devagar para o corredor que dava para a sala do trono.
Após atravessar o mesmo se viu no grande salão, mas o trono estava vazio.
E o som dos sussurros embaralhados aumentou. Ela caminhou buscando o
inimigo, com cautela, mas nenhum sinal dele.
Então ela se dirigiu aos corredores e começou a busca-lo, mas não o
encontrava de forma alguma. Sua fúria foi crescendo e o medo diminuindo,
andava com mais liberdade e nervosismo. Foi andando e andando até que
entrou em um corredor escuro, onde a única luz era alaranjada vinda de
uma porta.
Ela se dirigiu até lá em silêncio. Mirou para dentro da sala e só pode ver
uma lareira, entrou vagarosamente. Quando entrou na sala viu a enorme
fera sentada no tapete vermelho, havia afastado os sofás para caber ali e
olhava o fogo como se estivesse hipnotizado. Ela sacou as pistolas e as
apontou para a criatura.
– Os mortos não louvam ao Senhor, tampouco nenhum dos que
descem ao silêncio. – o Primogênito recitou - Assim o homem se deita e
não se levanta; até quando os céus já não existirem, os homens não
acordarão e não serão despertados do seu sono.
– Você não tem o direito de falar das escrituras sagradas. – a dama
falou.
– E nem você de usar essa cruz no pescoço. – ele respondeu com
uma voz grave levando a mão até a chama – Os furtos, a avareza, as
maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a
loucura.
– Eu matei seu filho.
Ele não respondeu e atiçou a chama na lareira.
– Vou matar você também. – ela explicou.
– E por que ainda não disparou? – ele pegou uma brasa em mãos e
ficou observando a fumaça sair dela.
– Eu tenho uma pergunta.
– Fale.
– É possível trazer alguém realmente de volta a vida?
– Pensei que já tivesse certeza da possibilidade.
– Preciso a confirmação de alguém que realmente saiba.
– É claro... A confirmação. – ele sorriu contidamente – Sim é
possível.
– Como vou saber que não mente?
– Sei que vou te matar e usar seu cadáver como alimento na minha
ceia desta noite, não faz diferença a verdade ou a mentira para mim.
– Mas o estado, a pessoa volta perfeitamente normal?
Agora ele sorriu mostrando os grandes dentes e a olhou.
– Talvez... – ele comeu a brasa e em seguida fumaça saiu de seu
nariz a medida que respirava – Então, vamos começar?
Ele começou a se levantar e ela destravou a arma e disparou com pressa.
Errou o tiro por um centímetro ou ele desviou? Foi fazer um novo disparou,
mas nesse instante ele já agarrava sua única mão boa. Ela disparou na mão
dele e ele fez uma careta de dor. Parou um instante e sentiu o sangue fluir
da mão dele para ela, isso o irritou.
– Você me feriu... – falou ele e rosnando a jogou do outro lado da
sala, acertando um sofá e virando-o com ela – Puta, maldita!
Ele veio dando passos em direção a ela e a dama irritada começou a se
erguer disparando com a pistola. As balas acertaram-no todas no peito, mas
ele continuou vindo enquanto sangrava e sentia a dor.
– Vai precisar carregar. – ele falou e ela apontou para o rosto dele e
disparou. Descarregada.
Ele esbofeteou ela fazendo o sangue sair pela sua boca e de seus lábios
em seguida a puxou pela cabeça e a prensou no chão. Então com uma única
mão começou a apertar seu rosto, sufocando-a. Ela sacou sua foice e enfiou
na grande mão dele que gritou e recuou. Lutar com uma só mão
prejudicava as habilidades dela e aquela sala era apertada demais para
fugas.
Miac’o olhou para a mão que falava um dedo por ele ter puxado a mão e
ela ter segurado a lâmina com ela. Olhou para seu dedo no chão e
praguejou um palavrão. Foi em direção a ela que fez um corte curvo no ar
contra ele, o monstro esquivou para trás e puxou a foice dela para longe.
Em seguida a chutou. O chute a lançou contra a parede e a fez grunhir
cuspindo mais sangue para fora.
– Filho da puta. – ela reclamou se esforçando para ficar em pé e
sacou uma das machadinhas – Vai me desarmar toda?
– Eu vou fodê-la toda. – ele sorriu, aquilo a enojou e a enfureceu.
Ela saltou contra ele, desviou do primeiro soco, pulou por cima do chute
e atingiu a face dele com a machadinha, cortando da orelha ao nariz. Ele
gritou recuando para trás e sentando em dor.
– Vadia! PUTA RAMEIRA! – ele rugiu e ela pousou partindo para
um novo ataque.
Ela o olhou sem expressão, suas pupilas dilatadas e sangue em seu rosto e
cabelos. Ele a encarou vendo a expressão impassível enquanto ela vinha em
sua direção. Em desespero para se defender ele pegou um dos sofás e
tentou atingi-la, ela escorregou por baixo com técnica e cortou o pescoço
dele com a machadinha. O sangue jorrou e ele então pôs uma mão no
pescoço e usou a outra para agarra-la, ela tentou se soltar e começou a
atacar a mão dele com ataques seguidos enquanto ele se levantava e
ofegante caminhava para fora da sala. Cada ataque dela era direcionado ao
pulso dele, atacou tanto que decepou a mão dele e se livrou.
Ele quis gritar, mas não podia pelo corte na garganta. No escuro ele
caminhou tentando se afastar dela. Ela cometeu o erro de segui-lo para o
escuro corredor onde os movimentos eram mais difíceis de perceber. Só
pôde sentir as garras arranhando suas costas e gritou.
Ela se virou tentando acerta-lo com sua arma, mas ele agarrou sua mão,
pôde ver o sorriso no rosto dele. Ele a chutou uma, duas vezes, ela sentiu os
sentidos começarem a deixa-la. Ele torceu o braço dela e ela soltou a arma,
então ele a chutou fazendo ela cair no chão acabada.
– Você foi boa. – ele falou com dificuldade – A subestimei por ser
humana.
Ela sentiu seu corpo ser arrastado para fora do corredor, ele a estava
levando para uma escadaria que descia. Ela sentiu os degraus no corpo e
começou a gemer de dor enquanto ele a puxava. Estavam descendo por
degraus iluminados agora. Então em um ato ensandecido ela pegou a outra
machadinha e cravou na mão dele, ele grunhiu.
Se virou para ela na escadaria e com a boca tirou a machadinha de sua
mão. Desarmada ela tentou subir de novo as escadas, conseguiu. Começou
a fugir dele que vinha ofegante tanto quanto ela. Se viu em um corredor
iluminado por castiçais e tropeçou no tapete. Ele veio sorrindo. Agarrou-a
pela perna, ela lutou em vão. Ergueu-a no ar, ela lutou em vão.
Ele abriu a boca cheia de baba e esticou a língua para fora lambendo o
rosto dela enquanto pendurada ela aceitava seu destino. Então ele a colocou
dentro de sua boca, como uma cobra. Os braços e ombros dela entraram
naquela umidade.
Miac’o parou der repente. Soltou-a desesperado de do e sua mão da
garganta baixou deixando que o sangue saísse. A dama estava usando as
balas que tinha no cinto, molhadas no sangue da criança dele como armas
para socar o interior de sua boca. Pressionando elas e socando-as contra
ele, elas atravessavam com facilidade. Ele sentiu os projeteis perfurando a
pele e a vomitou para fora. Mas já era tarde, o corte na garganta piorara.
Ele começou a cambalear e a dama foi até ele que agora se ajoelhara.
Com suas mãos começou a abrir o corte na garganta dele, usando uma mão
enfiando no corte e a outra para esticar. Ele não tentou nem mesmo revidar.
Ela grunhiu e foi abrindo o corte até que não aguentou e o soltou. Ele caiu
para trás revirando os olhos e o sangue fluiu para fora aos montes. Miac’o
estava morto.
Ela se sentou de costas para um alicerce e se concentrou em respirar.
Ficou assim durante um bom tempo, fechou os olhos e adormeceu.
Adormeceu como nunca tinha feito antes. Quando acordo concluiu que foi
o melhor cochilo em muito tempo.
– Acabou. – Levi falou diante do cadáver, estava na forma de um
grande gato.
– O livro... – ela falou fraca – Preciso dele...
– Está ao seu lado.
Ela olhou para o lado e viu o livro, pousou a mão quebrada sobre ele
satisfeita.
– E agora..? – perguntou com dificuldade.
– Agora, você vai ter de comer o cérebro dele para sabermos como
será. – o gato – Descanse, vou cuidar de tudo.
– Eu não... – adormeceu de novo.

Ela despertou já fora do castelo, estava na verdade no portão de entrada


dos muros. Olhou para ele, a floresta só estava os restos das cinzas. Então
notou Levi ao seu lado olhando para a cidade. Ela se virou e viu no
amanhecer surgir, entre a neblina várias pessoas caminhavam até onde eles
estavam e todos se ajoelhavam e começavam a unir a palma das mãos em
silêncio. Levi não disse nada, ela também não, foram caminhando e a
medida que andavam iam descobrindo através da neblina mais e mais
pessoas rezando.
Caminharam sem pressa, até que chegaram frente a catedral, ela se
surpreendeu por não sentir dores, obra do gato? Talvez. Em frente a
catedral havia uma praça que tinha bancos que formavam um circúlo, ela se
sentou enquanto Levi sumiu na neblina. Antes que notasse ele havia
voltado e posto sobre os pés dela um grande pedaço de cérebro acinzentado
e gosmento.
– Coma. – ele ordenou.
Ela comeu sem ao menos fazer careta mastigando pedaço por pedaço.
Após comer não sentiu nada de diferente apenas sabia o que tinha e como
queria fazer. Olhou para o livro que trouxera do castelo consigo e o abriu
como quem abre um diário.
Ela o lê em silêncio por um tempo, sem tecer comentários.
– Preciso da pedra. – ela pede estendendo a mão.
O gato a encara e suspira.
– Não será destruída. – ela fala com autoridade e ele após analisar os
olhos dela abre a boca e deposita a pedra sobre a mão dela.
Ela então caminhou até o centro da praça e postou sua mão sobre uma
página do livro onde havia um círculo em ouro com vários adornos. Então
sacou der repente uma faca de sua bota a qual nem lembrara que tinha,
postou a pedra entre sua mão e o livro e então cortou seu dedo anelar da
mão esquerda fora.
O sangue saiu molhando a aliança e a pedra, mas ela não moveu um
centímetro sua palma. Deixou correr. Levi observou em silêncio. A dama
murmurava palavras inaudíveis e então o tempo começou a escurecer. Ela
se levantou e se afastou.
– Volte, Gregório. – pediu a dama por fim e se levantou.
Ficou olhando para o livro, nada acontecia, o gato ficou calado. Der
repente uma chuva começou a cair sobre eles. Esperaram e esperaram, nada
ocorreu. Então esperaram mais, molhados na chuva enquanto ela apertava
o lugar de onde havia arrancado o dedo.
– Não funcionou. – disse Levi interrompendo as gotas de chuva que
caiam sobre eles aos montes – O ritual não funciona... Sinto muito.
Ela não respondeu. E esperou. Esperou enquanto poças de água se
formavam aos montes, enquanto estancava o ferimento no dedo, enquanto
queria chorar, mas permanecia com o rosto impassível. Então, após todo
esse momento, resolveu que desistiria. Passou pelo gato em silêncio e
resolvera que iria embora.
– Fique se quiser. – falou Levi – Fique e veja o que farei a essa
cidade.
Ela o olhou e não respondeu, mas ele a olhava pela primeira vez com
nada de repulsa e com até certa ternura. Ela não respondeu a isso também e
seguiu andando.
– Pare. – o gato ordenou, a dama parou – Vire-se.
Ela se virou e olhou para Levi, ele então fez ela olhar para o livro. Os
olhos dela arregalaram. Uma mão ossuda surgia ali e nela a carne
rapidamente se fazia por cima, como mágica. Logo um braço, em instantes
um corpo inteiro saia de dentro do livro e nele a chuva caia, nu a pessoa
deitou no chão encolhida. A dama olhou paralisada para a figura musculosa
na grande poça de água. Então a figura ergueu a cabeça da poça de água e a
olhou. A água descendo pelo seu queixo e os cabelos na testa, o mesmo
com ela e em ambos a chuva não podia esconder o olhar avermelhado de
lágrimas.
Ela correu até ele. Pegou em seu braço e o levantou com cuidado, ele
estava desnorteado. Então olharam-se um nos olhos do outro. Ele era o
mesmo em aparência, mas ela havia mudado, ele se preocuparia com isso?
Ele sorriu e ela esqueceu isso. Então ela sorriu também.
– Olá, minha rosa. – falou Grégorio.
Ela olhou nos olhos dele e o beijou profundamente, ele correspondeu.
Caíram na enorme poça de água se beijando na chuva, ele nu, ela de negro
e os céus desabando.
Após isso ficaram deitados abraçados e ela chorou, ele também.
Choraram, a chuva não escondia isso, nem se tentassem. Então rindo de si
mesmos e do mundo a sua volta se levantaram. Levi trouxe uma capa a ele
e ele cobriu-se.
– Como? – perguntou Gregório perdido olhando em volta.
– Boa pergunta. – ela sorriu e mostrou a mão com o dedo faltando,
ferida.
– Sem um olho, sem um dedo. – ele a encarou – Quebraram meu
brinquedo. – Grégorio fez uma careta triste.
– Você mal voltou e eu já quero bate-lo. – ela riu.
Ele a abraçou.
– É um lindo momento, é verdade. – falou Levi na mente de ambos –
Mas precisamos conversar.
Gregório quis fazer mil perguntas, mas ela apenas o levou para um banco
e o fez sentar e pediu que aguardasse. Então voltou até Levi.
– A pedra, não pode trazer aquele monstro para cá... – ela falou
ansiosa.
– Você não manda em mim, mas não pretendo. – o gato respondeu –
Já lhes disse, pretendo não servir mais. No entanto tenho algo a te avisar.
– ... – ela olhou preocupada para Gregório que olhava o mundo a
volta ainda confuso, mas surpreendido e sorrindo animado.
– Esse lugar, funciona agora fora da realidade, sempre funcionou,
mas as leis mudaram. – o gato deixou o pelo molhado se arrepiar, mas
continuava encharcado pois a chuva não parara – Isso significa que deixar
esse lugar, pode mudar as coisas.... Para ele.
– O que quer dizer? – ela sentiu o desespero no coração, nunca os
bons momentos duravam...
– Se sair desse lugar, a mente dele vai ser afetada pela diferença de
nascença, ele renasceu aqui, seu vinculo é este lugar agora. É complexo,
mas existe, levar é um risco em perde-lo novamente e dessa vez, de pior
forma.
– Então, o que faço?
– Fique aqui. Poderão viver bem, prometo, a muito a ser mudado,
monstros a serem erradicados, mas será um lugar para se viver.
– Preciso decidir. – ela ponderou e se afastou do gato.
Levi observou em silêncio enquanto ela conversava com Gregório que a
encarava de modo sério. Então ela voltou a ele junto com Gregório.
– Vamos partir. – Gregório o respondeu.
– Isso pode ser suicida para você e talvez... Para ela. – o gato
advertiu.
– Se não fosse o risco que graça teria? – Gregório sorriu em resposta.
– Rum... Mortalidade. – Levi ponderou – A escolha é de vocês.
– Vamos, então? – Gregório disse ansioso.
– Espere. – ela pediu e correu até o livro, então pegou algo e voltou
as pressas.
Mostrou a mão para seu marido, havia colocado o anel na mão direita.
Ele sorriu e buscou o seu, então ela der repente puxou a velha aliança dele
e pôs em seu dedo.
– Sempre esteve comigo. – ela sorriu, virou-se então para Levi que
mirava algo em silêncio – Obrigado.
O gato a ignorou e der repente ela o pegou e o abraçou. Ele não
reclamou, apenas a encarou e a deixou o por sobre o banco novamente.
– Adeus. – a dama disse por fim e deu as mãos ao seu marido.
Foram caminhando pela rua vazia deixando Levi para trás. As nuvens
foram sumindo junto a chuva e o sol começava a brilhar forte e quente. Em
poucos passos estavam no portão da cidade, como que por mágica. Pararam
e ela deu uma última olhada em Cecidit.
Em seguida sentindo o calor no sol fechou os olhos e sorriu. Abriu-os e
olhou para Gregório segurando sua mão. A cidade começou a desaparecer
aos poucos como tinta na nevoa e ela olhou aquilo com tranquilidade. Não
sentia medo do que poderia acontecer, sentia confiança total.
– Eu vou enlouquecer assim que tudo sumir da cidade não é mesmo?
– Gregório falou pensativo e ela o encarou, então ele sorriu – Você é a
minha rosa.
– Então beije a sua rosa. – ela pediu sorrindo e encostando a testa na
dele – E quando esse beijo terminar, não importa o que aconteça, estaremos
juntos para sempre....
Ele a olhou e se beijaram ao calor daquele sol. E enquanto se beijavam as
pontas de torres negras e telhados sumiam e o mundo sumia, e no céu,
acima deles, num horizonte, duas estrelas negras desapareciam no infinito.
O infinito para onde elas foram não se sabe, tanto quanto durar o infinito
elas existem. Existem em infinito assim como o beijo daquela rosa e seu
marido... assim como o beijo daquela rosa e de seu marido.... Infinito.
Assim, permanecem agora estes três: a fé, a esperança e o amor. O maior
deles, porém, é o amor.
1 Coríntios 13:13

Fim
Ufa, até que enfim, acabou não? Espero que tenham gostado, porque
olha, cansou. Se está triste pelo final, bem, não fique, finais são assim
mesmo, não existem, se está feliz, ótimo, papel cumprido. Levei um bom
tempo para esse livro e agradeço muito por ter chegado ao fim, eu
precisava disso e ela também, não concorda? O que posso dizer? Foi foda.
Por isso, relaxe um pouco, respire, suspire, sinta um pouco e veja se
aprendeu algo, se não aprendeu, tudo bem, não foi algo do mais didático.
Nunca foi nossa meta sermos didáticos, deixamos isso para os mais adultos.
De qualquer forma, obrigado pela paciência e obrigado por ama-la tanto
quanto eu, e acho que ninguém ama mais ela do que eu. Então, obrigado,
de verdade. E se sentir falta, é só voltar, ela ainda está aqui, infinita até o
fim. Se cuide, se divirta e ame pra porra.
Até
- Por Daniel Cruz de Oliveira Neves de Lima
12/01/2018

Dedico esse livro a todos os amantes do horror e do amor, suspense e


ação também, é claro, mas principalmente a minha cara amiga Sabrina
Nanine sem a qual eu não teria o finalizado tão cedo, talvez nunca. De
qualquer forma, obrigado por me encher o saco.

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