Esta edição segue a grafia do novo acordo ortográfico. A magnífica cidade de Lisboa teve durante muito tempo a re- putação de ser bela e grande; mas um quarto de hora foi quanto bastou para ser devastada. Oh, que coisa medonha de se ver! Que horror! Jornal Leipziger Zeitung, 6 de Dezembro de 1755 PRIMEIRO LIVRO 1
O mar erguia-se em paredes de água e a ventania uivava através
dos sombrios desfiladeiros. As cristas das ondas desfaziam-se em escuma. Os relâmpagos derramavam a sua claridade e eram novamente engolidos pela noite. O Fortune, um navio inglês de três mastros, flutuava por entre aquelas primordiais forças da natureza como se de um pedacinho de madeira se tratasse. A tormenta puxava-o violentamente para cima e soprava a espuma ao longo de cada um dos lados da proa, as vagas enrolavam-se nele de lado, abatiam-se sobre o barco e afundavam o convés sob toneladas e toneladas de água. O navio inclinou-se, assim permanecendo por alguns terríveis instantes. Por fim, voltou a endireitar-se, permitindo que a água gorgolejasse para fora da amurada. Um trovão estrondeou. A tempestade precipitou o barco lá para baixo, para a escuridão, como se quisesse empurrá-lo a pique para o fundo do mar. O comandante Wrightson amarrara-se firmemente à roda do leme. Tentava fazer com que o barco seguisse de frente contra as ondas, enquanto os mastros despidos iam rangendo. Os marinheiros, com os seus rostos encharcados e lustrosos, esfalfavam-se a bombear a água para fora. No interior do navio, Antero Moreira de Mendonça ajoelhou-se diante do seu beliche, afundou as mãos debaixo da enxerga de palha e pôs-se a rezar: – Não me deixes morrer! Não me deixes morrer, meu Deus! Ainda não. Ainda não estou pronto. A água chapinhava em redor das suas pernas. Tanto as meias como os calções estavam encharcados. As ondas embatiam com estrondo contra as paredes do casco, era como se as pranchas de madeira fossem rebentar. Antero sentia um gosto adocicado na boca. Ergueu-se e cambaleou até à escada. Dos degraus ia pingando água. Agarrou a madeira molhada e trepou rumo ao convés. A escotilha junto ao extremo superior da escada, empurrada de fora pela força do vento, ofereceu-lhe resistência. Foi com toda a sua força que Antero se apoiou contra ela, tendo conseguido abri-la pouco menos do que uma mão-travessa. Então, o vento arrancou- lhe a portinhola da mão. Num instante a escotilha abriu-se por completo, e o temporal, frio e húmido, veio de encontro ao seu peito. Trepou para o exterior. O vento arrastou-o. Antero deixou-se cair sobre as mãos e os joelhos, e seguiu de gatas até junto da amurada. Um marinheiro berrou algo, mas Antero apenas conseguiu aperceber-se de que a sua boca se movia, já que a tempestade lhe arrancava as palavras dos lábios. Antero abraçou a amurada. Estava tudo negro. Onde acabava o céu? Onde começava o mar? Um relâmpago iluminou os contornos das vagas. O coração de Antero parou por momentos. A altura dos negros monstros excedia a dos mastros do navio! Sentiu algo que lhe irrompeu pela garganta e vomitou. O marinheiro desatou a amarra que, por segurança, o mantinha preso a uma das bombas e, curvado para a frente, correu na direção de Antero. Nesse momento, uma vaga inundou o convés. Antero deixou de conseguir ver fosse o que fosse. Ficou à mercê da água fria do mar. Quando voltou a conseguir ver alguma coisa, os seus olhos depararam-se com o marinheiro. Fora derrubado e arremessado contra um dos mastros. Voltou a erguer-se a custo. Chegou junto de Antero. – Vá para baixo! – berrou-lhe ele ao ouvido. Curvou-se e agarrou-o, tentando afastá-lo da amurada. Antero não largou a estrutura de madeira sem oferecer alguma resistência. Foi arrastado de volta para onde viera e obrigado a descer a escada. O marinheiro fechou depois a escotilha sobre a cabeça dele. As suas pernas estavam moles como massa de pão. Mais do que descer a escada, foi caindo por ela abaixo. Foi parar no meio da água. Esta corria para trás e para a frente, de uma parte do compartimento para a outra, consoante o lado para o qual o navio se inclinasse. Obviamente aqueles que estavam a bombear não conseguiam dar conta do recado. «Vai-se acumulando cada vez mais água no interior do navio até irmos ao fundo», pensou. O sabor do vomitado que sentia na boca recordou-lhe a carne em salmoura que havia comido na noite anterior. Não pretendia morrer com aquele repugnante gosto na boca. Foi chapinhando com os pés até junto do beliche, retirou a garrafa de vinho do Porto do armário a um canto, tirou-lhe rolha e bebeu. – Antero Moreira de Mendonça, és mesmo uma desilusão – disse em voz alta –, uma desilusão de todo o tamanho. Voltou a guardar a garrafa bojuda e de seguida também ele, assim encharcado como estava, se recolheu ao beliche. As ondas embatiam com força no casco do navio, bem próximo da sua cabeça. Baloiçava para cima e para baixo, a tempestade embalava- o. A alguém como ele, Antero sabia que Deus, ao rogar-lhe o regresso à tranquilidade, nem sequer daria ouvidos. De resto, ele nem sequer se fiava no auxílio de Deus. Era um maldito de um contrabandista, um homem sem fé. Se fosse parar ao fundo do mar no interior daquele barco, aguardavam-no depois os austeros anjos e o Juízo Final. Qual serpente, o medo carcomia-lhe as entranhas. Sentia tonturas e estremecia de frio e cansaço. – Lamento… – sussurrou, pensando no seu herbário, no livro de apontamentos com os desenhos de escaravelhos, nos serões que passara no observatório astronómico dos Jesuítas em Lisboa. – Em tempos dediquei-me à investigação, meu Deus. Era um daqueles que andavam em busca dos Teus vestígios. Por favor, não Te esqueças disso. Dalila aproximou da sua cara o lenço de rosto de Antero e inalou o odor deste, tomando-o como se de um remédio se tratasse: a água do mar e a acerba fragrância masculina. Se Leonor se desse conta de que ela lhe tinha roubado o lenço, iria enfurecer-se. E Antero? Se soubesse que o seu lenço de rosto era cheirado por outra que não aquela a quem ele o dera, como iria reagir? Talvez ele também a pudesse amar a ela, Dalila. Afinal, Leonor e ela eram irmãs gémeas. Era idêntico o aspecto dos seus rostos e dos seus corpos, ainda que o caráter de cada uma delas fosse bem diferente. A chama da vela combatia a escuridão do quarto. No exterior, a chuva fustigava as portadas. Dalila afagava suavemente com a mão por cima da coberta. A respiração da pequenita era regular. Estaria a dormir? – Os relâmpagos não nos conseguem acertar? Afinal ainda não adormecera. – Já te expliquei isso, querida – sussurrou Dalila. – Aqui estamos a salvo. – Como se chama isso? O que nos protege? – Pára-raios. – Dalila acariciava o tufo de cabelo ruivo da pequenina. O cabelo desta cintilava à luz da vela. No meio da enorme cama, parecia carecer de protecção. Dalila acrescentou: – Foi um senhor inteligente que o descobriu, e agora já nada de mal poderá acontecer-nos. Repara só como está aconchegado aqui dentro, enquanto lá fora faz aquele temporal! Temos a vela, está quente, e estamos aqui a seco. Ouviu-se o estrondo de um trovão. Tateando, a mão da pequenita procurou a de Dalila. – Ficas aqui? Dalila pegou na mão da criança e acariciou-a. – Fico. Não tenhas medo. Tinha pena da menina. Fora concebida por um qualquer nobre libidinoso e uma criada e depois deixada a crescer algures, bem longe. Seria de certeza apenas em troca de uma soma exorbitante que o seu pai sustentava a menina, e incumbira expressamente a austera cozinheira de se ocupar da pequenina. Não podia saber que a sua filha estava aqui em baixo, pois trataria logo de dizer «Não há nada de que uma rapariga nobre possa andar à procura aqui nos aposentos da criadagem, Dalila!» A casa encontrava-se dividida, nos andares superiores estava o céu, era aí que eles habitavam, e lá em baixo ficava o inferno, onde vivia a criança ilegítima que ninguém queria. E, no entanto, a menina pertencia presumivelmente também à nobreza! Uma criança nobre que crescia nos aposentos da criadagem, entre tachos, caixotes do lixo e a gamela dos cães. O cão também não conseguia adormecer. Olhava em silêncio na direção da janela, para lá da qual os relâmpagos iluminavam a noite. Ainda bem que ele fazia companhia à pequenina de noite e de dia. Era como se lhe substituísse o pai e a mãe. Por vezes, parecia a Dalila que aquele inteligente animal o sabia. Virou-se para o lado e voltou a cheirar o lenço de rosto de Antero. Pelo seu nariz absorvia o odor a aventuras. Aquele homem era mesmo livre. Percorria alegremente os confins do mundo. – Que tens tu aí? – perguntou a pequenita. Dalila estremeceu. – É só um lenço – respondeu, escondendo-o junto do peito. Foi acordado por uma voz. – Quer que lhe sirva a comida, sir, ou deverei lançá-la já borda fora? O retumbar deixara de se fazer ouvir. O barco rangia pacatamente, entregando-se à ondulação. Olhou para cima, para a escotilha. Uma lamparina que emitia uma luz avermelhada iluminava o rosto do grumete. O rapaz esboçou um sorriso trocista. Antero apalpou as suas roupas. Estavam frias e hirtas. – Tira esse sorriso da cara, rapazola, ou vou aí e é à pancada que to tiro – ao dizer isto, enganou-se na pronúncia que fingia ter. – Eu subo. É claro que consigo manter a comida no estômago. Tinha sobrevivido. Era evidente que, enquanto dormia, a tempestade se havia acalmado. Antero desceu do beliche. Era já só em pequenas poças que a água se acumulava no chão. Apoiou-se na mesa. Trepou escada acima com dificuldade. Era costume os passageiros comerem à mesa do comandante e dos oficiais. Desconfiava de que fora o próprio Wrightson a dar ordens para que a comida lhe fosse sempre servida na cabina, para que ele próprio ficasse a salvo de quaisquer suspeitas de estarem combinados, caso o empreendimento desse para o torto. Era obviamente impensável pô-lo a comer junto da tripulação, já que isso iria fomentar a insatisfação entre os marinheiros, uma vez que, enquanto passageiro, ele recebia uma alimentação melhor do que a deles. Aos marinheiros era servida carne fria pela manhã e de resto comiam uma mistura que consistia de água e farinha, a que davam o nome de «caldo indiano». Ele, pelo contrário, recebia refeições quentes e bem condimentadas, semelhantes às que seriam servidas numa estalagem de nível médio. De resto, não havia razão alguma para o isolar do contacto com os oficiais, a não ser o facto de o comandante Wrightson estar assim a tentar proteger-se de quaisquer danos. A falta de confiança deste no sucesso daquele empreendimento era algo que irritava Antero. Das duas uma: ou se estava naquilo de corpo e alma e se respondia por isso, ou deixava-se ficar a coisa. Quando ele subiu para o exterior, através da escotilha, o grumete estendeu-lhe um tabuleiro, sobre o qual havia um púcaro de madeira, com biscoitos em redor. – Hoje quer comer aqui fora ao ar livre, sir? – perguntou. Deixara de fazer aquele sorriso trocista. Antero já estava farto do bojo do navio. Sentia necessidade de ver o céu. Queria ter a sensação de que ainda se mantinha vivo. – Deixa o tabuleiro aí – disse e desta feita a pronúncia voltou a sair-lhe melhor. O grumete colocou o tabuleiro sobre o rebordo elevado da escotilha. – Quer que também deixe a luz aqui? Antero olhou em redor. O vento continuava a soprar com força e havia nuvens negras a cobrirem o céu. Junto ao horizonte adquiriam um brilho avermelhado. Próximo do navio conseguia, mesmo só com a crepuscular luminosidade matinal, vislumbrar a espuma nas vagas, embora o mar se apresentasse agora mais liso e vasto. – Não é necessário. Não tarda a ficar claro. Espera. Voltou a descer e foi buscar o livro de apontamentos, que estava debaixo da enxerga de palha. Já lá em cima, junto à lamparina, sentou-se na borda da escotilha, retirou o livro do cabedal que o envolvia, humedeceu a ponta do lápis de carvão e escreveu: Quinta-feira, 30 de Outubro de 1755. Violenta tempestade. Cristas das vagas que se abatem sobre o navio, vento com a força de um furacão. O Fortune resistiu. Sexta-feira, 31 de Outubro de 1755, alvorada. Mar encrespado. Espuma no cimo das ondas. O vento continua forte. Arrumou o livro dos apontamentos no bolso junto ao peito e disse: – Obrigado. Podes ir. Quando o grumete se foi embora com a luz, Antero pegou num pedaço de biscoito e levou-o à boca. Estava humedecido e fora barrado com manteiga e sal. Antero mastigou, pegou no púcaro e bebeu. Um vinho de taberna de sabor azedo misturou-se com a saliva pastosa dos restos do biscoito. O contrabando no porão do Fortune tinha um valor de pelo menos trinta mil réis. Depois de entregar a carga ao homem, iria descansar uns dias. Visitaria Leonor. E Samira. Antero aspirou profundamente para os seus pulmões o ar fresco do mar. Tudo haveria de correr bem. Esta era a época dos contrabandistas. Quem conseguiria vigiar a vastidão dos mares mundiais? Ninguém era capaz de tal coisa. Os mares eram livres. Só os portos podiam ser controlados, mas até mesmo aí havia sempre maneira de se esgueirar. De noite era simplesmente impossível abranger com a vista a totalidade de um porto grande como o de Lisboa. Por entre as chalupas que traziam os marinheiros de regresso aos seus navios, depois de um serão passado a emborracharem-se, por entre os botes que conduziam os oficiais até junto das suas famílias, ninguém conseguia distinguir um barco a remos com contrabando. Ainda assim, bem no fundo do seu coração custava-lhe tudo aquilo. Contrabando não era algo que gostasse de fazer. Teria preferido dedicar-se à exploração do enigmático continente meridional, a Terra Australis incognita, e pelo caminho trataria de cartografar e fazer o reconhecimento das ilhas até então desconhecidas. De que lhe serviriam aqueles ridículos apontamentos que ia tomando? Precisava de instrumentos, de um barómetro, de um sextante, não de madeira, atreita a ficar empenada por causa da humidade do ar marítimo, mas antes de metal, que permitia o máximo de exactidão possível. O comandante Wrightson ainda navegava com a vara-de-jacob. No entanto, a posição poderia ser determinada com muito mais facilidade com recurso a um sextante. E com um barómetro, quanto não se poderia investigar com um instrumento desses! Teria gostado de poder medir a pressão atmosférica durante a tempestade do dia anterior. Por que razão diminuía essa pressão quando se aproximava uma borrasca? E como se comportaria esta durante a tempestade? Adiante, onde as nuvens tocavam a água, houve algo que produziu um clarão. Antero olhou atentamente nessa direção. E eis que brilhava de novo! Virou-se para a popa. Onde, no meio da escuridão, se conseguia distinguir a roda do leme, nada se movia. Pôs-se de pé e encaminhou-se para a parte posterior do navio. – Viu a luz, comandante? A figura atarracada à roda do leme permaneceu imóvel. O comandante nem sequer virou a cabeça na sua direcção. – Nos últimos tempos tem havido piratas holandeses activos por estas bandas. É possível que sejam eles a trocar sinais, para nos apanharem desprevenidos – disse Antero. – São as fogueiras, junto à costa, que assinalam o acesso ao Tejo. – Tem a certeza? A tempestade afastou-nos da rota. – Não é a primeira vez que navego para Lisboa. «Nem eu», pensou Antero. Teve de reprimir a resposta. É certo que preferia usar o porto da cidade do Porto para os seus negócios, mas Lisboa era a sua terra natal. Dispunha de bons contactos na capital. A densa barba que deixara crescer, bem como a pele tisnada do sol e da presença no mar, haviam-lhe modificado o aspecto. Desde que não negligenciasse a necessidade de ter uma certa cautela, poderia despreocupadamente visitar os seus parceiros de negócios. Viajara já de Exeter para Lisboa, de Dartmouth, Plymouth, Ipswich e Yarmouth. E, claro, também de Londres, como desta vez. – A nossa carga teria interesse para piratas. Poderiam ter sido avisados. – Os piratas interessam-se é por ouro e prata, não querem saber de tapetes de lã e meias. O tom resmunguento das respostas do comandante não lhe agradou. Estaria com dúvidas? Uma palavra irrefletida diante das autoridades portuárias e o empreendimento de ambos estaria arruinado. – E então o tecido de twill que foi carregado e aquele requintado pano negro? Os tecidos ingleses vendem-se sempre muito bem – o comandante permaneceu em silêncio. – Não dormiu a noite toda, pois não? – Dormi quatro horas. O meu timoneiro é um homem de confiança. O convés do navio não era um bom local para se falar de coisas secretas. Por todo o lado andavam os marinheiros a afadigarem-se, lá em cima nas vergas, na popa, na proa ou junto dele, porventura até mesmo no exterior do navio, a verificar o costado, a ver se o casco não ficara danificado pela tempestade. Tinha de falar com o comandante, mas sem que ninguém os escutasse. – Faz-lhe diferença que eu vá num instante ver a minha mercadoria? Receio que possa ter ficado molhada. – A minha cabina está seca. A sua mercadoria está em óptimas condições. Teria ele entendido? – Ainda assim, deixe-me dar uma vista de olhos. Ficaria bem mais tranquilo. Sem dizer palavra, o comandante ergueu as mãos da roda do leme e estendeu-lhe uma chave que se encontrava presa numa fita em redor do pescoço. Segurava a fita acima da cabeça. Antero aceitou a chave e pegou no lampião, que emitia uma luminosidade débil, pendurado junto ao comandante, na superstrutura por baixo da vela da mezena. – Posso…? Mexeu na rodinha metálica de modo a fazer subir a mecha. De imediato ficou tudo mais claro. As velas devolveram o brilho da luz umas às outras. Estavam enfunadas, o Fortune navegava a bom ritmo. Quando a tempestade se começara a fazer sentir, as velas haviam sido recolhidas para que não se rasgassem. Os marinheiros deveriam ter voltado a subi-las enquanto ele dormia, as grandes velas quadradas, de través, cinco em cada um dos dois mastros mais à frente, e as velas da mezena, inclinadas e dispostas longitudinalmente. Dois homens continuavam ainda empoleirados nas velas quadradas a verificar a tensão das escotas. Cheirava a sargaço. Sobre as tábuas do convés havia poças de água lamacenta, que reflectiam a luz do lampião, e algas espalhadas. A tempestade deveria tê-las arrancado ao fundo do mar. Ouviam-se gargalhadas, vindas do refeitório da tripulação. Os marinheiros deveriam estar a comer e iam dizendo graçolas. Soava como se sentissem aliviados por ter escapado com vida à tempestade. Talvez o comandante, para festejar, mandasse distribuir uma dose extra de rum. Antero desceu a escada que conduzia à cabina do comandante. A peça mais luxuosa da cabina era uma cómoda bojuda, dotada de ferragens chanfradas. As gavetas de madeira apresentavam-se enceradas e, iluminadas pela luz do lampião, brilhavam. Por cima da cómoda estava pendurado um mapa dos territórios britânicos da América do Norte. Fora o mapa que, há duas semanas, aquando do primeiro contacto, havia revelado a Antero que o comandante seria subornável. Sonhava poder vir, na sua velhice, a estabelecer-se nos territórios ultramarinos. A cabina estava, com efeito, seca. Antero sentiu inveja. Parecia que o comandante tinha celebrado um pacto com a tempestade, como se ele fosse misteriosamente mantido a salvo, enquanto as forças da natureza tentavam acabar com a vida do resto da tripulação do navio. Talvez, porém, se desse apenas o caso de a cabina do comandante ter a melhor localização possível naquela embarcação. Antero pousou o lampião sobre a mesa e curvou-se sobre o pesado baú colocado por baixo das janelas da popa. Inseriu cuidadosamen- te a chave na fechadura. Rodou-a uma vez e depois uma outra. A fechadura abriu-se. Ergueu a tampa do baú. Era ali que estavam os pacotes dos membros da tripulação. A qualquer marinheiro era permitido fazer um pouco de tráfico por sua própria conta desde que as quantidades envolvidas se mantivessem pequenas. Para que não chegasse a haver contrabando, cabia aos comandantes guardar a mercadoria. Antero pôs de lado alguns desses pacotes. Retirou do baú o seu embrulho e colocou-o em cima da mesa. Uma após a outra, foi enovelando as tiras de cabedal que serviam de invólucro. As folhas de tabaco crepitavam. Um suave aroma ascendeu às suas narinas, provocando um leve prurido no nariz. Antero levantou as folhas de cima, pondo a descoberto as de baixo, e apalpou-as. Eram grandes. Estavam secas, tanto que delas até se esmigalhavam pequenos pedaços. Iriam indispor os funcionários da Coroa. O rei português reclamava para si o monopólio do comércio do tabaco. Se os guardas portuários revistassem a bagagem dos membros da tripulação e a dele, o passageiro, deparar-se-lhes-ia aquela descoberta, enfurecer-se-iam e isso desviar-lhes-ia a atenção. Deste modo, a grande carga de tabaco no porão não seria posta a descoberto. Sob as folhas de tabaco havia ele arrumado os seus livros, os dois volumes da nova obra de Carl Nilsson Lineu, chamada Species Plantarum. Inseridas no meio desses livros havia folhas com os desenhos que ele mesmo, Antero, fizera. Destacavam-se das folhas impressas do livro e acrescentara-as sempre que acreditava ter encontrado uma planta que não figurava entre as espécies descritas por Lineu. Dava-lhe gozo descobri-las. Em tempos havia tido esse prazer mais amiúde, nessa altura tinha de se contentar com uma publicação chamada Hortus Cliffortianus, na qual apenas surgiam descritas duas mil e quinhentas espécies. Actualmente era já mais difícil conseguir encontrar uma omissão no minucioso trabalho de investigação realizado pelos botânicos. Um dia haveria de enviar os seus resultados a Lineu, para a Suécia, e talvez este viesse a usá- los para completar a sua obra. A par dos livros e das folhas de tabaco estava o pacote com os seus pertences. Abriu-o e retirou de lá o seu relógio de bolso de prata. O mostrador indicava seis horas e trinta e nove minutos. Era uma sensação estranha ter noção da hora certa ali no meio do mar. O comandante precisava de saber as horas com exactidão para poder determinar a longitude, quatro minutos equivaliam a um grau, por isso olhava regularmente para o relógio do navio. Para além disso, porém, qual era afinal o significado de um minuto no mar? O relógio fora a única recordação que mantivera. A única coisa que ainda o ligava àquele perverso passado. A voz do comandante, com o seu tom mal-humorado, fez-se ouvir nas suas costas. – Lá em baixo a água atingiu duas caixas, nessas a mercadoria ficou molhada. O resto permanece intacto. A minha parte mantém- se inalterada. – Isso vemos depois. Antero nem sequer se virou. Ia passando os dedos sobre a superfície arredondada do vidro do mostrador do relógio e através das janelas da popa olhava para o mar. O comandante Wrightson chegou-se. Aproximou-se tanto que Antero pôde sentir o calor da respiração dele na nuca. – Escute lá, a si poderá dar gozo não cumprir a lei. Para mim não é bem assim! Se vierem passar revista ao meu navio e encontrarem as caixas, nunca mais poderei voltar a navegar. Vão é mandar-me executar! Antero virou-se então. As pontas dos narizes de ambos quase se tocaram. – Acha então que nesse caso eu serei poupado? Durante esta viagem, as nossas vidas dependem uma da outra. E bem que gostaria de saber se a minha continua em mãos em que eu possa confiar. – E que tem a perder? Há anos que está habituado a apostar tudo numa única carta. Eu esfalfei-me a trabalhar até chegar a este posto, fiz sacrifícios, fi-los a minha vida inteira. Nem sequer entendo bem por que razão arrisco tudo isso pelo seu dinheiro. Os pelos esbranquiçados das suíças do comandante tremiam e a pele da sua face, coberta de poros grossos, enrubescera. Antero voltou a virar-se para a mesa e embrulhou os seus pertences. – O melhor é recompor-se rapidamente. Quando chegarmos ao porto será demasiado tarde – voltou a colocar o embrulho no baú. – E, no que diz respeito à minha vida, não pense que me comecei a dedicar ao contrabando por vontade. Eu quis seguir os estudos. Quis ler e aprofundar os conhecimentos sobre o modo como o mundo, esta gigantesca máquina, funciona, mas impediram-me de fazê-lo. Acha, porventura – prosseguiu ele, virado para o baú –, que não tenho sonhos? Tenho-os, tal como você. Há de chegar o dia em que me deixo destas viagens, e nessa altura começará para mim a vida que sempre quis, aquela que me negaram o direito a ter. Os marinheiros iam baixando baldes presos a cordas, os quais dançavam sobre as ondas, e não era fácil recolher água quando a embarcação navegava velozmente. Repetidas vezes desceram os homens baldes presos a cordas até estes acertarem nas vagas no ângulo correto e nelas mergulharem. Içavam-nos de seguida, já cheios, e lançavam a água sobre as tábuas do convés. Com a ajuda de vassouras varriam-na de novo para fora, fazendo-a passar pela abertura abaixo da amurada. A sujidade ia fluindo para o exterior. Dali a pouco o convés brilhava como um espelho. Os cabos foram reunidos e arrumados. Marinheiros treparam às velas quadradas e verificaram se tudo estava em conformidade. O comandante Wrightson preparou o Fortune para entrar no porto de Lisboa. Aparentemente pretendia disfarçar a culpa que sentia. Queria, por meio do seu navio, projectar para o exterior uma imagem de pureza, para que a terrível mácula no porão passasse despercebida. Que cobarde! Se alguma coisa conseguisse alcançar com aquilo seria apenas que o navio desse ainda mais nas vistas. Que sorte tinham aqueles que contrabandeavam à grande, dirigindo os seus próprios navios! Para esses não havia comandantes medrosos que lhes estragassem os planos. A costa estendia-se já de um extremo ao outro do horizonte. A meio dessa linha revelava-se a foz do Tejo. A fortificada cidadela de Cascais impunha a sua presença à esquerda, apoiada por outras estruturas defensivas ao longo da costa, concebidas para fazer frente a ataques vindos do Atlântico. A luz da alvorada projectava um brilho avermelhado sobre as muralhas e as torres. A uma distância igual à do alcance da voz passou por eles um paquete, ultrapassando-os, muito embora o próprio Fortune navegasse a uma boa velocidade. Os paquetes eram navios imbatíveis em questões de maneabilidade e velocidade. Era isso que lhes conferia segurança face à ameaça da pirataria. Isso e os seus canhões. Só do lado que estava virado para si, Antero contou doze escotilhas para peças de artilharia. Portanto, o navio dispunha de vinte e quatro canhões no convés de armas, que podiam disparar sobre os costados de navios inimigos. Além disso, viu ainda duas outras peças de artilharia na popa, com as quais se podia atirar sobre eventuais perseguidores. Alguns passageiros acenaram. Ele ergueu a mão em jeito de cumprimento. Refletira já por diversas vezes acerca dos paquetes. Estabeleciam ligações regulares entre Falmouth e Lisboa. Dantes os comerciantes com representações estabelecidas em Portugal costumavam expedir a sua correspondência para a Grã-Bretanha por meio de diversas cópias entregues a diferentes navios, para garantirem que pelo menos uma delas chegaria sã e salva às mãos do destinatário. Hoje em dia já só se enviava o original no paquete. Podia-se confiar que este alcançaria a Inglaterra. Um progresso admirável. Ao navio confiavam os comerciantes não apenas a sua correspondência. Havia a bordo uma bolsa diplomática. Era no interior desta que os comerciantes depositavam pequenos pacotinhos, que continham moedas de ouro, porventura ouro em pó ou até mesmo em barras. O correio ordinário era aberto em Lisboa para efeitos de verificação, pelo que não se revelava seguro. A bolsa diplomática, porém, era entregue a bordo pelo agente da companhia de navegação dona do paquete, que representava em Lisboa o administrador-geral dos Correios de Londres. Ninguém abria essa bolsa. Era como que um viajante inviolável que percorria a distância entre os dois países. Se Antero alguma vez conseguisse apoderar-se daquela bolsa! Com o produto desse roubo poderia viver em descanso para todo o sempre. No entanto, havia algo que no seu interior o impedia de tal coisa. Não era um ladrão. Ficava-se pelo contrabando. Subtraía-se à cobrança de impostos e desrespeitava os acordos comerciais. Esquivava-se, quando muito, ao pagamento das taxas portuárias ou das somas exigidas pelas feitorias. É claro que, indiretamente, estava a roubar dinheiro, ao defraudar cidades e reinos do pagamento dos respetivos impostos. Apenas lhe parecia menos reprovável pelo simples facto de não o fazer a uma única pessoa. Há meio ano, porém, o limiar do aceitável era bem mais exigente. Cada vez lhe era mais fácil imaginar-se a roubar. Restos daquilo que havia sido a sua crença rumorejavam no seu interior. Decerto que Deus acharia o seu comportamento abominável. Ainda que fosse apenas por desespero que ele pecasse, ainda que o fizesse somente na medida do que a sua situação lho exigia, não deixava de considerar errado o acto de roubar. No fundo, contrabandear nem sequer era coisa que quisesse fazer, vira-se obrigado a isso; se assim não fosse, já há muito que, numa universidade, seria assistente de algum matemático, de um físico ou de um botânico. «É assim mesmo que as coisas acontecem», pensou ele, «é assim que escorregamos para o fundo do poço e nos tornamos criminosos. Foi nisso mesmo que me transformei. Um criminoso.» Navegaram foz adentro. De ambos os lados, avistava-se terras de pastagem. Casas isoladas no meio de ilhas verdes formadas por árvores. Pomares trepavam as encostas. Campos onde se semeava batata-doce eram cavados por escravos, sendo assim preparados para o suave inverno que se avizinhava. A maioria deles tinha a pele de cor negra. Antero voltou a virar-se na direção do mar. Via velas minúsculas, espalhadas por todo o horizonte. Navios mercantes dos mais diversos países dirigiam-se para Lisboa. Muito embora tivesse há anos deixado a velha pátria, não deixava de sentir orgulho. A capital do Reino de Portugal era uma das maiores cidades da Europa, de importância igual à de Londres, Paris e Nápoles, e no que dizia respeito ao comércio era, sem qualquer dúvida, o lugar mais importante do mundo. Depois de Vasco da Gama descobrir o caminho marítimo para a Índia, tinham os navios, carregados de pimenta, canela, noz-moscada e pérolas, transformado Lisboa na rainha de todas as cidades mercantis. Desde então, ela governava com sageza e benevolência. O seu nome era conhecido em todos os lugares da Terra. Lisboa era rica, a urbe enchera-se até à saciedade com o ouro e as pedras preciosas do Brasil. Nela se realizavam os melhores mercados. Tudo o que o coração ambicionasse poderia ser encontrado em Lisboa. Belém surgiu à vista. A igreja e o mosteiro dos monges Jerónimos destacavam-se na sua brancura diante do azul céu matinal. Na margem do rio, a Torre de Belém enfrentava as vagas. A torre defensiva, com quatro andares, encontrava-se completamente cercada de água. Com os seus canhões dominava o acesso marítimo a Lisboa. Navio algum conseguiria passar diante dela, uma vez que os guardas daquela fortificação recebessem ordens para o afundar. Soprava uma brisa quente, vinda de terra. Transportava o odor da batata-doce e da terra. Gaivotas vinham juntar-se ao Fortune. Acompanhavam-no, lançando os seus chamamentos de modo bem audível, e revoluteavam em torno dos seus mastros. O dia estava bom, prometia uma chegada aprazível e lucrativa. Tudo estava a correr como planeado: tinham conseguido trazer para bordo o contrabando sem que os guardas portuários ingleses disso se tivessem apercebido. E em Lisboa tinha Antero os seus parceiros de negócios. Trataria de conseguir que as caixas fossem descarregadas durante a noite, sem dar nas vistas. O Fortune ia passando ao largo de diversas colinas. Para lá da proa podia já avistar-se uma autêntica floresta de mastros e velame. Por detrás, revelava-se Lisboa. As instalações portuárias de Alcântara ocupavam uma vasta área. Havia ali centenas de navios ancorados. Sobre as colinas erguiam-se, rumo ao céu e até perder de vista, palácios, residências e igrejas. Havia nos Portugueses um pouco de todos os povos, de Celtas, Fenícios, Gregos, Romanos, Germanos e Mouros. Era isso que fazia de Lisboa uma grande cidade. Os seus costumes, a sua língua, desenvolvida na base do latim vulgar, que as tropas de ocupação romanas haviam falado. Possuía, no entanto, também muitas palavras de origem árabe. O vigor de vários povos concentrara-se neste lugar e transformara Lisboa numa metrópole. Mais de trinta mil casas cobriam as colinas. Roupa lavada de diversas cores estava pendurada a secar em estendais de ferro, diante das janelas, já que o espaço nos pátios e no interior das casas não chegava para tal. Algumas delas chegavam a erguer-se a uma altura de seis andares. As muralhas em redor de Lisboa contavam com setenta e sete torres de vigia. No cimo de uma das colinas, qual trono, erguia-se o castelo, construído à maneira dos Mouros. Cheirava penetrantemente a alcatrão vegetal e a piche. Durante um momento, Antero susteve a respiração. Estavam a calafetar um navio ali perto. O piche aquecido até soltava vapor. Era grande o perigo de incêndio aquando da realização destes trabalhos, pelo que a calafetagem era efectuada diante do porto, com os navios fundeados. Uma vasta escadaria branca orlava o palácio real e descia até à margem do rio, para lá desta havia fileiras de árvores e fontes decorativas. Lisboa, a capital do Reino de Portugal, resplandecia em toda a sua riqueza. Passaram a marcação. Em todos os portos existia uma marcação que os navios não deveriam ultrapassar caso não pretendessem carregar ou descarregar mercadorias. Quem não transpusesse essa bóia poderia abandonar o porto sem ficar obrigado ao pagamento das taxas portuárias. No entanto, uma vez passada a bóia, já não havia como voltar atrás. O comandante Wrightson chegou-se junto dele. Trazia vestido o seu melhor jaquetão azul. Os botões de latão reluziam. O seu rosto, porém, apresentava-se empalidecido. – Tire duma vez a mercadoria da cabeça! – pronunciou Antero em voz baixa. – Não pense mais nisso. Você tem de projectar um ar confiante. – Não me devia ter metido nisto – o comandante percorreu as suíças com a palma da mão bem aberta. – Toda a minha vida fui um homem honrado, ouviu? Que bicho me terá mordido para me pôr agora a fazer uma coisa destas? O comandante falava como se sentisse medo, no entanto os seus olhos mantinham-se frios. Antero sentiu uma contração na barriga que interpretou como um aviso. Havia ali algo que não batia certo. O comandante estava a tentar iludi-lo. – Não precisa de tentar enganar-me, comandante. Você já antes fez contrabando. Não é verdade? – É a minha primeira vez. Nunca antes me tinha metido nisto. Só que sinto saudades da minha filha. Quero ir ter com ela à Luisiana. Não posso esperar mais tempo. «Luisiana?» Mas isso era uma colónia francesa. O mapa pendurado na cabina do comandante era dos territórios ultramarinos britânicos. Era mentira o que ele ali estava a contar! Quereria ele prejudicá-lo? Pretenderia roubar-lhe a mercadoria? Se assim fosse, poderia ter retalhado a garganta de Antero quando ainda estavam em alto mar, lançando-o de seguida borda fora. Para se conseguir ver livre da mercadoria, precisava dos contactos que ele, Antero, possuía em Lisboa. Não podia simplesmente descartá-lo do negócio. Antero fitou o comandante minuciosamente. Não deixaria de tê-lo debaixo de olho até que a mercadoria fosse descarregada do navio. 2
As rodas da carruagem, revestidas com uma chapa de ferro,
aproximaram-se dela. Dalila encostou-se completamente à parede. Por um triz não foi atropelada. Porque não prestava ela atenção? Estava sempre com ele na ideia. Afastou-se do muro e continuou a descer até à Rua Nova dos Mercadores. Numa travessa viu um rapaz a fazer o pino e andar de pernas para o ar, enquanto ia sendo incitado pelos seus amigos. – Consigo até ali à frente. Vejam bem! – exclamava ele, já com a cara toda vermelha. Frente à entrada da próxima casa, diante da qual Dalila passou, estava sentada uma anciã, que ia desfazendo pão em pedaços para uma tigela de leite. Pousou-a no chão. O seu gato, já velho e com o pelo desgrenhado, chegou-se junto dela para vir comer. Uma menina acocorou-se e, cheia de curiosidade, ficou a ver o gato a comer. – Que idade tem ele? Dalila estacou. Ficou fascinada pelo acto de contemplação da menina, que tinha um rosto sujo e pequenino, os olhos castanhos, grandes como nozes. Os seus dedos desenhavam círculos na areia enquanto observava o gato. – Tem dezoito anos – respondeu-lhe a anciã. – Porque lhe dás pão? – Ele já não consegue apanhar pássaros. A menina levantou o olhar, fitando a anciã. – E porque não? – Passa a maior parte do tempo a dormir. Está velho e cansado – a anciã afastou do rosto uma madeixa de cabelo branco. – Além disso, já não tem dentes. Quando ele boceja podes ver que lhe faltam os quatro caninos grandes. Como pode, assim, matar pássaros à dentada? – E ele gosta de pão? A anciã acenou afirmativamente com a cabeça. – Posso fazer-lhe uma festa? – Claro que sim. Com todo o cuidado, a pequenita passou a mão sobre o pelo eriçado. O gato consentiu, continuando a comer como se nada fosse. – Gatinho velho e lindo – disse a menina. Como seria ser mãe? Daria banho à menina e comprar-lhe-ia roupas bonitas. Ensinar-lhe-ia a entrançar grinaldas de flores. Todas as noites haveria de cantar com ela. No entanto, o homem que Dalila amava nada sabia a respeito dela. Sentia uma afinidade entre ambos, um sentimento que a dominava inteiramente, ao passo que ele calhara com a mulher errada. A sua irmã gémea tinha sangue-frio e era calculista, era pretensiosa, altiva e superficial. Nada tinham a ver um com o outro. Como era possível que ele amasse Leonor e não ela? Não conseguiu deixar de pensar no beijo que ele dera à sua irmã durante a sua última visita, um beijo nos lábios. Sentira um fogo a arder na barriga. Havia algo naquele mundo que não batia certo. Deus deveria estar distraído, não prestava atenção. No fim do íngreme desfiladeiro formado por aquela rua resplandecia o Tejo, um vasto tapete de água azul repleto de navios. Se ela pudesse fugir com Antero! Se conseguisse esgueirar-se para o interior do seu navio e, na companhia dele, navegar para longe da irmã! Lá fora, no mar, ele logo abriria os olhos. Iria reparar nela, Dalila, e dar-se conta do quanto andara cego. O Senhor tinha aqui algo a fazer. Tinha de ajudá-la. Através da Rua Nova dos Mercadores avançava uma interminável massa de gente, que murmurava, gritava e ria. Deixou-se mergulhar nela e virou de seguida à esquerda. De ambos os lados da rua erguiam-se barracas que se ofereciam à multidão. Alguns desses pequenos comerciantes haviam-se estabelecido nas escadas das casas. Podia-se-lhes comprar malas, cestos, adornos, tachos, facas. Outros comerciantes ainda tinham tâmaras e cerejas para oferecer. Cheirava a bacalhau assado. Sobre este espalhava-se o odor a sabão em pó. As lavadeiras, nos pátios, espalhavam-no na água das suas tinas, era o odor mais típico dos bairros mais pobres da cidade. Desde que estava apaixonada por Antero, apreciava este cheiro. Identificava-se com os pobres. Tal como ela, eles eram infelizes. Dalila gostava de estar em Alfama, o bairro dos estivadores e das lavadeiras, das prostitutas, dos ladrões e dos jornaleiros. Desde sempre fora esta a zona da cidade onde paravam os que a sociedade colocava à margem. Viviam aqui mouros empobrecidos, aleijados, zarolhos e judeus convertidos. Lisboa assemelhava-se a um anfiteatro que descia em direção à água. O porto era o palco. Cinco colinas rodeavam o grande vale onde se situava o centro da cidade, dispostas como se fossem as galerias de um teatro. Alfama, no entanto, situava-se mais na retaguarda, igualmente perto do rio, porém excluída. A cidade ficava de costas viradas para ela. Só a Inquisição é que aparecia com frequência em Alfama, onde ia à caça de judeus que se mantivessem fiéis às suas velhas práticas, que lhes eram proibidas. Sobre os degraus de uma escada, um comerciante havia exposto centenas de figuras de santos pintadas de várias cores. A maioria delas representava Santo António, o padroeiro da cidade. Cada uma das figuras do santo segurava o Menino Jesus no braço esquerdo e no direito um livro e um lírio. Ainda assim, nem todas as figuras eram iguais. Dalila segurou numas quantas individualmente e observou-as. Um Santo António lançava um olhar irado, ao passo que outro soltava uma lágrima, o terceiro tinha uma madeixa de cabelo a tapar-lhe parte do rosto, ao quarto a tinta que coloria o hábito de monge já estalara. O quinto, no entanto, que ela segurava nas mãos, agradou-lhe logo à primeira. Sorria para o Menino, que segurava no braço, e de resto estava ileso. Dalila perguntou o preço. – Dois tostões. Saída do manto do comerciante, estendeu-se uma mão magra e seca. Por debaixo das pregas da capa era impossível reconhecer os traços do seu corpo. Qual a magreza do homem, ao certo? Vendia aquelas figuras e ele próprio mais não era do que uma sombra. – Dou-lhe um. O homem magro olhou-a, como que a avaliá-la. – Preferiria mesmo que fossem dois. Claro, o vestido de seda. Revelava que ela provinha de um meio abastado. Disso não se lembrara ela, mas também não importava. Procurou duas moedas de prata da sua bolsa e entregou-lhas. Ele sorriu. – A generosidade assenta mesmo bem no seu rosto. Dalila pressionou a figura contra o seu peito e voltou a misturar-se na multidão. O Santo António teria de ajudá-la. Teria de chamar a atenção de Deus para ela, antes que a intimidade entre Antero e Leonor crescesse. Ela mesma cumpriria a sua parte, para começar bastaria que tivesse um pouco de auxílio divino. Aprenderia com as artimanhas da própria irmã. Dalila olhou em redor. Ali em frente, aquilo não era uma alfaiataria? A fachada estava coberta de azulejos e, por cima da porta pendia uma tesoura de bronze. Dalila seguiu em frente, na direção da porta. Junto à entrada estava afixada à parede uma folha de papel. Prócurace venddora! Devrá çaber excrever e fazê contas. A folha tinha já um aspecto sujo e envelhecido. Em Alfama, seriam poucos os que saberiam ler. Entrou na loja e fechou a porta atrás de si. Estava fresco o ambiente no interior, onde se encontravam expostas peças ao gosto da moda burguesa: uma casaca de tecido azul-escuro, coletes ingleses de cores claras, bem como ainda diversos rolos de tecidos de lã. – Façam favor…! Dalila olhou em redor. Não estava ali ninguém? Espreitou para a sala contígua. Aí estavam pendurados jaquetões verdes e castanhos e capuzes engomados. Cheirava a amido de batata. A alfaiataria não era o sítio certo para ela fazer compras. Para conseguir impressionar Antero, precisaria de vestidos de cetim e damasco. Além disso, um leque pintado e um lenço de peito num tecido transparente, tal como Leonor os usava. Leonor superava-a no que tocava à escolha de cores e ao modo de usar os acessórios. Como se colocava um lenço de peito de modo a que este revelasse mais do que na verdade cobria? Como, munida de um leque, se fingia ir acidentalmente de encontro a um homem, como se arregalava muito os olhos, sinalizando assim a consciência da própria culpa? Ela não dominava qualquer destas habilidades. Jamais lhe ocorriam quaisquer gracejos insinuantes. Olhava de modo ansioso, mas nunca atrevido. E, no momento decisivo, as saias armadas deslocavam-se desajeitadamente para onde não deviam e lá ficava ela em desalinho. Em questões de moda, fora ela desde sempre pouco dotada. E então a utilização de pintura no rosto! A pele deveria ser maquilhada de modo a parecer pálida, para se conseguir um efeito de delicadeza e fragilidade. O ideal consistia em ter uma pele de aspecto translúcido. Para criar esta impressão, Leonor mandava desenhar a azul as linhas das veias. Em simultâneo, porém, deveriam as faces apresentar um vermelho forte, já que um rubor de aspecto natural era o sinal distintivo das prostitutas e havia que distanciar-se delas. Restava apenas saber como se conseguia por fim evitar fazer a figura de uma boneca esborratada de vermelho. Deveria estar relacionado com a distribuição da cor, com o sítio exato onde esta era aplicada e com a quantidade que se usava. Se Antero preferia mulheres que tivessem um aspecto exterior perfeito, então Dalila jamais o conseguiria conquistar. Essa ideia tinha no seu pescoço o efeito de um garrote apertado. Esgueirou-se para a sala contígua e ajoelhou-se a um canto, junto a um cabide com jaquetões pendurados. Apertou a figura do santo com toda a firmeza que conseguiu reunir. – Santo António – sussurrou –, por favor escuta a minha oração. Preciso da tua ajuda! Dirige a atenção de Deus para o meu coração que sangra! Não é possível que Antero ame a minha irmã, ela é a mulher errada para ele! Irá desapontá-lo, sabes isso bem. Ele merece uma melhor. Atrevo-me a ter esperança de ser eu... de talvez ser eu... – o seu coração vacilava. – Podes fazer com que ele olhe para mim e me veja como realmente sou? Ainda que eu não tenha qualquer aptidão para centrar em mim a atenção dos homens. Por favor, ajuda-me, faz com que ele repare em mim e me... me ache bem. Que tipo de vestido deverei comprar? Que vestido lhe agradaria? A porta bateu. Dalila ergueu-se rapidamente. Espreitou por entre os jaquetões para o espaço principal da loja. O homem magro e seco que lhe tinha vendido a figura! Trancou a porta de entrada, agindo como se fosse ele o dono da alfaiataria e como se pretendesse ficar a sós com a pessoa que o acompanhava, sem serem incomodados. O acompanhante era um homem com o rosto largo. – Que queria a filha do barão de ti? – perguntou-lhe o tal homem. Referia-se a ela. Dalila susteve a respiração. Não ousou sequer mexer-se, permanecendo onde estava. – Comprou uma figura de um santo – respondeu o magro e seco, enquanto esfregava o nariz aquilino. – Foi só isso. – Não subestimes as mulheres. – Ela não suspeita de nada. – Para onde se dirigiu? – Perdi-a de vista no meio da multidão – respondeu o magro e seco. – Mas acredita no que te estou a dizer, ela só veio aqui fazer compras. O acompanhante retirou o tricórnio da cabeça e passou a mão pelo cabelo negro como as penas de um corvo. As unhas dos seus polegares tinham o comprimento de um bico de abutre. Embora estivessem bem cuidadas, o aspecto do conjunto era repugnante. Envergava roupas caras e lustrosas. – Ontem vi o barão. Não confio nele. Ele há de hesitar. – Deste de caras com ele. O barão é um bom ator. Se alguma vez esse homem hesitou, então terá sido uma manobra para iludir. Como achas que ele faz a exploração das suas plantações nas propriedades que tem no Brasil? Recorre aos índios. E esses morrem como moscas, porque não aguentam a dureza dos trabalhos forçados. Achas que o barão se preocupa com isso? Ele tratou de contratar comerciantes de escravos que capturam novos índios e mandou transportar centenas de africanos para a América do Sul. – Mas onde será afinal Oldenberg o sítio que lhe dá o nome? Não sei nada disso. Estavam realmente a falar acerca do pai dela. Mas com que modos o faziam! Não poderiam dar-se conta da sua presença ali. Dalila recolheu-se ainda mais no canto onde se escondera. – É um título honorífico alemão. Há dois anos, foi nomeado primeiro barão de Oldenberg por um tal Frederico-Augusto, príncipe- bispo de Lübeck. – Portanto, isso não quer dizer nada. – Esse Frederico Augusto é o irmão do rei sueco! – vociferou o alfaiate. – E o barão é de tal modo rico que o ouro lhe nasce dos bolsos. Até há pouco tempo detinha o monopólio real do comércio de tabaco em Portugal. E há vinte e oito anos que pertence à Ordem de Cristo, sabias disso? – Nesse caso, a razão pela qual foi aceite na ordem já pertence à história e já há muito não tem qualquer relevância. – Heitor, ele é o nosso homem. – Só estás a ver se consegues agradar à jesuíta. – Agradar…! – o alfaiate fez um gesto que dava a entender que não. – Com alguém como eu não se envolveria. Mas ela é esperta. O que aí anda a maquinar pode transformar Portugal por completo. – O melhor é termos um plano alternativo. Eu vou tratar disso mesmo. Depois, logo vemos qual de nós alcança primeiro o objetivo. – Um plano alternativo? Tens noção de há quanto tempo a jesuíta anda a trabalhar o barão? Heitor desaferrolhou a porta, assentou o tricórnio na cabeça e partiu, sem sequer se despedir. Logo que o outro homem saiu, o magro e seco tratou de, com força, bater com o punho no balcão. Uma alfineteira caiu ao chão. Ele deu-lhe um pontapé e atirou-a na direção de Dalila. Com passos largos abandonou a alfaiataria. Dalila fitou o Santo António e não ousou sequer respirar. Ainda não há muito que as âncoras do Fortune tinham tocado o fundo do rio quando da margem, junto às muralhas, partiu um bote rumo ao navio de três mastros, conduzido por quatro remadores. Na popa estavam sentados dois guardas portuários, na proa um outro homem. Os guardas portuários vinham sempre em grupos de dois, para prevenir os subornos. O homem na proa deveria pertencer à Inquisição. O tempo que gastavam naqueles disparates! O olhar de Antero percorreu o porto. O Tejo estendia-se diante de Lisboa como se fosse um pequeno mar. A luz do Sol causava na água, de um verde-azulado, a cintilação própria de um diamante. Entre os imponentes bojos dos navios, as gaivotas baloiçavam sobre as ondas, como se estivessem à espera de alguma coisa. Os guardas portuários olhavam atentamente para o navio que tinham em frente. Conseguiam ver Antero, de pé, encostado à amurada. Eis que chegara a hora decisiva. Teria agora mesmo de se fazer passar por um viajante francês, forçando o contrabandista ao exílio nos recantos mais profundos da sua consciência. Antero respirou fundo. Como veria um visitante de França o porto de Lisboa? Um visitante que aqui tivesse vindo pela primeira vez? Com um ar curioso, debruçou-se sobre a amurada. Olhou em redor, enquanto assobiava baixinho uma melodia francesa. Em redor do Fortune estavam fundeadas embarcações de carga, holandesas, chamadas fluyts e esbeltas pinaças francesas. Para as bandas do porto militar, conseguia ver fragatas e um couraçado recheado de canhões. Mais atrás, quatro corvetas eram embaladas pelas vagas. Ao longe, a frota do Brasil aguardava. Seriam possivelmente uns cinquenta navios, sobretudo galeões, cujos castelos da popa se erguiam em altura, bem acima do nível das águas. Ao pé destes, as naus e caravelas, mais pequenas e mais antigas, tinham um aspecto miserável. Nas proximidades, a escolta, formada por oito imponentes navios de guerra, velava por todas essas embarcações. Quando vinha do Brasil, um comboio daqueles deveria valer alguns sete ou oito milhões de coroas de ouro. A proteção da escolta era uma necessidade. Só formando uma flotilha poderiam os navios resistir aos ataques dos piratas. A Companhia do Comércio do Brasil trocava pau-brasil por farinha, vinho, peixe seco e azeite, que depois eram levados para o Brasil. Outros comerciantes, que, com os seus navios, se haviam juntado ao comboio, traziam açúcar das plantações de cana, para além de cacau, peles de bovinos e ouro. Os bens que abasteciam um território inteiro eram transportados por mar. Antero conhecia bem esse negócio. Voltava-se sempre à discussão sobre se não seria melhor acabar de vez com o comboio. As desvantagens daquele procedimento eram óbvias: quando os navios chegavam a Portugal, eis que o mercado ficava por algum tempo saturado com os produtos vindos do ultramar. Quem ousasse encetar a viagem sozinho, numa outra altura do ano, poderia, com os mesmos produtos, ver os seus ganhos multiplicados. Ou então quem ousasse contrabandear, ao arrepio de todas as determinações, proibições e cobranças de impostos. Antero forçou- se a reprimir tais ideias. Não poderia agora, enquanto desempenhava aquele papel, cometer quaisquer deslizes. Distendeu os membros e fingiu observar o bote dos guardas portuários sem qualquer medo, sem se deixar tomar pela sensação que nem sequer deveria olhar nessa direção. O bote passou junto de um batelão carregado com tonéis que haviam sido impermeabilizados e estavam agora a ser transportados para a margem. Os guardas portuários examinaram- nos com um ar severo. Os tonéis poderiam conter fosse o que fosse: peles, vinho, especiarias, azeite, ou cereais, mercadorias descarregadas de um navio mercante. Ou estavam vazios e iriam ser enchidos com água potável e provisões. – Está a ver aquele couraçado ali? – o carpinteiro de bordo chegou-se junto dele. – Três cobertas, noventa e oito canhões. É uma loucura, não é? Em tempos, ainda se faziam abordagens aos navios inimigos em alto mar. Hoje em dia, navegam por aí esses colossos. – Mas ainda acontecem abordagens, os piratas… – Disparate! Já ninguém pensa em abordagens. As frotas colocam-se uma em frente da outra, formando duas longas filas de navios – colocou as palmas das mãos uma junto da outra. – Depois desatam as bocas-de-fogo a disparar, até que um dos lados se retire, por já ter os mastros a voarem-lhe junto das orelhas. – Ah, sim… Surpreendente. – Os navios mais pequenos já só são necessários porque lá para o fim da fila já nem se consegue ver o navio-almirante! Por isso, os pequenos servem para retransmitir os sinais das bandeiras, e de resto para mais nada. Compare lá a montanha que é este navio com aquelas corvetas ali. Tem noção de que só neste couraçado está reunida uma floresta inteira de carvalhos? E depois mais uns quantos milhares de quilos de ferro dos canhões. A tripulação, os víveres, a pólvora, o chumbo… É um milagre que o navio flutue com tamanha segurança. O bote deteve-se. Ali estavam eles. Os remadores recolheram os remos. Pelas escadas de corda que o comandante mandara prender à amurada a bombordo treparam os guardas portuários para o navio. Seguiu-se-lhes o fiscal da Inquisição. Conhecia-o? Antero examinou de passagem o rosto dele. Não. Enquanto os marinheiros andavam descalços e até mesmo os oficiais do navio mais não tinham nos pés do que calçado simples com atacadores, os sapatos dos três homens exibiam dispendiosas e brilhantes fivelas. Ambos os guardas portuários recolheram os respectivos chapéus debaixo do braço e esboçaram uma vénia diante do comandante. – Bem-vindo a Lisboa, senhor comandante. Enquanto isso, o terceiro homem retirou do bolso, preso a uma corrente prateada, o seu relógio e, com um ar carrancudo, olhou para o mostrador. As unhas dos seus polegares eram pontiagudas e compridas. Antero olhou para ele com atenção. Aquele relógio era semelhante ao seu, do mesmo modo que um ovo se assemelha a outro. Foi como se um prego em brasa se lhe cravasse no cérebro. Tudo o que nele havia do francês de há pouco evaporou-se por instantes. Era apenas e só o contrabandista, a ratazana que é perseguida e encurralada. Tinham enviado um discípulo de Malagrida. 3
«Um lobo à caça», foi o pensamento que passou pela cabeça de
Antero. À exceção das invulgares unhas dos polegares, a impressão criada pelo homem era a de alguém civilizado. Tanto o jaquetão como o colete exibiam uma fila de botões de formato semiesférico. Das mangas da sua casaca saíam punhos de renda, e em redor do pescoço havia um lenço branco. Os discípulos de Malagrida tinham de se apresentar bem vestidos, afinal de contas era nos melhores círculos que se moviam. Não deixavam, porém, de ser, na verdade, feras sob disfarce. Por baixo do calção trazia vestidas meias até ao joelho imaculadamente brancas. Usava ainda uma peruca. Não, o cabelo era mesmo dele! Um homem que quisesse dar-se ao respeito jamais saía à rua sem uma peruca. A opinião das pessoas não era com certeza algo que o preocupasse. Tinha autoconfiança e era senhor de si mesmo. Antero não admitia atribuir este encontro ao acaso. Dirigiu-se ao estranho. – Permita-me que o cumprimente – a pronúncia francesa saiu-lhe irrepreensível. – O meu nome é Jean. Sou passageiro deste navio e esta é a minha primeira visita a Portugal. Que será que devo fazer quando chegar ao porto? Deverei comunicar a minha presença algures? O olhar impassível do estranho ficou preso no seu rosto. – Que quer dizer com isso? – Em Portugal, segundo se diz, a Inquisição anda sempre no encalço das pessoas. Pronuncia-se sobre todo e qualquer passo que se queira dar. Não quereria, logo de início, começar por fazer qualquer coisa mal. Os marinheiros, agitados, faziam-lhe sinais. Os seus rostos estavam lívidos. Antero não vacilou sequer. Acrescentou ainda: – Ouvi dizer que qualquer um me pode denunciar. O meu próprio criado, o meu notário ou qualquer pessoa que passa na rua, gente que eu nem sequer conheço. Isso é verdade? – Melhor será que se mantenha de boca fechada, homem – o estranho dirigiu-se ao comandante. – Nome e nacionalidade do navio? – Chama-se Fortune, respeitável senhor, e é sob pavilhão britânico que navegamos. – O comandante Wrightson trouxe a manga até junto da boca e tossiu. – O nome do proprietário? – Adam Bromley. – Número de passageiros? Número de tripulantes? – Um passageiro, trinta e quatro marinheiros. – Religião? – Somos todos protestantes, à excepção de Robert Scott, o grumete, esse é católico. O estranho inspirou vigorosamente. – Muito bem. – Examinou os marinheiros como se estes fossem demónios. – Existem livros a bordo? Imagens? – Não, respeitável senhor. Antero acercou-se do comandante e do estranho e fingiu-se horrorizado. – Você é... Quero dizer, está a fazer essas perguntas por pertencer à Inquisição? Mas isto é terrivelmente desagradável para mim. Como poderia eu saber que trabalha para a Inquisição? Por favor, não quero que pense que tenho uma má opinião a seu respeito, não era minha intenção ofender os costumes do seu país… – Deixemos a coisa assim – interrompeu-o o estranho. – Você fala como se a sua vida dependesse disso. – Teria a gentileza – começou um dos guardas portuários – de nos mostrar a carga, senhor comandante? Talvez o seu contramestre possa fazê-lo, o meu colega poderá acompanhá-lo. Se entretanto pudéssemos ir preenchendo os documentos do navio para a alfândega…? – Claro que sim. Vamos até à minha cabina – o comandante afastou-se na companhia do guarda portuário. O inquisidor seguiu- os na direção da cabina do comandante, enquanto o segundo guarda portuário se dirigiu, na companhia do contramestre, para junto das escotilhas de carga. O homem de Malagrida é que não! Antero engoliu em seco. Aquele iria exigir ao comandante que lhe mostrasse os pacotes com mercadorias que pertenciam aos membros da tripulação, acabaria por ver o relógio no seu pacote e de imediato aperceber-se-ia de que ali havia algo que não batia certo. – Caro senhor inquisidor – disse ele e apressou-se a segui-los. – Permite-me que fale consigo um instante? O estranho estacou. – Que mais quer? Antero atraiu-o à parte. – Revelar-lhe um segredo. É para isso que aqui está, para sondar e revelar a existência de segredos, não é assim? O estranho franziu a testa. – Diga. – Foi sobretudo tecidos ingleses que carregámos. Mas também sacas com meias de malha e alguns tapetes de lã. – Isso não me diz respeito. – A questão é: o que irá o comandante receber a bordo quando a carga tiver sido vendida? – De certeza que me vai responder a isso já de seguida. Antero falava em tom de segredo: – Ainda que, com isto, esteja a falar contra o interesse dele, eu revelo-lho. Ele compra sal de Setúbal ou de Aveiro e transporta-o para o mar Báltico. Lá é bastante procurado, pois precisa-se dele para salgar os arenques. Um negócio astucioso. De seguida leva do Báltico para Inglaterra madeira e pez para a construção naval. – Está a fazer-me perder tempo. – Espere! Esta é apenas a história que se vê. Na verdade, porém, o comandante é contrabandista! Neste navio não irá descobrir nada, mas eu sei onde encontrará. Isto com certeza que lhe interessa… – Vá ter com os guardas portuários e conte-lhes essa história. Contrabandistas é coisa que não me interessa. – É mesmo? Ele contrabandeia livros! Daqueles que figuram no Índice dos Livros Proibidos da Inquisição. Vende-os depois às escondidas, e a preços escandalosos, aqui no seu país. Nos olhos do estranho surgiu um brilho incandescente. – Onde tem ele os livros? – O conhecimento tem o seu preço. Quanto está disposto a pagar para que eu coloque a minha vida em risco e lhe mostre o esconderijo? Um guarda portuário saiu através da escotilha da cabina do comandante para o exterior. Trazia na mão direita algumas folhas de tabaco, a mão esquerda segurava um relógio, que oscilava, suspenso. – Isto pertence-lhe? – perguntou ele, dirigindo-se a Antero. O discípulo de Malagrida olhou para o relógio, depois, fixamente, para o rosto de Antero e disse: – Tabaco? E quer-me você falar de contrabando? No convés, atrás dele, surgiu o comandante. Trazia uma expressão séria. A fera não reagira ao relógio? Como seria isso possível? Naquele terrível e singular momento, Antero apercebeu-se de tudo. Aquele jogo mortífero ostentava a assinatura de Malagrida. Este tinha enviado os seus esbirros no seu encalço: o comandante Wrightson, que lhe contara uma patranha acerca das colónias e da sua velhice, para o atrair para junto da armadilha. O homem com as garras, que fingia pertencer à Inquisição. Pelo canto do olho, Antero observou as escadas de corda. Resvalavam de um lado para o outro, por cima da amurada. Eram os remadores que estavam a subir para bordo. Deveriam surpreendê-lo por trás. Com o cotovelo desferiu um golpe na laringe do estranho. O falso inquisidor agarrou-se de imediato ao pescoço e cambaleou para trás, como que a estertorar. Saltando três passos bem largos, Antero estava já junto da amurada. Passou as pernas para o lado de fora e deixou-se cair. A superfície da água rasgou-se sob o seu peso, como se de um tecido se tratasse. O rio recebeu-o com um abraço gelado. Diante dos seus olhos, um turbilhão de bolhas de ar e partículas em suspensão girava na água. Voltou à superfície, resistindo à ondulação, para inspirar uma golfada de ar. Com toda a pressa que conseguiu afastou-se do navio a nado. A partir das escadas de corda os remadores lançaram-se à água e seguiram no seu encalço. Eram bons nadadores. Com duas vigorosas braçadas Antero conseguiu elevar a parte superior do corpo acima da superfície da água. Com o punho, aplicou um golpe na têmpora do remador que mais de perto o perseguia. Uma dor invadiu-lhe a mão, mas o homem ficou para trás, deixando-se afundar. As pálpebras tremeram-lhe, era evidente que lutava para se manter consciente. O segundo remador aproximou-se. Antero descreveu um movimento na direção deste, mas infelizmente a água travou o ímpeto da pancada que desferiu. Com os braços, o remador envolveu a cabeça de Antero e forçou-o a mantê-la debaixo de água. Deu com o cotovelo na barriga do remador. Ouviu-o produzir um gemido abafado, mas ainda assim o outro manteve-o inexoravelmente bem preso. Antero aproximou as suas mãos dos braços cruzados do remador e tentou afastá-los. Não conseguiu, porém, libertar a cabeça. O ar já escasseava. Revolta, a água estava já cheia de espuma. Mergulhou os dentes na carne do braço do outro. Um gorgolejar de dor. O amplexo do remador enfraqueceu. A água começou a ficar tingida de sangue. Antero mordeu de novo com força. Conseguiu libertar-se. Embora mal conseguisse aguentar por lhe faltar o ar, teve de se obrigar a mergulhar ainda mais fundo. Nadou debaixo de água na direção do imponente bojo do Fortune. Os seus membros estremeciam. Precisava de ar! Engoliu alguma daquela água salobra. Com as últimas forças que lhe restavam mergulhou sob o casco da embarcação. A madeira escura estava repleta de algas. Conseguiu aperceber-se da presença de mexilhões negros. Esfolaram-lhe a pele das costas, provocando-lhe lacerações, quando roçou no casco ao atravessar para o outro lado do navio. Antero sentiu que começava a perder os sentidos. Ao nadar, os movimentos foram-se tornando mais breves, os braços e pernas mexiam-se como que convulsivamente. Por fim, voltou a subir até à superfície. Foi junto ao leme que reapareceu. Sentiu um acesso de tosse que se anunciava, mas esforçou-se por não tossir. Embora se sentisse estonteado e os pulmões parecessem estar em brasa, procurou manter uma respiração regular. Assim tão junto da popa, do interior do navio não o conseguiriam ver, para além de haver o grande casco da embarcação a separá-lo dos remadores. Com certeza não tardariam a adivinhar para onde ele teria nadado. Sentia-se mal-disposto. Que quantidade de água teria engolido? Doíam-lhe os braços e as esfoladelas nas costas. Levou as mãos aos pés e tirou os sapatos. Largou-os, deixando-os ali a boiarem. A pinaça diante dele conseguiria mergulhar por baixo dela para passar para o lado de lá? O instinto de sobrevivência fustigou o seu corpo. Cinco vezes inalou ele vigorosas golfadas de ar, mergulhando de seguida. Voltou a ficar cercado pela água azul-escura. Via gaivotas a flutuarem à superfície, como se o céu fosse feito de vidro. Não poderia aproximar-se demasiado delas, pois, se se espantassem e voassem, revelariam a sua presença. Logo após algumas braçadas teve a sensação de que a vida estava prestes a extinguir-se dos seus membros. Precisava de respirar, e imediatamente! Para fortalecer a firmeza da sua convicção imaginou aquilo que o esperaria, se surgisse à tona de água: tiros, golpes de baioneta, os estertores e a morte. Continuou a mergulhar. O pai adorava tabelas de cálculo. Fazer contas de cabeça seria mais rápido e o pai era bom nisso. Apesar de tudo, Dalila via-o, dia após dia, debruçado sobre as tabelas de cálculo. Preferia confirmar nas tabelas os resultados das suas contas. Nelas surgiam impressos, preto no branco. Mantinham-se ali, quietinhos no seu lugar, à espera de, assim que necessários, serem chamados. Martinho Velho da Rocha Oldenberg seguia com o indicador coluna abaixo e, murmurando baixinho, lia um valor. – Pai – disse ela –, é importante. Ele franziu a testa e, com ênfase, disse: – Cinquenta e quatro. Por cima do tecido azul de seda que revestia a parede estavam pendurados quadros do famoso Peter Paul Rubens. Não agradavam a Dalila. Para ela, os corpos neles retratados assemelhavam-se a róseos lombos de porco. Ali ao lado, Leonor tocava cravo, o som esgueirava-se por entre as portas abertas. Tocava sem qualquer sentimento. As notas sucediam-se numa sequência mecânica, não lhes introduzia qualquer efeito artístico, de hesitação, não tinha um fôlego próprio. Apesar de tudo, o professor elogiava-a. Desde sempre que, junto dos homens, as portas se tinham aberto para a sua irmã. O pai levantou o olhar das tabelas. – Que se passa? – Estive numa alfaiataria. Em Alfama. Inadvertidamente, escutei uma conversa quando lá estava. – Sim, Dalila. O olhar dele estava fixado no vazio. Queria voltar para os números. Não lhe interessava o que ela tinha para lhe dizer. Aqueles olhos grandes! A brancura dos globos oculares era atravessada por pequenos capilares vermelhos. Via-se-lhe nos olhos que trabalhava muito. A pele em redor estava repleta de rugas, e os próprios globos oculares repousavam numa cama de tecidos avermelhados. Dormia menos do que devia. – Estavam a falar de ti. Disseram que te estão a «trabalhar» – informou Dalila. – Às vezes também digo isso acerca das pessoas com quem faço negócios. Não é razão para se ficar preocupado. – Um deles era magro como um esqueleto, acho que era o alfaiate a quem pertence a loja. Dizia que o ouro te nasce dos bolsos. O pai esboçou um sorriso. – É essa a fama de que gozamos, minha filha, nunca te tinhas dado conta disso? E é bom que assim seja. Ainda que a maior parte da fortuna esteja investida, eles deverão saber que possuímos dinheiro para o que der e vier. – Os homens falaram de ti num tom negativo. Isso é coisa que se percebe. – E como vão as tuas lições de música? A improvisação das vozes intermediárias em relação à melodia e ao baixo, já estás a consegui-la? Cada vez mais se escreve esse tipo de peças musicais, segundo dizem. Assim sendo, deverão aprender, a Leonor e tu. Sai-me caro, o professor, como sabes, ele também é compositor e dá concertos. Quero que vocês se esforcem bastante. Ela apoiou as suas mãos sobre a secretária. – Pai, porque não acreditas quando te digo que esta gente te queria mal? – És uma rapariga, Dalila! Uma jovem mulher! Não fui abençoado com a sorte de ter um filho. É a realidade com que me devo resignar. No entanto, isso não quer dizer que as minhas filhas tenham de se comportar como homens. Ninguém espera de ti que te interesses pelos meus negócios. De qualquer modo, não os entenderias. Melhor será que te preocupes com o modo como te comportas, com a tua boa reputação e com as artes! E, da próxima vez que haja uma receção, trata de ser menos mal-humorada com os homens. Toma a Leonor como exemplo. Ela sabe bem aqueles que, enquanto jovem mulher, deverão ser os seus interesses. E desse modo não tardará a entrar-me aqui em casa um bom genro. Dalila cerrou firmemente os maxilares. – Não acredito que estejas a dizer isso a sério. – Não te consigo entender – suspirou ele. – Que pretendes tu afinal? Comerciante é coisa que não podes vir a ser. Enfim, mas que estiveste tu a fazer em Alfama? – É verdade que nas nossas plantações os índios morrem às centenas? – Todos nós morremos quando chega a nossa hora. Os nossos escravos não são exceção. Achas que fico satisfeito? De cada vez que um índio exala o seu último fôlego, isso representa uma perda para mim – o pai olhou-a fixamente nos olhos. – Não quero que vás mais a essa alfaiataria. Não te metas nos meus negócios. Por pouco que o peito não lhe rebentou, tal a fúria que sentiu. Como podia ele falar assim com ela? Para ele, ela não representava senão mais um dos seus negócios. Um contrato de casamento. Tinha vontade de lhe lançar em cara que o dever dele era amá-la, isso sim, tinha era de amá-la! – Estavam a falar de uma jesuíta, pai. Soou como se ela fosse tentar enganar-te. Ele esboçou uma careta trocista com a boca. – Não há mulheres entre os Jesuítas. A Companhia de Jesus só aceita homens. Estás a fantasiar! As mãos dela tremiam. Como podia ele não a levar a sério? Furiosa, deu meia-volta e abandonou a sala. Desde que nascera que enfrentara a vida sozinha. A mãe estava permanentemente no estrangeiro, em visitas a familiares. O pai vivia para o seu património. Administrava-o, multiplicava-o e aperfeiçoava-o, isso era tudo o que contava para ele. Jerónimo, um dos escravos domésticos negros, veio ter com ela. Trazia consigo uma salva de prata com cachos de uvas. – Como se sente hoje, menina Dalila? – Mal. O pai é impossível comigo. Para ele, as filhas não têm qualquer valor. – Quer que lhe dê um tiro? – exibia os seus resplandecentes dentes brancos. – Não estás a falar a sério, pois não? – Eu sou metade de uma espingarda. Quando eu era criança, houve um guerreiro da Costa do Ouro que nos entregou, a mim e ao meu irmão, a troco de uma espingarda, a um comerciante de escravos português. Assim, já que sou metade de uma espingarda, o mínimo que posso fazer é dar um tiro. Não é verdade? Dito isto, riu-se. Que tinha dito o pai? «Não tardará a entrar-me aqui em casa um bom genro.» Estaria a referir-se a Antero? «Se Antero se casar com Leonor», pensou ela, «não vou ser capaz de sobreviver, isso vai definitivamente partir-me o coração.» Qual baleia de peito estreito, a pinaça flutuava sobre a água. Antero não foi capaz de mergulhar por baixo do seu casco. Era demasiado profundo. Nadou à superfície, enquanto ia respirando. Inspirava e continuava a nadar. Por detrás da pinaça, ainda à tona de água, descansou um pouco. Depois voltou a mergulhar, contornando as fluyts, as caravelas, nadou, foi-se escondendo, continuou a nadar, até o seu corpo arrefecer completamente e os músculos tremularem de exaustão. Por fim, alcançou a margem. Só quando chegasse às ruelas de Lisboa e se pusesse a salvo no pátio interior de uma casa qualquer é que poderia permitir-se descansar. Rastejou sobre as pedras que, amontoadas, protegiam o cais de cargas e descargas, rumo a terra firme. As pedras estavam quentes. Antero olhou em redor. O Fortune continuava lá adiante, no Tejo, meio escondido por detrás da pinaça francesa, e tudo parecia calmo. No porão estavam caixotes com tabaco. Caixotes que lhe pertenciam. No entanto, teria de dá-los como perdidos. Dali não iria ele receber um único real. Poderia dar-se por contente ter conseguido escapar do navio com vida. Dois estivadores carregavam arcas às costas sob cujo peso até mesmo um cavalo correria o risco de sucumbir. Limitaram-se a virar brevemente para ele os seus rostos suados e avermelhados. Um deles assoou-se à própria mão. As vagas embatiam ininterruptamente no mármore que revestia o Cais da Pedra. O sol aquecia as costas de Antero. Não podia, porém, repousar. Arrastou-se para longe do cais. Sentia os músculos das pernas retesados e rijos, como que prestes a rasgarem-se a qualquer momento. As pernas pesavam-lhe como se fossem sacas de cereais. O mesmo se aplicava aos braços. A boca estava seca e, a cada inspiração, doíam-lhe os músculos do peito. Iria dar nas vistas ao andar pelas ruas com a pele das costas esfolada e as roupas molhadas. Melhor seria se se misturasse com a multidão numa praça. A partir daí poderia escolher para o seu plano de fuga um qualquer de entre diversos caminhos, tornando-se assim mais difícil segui-lo. O Terreiro do Paço confinava com o porto. Um dos lados que o delimitava abria-se para a água. Havia um grande burburinho nessa praça. Centenas de pessoas negociavam preços, elogiavam as mercadorias ou criticavam-nas aos gritos. De pés descalços, Antero pisou uma bosta de ovelha. Espinhas de peixe e folhas de milho já em decomposição ficavam-lhe presas na sola dos pés. Na parte frontal da praça, o mercado do peixe, havia cestos repletos de mercadoria até à borda. – O meu peixe é tão fresco que o barco onde veio ainda nem lançou amarras! – gabava-se uma das varinas. Ia sendo vaiada pelas outras, que furiosamente gritavam: – Sardinhas! Pargos! Demasiado tarde. Os clientes já se haviam juntado em redor dela para ver o peixe. Em Portugal, ir às compras era coisa de homem. Outrora não se dera conta disso, só depois de ter conhecido a Inglaterra é que reparou na diferença. O peixe, no entanto, era vendido apenas por mulheres. Mais outra regra. Em Portugal, existiam regras válidas ainda que não fossem expressamente enunciadas. Os potenciais compradores fitavam os peixes, cortados às metades e salgados, e distinguiam a mercadoria boa daquela que não estava em condições, os grandes dos mais pequenos, os que já estavam secos daqueles que, cozinhados, iriam saber melhor. Punham de parte os bacalhaus que, na Terra Nova, haviam sido maltratados pelos pontapés dos enfardadores. Pegavam nos robalos pela boca. Quase afundavam os narizes nas entranhas dos pargos para as cheirar. As vendedeiras precisavam de convencer os fregueses da qualidade da mercadoria que ali tinham, pois os preços não eram negociados, todos os dias eram fixados pelos inspectores do mercado, os almotacéis. Antero olhou para cima, para a torre do relógio no palácio real. Fora construída havia poucos anos. Quando Antero virara costas à cidade, ainda a torre estava envolta em andaimes. O relógio deveria provar que, com o tempo, o rei mudava. No entanto, ele praticamente não vivia no Paço da Ribeira. O palácio era uma espécie de gruta de Ali Babá, nada mais. Antero já lá estivera dentro, há seis anos, integrava então o séquito de Malagrida. Aquele monumental edifício de planta quadrangular encontrava-se até à mais recôndita das salas repleto de móveis indianos, porcelanas chinesas, tapeçarias, livros e dispendiosos modelos arquitetónicos de igrejas e palácios romanos. Sob os tetos decorados com aplicações de estuque estavam penduradas pinturas de Correggio e Ticiano. Ali eram guardados tesouros que gerações e gerações de reis haviam acumulado. Aquele palácio nada tinha a ver com os novos tempos. O relógio da torre fez soar o meio-dia. À medida que cada uma das badaladas ia soando, diminuía a actividade na praça e o burburinho, até que por fim, à décima segunda pancada no sino, reinou o silêncio. As pessoas ajoelharam-se e tomaram nas mãos os respectivos rosários. Com movimentos dos lábios que não produziam qualquer som, disseram as suas orações. Também Antero fletiu os joelhos, para não dar nas vistas. Entrelaçou os dedos das mãos, como se entre as palmas segurasse um rosário, e fez como se estivesse a rezar. No entanto, apenas fingiu fechar os olhos. Espreitou através das fendas que as suas pálpebras formavam para verificar se vinham perseguidores no seu encalço. Em todo o mercado apenas cerca de uma dúzia de pessoas não se ajoelhara. Deviam ser protestantes. Respeitosamente tinham descoberto a cabeça e aguardavam que os seus parceiros de negócios terminassem as orações. Ali ao lado havia cabeças de cabrito a assar sobre brasas de carvão. Durante a oração, o rosto do dono da barraca de comes e bebes esboçou um esgar de súplica. Era óbvio que existia uma qualquer culpa que tinha de confessar. Da bacia com as brasas subia também uma nuvem de fumo. As cabeças de cabrito ficaram negras por baixo, as iguarias estavam a queimar-se! Não se daria ele conta disso? Era impossível que não lhe cheirasse! O odor da carne carbonizada penetrava no interior do seu nariz, era como se agulhas finas o picassem. Na sua mente uma recordação ganhou contornos dolorosamente bem definidos, provocando-lhe lágrimas que lhe preencheram os olhos. Sentiu o cheiro a carne queimada. Viu Julie a arder. Ouviu-a a gritar. Encostada à estaca, contorcia-se de dor. Arregalou os olhos, engoliu em seco e limpou o suor do rosto. Algumas pessoas estavam já a terminar as suas orações. Antero ergueu-se e, por entre a multidão, atravessou o Terreiro do Paço. Precisava de roupas e de dinheiro para poder sair de Lisboa. Não poderia ir ter com a sua mãe, mas sim com Cirilo, o comerciante de chá a quem nos últimos anos ele tinha vendido a maior parte da mercadoria contrabandeada. Esse, por certo, ajudá-lo-ia. Antero subiu a colina. Passou por uns velhos sentados diante das suas casas sobre uns banquinhos de madeira a jogar dominó. Com os seus aquosos olhos de anciães, os homens fitaram-no como se tivessem pena dele. Andava por ali como o mais miserável de entre os miseráveis, sem sapatos, com as roupas rasgadas. No que dizia respeito a Lisboa, aquela era mesmo a sua realidade. Não possuía aqui nada mais a não ser aquela camisa esfarrapada e os calções molhados. Como haveria ele de conseguir pagar o que devia? Só regressando a Londres poderia recorrer ao pequeno pecúlio que possuía. Não estava habituado a andar descalço. Sentia as pedras lisas da calçada nas solas dos pés. Por entre as juntas das mesmas brotavam ervas. Do pátio interior, ouvia-se o estridular de uma cigarra. Não conseguiu deixar de se lembrar de quando, em criança, passeava por Lisboa e ia observando o mundo. Tinha-se então dado conta de milhares de minúsculos detalhes. Mas nessa altura ele era fraco e havia sempre quem se aproveitasse e espezinhasse aqueles que eram assim. Chegaria o dia em que ele se vingaria pela morte de Julie e pela vida passada em fuga. Uma mulher levava um cão a passear pela trela. O animal arrastou-a na direção de Antero, mas a mulher ralhou-lhe e puxou-o para junto de si. Por pouco que Antero não reparava no pano verde que pendia de uma haste, sobre a rua. Significava que o comerciante também vendia a sua mercadoria a clientes individuais, já que, de resto, a rua era dominada pelos grossistas. Era aqui a loja do comerciante de chá. Entrou. O aroma dos chás de ervas preenchia aquele espaço. O comerciante estava curvado sobre uma mesa larga, coberta por um pano de cor ocre, e discutia com um cliente. – Porque não acredita no que lhe digo? Este chá preto é proveniente dos montes Wuyi, na província de Fukien. É este chá que os Ingleses vendem como bohea. E não é só, este é um chá imperial! Sabe o que é chá imperial? Contrariado, o cliente resmungou qualquer coisa. – Eu explico-lhe. Só as primeiras folhinhas, as mais tenras, colhidas pelos camponeses chineses, são usadas para produzir o chá imperial. São muito procuradas e consideradas uma preciosidade! Sobretudo quando assim pequenas. – Com este pó preto já ninguém consegue saber se as folhas eram grandes ou pequenas – rosnava o obeso cliente. Revolvia com o dedo o conteúdo da caixa, forrada a folha de chumbo, que estava em cima da mesa, a qual continha um pó formado por pequenas aparas negras. – Nem sequer se sabe se foi misturada alguma coisa mais barata, folhas de videira secas, sei lá eu…! – Escute lá, o chá preto tem de ser cortado em pedaços pe- quenos, é um modo de fabrico completamente diferente do do chá verde! Quer provar uma chávena, com xarope? Vai poder ver por si mesmo que eu estava a dizer a verdade. Chá imperial do melhor! – Não, não quero provar nada. Mande levar a caixa a minha casa. Se me tiver passado a perna, não voltará a vender uma onça de chá que seja aqui em Lisboa, eu próprio me certificarei disso – deu meia-volta e preparou-se para ir embora. Ao avistar Antero, ficou perplexo. Repugnado, olhou-o de cima a baixo. – Não tenho nada para ti – declarou Cirilo. – Desaparece. Antero manteve-se imóvel. Depois de o cliente abandonar a loja, disse: – Pensa lá melhor. O comerciante arregalou os olhos. – Jean? – Dá-me roupas e dinheiro. Não vais arrepender-te. – Tens a certeza de que ninguém te seguiu? Há aí alguém que te quer caçar. – Sei disso. – Um homem com as unhas dos polegares abominavelmente compridas perguntou por ti. Não me soou que pretendesse ter uma conversa simpática contigo. – O Malagrida está por detrás disto. Cirilo empalideceu. – Mala... O profeta? Andas às turras com os Jesuítas? Estás perdido! – Dá-me roupas. – Não estou a entender. Que interesse tem para o grande Malagrida um contrabandista como tu? – Não ouviste? Preciso de roupas e de dinheiro. – Aqui não tenho roupas. – Apontou para os saquinhos e as caixas nas prateleiras. – Só chá. Antero saltou por cima da mesa. Agarrou o comerciante pelo colarinho e puxou-o para junto de si. – Vais ajudar-me. Despe-te, ou eu próprio trato disso enquanto tu vais dar os bons-dias e bater às portas do Inferno! – Não estás bom da cabeça? Queres que fique nu a vender chá? Deu-lhe um encontrão, afastando-o de si. – A tua loja não me diz respeito. Fecha-a, chama um vizinho, diz- lhe que foste roubado! Trata-se de uma questão de vida ou de morte. Vá, despe-te. Por um breve instante, o olhar do comerciante dirigiu-se para baixo. Antero olhou por baixo do balcão. Antes que Cirilo pudesse alcançar o florete, ele mesmo agarrou-o. A fria peça de ferro ajustou-se ao seu punho. Encostou a ponta da lâmina do florete à barriga do comerciante. – Queres pregar uma partida ao teu velho parceiro de negócios? Pensa bem nisso antes de tentares fazê-lo. – Perdeste a cabeça, Jean. – Despe-te. Cirilo hesitou. Com firmeza, Antero pressionou-lhe a lâmina contra a barriga. O tecido da camisa rasgou-se. – Achas que não levo isto até ao fim? Olha que te enganas. O suor escorria já pela cara do comerciante de chá. Os olhos adquiriram uma expressão apática. – Jean, por favor, sabes que tenho mulher e filhos. – Faz o que te digo. O comerciante soltou cuidadosamente a camisa do calção. Foi então que Antero ouviu um ruído vindo da rua. Seria o tilintar de sabres? – Pára! – ordenou Antero. Levantou o pano e escondeu-se debaixo da mesa. A lâmina do florete estava apontada às partes baixas de Cirilo. – Desfiro um golpe se disseres uma palavra errada que seja. Até mesmo se eles me descobrirem por estares a transpirar, a gaguejar ou por baixares o olhar. Se eu morrer, tu morres comigo. Naquele preciso momento, abriu-se a porta da loja. O chão tremeu sob os passos pesados de vários homens. – Onde está ele? – perguntou uma voz grave. Diante da mesa sob a qual Antero se encontrava acocorado, viam-se várias meias até ao joelho, impecavelmente brancas. 4
Era pelas primeiras horas da manhã que a sua pequena dona
cheirava melhor. Deitou a cabeça sobre a almofada dela. O cabelo da pequena dona fazia-lhe cócegas no focinho. Inspirou profundamente o seu odor. A touca escorregara-lhe da cabeça e a sua pele exalava um cheiro adocicado. De entre todos os humanos, era ela quem ele mais gostava de farejar. A sua pequena dona abriu os olhos e bocejou. Ergueu a cabeça. – Bento! – ela riu-se e disse mais qualquer coisa na língua dos humanos. Sacudiu-se. Talvez o seu bafo quente a tivesse feito arrepiar-se. Era frequente ela ficar com pele-de-galinha quando o ar que ele expirava lhe era soprado sobre a nuca. Quando as boas pessoas erguiam os braços no ar, tal equivalia a um convite para a brincadeira. Ele saltou para cima da cama e lambeu-lhe o rosto. Ela espirrou, empurrou-o para o chão e, com a manga, limpou a testa. – Bento! Desta feita as suas palavras soaram como uma censura. Que havia ele feito de mal? Pisara a cama dela. Aquela cama elevada era reservada à sua pequena dona. Ele, Bento, tinha de ficar lá em baixo. Era preciso saber qual a sua posição, qual o seu lugar na matilha. E, se assim fosse, tudo estaria bem. Abanou a cauda em jeito de reconciliação e ladrou. – Vai buscar a bola! – disse-lhe a sua pequena dona. Lançou-se na direção da bola, procurou-a detrás da arca e trouxe- a na boca até junto dela. – Muito bem – afagou-lhe a cabeça. Ele adorava que ela o elogiasse e lhe fizesse festas. A mão dela transmitia um calor agradável que lhe percorria a pelagem. Conhecia sete brinquedos pelo nome: bola, boneca, cavalo, sapato, pote, fantoche e tambor. Neste último ele não podia tocar, para não estragar a pele. Um cheiro pungente agitava-se no ar do quarto. Como haveria ele de conseguir desfrutar da mão da sua pequena dona? Estava ali um rato, conseguia identificá-lo perfeitamente pelo cheiro. Sabia bem onde os ratos tinham os seus esconderijos: na cozinha, no quarto da cozinheira e na sala onde os criados fumavam. Sabia que dormiam debaixo da soleira da despensa e que à noite, por detrás do móvel da cozinha, se punham a mordiscar pedacinhos de chouriço e migalhas de pão. Bento escapou-se por debaixo da mão da sua pequena dona e abriu a porta, empurrando-a com a cabeça. O cheiro a rato intensificou-se. Seguiu-o até à sala de refeições dos criados. Se conseguisse esgueirar-se por detrás do aparador! Este acompanhava a curvatura da parede e, mesmo abaixo do tecto dessa divisão, estendia sobre a loiça uma espécie de baldaquino de madeira entalhada. Bento enfiou o focinho no espaço que mediava entre o aparador e a parede. Com o olho direito conseguiu ver um objecto metálico com que os humanos limpavam os candeeiros. Fora ali deixado, ao abandono, estava envolto em cotão. Ratos foi coisa que não viu. Mas tinham ali estado. Com o focinho, pôs-se à procura pelo chão. Foi então que detetou uma forte pista olfativa. Seguiu-a escada abaixo. Junto à porta traseira da casa teve de esperar até que um criado saísse para ir despejar o lixo da cozinha. O cheiro conseguiu distraí-lo, convidando-o a seguir o criado. Foi a custo que se controlou e voltou a concentrar-se na pista do rato. Tinha estado ali. Não, ali. Estranho. Encontrava não apenas uma, mas várias pistas olfativas da presença de ratos, todas elas bem frescas. Seguiu-as até chegar à rua. Como poderia ser que, bem a meio do dia, houvesse ali fora tantos ratos a andarem pela rua? Por detrás da porta da casa vizinha havia um seu semelhante que o chamava. Ladrava, insultava-o, tentava, com recurso a todos os meios possíveis, chamar a atenção de Bento. Este, porém, mantinha-se firme. À beira da rua, farejava o ar que inspirava. Por todo o lado o cheiro de ratos. Além disso, o vestígio de odores que ele desconhecia. Odores estranhos, perniciosos. Deixavam-no confundido. Capazes de lhe pôr em pé os pelos da nuca. Que animal era esse que exalava tais odores? Farejou de novo. Naquele momento, estreitou-se-lhe o coração. Ganiu. Aqueles odores anunciavam alguma desgraça. Os flancos do tronco de Bento estremeceram de agitação. – Ele não estava no Fortune? – perguntou o comerciante de chá. – Fugiu. Sei que ele veio ter contigo. – Não veio, juro que não! Não sou o único com quem ele tem negócios. – Negócios! – o homem de Malagrida fungou. – Vocês enganaram o rei. O contrabando é um acto de traição! – e acrescentou: – Ficas avisado, meu amigo. Não tentes brincar comigo. Eu ganho sempre e aquele que perde não se dá nada bem. Antero observou os sapatos negros dos soldados, os coletes amarelos, as coronhas das espingardas. Os seus casacões eram azuis e os canhões das mangas vermelhos. E lá estava o jesuíta que estivera no navio. Reconheceu-o pela voz, bem como pelas fivelas brilhantes dos sapatos. Se o jesuíta se inclinasse para lançar uma vista de olhos sob a mesa, estava tudo acabado. – Caso ele aqui apareça, tratarei de saber quais as suas intenções e informá-lo-ei de imediato – a voz de Cirilo soava como que entalada na sua garganta. O homem de Malagrida acercou-se da mesa. Os seus sapatos quase tocavam nos joelhos de Antero. – Não estás a entender. Se não o apanharmos, aquilo que combinámos não vale de nada. Já te esqueceste de como gemeste? De como rastejaste pelo chão diante de mim? Se não o tivermos até ao meio-dia, acabou-se o negócio. Irás então expiar as consequências dos teus actos, que é como as coisas devem ser. Que estava aquele ali a dizer? Antero podia ter saído do navio calmamente, descarregado as caixas a coberto da noite e seria agora um homem livre e abastado, bastando para tal que aquele infame comerciante de chá tivesse mantido a boca fechada! Daí o pavor dele quando Antero ali surgira, daí a rapidez com que tentara agarrar o florete. Aquele homenzinho peçonhento! Aquele porco negociante ganancioso! Como recompensa, haveria de lhe enfiar a lâmina na barriga. Era só esperar até que os soldados se fossem embora. – Heitor, bem sei que você é um homem severo e justo. Dê-me algum tempo que eu trato de descobri-lo. Não vai ficar desiludido. – Vais tu tratar de descobri-lo, a ele? Não deves ter mesmo noção alguma de quem ele realmente é. – Verifico sempre aqueles com quem faço neg... Aqueles em quem preciso de depositar confiança. Ele chama-se Jean e é… – O nome dele é Antero Moreira de Mendonça! – interrompeu-o o jesuíta. – Era o braço-direito de Malagrida, o seu discípulo, o seu sucessor! Ficaram calados. Após um longo silêncio, Cirilo disse em voz baixa: – Não sabia isso. – Não me venhas dizer que queres interrogá-lo – rosnou Heitor. – Não penses que consegues fazer-lhe seja o que for. Cometi um único erro, que foi ter olhado para o relógio, e bastou isso para ele se nos escapar. É capaz de identificar toda e qualquer fraqueza. Quando ele vier ter contigo, fazes o que ele te disser. E só de seguida me vais procurar. Nem sequer tentes passar-lhe a perna. Deu meia volta, os sapatos afastaram-se. Antero esperou. Quando também o tilintar dos floretes se afastou, saiu donde estava escondido de gatas e ergueu-se. Mantinha a lâmina pressionada contra o peito de Cirilo. – Tu entregaste-me. O comerciante de chá estava pálido. Os ombros, contraídos, bem próximos do pescoço. – Não sabia... Queriam dar cabo de mim. Teria sido enforcado. Pensei para mim mesmo que acabarias por conseguir ver-te livre deles. – Disparate. Pensaste que nunca mais me verias, porque eles me iam despachar num instante. – Mas afinal sempre conseguiste escapar-te a eles agora. Cumpri bem a minha parte, não se deram conta de nada. Podes fugir! Antero sentiu o sangue subir-lhe à cabeça. Levou a outra mão ao punho do florete e pressionou com força a ponta da lâmina contra o peito do outro tipo. O comerciante de chá recuou até junto da parede. Antero acompanhou-o. Entre dentes, proferiu com ênfase: – Não tenho dinheiro, não tenho mercadoria, nem um navio que me leve para longe daqui. Malagrida está a dar-me caça. Consegues entender isso? Fazes a mais pequena ideia da dificuldade que já foi fugir-lhe a primeira vez? Cirilo tentava respirar com dificuldade. – De certeza… que vais conseguir… uma segunda vez – dizia, arquejante. – Ah, sim? Da última vez Malagrida não fazia a mais pequena ideia que eu pretendia largá-lo. Pude preparar tudo com calma. Agora sabe onde estou e aquilo que pretendo fazer. Tens noção do que isso significa? A Companhia de Jesus possui colégios, noviciados e missões por todo o lado, em Itália, na Sicília, em França, na Alemanha, no Brasil, até mesmo na Índia. Quarenta e uma províncias! Os Jesuítas estão por todo o lado. – Posso dar-te dinheiro. Poderias subornar alguém. Aquele fracalhão havia destruído a sua vida. O ignorante tinha-lhe aniquilado a valiosa possibilidade de fuga, o recomeço que já há muito andava a preparar. Antero sentia vontade de lhe espetar o florete e deixá-lo fixado à parede. – Subornar alguém, é? – Com a quantidade de dinheiro certa pode comprar-se qualquer um. – Ah, sim? Já alguma vez ouviste falar de obediência cega? De obedecer como se deixasses de ter qualquer desejo, vontade própria? E quem não tem vontade própria, também não quer dinheiro. É assim que os Jesuítas se deixam comandar pelos seus superiores, como se fossem cegos. É esse o seu voto, o juramento que prestam. Ainda hoje me lembro dele, de cor e salteado, de tal modo nos é inculcado. Os Jesuítas têm de renegar o seu próprio raciocínio, obedecem cegamente àquilo que o superior lhes ordenar. É impossível suborná-los. – Peço-te por tudo… – choramingou Cirilo. – Sei bem que cometi um erro terrível, mas suplico-te, tem piedade! Não me mates. Arrependo-me da imbecilidade que cometi. Quem me dera poder voltar atrás com as minhas acções. «Oh, sim, e eu com as minhas», pensou Antero. Quantas vezes se arrependera já da decisão de se juntar aos Jesuítas! Não se tivesse ele deixado deslumbrar pelo poder e os conhecimentos da Companhia de Jesus e Julie continuaria viva. Centímetro a centímetro, foi baixando o florete. – Vais fazer exatamente aquilo que eu te disser. Os olhos de Cirilo encheram-se de lágrimas. Acenou que sim com a cabeça. – Vou, com certeza. Cumprirei à letra o que mandares. – Enches um saquinho com o dinheiro que guardas aqui na loja. Enches um outro saco com chá, o melhor que tiveres. E depois despes-te. Que esperava Malagrida que ele fizesse? Decerto contava que Antero tentasse abandonar a cidade, por terra ou por mar. A dificuldade maior consistia em vigiar o porto, por isso seria lá que ele colocaria a maior parte dos homens. Mandaria seguir a sua mãe e trataria de descobrir todos aqueles que tivessem feito negócios com ele nos últimos anos. O comerciante de chá entregou a Antero a camisa, os calções e as meias. Nu tinha o aspecto de uma criança, mas com quarenta anos e coberta de pelos. Antero despiu as roupas rasgadas, frias e húmidas que trazia. Enquanto vestia o calção do comerciante de chá, ordenou: – Deixa tudo para trás. Leva apenas a tua mulher e as crianças, e desaparece para a província. Ou melhor ainda, para além-mar. Têm de abalar imediatamente. – Vestiu a camisa. Cheirava bastante a suor. – Não digas a ninguém para onde vais. Chegado às colónias adoptas um novo nome. – Mas... a loja! – balbuciou Cirilo. – Esquece a loja. Esquece a vida que conheceste até aqui. Malagrida é implacável. Aqui já não tens qualquer futuro. Cirilo vestiu a camisa rasgada de Antero. Depois, enfiou os calções. De seguida, começou a encher um saco com chá. 5
Juntara-se uma multidão em redor do Chafariz de El-Rei. Antero
misturou-se nela. Precisava de tempo para tomar alento, tempo para forjar um plano. A turba iria mantê-lo ocultado, a salvo dos esbirros de Malagrida. Pousou as bolsas que levava. As mangas da camisa eram demasiado curtas, via-se logo que não lhe pertencia. Arregaçou as mangas até aos cotovelos. Assim já parecia melhor. E com as pernas? Também os calções lhe ficavam demasiado curtos. Só lhe chegavam até às rótulas, ao passo que as meias, por sua vez, não alcançavam sequer a altura dos joelhos. Joelhos à mostra. Um absurdo. Tinha de comprar roupas novas. Uma criança desatou a chorar. Antero ergueu a cabeça. A multidão estava reunida em semicírculo em redor de um tabique de madeira, no qual alguém desenhara com giz os contornos de uma figura humana. Junto à parede, um homem com os braços esticados segurava uma boneca bem alto, encostando-lhe uma faca à garganta. – Só vou devolvê-la quando alguém estiver disposto a ficar de pé, encostado a esta parede – anunciou ele. A multidão riu-se. A criança começou a chorar ainda mais alto. – Ninguém se atreve? – A minha boneca… – chorava a criança. Uma mulher com cabelos ruivos avançou de entre a multidão e disse: – Pobre criança. Eu ofereço-me. «É claro que ela é sua assistente», pensou Antero, «já está tudo assim combinado.» O choro da criança, porém, era com certeza verdadeiro. Lágrimas corriam-lhe pela face abaixo, e quando lhe foi devolvida a boneca, recebeu-a e abraçou-a fortemente, como se fosse uma criança de peito acabada de arrancar às garras de um lobo. Com teatral vagar, o homem foi prendendo diversas facas ao seu cinto. – Abram alas! – pediu ele. Afastou-se do tabique e da mulher ruiva, que se encostara à silhueta desenhada sobre a madeira. A multidão deixou um espaço aberto para ele. De repente virou-se e lançou uma faca, que passou junto ao pescoço da mulher e se cravou na madeira. A multidão ficou respeitosamente em silêncio. O lançador sacou da próxima faca, pegando-lhe pela lâmina, e arremessou-a. Em rápida sucessão, as facas espetaram-se na madeira, bem junto da mulher, à esquerda e à direita do peito, à esquerda e à direita das pernas. O homem segurou a última faca na mão, demoradamente. Aguardou que todos ficassem em completo silêncio. Então lançou-a. Sibilante, alojou-se na barriga da mulher. Esta esbugalhou os olhos. Então deu um passo em frente e o seu vestido sofreu um rasgão. Ela, porém, estava incólume. Com uma precisão milimétrica ele atingira o tecido junto ao corpo da mulher, prendendo-o ao tabique. A multidão aplaudiu. O homem entregou o seu tricórnio à ruiva. Esta passeou-se por ali enquanto fazia a recolha. Ninguém ficou surpreendido por ser ela a recolher o dinheiro para ele. Solicitamente, os espectadores lançavam moedas de cobre para o interior do chapéu, moedas de cinco ou de três réis. Antero deu meia-volta. Sentia a boca seca. Tinha de beber qualquer coisa. A seguir, logo conseguiria pensar com mais clareza. Acercou-se do chafariz. Iluminados pelo Sol, os arcos de mármore do Chafariz de El-Rei projectavam no chão sombras bem definidas. Através de seis calhas, a água fluía rumo ao rio; os pequenos regatos reuniam-se a meio caminho e passavam a formar uma corrente mais grossa. Antero pousou as bolsas à sombra e estendeu os braços. Deixou que o líquido tépido se vertesse sobre os seus pulsos. Foi então que, atrás de si, ouviu uma voz a gritar: – Não vos envergonhais? A vida de uma mulher é posta em jogo, para que a vossa vontade de sensações seja satisfeita! Tem de se pôr um fim a todas estas sacrílegas distrações, os combates de boxe, as patuscadas e bebedeiras e as danças! Gabriel Malagrida adverte todos os habitantes de Lisboa: se estes não se abstiverem das suas más ações, uma grande desgraça irá assolar a cidade! Um jesuíta! Antero curvou-se para chegar à fonte. O jesuíta não poderia ver a sua cara. Juntou as mãos como que formando uma taça e esperou até que estas se enchessem de água. De seguida ergueu-as para junto da sua boca e bebeu. Após alguns goles, parou de beber e deteve-se, espantado. Teve de cuspir a água. Sabia a enxofre! Cheirou as mãos. Tinha nelas esse odor. A fonte era abastecida por canais subterrâneos. Quem seria capaz de alcançá-los? E porque haveria de envenenar uma fonte à qual tanta gente ia beber? Quem quisesse causar dano a uma única pessoa, não procederia assim. Para além do seu inimigo, estaria também a lesar demasiadas pessoas inocentes. Com cautela, Antero olhou em redor. A multidão ocultava-o do pregador da Companhia de Jesus. Pegou nas bolsas e pôs-se de pé. Seguiu junto à margem do Tejo, até chegar ao Chafariz dos Cavalos. Aí a água fluía das bocas de cavalos, cujas cabeças ali se encontravam representadas, para o interior de uma bacia e a água que transbordava era vertida em pequenos regatos para a rua. Com uma das mãos recolheu alguma da água e provou-a. Também tinha um pungente sabor a enxofre. Passava-se algo estranho em Lisboa. Talvez pudesse vir a aproveitar-se disso para um plano de fuga. Junto ao chafariz estavam algumas mulheres a conversar. – Desculpem – perguntou-lhes ele –, já se deram conta que a água da fonte tem um sabor estranho? Desde quando está assim? – Compre-a ali aos aguadeiros – respondeu-lhe uma mulher barriguda, com um nariz largo. – Onde a vão eles buscar? – Ao Largo do Rato. São os aguadeiros com as barricas pequenas, vermelhas e de madeira. Claro, o aqueduto. Pouco antes da sua fuga fora terminada a última parte do percurso, do vale de Alcântara até à Mãe-d’Água. A canalização percorria as ruas de Lisboa, conduzindo a água até ao centro da cidade. Portanto, a água vinda de fora não estava contaminada. – Pode dizer-me desde quando a água do Chafariz dos Cavalos sabe a enxofre? – Desde ontem. Isso depois passa. Houve qualquer coisa que a contaminou. Quatro soldados vinham a descer a rua marginal. Apressou-se a esconder-se detrás da mulher corpulenta. Malagrida socorria-se dos serviços que os militares lhe prestavam, com Heitor tinham sido também enviados soldados. Bastava prometer-lhes que lhes entregaria um contrabandista e eles não hesitavam em ajudá-lo. A mulher virou-se para trás, olhando de frente para ele. – Que está aí a fazer? Antero pôs-se a espreitar por cima do ombro dela. O vento agitava o frouxel branco que adornava as orlas dos chapéus dos soldados. Na ponta das espingardas estavam montadas baionetas. Os quatro homens olhavam atentamente em seu redor. Lançou-se ao chão, caindo sobre os joelhos. Desse modo a mulher cobria-o totalmente dos olhares dos soldados. Reprimiu um vómito. – A água! Não devia tê-la bebido. – Ah, qual quê… Ontem também bebi dela um belo trago. E não foi por isso que tive de me pôr a vomitar. – Sinto-me mal, vou ter de vomitar! À esquerda e à direita da mulher corpulenta apareceram os soldados. Apontaram as baionetas na direção dele. Um, uma espécie de anão com os dentes tortos, disse: – É ele. Dalila hesitou. Diante da porta da livraria estava um homem que lia alto a Gazeta de Lisboa. Em seu redor, reunira-se uma pequena multidão, que o escutava. Segurava o jornal diante da cara e declamava: – Edward Hay, o novo cônsul-geral de Inglaterra, é recebido atenciosamente por toda a cidade. Aqueles que o escutavam desataram às gargalhadas. Dalila esgueirou-se por detrás do grupo e entrou apressadamente na livraria. Quando fechou a porta atrás de si, soou uma campainha. Descendo quatro degraus, entrava-se numa sala repleta de prateleiras e de livros com grossas lombadas. Também os havia mais pequenos, que mal chegavam a um palmo de altura. Alguns desses livros estavam por encadernar, não eram mais do que meros maços de papel. Outros tinham encadernações de cabedal, a maioria delas castanhas, algumas, poucas, brancas. Mais abaixo, nas estantes, havia in-fólios do tamanho de uma roda de carruagem. Cheirava a papel e a gordura. Um homem calvo surgiu da porta traseira. Sorriu para ela. – Seja bem-vinda, jovem senhora. Como posso servi-la? Havia preparado com antecedência aquilo que iria dizer, mas ainda assim foi com dificuldade que os seus lábios o pronunciaram. – Queria saber mais sobre um certo assunto. Sabia de antemão que o homem ensaiaria um sorriso malicioso. Tomá-la-ia por lasciva. – Oh, tenho aqui livros maravilhosos, ilustrados com gravuras em cobre. E trabalho em conjunto com um bom encadernador, que pode reunir tudo numa bela encadernação. Revestido a couro, o livro ficará um verdadeiro tesouro. Possui um ex-líbris que pretendesse aplicar no livro? – Que é isso, um ex-líbris? O sorriso desapareceu. De seguida, o livreiro substituiu-o por outro ainda mais largo, mas o seu sorriso possuía agora algo artificial, algo forçado. – É uma marca que assinala que o livro é propriedade sua. Muitos colecionadores encomendam a um artista notável a conce-ção do seu ex-líbris, sendo este depois gravado na encadernação de couro com um carimbo metálico aquecido ao fogo. Também pode ser uma vinheta, colada na lombada do livro. Ou então, se ainda está a dar os primeiros passos neste mundo dos livros, peça que lhe escrevam uma folha e eu colo-lha na guarda da capa. Em qualquer dos casos, o seu livro passará assim a ser um exemplar único. Vai ver que colecionar livros é uma ocupação que vale a pena. É claro que ela sabia o que é um ex-líbris, mas jamais lhe entregaria o seu. Não para este tipo de livro. – Não estou preocupada com o aspecto exterior – mentiu ela. – Também vendo os livros brochados, encadernados em papel, isso serve perfeitamente, tem toda a razão. Você não é uma daquelas pessoas para quem no livro só conta a lombada dourada. O importante é o conteúdo, não é verdade? Já teria ele percebido aquilo que ela pretendia? Sentiu a face enrubescer-se. Parecia ter o rosto em brasa. – Queria comprar um livro proibido – anunciou ela, enquanto ele assobiava. – Queria… – não havia nada a fazer. Se queria conquistar Antero, teria de dizê-lo. – Queria adquirir um livro erótico. O olhar do livreiro passeou-se, de cima a baixo, pelo corpo dela. – Como sabe, a Inquisição mantém uma censura apertada. A minha oferta de livros não compreende esse tipo de conteúdo duvidoso. Caso tivesse livros desses para vender, iria parar à cadeia. – Sei bem que existem esses livros – insistiu Dalila. – E sei que os tem – não o sabia, mas já seria uma ajuda se projectasse uma imagem de confiança. – Foi uma amiga que mo contou. O livreiro pôs-se a coçar a nuca. Lançou-lhe um olhar crítico. – Pois bem, é tal como afirma, jovem senhora. Por acaso tenho aqui um único exemplar de uma tradução de L’École des Filles. Um livro obsceno. Mas a uma senhora de sólido carácter não é prejudicial informar-se acerca da depravação do mundo, não é verdade? – É assim mesmo – sentia-se como se, a qualquer momento, lhe fossem rebentar os vasos sanguíneos, tal era a força com que o coração dela batia. – Pretende então comprá-lo já brochado? – Não vale a pena ter uma encadernação cara para um livro que depois ficará sempre escondido – quebrou-se-lhe a voz. Pigarreou e depois acrescentou: – Embrulhe-mo em papel vulgar. – Feche os olhos. – Porquê? – É melhor que não fique a saber qual é o meu pequeno esconderijo. Ela obedeceu. Não tardou a que, à sua esquerda, escutasse um ruído de algo a ser arrastado. O livreiro soltou um gemido. Ela pestanejou. O homem estava acocorado e segurava dois in-fólios no colo, que obviamente retirara da estante. Enfiara o braço numa fenda que havia na estante e alcançou os outros. Retirou de seguida um maço de papéis. Ela voltou a fechar os olhos. O homem deu uns passos na sua direcção. Ela ouviu-o pousar o livro sobre a mesa. O papel produziu uma espécie de rangido. – Aqui tem – anunciou ele. – São três mil réis. Nada tenho a opor se quiser pagar com ouro. Ela abriu os olhos. O livreiro apresentou-lhe um embrulho branco. Três mil! Um preço exorbitante, mas Antero merecia-o. Entregou ao comerciante dois cruzados de ouro e dois de prata, o que equivalia a dois mil seiscentos e oitenta réis. O resto pagou com moedas de cobre, pegou no embrulho e subiu os degraus que conduziam à porta. Nunca mais voltaria a entrar nesta livraria. Oxalá o livreiro não viesse mais tarde a reconhecê-la ao passar por ela na rua. Ao abrir a porta, foi traída pelo som da campainha. O homem que estava a ler o jornal virou-se na sua direção. Evitou cruzar o olhar com ele e apressou-se a seguir caminho junto à parede do prédio. Era como se o pequeno embrulho que levava debaixo do braço estivesse cheio de pólvora e pudesse explodir a qualquer instante. Se alguém a apanhasse com aquilo nas mãos, a sua reputação estaria para sempre arruinada. Antero observou cuidadosamente os soldados. Não poderiam saber que era ele o homem que procuravam. Pelo menos teriam algumas dúvidas, afinal de contas nunca antes o haviam visto. – Ainda bem que você aí está – disse ele, ofegante. – A água do chafariz está envenenada… – Levanta-te, homem! Antero ergueu-se. Fingiu cambalear, ficou de pé, de pernas afastadas, os joelhos ligeiramente flectidos. – Sinto náuseas. Não sei... Acho que preciso de... – Não precisas de nada – o anão agarrou-o pelo braço. – Vens é connosco. Arregalou muito os olhos. – Acha que fui eu? Não tenho nada a ver com isso! – segurou nas suas bolsas e tentou desembaraçar-se do soldado que o agarrava. – Estas mulheres são testemunhas, a água do chafariz já estava inquinada mesmo antes de eu dela ter bebido! Puxaram-no dali para fora. Quando se afastaram o suficiente das mulheres, a ponto de estas não conseguirem já ouvi-los, Antero adoptou uma postura mais rígida e, com um tom de voz alterado, disse: – Façam o favor de me largar. Mas que ideia é a vossa, a arrancarem-me assim ao meu trabalho? – A nossa ideia é que o teu lugar é numa prisão. – Como assim? – És um maldito de um contrabandista. Há uma meia hora trataram os guardas portuários de te pôr a descoberto, saltaste de bordo de um navio e nadaste até à margem. Gente como tu acha sempre que nos consegue fazer de parvos! Antero riu-se. – Senhores soldados, há aqui um mal-entendido. Não haveria a minha roupa de estar fria e húmida se eu tivesse saltado para a água há meia hora? Um dos soldados apalpou o tecido. – Na realidade, ele está seco. – Para truque não é nada jeitoso. Ele mudou de roupas – o anão observou-o cuidadosamente. – Sobrancelhas finas, femininas. Barba cerrada. Um sinal na face. E falta a peruca. A descrição coincide. É ele o tal. – Com essa descrição podia ser qualquer um! – respondeu ele. – Por que razão te escondeste atrás das mulheres se nada tens a temer? – perguntou o anão. – E depois ainda a história da água do chafariz envenenada. Não caio nessa. És tu o tal contrabandista. As melhores mentiras eram aquelas que estavam próximas da verdade. Antero disse: – Sou jesuíta. Dediquei-me à defesa e à disseminação da fé e ao progresso das almas no quadro dos ensinamentos cristãos. A água do chafariz sabe mesmo a enxofre. Usei isso como metáfora para a água que jamais consegue satisfazer-nos a sede. As mulheres estavam quase a declarar-se dispostas a participar nos nossos exercícios. E quer arrancar-me daqui! Sabe, é que como jesuíta não me é permitido estar sozinho com mulheres num espaço fechado. A rua é o melhor local para a missionação. – Muito bem, dizes que és jesuíta. Uma jogada inteligente, já que a Companhia de Jesus nem sequer usa um hábito. Então, diz lá em que consistem esses exercícios de que estás a falar? É que o meu tio participou nisso. Sei bem do que estás a falar, amiguinho! – Através dos exercícios tornamo-nos indiferentes às coisas mundanas, ficando assim disponíveis para nos decidirmos pelo Senhor. Na primeira semana, meditamos acerca da propensão do ser humano para o pecado e, em particular, sobre os nossos próprios pecados. Alcançamos assim a compreensão da misericórdia de Deus. Na segunda semana, refletimos sobre a vida de Jesus, na terceira, sobre o seu sofrimento e a sua ressurreição. O anão franziu a testa. – Hmm… – fez ele, e largou-o. Os Jesuítas eram poderosos. Ninguém podia dar-se ao luxo de se pôr de mal com eles. – A quarta semana destina-se à contemplação do amor – prosseguiu Antero. – Aprendemos que o ser humano deverá procurar Deus em todas as coisas. Cada um dos que aqui moram em Lisboa deveria, ao menos uma vez, experimentar estes exercícios. Transformar-se-ia assim num verdadeiro representante de Deus. O meu superior, o reitor do colégio jesuíta local, considera muito importante que precisamente as mulheres também… – E por que razão estão as suas costas a sangrar? – interrompeu- o um dos soldados. – A camisa está a ficar tingida de sangue. Virou-se para o soldado e franziu o sobrolho. – Ora pense lá! Alguém que queira, por assim dizer, vergastar os outros para os acordar não deverá descurar a sua própria vida espiritual. – Não estou a perceber – disse o soldado, piscando os olhos. Os seus companheiros levantaram a mão e, com impulso, levaram-na ora atrás do ombro esquerdo, ora atrás do ombro direito: era como se estivessem a fustigar-se. O rosto do soldado estremeceu. Olhou respeitosamente para Antero. – Ah, perdão, senhor padre. – Não há qualquer problema. Desejo-lhe muito sucesso na busca por esse contrabandista. Que Deus vos acompanhe. – Um momento – o anão agachou-se e estendeu a mão, puxando as meias de Antero. Não cobriam as pernas até à altura das bainhas dos calções. – Uma estranha forma de vestir para um jesuíta. A ordem valoriza bastante o uso de roupa adequada, ouvi dizer. Não tem vergonha de andar por aí nesses propósitos? – Nós adaptamo-nos ao modo de vestir das populações a que prestamos ajuda. Na Índia, os Jesuítas vestem-se como os brâmanes, ou como os párias e também podem ter o aspecto de monges budistas ou de mandarins chineses, com chapéus redondos e rabo-de-cavalo, de acordo com a região para a qual os seus superiores os tiverem enviado. Acredita que a amizade com os índios da América do Norte seria possível se não estudássemos a língua dos Hurões e se não nos adaptássemos aos seus modos de vida? É precisamente assim que eu faço: levo uma vida de pobreza e em nada me diferencio das camadas mais baixas da população de Lisboa. – Pobreza, pois sim. A tua bolsa parece antes estar bem cheia de dinheiro. Não tens nada a opor que eu lhe deite uma espreitadela, não? Antero estremeceu. Logo que o soldado visse o dinheiro de Cirilo, iria tudo por água abaixo: estendeu a mão para a bolsa, agarrou nela… Antero largou a bolsa, precipitou-se para uma ruela à esquerda, correndo encosta acima, afastando-se da margem do Tejo. Os sapatos apertavam-lhe terrivelmente os pés, eram demasiado pequenos. Em pânico, lançou um olhar por sobre o ombro. No início da ruela os soldados mordiam os invólucros dos cartuchos, deitando de seguida a pólvora para o cano das espingardas. Malditos! Voltou a olhar para a frente. Nunca mais surgia uma travessa onde pudesse virar? De certeza que depois de enfiarem a pólvora no cano, já se lhes haviam seguido as balas, já tinham erguido as armas e estavam a fazer pontaria. Um tiro fez vibrar o ar. O estrondo chegou até ele, ecoando pelas paredes da ruela. Antero corria, as suas pernas calcavam o chão com força. Ia correndo em ziguezague para lhes dificultar a pontaria. De novo fez-se ouvir o estrondo de um tiro. Doía-lhe alguma coisa? Teria a sua caixa torácica sido atingida por uma daquelas balas de ferro? Ainda ia a correr ou estava já em queda? No interior da sua cabeça, apenas um vermelho-claro. Corria e continuava a correr. A ruela parecia-lhe cada vez mais íngreme, não queria deixá-lo alcançar o cimo, corcovava-se e impedia-o de se pôr a salvo. Um terceiro disparo. Na parede junto a ele rachou-se um azulejo. Pedaços de cerâmica foram projectados contra o seu braço. Ainda tinham mais um tiro, o anão estava a fazer uma pontaria certeira às suas costas e seguia cada um dos seus movimentos com o cano da espingarda. Um ruela lateral! Antero saltou para a esquerda. Era apenas uma estreita subida por entre as casas. Peças de roupa estavam penduradas em cordas diante das janelas das casas. Sentia uma estreiteza cada vez maior no tórax. O ar não lhe chegava. Voltou a virar para o lado. A saliva tinha um sabor adocicado. Diante dos seus olhos, assistia a uma dança de manchas vermelhas. Esgueirou-se para a entrada de uma das casas e cruzou os braços sobre os pulmões, que lhe provocavam dores lancinantes. Teria de se esconder algures até que os esbirros de Malagrida se cansassem. A única pessoa acerca da qual os Jesuítas nada sabiam era Leonor. Sempre que a visitara tinha tido extremo cuidado e jamais falara acerca dela fosse com quem fosse. Só que, em relação a ele, Leonor não poderia dar-se conta de qualquer alteração. Teria de se manter assim, sem saber de nada. 6
A parede entre os aposentos de dormir de Dalila e de Leonor, no
Palácio Oldenberg, feita de madeira pouco espessa, fora ali acrescentada após a construção para dividir em dois um salão maior. Dalila conseguia ouvir cada palavra que Leonor pronunciasse com a sua voz aguda e, se se esforçasse um pouco, lograva também perceber aquilo que Antero lhe respondia. Há horas que os dois conversavam. Era sobretudo a sua irmã gémea quem falava. O pai delas sabia que um homem fora visitar Leonor. Ele permitira-o. Leonor abrira muito os olhos, em tom de súplica, acrescentando ainda o seu sorriso de menina, e o pai autorizara-lhe o namorico, do mesmo modo que sempre lhe permitia quase tudo, ao passo que com Dalila se mostrava severo. E claro que Leonor não lhe dissera que Antero era contrabandista, um inimigo dos comerciantes. A vida revelava-se cheia de injustiças. Se alguém o sabia, ela, Dalila, seria uma dessas pessoas. Poderia contar ao pai quem era Antero, só que depois este proibiria o contrabandista de voltar a pôr o pé naquela casa e ela nunca mais voltaria a vê-lo. O pai poderia, porventura, até fazer com que ele fosse preso. Assim sendo, o melhor era ficar calada. Ergueu a cadeira e, sem fazer barulho, pousou-a junto à parede. De seguida, retirou o espelho com a moldura dourada do gancho onde estava pendurado. Colocou-o de parte e sentou-se. O coração a bater com força, inclinou-se para o sítio onde rasgara o papel de parede e fizera um buraco na madeira para poder espiar o interior do quarto da irmã. Pôs-se a espreitar. Um doce pesar ia tomando lugar nas suas entranhas. Antero estava de pé diante dela. Parecia que os olhos castanhos dele estavam a observá-la. Como ela amava aquele rosto de aventureiro, aqueles olhos, que eram ternos e pareciam teimar em não combinar com aquela arrojada barba. – Que acha? – perguntou Leonor. – Devo mandar fora o armário do meu avô? Talvez em tempos as pessoas tenham tido orgulho nestas coluninhas e pilastras. Hoje em dia, essas tralhas estão reservadas ao povo, que não tem qualquer noção de gosto. A nobreza voltou a usar armários bem simples. – Não preste atenção ao que as pessoas dizem – Antero lançou um olhar em redor do quarto. – Armários simples não correspondem às suas necessidades. Por exemplo, que faria sem a sua escrivaninha? Leonor chegou-se junto do móvel, com dezenas de gavetas e divisões. Passou suavemente a mão sobre a madeira polida. – É verdade. Onde haveria eu de pôr as cartas, os utensílios de escrita, os cosméticos, as joias? De certeza que não guardaria isso dentro de um simples armário. A escrivaninha é algo que se consegue perfeitamente suportar. Sem pedras semipreciosas, quase sem pretensões – suspirou. – Os novos tempos estão aí! Devo também dizer-lhe que já não estou muito satisfeita com este palácio. Faz-me falta a privacidade, um espaço só para mim. Está a ver? Neste piso todas as divisões se seguem umas às outras, salas, antessalas, salões, espaços de passagem, aposentos de dormir, tudo num único alinhamento, e os criados atravessam todos eles diariamente no desempenho das suas funções. Leonor fazia parecer que era ela a senhora daquele palá- cio! Nem uma palavra acerca do pai ou da mãe, nem acerca dela, Dalila. Desde sempre fora esse o forte de Leonor: ver-se a si mesma como o centro do mundo. Ao acreditar firmemente na sua própria importância, seduzia outros e levava-os a cumprirem as suas vontades. Bocejou. Leonor era capaz de abrir a boca de um modo incrivelmente amplo ao fazê-lo, quase parecia que o maxilar acabaria por se deslocar. Começou por pôr a mão diante da boca. Depois, porém, afastou-a e deixou que Antero lhe visse a garganta. Por alguns longos instantes manteve-se aberta, aquela boca de hiena, como se Leonor se tivesse transformado num animal. Mal voltou a fechá-la, assumiu novamente forma humana. Já só nos seus olhos cintilava ainda algo de animal, tendo isso a pouco e pouco acabado por se extinguir. – Está cansada. Vou andando. Ela sorriu. – Quer mesmo ir? Assim a meio da tarde? Com passos lentos e solenes dirigiu-se para ele. Ao avançar, movimentava as saias armadas de modo a que estas oscilassem para cima e para baixo, pondo-lhe os tornozelos a descoberto. Até se conseguia ver o saiote debruado a renda. Dalila enrubesceu de fúria. Aquela descarada! Ele franziu a testa. – Sabe, não a consigo entender – disse Antero. A vermelhidão que lhe tomou o rosto revelou que a oferta de Leonor não deixara de produzir o seu efeito. – Que quer dizer com isso? Leonor riu-se e, ao fazê-lo, tinha a ponta da língua entre os dentes, o que a transformava numa jovem menina encantadora. Ele mantinha o olhar preso nela. Ela saboreava cada instante, examinava a expressão facial de Antero. Então, de repente, virou-lhe as costas e disse: – Pode voltar na semana que vem. Dispensou-o, expressando-o com cada fibra do seu corpo. – Não sei se então ainda estarei na cidade – a voz soou rouca, e a impressão que ele deixava era de insegurança, como um adolescente no primeiro encontro com a sua adorada. – E hoje à noite? – perguntou. – Não – respondeu Leonor, num tom frio. – Não sou uma dessas. – Bem sei que não, e fico feliz por isso. Por vezes questiono-me por que razão me faz o que faz. Começa por me atrair e depois volta a empurrar-me para longe. Tenho a sensação de que nunca consigo alcançar o seu coração. Ela virou-se na direção dele e acercou-se. Quando estava diante de Antero, colocou as mãos deste sobre o seu peito. Deixou-se ficar assim durante bastante tempo, a olhá-lo. – Perdoe-me. Um sorriso furtivo desenhou-se no rosto dele. Inclinou-se e beijou- a. Como podia ele deixar-se deslumbrar daquela maneira? O perfume oriental de Leonor devia tê-lo toldado. Ela soltou-se do beijo. A passo apressado, aproximou-se intempestivamente da parede, na direção de Dalila. Acocorou-se e, com um ar irritado, fixou o olhar naquela fresta. – Achas que eu não sei que estás a observar-me? – virou-se para Antero. – A minha irmã… – explicou ela. – Ela é uma mimada e não tem qualquer gosto. Tenha cuidado com ela. Dalila saltou da cadeira. Recuou e afastou-se da parede, estremecendo de vergonha. Nem sequer ousava respirar. Que haveria Antero de pensar a respeito dela agora? Como podia Leonor expô-la daquele modo? Dalila abandonou o quarto e correu apressadamente através do vestíbulo. Então a porta do quarto de Leonor abriu-se. – Não queremos ser incomodados durante as próximas horas – disse Leonor. – Escusas sequer de bater à porta, está fechada. Dalila apressou-se escada abaixo. Levava o coração contraído. Por que razão a sua irmã lhe fazia aquilo? Uma criada cruzou-se com ela. Dalila disse-lhe: – Vai chamar o professor de música. É urgente. Preciso de uma hora extra. A criada fez uma vénia e pôs-se de imediato a caminho. A sala de música estava fresca. Dalila abriu a tampa do cravo. Sentou-se diante deste, voltou a erguer-se, puxou o banco almofadado para junto do instrumento e voltou a sentar-se. Começou a tocar. O cravo respondia obedientemente ao movimento das suas mãos. Exprimia os acordes ora como um suspiro, ora como uma exclamação. Ela tocava qual possessa. Sabia perfeitamente que Antero a conseguia escutar. Cada uma daquelas notas deveria anunciar-lhe o desesperado amor que por ele sentia. Quando Dalila deu por terminado o coral de Bach intitulado Nun ruhen alle Wälder, ouviu atrás de si a voz do professor de música. – Não sabia que possuía uma tal musicalidade. – Não acredito que o consiga interpretar assim todos os dias. Ele inclinou-se para a frente e agarrou numa pasta que se encontrava sobre uma mesinha de apoio. Durante uns instantes folheou o seu conteúdo, de seguida pousou uma nova folha de música sobre a estante. – Tente lá tocar Allein zu dir, Herr Jesu Christ. Será por se tratar de obras corais alemãs? Porventura conseguirão elas despertar em si o sangue dos seus antepassados… Deveríamos há muito ter experimentado Lieder alemãs. Dalila tocava. No interior da sua cabeça, acompanhava a cantar: Apenas de ti depende, meu Antero A esperança que, na Terra, sentir tento; Sei que és tu que me consolas, Nenhum outro consolo me dá alento. Imprimiu bastante ternura à melodia. Interpretou-a de modo ao mesmo tempo sonoro e suave, como se repicassem sinos. Imaginou para si mesma que, no quarto da sua irmã, Antero ergueria a cabeça e pôr-se-ia a escutar os sons, acabando por perguntar: «Mas quem está a tocar?»; em resposta, Leonor teria de admitir tratar-se da sua irmã. Mas claro que não! Leonor afirmaria que era o professor que estava a tocar. Nesse mesmo momento, tudo nela se foi abaixo e terminou com dificuldade a peça que estava a tocar, enganou-se, atamancou. Depois disse: – Não me sinto bem. Não creio que venha a aproveitar grande coisa do resto desta lição de música. Obrigada por ter vindo assim tão em cima da hora. – Sabe, há um instrumento novo, chama-se piano. Com ele é possível variar o timbre dos sons, tal como acontece num violino ou numa flauta. Poderia assim introduzir ainda mais sentimento na sua interpretação, fazendo as notas soar ora mais baixo ora mais alto, tocando com delicadeza ou firmeza, com hesitação ou ligeireza. Talvez queira pedir ao seu pai que compre um piano? Há oito anos, Johann Sebastian Bach avaliou, no Palácio de Potsdam, os pianos de um tal Silbermann, referindo-se a eles de modo bastante favorável. Não tivesse morrido dali a pouco tempo e decerto ele próprio teria dado concertos neste novo instrumento. Embora o público ainda não esteja preparado para este novo passo, chegará o dia em que o piano de cauda irá substituir o cravo, até mesmo nas salas de concerto. Estará a menina à altura de mudar para esse novo instrumento? É como se tivesse sido criado para si! – Acha que sim? – perguntou ela, fixando o olhar mais adiante. – Pense nisso – o professor de música ergueu-se e fez uma vénia. – Menina Dalila, a sua interpretação proporcionou-me hoje uma extraordinária alegria. Fiquei impressionado consigo. Manteve-se sentada frente ao cravo até ele se ir embora. De seguida, esgueirou-se até junto da porta de Leonor. Não deveria ser visível qualquer sombra através da frincha de baixo, pelo que se manteve de pé ao lado da porta, inclinando o tronco de modo a conseguir encostar o ouvido à madeira branca, com ornamentos pintados a tinta dourada. Não ouviu nada. Nada de palavras, nada de risos. Só poderia querer dizer uma coisa: estavam a beijar-se. Como que fulminada por um raio, a certeza arreigou-se nela até à medula. A irmã estava a seduzir Antero, e ele admitia-o! Dalila apressou-se a passar diante da porta e entrou no seu quarto. Três passos bastaram para que chegasse junto da cama e foi para cima desta que se lançou. Soluçava. A almofada absorveu as suas lágrimas. Pressionou a boca contra ela e disse em voz baixa: – Antero, amo-te – pronunciar as palavras proporcionou-lhe alívio. – Amo-te. Amo-te. Amo-te. O Santo António não estava a esforçar-se o suficiente. Dalila ergueu-se e dirigiu-se ao genuflexório. O tecido azul que revestia a travessa de madeira recebeu com suavidade a pressão dos seus joelhos. De entre a grande quantidade de figuras que lhe pertenciam, retirou uma pequena que representava o santo daquela cidade, colocando-a de seguida sobre a travessa superior do genuflexório, a qual, habitualmente, lhe servia para pousar as mãos e o livro de orações. – Desiludiste-me, António. Vê lá se te esforças mais! Só assim poderás voltar a olhar para o Menino – rodou-lhe para trás a cabeça de madeira que fora fixada ao tronco, de modo a que o santo ficasse a olhar para as próprias costas. No entanto, ele teve de continuar a segurar o Menino Jesus nos braços, diante do seu peito. Parecia ser uma postura deveras desconfortável e dolorosa. – Vê lá se, por fim, tomas providências. Queres que se me quebre o coração? Que eu morra? – pronunciou-o uma vez mais. – Queres tu que eu morra? Sim, era assim mesmo que se sentia. Como se o coração se lhe quebrasse. Tinha diante dos olhos a cura de que precisava. Antero estava ali! Deus, porém, negava-lho. Leonor mantinha aprisionada entre as suas garras aquela dádiva que a ela, Dalila, pertencia. Leonor tomara-o para si, tal como Jacob fizera com o direito de primogenitura. Dalila jamais suspeitara de que a sua vida pudesse alguma vez vir a assumir contornos tão trágicos. Também não sabia que poderia vir a amar assim tanto. Antes de encontrar Antero pela primeira vez, o mais que sentira fora uma débil solicitude em relação ao seu pai e a Leonor, bem como uma ligeira nostalgia pela mãe ausente. Aquilo que agora lhe quebrava o coração era uma força maior do que a angústia ou o anseio. Cada pensamento dedicado a Antero agitava pungentemente o seu âmago. Colocou a figura do santo no seu lugar, entre os demais, e pôs-se de pé. Sentia um aperto na garganta. Enxugou as lágrimas que de novo lhe brotavam dos olhos. Como haveria ela de continuar a viver? Onde iria buscar a perseverança, onde iria recolher as forças para os dias que tinha pela frente? Talvez ajudasse vê-los, Leonor e ele, a beijarem-se. Se se expusesse a uma quantidade de dor tal que o amor se convertesse em raiva, conseguindo assim em pouco tempo começar a odiar Antero, talvez assim viesse a melhorar. Sentia demasiada compaixão para com ele. Estava na mão dele decidir se pretendia manter-se junto a Leonor e sucumbir à sua perfídia. Eram estes pensamentos que tinha de promover, eram eles que a ajudariam. Chegou-se junto da parede. «Sê corajosa!», disse para si mesma. «Observa bem.» Inclinou-se para a frente e aproximou o rosto do papel de parede. No entanto, no sítio onde fizera o rasgão estava tudo escuro. A irmã pendurara ali algo para tapar o buraco. Então a coisa era mesmo séria. Não queriam ser vistos! Leonor despira-se para ele. Antero afagava o peito dela. Acariciava-lhe o ventre, as costas. Dalila sentiu o fel disparar no seu interior. Não era capaz de suportar aquela ideia. Lembrou-se dos olhos dele, da emudecida tristeza que carregavam. Leonor estava a aproveitar-se dele. A debilidade de Antero era evidente, mas talvez existissem boas razões para tal. Quem sabia o que já lhe sucedera? Leonor, ao invés de consolá-lo e ajudá-lo a reerguer-se, abatera-se sobre ele com felina eficácia, numa altura em que Antero nem conseguia defender-se. Ela não poderia deixar que tal acontecesse. – Já chega – declarou. Tinha de libertá-lo das garras de Leonor. Estava firmemente decidida no seu propósito. Faria o que fosse necessário para ajudar Antero. Antero fechou a porta da cocheira atrás de si e, encostado à parede, deixou-se escorregar até o traseiro embater vigorosamente no chão. O ambiente aqui estava mais frio e cheirava a madeira e ao breu usado para untar. O ar fresco devolveu a lucidez ao seu entendimento. Não fora sua intenção ficar à mercê dos encantos de Leonor. Nunca passara de um pequeno galanteio, destinado a encobrir as suas visitas a Samira. Dissera a si mesmo que o que estava a fazer por ela era bom, que, ao dirigir-lhe elogios, tal serviria para a fortalecer. Fora assim que apaziguara a sua consciência. No entanto, ela sabia tirar partido do seu corpo de modo a aliciá-lo a fazer coisas que não se compadeciam com a realidade de um namorico simulado. Tirava partido do seu sorriso, dos seus olhos, do seu pescoço esguio. Colocara-lhe os dedos frios em redor da nuca e beijara-o. Antero passou as mãos pelo rosto. Pelo menos uma coisa conseguira: Leonor não se apercebera de que havia perseguidores no seu encalço. Não tinha a mínima noção de quem ele era. O palácio do barão e das suas filhas gémeas permanecia um esconderijo seguro para Samira. Ergueu-se. No centro da cocheira estavam duas berlindas, com rodas de grandes proporções. Alguém na corte de Frederico Guilherme I de Brandeburgo inventara, em Berlim, aquele novo tipo de carruagem e não demorara muito até esta ter conquistado as preferências nos demais reinos. Junto às berlindas havia ainda as liteiras do barão, pequenas cabinas cujo interior era revestido a tecido dourado. Era assim que se fazia transportar para o café, onde ia beber uma chávena de café e, por detrás de um jornal, se escondia dos escritores, efabuladores, jogadores e mandriões. Antero estudara em pormenor os hábitos do barão antes de esconder Samira junto dele. Dirigiu-se para a entrada de serviço dos criados. Bento desatou a ladrar antes mesmo de ele bater à porta. Ainda assim, Antero bateu. Passados alguns instantes, a cozinheira veio abrir. Ao vê-lo, franqueou-lhe a entrada. – Entre. Ninguém o vai incomodar. Depois de ele entrar, a cozinheira fechou a porta. Bento seguia-o, metia-se por entre as suas pernas, abanando a cauda. Antero afagou o pelo do cão. – És bom a montar guarda. Boa, Bento! – A Samira está a brincar no quarto dela – disse alguém. Desconhecia aquela voz. Desconfiado, levantou o olhar. Uma mulher sorriu na sua direção. – Quem é ela? – perguntou ele. – A nova criada de quarto – explicou a cozinheira. – Está cá há uma semana. A criada fez uma cortesia. O seu rosto era redondo e as pestanas compridas e arqueadas. Pressionou os lábios um contra o outro. Havia algo no aspecto da jovem mulher que o perturbara. Como se alguém lhe tocasse, de ligeiro, no coração. Àquele toque seguiu-se um puxão. Ao puxão seguiu-se uma estocada. – És judia? – Sou cristã-nova, senhor – revelou, hesitante. – Como sabe? Olhou para a cozinheira. – Esta criada tem de ir embora. Uma cristã-nova! Perante a Inquisição, o alemão é intocável, até aí está tudo muito bem, mas assim a própria casa fica na mira deles. Hão-de vir atrás dela. Vai levantar suspeitas, vai haver vigilância, interrogatórios! Já antes cometi o erro de ser pouco cuidadoso, e o preço que tive de pagar por isso foi bem alto. A mim não me voltará a acontecer segunda vez. – Senhor, ela é uma boa trabalhadora! E é de confiança, além de reservada – a cozinheira lançou um olhar compassivo para a criada de quarto. – Não sabes do que estás a falar. Não se trata aqui de um emprego, isto é uma questão de vida ou de morte. Não pode acontecer nada a Samira! – Pai! – a pequenita surgiu junto à porta, à sua esquerda, e correu na direção dele. Acocorou-se e apanhou-a. A pele macia do rosto da pequenina encostou-se à sua bochecha. – Como senti a tua falta! – pegou nela ao colo e descreveu um círculo com a criança nos braços. Aos seus pés, Bento corria de um lado para o outro e ladrava. – A tua barba faz cócegas! – exclamou ela. Antero estendeu os braços bem alto, acima da cabeça, fazendo com que Samira parecesse flutuar. Ela rejubilava de prazer. Pousou-a sobre os seus ombros. – O cavalinho só anda se lhe deres de comer. Com a sua mãozinha, Samira deu-lhe uma palmadinha na boca. Ele fingiu mastigar. Depois disse: – Mais! Com as mãos formou uma concha que lhe pôs diante dos lábios. Ele começou por fazer de conta que comia dali, mas de seguida apertou os dedos dela entre os lábios e, a brincar, mordeu-os. Samira soltou um grito e apressou-se a recolher a mão. Desatou às gargalhadas. Foi à cautela que voltou a oferecer-lhe a mão, que ele tratou de mordiscar. Ela riu-se e fugiu com os dedos. Depois comentou: – Olha só, o Bento está esquisito. Ainda há bocado também se pôs a fazer aquilo – comentou ela. Antero olhou em redor. O cão estava junto à porta e observava-a como se a qualquer momento esta se fosse abrir. O seu pelo eriçou- se. Rosnou. Depois, de repente, recuou e emitiu alguns ganidos. Levantou cuidadosamente o focinho e farejou. Voltou a ganir e recuou ainda mais. Entalou a cauda entre as pernas traseiras. Era evidente que o cão estava com medo. – Está sossegado, Bento. Antero pousou Samira no chão. – Eu faço isso – disse a cozinheira. – Vá ali para a despensa. Antero abriu a estreita porta e fechou-a atrás de si. Ficou envolto pela escuridão. Cheirava a enchidos e a queijo. Ninguém deveria suspeitar da ligação que havia entre ele e a pequenita. Preferia deixar-se apanhar. A porta estreita foi aberta por fora pela cozinheira. – Não está ali ninguém – disse ela. – Também não sei o que se passa com o Bento. Antero espreitou para a rua, para as traseiras do palácio. Com efeito, não estava ali ninguém. Inalou profundamente uma lufada de ar. Que farejava Bento, afinal? Estaria o cão doente? Porventura poderiam os cães ficar doentes do focinho e farejar coisas que nem sequer existiam. Em todo o caso, a cidade estava invulgarmente silenciosa. As cigarras permaneciam em silêncio e não se ouvia o chilrear dos pássaros. Os animais são capazes de pressentir os fenómenos naturais antes mesmo dos seres humanos. Quando uma tempestade se aproximava, os andorinhões voavam baixinho, bem junto ao chão, embora no céu não se visse uma nuvem que fosse. Sentia a falta do seu livro de apontamentos, que aqueles eventos exigiam ser registados, que deveria poder observá-los e anotá-los com rigor, para de seguida poder tirar as suas conclusões. Primeiro, fora a água que sabia a enxofre, depois, os animais, que agiam como se estivessem tresloucados. Algo de errado se passava com Lisboa. 7
Leonor olhou para as íngremes ruas que da parte baixa da cidade
subiam pelas colinas. Casas ocupavam as encostas como se fossem cogumelos. Entre elas vicejavam jardins. Lisboa consistia num denso emaranhado de pedra e ferro e árvores cobertas de pó. Milhares de pessoas movimentavam-se nas suas ruelas. Nos seus rostos, Leonor não observava outra coisa que não fosse ganância. À sua esquerda, um comerciante de marfim gabava as virtudes dos pentes, caixas esféricas, flautas e pulseiras que tentava vender. – Presentes maravilhosos para as senhoras! Veja só! Não deixe de comprar! Um homem com pronúncia inglesa demonstrou interesse pelas pulseiras. Duas ruas mais adiante, conseguiria comprar o mesmo por metade. A ignorância do indivíduo renderia ao comerciante um lucro exorbitante. No meio da multidão havia larápios à coca, em busca de vítimas. Leonor reconhecia-os devido aos seus olhares rápidos e vigilantes, com os quais se entendiam entre si. Os pedintes fingiam paralisias. Os comerciantes trapaceavam nas pesagens. Os vendedores de fruta viravam para cima o lado bom da sua mercadoria e escondiam no fundo, longe do olhar de quem comprava, aquilo que estava podre. Cada um andava em busca de uma vantagem, esforçava-se por obter riqueza fosse por que meios fosse, lícitos ou ilícitos. Nada via que não fosse ele próprio, a sua vida, os seus progressos, o seu ínfimo e ávido coração. Até mesmo a fé era vivida desse modo. Negociava-se com Deus por pequenos favores, ofereciam-se velas, orações e joelhos esfolados em troca da posse de bens, da felicidade no amor e de se ser poupado a doenças. Ninguém tinha a mais pequena ideia da grandiosa luta entre o bem e o mal que furiosamente varria o planeta. Raramente havia pessoas que conseguissem ver mais além. Gabriel Malagrida era um deles. Para ele, o horizonte não tinha limites. Sentia curiosidade por coisas que não lhe rendiam directamente qualquer proveito. Possuía a capacidade de conduzir destinos e ler nas entrelinhas dos sistemas de poder. A Companhia de Jesus era forte porque Gabriel Malagrida era forte. Leonor voltou a reclinar-se no assento da liteira e soltou a cortina, que tornou a cobrir a janela e escureceu aquele pequeno mundo baloiçante. Os carregadores acreditavam que ela se dirigia a um dos seus muitos namoricos. Eles que continuassem a acreditar nisso mesmo. Bateu com a palma da mão na parede da liteira. O baloiçar terminou. A liteira foi cuidadosamente pousada no chão. Um dos carregadores abriu a porta e ajudou Leonor a sair. – O resto sigo sozinha a pé – disse ela. – Deveremos ficar à espera, menina Leonor? – Não. Os carregadores fizeram uma vénia, pegaram nas varas e ergueram a liteira. Leonor ficou a observá-los, enquanto se afastavam, até desaparecerem no meio da multidão que preenchia a rua, e depois ainda esperou mais um pouco. Por fim, começou a caminhar na dire-ção do Bairro Alto de São Roque, o bairro dos Jesuítas. – Vou só visitar alguém na cidade e estou de volta não tarda. Não vou partir para alto mar – disse Antero enquanto afagava o rosto de Samira. Com uma expressão de bravura, a pequenita acenou com a cabeça. Antero espreitou pela porta dos criados. A rua estava livre. Caminhou até à esquina, depois manteve-se do lado direito da rua. Passou por moradias e grandes casas. Uma multidão avançava na sua direção, sacerdotes e membros de ordens religiosas, seguidos de uma carroça puxada por cavalos. Num instante, recolheu-se na entrada de um prédio. Os cavalos levavam xairéis negros sobre o dorso. Em cima da carroça seguia um caixão, coberto por um pano preto. Pessoas notáveis acompanhavam o cortejo à direita e à esquerda da carroça. Por fim, seguia-se um grupo de mulheres e homens vestidos de preto, cada um deles com uma vela acesa na mão. Não pôde deixar de pensar na morte do seu pai. Sentira medo, outrora, ao entrar na igreja, cujas janelas estavam cobertas por panos negros, quando sobre o catafalco se procedia ao ofício de defuntos, rodeados pelo tremeluzir das velas. Com o seu entendimento de criança não conseguira perceber a razão de ser daqueles ornamentos negros, ficara com a ideia de que se estava a consagrar o morto à escuridão. Os cavalos passaram ao lado dele. O falecido devia ser uma pessoa abastada e de elevado estatuto social; habitualmente eram apenas alguns familiares e amigos que acompanhavam o caixão, transportado aos ombros por vários homens. De que servia tudo aquilo ao morto? Para ele já tudo acabara. Se nesse mesmo dia as balas dos soldados lhe tivessem acertado, também ele estaria agora deitado num caixão. Sentia a falta de Deus. Sem Ele, a vida parecia-lhe algo frio e insignificante. Árvores, pessoas, animais… Como eram efémeros todos eles na ausência de um Criador que os tivesse despertado para a vida e que lhes emprestasse sentido e dignidade. Sem Ele, nada mais eram do que frutos do acaso. Despojos do tempo que, rumorejante, passava a correr. Por outro lado, porém, Deus parecia nada fazer. Simplesmente não estava lá. Não impedira Malagrida de matar Julie. Porque haveria de ter sido Ele a desviar os projécteis que lhe eram destinados? Antero ficou a observar o cortejo fúnebre passar. Malagrida tinha por fim de pagar. Era algo com que ele não estaria a contar: que Antero, ao invés de fugir, o enfrentasse, se invertesse a situação e fosse ele a dar caça ao jesuíta. Esboçou um sorriso amargo. A ombreira da porta começou a vibrar. Atemorizado, Antero retirou a mão. Esticou os dedos e voltou a tocá-la. Ao toque, a ombreira parecia um ninho de vespas com um enxame em fúria. Antero acocorou-se e colocou a mão sobre a soleira da porta. Também esta estremecia. Deu um salto para a frente. Também o chão da rua estava a tremer! Deus fizera a terra estremecer para lhe demonstrar que afinal estava lá! Sentiu medo. Deixou-se cair de gatas e rastejou. Sentia o tremor nos joelhos e nas mãos. Debaixo dele, a terra estava viva. O seu coração tremulava como as asas de um pardal. E depois tudo parou. Antero manteve-se de gatas. Ficou à espera. O coração continuava a tremular, mas o estremecimento da terra passara, já nada sentia. – Está bem – disse ele em voz baixa. – Acredito em Ti, Deus. Sei que estás aí. Rastejou de volta para junto da porta e sentou-se no degrau da soleira. Tentou restabelecer a calma na respiração. Voltou várias vezes a tentar sentir com a mão se o chão continuava sem tremer. Tinha a boca seca. A camisa colava-se-lhe ao corpo. Antero apalpou a ombreira da porta. Mantinha-se imóvel. Lembrou-se do sabor a enxofre na água. Outrora, quando pretendera vir a ser um estudioso das ciências naturais e lera inúmeros livros, não havia ele certa vez aprendido que os tremores de terra eram provocados por explosões subterrâneas, desencadeadas por substâncias como o salitre e o enxofre entrarem em contacto? A água do chafariz cheirava inequivocamente a enxofre. A mistura de salitre, enxofre e carvão resultava em pólvora. Afinal de contas, não eram as circunstâncias de um grande terramoto, o estrondear, o estremecer do ar e da terra, semelhantes ao disparo de um canhão? Talvez este estremecimento tivesse sido algum pequeno depósito subterrâneo de salitre e enxofre a arder. O Bento conseguira pressenti-lo. Antecipadamente... Antero susteve a respiração. Um aviso. Em tempos lera a esse respeito. Um tremor de terra de grandes proporções era geralmente precedido, nos dias anteriores, de pequenos sismos. Aquilo que acabara de sentir fora apenas o ameaçador prelúdio de uma grande explosão. Os habitantes de Lisboa dedicavam-se aos seus afazeres quotidianos, trabalhavam, bebiam, casavam-se, jogavam, dormiam, enquanto abaixo deles uma catástrofe mortífera se preparava para acontecer. O corpo de Antero retesou-se. O homem que, junto ao lançador de facas, admoestava os presentes em nome de Malagrida tinha anunciado uma desgraça. Suspeitaria Gabriel Malagrida já da iminência de um tremor de terra? Estaria ele a dar-se conta dos mesmos indícios? Daí a tentativa febril de capturá-lo. Daí o comandante ter sido subornado. Daí a armadilha que lhe fora montada no porto. Antero não deveria sequer poder entrar em Lisboa. O seu antigo mestre pretendia servir-se do tremor de terra para os seus propósitos. Se aparecesse alguém que espalhasse o aviso, lá se lhe escaparia a grande oportunidade de consolidar a sua reputação enquanto profeta. Sabia perfeitamente que a catástrofe iminente não passaria despercebida a Antero, que desde a infância estudara os fenómenos da natureza, o observador a quem os pequenos pormenores jamais escapavam. Queria isso dizer que os primeiros abalos prévios deveriam ter ocorrido há poucas semanas. Levantou-se. Um tremor de terra não se limitaria a aumentar o poder de Malagrida, seria pior ainda: ele e os outros aproveitar-se-iam dele para esmagar a liberdade que começava a germinar, logo agora que essa frágil planta se erguia hesitantemente em direção à luz. O mundo não estava ordenado de modo tão rigoroso quanto os Jesuítas ensinavam, era bem mais luminoso, bem mais misericordioso, e, acima de tudo, passível de ser entendido. Depois de um tal juízo de Deus, as pessoas voltariam a meter o rabinho entre as pernas, ser-lhes-ia proibido interrogarem- se sobre fosse o que fosse. Isso não poderia acontecer! Passou a correr diante de prédios com sete andares pintados de azul. A fachada de alguns deles estava coberta de azulejos brilhantes. Era coisa que só aqui se via. Em Inglaterra esses ladrilhos de cerâmica eram usados apenas para fornos. Em Lisboa, porém, havia que proteger as casas do ar húmido e salgado proveniente do mar. Que proteção havia contra um tremor que abalasse a terra com a força de milhares de barris de pólvora? Havia que antecipar-se a ele e que furar uma centena de poços, para deixar sair aquela temível água sulfurosa. Esse era, porém, um empreendimento que demoraria meses a ser concluído. Era impossível terminá-lo antes de a perigosa centelha desencadear tudo. Por um portão aberto observou um pátio inundado pelo sol de fim de tarde, com palmeiras e arbustos com flores vermelhas. Toda aquela beleza iria ser destruída. A uma esquina, um comerciante chamava a atenção dos transeuntes para o tabuleiro que trazia pendurado ao pescoço. – Cabelos e lascas dos ossos de santos! Protegem do fogo e das tempestades, dos ladrões e dos assassinos, da pestilência e da morte súbita! – gritou ele quando Antero passou diante de si. Bela proteção aquilo seria quando o chão desatasse a explodir… Aproximava-se do Arsenal de Guerra. Ajustou cuidadosamente a sua passada à de um grupo de monges oratorianos. Avançava de modo a que estes passassem entre ele e os soldados de guarda diante do amplo portão. Caso eles o descobrissem, a sua única esperança era que tivessem ordens para não abandonar o seu posto fosse por que razão fosse. Afinal tinham de zelar pela segurança das espingardas, armazenadas atrás deles naquele colossal edifício, pela segurança da pólvora e dos projécteis, dos arreios da cavalaria, dos canhões. De certeza que o Arsenal de Guerra seria o primeiro a ir pelos ares. Os Oratorianos falavam acerca dos seus discípulos. A ordem era concorrente da dos Jesuítas, o rei D. João V concedera-lhe os mesmos privilégios que aos colégios dos Jesuítas, para além de doar dinheiro para aquisições de livros. Desde então, a ordem tinha registado um forte crescimento. E por que razão havia tal acontecido? Porque, em 1742, o rei sofrera um ataque de coração, que o paralisara por completo. Depois de se restabelecer, revelou que se devia graças a uma estátua da Nossa Senhora das Necessidades. Em honra da Virgem Santa, que no entender do rei lhe tinha devolvido a saúde, comprou os terrenos em que fora erguida a Capela da Nossa Senhora das Necessidades, e fundou uma igreja, um palácio e um hospício. Tudo isso tratou ele, depois, de transferir para os Oratorianos. Malagrida enfurecera-se quando em 1749 regressara do Brasil e ficara a saber de tudo. Naquela altura, Antero tornara-se o seu braço-direito. Diante dele franqueava-se o Terreiro do Paço. Os comerciantes estavam naquele momento a desmontar as suas tendas. Burros e cavalos disputavam baldes com comida. As carroças iam sendo carregadas com as mercadorias que não tinham sido vendidas. Os comerciantes não se haviam dado conta de que a terra tremia. O pôr do Sol desenhava manchas de cor alaranjada nas paredes da Ópera do Tejo. Fora inaugurada naquele mesmo ano. Da última vez que ele visitara Lisboa ainda ali havia um estaleiro. Aquela faustosa construção iria ter uma vida curta. Fora no Porto que lhe haviam contado a respeito da inauguração. A primeira récita fora a ópera Alessandro nell’India. O rei adorava ópera. No Porto invejava-se a riqueza de Lisboa. A nova ópera viera lançar mais achas para essa fogueira. Seiscentos lugares sentados e quatro andares de camarotes. O do rei, diante do palco, estava ornamentado com colunas de mármore e aplicações de ouro. O palco era tão grande que nele podia entrar e dar a volta um coche puxado por seis cavalos. Era isso que contavam no Porto. Naquela altura, sentira orgulho na sua velha cidade natal. Conseguiria ele salvá-la? Precisava de ajuda. Sem provas, o rei jamais mandaria evacuar a cidade. Diante de cada uma das entradas do palácio quadrangular havia sentinelas da Guarda Real. Estavam armados com alabardas: lanças de ferro pontiagudas, dotadas à esquerda e à direita de lâminas em forma de meia-lua. Teria de esperar até que Vasco viesse à porta para fumar. Não fumava na biblioteca. Antero lançou um olhar sobre a praça. Os últimos frequentadores do mercado apinhavam-se em redor de uma barraca que já ali existia desde a sua infância, onde uma senhora já idosa vendia bolinhos de farinha de trigo com recheio de creme de amêndoas. Mergulhava-os em mel quente e por fim fritava-os em azeite. O negócio corria-lhe bem. Junto à senhora aguardava um aguadeiro, munido da sua barrica vermelha, à espera de que as pessoas ficassem cheias de sede depois daquela doce iguaria. Antero pôs-se na fila formada pelos que estavam à espera de ser atendidos, de modo a não dar nas vistas. Ao lado dele, uma mãe cuspiu para uma das suas mangas; tratou de seguida de limpar a boca do filho, toda lambuzada de mel. Antero olhou para cima. Tinha de se manter atento à porta do palácio que conduzia à biblioteca. Leonor sorriu para si mesma. Por todo o lado, as fileiras de casas vicejavam desorganizadamente, porém, aqui, no Bairro Alto de São Roque, em redor da influente igreja do mesmo nome, as ruas eram perpendiculares umas às outras: cinco delas estavam dispostas de norte para sul, outras duas, como que desenhadas a esquadro, cruzavam-nas de leste para oeste. Aquele bairro demonstrava em que sentido os Jesuítas pretendiam dirigir o Reino. Deveria ser exercido um domínio firme, um pensamento ordenado e fundamentado por uma estrutura inabalável. Não havia musgo nas caleiras nem excrementos de aves a sujarem as fachadas, as ruas estavam varridas e limpas. Aqui viviam cidadãos abastados, que em certa medida apreciavam a proximidade dos Jesuítas. Passou diante da igreja jesuíta de São Roque. Visto de fora, o edifício era simples. As janelas angulares e o telhado vermelho davam-lhe o aspecto de uma habitação. Leonor, porém, já lá estivera dentro. Sabia bem que tesouros abrigava. A Igreja de São Roque era uma das mais ricas do mundo. Branca e sem qualquer ornamentação por fora, no seu interior ostentava um verdadeiro esplendor de ouro, prata, marfim, lápis-lazúli, mármore e alabastro. Assim viviam os Jesuítas. Por fora, modestos e sossegados, mas albergando verdadeiros tesouros no interior. Em todo o mundo, era a eles que pertenciam os confessores das casas reais, perante quem os soberanos não tinham quaisquer segredos sendo também, por vezes, os seus conselheiros mais próximos. A ordem estava presente onde quer que o poder fosse exercido, chamava a si as cabeças pensantes e era responsável pela sua instrução. E também se pensava no futuro: a Companhia de Jesus enviava os seus representantes às culturas mais remotas e travava amizade com povos distantes, antes mesmo de os governantes deste mundo conseguirem estender os seus braços nessas direções. A Leonor agradava aquela vontade de realizar, a prontidão dos Jesuítas em conduzirem as pessoas. O Reino de Portugal tornara- se indolente, já só mesmo os comerciantes realizavam os seus negócios com diligência, mas com que intenção? Queriam ganhar dinheiro, nem mais nem menos. À Companhia de Jesus não interessavam esses propósitos triviais, ela pretendia alcançar objectivos mais amplos. Tratava-se aqui do sentido da existência humana, dos povos, de orientar a humanidade no caminho que esta deveria seguir. A residência de Malagrida estava colada à igreja, os edifícios haviam crescido em conjunto, como se fossem gémeos. Acima da porta sobressaía o símbolo dos Jesuítas, uma coroa de raios solares que envolve as letras IHS; abaixo destas, três pregos, cada um deles a representar os votos de pobreza, celibato e obediência. IHS simbolizava a forma grega do nome de Jesus, Iesous Xristos: o X era transcrito por meio de um H, sendo por fim acrescentada a última letra do nome, o S. Leonor abriu a porta sem sequer bater primeiro. A meia altura da larga escadaria de mármore existente no interior do edifício ia um homem, que se virou. Era Tomás, a quem chamavam o Alfaiate. Ergueu a mão magra para cumprimentá-la. Sob as pregas do tecido, aquele homem parecia nem sequer existir. Só de quando em vez se notava a forma do osso da anca ou de um cotovelo desenhar-se no tecido. Seguiu-o escada acima. O ambiente no interior do edifício estava fresco. Ao longo da escadaria havia uma linha dourada, que subia como se pretendesse indicar-lhes o caminho rumo ao céu. – De cada vez que aqui vêm, todos os jesuítas se arrepen- dem do voto de celibato que fizeram – declarou Tomás, sobre o ombro. Fingiu uma certa indiferença, mas as suas orelhas, que se tingiram de vermelho, revelavam que vê-la lhe causava alguma agitação. Com os anos ela habituara-se àquilo. Deixara de irritá-la o facto de os homens a desejarem. Aprendera a usar as ânsias deles em seu proveito. Um homem que quisesse possuir uma mulher como ela estaria disposto a fazer grandes esforços. Cabia-lhe saber canalizar e aproveitar essas forças. Para tal, dispunha de uma grande variedade de habilidades: o alimentar, o protelar, o desiludir, o despedaçar, o redespertar de esperanças, o atiçar de invejas e, mais importante do que tudo, todos os jogos do ciúmes a mais poderosa força à face da Terra. Era capaz de levar um homem saudável e seguro de si a enforcar-se. Era capaz de despedaçar famílias, mover navios, converter a retidão em patifaria. O padre Malagrida dominava, qual mágico, o jogo com as ânsias dos seres humanos. Era frequente homens e mulheres fazerem algo sem se dar conta dos verdadeiros motivos para o seu comportamento. Gabriel Malagrida sabia o que lhes ia na alma antes mesmo de eles disso se aperceberem. Era capaz de identificar os seus desejos antes mesmo de eles os identificarem. Trabalhar com ele era muito instrutivo. Chamavam-lhe profeta porque, em Agosto do ano passado, havia interrompido uma prédica para prognosticar a morte da rainha-mãe. E precisamente nessa altura havia ela morrido. Desde há meses que deixara de a visitar, fora-lhe vedado o acesso aos seus aposentos, pois suspeitava-se de que usara a doença e o poder dela em seu proveito. Não poderia, então, estar a par da sua periclitante saúde. Como poderia ele ter sabido da hora da sua morte? Ninguém era capaz de encontrar uma explicação. Os que eram profundamente crentes passaram a venerá-lo ainda mais. Os céticos passaram a temê-lo. Tomás deteve-se diante da pequena porta que dava acesso ao gabinete de estudo de Malagrida. – Também vai falar com ele? – perguntou Leonor. – Sim, ele mandou-me chamar. O Alfaiate bateu à porta. Quando do interior se ouviu um «faça favor», ele abriu e deixou que Leonor fosse a primeira a entrar. O espaço do gabinete era exíguo. Afixadas na parede havia duas prateleiras, além disso uma mesa, uma cadeira e um banco comprido forrado com um tecido bastante simples. Era tudo. Por detrás da mesa, Malagrida ergueu-se, produzindo um arquejo. Era umas cinco mãos-travessas mais alto do que Leonor. – Ainda bem que pôde vir. Um dos seus olhos apontava na direção dela, o outro estava virado para o lado. Dava estalos com a língua ao mesmo tempo que falava. Enquanto ia dando a volta à mesa, coçava debaixo da orla da peruca, junto à testa, produzindo um audível roçagar. Fazia tudo de modo audível: respirava, arrastava os pés, pigarreava. A sua presença preenchia a totalidade do espaço daquele gabinete. Sozinho equivalia a cem pessoas e a noção de que assim era transbordava-lhe de todos os poros. Leonor conseguia lembrar-se perfeitamente do modo como, aquando do seu primeiro encontro, ele tentara atenuar a impressão que produzia. Sorrira e dissera: – Não se deixe incomodar pelo meu olho. Já nasceu morto. Com o olho são vejo-a muito bem. «Se fosse apenas o olho», pensara ela outrora. No entanto, não demorou muito até que começasse a sentir admiração por ele. Malagrida conseguira fazer alguma coisa de si mesmo. Apesar da fealdade do seu corpo, lograra alcançar grande prestígio e influência no Reino. – Sentemo-nos! – disse. Acompanhou-a até junto do banco. Ao Alfaiate não prestou qualquer atenção. Quando Malagrida se sentou, a peça de mobiliário, assente sobre delgadas pernas de madeira, produziu um estalido. Tomás estremeceu. O ossudo jesuíta recolheu-se junto das prateleiras, até tocar nestas com as costas, parecendo mesmo chegar a prender a respiração para por fim reduzir a sua presença a nada. – De dia para dia, você fica mais bonita – comentou Malagrida. – Considera que é aceitável, para um padre jesuíta, dizer uma coisa dessas? Malagrida riu-se. – Como assim? Não posso fazer um elogio a uma jovem senhora? – Os outros homens já tratam de fazê-lo vezes suficientes. – Muito bem, muito bem – adoptou uma postura séria. – Como vão as coisas consigo? E tem algumas novidades do cônsul-geral britânico? – Digamos assim: Edward Hay aprecia realizar passeios noturnos na minha companhia. – O seu pai tem conhecimento disso? – O meu pai fica satisfeito por eu me movimentar nos círculos protestantes mais ilustres. Espera conseguir encontrar-me um bom partido. E o cônsul-geral não deixa de ser o filho do conde de Kinnoull, ainda que, na qualidade de quarto filho, o mais novo de todos, não venha a herdar nada. – Quais são os planos dos Ingleses? – a curiosidade estava bem patente nos olhos do líder dos Jesuítas. Malagrida precisava dela. As feitorias estrangeiras mantinham o importante comércio ultramarino, sobretudo, nas mãos dos Ingleses e dos Alemães. Estes comerciantes eram, em grande parte, protestantes. No tocante ao tratamento que lhes era dado pela Inquisição, haviam conquistado privilégios e desconfiavam dos Jesuítas. Constituíam em Lisboa uma sociedade dedicada à defesa dos seus interesses, fechada ao exterior e avessa a tudo o que fosse católico. Leonor, porém, enquanto filha de um comerciante alemão, tinha acesso a tudo. Neste lugar, ela era a pessoa ideal para espiar para Malagrida. – Corre o boato de que Edward Hay virá a ser embaixador de Inglaterra. Com certeza só daqui a um ou dois anos, mas já está no caminho que o conduz ao poder. – Mantenha-se próxima dele. – A minha intenção não é outra senão essa – ela sorriu. – Como estão as coisas com o Banco de Inglaterra? – Continua a comprar grandes quantidades de ouro. Um dos seus funcionários aqui em Lisboa, alguém que me é muito afeiçoado, deu a entender que pretendem cunhar moedas portuguesas, que irão depois ser postas em circulação em Portugal. – São notícias importantes – Malagrida esfregou o queixo. – Os Coppendale e o capelão inglês continuam a instigar contra a Igreja Católica? – O capelão troçou há pouco da regra especial para Portugal, mas, como bem sabe não é forçoso que os sacerdotes entendam o latim das orações e dos cânticos durante a missa. O jesuíta franziu o sobrolho. – Um erro imbecil, essa regra. Em vez disso, dever-se-ia ensinar- lhes latim! E os Ingleses continuam a não admitir membros católicos na feitoria? – Sim, mantêm-se na mesma. Não são admitidos católicos, nem mesmo os irlandeses. – Que descaramento. Há em Lisboa mais britânicos católicos do que protestantes, mas ainda assim são estes que se mantêm no poder e ostentam a sua feitoria! – São bem-sucedidos – comentou ela. – A sua riqueza cresce de ano para ano. – Com efeito – concordou ele. E, dirigindo-se ao Alfaiate, perguntou: – Tomás, verifique-me lá aí quantos britânicos é que vivem em Lisboa. O Alfaiate retirou um livro da prateleira, abriu-o, folheou-o e, em voz baixa, disse: – Vários milhares. Entre eles cento e cinquenta e cinco comerciantes e negociantes, dezasseis viúvas ligadas a casas comerciais, cento e sessenta e cinco taberneiros e arrendatários de lojas comerciais, alguns cabeleireiros, carpinteiros, sapateiros, um fabricante de mostarda. – Vou tratar disso – Malagrida virou-se para Leonor. – Entre-tanto, preciso de si para outro assunto. Escute bem. Há cinco anos, perdi um dos meus melhores colaboradores, uma cabeça brilhante. Atualmente está a pôr em perigo os meus planos. Muito embora tenha envidado todos os esforços para o impedir, ele entrou nesta cidade. É de extrema importância que ele seja detido antes de conseguir causar danos de maior monta. – E que posso eu fazer? – Ele tem uma predileção por mulheres bonitas e as mulheres bonitas têm uma predileção por ele – dito isto, o líder dos Jesuítas riu-se. – Essa parece ser uma tarefa ideal para mim. Qual é o nome dele? – Antero. Leonor teve naquele momento de empregar toda a sua capacidade de dissimulação para manter o sangue-frio, de modo a que não revelar fosse o que fosse. Antero! Não, era impossível que fosse aquele o Antero que ela conhecia. – Vou fixar esse nome. Ou será que Antero não era apenas um contrabandista, sendo, ao invés disso, capaz de levar a melhor sobre os Jesuítas? Até mesmo sobre o profeta? Ela sempre se distinguira como superior em relação aos seus amantes. No tocante a ele, não tinha a certeza em relação a essa superioridade. – Como poderei eu reconhecê-lo? – perguntou ela. – Ele tentou alterar o seu aspecto para não ser reconhecido. Usa agora uma barba e a sua pele ficou curtida do ar do mar. No entanto, os olhos são delicados como os de uma mulher. Era Antero. Leonor teve de se obrigar a manter uma respiração tranquila. Seria ela suficientemente boa? Afinal de contas, era o mágico em pessoa que ela estava a tentar enganar. – Acha que sou capaz de encantá-lo? – Há alguns anos houve uma mulher, de uma beleza semelhante à sua, e também perante ela Antero se rendeu. Ela cegou-o por completo. Leonor sentiu uma pontada. Quem era aquela outra mulher? Ela, Leonor, ainda não o tinha totalmente nas mãos, não do mesmo modo que subjugara os outros homens. Aquela mulher exercia sobre ele um poder ainda maior. «De uma beleza semelhante à sua…» Queria ele com isso dizer que ela poderia realçá-la melhor? Beleza não era atributo com que simplesmente se nascesse, as mulheres inteligentes bem o sabiam. Era uma questão de se dar forma ao encanto que se emanava, era por meio de um sorriso que se acentuava o resplendor, através da postura que ele se assumia, e também de fitas para o cabelo e vestidos e olhares. – Muito bem – concluiu ela. – Vou tratar de encontrá-lo. – É uma pena que a ordem não admita mulheres. Sabia que por aqui é referida como a Jesuíta? Malagrida acreditava nela. Estava a mentir ao mestre. Leonor sorriu. – Sim, eu sei. Sinto-me honrada. – Em tempos, em mil quinhentos e quarenta e cinco, houve um ramo feminino da Companhia de Jesus. As Jesuítas prestavam o mesmo juramento que nós, mas a Ordem das Filhas de Jesus só existiu durante um ano. Dali a pouco, Inácio conseguiu que o Papa decretasse que a possibilidade de existência de um ramo feminino da Companhia de Jesus ficasse para sempre excluída. – Tenho muita pena de não ser homem – comentou ela. – Trataria logo de me juntar à Companhia de Jesus… Alguém bateu à porta. Leonor ficou em silêncio. – Sim? – disse Malagrida num tom penetrante. A porta abriu-se de repente e um homem de rosto largo entrou de imediato. Arrancou o tricórnio da cabeça e pressionou-o contra a barriga. – Padre, ele não está em casa do comerciante de chá, nem tão- pouco se esconde nas tabernas do porto. Receio que se nos tenha escapado. O olhar de Leonor não pôde deixar de ser atraído na direção das mãos do estranho. As unhas dos seus polegares pareciam aumentar o comprimento do dedo para o dobro. Eram do tamanho de cabides para pendurar roupa e tornavam-no numa pessoa repugnante, que, para mais, tinha o descaramento de exibir assim aquele mau gosto. E que se passava com o ossudo Tomás? De pé junto às prateleiras os seus olhos brilhavam. Por que razão estaria ele tão feliz? Seria por causa daquilo que o estranho dissera? Era como se aquele sorriso trocista se devesse ao facto de o asqueroso ter deixado escapar um homem. – Não sei se deverei ficar contente ou aborrecido – declarou Malagrida. Leonor tinha a sensação de que o olho morto a fitava, estando o saudável dirigido para o estranho. – Ficar contente? Como assim, padre? – Bem, é evidente que aprendeu bem a lição comigo! Seria para mim uma desilusão se ele se tivesse deixado apanhar por ti com demasiada facilidade – Malagrida olhou para Leonor. – Está a ver? Falavam de Antero! O seu coração disparou. – Coloquei espiões por todo o lado – disse o estranho. – Até mesmo a guarda da cidade anda à procura dele, e os guardas portuários. Não vai conseguir sair daqui. Através dos portões não é possível passar e pelo rio também não foge. Mas vou precisar de mais homens para conseguir revistar as ruas a pente fino. Malagrida pegou num lenço de seda roxo e limpou o suor da testa. – Para junto da mãe e do padrasto ele não vai, abomina-os. O mais provável é que se tenha escondido algures, em algum pátio – cerrou as pálpebras e parecia tentar divisar um mundo invisível. – Mais cedo ou mais tarde, irá procurar Vasco. Quando todos os caminhos se lhe revelam vedados, dirige-se sempre à Biblioteca Real. Tem uma paixão louca por livros e está lá esse amigo que mencionei. – Mas como consegue ele entrar no palácio? Com certeza os guardas não o deixarão entrar. – Esperará até que Vasco deixe o palácio, depois esgueira-se até junto dele e é aí que pode apanhá-lo. O rosto do estranho iluminou-se. – Muito obrigado, padre – fez uma vénia e abandonou a sala. Leonor ergueu-se. – Bem, vou também andando… Ele fê-la voltar a sentar-se. – Deixe-se ficar. Se qualquer outro homem tivesse ousado segurá-la, Leonor aplicar-lhe-ia uma bofetada. A Malagrida não fez semelhante coisa. Havia algo nele que a impossibilitava de se defender. – A coisa é demasiado importante para me fiar apenas em Heitor. Pretendo que também a Leonor procure Antero. Aproveite-se do seu vasto círculo de amigos, tente informar-se. – Sim, padre. – Antes de ir, só mais uma palavrinha breve a respeito do seu pai – fitou o jesuíta ossudo junto às prateleiras. – O Tomás está a trabalhá-lo com os argumentos certos? – O meu pai vai concordar. Trate você de se assegurar de que não foi a troco de nada que pus em jogo a felicidade da minha família – disse ela. – «A troco de nada» não seria de todo a expressão certa – Gabriel Malagrida sorriu. 8
As gaivotas esvoaçavam em redor da cúpula da catedral. Galeões
e fluyts baloiçavam sobre o rio ali próximo, como se se preparassem para adormecer. Uma berlinda passou diante da ópera e deteve-se. O cocheiro ajudou uma senhora elegante a sair da carruagem. Duas outras berlindas, esguias e providas de boas molas, chegaram até junto da primeira. O olhar de Antero fixou-se na porta do palácio. Um homem de estatura baixa e cabelos brancos estava ali de pé e enchia o cachimbo de tabaco. Antero conhecia aqueles serenos movimentos das mãos, observara-os já centenas de vezes. Era Vasco. Com passos apressados, chegou-se junto do bibliotecário. Vasco riscou um fósforo para acender o tabaco no cachimbo. Sacudiu depois a mão para apagá-lo. A seguir, aspirou o ar através do cabo estreito e comprido do cachimbo. Dos cantos da boca deixava escapar fumo branco. De súbito, um chamamento, que soou como o estalido de um chicote: – Alto, páre! Antero olhou em redor. O esbirro de Malagrida seguia-o, a pouco menos de cinco metros de distância, e vinha acompanhado de soldados, que haviam já desembainhado os seus floretes. Antero desatou a correr. Sentia as pernas tolhidas e pesadas, já não dispunham de mais força. Tropeçou e inclinou-se para a frente. Vasco continuou a fumar. No fornilho do cachimbo, já o tabaco ardia. Olhou na direcção de Antero, impassível, nada fazia a não ser fumar. Deixou a porta do palácio entreaberta. Mal Antero se esgueirou para o interior, Vasco fechou a porta atrás de si. Antero ouviu a voz de Heitor, vinda do exterior: – Em nome do padre Malagrida, chegue-se para o lado! – Em nome do rei: não! Fique aí fora. – Sabe com quem se está a meter? A Companhia de Jesus… – Neste momento, a Companhia de Jesus não goza de grande favor junto do rei – interrompeu o bibliotecário. – Não se deu conta disso? No ano passado, Malagrida chegou-se demasiado perto da rainha-mãe. – Que quer dizer com isso? – Apenas que ele deveria ter mantido a sua sede de poder mais bem domesticada. Não lhe parece embaraçosamente revelador que tenha de ser vedado ao confessor o acesso aos aposentos reais? – O pai do nosso rei, Dom João V, morreu nos seus braços, e até mesmo o Papa afirmou que João se podia considerar um homem feliz por lhe ter sido concedido morrer nos braços deste santo homem! – Pois sim. A rainha-mãe, porém, não morreu nos braços dele e, nos tempos mais próximos, no que depender de mim, mais ninguém lá morrerá. – Seu tolo descarado, julga que consegue deter-me? Homens, tirem este velho do caminho! No meio da escuridão do corredor, Antero abriu os olhos o mais que pôde. Teria de se esconder, e rapidamente! – Este velho – prosseguiu Vasco lá fora – é o bibliotecário real. Pensem bem no que vão fazer, meus senhores. – Foda-se! – exclamou Heitor. Fez-se silêncio. Antero escutou passos de gente a afastar-se. A porta abriu-se. Vasco entrou. Inclinou-se para pegar num recipiente de barro, bateu nele com o cachimbo e passou frente a Antero, sem dizer uma palavra. Abriu a grande porta que dava acesso à biblioteca. Antero saltou para a frente dele e agarrou-lhe a manga. – Vasco! Contrariado, o bibliotecário virou-se na direção de Antero. – Queres também tratar-me com esses modos grosseiros? Os teus camaradas jesuítas ensinaram-te umas belas maneiras! – Perdão. Queria agradecer-te. Vasco entrou na biblioteca. Antero seguiu-o, mas teve a impressão de que não seria esse o desejo de Vasco, pareceu-lhe que este preferiria ver-se livre dele. Em silêncio, o bibliotecário dirigiu-se à sua mesa, colocou os óculos de arame sobre o nariz e abriu o livro de registo dos empréstimos. – Não são meus camaradas – declarou Antero. – Tinhas as aptidões necessárias para fazeres melhor, és esperto. Mas decidiste-te pelo poder, foste parvo. Que queres daqui? Isto já não é a tua casa. Olha em redor! Junto de mim só há livros. Antero levantou o olhar. A sala da biblioteca estava ornamentada com pinturas italianas e estátuas. Nas estantes altas, feitas de pau- brasil e dotadas de entalhes decorativos, havia livros. Setenta mil no total. Fora o que Vasco lhe segredara ao ouvido, quando aqui estivera pela primeira vez, ainda miúdo, perplexo diante de todo o saber reunido naquele espaço. Setenta mil. Jamais esquecera aquele número. Nas lombadas dos livros havia etiquetas com uma marca, letras e algarismos, graças aos quais se conseguia encontrá-los nas listas, organizados por temas: obras sobre a história dos estados; descrições das terras e das gentes dos territórios do Amazonas; livros sobre a China e a Mongólia, sobre o Tibete e a Etiópia, e também romances, por exemplo, As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, ou Paraíso Perdido, de Milton; livros acerca de teologia, direito, gramática, matemática e medicina; mapas geográficos. O peito de Antero produziu um suspiro. Mais adiante uma passagem dava acesso à oficina onde os livros eram encadernados e dourados, e junto dela estavam colocadas cadeiras e mesas, estas com pequenos tinteiros destinados a ser usados gratuitamente pelos visitantes da biblioteca. Só o papel e as penas deveriam ser trazidos por cada um. Papel onde fixar a sabedoria que, tal como de uma mina, se extraía dos livros. Antero adorava aquela mina. Tinha saudades dela e também saudades da pessoa que outrora fora. Vasco tinha razão. Ele tomara a sua decisão. Optara pelo caminho da violência, reprimindo em si mesmo a delicadeza, o assombro, a curiosidade. Encetou um passeio pela biblioteca, como que uma despedida. Ali estavam as Constituições do Bispado de Braga. Aquele livro sempre enchera Vasco de orgulho. Era o primeiro feito por um impressor português. E mais adiante estavam os romances. Tocou na Estoria de muy nobre Vespesiano, um romance de cavalaria que ele lera. Ali estava o Almanach Perpetuum com os seus quadros astronómicos. Aqui, os muitos volumes das Ordenações do Reino. Mais atrás começavam as dissertações das universidades. Naquele canto havia uma coleção considerável de pautas musicais de compositores portugueses e estrangeiros. E acolá, a Biblioteca Lusitana, o primeiro dicionário bibliográfico português. A voz de Vasco fez-se ouvir baixinho: – Ainda falta um volume. Diogo Machado está a trabalhar nele – apontou para o espaço vazio na estante. Antero não se dera conta de que Vasco viera atrás de si. Pigarreou, pois Vasco não deveria aperceber-se na sua voz que as lágrimas estavam prestes a correr-lhe pela face. – Trouxe-te chá. O bibliotecário parou junto dele. – Em Lisboa, no máximo, um em cada dois homens sabe escrever o seu nome. Pouquíssimos são os que vão para além do nome. Para já não falar das mulheres: nove em dez têm de fazer uma cruz em vez de assinar o seu nome num contrato. Os artesãos desprezam a escrita, os comerciantes só se interessam por números. E depois há um miúdo que aparece junto de mim a querer aprender. Um miúdo que, de preferência, até dormia na biblioteca, para assim conseguir ler mais e, hora após hora, poder exercitar-se no uso da pena. Naquela altura, Vasco era apenas o segundo-bibliotecário. Em troca de um parco salário de escriturário, que incluía habitação gratuita e custos de iluminação, deveria abrir a biblioteca no horário indicado, controlar os empréstimos e cuidar do catálogo. Era com prazer que complementava o seu ordenado a ensinar a escrever quem quisesse aprender. Era todo um complicado repertório de gestos e movimentos que ele tratava de explicar pacientemente a Antero: era preciso estar sentado à mesa, a uma certa distância do papel, colocar o braço sobre a mesa e segurar na pena com os dedos. Mergulhava-se a ponta da pena no tinteiro e fazia-se depois esta deslizar sobre o papel, mas de modo a que não o rasgasse e que não deixasse pingar a tinta. As primeiras páginas que escrevera apresentavam um aspecto terrível. Tinham ficado repletas de manchas, impressões digitais negras, letras afogadas em tinta, mas depois fora melhorando. Não tardou a que Vasco o mandasse copiar textos inteiros. Antero adorava Vasco, mais até do que o seu próprio pai, já falecido. – Vasco – começou Antero –, que fazes tu quando alguém tira um livro e volta a colocá-lo na estante, mas no local errado? – Nesse caso, ponho-o no seu lugar. – Pode demorar anos até te dares conta de que está no sítio errado, não é? Vasco acenou afirmativamente com a cabeça. – Estou a perceber onde queres chegar. – Sei que foi errada a decisão que tomei outrora. Reprimi algo no meu interior, foi aqui bem fundo que o escondi. Esse miúdo transformou-se entretanto num homem com barba e a com a tez bronzeada, talvez já não confies em mim porque pareço ter endurecido, e tornado inacessível. Quero, porém, reencontrar-me. Vou voltar a ser a pessoa que em tempos fui. – Lá fora, os esbirros jesuítas espreitam. A eles não podes tu dizer: «Deixem-me em paz, agora sou uma pessoa diferente.» – Andar fugido, isso foi coisa a que me habituei, sei como fazê-lo. Preciso de teu auxílio como bibliotecário. Vasco olhou para ele, estupefacto. – E como queres tu que isso aconteça? – Ajuda-me a reunir todos os livros em que haja alguma referência a tremores de terra! A poltrona francesa, que no ano passado o pai lhe havia oferecido pelo aniversário, era o local de leitura favorito de Dalila. Também lhe chamavam duquesa e acabava por ser uma espécie de sofá com um espaldar no outro extremo. Os escravos domésticos tinham-na estofado com almofadas novas. Dalila estava ali deitada com todo o conforto. Ainda assim, o seu coração não deixava de palpitar. As suas mãos, que seguravam o livro, transpiravam. A luz da vela iluminava debilmente as páginas, pensava que seria melhor continuar a leitura durante o dia, mas não conseguia obrigar-se a parar. Aqueles eram os segredos de que a sua irmã era conhecedora. O que ali se descrevia soava a Dalila impróprio, mas, ao mesmo tempo, deixava-a agitada. Naquele livro obsceno, uma jovem chamada Fanchon estava perdida de amores por um tal Robinet, o filho de um comerciante. No entanto, como ele era bem mais experiente do que ela, a prima mais velha de Fanchon tratou de a esclarecer e, ao mesmo tempo, estimular o seu desejo. As coisas indecentes de que elas falavam! Eram dadas explicações sobre os órgãos sexuais masculinos e femininos e sobre o coito, das mais variadas maneiras. Era descrito como se podia prevenir uma gravidez. Fanchon dormiu com Robinet e, ao relatar o que se passou, não poupou nos pormenores. Dalila sentiu o rosto ruborizar-se. Fechou o livro. Não era afinal pecado tudo aquilo? Não eram coisas de que ela só deveria ter conhecimento quando fosse uma mulher casada? Por outro lado, como poderia ela conquistar Antero se não concorresse em pé de igualdade com a sua irmã? Desde sempre que Leonor se habituara a brincar com os homens. Era versada nesses assuntos do corpo. Dalila escondeu o livro sob as almofadas e aguardou que a sua pulsação se acalmasse. Depois, estendeu a mão e alcançou a campainha dourada, fazendo-a soar. Uma escrava doméstica entrou no quarto. – Traz uma tina para aqui e põe água a aquecer na cozinha. Quero tomar um banho – ordenou Dalila. – Com todo o gosto, menina Dalila. Mas a menina Leonor também me pediu o mesmo. Vai demorar um pouco com a água, porque teremos de pôr a caldeira ao lume por duas vezes. Claro. Leonor preparava-se para a visita de Antero, naquela noite. – Quero que me tragas a água quente que puseste a aquecer para a Leonor. Ela que tome banho depois de mim. E prepara óleo de rosas. – Mas, menina Dalila, como vou eu explicar… – Não explicas nada! Não lhe dizes seja o que for. Ela vai barafustar com a demora, claro. Como recompensa pelo teu silêncio ofereço-te um dos meus lenços mais bonitos. Podes ser tu mesma a escolhê-lo. – Muito obrigada, menina Dalila. – Despacha-te! Não tardaram a entrar dois negros, que traziam uma tina de madeira, para dentro da qual despejaram baldes cheios de água quente e fria. A escrava acrescentou sabão em pó e espalhou pétalas de rosa sobre a superfície. Ajudou Dalila a despir-se e esta saltou para o interior da tina. A água queimou-lhe as barrigas das pernas, estava demasiado quente. Soltou um gemido. – Quer que acrescente água fria? – apressou-se a escrava a perguntar. Pegou num balde e deu ela a resposta. Um corrente de água fria passou pelas pernas de Dalila. – Está bom, já chega. Sentou-se lentamente na tina. A frescura rapidamente deixou de se fazer sentir. A água quente queimou-lhe ligeiramente as nádegas, mas era uma dor agradável. Sentou-se no fundo da tina, recostou- se e apreciou o confortável calor. Com uma esponja, a escrava começou a lavar-lhe os ombros e a nuca. Ia mergulhando a esponja na água e passava-a pelas costas de Dalila. O líquido quente escorria-lhe pelas costas abaixo. O pai nunca tomava banho. Para ele, manter-se limpo equivalia a certificar-se de que os colarinhos e os punhos das suas camisas se mantinham sempre impecavelmente brancos. No seu entender, era assim que se reconhecia se uma pessoa era ou não asseada. A sua toilette matinal consistia unicamente em esfregar-se com uma toalha seca. A água parecia-lhe algo suspeita. Perfumava-se e isso teria de bastar. Dalila e Leonor pertenciam a uma nova geração. Viviam-se novos tempos, para o pai era já demasiado tarde para adquirir novos hábitos. Hoje em dia as pessoas tomavam banho, já há muito que a água quente não era considerada prejudicial à saúde. Será que Antero se lavava? Com certeza que sim. Era apenas pouco mais velho do que elas. Não pertencia aos velhos tempos. Os comerciantes e nobres antiquados tentavam sempre emanar uma certa superioridade. Qualquer que fosse o empreendimento a que se dedicassem, faziam-no numa atitude condescendente e desdenhosa. Dalila suspeitava de que chegassem mesmo a praticar em casa, diante do espelho: as suas vénias, os seus sorrisos, a posição das pernas quando estavam de pé. A postura corporal dava ares de ter sido tão estudada como a de um actor que decora a sua entrada em cena. E, no entanto, por detrás dos seus sorrisos escondiam o quanto se sentiam contraídos. Uma terrível tensão subjazia a cada movimento de mão repleto de charme. Antero era diferente. Dele emanava tranquilidade. Era ele mesmo. Quando falava, a sua voz soava sincera. Era frequente os cantos dos seus lábios tremerem de intensa alegria. Era capaz de sorrir, simplesmente sorrir de prazer. Dalila afastou algumas pétalas de rosa. Sentiu o toque aveludado das flores. – Quero que, depois do banho, me esfregues com o óleo de rosas – disse à escrava. Um odor agradável era importante, havia ela lido no livro. O ar quente que do banho lhe chegava às narinas cheirava a sabão e às pétalas de rosa. Jamais ela conseguiria amar um daqueles nobres. Presenteavam- se mutuamente com amabilidades quando, na verdade, prefeririam arrancar os olhos uns aos outros. Diante de uma porta, debatiam demoradamente qual deles passaria primeiro, cada um pretendia dar a vez ao outro para assim demonstrar melhor a sua cortesia. Que hipocrisia! Mas como seria se não conseguisse conquistar Antero? De repente sentiu um aperto no peito. Inspirou com força. Ah, mas tinha mesmo de o conquistar. Amava-o. Esse pensamento provocou-lhe uma sensação de formigueiro na barriga. Tudo nela o amava, cada cabelo, cada dedo, cada pedacinho de pele. Antero levantou-se, transportou uma pilha de livros para a mesa de apoio, à esquerda, e retirou um novo livro dos que estavam à sua direita. Já existiam microscópios, conhecia-se as leis da gravidade, sabia- se a respeito da aberração da luz e tinha-se formulado a teoria cinética dos gases. Fahrenheit inventara o termómetro de mercúrio e Celsius a escala que permitia fazer nele leituras de temperatura. Leibniz construíra uma máquina de multiplicar, havia máquinas de fiar e telescópios refletores. Desde o ano anterior que as gentes abastadas mandavam aplicar uma nova invenção nas suas casas, varas metálicas que iam desde o telhado até ao chão, protegendo- as assim do efeito dos raios que nelas pudessem cair. Mais de metade da superfície terrestre estava explorada e cartografada. Por que razão se sabia tão pouco a respeito de tremores de terra? Quando se tentava explicar este fenómeno, era como se se estivesse a tatear no escuro. Se conseguisse trazer luz para onde havia escuridão, Antero ficaria na posse de uma arma com a qual se poderia libertar do aperto a que Malagrida o havia sujeito. Tinha aquela noite para forjar a sua arma. Abriu um livro. Vasco acabara de lho trazer. Há horas que o bibliotecário andava a transportar livros dos recantos mais remotos da biblioteca, subia a escadotes, debruçava-se sobre in-fólios, folheava as listas. Era muito o conhecimento que trazia para junto de Antero, só que já estava obsoleto. De acordo com as descrições, o estremecimento da terra que hoje se dera deveria ter sido uma espécie de tremor preliminar. Mas como era que aquilo surgia e por que razão se lhe seguiam tremores maiores? Durante muito tempo, pensara-se que, quando ocorria um tremor de terra, era por haver gases que se tinham inflamado. Para chegar a essa explicação partira-se das tempestades. O som dos trovões era semelhante ao ruído que se ouvia aquando de um tremor de terra. E pensava-se que este barulho resultava dos gases que se escapavam para o ar, que formavam nuvens e depois explodiam, como se fosse pólvora, quando ocorriam tempestades com relâmpagos. Há três anos, porém, um deputado das colónias britânicas na América do Norte, chamado Benjamin Franklin, teve a ideia de fazer subir pelos céus, até junto das nuvens, um papagaio construído com paus e pedaços de tecido. O comprido fio de cânhamo que usou foi isolado com uma fita de seda e preso a um poste. Pendurou uma chave no fio. Ao aproximar a mão, saltou dela uma faísca. Repetiu a experiência, mas desta vez isolou a chave numa garrafa cheia de água e com uma haste metálica no interior. Quando por fim tocou nela, recebeu um choque elétrico. O papagaio conduzira a carga negativa das nuvens até à chave. Esta carga fora depois atraída pela carga positiva do corpo de Franklin. Deste modo conseguiu Franklin provar que os relâmpagos que ocorrem numa tempestade nada têm a ver com gases. São um fenómeno elétrico. Por essa razão, passou-se a instalar os chamados para-raios nos palácios, protegendo-os assim dos relâmpagos que sobre eles caíssem. No que dizia respeito a tremores de terra voltara-se à estaca zero. Não se sabia nada de nada. Antero abriu o livro. Tinha-lhe sido aposto um carimbo da biblioteca na primeira página, como de resto se fizera em todos os outros livros. Essa marca tornara-o parte integrante de uma família, parte integrante da mina de sabedoria. O livro fora impresso em 1750, antes da experiência de Franklin. Valeria a pena continuar a lê-lo? Escrito em inglês, o seu autor era um tal Rev. Dr. William Stukeley e chamava-se The Philosophy of Earthquakes. Antero começou a ler. Este tal Stukeley colocava uma questão interessante. Será que os tremores de terra tinham origem em fenómenos elétricos? Ele defendia que também a Terra poderia estar dotada de uma carga elétrica. Assim, quando uma nuvem que não estivesse eletrizada lançasse a sua chuva sobre uma região da Terra que se encontrasse num estado oposto, aconteceria um tremor de terra. A investigação no domínio da eletricidade era uma atividade ainda recente, muito continuava por descobrir. Em todo o caso, Stukeley não apresentava quaisquer provas, nem mesmo indícios. Antero fechou o livro. No que dizia respeito aos tremores de terra, não havia qualquer estudo que se pudesse consultar. Era como se alguém quisesse fazer experiências com a morte. Era descrito com frequência que, antes da ocorrência de um terramoto, a água de lagos e dos rios cheirara a enxofre e se tingira de amarelo. A eletricidade não pressupunha a existência de enxofre. O sismo deveria, de algum modo, estar ligado à água. Se grandes quantidades de água subterrânea se encontrassem com o fogo nas profundezas da Terra, não se produziria uma explosão de vapor? Por outro lado, o estrondo e as sacudidelas do chão faziam lembrar mais um tiro de canhão. Se fosse por o enxofre e o salitre se misturarem, deveriam, em Lisboa, furar o chão o mais depressa possível, para fazer poços e deixar sair a perigosa água sulfurosa, conseguindo assim reduzir a pressão subterrânea. Imaginava as enormes bolhas de ar sulfuroso que subiriam pelos poços. Para conseguir descobrir se essa seria a solução teria de fazer uns cem furos. Isso era impossível. Alto lá! Ele podia verificar se em regiões com muitos poços ocorriam menos tremores de terra. Onde havia muitos poços? Havia regiões densamente povoadas e outras sem ninguém e nessas, obviamente, também não existiriam poços. No entanto, o certo é que nas regiões desérticas também ninguém se dá conta dos tremores de terra. Não conseguia avançar. Antero pegou num outro livro. Abriu-o e ficou como que paralisado. O frontispício ostentava o monograma dos Jesuítas, a coroa de raios solares em redor das iniciais IHS. Fora essa a razão pela qual ele se decidira outrora segui-los, devido à frequência com que aqui na biblioteca aqueles livros lhe haviam vindo parar às mãos, livros de investigadores jesuítas no domínio da botânica, da farmacêutica ou da zoologia. Com uma folha de papel, Vasco marcara uma passagem do livro. Pôs-se a lê-la. O autor afirmava que se poderia provocar tremores de terra artificialmente, bastando para tal enterrar enxofre, limalhas de ferro e mais algumas substâncias. Incluía instruções detalhadas. Antero levantou o olhar. De uma vez por todas, tinha de verificar esta teoria da mistura de enxofre e salitre. Virou-se na direção de Vasco. O bibliotecário estava de pé num escadote, na parte traseira da sala, e ia percorrendo as lombadas dos livros, iluminando-as com a luz de uma vela. Antero foi ter com ele. – Não o encontro. Ele arrumou-o no sítio errado! – vociferava Vasco. – Nunca devia ter contratado este ajudante. – Será que a uma hora destas ainda me consegues arranjar uma coisa? Haverá por aí algum boticário capaz de voltar a abrir a loja em caso de urgência? – Sabes bem que logo que eu abandone a biblioteca, esta deixará de ser um local seguro para estares. – Seja como for tenho de ir. Ainda tenho um compromisso. Vasco olhou para ele do cimo do escadote e franziu a testa em sinal de reprovação. – O pai dela é tu cá tu lá com o rei. Tenho de convencer o rei a mandar evacuar a cidade. – Muito bem – disse Vasco enquanto descia os degraus. – Com isto evito também que Malagrida seja o único a anunciar a catástrofe e depois se arvore por aí em grande profeta. Após o tremor de terra, se os Jesuítas o explicarem como um castigo de Deus para instilar medo nas pessoas e assim ampliar a influência da ordem, trato eu de divulgar a explicação científica. Ao fazê-lo, ponho-lhes a manha a descoberto. – Esperei muito tempo por uma ocasião destas. – Preciso de flor de enxofre e limalhas de ferro. E um almofariz – pediu Antero. – E como vais tu sair daqui? Eles têm todas as saídas vigiadas. – Desço pela janela da cozinha, na parte traseira do palácio, onde crescem os arbustos. Vasco aproximou-se com a vela. Segurava-a tão próximo do rosto de Antero que este conseguia sentir na face o calor que dela emanava. Sorriu de modo assustador. – Tens aquele brilho no olhar, como dantes. 9
Sobre o palácio do barão de Oldenberg, fora dos muros da cidade,
nas imediações do Campo de Santa Clara, descera já a tranquilidade da noite. Estava escuro. Apesar da sua riqueza, Lisboa não possuía candeeiros nas ruas, o que há muito representava um escândalo para os cidadãos mais abastados. Para Antero era razão para ficar contente. Começara por ter a sensação de que era seguido, mas passado algum tempo o seu instinto dera-lhe a entender que podia ficar tranquilo. Atrás dele a rua estava imersa em silêncio e via o brilho da luz de velas na janela de Leonor, no terceiro andar. Bateu à sumptuosa porta. Um escravo de pele negra com um candeeiro na mão veio abrir. – Conhece o caminho? – Muito obrigado. Era como que um ritual. O escravo perguntava sempre e Antero respondia-lhe. A escada estava iluminada até ao segundo andar. Antero subiu-a sozinho. Quando ia continuar para o terceiro, hesitou, não havia mais luzes. De lá de cima, da sala de recepções, provinha apenas uma fraca luz de velas, que mal alumiava os degraus. Antero acabou de subir a escada, degrau após degrau. Para cada um dos lados da sala de recepções ficavam os aposentos de Leonor e de Dalila, e ainda um quarto para visitas. Se ali mais não ardia do que uma vela, talvez hoje não fosse muito bem-vindo. Nada disso, pois lá estava Leonor, mais bela do que nunca. Trazia a vela na mão. O seu vestido cintilava com o brilho de milhares de pérolas, e a pele do rosto pareceu-lhe mais suave do que o costume. O olhar que ela lhe dirigia denotava alguma insegurança, mas estava ao mesmo tempo repleto de amor. Quereria ela confessar-lhe alguma coisa? Ali estava ela na sala de receções, como se o aguardasse há uma centena de anos. Leonor apagou a vela. Com isso não havia ele contado. Ficou envolto pela escuridão. Ouviu o roçagar do vestido e de seguida sentiu as mãos dela no seu rosto, frescas e suaves. Dedos finos acariciaram-lhe a face. A ternura com que ela lhe tocava! Era agradável. Deu-se conta da fragrância da sua pele. Cheirava a rosas. O rosto dela estava muito próximo. Os narizes de ambos tocaram-se. Contudo, Leonor não o beijou, puxou-o para si e abraçou-o. O ar que exalava ao respirar ia de encontro à orelha dele. Ficou com pele-de-galinha e sentiu, simultaneamente, o calor que invadia o seu âmago. – Antero – murmurou ela. Quis responder, mas de súbito secara-se-lhe a garganta e teve de engolir. As mãos de Leonor haviam-se ternamente alojado nos flancos do tronco dele. Voltou a sentir a face dela, de seguida o seu nariz, que com meiguice tocou o seu. Por fim, ela beijou-o. A sua boca estava quente, repleta de brandura, ligeiramente aberta, como se quisesse soprar nele toda a vida que continha. Jamais Leonor o tinha beijado com tamanha intimidade. Não era Leonor. O pensamento acertou-lhe em cheio, como se fosse um golpe que lhe desferissem. A mulher que beijava teria de ser outra! Soltou-se dos seus braços e afastou-a. A respiração dela estava ofegante. Os olhos dele foram-se gradualmente habituando à escuridão e, graças à pouca luz que pelas escadas vinha do andar inferior, conseguiu divisar o vestido dela. Começou por encolher os ombros, descontraindo-os de seguida, e estendeu os braços, com as mãos longe do corpo, como se ela mesma se tivesse assustado, como se ela mesma não tivesse contado com o poder daquele momento. Havia algo no pescoço dela que cintilava. Trazia um colar. Leonor jamais usava colares ao pescoço, detestava-os. Era Dalila, a irmã gémea. Tinha beijado a irmã de Leonor, uma estranha. Ela olhou-o fixamente. Ele estendeu a mão e tocou-lhe no braço. A mão afagou- lhe o braço e percorreu-o, no sentido ascendente, por sobre os ombros. Ele deu um passo em frente. Ouviu-se algures o chapinhar de água. De novo o aroma a rosas no ar e a doce fragrância da sua pele. Beijou o rosto dela, as suas pálpebras, a sua testa. E de novo aquela boca suave, quente, branda. Sentiu as mãos dela nas suas costas. Abriu-se uma porta. – Antero? A luz encandeou-os. Lá estava Leonor, de roupão, o rosto e os cabelos ainda molhados, segurando um candelabro de três braços. Ele recuou e olhou ora para uma, ora para outra. Não lhe ocorreu nada que pudesse dizer. O beijo ocupava todos os seus pensamentos. Leonor disparou na direção de Dalila. – Sua desgraçada! Não acredito que possas ter feito isto! – gritou, golpeando-a sem cessar. Dalila nem sequer ergueu os braços para se defender. Limitou-se a ficar ali parada, a olhar para ele. Gabriel Malagrida empurrou o banco para o lado. Ajoelhou-se e soltou uma tábua grossa do soalho. Inseriu ambas as mãos no buraco e trouxe de lá uma caixa de ferro amolgada. A ferrugem cobriu os seus dedos de um pó acastanhado. Malagrida abriu a caixa. Com um gesto de devoção retirou do interior uma concha feita a partir de uma cabaça. De imediato viu diante de si a margem do rio. Escutou o discreto chapinhar das tartarugas, que dos locais onde antes haviam apanhado sol desciam agora para a água. Viu um caimão com a bocarra aberta. Pássaros que se passeavam dentro desta, em busca de restos de carne entre os dentes. Na floresta havia macacos que bramiam, papagaios que guinchavam, garças brancas que se pavoneavam ao longo das margens. Numa clareira junto ao rio erguiam-se cabanas semiesféricas. Pessoas nuas saudavam-no. Acenavam-lhe. Estavam contentes de o ver chegar. Sentia saudades dos índios. Os seus rostos largos, os seus corpos fortes e bonitos. Tinham pintado a pele com jenipapo e urucu, andavam por ali como obras de arte animadas. Por entre as cabanas em desalinho muitas de crianças brincavam no meio do pó. Gabriel Malagrida retirou uma coroa de penas da caixa. Fora guardada recolhida, como se fosse um leque. Tratou de abri-la. Sumptuosas penas de arara e de papagaio apresentaram-se diante dele. Colocou a coroa no topo da cabeça. Depois retirou um saquinho da caixa e desatou os nós que o mantinham fechado. Inclinou-o e deixou que, do seu interior, seis pontas de seta de pedra, escorregassem para a palma da sua mão. Escolheu uma das pontas e pressionou a extremidade mais afiada contra o seu polegar. Rasgou a pele. Uma gota de sangue brotou da pele. – Não o quereis ouvir – murmurou. – Por isso, tereis de o sentir. Antero estava sentado na cama como se fosse feito de pedra. Leonor não sabia se devia bater-lhe ou abraçá-lo e consolá-lo. Andava de um lado para o outro. O sangue corria-lhe, acelerado, pelo corpo. Nunca, mas nunca mesmo, teria achado Dalila capaz de um tal atrevimento. Ao longo de todos aqueles anos, a irmã sempre se mostrara, pelo menos exteriormente, sossegada e sensata. O estranho era que ela não precisava de fingir sentir aquela raiva. Estava mesmo magoada. «Oh, rapariga!», pensou ela. «Leonor, é bom que não te tenhas apaixonado por ele.» Ficou parada. – É claro que tu sabias que havia ali algo errado. – Cheguei aqui acima, estavas ali, lançaste-me um olhar apaixonado e depois apagaste a vela. Como havia eu de saber que não eras tu? Não foi capaz de olhá-la enquanto falava. A fisionomia dela mantinha-se rígida. – E ela por acaso beija como eu? Aquela parva nunca sequer beijou fosse quem fosse! Não tem qualquer experiência! – É verdade, foi diferente. Sentiu-se invadida pelo calor que se apodera de quem se enfurece. – Nunca mais te beijarei. Como posso voltar a tocar uma boca onde já os lábios da minha irmã se andaram a esfregar? A expressão facial dele manteve-se inalterada. Não o afligiria a perspectiva de não poder voltar a beijá-la? Ser- lhe-ia isso indiferente? Estava obviamente prestes a perdê-lo para Dalila. Era uma sensação que lhe era estranha. O normal era jamais perder as atenções de um homem. Conseguia manter preso a si, de corpo e alma, todo aquele que ela pretendesse. – Queria perguntar-te uma coisa – disse ele. – Sei bem que estás furiosa comigo, mas há algo que urge. Preciso da tua ajuda. Podia fazer de boazinha, aquela cujo delicado coração foi ferido, mas que é capaz de perdoar ao seu amado. Ou então mostrar-se-ia altiva e trataria de lhe dar a entender que com ela as coisas não eram assim e que, caso a quisesse reconquistar, tinha pela frente uma árdua tarefa. Os homens gostavam de lutar por uma mulher bonita. Aquilo que nada lhes custava não possuía para eles qualquer valor. – Sai, por favor – declarou ela. – Preciso de refletir. Antero olhou-a. – Sim – disse ele por fim; ergueu-se e, sem dizer palavra, deixou o quarto. Leonor sentia-se como que atordoada e sem forças. Chegou-se junto da escrivaninha. Da quinta gaveta à esquerda, retirou uma pequena caixinha azul-escura que em tempos ele lhe oferecera. Com o polegar afagou a imagem da deusa, de um branco marmóreo, que ali surgia representada. A caixinha continha mouches, pequenos sinais feitos de seda, com a forma de estrelas e luas, para aplicar na pele. No início, sempre que com ele se encontrava, Leonor usara um desses sinais artificiais, ora na face direita, para acentuar a covinha, ora no decote. Sentia-se mal por Antero não estar junto dela e porque era provável que ele tivesse ficado furioso com ela e desesperado. Nunca antes se sentira assim. Protegera-o perante os Jesuítas, não o traíra. E ele nada sabia a esse respeito. Se acabasse por vir a ser necessário, sempre poderia jogar este trunfo. Leonor apertou melhor o roupão e deixou o seu quarto. Já no corredor, bateu à porta do de Dalila. – Dalila, temos de falar. Não ouviu qualquer resposta. Levantou o trinco e entrou no quarto. Onde fora a irmã? Os cortinados da cama estavam corridos e os cordões que normalmente os apanhavam, pendidos. Leonor acercou-se da cama e levantou um dos cortinados: encontrava-se vazia. Dalila desaparecera, mas teria de voltar, para dormir. Quando regressasse iriam ter uma conversa a sério. Já haveria por ali mais figuras de santos? Leonor lançou um olhar para o cantinho das orações. Numa estante junto à parede havia dezenas de figuras de madeira pintadas, uma verdadeira coleção de bonecas. A família secreta de Dalila crescia a olhos vistos. A própria Leonor já assistira à irmã a falar com as estatuetas de madeira, como se de pessoas se tratasse. A cada uma delas atribuía grandes poderes. Os santos eram os seus aliados, já que o malvado resto do mundo conspirava contra ela. Leonor sentou-se na duquesa e puxou uma almofada para apoiar as costas. Por que razão se sentia tão desconfortável ali? Estava sentada em cima de qualquer coisa dura. Com cautela, retirou o objecto. Um livro. Dalila parecia estar sempre a ler! Por vezes tinha a sensação de que a irmã fugia de viver a vida tal qual ela é. Aqueles romances e as figuras dos santos mais não eram do que uma fuga. Enfastiada, foi folheando o livro. Até que se deteve. Os seus olhos fixaram-se numa palavra. Leu a frase inteira. Virou mais algumas páginas, continuou a ler mais adiante. Credo! Mas que andava Dalila a ler? A porta abriu-se. Dalila entrou quarto e pousou o olhar em Leonor e no livro. O rosto tingiu-se-lhe de vermelho. De súbito, Leonor conseguiu aperceber-se de como a irmã se deveria ter sentido ao longo de todos aqueles anos. Sempre ficara na retaguarda. Tivera de assistir ao modo como Leonor encantava os homens, como Leonor desenvolvera o seu bom gosto no tocante a vestidos, como ela brilhava nas aulas de dança, como aprendera a obter do seu pai tudo o que queria. Tudo isso era matéria que Dalila não dominava. Até hoje Leonor pensara que ela simplesmente desdenhava dessas aptidões, que desprezava, em geral, a superficialidade das pessoas e se tomava a si mesma por melhor do que os demais. Mas afinal não era assim. Dalila invejava as artes de Leonor. Dalila sentia-se frágil e inferior, desejava ser como ela, Leonor. Seria assim? Era essa a razão por que havia comprado aquele livro, claro! Também ela queria saber como se lidava com os homens. E hoje tinha pela primeira vez beijado um. Fosse lá como fosse, o facto de ter escolhido Antero não estava certo, mas não poderia ela, Leonor, mostrar-se mais complacente para com a irmã, que tão desesperadamente queria ser crescida? Fechou o livro e sorriu. – Entra, irmã. – Eu... – a voz de Dalila parecia sumir-se. – Eu vou é queimar isso. – Isto? – perguntou Leonor, apontando para o livro. – É tudo mentira. O amor não tem nada a ver com posições na cama. – Então tu beijaste o meu namorado e agora o livro é que tem a culpa? – No livro, diz que os homens podem ser manobrados. É como se se estivesse a dar à manivela numa daquelas máquinas electrostáticas que têm em demonstração nos cafés para entreter os clientes. Só que uma pessoa não é uma máquina. Não quero tratar ninguém como tal. Sobretudo aquele que eu amo. Leonor pôs-se de pé. – Espero que com essa tua última frase não te estejas a referir a Antero. – Eu amo-o. Não posso fazer nada a esse respeito. – Com certeza que podes. Pode bem ser que essas sensações te atemorizem por nunca antes as teres experimentado. Julgas que estás à mercê delas, e nada podes fazer a esse respeito, mas isso é um disparate. Ainda vais ver que o entendimento tem uma palavra a dizer. Não te podes apaixonar logo pelo primeiro homem que te aparece à frente! Antero pertence-me e não o vou dividir contigo. – Tu nem sequer o entendes – afirmou Dalila. – Ele nada tem a ver contigo. Não és capaz de ver a tristeza que os seus olhos exprimem? Há algo que o aflige, mas tu nada queres saber acerca disso. Para ti ele não é mais do que um brinquedo. Comigo não seria nada assim. – Lamento imenso ter de te desapontar, mas, em primeiro lugar, ele não é para mim um brinquedo e, em segundo lugar, eu amo-o e ele ama-me a mim. Dalila baixou o olhar. – Não tenho assim tanta certeza. Hoje tive a sensação de que ele... Ele não me conhecia. Bem, continua sem me conhecer. – Nem sequer jamais te irá conhecer. Nem quer. Ele é feliz comigo. – E como podes tu ter a certeza disso? Leonor agarrou com força o encosto da duquesa. A irmã estava a dar luta com todas as armas de que dispunha. Pois bem, ela responder-lhe-ia com lâmina bem afiada. – Achas mesmo que o teu beijo o impressionou? Hoje ele dormiu comigo – mentiu ela. – Nem sequer pensou mais no teu beijo. Dalila empalideceu. – A coisa ficou bem esclarecida. Ele decidiu-se por mim. O luar espalhava-se nas águas do Tejo. Sobre as ondas que se formavam junto à margem cintilavam as estrelas. As gaivotas, com as asas firmemente chegadas ao corpo, deixavam-se embalar pela água. Antero sentou-se debaixo de uma velha amendoeira. Inspirava o fresco ar noturno. Cheirava a algas. – Cometi um erro, Julie – declarou. Manteve-se em silêncio. – Tenho saudades de ti. Todos os dias sinto saudades tuas. Olhou na direção do rio. Fora ali que, ao longo de várias noites, se tinham sentado à conversa durante horas a fio, em silêncio durante horas a fio, fora ali que haviam trocado beijos e gargalhadas. Ela ensinava-lhe palavras francesas, ele fazia troça de cada uma delas antes de as decorar. Em troca, ela tentava imitar o português até ele, com um beijo, a obrigar a ficar calada. Tinham ali ficado sentados, de braço dado, felizes. Samira fora um resultado dessas conversas. Na língua árabe, o significado de Samira era esse: amigos que conversam à noite. – Sempre pensei que fôssemos viver tudo isto juntos: ver como Samira vai crescendo, sabes, e como esta noite a Lua brilha. Que ficaríamos os dois escandalizados com a subida do preço do pão e que teríamos de ir ao sapateiro encomendar sapatos novos para Samira, porque uma vez mais os pés dela cresceram demasiado. Pensei que fosses aqui estar. Ao meu lado. Até que ambos tivéssemos os cabelos grisalhos. O melhor seria que ele tratasse de levar Samira, de a pôr em segurança, não só a ela como a si mesmo, e viverem os dois algures, em tranquilidade. Os desejos de vingança não eram bons conselheiros. Ele era pai, era responsável pela pequenina! Teriam de ser outros a ocupar-se de Malagrida. Também a origem dos tremores de terra acabaria por ser investigada por alguém. Antero recordou o dia em que Julie e ele se haviam conhecido. Fora também junto ao rio, nos bancos existentes nas imediações do palácio. Sobre as águas iam-se cruzando os navios e o céu estava tão limpo que era possível distinguir claramente a outra margem do Tejo, à distância, os montes desenhavam-se no horizonte como delicadas sombras. Ele sentara-se num dos bancos, para refletir sobre o problema da agulha de Buffon, acerca do qual tinha lido: numa folha de papel desenhavam-se várias retas paralelas, cuja distância umas das outras seria igual ao comprimento de duas agulhas. Depois colocava-se a folha sobre o chão e lançava-se a agulha para cima da folha, tratando-se de observar se aquela tocava ou se atravessava sobre uma das retas. Deveria anotar-se o resultado e repetir o lançamento. Ao efectuar mil novecentos e oitenta e cinco lançamentos a agulha acertava sobre uma das linhas seiscentas e noventa e oito vezes, sendo, por isso, a frequência relativa o resultado da divisão do segundo número pelo primeiro, ou seja, 0,357. Se se dividisse dois por um menos 0,357, o resultado seria 3,11, e se o número de lançamentos fosse ainda maior seria 3,1416, o valor de pi. Mas porquê? Ao respirar ar fresco esperava conseguir ter boas ideias. Pegou num dos três livros de matemática que trouxera emprestados da biblioteca dos Jesuítas, mas estava a ter dificuldades em concentrar neles os seus pensamentos. Levantou o olhar e pestanejou. A luz do Sol fazia as folhas da amendoeira cintilarem como se fossem moedas de cobre. No banco vizinho, estava sentada uma jovem a ler. Bocejou e, ao fazê-lo, cobriu a boca e o nariz. Uma imagem arrebatadora. Quando se deu conta de que ele a observava, ela afastou a mão e riu-se envergonhada. – Está a vigiar-me? – Não – respondeu ele, virando a cara. Passados alguns instantes voltou a olhar para ela e, precisamente nesse momento, ela ergueu a cabeça e também o olhou. – Que está a ler? – perguntou ele, esperando que ela não conseguisse aperceber-se da insegurança que a sua voz revelava. – Um romance, presumo? – É verdade. Gosto de mergulhar numa história. Sabe, estes disparates modernos irritam-me! A Terra está parada. É com os meus próprios olhos que vejo o Sol a mover-se, como todos os dias atravessa o céu de um ponta à outra. E agora toda a gente acredita nesta parvoíce de o Sol estar parado! Ele ficou sem saber o que dizer. Ela tinha um aspecto tão inteligente, como poderia proferir uma tolice daquelas? Foi então que, efusivamente, ela desatou a rir. – Devia ver a sua cara! – riu-se novamente. – Caiu em cheio, não foi? É claro que sei que é a Terra que anda em redor do Sol. Mas é tão fácil conseguir assustar alguém que lê livros sobre matemática. Então também ele teve de rir, e era de si mesmo que se ria. Ela agradava-lhe. – Como se chama? – perguntou ele. – Julie. – É francês o nome? Ela acenou afirmativamente com a cabeça e voltou a incliná-la sobre o livro, para retomar a leitura. Quando ele já temia que a conversa pudesse ter terminado, ela passou a mão esguia sobre a madeira do banco e disse: – Adoro estes bancos. Imagine só todas as pessoas que já aqui se sentaram, tristes ou felizes, apaixonadas ou solitárias, jovens, velhas. O banco oferece o seu lugar a qualquer um. – Costuma vir para aqui? – perguntou ele baixinho. – Sim, no verão. No dia seguinte ele colocou uma flor de laranjeira sobre o banco, na esperança de que ela aparecesse e a guardasse. Dali a mais um dia, voltaram a encontrar-se e conversaram durante uma hora inteira. E assim começou: passava as noites sem conseguir pregar olho, não parava de pensar em Julie. Perdeu o apetite, tinha a sensação de pairar e ver o tempo, os dias a passarem ao seu lado. Deixou de prestar atenção quando assistia às preleções, ao invés disso aguardava com impaciência as horas passadas junto ao rio, ao fim do dia. Chegou a altura em que, pela primeira vez, se sentaram os dois no mesmo banco. Foi nesse dia que ela lhe disse: – Sou judia. Disse-lho assim, sem mais nem menos, com uma expressão séria, mas não como se estivesse a justificar-se ou a pedir desculpa. – Quer dizer cristã-nova. Os pensamentos dele aceleraram. Embora o batismo forçado dos judeus tivesse ocorrido há trezentos anos e desde então já só existisse gente cristã em Portugal, os casamentos entre os chamados cristãos-novos e os cristãos eram proibidos, de modo a que o sangue outrora judeu não se misturasse com o sangue cristão. – Não, judia – insistiu ela. – Não tem medo de admiti-lo? Os espiões da Inquisição… – Sabe perfeitamente por que razão lho digo. Na sua cabeça sentiu de repente um enorme vazio e o gosto que tinha na boca era amargo. – Quem são afinal esses Portugueses, que tanto nos odeiam? – pergunta ela por fim. – Sabe responder a isto? Ele abanou a cabeça. – Em tempos, os Celtas erigiram aqui uma fortificação. Depois, mil anos antes da vinda de Cristo, chegaram os Fenícios e construíram um entreposto comercial, que incluía estaleiros e a prática da pesca. Depois deles vieram os Gregos e a estes seguiram-se os Romanos. A população ofereceu-lhes resistência durante duas centenas de anos. Por fim, porém, os Romanos dominaram toda a Península Ibérica e cultivaram vinhas e oliveiras. O povo autóctone foi então convertido à fé cristã – não olhava para ele enquanto ia falando e a sua voz vacilava. – Depois dos Romanos vieram Germanos, Alanos, Vândalos, Suevos e por fim uma invasão dos Visigodos. Trezentos anos mais tarde foi a vez de os Mouros dominarem a península. Permitiram que a medicina registasse grandes avanços. No século xiii também eles foram expulsos. Desde então o povo dá a si mesmo o nome de português. – Conhece bem a história. Julie virou-se para ele. – Como podem eles falar de pureza do sangue? Que sangue haverá afinal de ser esse que resulta de influências celtas, fenícias, romanas e germânicas, e ainda misturado com sangue mouro? E como podem eles querer reservar esta terra aos cristãos, se ao longo de séculos, ela pertenceu a outros? Sentiu-se simultaneamente comovido e extasiado pela coragem que ela demonstrava. Desejava ficar com ele! Sem sequer refletir, agarrou-lhe a mão. Ela permitiu-o, e assim ficaram ali sentados até o Sol se pôr, diante de tudo e de todos, de mãos dadas, um cristão e uma judia. Fora a diferença das almas de ambos que o arrebatara, mas, ao mesmo tempo, também a familiaridade que os unia, o olhar em conjunto sobre o Tejo, sobre o mundo; já naquela altura sabia que jamais largaria Julie. Antero virou-se para a amendoeira e observou o coração representado na casca. Fora Julie quem ali o gravara. Ele mostrara- se contra, por ferir a árvore. Julie, porém, dissera: – A árvore ficará orgulhosa de ostentar o nosso coração. Pousou o indicador sobre o tronco e seguiu o entalhe marcado na casca. – Julie, a nossa pequenita… ela precisa de ti. Canta-lhe, com a tua voz suave, uma canção de embalar. Encostou a cabeça ao tronco da árvore e chorou. Bento acordou. Ergueu a cabeça e espetou as orelhas. Escutou a tranquila respiração da jovem dona. Afinal, o que o acordara? Farejou o ar. Um certo cheiro ficou-lhe impregnado no nariz. De imediato ficou bem acordado. O mal estava no interior da casa. Levantou-se de um salto. Nunca antes tivera aquela sensação com tal intensidade. Com os flancos a estremecerem empurrou a porta que conduzia ao corredor. Pôs-se à escuta. Um silêncio de morte preenchia a casa. Não era o silêncio da noite, nem tão-pouco o da madrugada. Era um silêncio sem vida. Esforçou-se por escutar melhor por entre esse silêncio. Não conseguia ouvir os bichos da madeira a carcomer as traves. Nem as formigas com o crepitante movimento das suas perninhas pelo chão. Também não ouvia ratos a roerem migalhas de pão. Teriam ido todos embora? Teriam fugido do mal? À distância uivava um cão. Juntou-se-lhe um segundo e depois um terceiro, o da casa vizinha, que sempre o irritava. Nas suas vozes, conseguia perceber-se o medo. Também eles haviam sentido o cheiro. Pelos vistos, o mal espalhara-se por toda a cidade. Bento esticou bem alto a cabeça e respondeu aos uivos dos outros. Tinham de ir-se embora dali. Precisava de avisar a sua matilha. Por que razão não se davam os humanos conta do mal? Afinal eram eles que lideravam! Estavam desatentos. Não era nada bom pertencer a uma matilha chefiada por alguém que se revelava fraco. Agora cabia-lhe a ele liderar os outros. Regressou ao quarto da jovem dona, agarrou a coberta com os dentes e puxou-a para baixo. De seguida ladrou. A jovem dona tinha dificuldade em acordar. Ladrou mais alto. – Bento, pára! – ordenou ela. Aproximou-se e continuou a ladrar. Ela sentou-se na cama e, ainda ensonada, fitou-o. A cozinheira entrou no quarto. Agarrou Bento pelo pelo do pescoço e arrastou-o para fora. Atravessou metade da casa a puxá- lo, até chegarem à cozinha. Aí chegados, largou-o e ralhou-lhe. Bento olhou para a porta. A cozinheira impedia-lhe a passagem. Se tentasse esgueirar-se por entre as pernas dela, de certeza que esta o agarraria e depois bater-lhe-ia. Tinha de fazer com que ela entendesse o que se passava, que estavam em perigo. Bento mostrou os dentes e rosnou. Depois, ladrou. A cozinheira pegou numa colher de pau e, com ela, aplicou uma pancada no cão, que ficou chocado com a atitude. Por que razão estaria a bater-lhe? Ficou em silêncio e olhou-a, com uma expressão interrogativa, mas ela bateu-lhe novamente e voltou a bater. Doía-lhe muito. Rendido, ele deitou-se no chão, mostrou-lhe a garganta, como que a oferecer-lha, e ganiu. Ela foi buscar a corda na qual costumava pendurar a roupa para secar. Com gestos ásperos, atou-a em redor do seu pescoço. Deu dois nós bem fortes e de seguida prendeu a corda ao puxador da porta. Indignado, voltou a ladrar. Tinham de se ir embora! Por que razão o prendia? A cozinheira não queria mesmo que ladrasse, até porque lhe bateu novamente com a colher de pau, mas desta vez na cabeça. A forte pancada produziu um estrondo no interior do seu crânio. Bento ficou em silêncio. Com um ar ameaçador, a cozinheira mostrou-lhe o dedo indicador. Depois, foi-se embora. Bento ganiu. Sentia ainda a pele a arder das pancadas que levara. Continuava a sentir o cheiro do mal e não conseguia fugir. Mas a sua matilha não se apercebia do perigo? Não queria ficar aqui e morrer. Bento puxou a corda. Prendia-lhe o pescoço, como se o cortasse, mas o manípulo da porta não cedia. Puxou-a ainda mais, descreveu círculos, usou todas as suas forças. Parou por momentos. Estava ofegante. Talvez conseguisse morder a corda até esta se partir. Pô-la na boca e começou a mastigá-la. As fibras sabiam-lhe a pó. Eram duras e secas. Humedeceu-as com a saliva. Ainda assim, ofereciam resistência aos seus dentes. Os uivos que se ouviam pela cidade diminuíram de intensidade. Será que também os outros cães tinham levado pancada? Ou será que já iam a fugir, juntamente com as suas matilhas? Ele gostava da sua matilha. Gostava sobretudo da jovem dona. Um dos feixes entrelaçados que formavam a corda deu de si. Bento continuou a morder. Logo a seguir, um segundo feixe desprendeu-se. Mordeu até já só alguns fios o prenderem à porta. Depois soltou-se com um puxão. Correu para fora da cozinha e desceu até à porta da rua. Estava encerrada. Continuou a descer até à cave. Havia lá uma janela estragada, tapada provisoriamente com uma pele de cabra. Bento saltou para cima de um velho barril de vinho vazio e farejou a pele. Já era velha e cheirava a podre. Desceu do barril e, depois de tomar balanço, voltou a saltar para cima deste, atirando-se de seguida contra a janela. A pele de cabra rasgou-se. Bento foi parar à rua, nas traseiras da casa. De imediato deu-se conta de alguns cães que passavam diante da porta da frente. Tal como ele, estavam em fuga. Apressou-se a segui-los. 10
Durante a noite, as traseiras do Paço da Ribeira ficavam como que
abandonadas. Durante o dia eram vendidas mercadorias raras nas arcadas, mas agora as colunas lançavam longas sombras, e reinava o silêncio. Sob o céu estrelado, as árvores pareciam tingidas de negro. Antero usava o pilão para, contra as paredes do almofariz, esmagar, triturar e misturar as limalhas de ferro com a flor de enxofre. – Mais luz – pediu ele. Vasco interrompeu a conversa com os guardas reais e segurou o lampião mais próximo. – Obrigado. A mistura ia assumindo um tom esverdeado, tal como fora descrito no livro dos Jesuítas. Deitou alguma água que tinha num púcaro para o almofariz, pôs de lado o pilão e amassou a mistura com os dedos até obter uma massa suave. – E como correram as coisas com «o-pai-dela-é-tu-cá-tu-lá-com- o-rei»? – perguntou Vasco. – Ela conseguiu-te uma audiência? – Não. Conseguirás tu arranjar-me uma? – Desde que trabalho na biblioteca o rei esteve cá quatro vezes. – Quer isso dizer que nem sequer sabe qual é o teu nome. – Com o tipo de notícia que tens para lhe comunicar, deverás ainda assim conseguir chegar junto dele, não achas? – Agora isto vai ser perigoso – disse Antero. Colocou cuidadosamente a massa no buraco que fora aberto no chão. Com as mãos lançou terra para tapá-lo. Levantou-se, e com a ponta do pé, pressionou a terra com força. – Achas que isso vai explodir? – perguntou Vasco, arqueando as sobrancelhas. – Assim relata o livro. Deverá resultar numa espécie de tremor de terra. Quando vai isso acontecer? Não faço ideia. Antero sentia um ardor nos olhos. Só então se deu conta de como estava cansado. Fora um longo dia. De manhã, chegara ao porto com o Fortune. Desde essa altura que corria perigo. Andava farto de estar constantemente em fuga e de ter de se esconder. Se havia reunido indícios de que um tremor de terra estava para acontecer, tinha de comunicá-lo ao rei. Mesmo sem a ajuda de Leonor, precisava de consegui-lo. Quanto tempo demoraria até que aquela mistura explodisse? Alguns momentos? Horas, talvez? Dantes os relógios mais não tinham do que os ponteiros das horas. E mesmo assim a vida corria bem. O tempo não estava cortado em pequenas fatias, as pessoas não se limitavam a prová-lo, comiam dele até se fartar. Quando não havia relógios – a não ser nas torres das igrejas – não se dava tanta atenção ao tempo. Agora, porém, as pessoas andavam sempre em cima dele, não lhe davam descanso. Usavam pequenos aparelhos para o medir, dividiam-no em partes mais pequenas e controlavam-no. E eis que ele voava mais depressa. Porventura seria bem mais agradável se o deixassem em paz. De súbito, fez-se ouvir um estrondo. Houve terra que foi projetada para o ar e do chão partiu uma chama que por pouco não atingiu Antero. Vasco e a sentinela acorreram junto dele. A chama ardia, produzindo bastante brilho. – Conseguiste! – rejubilou Vasco. – É assim que os tremores de terra têm origem! Antero abanou a cabeça. – Não. Sabemos agora que não é assim. Vasco olhou-o, franzindo a testa. – Que queres dizer com isso? Apontou para a chama, que a pouco a pouco se ia apagando. – Eis a razão. Li uma grande quantidade de relatos de tremores de terra, mas em nenhum deles se falava de labaredas que saem do solo. Imagina uma quantidade cem vezes maior de enxofre e limalhas de ferro, e um terramoto que resultasse disso. Seria impossível as labaredas passarem despercebidas. Limitámo-nos a criar uma situação em pequena escala. Se os sismos resultassem disto, então teria de haver enormes paredes de fogo a subirem da terra. O enxofre deve ser apenas um fenómeno acessório, não é a causa de um tremor. – E o que levou então a terra a estremecer hoje? A chama ia-se extinguindo. Um coro de vozes exaltadas aproximava-se, bem como o brilho de archotes. Antero levantou o olhar nessa direção. – Eh, lá! – gritou a sentinela. – Deixem-se ficar onde estão! Não têm nada que se aproximar do palácio! Era um grupo de homens. Estavam vestidos com roupas simples, muitos deles usavam camisas remendadas. Se estavam armados, então escondiam-no bem. Vindas do portão, acorreram as outras sentinelas. Nem sequer deveriam ter deixado passar aqueles homens. Pelos vistos, deveriam ter-se deixado adormecer. O guarda que estava junto de Vasco segurou ameaçadoramente a alabarda na horizontal. – Para trás! – Não queremos problemas – anunciou um dos homens. – Somos pescadores e temos uma informação para comunicar ao rei. – O rei encontra-se na sua residência em Belém. E, fosse como fosse, ele não vos receberia, sobretudo assim a meio da noite. Indeciso, o homem olhou para os seus camaradas. Pigarreou. – Aqui o Mário deu-se conta de uma coisa, e eu fui da opinião de que devíamos comunicá-la. É o mar. Coisa assim nunca aconteceu. – Tudo isso de certeza que pode esperar por amanhã de manhã – comentou o guarda. – Dirijam-se à Administração das Pescas. Antero deu um passo em frente. – Digam lá, o que se passa? Os pescadores olharam para ele. – A maré não veio. Antero estremeceu. – Querem dizer que a maré se atrasou? – Não, nada disso. Há duas horas que a maré deveria ter enchido. O mar recolheu, a maré vazou e assim ficou. Talvez seja magia. – Não é magia nenhuma – afirmou Antero. – É uma catástrofe. Agachou-se e pousou as palmas das mãos no chão, que parecia manter-se imóvel. Antero inclinou a cabeça até a orelha tocar no chão e ficou a escutar. Pareceu-lhe ouvir um retumbar grave, quase surdo. As sentinelas e os pescadores fitavam-no. – Já passou – disse, pousando a mão sobre o ombro de Vasco. – Vai, salva a tua filha – disse-lhe o bibliotecário. – Entretanto vou procurar reunir aqui mais livros para ti. – Livros? Vasco apontou para o buraco no chão, que ainda ardia. – Disseste que esta não é a solução. Por isso tens de continuar à procura. Vais precisar de livros para poder desmentir os Jesuítas. Vem aqui ao romper do dia, traz a tua filha e uma carroça. Depois, tratamos de levar tudo para fora da cidade. – Não sei se teremos assim tanto tempo. – Então, não digas mais nada, vai! – Abandonem todos a cidade! Se dão valor à vossa vida, vão buscar as vossas famílias e fujam para o campo. Afastou-se dos homens e saiu dali a correr. Já não se conseguia ver uma estrela que fosse e, por sobre os telhados, já o céu se ia tingindo de azul. Nas traseiras do palácio virou para a direita. Alguém estava a segui-lo. Antero não viu quem era, mas apercebeu- se de passos à distância. Quando ele parava, também os do outro deixavam de se ouvir. Avaliando pelo ruído dos passos, o seu perseguidor estava sozinho, razão pela qual não parecia aventurar- se a confrontar Antero antes da chegada de reforços. Séneca, Aristóteles e Plínio haviam já descrito diversos tipos de tremores de terra. Oxalá fosse apenas um estremecimento do chão, a que chamavam tremor. Ou então um arietatio, em que a terra abanava de um lado para o outro, como se fosse um navio. Aquando do pulsum o solo era deslocado em altura e, quando isso acontecia, pedras caíam ou empenas inteiras de edifícios desmoronavam-se, o que podia revelar-se perigoso. «Oh, meu Deus», rezou ele, «permite que não seja um brastes!» Quando assim era, as terras eram dilaceradas por uma explosão e arremessadas para o alto. O pior de todos os terramotos recebia o nome de subversio. Nesse caso, os abalos destruíam tudo. Nem sequer queria imaginar como seria uma coisa dessas. As casas dos bairros mais pobres estavam já em mau estado. Jamais seriam capazes de aguentar o impacte de um tremor de terra. Olhava para as tranquilas fachadas diante das quais ia passando. Não deveria ele bater a todas as portas e avisar os habitantes? Havia duzentos e setenta e cinco mil habitantes em Lisboa. Só o rei, usando as suas tropas, seria capaz de acordá-los a todos e levá-los a sair da cidade. Antero iria, juntamente com a pequenita, ter com o rei para o alertar. Avançou para a Praça do Rossio. Isso dar-lhe-ia alguma vantagem e avanço em relação a quem secretamente o seguia. Se quisesse manter-se escondido, o perseguidor não poderia atravessar a vasta praça logo atrás de Antero, teria de aguardar um pouco até que o perseguido estivesse do lado de lá. À luz do crepúsculo matutino, aquela área parecia ainda maior do que durante o dia. Era aqui que re realizavam as touradas e as execuções públicas, os autos-de-fé, quando a Inquisição acendia as fogueiras. Salvo algumas exceções, como acontecera outrora. À cabeça da praça estava o Palácio da Inquisição. O flanco leste da mesma era ocupado pelo Hospital de Todos-os-Santos, com quatro claustros, incluindo um grandioso jardim. Passando os arcos de abóbada tinha-se acesso a dormitórios e refeitórios e aos aposentos de médicos e farmacêuticos. Como seria se daqui a pouco tempo não restasse ali pedra sobre pedra? Através de uma janela ouviam-se débeis gemidos que enchiam o ar matinal, de resto estava tudo em silêncio. Junto às igrejas ficava situada a escola. Frequentara-a dia após dia. Quando tinha seis anos fora para a pré-escola, depois para o liceu, até ter treze anos. Haviam sido sempre os Jesuítas a ensiná- lo. Professores afáveis, de quem ele gostava, e professores severos, que ele temia. Antero ficou parado. A casa do padrasto ficava a apenas duas travessas de distância dali. Precisava de avisar a mãe. Fora boa para ele nos seus primeiros anos de vida. Tinha-o alimentado e consolado, e rezado com ele todas as noites. Não podia simplesmente abandoná-la. Num instante virou para a Rua dos Carroceiros e daí seguiu para a Rua dos Ingleses. Mais adiante ficava a casa dos seus pais. Há cinco anos que ali não ia. Num pau acima da porta estava hasteada a bandeira britânica: a cruz vermelha dos Ingleses diante da cruz diagonal branca dos Escoceses sobre um fundo azul. A bandeira deixava bem claro quem ali mandava. Era o padrasto quem tinha a última palavra. Não iria ser um reencontro agradável. Para um membro da Feitoria Inglesa, a casa era um pouco humilhante. Os outros comerciantes residiam em edifícios com quatro alas, com torres e grandes portas, mas esta adaptara-se ao aspecto de muitos edifícios da cidade. Dois andares agachados sob um telhado vermelho. A fachada ia decaindo. Era impossível não se dar conta de que os negócios do inglês não corriam bem. Ao longe escutava-se o uivar de um cão. Os passos do perseguidor deixaram de se ouvir. Algures mais atrás, lá estaria ele a vigiá-lo. Antero bateu com o punho na porta. Não ficou à espera de ouvir alguma reação do interior, continuou, ao invés disso, a bater. Por fim, a porta abriu-se e tornou-se percetível a iluminação proporcionada pela chama de uma vela através da porta entreaberta. O padrasto não estava a usar peruca. Os cabelos castanhos pendiam-lhe desordenadamente da cabeça. Na mão esquerda, segurava a vela, mas na direita tinha uma pistola de cano comprido. – Antero? – baixou a pistola. – Uma barulheira destas de manhã tão cedo! Está visto que continuas sem saber o que são boas maneiras! – Tenho de falar com a minha mãe. É urgente. – Nesse caso volta quando for de dia. – É importante. O padrasto semicerrou as pálpebras. – Estiveste a beber. – Não temos tempo para discutir – balbuciou Antero por entre dentes. – Estou aqui para o avisar de que um tremor de terra está iminente. – Tomas-me por parvo? Ninguém é capaz de prever uma coisa dessas. Não podes, passados cinco anos, aparecer-me aqui a meio da noite a contar uma história assim. – É o Antero? – ouviu-se alguém dizer de dentro. – Por favor, deixa-o entrar. O padrasto hesitou. Por fim abriu a porta, embora com relutância. Antero entrou. De pé nas escadas, de camisa de dormir vestida, estava a mãe. O rosto largo e carnudo tinha ainda marcas avermelhadas deixadas pela almofada. Será que agora eles dormiam lá em cima, onde em tempos fora o quarto dele? Olhou para a mãe, observando-a na sua camisa de dormir. Engordara. Não fazia a mais pequena ideia do que tinha sido a vida dele naqueles últimos anos. – Mãe, estou aqui porque… – Meu filho! Ao invés de descer os últimos degraus e de vir abraçá-lo, limitou- se a ficar ali de pé, a fitá-lo, como se tivesse medo dele. – Mãe, um tremor de terra ameaça Lisboa. – Ao ver o olhar cético do padrasto, acrescentou, dirigindo-se a este: – Deu-se conta do estremecimento de ontem? Além disso, a água dos chafarizes é sulfurosa e acabei de ouvir pescadores a relatarem que o mar se recolheu e que a maré não voltou a encher. Passei a noite toda na biblioteca e li tudo o que se sabe e está escrito acerca de tremores de terra. Tem de abandonar a cidade e tu, mãe, também! Uma voz fininha perguntou: – Quem é, mamã? Virou-se naquela direção. Diante daquele que outrora fora o quarto dos pais estavam duas meninas e um rapaz mais novo com caracóis escuros. O menino esfregava o olho direito e, com o esquerdo, pestanejava e olhava-o com um ar cansado. Os pequenos deviam ser seus meios-irmãos. Magoou-o vê-los. Recebiam o amor que a ele tinha sido negado. – Este é o meu filho – respondeu a mãe. – O nome dele é Antero. Nem sequer tinham falado ao pequenito da sua existência? Fora então assim apagado das memórias da família. Bem podia ter poupado a vinda até ali! As crianças observavam-no com curiosidade. De repente a porta ressoou sob a força de murros. – Abra ou mandamos a porta abaixo! – fez-se ouvir uma voz abafada, vinda lá de fora. De novo murros. O menino mais novo começou a chorar. – Abandonem Lisboa! – instou Antero. – É mesmo sério! Já se encontrariam na porta das traseiras à espera dele. Tinha de procurar outra saída. Apressou-se a descer pela escada que levava à cave. Estava escuro, mas sentiu uma corrente de ar no rosto. Deveria haver aqui uma janela aberta. Vislumbrou o céu a brilhar através dela. A pele estava rasgada. Subiu para cima de um barril e, pela janela, esgueirou-se para o exterior. Era a parede lateral da casa. Ali não tinha ninguém à espera. Ninguém poderia saber quanto tempo ainda lhe restava. Tinha de levar Samira para fora da cidade. Antero avançou furtivamente, encostado à parede do prédio e, junto à esquina, pôs-se à espreita. Os esbirros discutiam com o padrasto. Agarraram nele e afastaram- no para o lado. Foi então que a sua mãe se lançou sobre eles. – Deixem o meu filho em paz! – gritou ela, desferindo golpes sobre os homens a soldo dos Jesuítas que iam mais à frente. Um deles envolveu a garganta dela com a mão e apertou. Atemorizada, a mulher esbugalhou os olhos. Ele continuou a agarrar-lhe o pescoço até que, já ofegante, ela se deixou cair ao chão. Só nessa altura a largou. Antero cerrou os punhos. A fúria fez-lhe vir lágrimas aos olhos. Como podiam eles tratar a sua mãe daquele modo? Queria ir ajudá- la e atirar-se aos esbirros jesuítas, pegar-lhes pelos cabelos e arrastá-los para fora da casa. Quatro deles estavam a agarrar o padrasto, que se debatia, e arrastaram-no para o interior. «Malagrida», pensou Antero, «este é um pecado que vais expiar.» 11
O sol matinal aquecia as costas de Dalila. Brilhava através da
janela e incidia sobre a toalha de mesa branca e os pratos de prata. Os copos de cristal refulgiam. Dalila mordeu a fatia de pão de trigo e engoliu os últimos tragos do seu chocolate. Na boca, tudo isso formou uma mistura e foi depois engolido. Olhou para a irmã. Desde que se conhecia que se comparava a Leonor e nessas comparações era frequente não levar a melhor: odiava a irmã por isso, por ela ficar sempre a ganhar. Ao mesmo tempo, porém, adorava Leonor e não desejava nada mais intensamente do que ser tal qual como ela. Hoje, Leonor escolhera o vestido amarelo-dourado. Talvez o seu estivesse à altura. A seda de damasco azul ficava-lhe bem e o laço diante do peito concentrava em si os olhares. No entanto, com o seu penteado, Leonor estava uma vez mais em vantagem: tinha arranjado a peruca ao estilo francês, como o faziam as senhoras na corte portuguesa. Dalila, por sua vez, usava os caracóis a cair, ao estilo inglês, o que era considerado bem menos elegante – e aquele pequeno-almoço, pelo contrário, fora pensado para ser servido com toda a elegância. Que pretendia o pai com aquela mesa tão ricamente posta? O seu olhar deslocou-se para o estranho, um homem que o pai convidara. Presumia que estivesse a fazer negócios com ele. – Agradeço-lhe este magnífico pequeno-almoço – declarou o homem. – Alegra-me, Dom Nicolau Fernandes, que tenha aceite o convite para tomar o pequeno-almoço connosco – respondeu o pai. O homem olhou na direção de Leonor e esboçou um sorriso que denotava insegurança. – Todos nós nos alegramos – acrescentou o pai. Passou as mãos sobre a casaca bordada, como se tivesse de varrer migalhas invisíveis. Os criados apressaram-se a sair. Trouxeram travessas e pratos fumegantes: empadas de borrego, frango grelhado, carne de peru e língua de vaca assada. A acompanhar havia salada, musse de laranja, trufas assadas na brasa, pudim de amêndoa. Puseram ainda talheres adequados. Dalila abriu o guardanapo e colocou-o sobre o peito. O pai até mandara colocar o talher de gala! Passou discretamente o dedo sobre o cabo do garfo que estava junto ao seu prato. Os talheres dourados tinham as iniciais MO. Cada pequena colher, cada um dos garfos que estavam em cima da mesa ostentava as iniciais gravadas no cabo. Foram servidas ao pai a língua de vaca assada e a salada. Leonor pediu uma empada de borrego. Dalila observou o estranho. Teria ele acabado de discretamente lhe acenar com a cabeça? Era impossível. Estavam todos ali sentados, rígidos, com os pulsos delicadamente apoiados sobre a mesa, não havia lugar para tais gestos. – Então, meu caro – começou o pai –, onde foi que viu Dalila? Não é com muita frequência que ela sai de casa, não tanto quanto a sua irmã; deve então ter sido uma boa oportunidade aquela em que a encontrou. Dalila sentiu um calor apoderar-se dela. Qual seria a intenção do pai? Pretenderia ele casá-la com aquele estranho? Iria ele desfazer- se dela, para a desencalhar, quereria a família ver-se livre dela? Não podia casar-se com aquele homem. Pois se amava Antero…! – Foi no mercado – respondeu o estranho. Corou um pouco e olhou para Dalila. – Fui atrás de si, tinha de descobrir quem era e onde morava. «Não quero nada contigo!», pensou ela. Virou-se para as sobremesas. Deveria perceber, sem sombra para dúvidas, que ela nada queria ter a ver com ele. – Salada – disse o pai num tom austero e a criada que estava atrás dele inclinou-se sobre a mesa para o servir. A pele escura dos seus braços contrastava com a brancura da toalha de mesa. Um pouco mais baixo, ele continuou: – Ela tem os seus momentos de obstinação, mas há de sujeitar-se – esperou até que lhe enchessem o prato e então espetou o seu garfo na salada. – Para quando planeia o enlace? Dalila estava de boca aberta. – Não sei nada a respeito deste homem! – disse ela. – Vendes-me simplesmente assim, pai? – Não se trata aqui de vender seja o que for – resmungou o pai –, terás um dote bastante considerável. – O meu nome é Nicolau – disse o estranho, olhando-a com uma expressão apaziguadora. Os cabelos da sua peruca formavam caracóis, que se mantinham bem junto à cabeça. – Trabalho como arquitecto militar para o Ministério da Guerra. Projecto e construo fortificações e torres para peças de artilharia – de seguida dirigiu-se ao pai: – Em relação ao seu palácio, permita-me que o felicite. Devo dizer que não guardo boa opinião dos nobres que residem em palácios revestidos a mármore de tons rosados. Esses palácios nada mais são do que uma criação anómala. Tem de estar constantemente a receber os cuidados de todo um exército de trabalhadores. O mármore vai-se fendendo e precisa, com frequência, de ser reparado com mástique, só que esses nobres adoram aquela fachada resplandecente, quer o material seja o mais adequado ou não. É algo abstruso! O seu palácio, pelo contrário… – Mástique? – interrompeu-o Leonor. – Como se faz isso? – É uma mistura de pó de tijolo, pez e cera e são-lhe acrescentadas cores para simular os veios do mármore. Jamais ela, Dalila, se casaria com este homem. Preferiria entrar para um convento ou atirar-se ao mar. – E não o incomoda o facto de a minha irmã ser protestante? – perguntou Leonor. Nicolau Fernandes inspirou e estava a preparar-se para começar a responder, mas o pai antecipou-se-lhe. – Nesta casa somos todos protestantes. Terá de permitir à minha filha que ela continue a praticar a sua fé. – Seja como for, é como se metade dela já fosse católica. – Leonor abanou a cabeça. – Martinho Lutero considerava idolatria orar aos santos ao invés de dirigir as preces a Deus. Dalila, porém, possui um exército inteiro deles, ao qual recorre diariamente com pedidos de ajuda. – Não encaramos essas questões de modo obstinado – o pai limpou um pouco do molho da salada dos cantos da boca. – Em certos dias, e embora sejamos protestantes, vamos à missa católica, hoje, por exemplo, por ser Dia de Todos-os-Santos. Enquanto nobre e, para mais, sendo um comerciante com o meu estatuto, é conveniente ser visto, de tempos a tempos, na catedral. Permite-me que volte a perguntar-lhe a respeito dos seus planos? Eu próprio terei de levar a cabo alguns preparativos. – Um matrimónio é um passo bastante sério – referiu Nicolau Fernandes. – Gostaria primeiro de conversar a respeito disto com o meu patrão, Sebastião de Carvalho. Para mim, muito depende da boa vontade e dos bons olhos com que o ministro vir este enlace. – É evidente que sim, eu entendo. Vai ver que ele se mostrará sobremaneira satisfeito em relação à minha família. Muito embora as relações que estabeleci com Sua Majestade, Dom José, sejam melhores do que as que tenho com o seu ministro da Guerra. O estranho estremeceu. Claro, no que dizia respeito aos mecanismos de poder do Reino o pai dela sabia movimentar-se. No modo como sublinhara as suas palavras subentendera-se uma espécie de aviso. Os seus olhos avermelhados, cobertos de finíssimos vasos sanguíneos, estavam firmemente fixados nele. – Não pretendo de modo algum que a minha ponderação seja interpretada como ofensiva, senhor barão – disse Nicolau Fernandes. – Sabe, têm sido muitos os que se esforçam por ganhar a simpatia das minhas filhas. A nossa riqueza não passa despercebida e as raparigas são um deleite para os olhos. No entanto, se sente algumas reticências… Não pretendo de modo algum persuadi-lo seja do que for. Dalila lançou o seu guardanapo sobre o prato e levantou-se. Olhou para o estranho. – Pretende casar e entrar para uma família em que as pessoas não conversam umas com as outras? Sim? É isso que quer? O meu pai nada me disse a seu respeito. E a Leonor anda a encontrar-se com um contrabandista. O pai virou a cabeça na direção de Leonor. – Um contrabandista? – Ele não é contrabandista – Leonor olhou para Dalila com toda a calma, como se nada fosse. – A Dalila está a mentir. – Leonor – admoestou o pai –, espero bem que sim. Essa gente rouba o que é nosso! Dão cabo do nosso negócio! Também Nicolau Fernandes se levantou. Empurrou a cadeira para junto da mesa e fez uma vénia. – Minhas caras senhoras, meu caro barão, a cortesia obriga a que me retire. É Dia de Todos-os-Santos, há de querer preparar-se para a ida à igreja. Agradeço o seu convite e – olhando para Dalila – aguardo com alegria um breve reencontro. Uma delgada nuvem, que se estendia, a todo o seu comprimento como que em linha reta, estava patente no céu. Não se viam pássaros em lado algum, nem nas copas das árvores, nem tão- pouco sobre os telhados. As vergas dos navios estavam despovoadas. Sobre as ondas do Tejo nem uma única gaivota se deixava embalar. As vagas, porém, começaram de repente a embater com grande força no cais, era como se uma tempestade se anunciasse. Só que não soprava uma brisa, por pequena que fosse. Era sábado, dia 1 de novembro do ano de 1755. Tal como todos os anos, por ser Dia de Todos-os-Santos, a população acorria às igrejas, diante de cujas portas se formavam grupos de senhoras bem vestidas. As crianças provocavam-se umas às outras e eram repreendidas pelos respetivos pais. A cada passo que davam, os anciães apoiavam-se nas suas bengalas e ficavam de cabeça caída. Os nobres chegavam nos seus coches. Antero deu-se conta de um ajuntamento de pessoas diante de um chafariz. – Está a borbulhar! – exclamou alguém. – A água parece ferver! Assustou-se. Não tinha conseguido despachar-se tanto quanto esperara. Por diversas vezes, tivera de se esconder, em escadas e pátios interiores, dos soldados que andavam em patrulha. – Abandonem a cidade! – gritou ele. – Todos vocês, têm todos de fugir daqui! Já não faltava muito até chegar junto de Samira, mas indo buscá- la já não teria tempo para chegar junto do rei, pois Belém ficava para lá dos limites de Lisboa. Ainda assim, alguém teria de avisar a população da cidade. Olhou em redor. O Ministério da Guerra! Talvez conseguisse apanhar o ministro da Guerra a caminho da igreja. É certo que ele não tinha a mesma autoridade do que o rei, mas usando a tropa poderia mandar evacuar a população de Lisboa. Antero olhou para cima, para o edifício do ministério. O para-raios ali instalado ligava o telhado ao chão. Iluminadas pela luz do Sol, as janelas brilhavam, tinham sido limpas havia pouco. Antero bateu à porta. Um jovem veio abrir a porta, com as mãos sujas de tinta. – O que deseja? – perguntou. – Pretendo falar com o ministro, Dom Sebastião de Carvalho. O olhar do jovem percorreu-o de cima a baixo. – Sem aviso prévio isso é impossível. Quem é o senhor, se me permite a pergunta? Claro, com aquelas roupas andrajosas não tinha o aspecto de alguém que fosse ser recebido pelo ministro. Nem sequer trazia uma peruca empoeirada. – Será que ele ainda aqui está? Ou será que já se dirigiu para a igreja? Sou cientista e descobri uma coisa. O ministro deverá ter imediatamente conhecimento disso. É algo decisivo para este país. – Não estou a ver máquina alguma, nem quaisquer planos. Antero tocou com a ponta do dedo na testa. – Está tudo aqui dentro. É segredo – dirigiu um olhar penetrante ao jovem. – Não pode ter noção da magnitude disto. Sou português, razão pela qual me dirigi aqui em primeiro lugar. Se não quiserem saber disto, vou ter com os Espanhóis ou com os Ingleses. O jovem hesitou. Por fim, disse: – Vou comunicar que está aqui, mas não lhe posso prometer que irá ser recebido. Abriu-lhe a porta. Antero entrou. – Quer dizer que ele está aqui? – Siga-me, por favor. À esquerda e à direita da escadaria branca havia pedaços de pedras e de cristais guardados em vitrinas e, diante de uma dessas amostras via-se um pedaço de papel cuidadosamente escrito, que identificava o material em causa. O ministro prezava as ciências naturais. Isso era bom sinal. O jovem conduziu Antero escada acima. A meio de uma parede estava pendurado um espelho, cuja moldura era feita de uma carapaça de tartaruga que havia sido dourada. De cada um dos lados do espelho, viam-se pequenos armários indianos de madeira negra polida. Dirigiram-se para a direita e entraram numa antecâmara, onde havia cadeirões estofados de veludo vermelho junto às paredes. Sentados neles estavam dois homens que conversavam num tom abafado. – O senhor ministro está neste momento reunido com o secretário de Estado Coutinho. Logo que a reunião termine, tratarei de informá-lo da sua presença – disse o jovem. – Não posso esperar tanto tempo assim. O jovem franziu a testa. – É um assunto da maior importância. Centenas de vidas humanas dependem do facto de conseguirmos agir depressa. – Como queira. O senhor ministro com certeza não apreciará o facto de, por sua causa, eu ir incomodá-lo, o que em nada beneficiará o seu objetivo. Avançou até uma grande porta e acionou o manípulo tão lentamente que parecia preparar-se para entrar na jaula de um leão adormecido. Esgueirou-se para o interior e fechou a porta atrás de si. Um dos homens que esperavam, cujos cabelos da peruca estavam enrolados em caracóis dispostos em redor do seu rosto pálido, como se cada um deles ali tivesse sido colocado individualmente, disse em voz baixa para o outro, sentado ao seu lado: – Sem querer desfazer no consolo que me dispensa, meu velho amigo, mas que faria se a mulher com que pretende casar o não quisesse? Ainda assim desposá-la-ia? Deveria já há muito estar a tratar de pôr Samira a salvo. Que fazia ele ainda aqui? Antero avançou até junto da porta do gabinete. Quando o funcionário dali saísse e lhe dissesse que o ministro não queria recebê-lo, empurrá-lo-ia para o lado e entraria no gabinete mesmo sem a isso ser convidado. – Sabe – continuou o homem a falar –, estive mesmo agora a tomar o pequeno-almoço em casa dela. O pai ficou satisfeito com a minha proposta. Ela, por seu turno, não se mostrou nada assim. Outrora, dir-se-ia a propósito disto que o amor acabará por aparecer. Comece por fazer-se o casamento e logo cada um aprenderá a ajustar-se ao outro e a amá-lo. Hoje em dia, porém, muitos encaram o amor como um pré-requisito para um bom matrimónio, não é verdade? Se me casar com aquela coisinha bonita contra a sua vontade, há de ela tomar-me por um monstro. Na rua, lá fora, os coches passavam e faziam-se ouvir. Dezenas e dezenas deles. Ou então… … não eram coches. Lançou-se ao chão e tateou-o. O edifício estremecia. Antero ergueu-se e abriu energicamente a porta do gabinete. Não estava ninguém nessa sala. Havia três portas que dali davam acesso a outras salas. O ministro e secretário de Estado haviam-se retirado para alguma delas. Tinha imediatamente de ir ter com Samira. – Escute – disse ele, já na antecâmara, para o homem que se queixava de desgostos de amor –, eu sou um cientista. Não tardará a ocorrer um tremor de terra terrível. Estou aqui para avisar o ministro, só que não posso esperar mais tempo. Percorra o edifício e trate de procurá-lo! Não deixe que ninguém o demova, está a ouvir? Diga-lhe que foi Antero Moreira de Mendonça quem o informou, ele que mande tocar os sinos como num aviso de tempestade! – Um tremor de terra? Então, como se barris de pólvora tivessem explodido, ouviu-se um estrondo e ocorreu uma forte sacudidela. Antero olhou para o teto. Fragmentos de reboco caíram e o pó tapou-lhe os olhos. Pestanejou e passou a mão pelo rosto para limpá-lo. Lá fora, as pessoas gritavam em pânico. O chão, porém, estava de novo imóvel, já não estremecia. – Vá! – instou ele e apressou-se a sair da antecâmara na direção da escadaria branca. Chegou junto do espelho e dos armários indianos. Então o ribombar regressou. O chão tremeu, e foi então que um gigante por três vezes bateu com o seu enorme punho sobre a Terra, o que fez com que Antero desse involuntariamente um salto. Choveram pedras do teto. Avançou escada abaixo aos tropeções. Samira! Tinha de ir salvar a sua filha, de retirá-la do interior da casa onde estava. Ao fundo da escadaria foi deitado ao chão, que oscilava sob os seus pés. O ruído dos desabamentos acompanhou Antero enquanto este rastejava até à saída. As suas costas foram atingidas por algumas pancadas fortes. Levou lá as mãos e sentiu o sangue. Na rua, por todo o lado os prédios ruíam. Os telhados davam de si. As paredes caíam. O barulho era ensurdecedor. As pessoas fugiam do interior das casas, com as mãos agarravam pequenas figuras de santos, pressionavam-nas contra o peito e, com rostos desfigurados pelo medo, suplicavam por misericórdia. Algumas delas lançavam-se dos andares superiores dos edifícios que se desmoronavam, caíam na rua e aí ficavam, de pernas partidas. Junto a Antero estava uma senhora gorda, que, de gatas, se arrastava pela rua. Ia gemendo. De um muro caiu um bloco de pedra que lhe esmagou a cabeça. Outras pedras ainda aterraram nas suas costas. Antero esforçou-se por se pôr de pé. Avançou, arrastando-se a custo pelo meio da rua em direção ao Palácio Oldenberg. Uma nuvem de pó envolvia tudo. Voltou a ser atirado ao chão pelo estremecimento do solo. Em seu redor, as casas baloiçavam, como se mais não fossem do que um campo de milho ao vento. Uma parede abateu-se sobre ele. Tomado pela dor, começou, por diante dos olhos, a ver tudo vermelho, e depois já só negro. O retumbar foi ficando mais distante. «Não!», implorou. Não podia perder os sentidos, tinha de continuar, para salvar Samira. Pestanejou. Com pouca nitidez captou a imagem das pessoas que fugiam. – Socorro – berrou. Aquele ali não era o homem que vira na antecâmara do ministro? – Ajude-me, estou aqui preso! O homem virou-se para ele. Inclinou-se e gritou: – Está debaixo de um monte de escombros. Antero estendeu a sua mão na direção dele. – Puxe-me para fora daqui! O homem agarrou na mão dele e puxou. – Lamento – disse, largando-o de seguida. – Não consigo fazer nada. – Virou-se e fugiu dali a correr. Na cabeça de Antero girava um turbilhão. Em redor dele tudo ficou negro. Devido ao ribombante ruído e aos gritos de medo das pessoas, era difícil entender o que o padre dizia. Falava agora muito alto, as suas palavras ecoavam pela catedral: «Gaudeamus omnes in Deo.» Leonor olhou em redor. A igreja estava completamente lotada, mas ninguém escutava já o que o padre dizia. Amedrontados, escutaram o barulho proveniente do exterior. Estariam a ser disparados canhões? Teria sido o porto atacado? Leonor tocou no ombro do pai. – Quem poderia atacar-nos? – perguntou ela. O pai olhou-a com uma expressão sombria. – Isto não me agrada. Há aqui qualquer coisa que não está bem. Então a enorme igreja de mármore recebeu subitamente um impulso na vertical. Oscilou como um navio no alto mar, em plena tempestade. As pessoas desataram a gritar. Levantaram-se de um salto e de imediato foram deitadas ao chão por fortes sacudidelas. Da cúpula soltaram-se pedras que ruidosamente, diante dos olhos de Leonor, se abateram sobre homens e mulheres. Leonor foi agarrada pelo pai, que a puxou na direção da saída da igreja. – Para a porta! – gritou ela. – Temos de fugir! Contudo, o pai não a largou. Impediu-a de desatar a correr. Toda a gente se dirigia para a porta, as pessoas trepavam umas por cima das outras, empurravam-se e rompiam por entre os demais, sempre em frente, rumo à saída. O pai mantinha-se inflexível. Arrastou Leonor até à parede lateral. Foi então que ela entendeu o plano dele. Segurou numa pedra que se encontrava junto a alguém que fora derrubado. Estava ensopada de sangue. Partiu o vitral da igreja. Também o pai segurou noutra pedra, que usou em redor do caixilho para retirar os estilhaços de vidro que aí se mantinham presos. – Sobe para aí – ordenou ele e ofereceu-lhe as palmas das suas mãos, com os dedos entrecruzados. Quando Leonor assentou um pé nas mãos do pai, este fê-la subir até junto do caixilho do vitral. Já lá em cima, ela deu-lhe a mão e ajudou-o a trepar. Nunca teria julgado que o pai fosse capaz de alcançar uma altura daquelas. A verdade é que o conseguira. Atrás dele, o pó formava uma nuvem e choviam pedras que depois formavam montes de escombros. Os gritos daqueles que morriam chegavam até ao exterior da catedral. Leonor permaneceu acocorada no parapeito, enquanto o pai já saltava para o exterior. – Anda daí! – disse ele. Ela virou a cabeça e gritou para o interior da igreja e para a balbúrdia que por lá reinava: – Por aqui! Por aqui pode-se sair! – Desce já daí, imediatamente! – ordenou-lhe o pai. – Temos de ir para os armazéns e ver aquilo que conseguimos salvar. Um rapaz, teria talvez dez ou onze anos, correu na direção dela a chorar. Um forte abalo roubou-lhe o equilíbrio, mas continuou a rastejar e conseguiu chegar à janela. Leonor estendeu-lhe as mãos. Ajudou-o a subir e içou-o de modo a transpor o caixilho com os afiados estilhaços de vidro que restavam. Ainda assim, fez um golpe numa perna, do qual brotou sangue. Leonor fê-lo descer para o lado exterior. O pai tinha desaparecido. Ser-lhe-iam as pessoas indiferentes? Só pensava nos seus bens, de resto mais nada lhe interessava, pelo menos era o que parecia. Leonor voltou a olhar para o interior da igreja. Por todo o lado havia cadáveres e escombros e, pelo meio, pessoas que, de gatas, se arrastavam de um lado para o outro. – Para aqui! – voltou ela a gritar. É claro que também ela tinha esperança de que o palácio ainda permanecesse de pé e de que os seus produtos de cosmética ainda es-tivessem a salvo, que não tivessem caído da mesa, e de que o espelho continuasse… Dalila. Se acontecesse alguma coisa a Dalila, seria unicamente ela, Leonor, a culpada. A Terra despertara do seu sono de milhares de anos. Revolvia-se, para cima e para baixo. Em África, esmagou mesquitas e sinagogas. As casas de Agadir e Rabat desmoronaram-se. Argel estremeceu e ruiu. Na distante cidade de Falun, a milhares de milhas de distância, os Suecos aperceberam-se da fúria que no solo se fazia sentir. De repente, os rios da Suíça encheram-se de lama. O lago Neuchâtel galgou as margens. A França estremeceu. Os Alemães ouviram um retumbar ao longe, como se de uma guerra se tratasse. Na Escócia e no País de Gales, as colinas tremeram. Em Lisboa, porém, a Terra escancarou as goelas. Devorou trinta mil pessoas. Desfez as frágeis paredes das casas e destruiu palácios, como se mais não fossem do que cabanas feitas de fósforos. Sacudiu mosteiros. Esmagou as residências de comerciantes. A crosta terrestre estoirou. Um bafo quente ascendeu das profundezas. Pedras derreteram-se. Árvores fenderam-se, portões de ferro forjado entortaram-se. As pinturas de Rubens e de Ticiano nada despertavam à Terra a não ser indiferença, foram por ela atiradas para o fogo. Valiosa loiça chinesa ficou feita em pedaços. No Paço de Bragança, a terra esmagou as joias da Coroa. Do aqueduto, alguma da cantaria caiu de duzentos e noventa e seis palmos de altura e veio parar às águas da ribeira de Alcântara. As mesas de bilhar dos cafés foram esmagadas, como se mais não fossem do que cartas de jogar. As respetivas bolas rolaram pelo chão e desapareceram nas profundezas das fissuras. As figuras de santos nas capelas laterais das igrejas caíram dos pedestais. As fendas que se abriram no chão engoliram as riquezas de Lisboa: marfim, ouro, pedras preciosas. No arquivo real, a história de Portugal foi consumida pelas chamas. As cartas marítimas ficaram reduzidas a cinzas. As casas oscilavam como varas de vimeiro. Depois, as paredes deram de si e as vigas de madeira racharam-se. As pedras dos edifícios caíram nas ruas, já densamente repletas de pessoas. As casas enterraram vivos os seus habitantes. O pó encheu as bocas dos que gritavam, silenciando-as. Os que sucumbiram amontoavam-se nas estreitas ruas, uns sobre os outros, mortos pelas pancadas que os fragmentos da cantaria neles desferiam, sufocados pelo fumo, carbonizados, esmagados, calcados contra o chão. Um fumo negro espalhou-se pelos pátios e envolveu os sobreviventes, até lhes faltar o fôlego. A Terra destruía a grandiosa cidade de Lisboa e reclamava o sacrifício dos seus filhos. 12
O carrasco colocou-lhe a corda em redor do pescoço e disse: –
Misturou sangue cristão com sangue judeu ao gerar uma criança com a judia Durré. Desse modo, violou as leis sobre a pureza do sangue. Tal como Julie Durré, a pena a aplicar será a morte. A multidão grita. A berraria soa-lhe como uma avalanche de pedras. Por baixo dos seus pés abre-se uma portinhola. Sente-se a cair. A corda aperta-se em redor do seu pescoço. Ele sufoca, esperneia e dá pontapés no ar. Ao mesmo tempo, há algo pesado que comprime o seu peito. Antero esbugalhou os olhos. Não havia ali nenhum carrasco. Mas por que razão continuava a sentir-se estrangulado? Donde vinha aquele peso sobre o seu peito? Havia pó por todo o lado. Antero estava deitado no chão, de barriga para baixo. Um peso de toneladas jazia, imóvel, sobre as suas costas e fazia uma pressão tal que lhe diminuía a capacidade de respirar. Um bloco de pedra. Fincou bem os braços no chão e tentou erguer o tronco. O peso da pedra não lho permitia. O terramoto. – Socorro! – gritou, e desatou a tossir. – Socorro! Sendo uma alemã protestante, a cozinheira responsável por Samira não teria ido à igreja naquele manhã do Dia de Todos-os- Santos. No palácio do barão, Samira poderia ter sobrevivido e, tal como ele, estar soterrada. Ou então vaguearia pela cidade ferida, indefesa e amedrontada, a chamar por ele. Nunca como agora precisara ela tanto do seu pai. Voltou a retesar os músculos. Tratou de reunir tudo o que lhe restava em termos de vida e de forças, concentrando-o naquele momento de esforço. Fez força contra o chão até ficar com os braços a doer. A pedra moveu-se. Agora não podia ceder. Fazia inspirações breves e tentava erguê-la e desequilibrá-la para o lado. No entanto, antes mesmo de ter conseguido alcançar metade do que pretendia, perdeu as forças no braço esquerdo. Temendo a morte, Antero fincou bem o braço direito no chão. O bloco de pedra resvalou. Esfolou-lhe as costas, provocou-lhe escoriações na pele, parou por instantes, resvalou novamente. Antero soltou um gemido de dor. O braço tremia-lhe. Então a pedra imobilizou-se no chão, já ao seu lado. Ouviu-se a areia ser esmagada debaixo dela. Antero respirou. Sentiu o sabor do pó. O suor e o sangue escorriam-lhe pelas axilas e pelo tronco. Tentou ver se conseguia distinguir alguma coisa. Vindo de algures, um pálido raio de luz logrou penetrar naquele inferno de pó. Debaixo dele, o chão continuava a produzir um ruído retumbante. Tinha de sair dali. Virou mais a cabeça. Era de acolá que vinha a luz. Uma nuvem de pó foi soprada de encontro a ele. Antero rastejou até junto da luz. Teve de apoiar os cotovelos no chão duro e irregular, e o seu peito ia roçando pelas arestas das pedras por ali espalhadas. Chegou junto de um buraco que, no meio do monte de escombros, não tinha um tamanho maior do que o de um pulso. – Está aí alguém? – chamou ele. Esticou o braço até fora do buraco. – Ajudem-me, estou aqui preso! Uma sacudidela percorreu aqueles escombros. Uma vez mais, reboco caiu-lhe sobre os cabelos. Lá fora continuava a estrondear. Recolheu rapidamente o braço e tentou espreitar para o exterior. Se ao menos não houvesse todo aquele pó! Antero retirou algumas pedras mais pequenas da abertura e fez com que rolassem para trás de si. Ia retirando cada vez mais pedras da fenda. O buraco ia- se tornando cada vez maior e ele conseguiu passar ambos os braços através dele. Com a ajuda dos joelhos, impelia o corpo para a frente. Por fim, logrou passar a cabeça para o exterior. A apertada abertura comprimia-lhe a caixa torácica, mas, se conseguisse empurrar com bastante força, talvez bastasse para ele se libertar. As arestas de pedra esfolavam-lhe a pele. Empurrava, arquejava, esperneava. Apoiou-se nos escombros e tentou levantar o tronco. Conseguiu soltar as pernas. Antero desceu do monte de destroços. A rua estava repleta de pedras. Eram poucas as casas que ainda se mantinham de pé. Entre as ruínas havia pessoas mortas, ali abandonadas como se fossem meros bonecos. Viu algures uma mulher a chorar. Do interior de um monte de destroços, uma cabra conseguira fazer sair a cabeça e as patas posteriores. Soltava balidos transtornados e debatia-se. Tentou encontrar um caminho por entre os escombros. A cada passo que dava, doía-lhe a perna direita, arrastava-a com dificuldade. Era por fixar os seus pensamentos em Samira que conseguia avançar, muito embora o corpo lhe ardesse como se queimado pelo fogo. Por todo o lado, todos aqueles cadáveres! Fitavam-no com um olhar indiferente, os membros torcidos e desarticulados. «Samira está viva», dizia para si mesmo. «Está viva.» E, no entanto, os seus olhos procuravam o seu pequeno corpo por entre os mortos. Uma vez mais falhara, pela segunda vez a pessoa que mais amava era-lhe arrancada das mãos, por ele não ter estado onde devia. Não cumprira a tarefa que lhe cabia. Afinal era ele o responsável pela pequenita! Que lhe iria Julie dizer quando se reencontrassem na vida eterna, como iria ela olhá-lo a direito, depois de saber qual o fim de Samira e que ele não estivera lá presente para a defender? Como se viesse de longe, ouviu-se um ribombar. Eram estrondos subterrâneos. Antero foi lançado ao chão. Aterrou violentamente. Aterrorizado, viu como o solo se deslocava por força das sacudidelas e dos estremecimentos e perto dele abriu-se uma enorme racha. E de novo uma forte pancada. Pedras caíram para o interior da racha. Antero viu-as desaparecerem naquela bocejante bocarra. Rastejou de gatas para longe, tão rapidamente quanto a perna ferida lho permitia. Não havia maneira de o tremor terminar. Queria arrancá-lo e levá-lo consigo para as profundezas. E se aquilo não fosse terramoto nenhum? Seria antes o Juízo Final, o fim do mundo? Todos os justos haviam já sido arrebanhados para junto de Jesus Cristo, para o Céu, onde reinava o riso, a felicidade, a paz. Só ele e as outras almas perdidas e errantes rastejavam ainda pela Terra destruída. No meio dos escombros havia incêndios. As chamas consumiam as roupas, as cortinas e reposteiros, os móveis, as pinturas. Um grupo de aspecto intimidado veio ao seu encontro. Haviam dado as mãos uns aos outros, eram só crianças e adolescentes. No meio deles seguia uma menina nobre com um vestido de damasco verde, que parecia liderar o grupo. Metade da bainha do vestido estava rasgada e pendia. O seu rosto, porém, era o de um anjo em missão de ajuda no meio de uma catástrofe. Se um ser humano como ela ainda por ali andava, então não podia ser o Dia do Juízo Final. Com certeza que ela não se contava entre as almas perdidas. – Vão para a praça do mercado! – berrou ele por cima do barulho que reinava. – Fujam para campo aberto! A menina acenou com a cabeça, em jeito de agradecimento, e prosseguiu com o grupo de crianças, que iam choramingando. Leonor ouvia gritos de socorro vindos dos destroços. No entanto, continuou a caminhar apressadamente. Em redor dela havia homens com os ventres rasgados, mulheres com membros esmagados, crianças que gritavam. De cada vez que via alguém assim, ficava convencida de ter visto Dalila entre os mortos. Dalila ficara em casa. Não havia pronunciado uma palavra que fosse desde o pequeno-almoço. Só quando Leonor lhe perguntou se ela não os acompanharia à igreja é que esta lhe respondeu que ficaria junto de Samira. – Mas ainda cá estás quando voltarmos? – perguntara-lhe Leonor. Dalila encolhera os ombros. Não deveria ter incitado Nicolau Fernandes em relação à irmã, mas o certo é que Dalila tinha começado a apaixonar-se por Antero, o único homem, entre os seus admiradores, em quem ela estava realmente interessada. Ao longo das últimas semanas ela comportara-se de modo estranho, próprio de quem está enamorada. Já pouco comia, à noite eram longas as horas que a luz se mantinha acesa no seu quarto, e quando Antero lá ia a casa, pior ainda, a irmã fitava-o o tempo todo ou então ficava a chorar na sala contígua, enquanto eles os dois conversavam. As coisas não poderiam continuar daquela maneira! Há muito que o arquiteto andava a tentar conquistar os favores dela, Leonor. E, de aspecto, Dalila era tal qual ela. Não fora necessário mais do que rejeitar definitivamente Nicolau Fernandes, indicando, no entanto, que a sua irmã gémea estaria disponível. Que a notícia de um casamento forçado iria abalar bastante a sua irmã era algo perfeitamente previsível. Agora o facto de a terra se abrir em dois, logo naquele dia em que Dalila se deixara ficar em casa, isso era algo que ninguém poderia ter previsto! Leonor limpou o pó do rosto. Estava molhado. Devia ter começado a chorar, mesmo sem dar por isso. «Estás a ver», pensou ela, «agora já estou a chorar por causa de ti, minha irmã parva.» Iria fazer Dalila pagar aquilo bem caro. Até lhe deveria ficar agradecida por ir receber de mão beijada um homem como Nicolau, logo ela, que era tão desajeitada naqueles assuntos. Leonor entregara-lho, para mais um homem que se dedicara inteiramente a ela. Havia mulheres que, diante de casas arrasadas, andavam de um lado para o outro e, em desespero, chamavam pelos nomes dos seus familiares. Havia homens que tentavam combater as chamas que se erguiam das ruínas em enormes labaredas. Havias burros que zurravam e cavalos feridos, que, desorientados, reviravam os olhos. Os sismos recomeçaram. E de novo voltava a reinar a confusão. Os pais perdiam o equilíbrio. As crianças caíam ao chão, as paredes eram destruídas, chafarizes, armazéns e casas de habitação ficavam destroçados. Leonor esperou por uma breve interrupção entre os abalos para conseguir continuar a avançar. Onde estava a sua casa? Deveria estar ali, a meia altura daquela encosta. Ergueu-se do chão e fixou o olhar nas imediações. Berrou bem alto o nome de Dalila. Correu até junto dos escombros. Deteve-se à beira daquele amontoado de pedras. Onde estavam todos? Com certeza tinham fugido com medo do terramoto. Deviam tê-lo feito. – Dalila! – chamou. De todo o lado vieram, como resposta, as lamentações de feridos que gemiam. Leonor olhou para baixo. Aos seus pés viu os contornos de um ombro negro e uma cabeça coberta com cabelo crespo. O resto do corpo encontrava-se coberto por pedaços de entulho. Acocorou-se. – Jerónimo? – tocou-lhe na cabeça e viu que tinha sangue. Abanou o ombro do ferido. – Jerónimo! Um gemido. Jerónimo mexeu-se. Foi a custo que se ergueu. Das suas costas caíram pedras para o chão. – Menina Leonor. Devo ter caído ao chão. A minha cabeça – tocou nas fontes e de seguida olhou em redor. – Oh, Deus. O palácio! – Quem estava lá dentro quando a casa se desmoronou? – perguntou ela. – Não sei. A cozinheira descascava maçãs. Eu depenava um galo silvestre. Para o almoço – levantou as mãos. Ainda tinha alguma penugem lá colada. – A pequenita estava a tomar banho. Acho que a sua irmã, a menina Dalila... – olhou para os escombros. – Ela estava junto da Samira. Leonor sentiu um arrepio. – Vais ajudar-me. Vamos afastar as pedras. Subiu para o monte de destroços e de lá ergueu uma pedra. Arrastou-a, empurrou-a, e ela foi parar lá abaixo. Jerónimo imitou-a. Voltou a subir e ergueu nova pedra. Iria tirá-las todas, uma a uma. Não descansaria até que a última dali tivesse sido removida. Na sua mente, imaginava cenários terríveis. Via-se a si mesma a levantar parte daqueles destroços, e por baixo surgir o rosto de Dalila, imóvel e empalidecido, os olhos esbugalhados, a boca aberta, como para lançar um grito. Com os braços envolveu um grande pedaço de entulho. Doeram- lhe as costas quando o ergueu. De imediato teve de deixá-lo cair, era demasiado pesado. O que era aquilo que, naquela brecha ali, estava a brilhar? Estendeu a mão para a alcançar. A caixinha de prata em forma de noz! As suas luvas! Haviam sido confecionadas com a pele de um vitelo ainda por nascer, luvas leves e de textura suave, para o fabrico das quais fora preciso sacrificar uma vaca prenhe e a sua cria. E por isso mesmo tinham sido caras. E por isso eram tão finas, a ponto de caberem numa casca de noz. Leonor adorava-as. Guardou a noz na bolsa que trazia à cintura. «A Dalila a sufocar debaixo dos escombros», segredava-lhe uma voz no seu interior, «e tu à procura dos teus pertences. Tal pai, tal filha.» – Jerónimo! – chamou ela. – Ajuda-me a erguer esta pedra! Temos sobretudo de remover as maiores! Jerónimo veio até junto dela. Agarrou na pedra. Também Leonor ajudou a segurá-la e, ao fazê-lo, chegou-se tão próximo do criado que conseguia aperceber-se do cheiro da sua transpiração, vendo a testa negra brilhar bem diante do seu rosto. Ele abanou a cabeça. – Deixe isso, não é trabalho para uma senhora. Ela largou a pedra e ele levantou-a e carregou-a dali para longe. Jerónimo tinha os ombros largos e era um homem forte. Para ele a pedra não seria decerto assim tão pesada. Uma almofada azul! E aquilo ali debaixo não era a duquesa de Dalila? No peito de Leonor o coração desatou a bater com mais força. – Jerónimo! – exclamou ela. – Aqui! Iriam conseguir encontrar tudo: os livros, os vestidos, a cama de Dalila. E no meio de tudo isso também a irmã. O escravo olhou para a duquesa, praticamente destruída. – Dalila estava na cozinha com Samira – disse ele. – Temos de procurar noutro lugar. Ali adiante – apontou para outro monte de escombros, mais alto. Leonor trepou por ele. Reparou numa enorme pedra entre os escombros. Teve um mau pressentimento ao vê-la, como se soubesse que debaixo se escondia algo terrível. Chegou-se junto dela: «Mataste a minha irmã», pensou. Uma pedra caída da parede, a mesma que durante todos aqueles anos as havia protegido da chuva e do vento. Uma pedra que, em silêncio e sem resmungar, sempre cumprira a tarefa que lhe fora atribuída. Algo deveria tê-la ofendido. – Tenha cuidado – avisou Jerónimo –, há aqui vidros. Das vidraças das janelas, que se partiram. Leonor abraçou a pedra e, com toda a sua força, tentou movê-la. Queria fazê-la rolar para o lado. Não conseguiu. Voltou a assumir a posição em que estava. Então surgiu um segundo par de braços, braços negros que a ajudaram a segurar na pedra. – Quando eu disser três – anunciou Jerónimo. – Um, dois, três! Juntos levantaram o bloco em altura, deram um passo com ele nas mãos e logo o largaram, deixando-o rolar pelo monte de escombros abaixo. Das ruínas da casa vizinha chegava até eles uma nuvem de fumo. Havia ali um incêndio a lavrar no meio dos destroços. Leonor olhou para baixo. Da fenda que tinham posto a descoberto ao retirar a enorme pedra havia um rosto que a observava. Uma boca fina e de aspecto severo. Olhos azuis. A pele sobre os ossos malares esticada como se fosse pergaminho. A cozinheira não pestanejava, embora parecesse que ainda estava viva. Não mexia a boca nem a mão que, junto ao rosto, descansava entre as pedras. Os tremores que Leonor constantemente sentia sob os pés converteram-se em abanões e sacudidelas. Esticou os braços para conseguir manter o equilíbrio, mas ainda assim caiu e esfolou o joelho nos ásperos destroços, a ponto de fazer sangue. Também Jerónimo foi lançado ao chão. Leonor agarrou-se aos escombros. O estremecimento da terra atirava-a contra as pedras. Levantavam-se nuvens de pó, que se misturavam com o fumo dos incêndios. Um pouco mais adiante havia edifícios que, entre rangidos e estrondos, caíam sobre si mesmos. Por todo o lado, pessoas gritavam, produzindo sons altos e agudos. Pareciam chamamentos de animais. Soavam a dores tremendas, a medo de morrer. – Dalila – gritou Leonor –, se ainda estiveres viva, não tenhas medo! Vou buscar-te! Por fim, o sismo deixou de causar o seu retumbante efeito. Ainda desconfiada, Leonor ergueu-se e ficou à espera, mas não voltou a ser derrubada. Trepou até ao cimo e arrastou uma pedra para a orla do monte de escombros. Pegou numa outra e em mais outra ainda. Também Jerónimo levava dali pedras. Sob um desses pedaços de destroços encontrou Leonor o fantoche da pequenita. Era agora composto por duas partes, as pernas haviam-lhe sido decepadas. Se os brinquedos estavam aqui e Dalila se encontrava junto da menina, então não deveria tardar a encontrar a irmã. Iria conseguir libertá-la antes de a terra voltar a tremer. – Aqui mais adiante – disse ela –, aqui é que há de ser. – Chiu – fez o escravo. Ergueu-se e, com um ar fatigado, olhou para o vazio. – Ouça isto? Leonor pôs-se à escuta. Ouvia-se um barulho proveniente dos escombros. Soava a um gemido. – Aqui – indicou Jerónimo, apontando para um pouco mais adiante e pegando numa pedra. Leonor correu até junto dele e também ela afastou uma. Trabalhavam como que em êxtase. Atiravam as pedras para trás de si e empurravam-nas do monte de destroços para baixo. Quando conseguiram desimpedir um pouco, Jerónimo inclinou-se para o interior da abertura e gritou: – Alguém me consegue ouvir? Silêncio. Depois, hesitantemente, num tom que denotava uma incrédula esperança, ouviu-se por entre as pedras: – Jerónimo? Estou aqui! Não consigo respirar. A voz de Samira! Uma vaga de calor, um misto de dor e alívio, perpassou Leonor. – A Dalila está contigo? – perguntou. – Sim. És tu, menina Leonor? – Sou eu! Aguenta um pouco! Vamos buscar-te. Aguenta só mais alguns momentos! Retirou uma pedra e lançou-a sobre a borda do buraco que ali haviam aberto. A próxima era demasiado pesada para poder repetir o gesto, limitou-se a erguê-la até à borda e empurrou-a, escorregando esta sozinha monte abaixo. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Afinal, eram irmãs! Jerónimo trabalhava em conjunto com ela. Levava as pedras para baixo. Os blocos mais pesados eram transportados em con-junto por ambos. Quando uma vez mais ergueram um enorme pedaço de entulho, um corpo surgiu por baixo deles. Leonor largou de imediato o que carregava. Jerónimo foi incapaz de o segurar sozinho e caiu juntamente com o bloco de pedra. Ela nem ligou. Leonor ajoelhou-se e afagou o corpo que ali jazia. – Dalila – disse ela –, já tirámos os destroços, já aqui chegámos! As costas de Dalila estavam quentes. Porém, ela não se mexia. No seu corpo havia feridas por todo o lado. Leonor abanou o ombro de Dalila. – Acorda, irmã. Tens de acordar! O corpo dela estremeceu. – Dalila? Estava deitada sobre a barriga, as costas esmagadas, o rosto virado para o lado, hirto. Da sua cabeça brotava sangue. Mas não podia ser uma ilusão, as costas destroçadas estavam a mexer-se. Levantaram-se um pouco. – Jerónimo? – disse uma voz fininha. O escravo acercou-se impetuosamente, empurrou Leonor para o lado e ergueu o corpo de Dalila. – Ela está aqui – afirmou ele. – Está debaixo dela. Leonor levantara-se e limitava-se a fitar o corpo que, como que por encanto, se mexia. O escravo ergueu Dalila. Depositou-a sobre as pedras. Tinha a zona do abdómen encharcada. A água pingava do seu vestido. Ali estava ela, Samira. Acocorada na tina de madeira, as pernas recolhidas e os joelhos encostados à barriga, a tremer. Na água da tina misturavam-se a espuma do sabão e o pó. Estava vermelha, manchada de sangue. – Não quero brincar mais – disse a pequenita. Jerónimo retirou-a do interior da tina. Despiu a casaca do seu uniforme e com ela esfregou Samira até esta ficar seca. Limpava a água e o sangue. A criança estava incólume, os braços, as pernas, nem um único ferimento. O sangue deveria ser todo de Dalila. Leonor olhou para a irmã. «Dalila está morta», pensou. No entanto, aquele era um pensamento que não conseguia entender. A ideia permanecia nela como algo estranho, frio, como se fosse uma coisa que só pudesse acontecer a outra pessoa qualquer. Jerónimo pegou em Samira ao colo e pressionou-a contra o peito. – Estás gelada! Toma, veste isto. Depositou-a no chão, despiu a camisa sem a desabotoar e enfiou- a no corpo da menina. Dava-lhe pelos pés. Os braços de Samira rodearam o pescoço de Jerónimo. Aconchegou o rosto no pescoço dele. – Tenho medo – disse ela. – Agora estás em segurança. Ela ergueu a cabeça. – A casa caiu. – O senhor barão volta a construí-la. Soltou-se dos braços dele, correu em direção ao cadáver e tocou- lhe. – Menina Dalila, o jogo já acabou. Já não precisas mais de ficar quietinha. Leonor acordou da sua imobilidade. Também ela se aproximou do cadáver. Com a voz embargada, perguntou: – Que jogo? Samira não ligou a Leonor. Continuou a falar com a morta. – Da próxima vez que eu tomar banho podemos voltar a brincar a este jogo, está bem? Por favor, volta a mexer-te. Agora não quero continuar a brincar. – De que estás a falar? – perguntou Leonor. – Brincámos às cavernas. Ela pôs-se assim por cima da tina, como se fosse um telhado, e eu não podia fazer-lhe cócegas nem molhá-la, tinha de ficar muito quietinha. Ela disse que, quando estamos numa caverna, por vezes faz muito barulho, mas que eu não devia ter medo. Mesmo assim, tive um bocadinho. Um calafrio percorreu as costas de Leonor. Teria Dalila amado assim tanto aquela criança ilegítima? Provavelmente não sabia que o resultado ia ser tão terrível. Não pensara que iria morrer, de certeza que não admitira isso. Leonor sentia-se sufocar, parecia-lhe que lhe tinham enfiado uma rolha na garganta. Samira sacudiu o ombro da morta. – Dalila, já não quero brincar mais. Olha só, a casa está toda estragada, temos de construí-la outra vez! Jerónimo acocorou-se junto dela. – Ela não te consegue ouvir. Ela morreu. De olhos muito abertos, Samira olhou para ele. No seu rosto lia-se uma expressão de terror, uma certa frieza que não deveria existir no rosto de uma criança. – Assim como a minha mamã verdadeira? Ele acenou afirmativamente com a cabeça. Ela olhou para o interior da tina. – Este sangue é dela? Jerónimo tomou-a nos braços. A pequenita, porém, não se rendeu ao seu abraço, permaneceu rígida. Se ao menos chorasse, se negasse que aquilo tinha acontecido! Mas manteve-se em silêncio e enterrou o sofrimento no seu âmago. Aquela criança já suportara muita coisa. Demasiada. – Samira, conheço muito bem a minha irmã – disse Leonor. – Conheço-a desde que vim ao mundo e isso já foi há bastante tempo. Por isso quero dizer-te uma coisa. – O quê? – Samira pronunciou estas palavras pouco mais alto do que se tivesse respirado. – Ela hoje fez por ti uma coisa muito importante. Ela gostava muito de ti. Então a pequenita começou a soluçar. Lágrimas corriam-lhe ao longo da face. Chorava cada vez mais alto. Na sua fraca voz podia ler-se a dor da perda. Jerónimo tomou-a nos braços e levantou-se. Ia-lhe dando pancadinhas nas costas tentando acalmá-la. Leonor acocorou-se junto da irmã. Dalila tinha ainda posto aquele colar ridículo, por muito que Leonor lhe tivesse dito que os elos dourados fininhos não lhe ficavam bem, que o melhor era ela usar prata, só que Dalila não quisera saber. Leonor retirou-lhe o colar do pescoço. – Ficas bem melhor assim, irmãzinha. Acredita em mim que ficas. Todo o vigor desaparecera do rosto de Dalila. A irmã dera tudo por tudo para salvar uma criança. Era algo que condizia com ela. Sempre fora a boazinha, aquela que fazia sempre o bem, aquela que rezava com frequência e que se dedicava a leituras edificantes. Como se estivesse muito longe, ouviu Jerónimo a consolar a criança. Inclinou-se para a frente e beijou a testa ainda quente de Dalila: – Desculpa-me. Nunca te disse o quanto gosto de ti, Dalila. Leonor colocou o colar dourado em redor do pescoço. Era o legado de Dalila, que era, de elas as duas, a boazinha. Dalila era aquela que ajudava os outros. Agora deixara de existir. Leonor iria ter de se esforçar por aprender as aptidões de Dalila, todas as coisas que até agora desprezara. Sem que antes se tivesse dado conta disso, o certo é que devia o seu egoísmo e as liberdades de que gozava à irmã; por Dalila ser a sensata, Leonor pudera ser a insensata; por Dalila ser a conciliadora, Leonor tinha sido a zaragateira; por Dalila ter amado os pobres, Leonor desprezara-os. «Quem sou eu agora?», perguntou Leonor. Já não tinha uma irmã. Estava sozinha no mundo com o pai, que trabalhava o dia todo, e a mãe, que fugira dele e que jamais voltara a casa, muito embora jamais se cansasse de prometê-lo. Albergava agora no seu interior um enorme pesar, e suspeitou de que esse pesar sempre lá estivera, já desde a infância, mas que simplesmente se limitara a tentar fugir-lhe. – É este o pesar que sempre sentiste, irmã? – murmurou ela. – Agora também eu consigo senti-lo. 13
Ainda ao longe conseguia ver que o Palácio Oldenberg já não
estava de pé. Antero seguia a coxear, trepava por cima das mesas de negociantes que haviam sido derrubadas e atravessava nuvens de fumo negras. Ia vendo diante de si imagens de Julie, como esta depositava a pequenita nos seus braços. Fora pouco depois do nascimento que pegara em Samira pela primeira vez. Era tão levezinha, tão suave! «A nossa filha, Antero», havia dito Julie. Ao longo de vários anos fora por Samira que sempre regressara a Lisboa, para a ver e para, através de intermediários, entregar ao barão dinheiro para a ter com ele. Durante anos, colocara em risco a sua própria vida… e a dela também. «Vou buscar a pequenita e tirá-la de lá», pensou Antero, «e depois arrumo-te de vez, Gabriel Malagrida. Vais pagar pelo facto de Samira ter crescido sem eu poder estar presente e, pior ainda, sem a sua mãe.» Parou, espantado. Havia ali pessoas. Aquele não era Jerónimo, o escravo que sempre lhe abrira a porta de casa? Trazia alguém nos braços. Samira? Estava viva! Ele trazia-a ao colo, ela estava a chorar, Antero conseguia ouvir o tom agudo da sua voz de criança. Quando se chegou mais perto, de repente o choro parou. Ouviu Samira chamar: – Papá! Ela desatou a espernear, o escravo, estupefacto, pousou-a no chão e a criança correu na direção dele. Antero curvou-se e recebeu-a nos braços. Pressionou o rosto humedecido pelas lágrimas contra o seu e, simultaneamente, riu e chorou. – Minha querida Samira. – Caiu tudo ao chão – soluçou ela. – Fazia muito barulho, mas a Dalila protegeu-me. Agora há sangue por todo o lado! Pensei que estávamos a brincar às cavernas, mas afinal não era um jogo. Ela tomou conta de mim, para que nada me acontecesse. – O gesto dela foi muito corajoso. – Não queria que nenhuma pedra me acertasse, mas depois acertaram nela – a pequenita fez um ar assustado. – Bento! Onde está ele? – olhou em redor. – O Bento ficou debaixo da casa! – correu para junto dos destroços. – Bento, estás a ouvir-me? Tens de ladrar para te conseguirmos encontrar! E ali vinha Dalila. Trazia ao pescoço o colar dourado, tal como quando se haviam beijado. Na ausência de Julie, Dalila zelara pela pequenita. Antero começava a sentir alguma ternura em relação a esta mulher, pela primeira vez, desde que Julie morrera, sentia na barriga algo estranho. – Muito obrigado, Dalila – disse ele. – Não faz ideia do quanto significa para mim que tenha salvo Samira. A reação dela foi de perplexidade. – Eu... Eu não sou... – Não lho podia dizer. Samira é minha filha. Por favor, jure-me que guardará para si este segredo! Tinha de mantê-la escondida. O olhar de Dalila estava repleto de dor. Manteve o silêncio por alguns instantes. Depois disse: – Sim. – Obrigado por tudo aquilo que fez. – De todas as vezes que aqui esteve foi pela pequenita, não pela... minha irmã? – perguntou Dalila. Ele baixou o olhar. – Precisava de uma razão para fazer estas visitas. Não podia dizer que sou o pai de Samira, tê-la-ia posto em perigo. Mas não tardará a ficar tudo resolvido. Antero fitou-a. Sem dizer palavra, Dalila acenou afirmativamente com a cabeça. Leonor teria dito mil palavras. Dalila, porém, aceitou com tranquilidade a nova situação, todas as mentiras que ele dissera. Conseguia agora olhar diretamente para o coração dele e perceber que fora por amor a Samira que Antero agira assim. – Sentir-se-ão mais tremores de terra no decurso do dia – disse ele. – Será melhor que deixe a cidade. Não posso acompanhá-la, preciso de ir ter com um velho amigo e de tentar falar com o rei. Repito-lhe, mil vezes obrigado pelo que fez. Espero poder um dia demonstrar-lhe o meu reconhecimento. Samira estava acocorada diante de um grande bloco de pedra e tentava erguê-lo. Antero chamou-a. – Anda comigo, o Jerónimo vai procurar o Bento. – Eu prometo – disse o escravo. – Vou procurar o teu cão. – Bento! – voltou Samira a chamar. Pôs-se à escuta e, ao ver que não tinha resposta, correu para Antero e deixou que este lhe pegasse ao colo. Após cinquenta ou cem passos, voltou-se. Dalila estava de pé no mesmo sítio, ficara a vê-los afastarem-se. Os outros cães continuaram. Bento ficou parado no cimo do monte e olhou na direção da cidade, donde tinham vindo. Colunas de fumo negro ascendiam para o céu. As casas estavam destroçadas. Não era capaz de distinguir o mal, era invisível. Atravessava as ruas, matava, sem que se conseguisse abocanhá-lo. Fugir fora a decisão mais acertada. O mal queria apanhá-los. Andava debaixo da terra, percorria-a e rosnava. Lá de baixo, não parava de dar pancadas no solo, como se quisesse furá-lo à cabeçada, para tragar e devorar um deles. Depois, eram derrubados e caíam, e mesmo quando tentavam saltar para fugir a força do mal teimava em deitá-los ao chão. Porém, este não cuspia monstro algum. O mal permanecia escondido. Odiava e temia este inimigo que não conseguia ver. Bento farejou o cheiro da fuligem. Farejou pó de pedra. O mal voltou a rosnar-lhe debaixo das patas. A perseguição ainda não havia terminado. Teria de voltar para junto dos outros cães. No meio da matilha, sentia-se mais seguro. Como ele sentia saudades da sua antiga matilha, sobretudo da sua pequena dona! Lançou um último olhar sobre a cidade. Levantou-se um vento que espalhou as colunas de fumo. A luminosidade avermelhada no extremo norte aumentou de intensidade. O vento atiçava o fogo. Agigantou-se e assumiu a forma de um misto de chuva de faúlhas e crepitantes labaredas que cilindravam tudo por onde passavam. O mal percorria as ruas, arruínara casas e igrejas, e punha as pessoas a correrem à sua frente. Quem conseguiria dominá-lo? Não havia matilha, por muito forte que fosse, que lograsse fazer frente a tal inimigo. O pai arrepelava os cabelos. Corria de um lado para o outro diante do armazém e berrava para as pessoas que iam a fugir: – Tragam para cá toalhas molhadas! Precisamos imediatamente de toalhas molhadas! Eu pago-lhes, não está a ouvir? Vão receber dinheiro por umas simples toalhas! Ninguém escutava o que ele dizia. Leonor sentia um aperto nas entranhas por ver o desespero em que o pai estava. – Pai – disse ela –, tenho más notícias. – Já sei que os outros armazéns foram destruídos, Leonor. Este é o último que ainda está de pé. E já começa a arder ali! – Apontou para dois edifícios mais adiante. – Como hei de eu conseguir deter aquilo se o prédio vizinho não tarda a incendiar-se? Deus do Céu, como estou contente por as oito mil sacas de trigo siciliano ainda não terem chegado ao porto! Mas esta madeira de pau-brasil perde- se toda, se o armazém pegar fogo. Percebes? O armazém é um enorme barril de pólvora, um convite à mais pequena faísca! Temos de molhá-lo. O edifício tem de ficar bem encharcado de fora, senão estamos perdidos! – Estive em casa – disse ela. – Para ver da Dalila. Flocos de fuligem pairavam no ar diante deles. O vento espalhava faúlhas ao longo da rua. Ouvia-se um perigoso crepitar vindo da casa à esquerda do armazém. – Maldição! – gritou o pai. – Estás a ver isto? Ali já está a arder! E nós ficamos aqui parados. – Despiu a casaca debruada a ouro e arrancou rumo à porta do prédio vizinho. Sem sequer hesitar, irrompeu por ali adentro. Leonor apressou-se a correr atrás dele. No interior, havia já um fumo bastante denso. Algures, coisas crepitavam e ardiam. – Pai? – chamou ela. Ficou à escuta. Alguém estava a bater em alguma coisa. Deixou- se orientar pelo som e deu com o pai no meio de fumo denso, diante de um banco acolchoado. Estava ali de pé, de pernas afastadas, e com a casaca tentava apagar as chamas. – Vá, zarpem daqui! – gritava ele. – Não há aqui nada para consumirem! Ela segurou-o pelos ombros e puxou-o para trás. – Temos de sair. Queres morrer sufocado? O pai tentou livrar-se, mas ela voltou a agarrá-lo. Ele arfava e estava já encurvado. O fumo tinha já começado a intoxicá-lo! De forma decidida, puxou-o para a porta. Não iria permitir que o pai morresse ali. – A Dalila está morta – disse ela quando chegaram lá fora. – Encontrámo-la entre os escombros. – Onde esteve este tempo todo, homem? – berrou o pai. Confusa, Leonor seguiu o olhar dele. O fiel do armazém vinha a descer a rua, acompanhado de três escravos. – Isto aqui vai começar a arder a qualquer instante – disse o pai. – Vamos esvaziar o armazém. O pau-brasil é demasiado pesado, o que é uma desgraça. Quero que vão lá buscar uns caixotes de tabaco – apontou para um dos escravos e prosseguiu: – Tu vais buscar uma pipa de gordura de baleia derretida. Depois desta catástrofe tudo vai ficar mais caro, até mesmo o sabão. É sempre boa ideia ter muito por onde escolher. Leonor, numa situação destas até mesmo uma mulher tem de pôr mãos à obra. Vai buscar um saco de arroz. Vá, adiante! Apressou-se a entrar no armazém. Será que não ouvira aquilo que ela lhe dissera? Leonor correu atrás dele e dos outros homens. No interior do armazém, estava tudo tranquilo não havia fumo. Sentia-se como se tivesse penetrado numa espécie de libertadora caverna, um lugar capaz de protegê-la de todo e qualquer infortúnio. As prateleiras onde se guardavam os produtos entregavam-se a um sono profundo: eram caixotes, embrulhos, fardos de lã por cardar, pipas com azeite, açúcar em cones. Havia escadas que conduziam aos andares superiores. Por todo o lado, o aromático cheiro do tabaco. Através das clarabóias entrava alguma luz e também faúlhas, vindas do exterior, conseguiam entrar. – Pai, a Dalila morreu – repetiu ela. – Não ouviste o que te disse? Olhou brevemente para ela, de seguida acenou com a cabeça, de um modo quase impercetível. Seguiu em frente, para dar ins-truções aos escravos. «Está a fazer como eu durante todos estes anos», pensou ela. «Reprime a dor por não conseguir aguentá-la.» Talvez tivesse herdado dele essa característica. Também ela optava por não pensar em Antero e no facto de este não a amar. Não queria pensar em Dalila, que jazia no meio dos destroços, cujo cadáver era vigiado apenas por Jerónimo e que não mais se mexeria. Leonor chegou-se junto de um carregamento de pau-brasil e afagou a casca vermelha. A madeira das árvores do Brasil era cara e era a elas que a colónia portuguesa devia o seu nome. Do pau- brasil extraía-se um precioso corante vermelho usado na indústria têxtil, mas acima de tudo era com ele que os marceneiros construíam valiosas peças de mobiliário, muito cobiçadas pela nobreza e pelos comerciantes. Peças de mobiliário como a duquesa de Dalila. Iria mandar restaurá-la e atribuir-lhe um lugar de honra nos seus aposentos. De cada vez que se sentasse nela pensaria na irmã, e de cada vez desejaria ter passado mais tempo com ela, tê-la interrompido aquando das suas leituras para conversarem um pouco. «Será que alguma vez abracei a minha irmã?», perguntava-se. Não conseguiu lembrar-se e de imediato sentiu uma grande tristeza, pois nunca antes o havia feito, tal como tantas outras coisas para as quais era agora demasiado tarde. – Não fiques aí parada! – ralhou o pai. – Não temos tempo a perder! Leonor dirigiu-se para junto do arroz. Nas sacas, escrito em letras grandes, podia ler-se Carolina Rice: era arroz das colónias britânicas da América do Norte. Tentou levantar uma das sacas. Esta nem sequer se mexeu. Assim sendo, tratou de rasgá-la e, sem quaisquer rodeios, lançar fora uma parte do conteúdo. Grãos de arroz espalharam-se pelo chão. – Que estás tu a fazer? – gritou o pai, horrorizado. Leonor pegou na saca já só semicheia e colocou-a às costas. Assim já conseguia carregá-la. Seguiu o escravo, que levava uma pipa aos ombros. Avançava com os joelhos fletidos. A gordura de baleia ali contida deveria ser pesada. Atrás dela iam o pai e os outros com grandes caixotes de tabaco. – Para onde? – perguntou ela, soltando um gemido. – Para a praça do mercado – respondeu o pai. – Aí o fogo não vai chegar. – Sabia sempre o que se devia fazer. Tomar decisões astutas era com ele. Foram uns atrás dos outros. Cada um afadigava-se com o peso que carregava. Onde os destroços cobriam a rua, o escravo que seguia diante dela tentava encontrar o caminho por entre os blocos de pedra. Leonor observava os seus pés e pisava exatamente no mesmo sítio que ele. O escravo estava habituado a carregar coisas e a andar a pé, saberia bem quais os pedaços de escombros que lhe ofereciam segurança e aqueles em que poderia escorregar e cair. Os edifícios em redor da praça do mercado ardiam. O Paço da Ribeira. A Alfândega. O Arsenal de Guerra. A praça estava repleta de pessoas. Os feridos graves gritavam. De crucifixo em punho, um sacerdote andava de grupo em grupo e ouvia as confissões dos moribundos. Entre os feridos e os desesperados, Leonor reconheceu D. João de Bragança, o primo do rei. Distribuía cobertores e ajudava os soldados a fazer ligaduras aos feridos. Conhecia-o bem, tal como a todos aqueles que eram objeto das suas actividades de espionagem. Sabia que ele usava elixir bucal, ao qual era acrescentado cravinho oriundo das Molucas. Tinha conhecimento da habitação que ele secretamente possuía na cidade, para onde se deslocava quando não pretendia ser incomodado, a antecâmara, a sala de jantar, a sala de convívio para o verão, a sala com aquecimento para o inverno, os aposentos com o quarto de vestir, o pequeno gabinete com biblioteca. Para quem ela trabalhava, isso ele não sabia. Uma vez, naquele mesmo gabinete com biblioteca, tinha-lhe até contado por que razão não tinha um jesuíta como seu confessor. – Recuso-me a aderir a esta moda! Por que razão haveria um jesuíta de estar mais capacitado a trabalhar com a consciência? – Mas toda a gente está de acordo com isso… – comentara ela. – Essa reputação deve-a a Companhia de Jesus unicamente ao facto de os seus confessores disporem de mais tempo do que os padres comuns, que, nas suas dioceses, prestam assistência a milhares de fiéis. As pessoas normais confessam-se uma vez por ano, antes da Páscoa. Os penitentes ricos, os que têm um jesuíta como confessor, dedicam-se todas as semanas a esta prática, para melhorarem. É essa a diferença. – Pode ser. O certo é que eles ajudam os penitentes que os consultam a trilharem o caminho rumo à perfeição, e que nisso são bastante bem-sucedidos. – Não tenho assim tanta certeza. Sabe, para a nobreza, como de resto com frequência acontece, conta mais o aspecto exterior. Ter um jesuíta como confessor concede a reputação de se ser uma pessoa espiritual e moralmente honesta ou de, pelo menos, estar a caminho desse estado. Sou contra esse tipo de fingimento. Não preciso de jesuíta algum como confessor só para ficar bem visto e porque toda a gente o faz! Leonor sentiu vergonha de estar a carregar uma saca de arroz enquanto João de Bragança ajudava as outras pessoas. Se fosse Dalila, iria imediatamente ter com ele. A meio da praça havia homens de uniforme azul a amontoarem caixas, presumivelmente de pólvora, provenientes do Arsenal de Guerra, e espingardas. Alguns dos soldados haviam perdido as suas perucas. Outros usavam-nas mas não tinham tricórnio com penas. Ainda assim, o facto de serem vistos produzia um efeito calmante. – Para ali! – ordenou o pai. Foi junto dos soldados que depositaram aquilo que carregavam. O pai foi falar com um sargento e entregou-lhe um saquinho com moedas. O militar acenou afirmativamente com a cabeça. – Deixamos ficar isto tudo aqui – anunciou o pai. – Regressemos ao armazém. A caminho assistiram a uma rixa. Um protestante, que já antes haviam visto em casa do cônsul-geral britânico, foi obrigado a beijar a imagem de um santo, o povo não admitia que ele se negasse a fazê-lo. – É graças à tua descrença que temos de passar por esta provação! – gritou um daqueles que o atormentavam. – Os protestantes são uma vergonha! O pai conduziu os escravos e o fiel do armazém para longe daquele ajuntamento. – Ainda temos de ir e vir pelos menos umas dez vezes. Quero que todo o tabaco seja trazido intacto para a praça do mercado. Tal como as coisas estão, as perdas são já devastadoras. Tiveram de lutar para avançar por entre o fumo denso e os destroços. A caminho, Leonor foi acometida de um ataque de tosse. O ardor que sentia na garganta não diminuía de intensidade. Tossia tanto que julgou que os pulmões acabariam por lhe sair pela boca. Os escravos ampararam-na e ajudaram-na a prosseguir. E depois detiveram-se. Haviam chegado ao destino, só que o armazém já ardia. Os bens do pai estavam a ser consumidos pelas chamas. Ele emudecera. Olhava para as labaredas, em silêncio. Não tinha de dizer fosse o que fosse. Leonor sabia: ele já não podia esquivar-se mais, pensava na sua filha Dalila. Pessoas de todas as classes sociais procuravam refúgio no Terreiro do Paço. Nenhuma delas estava completamente incólume. Fidalgos ricos eram amparados por peixeiras, operários seguravam a mão de funcionários públicos moribundos. Antero abordou um homem com grossos braços que havia salvo uma criança de ser consumida pelas chamas. Deveria ser um estivador. – Teria a bondade de tomar conta da minha filha por uns instantes? – Pode ser – respondeu-lhe o outro. Antero acocorou-se diante dela. – Samira, tenho de ir falar com um velho amigo. Estou de volta não tarda. Prometes-me que ficas aqui, junto deste homem? Os olhos de Samira arregalaram-se de medo, mas disse que sim com a cabeça. Ia sendo tempo. De todas as janelas do palácio brotava já um fumo denso. Diante das portas já não se viam guardas. Uma vaga de calor tomou Antero de assalto. Levou uma das mangas à boca e entrou na biblioteca, que começava a ser consumida pelas chamas. A pele da sua cabeça retesou-se. Sentiu uma dor na ponta dos dedos, como se estivesse a pegar diretamente em brasas incandescentes. Por breves instantes, afastou a manga e chamou: – Vasco! Os livros ardiam, produzindo chamas brancas e de um amarelo- azulado. Era como se todo aquele espaço fosse apenas fogo: as paredes, o teto e as estantes alimentavam labaredas. Vasco correu na direção das estantes, retirou de lá um livro, bateu com ele contra o próprio corpo, para apagar o fogo que o consumia, e levou-o para o meio da sala, depositando-o sobre um pedaço de serapilheira, onde já se acumulavam alguns livros chamuscados. Antero apressou-se a ir ter com ele. – Vasco, vamos embora daqui! – Só mais um! O bibliotecário precipitou-se de novo na direção das estantes. Não queimaria ele as mãos ao agarrar os livros que ardiam? Voltou com um exemplar já coberto de fuligem e colocou-o junto dos demais. De seguida cobriu os livros que fumegavam com o tecido, reunindo tudo como se fosse uma trouxa, e tentou levantá-los. – Ajuda-me! Antero procurou pegar-lhe, mas nem mesmo em conjunto conseguiram erguer tamanho peso. – Anda, temos de ir embora daqui! Uma estante em chamas caiu, provocando uma chuva de faúlhas. Do teto pingava o ouro derretido da talha. – Precisas destes livros. São eles que te vão ajudar a explicar o tremor de terra – Vasco agarrou-lhe o braço. – Espera até os Jesuítas terem percorrido a cidade com um cortejo de penitência. Só depois deves aparecer com a explicação científica. – Vem-te embora, mas agora! – ordenou Antero. Como iria ele conseguir tirar Vasco da biblioteca sem os livros? Agarrou-o com força. – Traz contigo um único livro, e é tudo! Vasco olhou em redor. – Não consigo. – Não tens outra escolha! Hesitante, o bibliotecário agarrou num dos livros que estavam naquela pilha e, com as suas mãos queimadas e cobertas de bolhas, pressionou-o contra o peito. – Isaac Newton – disse, com voz rouca, sem sequer abrir a capa chamuscada. Conhecia perfeitamente os seus «filhos». O calor mordia a pele de Antero. As labaredas lambiam a sua roupa. – Vamos embora agora! – reiterou ele. Agarrou Vasco pela manga da camisa, com forte impulso deu meia-volta e correu até junto da porta através daquele mar de fogo. Finalmente ar fresco. A praça do mercado. Gente por todo o lado. Estava vivo. Soltou a manga de Vasco, ajoelhou-se e inclinou o tronco para a frente. Tossiu. O pungente fumo estava bem no interior dos seus pulmões e não queria sair. Ao tossir, Antero tocou com a testa no chão. Sentia a pele retesada, como se nela não coubesse. Era como se se rasgasse sobre os ossos. Olhou para cima e pestanejou, até conseguir ver com clareza. – Vasco? Antero pôs-se de pé. – Voltou a entrar, é doido – comentou o homem que segurava Samira pela mão. Durante um instante foi como se o mundo inteiro sustivesse a respiração. Depois Antero disparou. Queria ir a correr até à porta da biblioteca, mas não conseguiu avançar um passo que fosse. O homem agarrou-o com firmeza, mantinha a cabeça dele presa entre a dobra do braço direito, e não o largou. – Não volta a entrar ali! Pense na pequenina! Antero nada podia fazer para contrariar a força daquele homem. – Vasco! – berrou. Uma vez mais tentou libertar-se. O homem agarrava-o com tal força que Antero já quase não conseguia respirar. O telhado da biblioteca colapsou, lançando uma nuvem de faúlhas para o céu e, de seguida, levantaram-se enormes labaredas. O pavimento da praça do mercado ganhou um brilho avermelhado que o fogo lhe transmitiu. Sobre as pedras, bem diante dos seus pés, estava um livro enegrecido pela fuligem. Fitou as chamas, concentrando-se no sítio onde antes estivera a porta. Não seria possível acontecer um milagre? Vasco poderia a qualquer momento surgir dali a correr, enquanto, num gesto de triunfo, segurava mais um livro e o exibia no ar. O fumo, tal como a água, talvez resvalasse nele sem o afetar. Poderia sair dali incólume. A cada minuto que passava, Antero continuava a olhar fixamente para a porta da biblioteca, que ardia, mas a sua esperança ia-se desvanecendo. – Ele está morto – concluiu o homem. Antero manteve-se em silêncio. O homem largou-o. Antero conseguiu por fim ficar de pé. Não pronunciou uma palavra que fosse. No interior do seu peito sentia um vazio, como se lhe tivessem arrancado o coração. Sentia-se sozinho, embora visse monges que carregavam pessoas feridas para a praça, homens com bolhas resultantes das queimaduras, mulheres com contusões e fraturas, comerciantes que traziam fardos da Rua Nova dos Mercadores e da Rua da Confeitaria. Organizavam espaços onde depositar as suas mercadorias. Antero, porém, encontrava-se diante da parede de fogo que lhe havia roubado Vasco, e já nem sequer sabia onde pertencia. Uma mãozinha pequena e suave veio juntar-se à sua. Samira. Olhou para a filha, para os seus cabelos ruivos. Ela confiava nele. Contava firmemente com a proteção que Antero lhe proporcionaria. Ergueu a cabeça e olhou em redor. As nuvens de fumo demonstravam que havia uma frente de fogo que se aproximava. Teria de seguir pela rua junto à margem, o último corredor disponível para escapar ao ímpeto do fogo, e teria de se apressar. Antero pegou no livro chamuscado e ainda quente. De seguida, pegou em Samira ao colo. – Obrigado – disse ele ao estivador. – Para onde quer ir? Não vai com a criança na direção das chamas, pois não? Aqui na praça estará em segurança. Fique aqui! – Seguimos ao longo da margem do rio, o caminho ainda se encontra livre. O meu amigo não terá morrido em vão. O ambiente aqueceu no Terreiro do Paço. O fogo erguia-se até ao céu, cercava a praça por três lados. Leonor não conseguiu deixar de pensar em Antero. A dado momento, pensou tê-lo identificado entre a multidão, mas logo de seguida voltou a perdê-lo de vista. Por que razão lhes tinha ele ocultado o facto de ser o pai de Samira? Outrora, fora através de intermediários que a pequenita fora trazida para casa deles. Tudo fora negociado no maior dos segredos, os custos, o contrato. A mãe da menina deveria ter sido a tal mulher que ele tanto amara. Isso explicava por que razão um contrabandista e vagabundo se ocupava com tal dedicação de uma criança. Para que ela pudesse ter vivido na casa deles, deveria o pai de Leonor ter recebido elevadas quantias em troca. Era-lhe penoso pensar em Antero. Nunca antes sentira algo semelhante. Sobrevivera, sã e salva, ao terramoto, a dor que a afligia provinha unicamente do seu coração. Seria àquilo que se dava o nome de amor? Recebera do pai instruções para ficar junto das mercadorias, devendo levá-las para mais próximo da margem, se necessário fosse. Dera-lhe dinheiro para que pudesse pagar a alguém a ajuda necessária. O pai prometera-lhe que não se iria expor ao perigo. Pretendia apenas verificar se a manufatura da seda, situada às portas da cidade, ainda se encontrava de pé e queria tratar de a pôr a salvo do fogo. Rajadas de vento projetavam as chamas na direção das pessoas que ali se refugiavam, as quais, entre gritos de medo, recuaram o mais que puderam para junto do rio. – Alguém me carrega estes caixotes para a margem, por bom dinheiro? – gritou Leonor. Porém, ninguém lhe prestou atenção. Pegou num dos caixotes e ergueu-o. Um vento quente como o ar que brota de um forno soprava na direção dela. Queimava-lhe a pele. Leonor viu-se obrigada a deixá-lo cair. Recuou para se proteger do calor. Centenas de pessoas chegaram-se ainda mais à margem. Os caixotes de tabaco do pai começaram a arder. Depois, o fogo consumiu o arroz, e também da pipa que continha gordura de baleia se erguiam labaredas. Leonor não teve outro remédio que não fosse assistir a tudo sem nada poder fazer, e as mercadorias dos outros comerciantes sofreram o mesmo destino. Impotentes, estes andavam de um lado para o outro e arrepelavam os cabelos. Os sacerdotes iam passando de um ferido ao outro e concedendo os últimos sacramentos. Alguns, aqueles que não haviam sido trazidos para a margem, morreram no meio das chamas, entre gritos terríveis. – Aqui estamos em segurança – explicou uma mãe aos seus filhos. – O fogo só segue para onde tiver algo que possa consumir. As pedras da calçada não ardem. – O rosto dela estava coberto de manchas de fuligem. Dois botes a remos chegaram-se junto da margem. A tripulação estava armada. Com uma atitude ameaçadora, empunhavam floretes e pistolas, e gritaram: – Quem quiser passar para a outra margem, terá de pagar dez coroas de prata ou cinco mil réis! Cinco mil réis eram uma fortuna. Ainda assim, os comerciantes e os fidalgos acorreram aos botes, para conseguirem comprar uma viagem rumo à segurança. Leonor retirou do saco uma moeda de cinco réis e passou os dedos por ela. O grande V na parte de trás, a data de 1751, as inscrições portugaliae et algarbiorum rex v. Na parte da frente, estava representada uma cruz formada por cinco escudos, e sete castelos e gravadas as palavras iosephus i dei gratia. Precisava de milhares destas moedas para poder passar para a outra margem, mas tinha consigo apenas dez. Pelos vistos havia gente que tinha consigo toda a sua fortuna, moedas de ouro e joias. Em pouco tempo, ambos os botes ficaram cheios. Aqui junto à margem o fogo não poderia chegar-se a ela. Teria apenas de aguentar o fumo denso e o calor, até o Paço, a Alfândega e o Arsenal serem completamente consumidos pelo fogo. Quanto tempo poderia isso durar? Horas? Ou talvez dias? Não morreriam à sede. O rio fornecia-lhes água. Esboçou um esgar de repugnância. Já tinha chegado àquilo. Estava pronta a beber a conspurcada água do Tejo. Se antes fora Antero que ela vira, onde estaria ele agora? Deveria odiá-lo pelas mentiras que lhe contara. Elogiara-a, fingira ter interesse nela quando falavam um com o outro. Beijara-a, ainda que ela para ele nada significasse. No entanto, tudo isso originava que o amasse ainda mais. Ele fizera-o para cuidar da sua filha. Mentira em benefício de Samira. Os botes partiram. Os remadores conduziram-nos por entre os enormes bojos dos navios fundeados no porto e depois em direção à outra margem, a uma distância considerável, que deixava de ser visível quando o tempo se apresentava enevoado. Os botes não tardaram a desaparecer no meio do fumo que se estendia sobre o rio. Leonor ficou estarrecida. As fluyts holandesas subiam e desciam. As pinaças francesas oscilavam. Até mesmo as fragatas, no porto de guerra, eram sacudidas pelas vagas. Olhou para a margem. A água do Tejo subia pelos degraus que davam acesso à praça. Entretanto também já mais pessoas haviam reparado nisso. Viraram costas ao ímpeto do fogo e, atemorizadas, observaram como a água se revolvia. De súbito ouviu-se um ensurdecedor estrondo. Leonor viu os cabos de amarração de uma nau caírem na água. Ter-se-iam partido? De novo um estrondo. Outros cabos de amarração rebentaram. – Os navios estão a desprender-se! – exclamou um soldado. Um galeão, do tamanho de uma casa, andava à deriva e aproximou-se das escadas de pedra branca, nas quais as pessoas se amontoavam. Também uma nau se acercou deles, e ainda uma fluyt. Mais adiante outras amarras rebentaram. As vagas foram-se tornando cada vez maiores, atirando os navios uns contra os outros. A madeira lascava-se e fragmentava-se. Para onde haveriam de fugir? A praça estava cercada pelo fogo. As escadas junto à água eram agora o único local seguro. O solo começou a estremecer. – Está a tremer – gritou uma criança. O pai dela acocorou-se e ordenou-lhe que também ela se ajoelhasse nas escadas. – Segura-te bem a mim – disse. No degrau mais abaixo havia um grupo de homens com os braços estendidos numa tentativa de deter o galeão. Este andava à deriva, aproximando-se cada vez mais. Onde ainda há pouco a pedra estava seca, atingiam as águas já à altura dos joelhos dos homens. As mãos destes quase alcançavam o casco do navio. Então os barcos foram levantados por um vagalhão e arremessados contra a margem de pedra, derrubando os homens. Alguns deles caíram à água. Leonor desceu os degraus para os ajudar a regressarem a terra firme, antes que fossem esmagados pelo navio ao embater na margem. A meio caminho deteve-se, o terror pareceu congelar-lhe os movimentos. O navio afastava-se, e com ele os homens e os outros barcos. Era como se algo sugasse toda a água do rio que passava diante de Lisboa. Os degraus ficaram novamente em seco, mas restaram as conchas e algas verdes que agora os cobriam. O Tejo formava um vale de pele lisa, afastando-se cada vez mais. Ao longe, atrás das nuvens de fumo, viu algo escuro. Era tão largo quanto o próprio horizonte. Uma parede de água. Não tinha a certeza quanto à altura que atingia até ter visto o modo como a parede de água arrastou os primeiros navios, engoliu- os sem qualquer esforço. As pinaças despedaçaram-se, os mastros foram partidos em dois. Os barcos dos pescadores redemoinhavam na massa de água como se mais não fossem do que rolhas de cortiça. A onda ia-se acercando da margem, mas não havia maneira de perder o seu ímpeto. É sabido que elas rebentam quando alcançam a costa, mas esta não o fazia e não se enrolava sobre si mesma, e até escureceu o céu. Na crista daquela enorme vaga a espuma borbulhava. Os destroços de navios eram puxados para cima, os galeões colhidos. O couraçado, no porto de guerra, foi virado de casco para o ar; os pesados canhões caíram pesadamente na massa de água. Leonor deu meia volta e lançou-se a correr escada acima. Mas para onde haveria de dirigir-se? Em direção aos incêndios? Passou a correr diante de um chafariz e dirigiu-se a uma fileira de árvores, no passeio diante da margem. Atrás de si ouvia os gritos que brotavam de dezenas de gargantas. Então, com estrondo, a vaga abateu-se sobre a margem e subiu os degraus com um ruído gorgolejante. Olhou em redor. A onda excedia em altura tudo o que havia em redor, o palácio que ardia, a ruína da catedral envolta em labaredas, toda e qualquer construção erigida pela mão humana se agachava diante do seu veemente poder. Filhos foram brutalmente separados das mães pela sua violência. Sorveu para dentro de si todas as pessoas que se lhe depararam. Leonor abraçou a casca quente e fumegante do tronco de uma árvore e entrelaçou os dedos do lado de lá. Como se fosse uma gigantesca amiba, a parede de água suja absorvia as pranchas de madeira dos cascos dos navios, as pedras do cais, os que nela se afogavam. Foi então que toda aquela primordial força da natureza se abateu sobre Leonor. A água fria envolveu-a. Deu-se conta de ela arrancar a árvore do chão, e estirava-lhe os membros, queria esmagar-lhe as articulações. Contraiu cada um dos músculos do corpo. A água encheu-lhe a boca. Engoliu-a. Abriu os olhos, mas, no meio do turbilhão de sujidade e bolhas de ar, não conseguia sequer aperceber-se onde estava. A impossibilidade de respirar ameaçava fazer explodir-lhe o peito. Queria largar a árvore. Onde estavam os seus dedos, como conseguiria ela desentrelaçá-los, como poderia o seu cérebro ordenar-lhes que se soltassem? Um turbilhão, bolhas de ar, espuma, o que queria dizer que estava quase à superfície! Esticou a cabeça e levantou-a. Havia escuma branca por todo o lado. A árvore deveria tê-la mantido à superfície. Envolveu o tronco com as pernas e tentou erguer a parte superior do corpo na vertical. Conseguiu pôr a cabeça acima da superfície e respirar. Juntamente com o ar inalou também água. Teve de tossir. Olhou em redor. A torrente avançava pela baixa da cidade. Passara para lá das ruínas frente ao rio. Aquilo ali seria a Praça do Rossio? Via-se ainda de pé parte de uma parede do convento dos Dominicanos. A grande massa de água conduzia-a nessa direção. Não tardaria a embater nessa parede. A árvore foi de encontro ao vão de uma janela, ficando os tijolos feitos em pedaços. Leonor foi projectada para a frente. Em pânico, tentou agarrar-se e conseguiu suster o avanço ao alcançar um ramo. Segurou-se firmemente a ele. A água voltou a envolvê-la, tentando arrastá-la. Passados alguns instantes a torrente foi cedendo. Leonor conseguiu içar-se para a copa da árvore. Daí trepou para um friso da parede do convento. Agora eram já só os seus pés que permaneciam dentro de água, que lhe escorria do queixo e do cabelo e pelas costas abaixo. Leonor ofegava. Vindas do porto, viu chegar uma segunda e ainda uma terceira vagas. Nas colinas, mais acima, o fogo continuava a consumir desenfreadamente o que restava. Abaixo dela havia pranchas de madeira a flutuarem na água, pedaços de tecido, utensílios domésticos e plantas que haviam sido arrancadas da terra. A água transportava consigo pessoas. Boiavam nela, rendidas e inertes, de barriga para baixo, de braços estendidos – cadáveres. Lisboa estava destruída. 14
Como se fosse a língua de um monstro marinho que tivesse
andado a lamber a superfície da Terra, a água retraiu-se. O monstro engolira aquilo que lhe aprouvera. Estava agora satisfeito. Para trás ficaram poças e charcos de água. O caminho que conduzia a Belém assemelhava-se ao lamacento leito de um rio. Entre árvores arrancadas pela raiz e destroços de navios, poças de água brilhavam com os reflexos da luz. Antero desceu com Samira da colina onde se haviam refugiado da vaga. A cada passo que dava, sentia dores fortes no joelho direito, como se este fosse desfazer-se. Deixou que a pequenita fosse na frente, para que ela não se desse conta de como ele cerrava os punhos para conseguir aguentar a dor. A caminho, teve de erguê-la nos braços para a passar por cima de uma árvore tombada. «Graças a Deus», pensou ele, «ela já não está a tremer.» Quando a vaga avançara terra adentro, o corpo de Samira tremera tanto que Antero quase não lograra segurá-la. Ela não conseguia nadar. Tinha medo da água funda, sempre tivera, mesmo quando se tratava apenas de passar de barco para a outra margem. – Onde vamos nós, papá? – Vamos ter com o rei. – E porquê? Içou a perna ferida sobre o tronco molhado. – Porque ele tem de me ajudar a combater um homem mau – respondeu Antero. – Posso dar os bons-dias ao rei? – Nem pensar. Vamos esconder-te e, quando tiver feito aquilo que tenho a fazer, vou buscar-te. Mas podes vê-lo ao longe. Samira olhou para o rio. – Não me quero esconder – disse. – Quero ficar junto de ti. Pelo som produzido pelas ferraduras dos cavalos, Antero apercebeu-se de que alguém se aproximava e virou-se. Um grupo de homens a cavalo vinha da fumegante cidade, que ficara para trás. Antero e a filha estavam parados junto à estrada, em cima da erva. Alguns dos cavaleiros traziam o uniforme azul dos soldados. Ao aproximar-se do tronco de árvore, tiveram de deixar os cavalos seguir a passo. Antero pegou na mão de Samira e puxou-a mais para a berma. Um deles não era o tipo que estava na antecâmara no Ministério da Guerra? Então aquele homem com uma figura, imponente que seguia ao seu lado deveria ser Sebastião de Carvalho, o ministro da Guerra. Montado, o ministro assumia um aspecto distinto. O reflexo da luz do Sol cintilava nos seus anéis dourados. – Fica aqui – segredou Antero para Samira. Deu um passo em frente, de modo a pôr-se à frente dos cavalos. – Vossa Excelência, deixe-me dar-lhe uma palavra! – Desaparece! – ordenou o soldado que seguia mais à frente. Manteve o cavalo apontado na sua direção, como se nada fosse. – Vossa Excelência, senhor ministro, preciso de falar consigo. Tem a ver com o terramoto. Imperturbável, o grupo continuou a avançar na direção dele. Teve de saltar para o lado para não ser derrubado pelos cavalos e pisado pelos cascos. – Fui o braço-direito de Gabriel Malagrida e tenho conhecimento de planos secretos! – gritou ele. O ministro deu uma ordem breve e detiveram-se. Deu meia volta ao cavalo e aproximou-se de Antero. Rugas compridas, que à esquerda e à direita do nariz se prolongavam até aos cantos da boca, conferiam ao seu rosto uma expressão austera. Do cimo do cavalo, o ministro olhou para Antero. – Que tem para me dizer? – Gabriel Malagrida quer utilizar o tremor de terra para aumentar o seu poder. Vai assumir-se como profeta e explicar o terramoto como um castigo de Deus. Com os cantos da boca virados para baixo, o ministro olhou para Samira. Sebastião de Carvalho deveria achar bastante estranho que ele, Antero, estivesse ali com uma criança. Os pais que se prezassem deveriam entregar os seus filhos ao cuidado de precetores. Só as pessoas que não tinham meios é que se ocupavam elas mesmas dos filhos e filhas. Henrique, o filho do ministro, era com certeza educado por professores privados e também agora, durante a catástrofe, haveria de estar junto deles. – Ainda nem sequer sabemos se o rei sobreviveu ao terramoto e você põe-se a tagarelar acerca de futilidades que são do conhecimento de qualquer um. Deveria era mandar que lhe dessem uma sova. Infelizmente não há agora tempo para isso. Sebastião de Carvalho fez menção de dar de novo meia-volta ao cavalo. – O tempo é algo relativo, Excelência – insistiu Antero. – Eu encontrava-me no seu ministério quando o tremor de terra começou a fazer-se sentir. Fui lá para o avisar de que o sismo estava iminente. Se me tivesse recebido, poderiam estar vivas pessoas que entretanto já morreram. O ministro voltou a deixar cair as rédeas. Semicerrou as pálpebras. – Tem mesmo a língua afiada. A sova deveria ser bem forte. Como pretende ter sabido do tremor de terra? – Sou cientista. Reconheci indícios. Havia enxofre na água dos chafarizes. Animais que fugiram. As marés que não vieram. A expressão no rosto do ministro iluminou-se. – Quer dizer que pode explicar a razão pela qual ocorrem os tremores de terra? Conseguira captar a sua atenção, era já meio caminho andado. Pelo menos o ministro já não se lhe dirigia como se estivesse a falar com um moço de estrebaria. – Estou quase a descobri-la – afirmou Antero. – Dê-me uma semana. – E quem me diz a mim que não me está a tomar por parvo? E se foi Gabriel Malagrida quem o enviou? Pode bem ter sido essa a razão pela qual se deslocou ao ministério. – Há duas razões pelas quais deve confiar em mim. A primeira é que eu sabia com antecedência que o terramoto ia ocorrer. Aquele senhor ali – disse Antero, apontando para o homem com quem falara na antecâmara do gabinete do ministro – é minha testemunha. Falei com ele quando estive no ministério. O ministro virou-se para o homem, pelo que este, contrafeito, admitiu: – É verdade. Ele falou-me de um tremor de terra. – E você não me avisou? – perguntou o ministro, com ênfase. O homem engoliu em seco. – A segunda razão – prosseguiu Antero – é que os Jesuítas aproveitarão o terramoto para ganhar poder. Irão explicá-lo como uma punição imposta por Deus. Eu poderei ajudá-lo a manter o povo calmo. Um povo intimidado é a última coisa de que Portugal precisa num momento destes. Com a capital destruída, o Reino caiu também por terra. O ministro virou-se para um dos soldados. – Desmonte. Prossiga a pé. O cavalo irá transportar o cientista e a criança. Obediente, o soldado desceu do cavalo. Conduziu o animal até junto de Antero e entregou-lhe as rédeas. Antero ergueu Samira até à sela. Enfiou o seu pé esquerdo no estribo e subiu para o cavalo. De imediato, o ministro deu ordem para continuarem. Seguiam a trote. Os obstáculos que surgiam no caminho eram contornados a passo. – É o braço-direito de Malagrida, segundo disse. Por que razão está a agir contra ele? – perguntou o ministro. Antero teve de refletir. Não pretendia falar acerca de Julie. – Malagrida despreza a fraqueza. Disse-me com frequência que eu deveria deixar de sonhar. Só que, na verdade, eu não estava a sonhar, mas atento aos pormenores, observava-os e refletia acerca deles. Malagrida esperava uma outra espécie de força. – E, enquanto cientista, ele não quis mantê-lo junto de si? E por- que não, se é essa a sua vocação? – Julgo que ele pretendia fazer de mim um segundo Malagrida. Havia coisas cujo significado só se entendia inteiramente depois de serem ditas em voz alta. Antero abraçou Samira, sentada na sela diante de si. Afagou-lhe a cabeça com a mão. – Papá – murmurou a pequenita –, o cavalo é bonito. Foram-se aproximando de Belém. O Mosteiro dos Jerónimos e a igreja de pedra branca adjacente continuavam de pé, só da balaustrada junto ao telhado haviam caído alguns pedaços, para além de uma das torres ter ficado danificada. Também a torre fortificada junto ao rio, com quatro andares de altura, resistira às enormes vagas. Iam passando diante de casas que pertenciam a aristocratas. Algumas delas tinham fissuras nas paredes, a outras desabara o telhado. O Palácio de Belém ainda fumegava, também aí parecia ter ocorrido um incêndio. Nos devastados jardins, deram com o rei, incólume e rodeado de soldados e conselheiros. Sebastião de Carvalho indicou a Antero os nomes destes. Estavam ali Pedro de Bragança, desembargador do Paço, Diogo de Noronha, o estribeiro-mor, de sessenta e sete anos, que comandava uma parte das forças militares, Fernão Teles da Silva, o presidente do Senado de Lisboa e responsável pela economia, e ainda o comandante supremo das tropas, o marquês de Abrantes. – Acha que a minha filha pode ficar à espera junto das princesas? – perguntou Antero logo depois de desmontar. Sebastião de Carvalho chamou um dos criados reais e ordenou: – Acompanhe esta menina até junto das princesas. Lá deverão tomar conta dela. Antero deu-lhe um abraço apertado e segredou-lhe ao ouvido: – Não tenhas medo. Daqui a nada vou buscar-te – dito isto, voltou a colocá-la no chão. Obediente, afastou-se, seguindo ao lado do criado, que a levava pela mão, mas enquanto ia andando manteve a cabeça virada para trás e ficou a olhar para ele, como se estivessem a conduzi-la ao cadafalso. «Ela vai reparar que estão a tratá-la bem», disse Antero para si mesmo. «Não tardará a esquecer o medo que agora sente.» – Os soldados que desapareçam – ordenou o rei. Tinha uma cara redonda, um queixo duplo e lábios grossos que pareciam fazer beicinho. A casaca ficava-lhe muito justa ao corpo, entroncado e de baixa estatura, tendo sido confecionada num tecido de seda cinzento-clara, ornamentado com folhas e gavinhas bordadas a dourado. O rei era um adulto e, no entanto, não deixava de parecer uma criança mimada e rabugenta, capaz de pôr tudo e todos a mexer quando estava insatisfeito. – Majestade, é para vossa proteção que eles estão aqui – respondeu o estribeiro-mor. – Contra um tremor de terra eles nada podem fazer – replicou o rei –, absolutamente nada. – Numa hora difícil, deverá demonstrar a vossa proximidade às tropas – disse o marquês de Abrantes. – Nestes dias, a ninguém deverá ser permitido duvidar acerca de quem é que afinal tem as rédeas na mão, e que o poder se encontra unicamente nas vossas mãos. O rei remexia num dos botões da sua casaca, de forma esférica, debruado com fios dourados. – Presumimos – disse ele, dirigindo-se aos homens que tinham acabado de chegar – que logo à noite não poderemos deslocar-nos para Lisboa? O rei Dom José passava a maior parte dos dias na sua propriedade em Belém e só ao fim do dia regressava a Lisboa para se reunir com os seus ministros. Na verdade, delegava neles o seu trabalho. As suas atenções eram dedicadas sobretudo à caça, à equitação e à ópera. Antero perguntava-se se todos os reis seriam assim. – Hoje não vos aconselharia fazê-lo, Majestade – interveio Sebastião de Carvalho. – E também vos recomendaria que, nos tempos que se seguem, vos mantivésseis longe de Lisboa – olhou para os outros conselheiros. – A cidade está destruída. O tremor de terra, os incêndios e a enorme vaga custaram a vida a dezenas de milhares de pessoas, centenas delas encontram-se ainda soterradas e neste preciso momento, enquanto falamos, estão a morrer sufocadas. Praticamente não ficou pedra sobre pedra. Duzentas e cinquenta mil pessoas precisam de ser abrigadas e alimentadas. Os cadáveres terão de ser retirados das ruas, mantimentos deverão ser fornecidos, e rapidamente, caso contrário Lisboa transformar-se-á num inferno. – De acordo com o que descreve, prezado ministro, Lisboa já é um inferno – comentou o estribeiro-mor. – Que haveremos de fazer? – disse o rei, piscando os olhos. – Um tremor de terra, está tudo destruído... Que dizia, quantos mortos... ? – Dezenas de milhares, Majestade. Os conselheiros empalideceram. – É o fim – murmurou o rei. – Se não agirmos depressa, a situação piorará – disse Sebastião de Carvalho. – Foi um choque, é um pesadelo, mas não nos podemos dar ao luxo de ficar horrorizados, cada momento de hesitação custa mais vidas humanas. Não tardará a que as pessoas estejam a passar fome. Além disso, daqui a pouco surgirão saqueadores a tirar partido da confusão. – E o que aconselha? – perguntou Dom José. – Em relação aos saqueadores? – perguntou Sebastião de Carvalho. Ao prosseguir, foi contando com os dedos: – Em primeiro lugar, há ouro e prata armazenados na Casa da Moeda. Isto é de conhecimento generalizado. Eu trataria de enviar o mais depressa possível soldados para a proteger. Vossa Majestade irá precisar de dinheiro para comprar alimentos e materiais de construção no estrangeiro. Em segundo lugar, as prisões têm de… – Prezado ministro – interrompeu-o o marquês de Abran- tes –, está a subestimar os meus oficiais. Tenho a certeza de que já há muito se deram conta disso mesmo e de que a Casa da Moeda se encontra já bem guardada. Tal como nós, também os oficiais sabem que, com a frota do Brasil, acabou de chegar nova remessa de ouro. – Acabo de vir diretamente de Lisboa, senhor marquês – replicou o ministro. – Foi com os meus próprios olhos que vi que a maior parte da guarnição fugiu da cidade, juntamente com o resto da população. Neste momento, a Casa da Moeda é defendida apenas por um jovem tenente e quatro soldados, e eu mesmo lhes prometi que providenciaria ajuda. – E em relação às prisões? – perguntou o rei. – Que queria dizer? – As prisões, tal como todos os demais edifícios, sofreram estragos com o tremor de terra. Fugiram ladrões, bem como condenados às galés e condenados à morte. Precisamos de um lugar seguro para os manter. Na Torre de Belém não há lugares que cheguem. O meu arquiteto, Nicolau Fernandes, poderá ocupar-se de erigir uma prisão provisória. O rei acenou afirmativamente com a cabeça. – E de que precisa? – perguntou o ministro, dirigindo-se ao homem que Antero conhecia da antecâmara do ministério. – Refere-se a mim? – Nicolau Fernandes engoliu em seco. – De madeira. Pedra podemos nós ir buscar aos destroços. Preciso de uma dúzia de homens, mais quatro ou cinco artífices experientes, e cal para a argamassa. – Se queremos abastecer de mantimentos duzentas e cinquenta mil pessoas – acrescentou Sebastião de Carvalho –, temos de fazer entrar carroças pela cidade. Para isso, os caminhos e ruas têm de voltar a ser transitáveis. Os meus mestres-de-obras podem ocupar- se disso, desde que lhes atribuamos soldados que os possam ajudar. O comandante supremo das tropas franziu a testa. Nicolau Fernandes ergueu a mão, mas como ninguém reagiu tratou de falar: – Proponho que, em certas zonas da cidade, criemos vazadouros para entulho. Aí poderemos escolher melhor os destroços, pois decerto que ainda haverá muito que se possa aproveitar como material de construção. – Parece-me muito bem que esteja aqui a fazer todas essas propostas – comentou o marquês de Abrantes –, mas a tomada deste tipo de decisões é competência do secretário de Estado do Reino. O Sebastião de Carvalho é responsável pelas relações com outros reinos. Se mo permite, o abastecimento do povo, tão castigado pelo destino, não é tarefa sua. – Isso é verdade – concordou o estribeiro-mor. – Vossa Majestade deveria encarregar o secretário de Estado do Reino do cumprimento destas tarefas. Pedro de Bragança, o desembargador do Paço, pronunciou-se: – Também eu sou da mesma opinião. – E eu – acrescentou Fernão Teles da Silva. – É um absurdo que o ministro dos Negócios Estrangeiros se coloque deste modo em primeiro plano. Está a imiscuir-se em assuntos que não lhe dizem respeito. Tirar vergonhosamente partido da desgraça para ampliar as suas competências! Isso é inaudito. – Quem é afinal este estranho que você trouxe consigo? – perguntou o marquês de Abrantes. – Por que razão tem ele de assistir a estas nossas deliberações? – Ele é cientista. – Sebastião de Carvalho virou-se para Antero. – Apresente-se você mesmo. – O meu nome é Antero Moreira de Mendonça. Investigo tremores de terra. Por instantes reinou um silêncio frio e hostil. Foi o rei quem lhe pôs fim, ao colocar a mão sobre o braço de Sebastião de Carvalho e dizer: – Pedimos-lhe que nos deixe até que voltemos a chamá-lo. – Com certeza. O ministro fez uma vénia e retirou-se. Quando se afastou, começou o rei: – Todos sabemos que Frei Gaspar da Encarnação está doente e que não pode já assumir as tarefas de um secretário de Estado do Reino. Os médicos não lhe dão mais do que alguns meses de vida. – Nesse caso – disse o presidente do Senado –, deverá ser nomeado um sucessor. A catástrofe que assolou o nosso país exige ações decididas. – É isso mesmo – o Rei pegou num instrumento de aço em forma de garfo, com dois dentes, que trazia consigo. Tocou com ele na fivela do seu cinto e aproximou-o do seu ouvido. – Sabiam que foi o trompetista inglês John Shore quem inventou este instrumento? Deu-lhe o nome de diapasão. Produz um som claro e magnífico – olharam para o rei como se este tivesse ficado louco. – O meu reino está destruído, mas ainda me resta a música. Uma ideia consoladora – olhando para o diapasão, declarou: – Decidimos nomear Sebastião de Carvalho secretário de Estado do Reino, – os presentes aproximaram-se. – Alguém tem objecções a levantar? O estribeiro-mor pigarreou. – Majestade, como bem sabe, eu já servi o seu pai. E deixo à sua consideração que já o rei Dom João, com toda a sua experiência, não gostava muito deste indivíduo. Disse-me ele certa vez que Sebastião de Carvalho não tinha bom coração. – E que me diz você mesmo? – Eu pergunto como foi que ele se tornou ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra? Por intermédio da rainha, a senhora sua mãe. Ela gostava dele por ter casado com uma austríaca. É tudo. Se me pergunta, Majestade, acho que ele não está capacitado para assumir um cargo de tamanha importância. – Nem sabe o que é ser português! – prosseguiu o marquês de Abrantes. – E é um homem destes que deverá assumir a responsabilidade pelo Reino? Que sabe afinal a respeito de Portugal? Começou por ser, durante quatro anos, enviado à Corte inglesa, depois esteve outros quatro em Viena. Por todo o lado tomou contacto com tudo o que é modernidade, que aqui quis introduzir, contra a vontade da nobreza e da população. Iria aniquilar ainda mais o Reino. – É filho de um simples membro da pequena nobreza de província – interveio o presidente do Senado, Fernão Teles da Silva. – A nobreza jamais lhe daria ouvidos. Pode bem ser que o seu rosto possua traços de nobreza e que tenha adotado uma postura distinta. Não deixa, porém, de ser um arrivista. O seu irmão é um mero sacerdote! Não fosse ele o protegido do secretário de Estado Coutinho e jamais teria tido acesso à Corte. – O que é afinal aquilo que o distingue? – perguntou Pedro de Bragança, o desembargador do Paço. – Por que razão deverá ser nomeado, precisamente ele, secretário de Estado do Reino? Que características o habilitam para tal função? Antero pigarreou. – Sou apenas um cientista – começou ele –, mas eu… – O melhor será manter-se em silêncio – interrompeu-o o marquês de Abrantes. – É claro que, enquanto conselheiro do ministro, tem todo o interesse que ele consiga obter o mais poderoso cargo deste Reino. Pode bem poupar o seu discurso interesseiro. O rei esboçou uma expressão de desagrado. – Deixe-o dizer aquilo que ele tem para dizer. Que sabia ele a respeito de Sebastião de Carvalho? Não era muita coisa, apenas o mesmo que toda a gente. Teria de dar a entender que o sabia por experiência própria. O rei prezava aquele ministro e Sebastião de Carvalho prezava as ciências. Se Antero o ajudasse a tornar-se secretário de Estado, ganharia porventura o apoio dos dois homens mais poderosos do Reino. – Sebastião de Carvalho é um homem muito trabalhador. Bem cedo pela manhã está já sentado à secretária e trata da correspondência com os seus enviados. Devemos-lhe muito, por exemplo, a reforma da legislação em relação às minas no Brasil. Acaso já nos esquecemos como isso permitiu aumentar as receitas e retirar poder ao incómodo Conselho Ultramarino? Quem foi afinal que baixou os impostos sobre o tabaco e açúcar? O ministro! Desde então, o contrabando diminuiu, uma vez que essa atividade se tornou menos atrativa para os que a exercem. Sebastião de Carvalho reorganizou o comércio de diamantes. E fundou a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, que regula o comércio com o Brasil e os direitos dos colonos e comerciantes do Pará-Maranhão. Este homem não é um arrivista, é um servidor do Reino de Portugal dotado de singulares aptidões e sobremaneira diligente. Estudou história, política e direito na Universidade de Coimbra. Portugal é a sua principal preocupação. Com que frequência no seu gabinete se discute qual será a melhor maneira de conseguir que o nosso pequeno país mantenha a sua importância económica no âmbito de um sistema internacional dominado por países maiores e mais fortes, tais como a Grã- Bretanha, a Prússia, a França ou a Rússia! Tudo o que é, tudo o que tem é por ele aplicado em prol de Portugal. – Pequeno país? – o estribeiro-mor enrubesceu de fúria. – Fomos nós que descobrimos o caminho marítimo para a Índia! Lisboa é a cidade comercial mais importante do mundo! Dispomos de riquezas com as quais outros reinos apenas sonham! – A cidade comercial mais importante do mundo está reduzida a um monte de destroços. De resto, em relação a essas questões o melhor será entender-se diretamente com ele. Não sei exatamente o que pensa a esse respeito. – Mas sei eu! – afirmou o estribeiro-mor. – Considera, por exemplo, que através do Tratado de Methuen apenas beneficiámos os Ingleses! Antero começou a transpirar. – Preocupa-o bastante que já não sejamos capazes de produzir o necessário para nos alimentarmos. O comércio colonial tornou-nos indolentes. Temos de importar cereais, vestuário, armas e pólvora. Muitas indústrias estão de rastos. Basta pensar em quantos navios a nossa grande nação de navegantes construiu nos últimos anos. Face à construção naval da Grã-Bretanha ficámos bastante para trás. – É uma pessoa destas – perguntou o presidente do Senado com aspereza – que deverá vir a ser o secretário de Estado do Reino? Alguém que nos coloca mal? Alguém que nos rouba o direito a ter orgulho? Olharam todos na direção do rei. Este, porém, focou o olhar no infinito. – Ouvimos as vossas objeções. Não se esqueçam, contudo, de que o Reino sofreu hoje o mais rude golpe da sua história. Ter-se-á de proceder à reconstrução e essa tarefa cabe a alguém que não esteja preso às velhas estruturas. Sebastião de Carvalho representa os tempos novos, a modernidade, cada um de vocês o aceitará. É ele o homem certo para esta tarefa. Pretendemos que daqui em diante obedeçam aos seus desejos – o rei virou-se então para o jardim. – Ainda hoje de manhã este jardim agora destruído era um mar de flores. O aroma das rosas e das árvores de fruto em flor concedia tranquilidade à nossa alma – voltou a tocar com o diapasão na fivela do cinto e aproximou-o do ouvido. – Queremos que este jardim seja novamente replantado. Sebes de árvores de fruto, dispostas em latada, paliçadas cobertas de videiras, ali, junto aos carreiros. Além disso, os chafarizes têm de ser reparados, e queremos ainda que os lagos sejam limpos – olhou para o arquiteto. – Qual é mesmo o seu nome? – Nicolau Fernandes, Majestade. – Fica responsável por nos fazer isso, Dom Nicolau Fernandes. O coração de Antero batia fortemente no interior do peito. Chegara a altura certa. – Majestade – disse –, posso dar-lhe uma palavrinha a sós? O rei esboçou um esgar de contrariedade. – É mesmo necessário? – Aquilo que tenho para dizer deverá, de início, ser apenas Vossa Majestade a ouvir. Depois poderá decidir a quem mais o irá dizer. O rei abanou a mão sem grande entusiasmo. – Deixem-nos. Todos, à exceção do cientista. Quando os dignitários se afastaram, tratou o rei de retesar o seu corpo. – Vá, diga sem rodeios! – ordenou ele. – Que notícia terrível tem para nos dar? Vai haver mais tremores de terra? – Haverá réplicas, em todo o caso. Mas é em relação a outra coisa que quero avisar-vos. Em relação a uma pessoa. – E quem é essa pessoa? – Gabriel Malagrida. O rosto do rei adotou uma expressão carrancuda. – O padre Malagrida foi o confessor dos nossos pais. Goza de grande reputação entre o povo e foi muito aquilo que fez por nós no Brasil. Pode bem ser que tenha também feito muito pela Ordem dos Jesuítas, mas está no seu direito, ou não? Não queremos ouvir afrontas contra ele! Já lhe vedámos o acesso aos nossos palácios, foi castigo suficiente. – Já não se trata apenas da Companhia de Jesus. O terramoto… – Temos espiões na Corte de Espanha – interrompeu-o o rei –, na de França e na de Inglaterra, e eles, na nossa. Por que não haveriam os Jesuítas de empregar esse tipo de gente também? As coisas são assim mesmo. E é para essas banalidades que você pede uma audiência em privado? É claro que os Jesuítas têm espiões que escutam os nossos conselheiros! Se por isso nos pusermos de mal com eles, prejudicamos a reputação deles e a nossa, e ainda conseguimos deixar o Papa furioso com o nosso país. – Não se trata disso, Majestade. Sei bem quem é Gabriel Malagrida e aquilo que faz. Fui o seu braço-direito – surpreendido, o rei franziu o sobrolho. – Permite-me que fale livremente? – Faça favor. – Se Vossa Majestade não agir – disse Antero –, o terramoto causará ao nosso país danos ainda maiores do que aqueles que já sofreu. O que confere grandeza a reinos como a Inglaterra ou a Espanha? O comércio e as ciências. No nosso país, Majestade, são estrangeiros que conduzem os negócios comerciais, há muito que as maiores frotas pertencem já aos Britânicos e aos Alemães. E as ciências estão a ser sufocadas. Em lugar algum é a Inquisição tão poderosa quanto cá. Digo-vos então o que vai acontecer nos próximos meses. Gabriel Malagrida explicará o terramoto como sendo um castigo de Deus e com isso conseguirá subjugar todos aqueles portugueses que até agora haviam duvidado dele como profeta. Tornará o vosso povo medroso e acabarão por se perder as ligações aos grandes reinos. – Você dizia que é cientista. Este terramoto é um fenómeno natural ou é um castigo de Deus? – Deus pode provocar fenómenos naturais para nos castigar, mas tenho a certeza de que este é explicável. – Poderíamos prevenir futuros tremores de terra? – É possível que sim. Terei ainda de tentar investigá-lo. É precisamente essa a minha intenção: quem tiver a supremacia na explicação dos terramotos será aquele que irá deter o poder. E é Vossa Majestade que o deverá ter, não o medo instigado pelo profeta Malagrida, o medo de castigos futuros. Só num país em que haja liberdade é que o comércio e as ciências florescem. – De que precisa? – De um cavalo, para poder regressar rapidamente a Lisboa. E uma bússola, para conseguir determinar a orientação predominante dos destroços. Mais tarde talvez ainda algumas substâncias químicas para realizar experiências. – Receberá tudo isso. Nós mesmos e os nossos sacerdotes iremos rezar para apaziguar a ira de Deus. Entretanto, investigue as causas naturais. Se encontrar uma maneira de conseguir evitar estas terríveis catástrofes, poderá ter a certeza do nosso apoio. – Agradeço-vos. O rei deu meia-volta, mas de seguida voltou a virar-se na direção de Antero. – E trate de arranjar provas. Temos de conseguir convencer o povo. Leonor vomitou água. Um jacto compacto jorrou-lhe da boca. Teve medo de asfixiar. Quando por fim terminou e pôde voltar a respirar normalmente, desceu da ruína, de rastos e a tremer. Sentia-se como se todos os seus ossos estivessem quebrados. As roupas e os cabelos fediam, ensopados que estavam com a água suja. Por todo o lado os destroços, encharcados, deixavam escorrer água. Era esta a calamidade de que Gabriel Malagrida falara. Tinha anunciado o tremor de terra, há semanas que enviava os seus noviços pelas ruas e os fazia recitar sermões de advertência. Malagrida não era profeta nenhum. Deveria antes ser um cientista, bem melhor até do que ela julgara. Como poderia ele ter sabido de antemão da ocorrência de um tremor de terra? Os Jesuítas eram investigadores incansáveis. Haviam explorado vastas áreas da selva brasileira, bem como a Índia, a China e o Tibete. Dessas suas viagens tinham trazido espécimes de plantas vivas, frutos e sementes, especiarias, partes de planta secas, essências e extratos, ampliando assim os conhecimentos acerca do mundo criado por Deus. Enquanto ainda havia gente incapaz de acreditar que os relâmpagos são um fenómeno elétrico, os Jesuítas já há muito que buscavam outras respostas. Teria de se manter próxima de Gabriel Malagrida e de aprender o modo como ele pensava, como descobria os segredos que pretendia. Gabriel Malagrida, ao contrário do que a maioria dos homens fazia, não desprezava as mulheres, e julgava-a capaz de realizar grandes feitos. Havia três semanas, Malagrida tinha-lhe dito o seguinte: – Se uma catástrofe se abater sobre a cidade de Lisboa, vá ter à margem do Tejo e encontre-se lá comigo. Isso queria dizer que ele calculara que, ao serem destruídos fornos e fogões, ocorreriam incêndios, mas que não previra a onda de maré. Teria o pai sobrevivido? A pergunta dava-lhe a volta ao estômago. Tinha de ir procurá-lo. E que acontecera com o corpo de Dalila? Oxalá Jerónimo tivesse conseguido salvá-lo da torrente. Lisboa tornara-se uma cidade-fantasma. Aqui e ali algumas pessoas trepavam pelos destroços e gritavam, em busca dos seus familiares. Erguiam pedras, quais corvos que respigam o lixo. Leonor olhou em redor. Era fácil perder o norte no meio de todas aquelas ruínas. A avaliar somente pelas colinas, deveria encontrar- se acima de Alfama. Seria aquilo o que restava da Igreja de São Martinho? Uma pequena árvore, arrancada pela raiz, encontrava-se no meio dos escombros. Junto às pedras registou Leonor algum movimento. Viu uma mão suja que tateava para conseguir sair de um buraco. Deveria ser alguém que estava ali soterrado. Dirigiu-se até lá e tocou na mão. De imediato, os dedos imobilizaram-se. – Eu ajudo – anunciou ela. – Recolha a mão, para não se magoar. Conseguiria a pessoa soterrada perceber o que ela lhe dizia? A mão desapareceu no interior do buraco. Usando a força de todo o seu peso, Leonor empurrou o grande bloco de pedra em que a mão tinha tocado. A pedra cedeu, produzindo um rangido, e ela conseguiu fazê-la rolar para o lado. Logo de seguida reapareceu a mão e depois um braço inteiro. Leonor continuou a afastar outras pedras. Vindo do buraco, surgiu diante dela um rosto com barba, tão enegrecido de sujidade que o branco dos olhos se destacava. Ela afastou-se para retirar dali mais um pedaço de pedra. Ao regressar, o homem apoiou-se nas pedras à esquerda e à direita do buraco para conseguir sair para o exterior. As suas roupas estavam encharcadas. – Obrigado – disse ele, sorrindo para Leonor. Tinha os dentes podres. A pera que usava havia sido entrançada de modo a formar dois rabichos. Gritou lá para baixo: – Vá, embora, não percam tempo! – depois olhou em redor e soltou um pequeno assobio. – Houve aqui algumas mudanças. Atrás dele, oito homens trataram de, num instante, sair do interior do buraco. Todos tinham barbas descuidadas e roupas rasgadas e molhadas. Qualquer deles emanava um odor corporal fétido. Olhavam em redor, surpreendidos. Leonor recuou. O Paço do Limoeiro! Situado junto à Igreja de São Martinho. O Limoeiro era a prisão onde estavam aqueles que não tinham emenda, os que haviam sido condenados ao degredo nos territórios ultramarinos e que aguardavam nas suas celas o dia da partida. Acabara de libertar criminosos! Naquele dia, porém, as diferenças sociais não contavam para nada. Não pôde deixar de pensar em João de Bragança, que na praça do mercado estivera a distribuir cobertores pelos feridos. No meio daquela grande aflição, os ricos ajudavam os pobres e vice- versa. – Bem-vindos à liberdade – disse ela. – Aproveitem esta oportunidade. Poderão começar uma nova vida! – É o que vamos fazer – o homem esboçou um sorriso, tendo os seus companheiros feito precisamente o mesmo. – Ao que parece, os guardas foram engolidos pelo chão. A sua mão suja agarrou o braço de Leonor. – Foi Deus quem poupou as vossas vidas. Agradeçam ao Todo- Poderoso! Puxou-a para junto de si. Agarrava nela com a firmeza de uma tenaz. – Minha bonequinha, se soubesses quanto eu esperei para poder ter alguém como tu nos braços! – desatou a beijar o pescoço dela. – Cheiras a água de rosas! Estiveste mesmo a pôr-te toda bonita para nós, não foi? Leonor tentava libertar-se. – Deixa-a lá – disse um dos outros homens. – Mais tarde logo tens tempo para isso. Vamos mas é tratar de arranjar ouro enquanto reina a confusão! – subiu para um monte de escombros e olhou em seu redor. – Estão todos a fugir. A ralé inteirinha está a abandonar a cidade. Melhor não podia ser. – Seja… – concordou aquele que a atormentava. – Vamos então à Casa da Moeda! Esta coisinha boa vem connosco. Vou esconder- lhe um montinho de cruzados entre as mamas e depois trato-lhe da saúde. 15
As princesas estavam a chorar. Primeiro, Samira não conseguia
perceber qual a razão, até que a mais velha das duas apontou para uma casa de bonecas e disse: – Quero que se volte a pôr aquilo em ordem! – olhou para um dos lacaios. – Trata disso! As sobrancelhas negras da princesa franziram-se com um ar ameaçador. As lágrimas haviam já desenhado um percurso ao longo da sua face coberta com pó-de-arroz. Examinava cuidadosamente os esforços do lacaio para voltar a pôr de pé os armários de bonecas derrubados. – Lamento muito, princesa, mas esta mesa terá de ser colada – disse ele, pegando numa da qual uma das pernas se partira. Com um ar carrancudo, ela acenou afirmativamente com a cabeça. Uma ama aproximou Samira delas e disse: – Talvez queiram brincar com esta criança até a casa de bonecas estar reparada? Diz lá o teu nome! – Samira – respondeu a pequenita. As princesas olharam para ela. Atrás delas, o lacaio envidava esforços para consertar a casa de bonecas. As amas aproximaram- se das princesas, pretendendo limpar-lhes as caras com lenços, mas ambas recusaram. – Como se chamam? – perguntou ela. – Não sabes quem somos? – perguntou a mais nova. – Que descaramento! A mais velha cruzou os braços e disse: – Chamo-me Maria Doroteia e sou a filha do rei. A mais nova também cruzou os braços e anunciou: – Chamo-me Maria Benedita e sou também filha do rei. – Chamam-se as duas Maria? – perguntou Samira, confusa. – Isso são coisas que ainda não percebes – disse a mais velha. – És demasiado nova – dirigiu-se a um outro lacaio e ordenou-lhe: – Traz-me as joias da minha avó! O lacaio fez uma vénia e saiu dali apressado. – Com que queres tu brincar? – Benedita examinou-a de alto a baixo. – Não tens brinquedos nenhuns! – Tenho, pois – replicou Samira. – Tenho uma bola, um cavalo de madeira, um pássaro de brincar, uma panelinha… – E onde? – interrompeu-a Doroteia. – Em casa. Porém, a casa estava destruída. Ao pensar nisso, sentiu a garganta apertada. Já não tinha quarto, nem cama, nem a sua tia Dalila. E mesmo que tornasse a ter uma nova cama e um novo quarto, era certo que Dalila jamais voltaria. O lacaio trouxe uma reluzente corrente de fios de ouro e prata. Entregou-a a Doroteia em cima de uma almofada de veludo vermelho. Doroteia pegou nela com as pontas dos dedos e segurou- a junto à luz. – Estas joias são minhas – afirmou. – Herdei-as da minha avó, que morreu no ano passado. Uso-as em ocasiões festivas. Aqui, bem no meio, o que vês é uma grande esmeralda. Veio da Índia. Aqui, mais abaixo, é um diamante. Puseram muitos diamantes pequeninos aqui em redor para o brilho ser assim forte. Não tens coisas destas. E também não és uma princesa. E não tiveste uma avó como a nossa, a Maria Ana de Áustria. Samira engoliu em seco. O que tinha ela afinal? Apenas o seu pai, que de vez em quando vinha visitá-la. E nos dias entre as visitas, quem cuidaria dela? Quem lhe daria de comer? Quem iria pô-la a dormir e fazer-lhe festinhas na cara, como fazia a tia Dalila? – Eu tenho um cão – disse ela. – Chama-se Bento e é muito esperto. Se lhe disser «senta-te!», ele obedece. Se lhe disser «anda cá!», ele vem ter comigo – As princesas ficaram em silêncio, pasmadas. – Quando eu digo «Salta!» e aponto para o banco, ele salta lá para cima. Vai-me buscar os meus brinquedos. O Bento escuta o que lhe digo. Ele gosta de mim. – Os caçadores do meu pai têm muitos cães – acrescentou a princesa Benedita, tentando salvar a situação. Era, porém, claro que nada mais havia a contrapor ao que já tinha sido dito. Antero segurou a bússola junto dos destroços. Esperou que a agulha assumisse a posição definitiva. Vacilava para cá e para lá, até que por fim se deteve. Noroeste. Fez mais um traço a lápis na sua lista. Dezassete vezes noroeste, vinte e quatro, nordeste, doze, sul, dezanove, oeste, vinte e uma, leste... Não. A solução não era aquela. O impacto do tremor de terra não tinha qualquer direção específica, como acontece com uma tempestade, que, ao deitar árvores abaixo, o faz a todas na mesma direção. Os edifícios de Lisboa desmoronaram-se de modo irregular, como maçãs que caem de uma árvore que é abanada. Cansado, alongou os músculos das costas. Portanto, o estremecimento não só não se devia a uma explosão provocada por uma mistura de enxofre, salitre e limalhas de ferro, como também os abanões não ocorriam todos numa única direção. Talvez afinal fosse mesmo uma explosão de vapor, causada por águas profundas que se encontrassem com o fogo subterrâneo? Antero afastou-se das ruínas negras e molhadas. Olhou para a Praça do Rossio. Um fluxo constante de refugiados atravessava o campo repleto de escombros. Homens, mulheres e crianças trepavam e avançavam por entre os blocos de pedra e as traves rachadas. Alguns deles levavam consigo os seus haveres. Outros serviam de apoio aos feridos. O fluxo encaminhava-se para o norte. As pessoas estavam a fugir da cidade. Aquela ali não era a liteira do patriarca? Até mesmo o chefe da Igreja abandonava Lisboa. Os adornos dourados e as cortinas azuis da liteira destoavam da cena circundante, os aleijados que se arrastavam sobre os destroços. Enquanto os carregadores transportavam o patriarca por cima das pedras, a liteira ficava inclinada e ia baloiçando, o que estranhamente fazia com que ele se tornasse um entre tantos outros, um entre aqueles que estavam em fuga, ainda que se escondesse no interior de uma caixa. E ele, Antero? Não podia ir. Tinha aqui uma tarefa a cumprir, precisava de investigar o terramoto e de pôr a descoberto o segredo da sua causa. Desde que Malagrida tomara a vida de Antero nas suas perigosas mãos, a sua situação degradara-se cada vez mais. Malagrida arruinara-lhe os seus estudos. Fora ele quem lhe roubara a capacidade de se espantar. Fechara o seu coração imaculado numa armadura de ferro, tornara-o um mentiroso. No fim de contas, fora ele quem matara Julie. Malagrida intervinha em todo o lado, sugava as energias dos mais fracos e era desse modo que ele próprio ganhava força. Não havia dúvida de que sobrevivera ao terramoto. Uma pessoa daquelas escapa a tudo. Iria conseguir retirar da catástrofe benefícios para si. Só de pensar nisso, Antero sentia repugnância. «Tenho de tentar travá-lo», disse para si mesmo. «É chegada a altura de um ajuste de contas, a hora de colocar o açaime naquele animal. Vou aprender o modo como a Terra se comporta e subjugar Gabriel Malagrida.» Inspirou profundamente. O plano que traçara encheu-o de ânimo. Iria finalmente fazer aquilo para que fora destinado. As fontes poderiam ser a chave para o enigma. Teria de descobrir se ainda tinham aquela água sulfurosa ou se, após o tremor de terra, o enxofre havia desaparecido. Começaria pelo Chafariz de El- Rei. Virou-se para a sua montada. O cavalo desaparecera. Tinha-o prendido à balaustrada retorcida de uma varanda, era impossível que se tivesse desprendido sozinho. Antero correu até ao cruzamento com a rua mais próxima. Ali estava! Um grupo de homens levava-o pelas rédeas. Foi atrás deles, a coxear. – Ei, esse cavalo aí é meu! O homem que o segurava voltou-se na sua direção. Tinha a barba entrançada de modo a formar rabichos. Esboçou um sorriso. – Parece-me que ele prefere ir connosco. – Devolva-me o cavalo! O sorriso desapareceu do rosto do homem de barba. – Esquece isso! E se não tratares de calar já o bico, faço-te um lanho na garganta, percebes? Um dos homens tinha um braço em redor do tronco de uma mulher. Cabelos de um louro-escuro, encaracolados, vestido amarelo dourado. Não era Dalila? O gesto grosseiro e obsceno do braço em redor do corpo dela fez com que Antero, furioso, pressionasse os maxilares um contra o outro. Assim esfarrapados como estavam, aqueles tipos deviam ter acabado de se escapar de alguma masmorra. Não eram para brincadeiras. Antero virou-se para sul, para a direção donde vinha o fluxo de refugiados. Dirigiu-se a um soldado que ajudava uma senhora idosa. – Preciso da sua ajuda! – Lamento – respondeu o soldado. – Vou levar a minha mãe para fora, para o campo. Não está a ver? Não posso deixá-la sozinha. – Uns meliantes têm uma mulher em seu poder, devemos fazer alguma coisa! O soldado abanou a cabeça. – A cidade está amaldiçoada. Aqui já só se morre. – Onde encontro soldados que estejam de serviço? – De serviço? O mundo vai acabar, homem. Ninguém está a pensar no serviço – respondeu-lhe o soldado, enquanto continuava a amparar a idosa. Antero procurou avançar por entre os destroços. Não podia deixar Dalila nas mãos daqueles homens. Ao pisar uma trave molhada, escorregou e caiu na lama. Voltou a levantar-se. Foi graças à sua vontade férrea que conseguiu forçar-se a continuar, coxeando. O vento que soprava de nordeste trazia consigo pedaços de fuligem e de cinza, cujas partículas irritavam a garganta de Antero, que tossiu. Nas colinas, as ruínas em chamas proporcionavam uma visão aterradora. Os incêndios cobriam o céu de nuvens negras e conferiam um brilho avermelhado àquele extenso campo de escombros que antes fora a capital do Reino. Ouviu-se o estampido de um tiro. Donde viera? Fora mais adiante, mas para a sua esquerda. O pequeno porto? O cais? Onde soassem tiros, deveria haver soldados. Antero apressou-se, tentando avançar o mais rápido possível. Tanto quanto a forte dor no joelho lho permitisse, seguia a coxear quando percorria áreas sem obstáculos. Os escombros que se lhe apresentavam pela frente eram transpostos com a ajuda das mãos. Tudo o que da Igreja de São Pedro restava de pé era uma porta e alguns bancos carbonizados. O resto do edifício desaparecera. A porta não conduzia a lado algum. Ao longe, para lá da porta, via as águas do Tejo ainda agitadas. Na crista de cada vaga boiavam pranchas de madeira e barris. – Nem mais um passo! – gritou alguém. – Temos espingardas e rebentamos com as vossas cabeças se não desaparecerem daqui. – Vamos a ter calma, tenente – respondeu uma voz rude. – Nós somos nove, vocês são só cinco. Além disso, as vossas balas vão acertar no corpinho desta senhora inocente. Seriam os criminosos? Antero aproximou-se furtivamente. A Casa da Moeda! Claro, eles queriam roubar o ouro real precisavam do cavalo dele para transportá-lo. O andar superior da Casa da Moeda desmoronara, mas as resistentes paredes do andar inferior continuavam de pé, quase incólumes. As janelas estavam protegidas com grades de ferro forjado. A enchente não lavara por completo as paredes da fuligem que nelas se depositara em resultado dos incêndios, o que conferia à Casa da Moeda o aspecto de um castelo sitiado. Protegido pela ruína carbonizada e encharcada da casa vizinha, Antero correu na direção da fachada da Casa da Moeda. Espreitou pela esquina dessa construção e de imediato se recolheu. Diante da Casa da Moeda, o grupo de homens sujos e barbados agachara-se por detrás de um monte de entulho. Mantinham Dalila presa e usavam-na como um escudo humano. – Cada um não pode disparar mais do que um tiro – voz rude pertencia ao homem com a barba entrançada. – E depois dos cinco tiros, como pretendem enfrentar-nos? Não ouviste falar de mim e da minha gente, ó tenente? Sou Diogo Barbosa. Se brigarmos com a força dos punhos não vai ser difícil arrumar-vos a um canto. De certeza que foi com dificuldade que sobreviveste ao terramoto. Queres bater a bota agora? Ninguém quer saber se as caixas que estás a guardar foram levadas pela água ou se alguém fugiu com elas. – O ouro pertence ao rei. Acham que por causa do terramoto as leis deixaram de vigorar? Nesse caso, estão bem enganados. – A tua guarnição pôs-se a milhas! – gritou Diogo Barbosa. Já não há aqui vivalma. Queres ficar de guarda a uma cidade com o tamanho de Lisboa? Não te iludas. Por todo o lado se está a saquear, os cadáveres, as lojas, os armazéns. Não és tu que o vais impedir. – Não podemos estar em todo o lado – respondeu o tenente –, mas os meus homens e eu vamos defender a Casa da Moeda. Fomos destacados para aqui e é aqui que vamos lutar e morrer, se for preciso. Mas nesse caso é certinho que te levamos connosco, Barbosa. Antero voltou a espreitar cuidadosamente pela esquina. O homem de barba empurrou Dalila para a beira do monte de entulho, segurava-a como se fosse um pedaço de carne sem valor, embora naquela situação servisse perfeitamente para apanhar com balas a ele destinadas. Antero foi sentindo uma raiva crescente. Fora ela que tinha retirado a filha dele dos escombros! Merecia a sua ajuda. – Que vai o rei fazer com o ouro? – gritou o patife. – A maior parte dos navios está destruída e no mercado não há nada para comprar. Em tempos de necessidade, o ouro vale tanto quanto o pó! – logo de seguida segredou qualquer coisa aos seus homens. Quatro deles esgueiraram-se na direção de Antero. Antero recolheu-se e afastou-se da esquina. Com certeza Barbosa pretendia que os seus homens se introduzissem na Casa da Moeda pelas traseiras. Se ali o encontrassem acabavam com ele naquele mesmo instante. Pegou em duas pedras e logo de seguida largou-as no chão. – Merda! – deixou escapar. Os quatro homens detiveram-se. – Barbosa, está ali alguém atrás da ruína – disseram. Antero disfarçou a voz e disse: – Já não basta que não veja onde põe os pés, soldado! Além disso, também não sabe ficar calado! Tem ordens para assumir posição sem dar nas vistas e acaba por revelar a nossa localização? – Camaradas? – gritou o tenente que estava na Casa da Moeda. Antero arrastou o pé no chão por cima do entulho. – Não se preocupe, tenente! – acrescentou – Estes rafeiros não vão escapar. – Graças a Deus! Acocorou-se e espreitou pela esquina. Os quatro homens regressaram para junto do monte de entulho. Barbosa, porém, franziu a testa. Recebeu-os com indignação: – Seus cobardes! Se ali estivessem soldados, já há muito que vos teriam alvejado. Alguém está a tentar passar-nos a perna. Dalila olhou na sua direção, como que suplicando ajuda. Os quatro homens deram novamente meia volta. Que seguravam na mão? Cada um trazia uma espécie de trouxa de tecido. Enquanto se aproximavam, um deles deixou-a cair, mas segurou a ponta do tecido com firmeza. O centro da trouxa caiu pesadamente, ficando pendurado a meio caminho do chão. Tinham embrulhado pedras em tiras de tecido, para lhes dar balanço! Não se mostrou nada preocupado com a possibilidade de ser atingido com uma daquelas pedras na cabeça. «Corre daqui para fora!», berrou-lhe uma voz interior. «Foge a sete pés!» No entanto, logo se lhe sobrepuseram amargos pensamentos, que lhe deixariam a consciência pesada como chumbo e que lhe impediram a fuga. Iriam fazer mal a Dalila. Como seria capaz de continuar a viver se soubesse que tinha permitido tal coisa? Pôs o pior ar de mau que conseguiu. Levantou-se e pôs-se a descoberto. – Vocês é que escolhem. Rendam-se ou morrerão. Os quatro homens esboçaram um sorriso. Tinham os dentes negros. – Já não basta que não veja onde põe os pés, soldado! – imitou um deles. Começou a fazer a pedra girar no ar para tomar balanço, à medida que se iam aproximando. – Achavas que conseguias fazer-nos de parvos? – Como queiram. Afinal decidiram morrer – afirmou Antero, começando a caminhar na direção dos homens. Os rostos deles mostraram-se confusos. Foi então que um começou a rodar o braço para a pedra ganhar balanço. – És tu que vais morrer, amiguinho! Antero esquivou-se ao golpe. A pedra passou-lhe rente à cabeça, emitindo um perigoso silvo. Um tufo de cabelo de Antero chegou mesmo a ser levantado pela deslocação do ar. Antes que o próximo pudesse atacar, projetou o corpo para a esquerda e apressou-se a correr entre a ruína e o monte de entulho na direção da Casa da Moeda. Os quatro homens correram atrás dele. Antero deu tudo por tudo. A cada passo, a perna doía-lhe. Diante do monte de entulho virou-se para a direita, avançou a coxear para a Casa da Moeda e gritou: – Vá, tenente, dispare! Pouco depois relampejou, vindo da casa, o fogo das armas. Ouviram-se quatro tiros. Antero olhou por cima do ombro. Três dos homens caíram. O quarto continuava a persegui-lo e, com o rosto desfigurado pela fúria, berrou: – Eu mato-te, porco! Por detrás do monte de entulho, Barbosa gritou: – Adiante, homens! As espingardas deram o que tinham a dar, vamos direitos ao ouro! Os restantes cúmplices precipitaram-se, por cima do monte de entulho, rumo à Casa da Moeda. Foi disparado um quinto tiro. Um dos criminosos caiu ao chão, segurando o ombro enquanto gritava. Antero descreveu um círculo, a correr, em redor do monte de entulho e, tal como esperava, haviam deixado a mulher para trás ao iniciar o assalto. Recebeu uma forte pancada nas costas. Uma onda de dor perpassou-lhe o corpo, que se vergou e aterrou sobre os joelhos com toda a força. A dor irradiava com impulsos cada vez mais vigorosos. Antero soltou um gemido. O perseguidor deveria ter-lhe acertado com aquela espécie de funda. Viu um pé sujo, com unhas amareladas, avançar na sua direção. O pontapé dirigiu-se com violência ao estômago. Todo o fôlego esvaiu-se-lhe. Antero tateou o chão, em busca de um fragmento de entulho. Pegou no primeiro que encontrou com tamanho suficiente e com ele golpeou o pé do atacante. Um estremecimento percorreu o corpo do homem. Antero voltou a bater-lhe com a pedra na perna, mas segurando na ponta do tecido, o atacante imprimiu à pedra uma rotação e atingiu Antero no ombro. Sentindo a pancada como se algo lhe furasse a carne até às profundezas, Antero berrou de dor. Depois agarrou a camisa esfarrapada do agressor e, aproveitando o impulso para se levantar, agarrou-o pela barba e acertou-lhe com o joelho entre as pernas. De um salto, pôs-se junto de Dalila e deu- lhe a mão. – Vamos embora daqui! Enquanto se afastavam a correr, olhou para trás. O homem, estava deitado no chão, curvado, puxava os joelhos contra a barriga e produzia uns sons roufenhos. Para lá do monte de entulho, os criminosos entraram na Casa da Moeda. Levou Dalila para longe dali, na direção da margem do Tejo. Aí chegados, virou para oeste. Correram por cima das poças, até que, por entre as ruínas, avistaram a cúpula incendiada da catedral e as paredes do palácio, despedaçadas pela onda, que demarcavam um espaço vazio. Ela recolheu a sua mão e ficou parada, de pé, ofegante. – Não estou habituada – as faces dela apresentavam-se enrubescidas pelo esforço. – A correr, quero eu dizer. – Acredite que também os meus pulmões estão a arder. Na verdade eram mais as costas que, a cada inspiração, lhe provocavam dores, e o ombro, que fazia as dores irradiarem e propagar-se por todo o corpo. Passou cuidadosamente a mão pela perna. Uma mancha algures entre o azulado e o amarelado formara- se em redor de toda a articulação do joelho. Cerrou os maxilares. – E esta perna também já não consegue mais. Quando voltou a erguer a cabeça, sentiu uma onda de calor inundar-lhe o peito. Os luminosos olhos azuis dela estavam apontados na sua direção. – Foi muito corajoso – disse ela. – Salvou-me a vida. Ele sorriu. – Fez por merecer até mais do que isso, Dalila. O olhar dela agitou-se. Estava a esconder qualquer coisa. – Como está a sua filha? – perguntou ela. – Ficou com as princesas reais em Belém. Ali não lhe falta nada. – Vou procurar o meu pai. Espero que tenha sobrevivido à onda. Agradeço-lhe novamente, do fundo do coração. Oxalá possa Deus recompensar o seu altruísmo. – Como está Leonor, a sua irmã? Dalila hesitou um instante, depois virou-se para o lado e seguiu ao longo da margem. Antero ficou perplexo. Não conseguia perceber o comportamento dela. – Espere! – seguiu atrás dela, a coxear. Ao alcançá-la, reparou que as lágrimas lhe corriam pela face abaixo. – Tenho... de ir procurar o meu pai – repetiu ela. – Seja o que for que tenha acontecido a Leonor, só posso dizer que lamento terrivelmente. E estes homens, quero dizer… Aquilo que lhe fizeram! Não será melhor eu acompanhá-la? – Não. Por favor, deixe-me sozinha. Ele deteve-se. Por que razão não era capaz de perceber o que se passava na cabeça dela? Ela era-lhe uma estranha, mas, ao mesmo tempo, o amor por ela acalentava-lhe o coração. 16
–Não vos vai faltar nada – declarou Gabriel Malagrida. – Eu sabia
que vinha aí um tremor de terra, e a tempo tratei de mandar pôr os tesouros dos Jesuítas a salvo, fora da cidade. As quatro figuras esfarrapadas olhavam-no com verdadeira veneração. – Terão comida à disposição e um teto sobre as vossas cabeças. Antes de todos os outros começarem a construir, vou arranjar-vos pedras e argamassa. Serão dos primeiros a ter uma casa nova. As quatro figuras acenaram com a cabeça, em sinal de agradecimento. Atrás deles brilhavam as traves incineradas e encharcadas do edifício da autoridade portuária. A água pingava da madeira e desenhava anéis numa poça escura. – Confiam em mim? – Confiamos em si, padre. – Vão e misturem-se com os que fogem. Digam-lhes que os Jesuítas estavam preparados e que eu tinha previsto a catástrofe com exatidão para o primeiro dia de novembro. As figuras andrajosas olharam para cima, surpreendidas. – Vão preparar a terra para uma boa sementeira. Pregarei ao povo, que irá novamente consagrar-se a Deus. – Sim, padre. – É tudo. Voltem aqui amanhã à noite. Os outros fizeram uma vénia e retiraram-se. Malagrida virou-se na direção do rio. O vento fustigava-lhe as roupas. Na barcaça, com cerca de dez passos de comprimento, que ele mandara reparar, carpinteiros martelavam, pregando pranchas suplementares. Os seus ajudantes calafetavam as fendas com breu. A água estava um pouco revolta, mas não mais do que em qualquer outro dia ventoso. Os habitantes de Lisboa ainda continuavam tolhidos pelo medo, mas ele estava já, no seu interior, preparado para o que iria ocorrer, pelo que conseguia agir com razoabilidade e eficácia, muito embora aquela calamidade tivesse ocorrido há apenas algumas horas. É claro que o terramoto o havia apanhado de surpresa também a ele, pois convencera-se de que poderia abandonar a cidade a tempo, logo que os indícios se avolumassem: aquele estremecimento do chão ainda pouco pronunciado e de que mal se dava conta, as fontes com águas alteradas. E depois surgira assim de repente, com uma impetuosidade que nem mesmo ele fora capaz de prever. Conseguira sobreviver e agora tinha de aproveitar, depressa e sem hesitações, a vantagem que aquela situação lhe proporcionava, concluindo os seus preparativos. – Voltemos então a si, Leonor – declarou ele. – Espere lá. Posso perguntar-lhe uma coisa? Ele continuava virado para o rio, a observá-lo. – Quer saber por que razão estou a mentir? – Sim. – Também mente quando faz os seus pretendentes acreditarem naquilo que quer, ou não? – É verdade – Leonor reprimiu o pensamento que a levou a imaginar Antero. – Sinto dificuldade em explicar por que razão me surpreende tanto ouvi-lo dizer uma mentira. Talvez tenha a ver com o facto de até hoje eu pensar que o padre trabalhava ao serviço de Deus. – Eu trabalho ao serviço de Deus! – E Ele precisa de que minta por Ele? Gabriel Malagrida virou-se para ela. – Pode acreditar quando lhe digo que desejaria que tal não fosse necessário. Deus podia fazer de mim um Moisés. Um Elias – olhou- a diretamente nos olhos. – Estou pronto. Tenho para Ele um exército inteiro de servidores. Ofereço-Lhe a minha voz, que não é coisa de pouca monta, e as minhas forças. – Moisés tinha oitenta anos quando Deus o convocou. Talvez precise de mais alguma paciência. O líder dos Jesuítas inspirou de modo bastante audível. – Não tenho mais tempo. Sabia que Sebastião de Carvalho pretende encerrar as missões dos Jesuítas no Brasil? Mal se torne secretário de Estado do Reino, irá persuadir o rei de que a nossa influência na América do Sul é demasiado grande. Pretende que sejam funcionários do Reino a assumirem o controlo na colónia. – E isso seria mau? – Os meus índios fazem-se ao mar nas suas jangadas para ir pescar, enquanto Sebastião de Carvalho fica para aqui a fazer intrigas. Levam consigo o arco e as setas e vão caçar para a floresta tropical, e, sem que eles sequer disso se deem conta, um homem de má índole faz tudo ao seu alcance em Portugal para lhes destruir essa tranquilidade. Quer negar-lhes a nossa mão protetora. E não se ficará por aí. O ministro pretende gradualmente retirar o poder à Ordem dos Jesuítas. Não deverá manter-se no cargo nem três dias. A cada dia que passa vão sendo maiores os danos que nos causa. – Queria que, depois da catástrofe, eu viesse ter à margem do rio. Aqui estou. – E chegou mesmo a tempo, Leonor. Está na altura de transformar o seu plano em realidade. Gemidos e pedidos de ajuda faziam-se ouvir sob a escuridão do céu noturno. No interior do que restava dos conventos situados em zonas altas, o fogo continuava a grassar, e os palácios consumidos pelo fogo que antes se erguiam nas encostas já só emitiam a luz das brasas. Leonor seguiu o pai e o jesuíta através da noite. Tomás assemelhava-se a uma gralha. O manto que o cobria esvoaçava ao vento, as mãos magras destacavam-se deste conjunto, como se fossem garras. O nariz, no rosto franzino, poderia perfeitamente passar por um bico. Um muro que se desmoronara bloqueava a escada que pretendiam usar para descer a colina. Para a esquerda não conseguiam continuar, por causa do fogo. Tomás virou para a direita. – Não entendo – perguntou o pai – por que razão ele quer falar connosco logo nesta noite. Você tem noção de tudo o que hoje perdemos? E de todas as tarefas que esta família tem pela frente, se quiser sobreviver? Não posso perder nem uma hora! – Não tardará a deixar de afligi-lo a ideia de tudo aquilo que hoje perdeu, barão. – Mas de que está a falar? – perguntou Leonor, que lhe custava fazer naquele dia o papel da filha que sabia tanto quanto o pai. Não estava habituada a vê-lo assim tão vulnerável e frágil. Preferiria tê-lo posto logo ao corrente. – Não te metas tu nisto – disse o pai. – O padre Malagrida tem um plano grandioso – declarou Tomás. – Já falei com o seu pai a respeito dele em algumas circunstâncias. O padre Malagrida decidiu que a menina Leonor também poderia desempenhar um papel nele. Deveria sentir-se honrada. Obviamente que Tomás sabia que, no início, o plano até começara por ser da autoria dela, mas o pai ignorava esse pormenor. Acreditava que era ele mesmo que conduzia a família rumo a uma vantajosa aliança com os Jesuítas. – Como pode arquitetar planos numa noite como a de hoje? – perguntou ela. – Nem temos sequer a certeza de continuar vivos! Pode muito bem vir aí uma nova onda, ou porventura a terra voltar a tremer. Onde havemos nós de refugiar-nos? Para onde podemos levar o pouco que nos resta? Começa a correr o boato de que o paiol do castelo está prestes a explodir, devido ao calor dos incêndios. Nem sequer por lá se consegue estar seguro. E fala você de planos secretos. – Um homem como o padre Malagrida vê mais além do que apenas o dia de hoje. Chegaram junto da margem do Tejo. O reflexo da cidade em chamas parecia dançar sobre as vagas negras. A barcaça a remos estava amarrada diante do cais destruído. O Alfaiate seguia à frente deles, e subiu o passadiço. Ao chegarem junto à amurada da embarcação, Leonor viu bancos para cerca de cinquenta remadores. Na popa fora montada uma tenda. Diante desta, colocados sobre suportes de ferro, dois lampiões alumiavam a cena. O Alfaiate apontou para a tenda: – O padre Malagrida está ali à sua espera. Uma escrava trocara de roupa com ela. Contudo, sentia-se como que nua com aquele traje. Deveria ter mantido as suas, mesmo rasgadas. Além disso, não estava sequer maquilhada, não tinha rouge nas faces, nem tão-pouco as veias desenhadas. Um dos seus vestidos tê-la-ia ajudado a sentir-se melhor. O pai ficou parado em frente à tenda e pigarreou. – Padre Malagrida? – Entre – fez-se ouvir do interior. O barão afastou a lona, levando o tecido encerado da tenda a produzir um som semelhante ao de uma palmada. Leonor curvou-se para atravessar a entrada e passar para o interior. Viu velas e uma garrafa prateada sobre uma mesinha, junto à qual três copos formavam uma pequena família. Malagrida encenara muito bem aquele encontro. Se o pai ainda tivesse algumas reservas, não tardariam a desaparecer. O jesuíta levantou-se lentamente. Indicou-lhes um banquinho para se sentarem. – Sentem-se, menina Leonor, senhor barão. Fico contente que tenham vindo. Sentaram-se. – De que se trata? – perguntou o pai. – O que é assim tão importante a ponto de me ter chamado num dia como o de hoje? O olho morto de Malagrida observava Leonor, enquanto o outro concentrava a sua atenção no pai dela. – Hoje, a desgraça não se limitou ao facto de a cidade ter sido destruída. Na Corte foi também tomada uma decisão extremamente deplorável. Malagrida ergueu a garrafa e verteu vinho para os copos prateados. Um deles foi oferecido a Leonor e um outro ao pai. Ela aceitou o copo, mas não bebeu. – Sebastião de Carvalho foi nomeado secretário de Estado do Reino – Malagrida levou o seu copo aos lábios e bebeu. A tenda era demasiado baixa para ele. Parecia um urso no interior da toca de um texugo. Voltou a pousar o copo. – Como sabe, barão, tínhamos combinado algo. Pois bem, eis chegada a altura. Já só nos falta uma coisa, algo que a sua filha nos pode fornecer. – Eu? – Leonor fingiu-se surpreendida. – Eu sou comerciante, padre – interveio o pai. – Estou habituado a negociar com mercadorias, não com promessas. – Não precisa de me dar lições, barão. Sei perfeitamente bem quem o senhor é – Malagrida fez algumas inspirações, produzindo uma espécie de estertor. Depois tossiu, soltou alguma expetoração e engoliu. Ficou em silêncio. Por fim, com um ruído sibilante, inspirou novamente. – A minha proposta é boa. Sabe bem que não pode recusá-la. Ninguém poderia. – Até agora fui só eu quem fez adiantamentos. Julgo que é tempo de me demonstrar a seriedade com que está neste negócio. Malagrida fitou o barão, mantendo o rosto sem qualquer expressão. Este último fitou-o de volta com os seus olhos avermelhados. Também a sua expressão não revelava fosse o que fosse. – Daqui a alguns dias você será um dos homens mais poderosos no Reino de Portugal – disse por fim o jesuíta. – E quer que lhe demonstre qual a seriedade com que estou nisto? Fico dececionado com essa sua mentalidade mesquinha. – Até hoje mais não fez do que pagar-me com promessas – afirmou o barão. – Isso só já não chega. Malagrida arquejou. – Muito bem, estou na disposição de lhe demonstrar a minha boa vontade. – Sentou-se. – Lisboa está devastada. Ainda assim, alguns edifícios escaparam incólumes ao tremor de terra. Um deles é uma casa na Rua Formosa, que há pouco tempo se tornou propriedade minha. – Olhou para Leonor e novamente para o barão. – Deverá passar a ser sua. – Vai mandar lavrar um auto de doação? – Daria demasiado nas vistas. O meu secretário redigirá um contrato de venda, por uma soma substancial, que você jamais terá de me entregar. – Quer isso dizer que irá declarar que eu lhe paguei essa soma? Malagrida hesitou por breves instantes. De seguida, acenou afirmativamente com a cabeça. – Por mim pode ser. – De acordo – respondeu-lhe o pai. – E que terá Leonor de fazer? Leonor ergueu-se. – Não entendo. Há milhares de pessoas a morrerem, pai, e tu aqui a regatear por uma casa e uns planos quaisquer? – Senta-te! – ordenou o pai. – A tarefa irá proporcionar-lhe prazer – declarou Gabriel Malagrida. Ela sentou-se. Embora tudo estivesse a correr tal como desejara e há muito andara a preparar, apertava-se-lhe o coração. Não gostava de mentir ao próprio pai. Ainda há alguns dias nada daquilo lhe teria colocado qualquer problema, mas havia algo no seu interior que o tremor de terra alterara. O tremor, a morte de Dalila e todo o sofrimento a que havia assistido. Parecia-lhe mesquinho estar ali sentada, envolvida em intrigas, enquanto famílias e crianças e velhos morriam em condições lastimosas. – Antes de discutir os pormenores com o senhor seu pai, vamos a si, menina Leonor – disse Malagrida. – Quero que se aproxime de um funcionário da chancelaria do novo secretário de Estado do Reino. Faça com que ele se lhe torne submisso. Tem dois dias para cumprir a tarefa. Depois, arranja maneira de conseguir um documento assinado pelo secretário de Estado. Um tratado político, seja ele qual for. Deverá trazer o documento e entregar-mo. – Como hei de eu conseguir isso? – Menina Leonor – respondeu ele –, tem por hábito ver-se ao espelho? – Claro que sim. – Então deve ter noção de que não há em Lisboa homem algum que lhe negasse um seu desejo. Baixou a cabeça. O elogio de Malagrida ferira-a, pois não era completamente verdadeiro. Existia um homem capaz de rejeitar os seus desejos. – Ela encontrou-o – disse Malagrida depois de os visitantes se irem embora. No interior da tenda o Alfaiate deu um passo em frente, afastando-se da sombra onde estava recolhido. – Como sabe? – Quando ainda há pouco lhe disse que não havia homem que lhe negasse um seu desejo, a dor que sentiu foi mais do que óbvia. Alguém a rejeita. E quem rejeitaria uma mulher como ela? Só conheço uma pessoa capaz disso. – Quer dizer que ela está a enganar-nos? – Isso não me incomoda. É bom que ela tenha esta capacidade, irá usá-la para conseguir obter o documento do tratado – Gabriel Malagrida passou o polegar pelos cantos da boca. – Só me deixa um pouco inquieto o facto de Antero por aí continuar, mesmo sabendo que eu ando no seu encalço. Isso quer dizer que ele não me teme. Ou então significa que tem um objetivo que o leva a pôr a vida em risco. Qualquer das duas possibilidades não nos é favorável. – Pode bem ser que esteja apenas à espera de uma oportunidade melhor para se escapar da cidade. – Não. Ele está aqui porque quer. Vivo, representa um perigo para mim. Irei por isso ajudá-lo a morrer. Segue Leonor. Ela conduzir-te-á até ele. Um pisco-de-peito-azul cantava no fresco ar da manhã. O Sol ainda ia baixo. Vertia uma luz alaranjada sobre as árvores desenraizadas do jardim real. Aquela imagem pareceu a Leonor algo irreal, como um conto de fadas. A cerca de seis quilómetros de distância, ardiam as ruínas de Lisboa. Os saqueadores pilhavam os cadáveres e escavavam as ruínas em busca de algo de valor. Aqui em Belém, porém, apenas alguns campos de batata-doce e olivais mais para oeste, reinava, na alvorada, um idílio tranquilo. Ergueu a cabeça acima de uma fonte em forma de cavalo e espreitou na direção do palácio. Diante da entrada principal havia tendas cujo tecido tinha debruns prateados. A guarda pessoal do rei estava em redor da tenda, em sentido, vários soldados lado a lado. As lâminas falciformes das alabardas refletiam o sol matinal. Ao lado do palácio, brincava um grupo de crianças, diante de um salgueiro-chorão inclinado. Algumas das suas raízes tinham sido postas a descoberto pela enchente, e a árvore afundara-se um pouco. A partir do tronco, de esguelha, pendiam os ramos até ao chão. Fora este lugar que as crianças haviam escolhido para brincar, com amas e guardas por perto. Um pouco mais afastada, uma menina com cabelos ruivos entrelaçava algumas ervas de modo a formarem uma grinalda. Deveria ser ela. Leonor saiu de trás da fonte e, curvada, dirigiu-se, a correr, para uma latada em arco coberta de videiras, passando por de-trás de uma fileira de arbustos ornamentais. O salgueiro-chorão encontrava- se agora entre ela e o grupo de adultos. Leonor colheu uma flor vermelha de um arbusto e avançou na direção do salgueiro. Mergulhou na sombra projetada pela copa da árvore, a qual exalava o aroma acidulado das suas folhas. Leonor aproximou-se furtivamente dos ramos mais à frente, cuja folhagem formava uma cortina que dividia a penumbra da luminosidade. Cada uma das folhinhas estava coberta de uma penugem prateada. Samira achava-se a apenas alguns passos de distância da árvore. Leonor murmurou o nome dela. A pequenita ouviu-o de imediato. Observou a árvore com os olhos muito abertos. – Anda aqui ter comigo. Sou eu. Após uma breve hesitação, Samira aproximou-se. – Estou aqui. Por detrás dos ramos. Quero perguntar-te uma coisa, mas as amas não me podem ver. Samira chegou-se junto dos ramos. Em silêncio, olhou através das folhas. – Agora és um espírito das árvores, tia Dalila? – perguntou ela. – Não sou a Dalila, sou a Leonor. E não sou nenhum espírito. – Porque não te podem as amas ver? – Ninguém pode saber que eu estive aqui. A menina atravessou a cortina de folhas prateadas, o que surpreendeu Leonor. – Estou à procura do teu pai – disse ela. – Fazes-me um favor? Leva-lhe esta flor, diz que fui eu que a mandei e pergunta-lhe se ele pode aqui vir. A pequenina fez uma careta. – Não posso incomodá-lo – respondeu ela, afagando a relva já seca com o pezinho descalço. – Ele está a trabalhar e disse que tenho de ficar aqui junto das princesas. – Onde está ele? – No mosteiro – hesitante, estendeu a mão. – Dás-me a flor? Leonor entregou-lha. A pequenita olhava em redor da flor que segurava na mão. Por fim, esgueirou-se através da cortina de folhas e fugiu dali a correr. – Onde vais tu, Samira? – perguntaram as amas – Fica aqui! Samira limitou-se a continuar a correr e as amas não foram atrás dela. Quando a menina dobrou uma esquina do palácio, voltaram a dedicar-se à conversa que haviam interrompido. Leonor respirou fundo. Agora já só tinha de pensar como iria dá-lo a conhecer a Antero. A mãe de Samira fora com certeza uma mulher especial, capaz de lhe causar assombro, uma mulher do calibre dele. Também ela, Leonor, poderia sê-lo. Só que falhara precisamente naquilo que para Antero era importante. O olhar de Malagrida demonstrara-lho. Quando o pai e ela haviam deixado a tenda, o jesuíta olhara-a atentamente, daquele modo como se observa alguém acerca de quem não se sabe se é amigo ou inimigo. Ela deveria, de algum modo, ter-se denunciado. Ele não voltara a mencionar Antero, mas o olhar fora inequívoco: o mago desmascarara-a. 17
Antero segurava o livro chamuscado nas mãos. Pedacinhos negros
soltavam-se do volume e deixavam os seus dedos sujos. O livro exalava um forte cheiro a queimado. Era o legado de Vasco, que morrera carbonizado. O protetor dos livros acompanhara na morte aqueles que protegia como seus filhos. Sentia saudades do bibliotecário. Os dedos curvados pela gota, que tranquilamente iam avançando ao longo de uma linha enquanto lia. A voz circunspecta. As rugas em redor dos olhos. Antero observava o rio, as enormes massas de água que indolentemente iam passando diante de si, e engoliu em seco. As lágrimas ajudaram a acumular a sensação de sufoco que experimentava. Vasco jamais conseguira ultrapassar o facto de a Inquisição ter retirado livros da sua biblioteca. A censura fora para ele algo tão grave quanto raptar uma criança. A sua desconfiança transferira-se depois para os poderosos Jesuítas, ao saber que estes apoiavam a censura ao invés de combatê-la. Antero, porém, quisera tornar-se um homem da ciência como o padre Barnabé Cobo, o famoso jesuíta que, em 1638, trouxera da orla oriental dos Andes para Madrid a casca das árvores peruanas do género Cinchona, que viria a permitir curar pessoas doentes com malária. Cobo inventara o chamado «pó dos Jesuítas», que os doentes misturavam num líquido e bebiam para ficar curados. Desde essa altura, milhares de vidas tinham sido salvas graças à introdução daquele remédio. Queria ser como Francesco Grimaldi, o físico jesuíta que descobrira a difração da luz, a decomposição desta num prisma. Ou como Lourenço de Gusmão, também ele jesuíta, que antes ainda de Montgolfier fizera subir pelos ares um balão, um prodígio sem precedentes. Gabriel Malagrida reconhecera nele essa inclinação. Obtivera-lhe livros que haviam sido confiscados pela Inquisição e que figuravam na lista dos proibidos. Autorizara-o a assistir a preleções do colégio jesuíta que versassem temas como a matemática e a física, muito embora Antero não tivesse frequentado os dois anos de noviciado, nem ingressado na ordem, nem tão-pouco realizado os três votos monásticos de pobreza, obediência e castidade. Malagrida falara-lhe da Itália, a sua pátria, da ilha de Córsega, onde trabalhara como professor, e das suas viagens de exploração ao Brasil. Relatara-lhe a subida que fizera do Amazonas, como havia aprendido a língua dos indígenas, como vivera junto ao rio Itapicuru entre os Tabajara. Descrevera-lhe animais invulgares, os gritos agudos das aves na selva, o ar quente e húmido e as serpentes venenosas. Antero venerava-o, e deixou-se seduzir pelo febril desejo de se tornar um estudioso das ciências naturais. Quando insistiu com o líder dos Jesuítas para que este o levasse para a colónia, Gabriel Malagrida colocara-lhe como condição que Antero iniciasse o noviciado. Fora então que dera o grande desgosto a Vasco. O bibliotecário não foi capaz de aceitar o facto de o seu querido discípulo se ter juntado aos Jesuítas. Segurara nele, abanara-o e, em tom de aviso, dissera-lhe: – Antero, não sabes o que estás a fazer! – É claro que sei. – Tens noção daquilo que te espera passados os dois anos do noviciado? Após os votos monásticos, depois do tempo como escolástico e de ser ordenado padre? Um homem com a tua inteligência será admitido na elite dos professos, no cerne mais íntimo da ordem. Terás de fazer o quarto voto! – Qual quarto voto? – Não é a investigação do mundo que eles pretendem, Antero. – O que é o quarto voto? – Nenhuma outra ordem presta este juramento. Se fores admitido como professo, jurarás uma obediência incondicional. É isso que eles pretendem. Os Jesuítas conduzem uma cruzada contra os protestantes, serás meu inimigo e também dos teus pais, ver-te-ás envolvido numa guerra que não é tua! No final de contas, terás as mãos sujas de sangue. Rira-se outrora do medo que o bibliotecário demonstrara. Sentia- se invulnerável. Passado pouco tempo, Gabriel Malagrida fez dele o seu braço-direito. A pouco e pouco, foi iniciando Antero nos segredos da ordem. Antero ajudou-o a adquirir espingardas, pólvora, projéteis e floretes e a transportá-los para a América do Sul. Em nome de Malagrida escrevia cartas àqueles que dirigiam o «Estado jesuíta» local, explicando-lhes que tinham de constituir um exército, para se poderem defender de tribos indígenas inimigas e dos ataques das potências coloniais europeias. Tudo isso, porém, teria de passar despercebido. Conferenciou durante bastante tempo com Malagrida acerca da melhor maneira de introduzir jesuítas em países protestantes e da forma como estes poderiam dar início ao seu trabalho sem dar muito nas vistas junto dos funcionários das cortes locais. Decidiram em conjunto quais os membros da ordem a enviar para a corte de cada soberano, para que aí pudessem trabalhar na qualidade de conselheiros não-oficiais. Antero enviava jesuítas para junto dos aristocratas e daqueles que administravam centros urbanos, com vista a angariar capital para fundar novos colégios, possibilitando assim a manutenção do sistema de ensino da ordem. – Estás num lugar importante – costumava Malagrida dizer-lhe. – Portugal foi a primeira província da Companhia de Jesus. Só depois é que vieram a Espanha, a Índia, a França, a Alemanha e outras regiões. É aqui que a ordem tem a sua mais forte base de apoio. Quem, se não nós, deverá assumir a liderança? Quando Antero lhe perguntou se poderia voltar a arranjar-lhe livros, Gabriel Malagrida remeteu o assunto para os meses vindouros. – Tu és inteligente, Antero, mais do que qualquer outro que eu conheça. Irei proporcionar-te uma formação fantástica. Tem paciência. O teu futuro está em boas mãos. E os meses foram passando. Os outros membros da ordem começaram a tratar Antero com respeito: não sabia dizer se era pelo simples facto de o admirarem ou por medo de Malagrida. Quanto a Vasco, o bibliotecário, deixou de vê-lo. À noite, quando se deitava, o anseio pelos livros e pela investigação científica mantinha-o acordado. Num ameno dia de Junho, estava ele no gabinete de Malagrida à espera do líder dos Jesuítas. Para passar o tempo, tirou um livro da estante e começou a lê-lo, e uma palavra ficou marcada no seu entendimento, como que a fogo: obediência. Franziu a testa. Inácio de Loyola, o fundador dos Jesuítas, descrevia no livro diferentes graus de obediência, que deveriam ser ensinados aos novos membros da ordem. O nível mais elementar era puramente exterior, a obediência de execução. Consistia unicamente em o subordinado levar a cabo a ação que lhe fosse atribuída como tarefa. Inácio explicava que esta era uma forma de obediência bastante imperfeita. O segundo nível previa que o subordinado tornasse a vontade do seu superior a sua própria vontade. Inácio dava a isto o nome de obediência da vontade. «Este nível proporciona já prazer no ato de obedecer», escrevia ele. No entanto, cada jesuíta teria de chegar ao ponto de não apenas querer o mesmo, mas também de pensar como o seu superior. Essa era a obediência do entendimento, o nível mais elevado, pois a renúncia às próprias convicções era o mais difícil que poderia ser exigido a um ser humano. E precisamente por isso era a caraterística do jesuíta perfeito. Antero pasmou. Sacrificar o seu próprio entendimento? Voltou a ler a última frase. Trata-se de uma obediência sem limites, até ao sacrifício das próprias convicções. O aviso de Vasco veio-lhe à memória. «Não é a investigação do mundo que eles pretendem, Antero.» De repente tudo aquilo que andara a fazer naqueles últimos meses para Malagrida assumiu um sentido bem diferente. As escolas serviam para cunhar as mentalidades dos jovens. As universidades atraíam as mais iluminadas cabeças do país para junto da ordem. Conselheiros políticos e confessores posicionados nas cortes dos soberanos eram capazes de influenciar os negócios da governação. O exército, na América do Sul, protegia não apenas os indígenas, mas também as missões dos Jesuítas. Foi já com o coração a palpitar fortemente que prosseguiu a leitura: Embora as restantes comunidades religiosas possam suplantar- nos no que diz respeito a abstinências e vigílias, a nossa irmandade deverá destacar-se por meio de uma obediência perfeita e verdadeira, por meio da renúncia voluntária à opinião pessoal. Antero fechou o livro e voltou a colocá-lo na estante. Com as mãos a tremerem retirou um outro e folheou-o. Chamava-se Imago Primi Saeculi Societatis Jesu, era de 1640, e aí pôde ele ler: É indesmentível que foi por nós iniciada uma luta enérgica e constante em prol da religião católica e contra a heresia. Enquanto em nós houver o mais pequeno sopro de vida que seja, ladraremos contra os lobos para defender o rebanho católico. Não existe a mais pequena esperança de paz, a semente do ódio é-nos inata. Aquilo que Amílcar foi para Aníbal é Inácio para nós: é por instigação sua que jurámos guerra eterna aos altares. «A semente do ódio é-nos inata», repetiu ele em pensamento. «Jurámos guerra eterna aos altares». – Estás pálido – comentou Gabriel Malagrida. Antero sobressaltou-se. Não se tinha dado conta de a porta ser aberta. Fechou o livro num ápice e voltou a colocá-lo no lugar. – Que estavas a ler? – Falava da obediência. – Isso preocupa-te? – perguntou Malagrida, sorrindo. – Quem quiser alcançar o nível da verdadeira obediência terá de despir a sua própria vontade e vestir a do divino, que lhe é imposta pelo seu superior. É assim que as coisas são – sentou-se diante da sua secretária. – Mas isso não tem de te inquietar. Vais ser alguém a quem os outros devem obediência, e não o contrário. Antero ficou em silêncio. Pensou: «Não é a investigação que eles pretendem. É, isso sim, a guerra contra os protestantes. Vasco tinha razão.» Nesse momento, Malagrida fixou nele um olhar demorado e examinador. Era como se conseguisse ler os seus pensamentos. – Tens de ser cauteloso, rapaz – disse ele. – Tu sabes muito, o que faz de ti algo valioso para todas as partes envolvidas. Alguém como tu fica facilmente dividido entre diversas frentes. Nessa altura pensara pela primeira vez em fugir. Antero olhou para o rio e passou as mãos sobre o livro negro e chamuscado. Vasco estava morto. Abriu-o e leu algumas linhas. Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. Nele, Isaac Newton descrevia as forças invisíveis que se atraíam e repeliam. Tinha inventado a palavra «gravitação», que designava uma força que os objetos com massa exercem uns sobre os outros, tanto na Terra como também no céu, os corpos celestes entre si. «A força de atração diminui à medida que a distância aumenta» leu Antero. Levantou a cabeça e olhou em frente. E se o tremor de terra estivesse relacionado com fenómenos elétricos? Certa vez sentira a eletricidade no próprio corpo, ao tocar numa das máquinas que eram expostas nos cafés para atrair visitantes. Depois dessa experiência, o braço doera-lhe a noite inteira. Por outro lado, a eletricidade não era natural, mas produzida por máquinas. Na natureza, parecia só ocorrer mesmo nas descargas dos relâmpagos. Se a Terra albergava as suas próprias cargas elétricas, então escondia-as bem. Antero segurou numa pedra e atirou-a ao rio. Na superfície lisa da água, desenharam-se círculos, que se deslocavam na direção da foz, para o mar. Atirou mais uma pedra. Formaram-se de novo ondas circulares. Mais perto do centro possuíam contornos bem definidos mais para o exterior, eram menos pronunciadas, até se deixar de vê-las. «A força de atração diminui à medida que a distância au-menta». Pôs-se de pé. Voltou a atirar uma pedra e observou a reação da superfície da água. E se um tremor de terra suscitasse na superfície do planeta precisamente a mesma reação do que a pedra na superfície da água? O estremecimento nunca era igualmente forte em todo o lado. Havia sempre zonas em que ocorria uma terrível devastação, ao passo que outras adjacentes eram menos afetadas. Seria possível que o terramoto se propagasse como uma vaga que varria a Terra, e que essa vaga fosse a pouco e pouco perdendo força? Poderia o solo assumir a forma de uma onda? Não vira em Lisboa onda alguma, mas possivelmente a cidade era também demasiado grande para que se conseguisse notar a sua presença. Porventura ter-se-ia de pensar a uma escala maior, em termos de cida-des ou de regiões. Fosse como fosse, a enchente viera sob a forma de uma onda, primeiro uma mais forte e depois outras mais fracas. Antero levantou-se de novo. Regressou ao palácio. Teria de descobrir em que altura é que noutras cidades de Portugal se sentira a terra tremer e se para lá do país também acontecera alguma coisa, talvez em Espanha, em França, em África. A quem poderia ele perguntar a esse respeito? O olhar de Antero percorreu o jardim. O Sol que ia subindo no céu piscava entre as copas das árvores. O orvalho brilhava sobre a relva. Havia jardineiros a plantarem novas sebes, canteiros que reparavam as fontes. Diante dele, carpinteiros serravam madeira para uma paliçada que iria ser coberta de videiras, destinada com certeza a substituir uma daquelas que fora destruída. Nicolau Fernandes andava de um lado para o outro e barafustava: – Que pensam que andam aqui a fazer? – aproximou-se das ripas. – Querem que as paliçadas apodreçam daqui a meio ano? No jardim real não vão usar alburno! Fiz-me entender? – É madeira de carvalho boa, Dom Nicolau Fernandes – disse um operário de aspecto robusto. – Mas afinal és carpinteiro ou és padeiro? Tens obrigação de saber que a parte do alburno é mais atreita aos fungos. Seja carvalho ou não, a madeira será num instante destruída por fungos ou pelo caruncho. Enquanto estiveres a trabalhar para mim, não utilizas um pedaço que seja dela para uma paliçada, a qual vai ficar noite e dia exposta aos elementos! Já te disse que quero madeira do cerne. Nicolau Fernandes olhou para outro grupo de trabalhadores, que transportava uma paliçada pronta através do jardim. – Mais afastado do palácio – gritou ele. – Colocadas assim tão junto às janelas, estas paliçadas são um convite para os ladrões. Antero cerrou os punhos e passou diante deles em silêncio. Aqui o arquiteto estava a berrar e a dar ordens, mas quando ele, Antero, ficara preso debaixo das pedras, o outro deixara-o cobardemente em apuros. Aparentava ali a ferocidade de um leão, quando na realidade possuía a coragem de um piolho. «E eu?», pensou ele. «Serei mais corajoso?» Estivera junto à casa dos pais, perto daquele monte de destroços de paredes e vigas de madeira rachadas. Não encontrara ali ninguém. Alimentava a esperança de que os pais tivessem abandonado a cidade com os seus filhos mais novos antes de o terramoto começar. Teria assim conseguido salvar ao menos as vidas deles. A visão dos cadáveres nas ruas era-lhe quase insuportável. Samira veio a correr ter com ele. Trouxe-lhe uma flor vermelha. Talvez as princesas a tivessem aborrecido e não suportasse mais estar ao pé delas. Contudo, não parecia nada insatisfeita, pelo contrário, estava até radiante. Avançou na direção dela, afastando-se dos carpinteiros. – Que se passa, minha querida? – Disseram-me para te dar isto! – exclamou Samira, estendendo- lhe a flor. Uma terna declaração de amor como esta só podia ter tido origem numa mulher: Dalila. No seu íntimo, sentiu uma comoção que o acalentou. Pelos vistos arrependia-se de tê-lo tratado de modo tão frio junto às ruínas da catedral em chamas. Era uma sensação agradável ser assim tão delicadamente cortejado. – Leva-me até ela, Samira. – As amas não podem vê-la, disse ela, mas eu sei onde está! – explicou Samira, e desatou a correr. Antero seguiu-a, a coxear, em redor do palácio. Mais adiante a pequenita desapareceu sob os ramos densamente cobertos de folhas de um salgueiro-chorão. As princesas brincavam nas imediações e não lhe prestaram qualquer atenção. Aos seus olhos ele era um criado, uma daquelas criaturas insignificantes cujo único propósito era o de cuidar do seu bem-estar. Apenas as amas lhe lançaram olhares curiosos, ao que ele respondeu com um amistoso aceno da cabeça. Depois, passou através da cortina de folhas prateadas. Dalila envergava um vestido cinzento, bastante discreto, e não estava maquilhada. Conferia-lhe um aspecto vulnerável. Leonor sempre se maquilhara, a sua beleza era artificial e fria. Dalila, porém, era mais humana. A sua aparência exterior, mais simples, tocava-o. Sorriu. Os lábios dela tinham um aspecto macio. Também o seu olhar era doce. Teria noção de como era bela? Os traços do seu rosto, a linha formada pelo seu queixo, tudo isso ele gostaria de acariciar. Algo nele revoltou-se. Não deveria pensar daquela maneira em relação a Dalila, nem olhá-la desse modo! Sentia-se como se estivesse em chamas e ficou furioso consigo mesmo. A fúria tinha a ver com Julie, era uma ideia que ele preferia não aprofundar mais naquele momento. – Preciso de falar consigo – disse ela. Ele sorriu. – Samira, por favor vai ter com as princesas. A pequenita olhou para ele e, contrariada, pôs-se a fazer beicinho. Antero manteve o olhar fixado na filha, até que por fim ela cedeu, esgueirou-se através da cortina de folhagem e correu na direção das outras crianças. – Como posso ajudá-la, Dalila? Dalila estremeceu. 18
Tinha de dizer-lho. Só que, depois de saber quem ela era, Antero
deixaria de olhá-la da mesma maneira. Leonor já ele conhecia, dela não esperava nada de novo. Dalila, porém, era-lhe desconhecida. Ele estava curioso a seu respeito. Era absurdo. Durante todos aqueles anos tivera de esconder quem na realidade era: a sua família protestante não deveria dar com ela a rezar o terço, e os comerciantes e membros do Governo que espiava não deveriam saber que se encontrava com os Jesuítas. Tivera de ocultar a sua inteligência, as suas ambições, e agora, que finalmente pretendia revelar-se a alguém, tomavam-na por outra. Jogara com as ânsias e os corações dos homens, com vista a obter as informações de que Malagrida precisava. Nenhum deles conseguira resistir-lhe. Agora que ela já nada mais desejava que não fosse conquistar o coração de Antero, ele amava uma outra e, por sua vez, havia sido ele a utilizá-la para poder ver a filha. Deveria ela mantê-lo na ilusão? Que diferença faria mais tarde ter um nome ou ter outro? Se conseguira superar a mãe de Samira e se ele estava completamente apaixonado por ela, Leonor, não havia nada que fizesse que pudesse separá-los. Por outro lado, talvez fosse precisamente a verdade aquilo que o convencesse. Precisava de uma adversária forte, alguém por quem pudesse ter respeito e admiração. Uma mulher em quem pudesse confiar, até para roubar, se necessário fosse. Se lhe revelasse quem na realidade era, ele iria tê-la em maior conta. – Estou aqui para avisá-lo – disse Leonor. – Sei que é um contrabandista. Prega partidas aos guardas portuários. Evita os impostos e viola acordos comerciais. – Está a sobrestimar as minhas capacidades – respondeu ele, espantado. – Deixe-se de fitas! Comigo não precisa disso. Eu mesma não sou propriamente inocente. Há anos que trabalho como espia. O olhar dele ensombrou-se. – Não acredito nisso. – Não se apercebe de que esta fachada de menina bem- comportada é, no fundo, uma excelente máscara? – Que quer de mim? – o tom dele endureceu, o sorriso desaparecera já da sua face. Que havia ela feito mal? A mãe de Samira não era uma dessas mulheres que acompanham os maridos nas aventuras? – Estou aqui para avisá-lo. Os Jesuítas estão a tentar caçá-lo. Antero aproximou-se mais dela e agarrou-a pelo braço. – Que tens tu de fazer? Atrair-me a uma armadilha? Escutar aquilo que deixo escapar? – o seu olhar percebia-se uma tremenda fúria. – Nada disso. Estou aqui porque quero ajudar-te! – Não – corrigiu ele secamente. – Estás aqui porque Gabriel Malagrida te mandou. – Sei que ele te procura, mas não lhe disse nada a teu respeito, nada! Nem tão-pouco que te conheço! – Se assim é, por que razão te mandou vir cá agora? A mão de Antero que lhe apertava o braço provocava-lhe dor. Os dedos dele cravavam-se na carne como pregos metálicos. – Ele não sabe que eu vim cá – respondeu ela. – Foi por isso que tratei de conseguir que falássemos sem ser vistos. Estou preocupada contigo, Antero. E queria ver-te! É tudo. Ele olhou em redor. Tinha a pele da testa enrugada. – Não – disse com frieza. – Tens uma missão. Que te pediu ele que fizesses? – fitou-a directamente nos olhos. – Fala! Leonor engoliu em seco. Tinha dificuldade em conseguir aguentar a dureza do seu olhar. – Ele quer um tratado político – disse ela por fim. – Encarregou- me de roubar esses documentos a Sebastião de Carvalho. Antero soltou-a. – Nunca mais apareças por aqui. – Então esta é a tua verdadeira cara! – disse ela, sentindo o braço a arder. – Usas as pessoas enquanto te convém e depois descartas- te delas. Também te limitaste a utilizar-me. – Teve de pestanejar por nos seus olhos se estarem a acumular lágrimas. Sentira desprezo quando via aquilo acontecer com os homens, quando não conseguiam conter-se, e agora ela mesma era também incapaz de não chorar. – Fizeste de conta que estavas enamorado de mim porque precisavas de um pretexto para entrar na nossa casa, nada mais do que isso. Logo que deixo de ter qualquer utilidade para ti, tratas de me repudiar. Ele deu meia-volta. – Leonor? – Sim, sou a Leonor. Depois de tudo o que partilhámos, também não te fez diferença alguma começar a cortejar a minha irmã! És... És mesmo... «Abominável. Repugnante. Detesto-te!» Foi incapaz de pronunciar aquelas palavras, por medo de, ao fazê-lo, o perder para sempre. Amava-o, mas ao mesmo tempo desprezava-se a si mesma por isso. Não conseguia impedi-lo. O sentimento mantinha-se presente, muito embora ele a enganasse, maltratasse, nem sequer a merecesse. – Mentiste-me – disse ele. – Porque andas com o colar de Dalila? Fizeste-o para que te confundisse com ela! – Tu é que quiseste ver a Dalila em mim. A Dalila está morta! Lançou-se por cima da tua filha, quando começou o tremor de terra. Todas as forças pareceram esvair-se do corpo dele. – Isso é verdade? Leonor permaneceu em silêncio. Antero ficou ali de pé, a olhar para o vazio. – E Samira sabe disso? – Sabe. Foi-se embora. Deixou-a ali ficar sem dizer mais uma palavra que fosse. – Padre! – gritavam eles. – Padre Malagrida! Ajude-nos! – A bênção! – Cure-nos! – Misericórdia! Naquela manhã, o Sol ia, por detrás dele, erguendo-se no céu. À sua frente, junto à margem, estavam reunidos os estropiados, os que haviam sofrido queimaduras, os moribundos, e todos concentravam o olhar no convés daquela barcaça a remos. Agitava a cruz sobre eles sem qualquer entusiasmo. A visão daqueles corpos esfolados transportava-o de regresso à sua infância. O seu pai, Giacomo Malagrida, fora um médico conhecido. Também ele conseguira atrair multidões, mas a diferença era que as ajudava mesmo, ao invés de simplesmente agitar a mão no ar. Se o seu pai ali estivesse, saberia colocar talas nos membros partidos, envolver as escoriações e feridas em ligaduras, curar as queimaduras com unguentos. Saberia quais as vidas que poderia curar e quais não tinham já remédio. Tinha a destreza e os conhecimentos necessários para mitigar o sofrimento daquelas pessoas. Teria quinino contra as febres, pinças e ligaduras, lancetas para as sangrias, cautérios, bisturis, serras para as amputações. Gabriel suspirou. Outrora, quando ainda, em Como, ia à escola, sentia desprezo pelos adultos, por causa da sua hipocrisia: na igreja rezavam com fervor, mas na vida quotidiana mentiam, cometiam adultério e não dirigiam uma palavra que fosse a Deus. Ele pretendia vir a ser diferente. No entanto, tornara-se igual a eles. Quisera viver com Deus, como Noé, como Moisés, como José. Pretendera empreender cada passo da sua vida em conjunto com o Criador, com aquela entidade fascinante que, de vez em quando, falava com um ser humano, mas que depois se mantinha em silêncio durante séculos. Queria voltar a ser aquele menino de escola, com a vida toda diante de si, para poder voltar a fazer tudo melhor. As fumegantes ruínas de Lisboa faziam-lhe lembrar Menaggio, a sua cidade natal, em Itália. Também aí as casas se estendiam até às margens do lago Como. Atrás destas, erguiam-se montes, muito mais altos e imponentes do que aqui em Portugal, a água refletia as fachadas dessas casas, os sinos das igrejas soavam, e ele decidira dedicar a sua vida a Deus. Olhou para os destroços. Também a sua vida era um campo de ruínas. Aquilo que no Brasil havia feito pelos índios ia sendo progressivamente destruído por Sebastião de Carvalho. E ele, Gabriel, dia após dia, desiludia o Criador. As pessoas tomavam-no por profeta. Acreditavam que podia curá- las. Achavam que recebia mensagens de Deus. E, no entanto, ele era mais fraco do que qualquer deles. – Padre, tinha razão. Virou-se para trás. Era Tomás. – De que estás a falar? – A menina Leonor conduziu-me até ele. Está junto do rei. – Junto do rei? Maldito seja. O seu antigo discípulo andava em busca de apoios. – Padre Malagrida, há mais uma coisa. – O quê? – Ele tem uma filha. – Antero é pai? – Também não sei como conseguiu escondê-la todos estes anos. A idade dela indica que poderia ser da judia. – Bem – disse Malagrida, acenando com a cabeça –, muito bem. Nuvens de cinzas escureciam o céu. A cidade arrasada afligia Leonor. Estava tudo numa enorme confusão, carruagens desfeitas, jardins destruídos, tabernas arruinadas, e mortos, muitos mortos, para onde quer que se virasse. Os cadáveres constituíam um aviso. A vida era algo frágil, Leonor teria de refletir bem nos passos seguintes. A colaboração com Gabriel Malagrida poderia perfeitamente tornar-se um pesadelo. Se ele encarasse a sua mentira como uma traição, tentaria até, porventura, desembaraçar-se dela. Tinha de tomar providências. Ali adiante, no Largo do Rato, iria decerto encontrar pessoas. Era impossível que aquela grande praça estivesse repleta de destroços e entulho, como acontecia com as ruas. Era natural que os feridos viessem a concentrar-se ali, junto ao Convento das Trinas do Rato. Trepou por cima de um monte de destroços. O seu coração saltou de alegria. O Largo do Rato estava repleto de pessoas! Desceu do monte e tentou encontrar rostos conhecidos no meio da multidão. Edward Hay teria sido o parceiro ideal para a aliança que ela procurava estabelecer: desconfiava dos Jesuítas e tinha o apoio da poderosa feitoria britânica. No entanto, não conseguia vê-lo em parte alguma. Conseguiu avistar um empregado do Banco de Inglaterra, que pressionava um pedaço de pano contra a cabeça, pano esse que estava encharcado em sangue. Esse teria com certeza outras preocupações que não o destino da filha de um comerciante alemão. Não poderia João de Bragança estar ali? O primo do rei iria protegê-la. Estivera em tempos apaixonado por ela, com certeza conseguiria voltar a reavivar nele a velha chama. Rompeu pelo meio da multidão. Na praça não havia destroços, à exceção de um pedaço do aqueduto que caíra, uma ruína já desligada da grande conduta, ali no meio das pessoas, seca e sem função ao fim de apenas oito anos de funcionamento. Ali estava Ana, a filha de um comerciante de azeite, que em tempos Leonor usara por vezes como mensageira. Demasiado tarde, ela já se dera conta da sua presença. – Vai começar um serviço religioso dentro de instantes – informou Ana. – Fica? – É para isso mesmo que aqui estou – mentiu ela. Ana tinha escoriações no rosto que já haviam começado a cicatrizar e o seu vestido apresentava rasgões na zona da cintura. – Acompanhava sempre as leituras durante a missa – disse ela – mas o meu belíssimo missal, que junto às orações em latim tinha a tradução em português, foi destruído pelo fogo para todo o sempre. – É realmente uma pena – Leonor continuou a olhar em redor, observando a multidão, enquanto ia falando. – Também perdi uma série de coisas. Os vestidos. Os sapatos. As cartas de admiradores. Só a minha caixinha das joias é que não: os escravos encontraram- na entre os destroços cobertos de fuligem. Um número considerável de pessoas reunira-se ali para assistir à missa. Uns velhos e outros novos, uns feridos e outros incólumes, mulheres com crianças e homens com roupas rasgadas. Hoje não havia sacristãos de rua em rua a verificar se toda a gente cumpria o seu dever e estava na igreja. Hoje as pessoas juntavam-se ali porque precisavam da missa. Quando se entoaram os primeiros cânticos, o coração de Leonor comoveu-se. Convidava-a a baixar a guarda, a ser frágil, a render- se à multidão, enquanto todas aquelas pessoas em conjunto entregavam o seu coração a Deus, implorando ao Criador que os ajudasse. Leonor, porém, não se permitia tal fraqueza. No seu interior defendia-se do efeito daqueles lastimosos cânticos. É claro que as pessoas iam em busca de consolo. Encontravam- se ali ao ar livre, pois o terramoto, os incêndios e o maremoto não tinham poupado uma única igreja, e porque esperavam conseguir compreender por que razão a sua cidade havia sido assolada daquela maneira. –É estranho assim ao ar livre, não é? – murmurou Ana. Leonor acenou em sinal de concordância, enquanto continuava a olhar em redor. Ana ia repetindo, quase mecanicamente, as orações que o sacerdote ia pronunciando, pelos mortos, pelo Papa, pelo rei. Seguiram-se o pai-nosso e a ave-maria. Naquele dia, as pessoas rezavam com particular fervor. Nem ao menos os que agiam bem eram recompensados por Deus. Ele tinha permitido que Dalila morresse, enquanto tentava salvar uma criança! Antero era igualmente injusto. Leonor tinha-o protegido dos Jesuítas e, como recompensa, agora desprezava-a. Ela amava-o e andava atrás dele. Antero, por seu lado, fora durante anos ter com ela apenas por causa de Samira. A multidão rezava o credo: Credo in unum Deum, patrem omnipotentem, factorem cæli et terræ, visibilium omnium et invisibilium. Et in unum Dominum Jesum Christum, Filium Dei unigenitum. Por que razão lhe mostrava Antero aquela antipatia? Tinha a certeza de que ele poderia ser bastante afetuoso. De alguma maneira, a mãe de Samira conseguira conquistar a confiança dele. Samira não poderia ter sido um mero acidente. O cuidado que demonstrava ter com a filha provava que era grande o sentimento de amor que nutrira pela mãe dela. Centenas de cabeças viraram-se na direção de uma berlinda que chegou à praça. A carruagem era puxada por quatro cavalos. Num dos dois da frente seguia montado um postilhão, munido de um chicote. Trazia vestido um casacão vermelho com uma aba comprida atrás e calçava botas negras. Atrás dele, o cocheiro produziu um sinal sonoro para os cavalos se deterem e puxou as rédeas. A berlinda parou. De uma plataforma na retaguarda saltou um criado com meias brancas até ao joelho e sapatos pretos brilhantes, que se apressou a abrir a porta da carruagem. Do interior saiu um homem. Leonor reconheceu-o de imediato. Sebastião de Carvalho tinha uma presença imponente. O seu porte era distinto como o de um príncipe. Aos lados do nariz havia longas rugas que lhe percorriam o rosto até aos cantos da boca e lhe conferiam um aspecto austero. Olhou em redor da praça, com um ar sério, e exortou o sacerdote a continuar. Era este homem que ela deveria roubar. O padre, que começara o sermão havia pouco, pigarreou. – A todos não ocorre outra ideia que não seja fazer uma única pergunta: porquê? Por que razão nos terá Deus atormentado com um tal castigo? Eu vos digo que Ele já andava entristecido com esta cidade. Nas ruas eram contadas piadas blasfemas. Homens que tinham contacto uns com os outros de modo obsceno. Toda a cidade se perdia na busca da diversão e do entretenimento. Peças de teatro, danças, lutas de galos. Vivíamos em função dos nossos desejos. Os Ingleses trouxeram para cá o pecado dos combates de boxe. Nós, os Portugueses, tínhamos orgulho em ser os senhores dos mares, orgulho nas nossas possessões ultramarinas. Cada um de vós sabe disso: Lisboa vivia desenfreadamente. De repente, ocorreram a Leonor todas as suas mentiras. Pensou na sua vaidade, nas horas que havia passado diante do espelho para ver como lhe assentavam diferentes vestidos. Fora egoísta. Fizera por merecer aquele castigo. – Deus tinha de deitar abaixo este nosso orgulho. O tremor de terra foi um aviso. Nos últimos anos tornou-se uma espécie de moda acreditar que Deus se havia retirado. Muitos acreditam que Ele deixou a Terra entregue a si mesma. Estes deístas veem agora as suas teses claramente refutadas. Deus preocupa-se com a Terra! Enviou um castigo terrível para despertar os seus filhos. Na fila diante de Leonor houve alguém que comentou, em voz baixa, com o vizinho: – Ou então regressou. Não poderia ser assim? Deus esteve fora e agora voltou novamente para cá. Atrás dela fez-se ouvir uma voz forte: – O senhor está enganado. Leonor virou a cabeça para trás. O secretário de Estado do Reino! – Os tremores de terra são uma coisa deste mundo – disse Sebastião de Carvalho. – A criação do mundo foi perfeita. Deveríamos encarar os terramotos como fenómenos naturais passíveis de ser investigados pela ciência. Deus criou o mundo de tal maneira que, para se manter o seu equilíbrio, é necessário que de tempos a tempos ocorra um. Ao que parece, estes fenómenos fazem parte do plano, do funcionamento normal, do comportamento físico da Terra. E esta é a máquina mais perfeita que existe, pelo que nada que nela tenha origem pode ser mau. – Se me dá licença, senhor ministro – replicou o padre –, o senhor considera uma coisa boa o facto de milhares de pessoas morrerem e de uma cidade inteira ser destruída? – A Terra não quer saber onde nós construímos as nossas cidades. Porventura precisará de se limpar a si mesma através destes tremores, ou as riquezas que o subsolo contém precisam de ser renovadas, os minérios. Talvez seja necessário que um calor capaz de proporcionar fertilidade às plantas ascenda do interior da Terra. – Não vê o que se passa com este planeta? Os animais comem- se uns aos outros. Os seres humanos matam-se uns aos outros. Passamos fome, sentimos dor, apodrecemos com doenças. A Terra é tudo menos uma máquina perfeita. Está doente e definha há séculos. Rebelámo-nos contra a vida. Por muito que tentemos livrar- nos dela, logo a morte se arrasta no nosso encalço! – o sacerdote pegou num lenço e limpou o suor da testa. – E quanto à sua afirmação de que a Terra não quer saber onde os tremores de terra ocorrem: estes afetam sempre cidades densamente povoadas. Como explica isto? Há cinco anos foi Londres, há nove anos Lima, no Peru, há sessenta anos, Port Royal. Isso não lhe suscita algum espanto? Durante alguns instantes pareceu que Sebastião de Carvalho pretendia regressar ao coche e dar por terminada a discussão. Já tinha dado meia-volta, quando de repente se voltou para trás e declarou: – Jesus esclareceu estas questões de uma vez por todas. Pode lê-lo no Evangelho de São Lucas. Fala aí das dezoito pessoas que morreram quando a torre de Siloé caiu. Eram elas mais culpadas do que aquelas que habitam Jerusalém? A sua resposta foi que não, não eram. O que lhe digo é que se deixe disso, de pregar sermões sobre a fúria de Deus. Deixe de fazer listas dos pecados cometidos. Ao invés disso, deveria ir ajudar aqueles que passam necessidades. Isso sim, veria Deus com bem maior agrado. Ainda há pessoas soterradas e a asfixiarem debaixo dos escombros. Milhares de famílias não têm alojamento. A população passa fome. Não é tempo para fazer grandes discursos, é tempo para agir! Dito isto, Sebastião de Carvalho aproximou-se do coche e entrou. O criado fechou a porta atrás dele. 19
Antero curvou-se. Aquela não era Leonor, ali no meio da multidão,
no Largo do Rato? Enquanto Sebastião de Carvalho se deixou cair no assento e a carruagem iniciou o movimento, Antero espreitou pela janela. Contudo, não conseguiu já distinguir o rosto dela entre os muitos outros que desfilavam diante de si. Recostou-se no assento. Gabriel Malagrida tinha-a firmemente presa nas suas garras. Mais tarde ou mais cedo ele iria saber que Leonor mantivera com ele, Antero, uma relação amorosa e acabaria também por dar com a pista de Samira. Logo após o encontro com Leonor, fora ter com Samira e recomendara-lhe uma vez mais que não deveria sair dali fosse com quem fosse. Obrigara-a a jurar que ficaria sempre junto das princesas. – Como se estivesses colada a elas. Prometes-me? – Como se estivesse colada a elas? – Sim. Aonde elas forem, tu vais também. Quando comerem, tu comes também. Quando se deitarem no jardim, deitas-te também. – Porquê, papá? – Não irias entender se to explicasse. Samira bateu com o pé no chão. – Eu já não sou pequenina! Eu consigo entender! – olhou-o com um ar zangado. E, com efeito, como ela tinha crescido! Sempre que voltava de uma das suas viagens marítimas assustara-se ao vê-la. De cada uma dessas vezes aparecia diante dele uma pessoa nova. Era a passos bem largos que se ia aproximando da adolescência. Ainda não deixara de ser uma criança, mas quem a observasse conseguiria já perceber que se iria tornar uma jovem belíssima. Deveria desaparecer dali com ela, fugir para uma terra distante, para bem longe de Gabriel Malagrida. Que ideia a dele, declarar guerra a um amigo do Papa! Estava sozinho. Gabriel Malagrida tinha do seu lado os jesuítas de três dezenas de países, além de colégios, capitais inteiras, missões, confessores nas cortes, centenas de bocas que sussurravam aos ouvidos dos soberanos. Malagrida tinha poder. Que se poderia fazer contra alguém como ele? «Não podes passar a vida inteira a fugir», disse-lhe calmamente uma voz no seu interior. «Ah, sim?», gritou ele em resposta a essa voz. «Eu já perdi Julie!» «Ele persegue-te porque te teme. Malagrida conhece a tua força melhor do que tu mesmo. Por que razão achas que em tempos fez de ti o seu braço-direito? Olha em redor. Estás sentado num coche dourado com o novo secretário de Estado do Reino. Também tu tens aliados.» – Nem sequer se sabe por onde se há de começar, não é? – perguntou Antero. Sebastião de Carvalho passou a mão na testa e acenou com a cabeça em sinal de concordância. – Temos de criar hospitais provisórios. Precisamos de camas para os feridos. Entretanto, deveriam os militares tentar encontrar armazéns e palheiros em redor de Lisboa. Onde o fogo não tiver grassado deverá haver alimentos. Terão de ser confiscados e mantidos sob supervisão dos militares para serem distribuídos pela população. Antes de se pensar sequer em reconstruir, terá de se garantir que as necessidades básicas das pessoas são satisfeitas. De outro modo não conseguiremos controlar a situação. A berlinda possuía uma boa suspensão. A cabina estreita estava suspensa de cintas de couro, o que permitia amortecer as oscilações resultantes das irregularidades do piso, ainda que se ouvissem alguns rangidos. As rodas iam matraqueando nas pedras da calçada. – Alto! – gritou lá fora o cocheiro, fazendo com que a berlinda se detivesse. – É impossível que já tenhamos chegado – comentou Antero, franzindo o sobrolho. Sebastião de Carvalho abriu a porta e inclinou-se para fora. – Por que razão parámos? – É impossível passar nesta rua, senhor secretário de Estado do Reino – respondeu o cocheiro. – Raios! Eu bem disse que se devia tratar de desimpedir a Rua António Maria Cardoso de imediato! Consegue dar meia-volta? – No cruzamento deve ser possível. As rédeas produziram um estalido e o coche voltou a avançar. O secretário de Estado fechou a porta. Olhou para Antero. – Se não conseguirmos desimpedir as ruas a tempo, o povo começa a passar fome. Sem usar as ruas, jamais poderemos transportar alimentos para a cidade em quantidade suficiente. – Não viu as longas filas de pessoas que se encaminham para norte, para o campo? O povo está a fugir de Lisboa – disse Antero, passando a mão no assento revestido a veludo. Por que razão se mostraria Malagrida tão obstinado em obter um documento com o texto de um tratado político? – Temos de fazê-las regressar, se necessário à força. Se Lisboa ficar despovoada, será impossível reconstruir a cidade. Não se reerguem mais de trinta mil casas com uma mancheia de operários. – Uma vez que as pessoas cheguem à província, como pretende conseguir identificar quem é de Lisboa ou não? Para isso precisaria das listas das Finanças que identificam os contribuintes, mas essas devem ter ardido, presumo eu. – Vou tratar de obrigar as autoridades provinciais a enviarem imediatamente de volta todos aqueles que lá cheguem de novo e vou criar um sistema de controlo que regule os acessos à cidade. Sobretudo as saídas. – Mas essas listas arderam ou não? E como é com os tratados políticos? As finas sobrancelhas do secretário de Estado do Reino franziram-se. – Os tratados são sempre guardados por ambas as partes contratantes, não sabia isso? Um tratado assinado com Inglaterra encontra-se cá e em Inglaterra, um com Espanha está cá e em Espanha. Independentemente disso, os documentos mais importantes são guardados em caixas resistentes ao fogo. Mandei transportá-los para Belém. Aí tratei de criar uma chancelaria provisória numa sala contígua ao picadeiro real. Está tudo em segurança. – Tenho dúvidas quanto a isso. Seja lá por que razão for, Gabriel Malagrida quer ver se mete a mão num documento desses. E do picadeiro não deverá ter grandes dificuldades em conseguir sur- ripiá-lo. – E para que haveria ele de o querer? Já há muito que os seus espiões lhe terão transmitido o teor dos acordos. Você está a querer ver fantasmas, meu caro. Melhor será que se dedique às suas investigações! Ouviu o que disse o padre. Precisamos de uma explicação para o tremor de terra! Se o povo acredita que foi um castigo, jamais voltará a reconstruir esta cidade, e mesmo que eu o obrigue de todas as maneiras, ainda assim nada conseguirei. Tem alguma novidade? – É possível que sim. Sebastião de Carvalho não deveria de modo algum ficar a saber fosse o que fosse a respeito de Julie, nem que Samira era filha de uma judia. Para mais agora, tendo ele sido nomeado secretário de Estado do Reino, uma tal história não poderia vir a ser conhecida. Para exercer cargos na Corte era necessário um certificado que comprovasse não haver sangue judeu a circular nas veias do detentor do cargo. Antero possuía esse certificado, que atestava a pureza do seu sangue: era um documento emitido pela Inquisição, a mesma instituição que mandara queimar Julie, a mulher com quem ele nunca tinha podido casar, por lhe ser proibido desposar uma cristã-nova, para que não ocorresse qualquer mistura de sangues. Samira era resultado dessa mistura. Por que razão não se punha um fim a essa lei? Já tinham passado mais de três séculos e meio desde que em Portugal todos os judeus haviam sido obrigados a aceitar o batismo. Ainda assim, continuava-se a perseguir essa gente convertida à força, sob suspeita de que se mantinham fiéis aos seus velhos costumes. – Em que está a cismar? – perguntou o secretário de Estado. – Questionava-me sobre se Deus não terá realmente pretendido castigar-nos por alguma coisa. O olhar de Sebastião de Carvalho fixou-se para além da janela, no exterior, e o ministro acenou com a cabeça. – Também me perguntei isso mesmo. Mas, sabe, se o Todo- Poderoso nos quiser aniquilar, então estamos mesmo perdidos, façamos o que fizermos. Seria coisa fácil destroçar-nos. Enquanto Ele me permitir viver e não me abandonar por completo, faço aquilo para que Ele me habilitou. Ouviu-se um tiro. Antero estremeceu. – Ladrões – disse o secretário de Estado. – Quem for apanhado nas ruínas a roubar os bens de outras pessoas será morto a tiro. Antero susteve a respiração. Ergueu-se. – Por favor, deixe-me sair. Tenho de tratar de um assunto, é urgente. – Procura um esconderijo só para ti! – disse Benedita. – Não – respondeu Samira. A princesa revirou os seus olhos negros. – És tão cansativa! As crianças pequenas são sempre assim? «Crianças pequenas!» Ela dizia aquilo de propósito, constantemente, pois notava que isso irritava Samira. E, no entanto, melhor seria que ficasse calada. O lacaio aproximava-se dos arbustos onde estavam escondidas. As princesas nunca queriam ser elas a procurar, por isso Benedita tinha tratado de, sem rodeios, ordenar ao lacaio que deveria ser ele a procurá-la. Este ficou parado diante do arbusto. Com certeza que ouvira Benedita a falar. – Estás a ver? – protestou a princesa, num tom seco. – Agora denunciaste-nos – e depois, mais alto: – Ordeno-te que prossigas! Não nos encontraste! O lacaio deu meia-volta e, fingindo-se desesperado, perguntou: – Mas onde poderão elas estar? Mais adiante, por detrás do tronco desnudado do sobreiro, via-se uma ponta do vestido de Doroteia. O lacaio fez de conta que não reparou. – Assim não dá gozo nenhum! – murmurou Samira. As princesas estragavam tudo a dar ordens daquela maneira. – Cala-te – ordenou Benedita. Como podia ela fazer com que aquele aborrecido jogo acabasse? Samira rastejou para baixo do arbusto. Havia espinhos que, através do tecido do seu vestido, a picavam e a terra cheirava a mofo. Escavou-a com as mãos. Tinha de haver ali minhocas, ou então escaravelhos, qualquer coisa que pudesse enojar a princesa. – Estou à procura da filha de Antero – disse uma voz masculina que soava bastante amigável. – Por acaso viu-a, princesa? – Ali em baixo – respondeu Benedita. Samira rastejou para fora e pôs-se de pé. Sacudiu os torrões de terra do vestido. Não era o lacaio, era um dos soldados. Vestia um casacão azul com os canhões da mangas em vermelho e usava um tricórnio na cabeça. As suas botas reluziam. À cintura tinha uma espada. – Vem comigo, o teu pai pediu-me que te levasse até junto dele – disse a sorrir. A pele do seu rosto era amarelada, com um aspecto febril, como se estivesse doente. Samira hesitou. Não poderia ir com o soldado e, ao mesmo tempo, permanecer junto das princesas. Assim sendo, perguntou: – Benedita, vens também? O soldado abanou a cabeça. – Isso não pode ser – disse ele. – O teu pai quer ver-te só a ti, sem as princesas. – Ele disse-me que deverei ficar sempre junto delas. O soldado riu. – Ele também me contou o mesmo e, se tu própria o dizes, é caso para te dar os parabéns, por seres tão ajuizada. Mas ainda assim deves vir comigo. Na cabeça dela andava tudo à roda. «Não vás com ninguém» tinha dito o pai. «Com ninguém!» – Eu fico aqui com as princesas – acabou ela por dizer. – O meu pai que venha ele mesmo aqui buscar-me. O soldado acocorou-se. Olhava-a agora directamente nos olhos. – Vê lá bem, é o uniforme dos guardas do rei que tenho vestido. Pertenço à sua guarda pessoal. Podes confiar em mim – segurou-a pela mão, mas agarrou-a com tal rudeza que, assustada, Samira susteve a respiração. O soldado pôs-se de pé e segurou Samira ao colo. – Não pode fazer isso! – os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. – Deixe-me, largue-me! Deu um passo em frente, mas depois parou abruptamente. Benedita pusera-se à sua frente. – Saia daí – disse ele. A princesa franziu ameaçadoramente as sobrancelhas negras. – Larga-a imediatamente! Ela é minha amiga e eu sou a filha do rei! Se não a largares, vou gritar até que toda a guarda venha a correr até junto de nós. – Mas eu faço parte da guarda – explicou ele. – Isso não me interessa. Volta a pô-la no chão. Vou contar até três: um… dois… O soldado teve de pousar Samira. – Está bem, está bem – olhou para ela. – O teu pai vai ficar muito dececionado. Com alguma rigidez no passo, atravessou o relvado e afastou-se, sem sequer se voltar e olhar para trás. – Tem-se de estar sempre de olho em ti? – perguntou Benedita. – Nunca quererei ter filhos. São tão cansativos! Agora anda daí, temos de encontrar um novo esconderijo. Agarrou na mão de Samira e conduziu-a até uma fila de roseiras. Samira, porém, não conseguia afastar o olhar do soldado. Se ele se virasse, de certeza que o coração dela paralisaria de medo. Cheirava a madeira queimada e a pó de pedra. Fumo brotava daquilo que restava de uma parede. Leonor seguiu por um desvio rumo a casa. Sentia-se suja. O que o novo secretário de Estado do Reino dissera não lhe saía da cabeça. Ainda havia pessoas soterradas e a asfixiar debaixo dos escombros. Milhares de famílias não tinham alojamento. A população passava fome. A sua tarefa consistia em aliviar esse sofrimento. De repente, sentiu vergonha das festas que organizava, dos namoros, dos encontros com as amigas para tomar café, dos olhares de desprezo que deitava aos pedintes quando passeava por Lisboa. As imprecações que a esse respeito havia segredado aos ouvidos das amigas provocavam-lhe agora um gosto amargo. Envergonhava-se de ter visto as pessoas apenas como meios para alcançar um fim. Fora abençoada com extraordinárias aptidões, mas em prol de quê havia ela utilizado essas bênçãos? A espionagem de nada servia a quem quer que fosse, a não ser ela mesma e à Companhia de Jesus. No fundo, a sua vida era profundamente egoísta. Era nesta rua que morava a sua amiga Francisca. Onde agora apenas se viam três degraus estivera até ao dia de ontem uma escada íngreme que conduzia à porta da casa da família Almeida. Aquele tronco carbonizado era de uma árvore que pertencia ao jardim, onde as crianças da família gozavam da sombra. Aquele entrançado de ferro retorcido fora a balustrada da varanda da casa vizinha. E ali estava o coche de Feliciano Machado, igualmente queimado. As cintas metálicas das rodas, agora inúteis, estavam encostadas aos escombros. Onde estavam os Almeida, onde estava Feliciano Machado? Leonor tinha esperança de que tivessem abandonado a cidade, antes de o grande ímpeto dos incêndios a ter consumido. Tinha esperança de que já ninguém estivesse soterrado debaixo dos escombros. Aos seus pés havia algo que, para além das ruínas, estava estendido na rua. Eram pequenos montes negros e possuíam uma forma que se assemelhava à de pessoas. Leonor ficou paralisada. Apercebeu-se finalmente de algo terrível. Seria talvez...? De súbito conseguiu ver com mais nitidez o que tinha diante de si e reconheceu vários cadáveres carbonizados. Os seus amigos jaziam mortos diante da respetiva casa. Sentiu necessidade de vomitar. Recuou e ia tropeçando. Em cada um dos cadáveres julgava conseguir reconhecer a amiga. Francisca estropiada, Francisca carbonizada até ficar uma massa disforme e brilhante como alcatrão. Fugiu dali a correr, tomando o cuidado de não se aproximar de nenhum daqueles corpos negros. «Mortos, tal como Dalila», foi a ideia que lhe atravessou a mente. Ouviu uma criança a chorar. Leonor deteve-se. Sentiu que algo no seu interior se movia. O irresistível desejo de praticar boas ações parecia germinar nela. O pai apenas se preocupava em saber qual a brevidade com que se poderia reconstruir a manufatura das sedas, no Norte de Lisboa, e quais os estragos que as plantações de árvores de fruto haviam sofrido. Mandou os escravos procurarem no meio dos escombros da sua casa peças de porcelana chinesa. Ela, porém, sentia que a sua missão era ajudar! Naqueles dias não podia estar apenas a pensar em si mesma. Vinda das imediações da Igreja de São Paulo, uma vozinha aguda chegava até ela. Leonor pôs-se à escuta. O choro não parava. Não haveria ali ninguém que pudesse consolar o infeliz? A ideia de uma criança com a cara lavada em lágrimas poder estar sozinha entre as ruínas provocava-lhe um aperto no coração. Encaminhou-se na direção daquela voz chorosa. Tentou manter a trajetória tão direta quanto possível rumo à origem da voz, ainda que isso significasse que teria de trepar pelos destroços. Não tardou a ouvir a criança já bem perto de si. Espreitou por detrás de uma parede enegrecida. Viu ali um rapazinho a chorar. Decerto não teria sequer ainda quatro anos. Duas meninas, de olhos muito abertos, observavam-no enquanto vertia lágrimas, ao passo que um homem, acocorado diante do rapaz, falava com ele, tentando acalmá-lo. Dirigiu-se grupo. Primeiro, foram as raparigas que levantaram o olhar e passaram a mirá-la a ela. Depois foi o homem que se virou. Pôs-se de pé. – Graças a Deus. Foi o céu que a enviou. – Por que razão chora o pequenito? – perguntou Leonor. – Tem fome. Só que eu não lhe posso dar nada. Sou um simples sapateiro. Nada mais tinha a não ser a minha loja. Sinto pena destas crianças. Não as posso deixar ficar aqui assim. – Mas estava a pensar deixar os seus filhos aqui? – Não são meus filhos. Apenas se cruzaram comigo na rua. Não sei como hei de eu mesmo conseguir sobreviver, quanto mais com estas crianças. Ela agachou-se e olhou para o rapazito. – Tens fome? – o choro abrandou um pouco e ele acenou afirmativamente com a cabeça. Leonor olhou para as meninas: – Onde estão os vossos pais? Elas apontaram para a enorme e chamuscada ruína da Igreja de São Paulo e disseram: – Estavam lá dentro. E os dele também. Aqueles três nem sequer eram irmãos! Leonor olhou para a ruína. Poderia alguém que estivesse sob os destroços ter sobrevivido? Cinzas ainda quentes preenchiam cada espaço entre os escombros. Leonor sentia o calor na pele. Deveria ter ocorrido um incêndio de enormes proporções. – Uma tragédia – comentou o sapateiro. – Ontem mais de cem pessoas morreram queimadas naquela igreja. Leonor sentiu pena das crianças. Queria fazer alguma coisa de bom por elas. No seu interior houve uma voz que a avisou: «Vão-se aproveitar de ti. Dás-lhes a mão e elas não tardam a levar-te o braço. Deixa lá estar. Aqui cada um é responsável por si próprio.» Já irritada, teve de fazer a voz calar-se. Era com cerca de quatro anos que o pequenito ia poder ser responsável por si mesmo? – Eu sei onde há comida. Venham comigo – disse ela. Muitas outras pessoas nada haviam comido desde a véspera, ao passo que a sua fome estava saciada. O pai possuía contactos fora da cidade. Mas o que poderiam fazer aqueles cujas oficinas em Lisboa era tudo o que tinham, ou, pior ainda, que ia acontecer às lavadeiras, aos estivadores, aos jornaleiros? Leonor conduziu as crianças e o sapateiro para fora da colina de Santa Catarina. Na Rua Formosa, parou diante da única casa que ainda se mantinha de pé. Tinha fissuras nas paredes. O pai mandara os escravos entaiparem as janelas de baixo com tábuas. Além disso, tratara de arranjar espingardas e floretes, com as quais os escravos deveriam matar quaisquer saqueadores que atacassem a casa. – Esperem aqui, por favor – disse Leonor. – Pode haver problemas. Quero falar primeiro com o meu pai. O sapateiro e as crianças ficaram na orla da rua coberta de escombros. Leonor aproximou-se da porta e tentou abri-la. Estava aferrolhada. Teria o pai saído na companhia dos escravos? Bateu à porta e chamou: – Está cá alguém? Foi com ruído que o ferrolho foi aberto. Um rosto negro surgiu na frincha da porta. – Menina Leonor! Já estava preocupado – disse Jerónimo, abrindo a porta. Leonor entrou. – Onde está o meu pai? O escravo apontou com o dedo para a porta ao fundo. – Tem uma visita. – Obrigada. Era estranho habitar uma casa que não era a sua. Os móveis que lá estavam tinham pertencido a outras pessoas. Nas gavetas havia objetos pessoais que ela desconhecia. Nada sabia a respeito da família que ali vivera. Talvez nem todos os seus membros tivessem sobrevivido ao terramoto, pelo que a casa fora vendida a Malagrida, pois iria sempre recordar aqueles que haviam morrido. O facto de os donos nada terem levado parecia indicar isso mesmo. Leonor encostou o ouvido à porta e pôs-se à escuta. Quem seria a visita do pai? – Como disse, os duques de Aveiro e de Lafões estão prontos. O mesmo se aplica ao estribeiro-mor, o marquês de Marialva. A nobreza apoia-o, barão. – Não faz sentido avançar sem uma prova bem sólida. – Prova essa que irá receber. Vamos tratar disso. Está na disposição de comparecer perante o rei? A voz soou-lhe conhecida. Parecia um pouco rouca. Diante dos seus olhos formou-se uma imagem da pessoa: um homem seco e magro, quase incorpóreo, com um nariz adunco: Tomás. Sentiu um calafrio descer-lhe pelas costas. Leonor já não sabia bem de que lado estava. Do de Gabriel Malagrida? Continuaria a ser uma jesuíta? – Logo que me entregue essa prova – respondeu o barão. – Não tardará a tê-la. Leonor ouviu passos. Apressou-se a recuar. A porta abriu-se logo de seguida e o jesuíta saiu. Deteve-se por momentos e observou-a. Depois, dirigiu-se para a porta. O escravo acompanhou-o até à saída. Os duques de Aveiro e de Lafões eram membros ilustres da nobreza. O facto de estes fazerem parte daquele negócio deveria convencer o pai. Sendo ele barão, não passava de peixe miúdo, ainda que a riqueza da sua família não ficasse muito atrás da dos duques. Entrou na sala de estar. Agora estava arrumada, mas Leonor ainda se lembrava bem do aspecto que apresentara naquele dia de manhã. A mesa de jogo no canto, sobre a qual as figuras de xadrez estavam agora ordenadamente dispostas nas respetivas filas, apresentava-se virada do avesso e as peças espalhadas pelo chão. As portas de vidro do armário grande tinham-se partido no decurso do tremor de terra e a porcelana caíra para fora do móvel. Havia cacos por todo o lado. Entretanto, o chão fora varrido e colado papel nas portas dos armários. O pai encontrava-se de pé junto à janela. As tábuas estavam separadas entre si por alguma distância, Leonor não sabia se tal se devia à escassez de madeira ou se o propósito era permitir que o cano de uma espingarda ali pudesse ser enfiado. A luz que entrava na divisão através dessas frinchas era aproveitada pelo pai para ler um papel. Era melhor nem sequer fazer qualquer pergunta a respeito do jesuíta. Precisava da boa vontade do pai para ajudar aquelas pessoas necessitadas, que aguardavam lá fora. – Pai – começou ela –, queria perguntar-te uma coisa. Ele olhou-a. – Sim, Leonor? – Onde conseguiste arranjar aquele lombo de vaca? E os legumes para a salada que comemos hoje? – Nem tudo foi destruído pelo fogo. Alguns comerciantes conseguiram salvar parte das mercadorias. – Presumo que custem uma fortuna. – A nossa família sofreu pesados prejuízos com esta catástrofe, mas eu estou a tratar de tudo. Vamos novamente pôr de pé a família Velho da Rocha Oldenberg, acredita em mim. Colocou-se diante da lareira e passou os dedos na pedra polida do parapeito. – Encontrei um homem e três crianças na cidade. Desde ontem de manhã que não comeram nada. Gostava de lhes dar alguma coisa. Tenho a tua autorização? O pai franziu a testa. – Leonor, tu conheces essas pessoas? É possível ajudar os nossos amigos. Pelos estranhos não podemos fazer nada. – Se todos os alimentos, ou quase todos, foram destruídos, não irá haver uma situação de fome generalizada? – Situação de fome? Estás a exagerar. Nunca fez mal a ninguém fazer uns dias de jejum. – O rapaz não tem nem quatro anos e as meninas também ainda são novas. De certeza que não lhes irá fazer bem não terem nada para comer. – Não podemos matar as nossas cabeças com essas preocupações. Isso é tarefa que cabe ao rei resolver. Ele e os seus conselheiros irão ocupar-se das necessidades da população. – E como irá isso ser feito? – Isso eu não sei. Já tenho preocupações que me cheguem! Leonor, vamos ter de nos esforçar para evitar a bancarrota, não percebes? Está não é uma altura para gestos caridosos. – Então quando é altura, pai? Não basta já que haja mortos nas ruas por todo o lado? Temos ainda de deixar morrer à fome aqueles que sobreviveram, enquanto nós próprios comemos fartamente? – Leonor! – contrariado, bateu com a mão na mesa. – Fizemos uma refeição frugal. Só com muito boa vontade poderemos chamar ao nosso pequeno-almoço um grande banquete! E assim se manterá nos próximos dias. Queres dividir o teu prato com duzentas e cinquenta mil pessoas? Que ingenuidade é essa, afinal? Já me soas como a tua irmã, que de preferência mandava o dinheiro pela janela! Queres saber tudo o que perdemos em consequência do terramoto? Queres saber quanto as reparações irão custar, os negócios que se perderam? Não, tu só queres saber de quatro estranhos que encontraste na cidade. A tua lealdade, Leonor, deveria dirigir-se em primeiro lugar para a tua família! – Não quero que fales assim da Dalila. – Não me limito a falar, também já fiz alguma coisa. Paguei aos Ingleses. Enquanto estamos aqui a discutir, eles estão a talhar uma pedra de boa qualidade para a sepultura de Dalila, nos arrabaldes da cidade. Os Ingleses, Leonor, têm um fundo de assistência a necessitados. The Poor Box, é como lhe chamam. O tesoureiro da feitoria deles andou para esse efeito, durante anos, a cobrar uma taxa sobre as mercadorias. O dinheiro destinava-se aos britânicos que ficassem em situações de necessidade, por causa de roubos de piratas ou caso perdessem navios em alguma tempestade. Achas que esse fundo serve agora para alguma coisa? É uma ideia ridícula! Se toda a gente empobrece de súbito e ao mesmo tempo, esse fundo não chega para nada, é uma gota num oceano de necessidades. – Olha bem para a cidade, pai! Está tudo destruído. Não podemos viver numa casa no meio de escombros e de gente morta. – Queres vir dar-me lições? – suspirou. O seu olhar exprimia cansaço. – Para isso terás de te levantar mais cedo. Achas que devo alimentar as pessoas? Tens alguma noção de quanto tempo vai demorar até estarem construídas trinta mil casas? Demonstra- me lá aí como hei de conseguir pagar os navios que transportam os cereais que irão alimentar as pessoas nos próximos tempos! Demonstra-me lá como vou comprar os cereais! Ainda que não queiras compreender o que te digo, fica sabendo que alimentar quatro pobres criaturas não vai fazer diferença alguma, nada se altera, absolutamente nada. Que poderia ela dizer em relação àquilo? O pai tinha razão, não podiam alimentar toda a população da cidade. Era uma ilusão querer assumir a missão de abastecer os sobreviventes. Era impossível conseguir saciá-los a todos. Apesar de tudo, queria ajudar as três crianças e o sapateiro. Ainda que isso pouca diferença fizesse em relação à situação global, sentia que era a coisa certa a fazer. – Para aquelas quatro pessoas fará com certeza bastante diferença – disse ela. Deu meia-volta e fechou a porta atrás de si. Lá fora, chamou Jerónimo. – Traz-me queijo e pão. – O barão autorizou? – perguntou ele. – Não – respondeu ela, resistindo ao olhar que Jerónimo lhe impôs. Este manteve-se em silêncio durante alguns momentos. – Como desejar, menina Leonor – disse depois. Desapareceu e dali a instantes voltou com dois pães e queijo embrulhado em papel. – Deus habita no seu coração, menina Leonor. Tenho orgulho em si. Diante da casa, as crianças devoraram o pão e o queijo. Num tom de voz baixo, quase envergonhado, o sapateiro disse: – Não sabe quanto isto significa para mim. Ao mastigar, os olhos encheram-se de lágrimas. «Dalila ficaria orgulhosa de mim», pensou Leonor. Acalentou-a a bondade que albergava no seu interior, a mão que escrevia na sua alma. 20
As gotas de água batiam na pele de Antero. De início não mais do
que um ligeiro rumorejar, por fim veio a chuva. O pó que tinha na cara escorria-lhe para os olhos e provocava-lhe ardor. Antero arrancou a peruca da cabeça. Em dias como aqueles que se viviam que importância tinha manter a correção do aspecto exterior? A desgraça servira para revelar aquilo que, por meio das tarefas e rotinas diárias, eles haviam ocultado: o facto de serem mortais. A cada dia que passava a sua existência podia terminar. Sentia gratidão por respirar. Sentia gratidão pelos pequenos regatos de água da chuva que corriam pelo chão empoeirado. Sentia gratidão pelo aroma fresco e acídulo que pairava no ar. Tudo isso lhe demonstrava que estava vivo. Será que a chuva apagaria da pedra aquilo que lá escrevesse com um pedaço de carvão? O melhor seria gravar mesmo a pedra, riscando-a. Nesse caso, permaneceria legível durante alguns dias. Tinha a barriga a dar horas, mas apressou-se e continuou a avançar. Os seus pais não deveriam andar no meio das ruínas a escavar em busca de coisas. Tinha de avisá-los. A chuva avançava sobre as ruínas como um pano cintilante que as cobrisse. Por que razão se haviam as casas desmoronado? Se a superfície da Terra se erguia mediante o efeito de uma onda e se, ao elevar-se, passasse a formar um plano inclinado, levando a que os edifícios desabassem, onde estavam então as fissuras? E esses barrancos? Para ser capaz de deitar casas abaixo, essa inclinação deveria ser bastante considerável. Ou era antes a força dos abanões que as fazia cair? Se por acaso fosse a inclinação, deveria ainda ser possível ver os efeitos causados, pois assim que uma parte da superfície da Terra deixasse de ocupar a sua posição natural e se inclinasse, deveria algures separar-se do resto. Se um pedaço de terra com cerca de setecentos metros se inclinasse apenas cinco graus, afundar-se-ia num dos lados cerca de trinta metros, mas no outro extremo ter-se- ia de elevar os mesmos trinta metros acima dos terrenos vizinhos. Um terramoto teria de causar enormes movimentos de terras. Formar-se-iam taludes. A água da chuva escorria-lhe pela nuca. Era possível que nem sequer fosse a própria terra a tremer, mas antes a força da gravidade que, numa determinada região, produzisse um efeito de desestabilização sobre a superfície da Terra. Para investigar isso, seria necessário descobrir o funcionamento exacto da força de gravidade e qual a sua origem. Só então se poderia averiguar se seria possível prejudicar a sua estabilidade. Era muito o trabalho que tinha pela frente. Deteve-se. Aquela fora a Rua dos Ingleses. Nesse caso, aquele monte de destroços ali adiante tinha sido a sua casa. À beira dele havia uma barraca: duas paredes improvisadas com pedras amontoadas umas sobre as outras, uma parede traseira feita de pedaços de madeira e um telhado de lona. Antero contornou a barraca. A chuva tamborilava sobre a lona. Da parte da frente a barraca estava aberta, não havia porta. Lá dentro viu o padrasto. – Você já voltou! – exclamou Antero. – Sim. – Posso entrar? – Sim, claro. Antero entrou para aquele espaço apertado, acercando-se bastante do inglês. Lançou a peruca para o chão e, com ambas as mãos, sacudiu o excesso de água do cabelo. O padrasto apresentava escoriações, mas não estava muito ferido. – Por que razão não ficou mais tempo fora da cidade? O secretário de Estado do Reino quer ordenar o regresso de todos os habitantes, mas até que isso aconteça a sobrevivência fica mais assegurada no campo. Onde está a mãe? O padrasto manteve o silêncio. Antero ficou como que paralisado. Não conseguia sequer mexer- se. O constante tamborilar da chuva tornou-se de súbito um ruído frio e terrível. Sentiu dificuldade em respirar e não foi capaz de olhar o padrasto de frente. – Aconteceu-lhe alguma coisa? Então, o padrasto respondeu-lhe: – Há três anos, quando em Inglaterra foi introduzido o calendário gregoriano, julguei pela primeira vez na minha vida, que tudo estava nos eixos. Pensei que chegaria a velho na companhia de Luísa. De repente, o meu mundo achava-se por fim em ordem, ajustado. Estava sentado à minha secretária e acreditei que, a partir daquele momento, todo o trabalho se tornaria mais fácil, pois na correspondência deixaria de ter de acrescentar onze dias à data presente por causa dos diferentes calendários. Foi então que me dei conta de que, desde que havia conhecido Luísa, tudo se tornara mais fácil, que era muito mais feliz! Imaginasse eu que já só a viria a ter comigo mais três anos e teria feito tanta coisa diferente… Ficaram em silêncio. A chuva caía sobre a lona. – Também eu – murmurou Antero com a garganta apertada, quase a sufocar. Deixou-se afundar até ficar com o traseiro assente no chão. – Naquela altura não nos disseste fosse o que fosse. Não te despediste, nada de nada. Fazes ideia durante quanto tempo isso amargurou a tua mãe? Questionava-se se tinha feito alguma coisa de errado. Perguntava-me vezes sem conta por que razão tu quererias castigá-la. – Não podia falar dos meus planos de fuga com ninguém. Você não conhece Malagrida. – Se assim fosse, Antero, era fácil enviar-nos uma carta depois de ficares em segurança. O padrasto tinha razão. Não quisera escrever. Também não sentira a necessidade de visitar a mãe. Ela casara-se com o inglês. Ao fazê-lo, traíra o pai. Fora assim que ele vira esse ato. Que ele, Antero, a magoara e que a deixara entregue a si mesma, era algo de novo, uma ideia dolorosa. – Que foi que lhe aconteceu? – Queríamos dar-te tempo para poderes fugir e isso deixou os esbirros jesuítas ainda mais furiosos. Fizeram mal à tua mãe. Antero lembrava-se bem de como ela fora sufocada e depois se deixara cair ao chão. Fechou os olhos. Fora por ele que ela suportara aquilo. Por ele. – Naquele estado mal conseguia andar. Tínhamos de parar muitas vezes para ela descansar. O terramoto apanhou-nos quando íamos a passar pela Nossa Senhora da Graça, diante do Convento dos Agostinhos. Uma parte das muralhas da cidade ruiu. Uns pedaços maiores... mataram Luísa diante dos meus olhos. Tinha a sensação de possuir uma bola de fogo no lugar do estômago. Jamais poderia explicar-lhe por que razão tivera outrora de partir. Não era fácil reconciliarem-se, abraçarem-se, recordarem- se do passado. – Por que razão te deixaste seduzir por Malagrida? – perguntou o padrasto. Antero levantou-se. – Só conheceu a minha mãe durante alguns anos. Eu lidei com ela durante a minha vida inteira. A dor que sinto já me chega, não precisa de tornar o sofrimento ainda maior. O padrasto olhou para as mãos dele. – Eu sei, também não podes fazer nada em relação a esta morte sem sentido. – Dirija a sua irritação contra os Jesuítas. Não tivessem eles tentado asfixiar a mãe e ela já estaria fora da cidade quando o tremor de terra começou. – Mas, de resto, sempre estiveste do lado dos Jesuítas... Era impossível. O padrasto e ele nunca se tinham entendido, e não era agora que isso ia acontecer. – Eu não estava do lado deles. Eu admirava Gabriel Malagrida, é tudo. – E logo o Malagrida! E porquê, se me é permitido perguntar? – Ele fazia aquilo que queria, sem se preocupar com o que os funcionários que administram os assuntos do Reino tivessem a dizer. Isso impressionava-me. Queria agradar-lhe. Ele chamava-me choramingas e hipersensível. Pretendia provar-lhe que também era capaz de realizar alguma coisa. – Antero tentou torcer as mangas molhadas. – Foi ele quem mandou Julie para a fogueira, não foi? – Sim. E é por isso que o vou deitar abaixo. – Ele é poderoso. – Mas eu conheço o modo como Malagrida trabalha. Ele irá transformar o tremor de terra numa arma para consolidar o seu poder, e é precisamente essa arma que eu vou usar, virando-a contra ele. Ficaram em silêncio. – Enterrei a Luísa – disse o inglês. – Mesmo sem missa. – Porquê? – Para que não acabasse por ser atirada para uma vala comum. Não merecia isso. – Não, realmente não merecia. Antero olhou para fora, para a chuva. Ali adiante, junto à esquina, vivera o velho fabricante de cachimbos de barro, que vendia na sua pequena loja, para além de acendedores, caixas de tabaco e rapé. Havia almíscar, âmbar-cinzento, bergamota, flor de laranjeira, e era precisamente assim que cheirava diante da loja: a uma mistura de laranjas e a pele de boi-almiscarado. Entre os seus clientes contavam-se não só senhores importantes, mas também senhoras já idosas que não conseguiam largar o hábito de fumar e que durante a tarde podiam ser vistas à beira da rua de cachimbo na mão. Quando Antero ainda era rapaz, ele e o fabricante de cachimbos sempre se haviam cumprimentado amigavelmente. Com certeza que o velho não deveria ter sobrevivido ao terramoto. A casa dele estava destruída, tal como a da mãe. – Sei que a tua estima por mim nunca foi grande – afirmou o padrasto. Antero manteve-se calado. – Foi por causa da minha crença religiosa que me rejeitaste? – A nossa fé não é assim tão diferente da vossa fé protestante. – Sabes bem que é. Os católicos acreditam que a Igreja é salva por Jesus Cristo e que cada um é salvo individualmente desde que pertença à Igreja. Nós acreditamos que é a crença individual em Jesus Cristo que traz a salvação, sem se fazer qualquer desvio pela Igreja e sem o sacerdote como intermediário. Os padres são para vocês os guardiães da ortodoxia. Para nós, só Cristo constitui o caminho. É com ele que travamos amizade. – Os protestantes também têm sacerdotes. – Amizade com Deus. Sabes o que isso significa? O tom daquelas palavras não lhe agradou. Iria o padrasto começar um dos seus discursos instrutivos? – Na verdade vim porque queria avisá-lo – disse Antero. – O exército tem ordem para atirar a matar sobre saqueadores. É preciso provar que se é dono da casa. – Estou a entender. Onde posso obter um documento comprovativo? – Junto de um magistrado, imagino eu. Ouvia-se o rumorejar da chuva. – Por que razão construiu uma barraca? – perguntou Antero. – Tinha de começar de alguma maneira. Irei reconstruir a casa quando os vizinhos regressarem e me ajudarem. Voltaremos a erguer os edifícios desta rua, um a um, ainda que tenhamos de ficar com as mãos em carne viva. Depois disso, voltarei para ir buscar as crianças. – Admiro a sua coragem, pai – declarou Antero, olhando para o outro. O inglês nada disse. – Sabia que, na verdade, foi para Inglaterra que eu fugi? Vivi cinco anos na sua velha pátria. Continuava sem dizer nada. Estava simplesmente ali de pé, a olhar para Antero. Ouvia-se o rumorejar da chuva. – Que se passa? – Isso foi coisa que nunca me chamaste – disse o inglês em voz baixa. – O quê? – Pai. Acabaste de, pela primeira vez, me chamar pai. O picadeiro real ficara incólume. Logo aquele edifício que, na realidade, era desnecessário, se não se levasse em conta o facto de contribuir para o divertimento do rei. Com os blocos de pedra que haviam caído, Deus matara a mãe de Antero, que, na realidade, era uma boa pessoa, ao passo que este picadeiro inútil tinha por Ele sido poupado. Pensar na mãe provocava-lhe profunda comoção. Sentia a falta dela. Piscou os olhos de modo a impedir as lágrimas de brotarem e levantou-se. Melhor seria distrair-se. Acima da área do picadeiro havia uma galeria com uma balaustrada de madeira torneada e polida. Na maior das tribunas estava sentado o rei, acompanhado por três rapazes. – Quem são aqueles? – perguntou Antero à sua companheira de lugar, uma senhora pequena, mas de aspecto robusto, que se apresentara como marquesa de Távora. – São os «meninos de Palhavã» – respondeu ela. – Não os conhece? – Não. Estive fora em viagem durante bastante tempo. – Como que a comprová-lo, apontou para a perna com o joelho rígido. – Só no início do ano é que o rei tornou oficial o seu parentesco com eles. São filhos ilegítimos de Dom João Quinto. Todos lhes chamam os «meninos de Palhavã», por terem habitado num palácio situado nessa zona. Os seus nomes são António, José e Gaspar. A sua posição na Corte é bastante frágil, pelo que não deixam escapar uma oportunidade de ser vistos na companhia do rei. Também os outros nobres que usavam perucas e ocupavam as tribunas à esquerda e à direita do rei lhe foram por ela apresentados. Ali estava o marquês de Angeja, com o seu avermelhado rosto de bebedor, o franzino Fernão Teles da Silva, as respetivas esposas. Até mesmo o presidente do Desembargo do Paço, o estribeiro-mor e o presidente do Senado estavam ali presentes. Bem à ponta estava sentado o marquês de Abrantes, o comandante supremo das tropas. Apenas Sebastião de Carvalho faltava ali. O secretário de Estado do Reino fora obviamente o único que reconhecera que, após o terramoto, o pesadelo, na realidade, não terminara, mas antes e a bem dizer apenas começara. – Vá lá – dissera ela a Antero. – Mostre-se a esses servidores do dinheiro de vistas curtas. Mais tarde são eles que terão de lhe dar ouvidos, quando estiver a explicar os tremores de terra. Será até melhor que, mais tarde, se lembrem da sua cara, de já antes a terem visto. – Pensei que a ideia fosse ser eu a acompanhá-lo – respondera ele. O secretário de Estado do Reino olhara para ele, perplexo. – Acha que tenho algum gosto em jogos equestres enquanto as pessoas pelas quais sou responsável estão a perecer? É daquilo que nestes dias decidirmos e fizermos que depende o facto de Portugal desaparecer ou não para sempre dos mapas mundiais, só assim se verá se o seu povo cairá para sempre em ruína ou se tem salvação. Cada hora que passa conta. O secretário de Estado tinha razão. Era absurdo organizar jogos equestres numa situação como aquela. Começaram por apresentar um número chamado A Cabeça da Medusa. Os cavaleiros arremetiam contra uma cabeça de medusa e, a quinze passos de distância, arremessavam uma pequena lança, sem que para tal pudessem ultrapassar uma marca desenhada na areia. De seguida, haviam passado a um jogo chamado Ataque ao Estafermo, que consistia em investir contra a representação de um mouro, de madeira, e atingir o seu escudo com uma lança, o que fazia com que o mouro desatasse a rodar. Os cavaleiros tinham então de tentar evitar o chicote empunhado pela figura do mouro, que, rodando sobre si mesma, tentava açoitá-los. Os cavaleiros estavam agora a reunir as suas montadas numa das extremidades do picadeiro. Os corpos transpirados dos animais reluziam. Seguravam orgulhosamente as cabeças, de cuja testa se destacavam penachos. Seis trompeteiros chegaram-se à frente com os seus instrumentos prateados, dos quais pendiam estandartes de damasco verde. Um sétimo músico tocava um tímbale e estimulava os trompetistas a formarem uma animada fanfarra. O mestre-de- cerimónias anunciou o jogo equestre seguinte: – Alcanzias! Os participantes receberam escudos ovais de couro vermelho. Na área do picadeiro entraram então escravos que carregavam cestos. Começaram a atirar bolas de barro cozido na direção dos cavaleiros. O grupo formado por estes não tardou a dispersar-se e eles seguraram os respetivos escudos bem alto, de modo a não serem atingidos pelas bolas. À medida que as primeiras foram acertando nos escudos, ia vertendo destas um líquido que preencheu aquele espaço com um cheiro a rosas. O aroma fez com que Antero se recordasse de Dalila. O homem atrás dele deixou escapar uma exclamação de assombro. – Grandioso! – murmurou ele. – Adoro este rei. Era um qualquer cantor italiano famoso. Antero já tinha esquecido o seu nome. O cantor chegara a Lisboa, acompanhado de uns quantos dançarinos e músicos, para realizar uma récita de ópera. Pelos vistos, dada a impossibilidade de efetuar os espetáculos, uma vez que o edifício da ópera havia sido destruído, o rei deveria tê-lo indemnizado generosamente: não havia outro modo de explicar toda a boa disposição do homem. – Se me dá licença... – disse Antero e ergueu-se. – Vai perder o melhor! – A marquesa segurou-o ao de leve pela manga. – Quando terá oportunidade de voltar a ver um espetáculo destes? – Já vi o suficiente para os próximos cem anos. Pense nas muitas pessoas que neste preciso momento estão a lutar pela simples sobrevivência. Desceu as escadas, abriu uma porta que rangia e saiu para o exterior. Começava a anoitecer. Diante do picadeiro viu várias berlindas paradas. Os cavalos, desatrelados, andavam por ali a pastar numa pequena área adjacente. Debaixo de uma figueira, estavam sentados os cocheiros a beber aguardente. Iam passando a garrafa bojuda de uns para os outros. Um deles, mais gordo, acabara naquele momento de beber da garrafa e perguntou a um dos companheiros: – Que tens a dizer daquela coisa que eles bebem nos países do Norte e do Leste? Aquela… Como lhe chamam? – Cerveja? – perguntou o companheiro do lado. – Ouvi dizer que põem lá papoilas, ou cogumelos, ou folhas de loureiro, tudo e mais alguma coisa. Tentam desesperadamente dar sabor àquilo. O gordo riu-se. – Mas não lhes serve de nada! A cerveja continua a ter um sabor miserável. Sabe ao mijo de um garanhão com febre. Os cocheiros desataram a rir. Um membro da Guarda Real, munido de uma alabarda, vigiava a entrada lateral do picadeiro. Seria ali que estavam guardados os tratados políticos? Na outra ponta da área adjacente onde os cavalos pastavam, havia soldados sentados na relva. As respetivas espingardas estavam encostadas às árvores. Antero foi até junto dos cocheiros. – São a minha salvação! Suplico-vos que me deixem dar um gole. O gordo estendeu-lhe a garrafa. Antero levou-a à boca e bebeu. À aguardente tinha sido acrescentada água e também pimenta. O sabor era pungente. Antero afastou a garrafa da boca e fez uma careta. – Pff! Que mistela nojenta! – Qual é o teu problema? Ninguém te obrigou a beber. O gordo tirou-lhe a garrafa da mão. – Nem conhecem a cerveja inglesa. Vivi cinco anos em Inglaterra. A cerveja de lá sabe cem vezes melhor do que a aguardente ordinária que aqui têm. Os cocheiros puseram todos uma cara séria, mas logo de seguida desataram às gargalhadas. – Os Ingleses! Como se esses soubessem alguma coisa. – Claro que sabem. Por exemplo, quem sabe criar ovelhas melhor do que eles? A risota foi ainda maior. – Criar ovelhas! Oh, sim, isso é que é mesmo importante! – Querem ofender-me? – resmungou Antero. O gordo esboçou um sorriso. – Mas será possível que uma ovelhinha se ofenda? Antero rodou sobre os calcanhares e dirigiu-se ao guarda. – Não pode entrar – disse este com uma voz grave. – Sabes o que aqueles tipos ali estão a dizer de ti? – Isso não me interessa. Antero virou-se para os cocheiros. Estes levantaram a garrafa de aguardente, como que para o cumprimentar, e começaram a barregar, como se fossem ovelhas. – Mééé! Bééé! – tal era a risota que se atiraram para o chão de joelhos, não se tinham em pé e já choravam de tanto rir. – Bééé! Mééé! Antero virou-se novamente para o guarda. O homem ficou tão furioso que o sangue lhe acorreu à face e enrubesceu. Por detrás de Antero, os cocheiros gritavam: – E vejam só ele a olhar para nós como uma ovelhinha, não é? O guarda já espumava. – Isto já foi longe de mais. – Arrancou na direção dos cocheiros. – Mas será que ainda têm algum juízo nessas vossas cabeças ocas? Antero esgueirou-se para o interior do edifício. Deu consigo num corredor com paredes caiadas de branco. Havia cabeçadas penduradas em pregos ferrugentos. Cheirava a bosta de cavalo. Era aqui que se guardavam os acordos estabelecidos entre o Reino de Portugal e Inglaterra, a Prússia e a Espanha? Talvez tivesse sido boa ideia vir assistir aos jogos equestres, mas iria prestar um serviço ainda maior ao secretário de Estado do Reino quando lhe conseguisse provar como era fácil chegar perto dos tratados políticos, podendo depois ajudá-lo a protegê-los de Malagrida. Abriu uma porta à esquerda, e olhou para o interior de uma câmara sem quaisquer janelas. Do chão até ao teto viu selas apoiadas em hastes afixadas na parede. Ajoelhado diante de uma lata com um conteúdo castanho e brilhante, um adolescente estava a engraxar uma sela. Antero voltou a fechar a porta e avançou pelo corredor. Abriu a porta seguinte. – O senhor deseja…? Um homem com uma camisa branca e limpa, sentado a uma mesa, olhou para ele. Tinha diante de si um livro, uma série de carimbos e um conjunto de tinteiro e pena. – É aqui a chancelaria do Ministério do Exterior? – perguntou Antero. – Chamar-lhe chancelaria será talvez um exagero – respondeu- lhe o homem. – Mas provisoriamente é aqui que se procede à redação de alguns documentos do secretário de Estado do Reino, sim… Era demasiado fácil entrar e chegar até ali. Teria de pedir a Sebastião de Carvalho que ali fossem colocados mais guardas. Se conseguissem capturar os cúmplices de Malagrida, porventura ficar- se-ia com alguma coisa para usar contra o líder dos Jesuítas. Era preciso colocar-lhes uma armadilha. – E então? O que o traz cá? – O olhar do funcionário da chancelaria percorreu-o de alto a baixo. – Quer alguma coisa? É claro, alguém com o seu aspecto poderia ser um mensageiro. – Na verdade, trazia. Deveria transmitir uma mensagem, uma missiva da maior importância. Só que entretanto fui roubado por saqueadores. Entre eles havia um homem cuja barba estava entrançada de modo a formar dois rabichos. Chama-se Diogo Barbosa. É esse homem que tem agora a carta em seu poder. – Quem foi que lhe confiou essa carta? – O padre Malagrida. O funcionário da chancelaria franziu a testa. – Tudo isso soa um pouco... inverosímil. – Não sou um dos seus mensageiros normais. Na verdade trabalhei para ele na clandestinidade, como uma espécie de denunciante daquilo que o povo diz por aí. – Como espião, quer você dizer. – Não é esse o nome que lhe damos. Seja como for, as circunstâncias destes dias terríveis exigiram que ele me enviasse a mim. Excecionalmente. – Então regresse junto do seu patrão e peça-lhe que volte a redigir essa carta. Eu é que não posso ajudá-lo. Havia três arcas negras atrás da mesa. Era bem possível que fosse nelas que estivessem os tratados. O secretário de Estado falara-lhe de caixas à prova de fogo. – Conhece o padre Malagrida? – Pessoalmente não. – É uma pessoa que se enfurece com muita facilidade. Pensei que, se ao menos conseguisse cumprir a segunda metade da minha missão, talvez isso conseguisse apaziguar a ira dele. – Nesse caso desejo-lhe muita sorte. – Necessito da sua ajuda – que poderia ele contar-lhe? De preferência uma história verdadeira, à qual apenas teria de acrescentar uma pequena mentira. Esquadrinhou as suas memórias em busca de rumores que tivesse escutado nas tabernas junto ao porto, e histórias que os seus recetadores lhe tivessem contado. – Trata-se de John Bristow, sabe, o sobrinho do vice-governador da Companhia dos Mares do Sul. É comerciante e, juntamente com a família Ward, tem a Bristow, Ward and Company. Você… – Poupe-se – interrompeu-o o funcionário –, seja como for não posso ajudá-lo. Com John Bristow, o comerciante de diamantes, nada tenho a ver, ou melhor, menos que nada, e também não lhe vou redigir carta alguma para esse homem, não é essa a minha função. – Claro, mas escute-me! Os armazéns dele foram destruídos pelo terramoto. Ele pretende reconstruí-los e continuar a sua atividade de comerciante. Assim sendo, quer resgatar um título de dívida. Manuel Gomes de Silva, o falecido tenente-general da Marinha, tinha dívidas a Bristow, no valor de cento e vinte mil libras inglesas. Uma vez que a Casa Real portuguesa, por sua vez, deve bastante dinheiro ao falecido tenente-general, os títulos de dívida foram endossados. E agora o comerciante de diamantes pretende obter o seu dinheiro junto do rei. – Que se dirija à Fazenda Real. – Exatamente. Só que a Fazenda Real faz orelhas moucas. John Bristow falou com o padre Malagrida, que já conhece do Brasil, onde ele tem as suas minas. Bristow perguntou-lhe quais os trâmites normais para resolver estes diferendos internacionais. Você deverá ter aqui os tratados comerciais estabelecidos com Inglaterra, que regulam estes casos. O funcionário da chancelaria franziu os lábios, contrariado. Virou- se para as arcas, sacou de uma chave, que colocou na fechadura da arca mais à esquerda, virando-a de seguida. Antero escutou um ruído metálico. Afinal sempre estavam aqui. Realmente não era difícil chegar junto dos tratados. Relataria ao secretário de Estado do Reino a facilidade com que o tinha conseguido. Talvez até fosse bom não mudar nada naquela situação. Se os homens de Malagrida chegassem à mesma conclusão que ele ao ensaiar aquilo, sentir-se- iam motivados a tentar realizar o roubo. Iriam morder o isco na armadilha. O funcionário abriu a tampa da arca e começou a retirar para cima da mesa caixas, livros e pesadas pastas de cabedal, todas elas identificadas com o selo real na parte da frente. Abriu algumas caixas, uma a uma, pegou em papéis e pergaminhos. Abriu também uma das pastas e do interior retirou uma grande folha de papel, densamente manuscrita, que leu em silêncio. – Aqui está – disse, por fim. – Primeiro deverá o cônsul-geral tentar resolver o litígio com as autoridades portuguesas competentes. Se tal não surtir efeito, poderá ele dirigir-se ao embaixador, em Portugal, de Sua Majestade, o rei de Inglaterra. Se também este não for capaz de resolver o litígio, o assunto será remetido ao Secretary of State em Inglaterra. – Quando foi o acordo celebrado? – Antero chegou-se junto à mesa, como se pretendesse espreitar o tratado. Bateram à porta. O funcionário olhou naquela direção. – Faça favor! A porta abriu-se e entrou Nicolau Fernandes, o arquiteto. Não foi para o funcionário da chancelaria que olhou, mas sim para Antero. – Então sempre é verdade. – De que está a falar? – Se fosse a si não disparava – disse o arquiteto. – Ali fora, do outro lado da porta, a Guarda Real só espera um sinal meu. Você não iria longe. – Disparar? – perguntou Antero já irritado, franzindo o sobrolho. – Isso que esconde aí atrás das costas não é uma pistola? Antero mostrou as mãos. – Por que razão haveria eu de trazer uma pistola? O arquiteto aproximou-se de Antero e disse secamente: – Que faz você aqui? Quem lhe confiou esta missão? – Que missão? Não sei do que está a falar. – Que se passa aqui? – perguntou o funcionário da chancelaria num tom austero. – A Inquisição bem me avisou – declarou o arquiteto. – Disseram- me que estivesse de olho nele. Que não é quem aparenta ser. Quando se esgueirou ali do picadeiro, durante os jogos equestres, soube logo que tinha alguma fisgada. Que pretendia ele de si? – Queria ver este tratado – o funcionário da chancelaria entregou o papel a Nicolau Fernandes. É claro que Malagrida estava por detrás daquilo. E aquele funcionário, cego de todo, entregou-lhe o tratado de mão beijada. – Trabalho como conselheiro científico para o secretário de Estado do Reino – declarou Antero. – Se tiver alguma objeção em relação a mim, trate de expor o caso a ele. Até lá gostaria de lhe pedir que parasse de me importunar com essas ofensas. O arquiteto examinou o tratado. – Interessante. Muito interessante – comentou. E depois, lá para fora, chamou: – Guardas! Um elemento da Guarda Real e mais quatro soldados entraram no gabinete. Agarraram Antero. – Então uma ovelha, não é? – disse o homem da Guarda Real e cravou-lhe o joelho na barriga. Antero dobrou-se e gemeu. – Deixem-no em paz – ordenou uma voz. Olhou para cima. Heitor entrou na sala. Em redor da sua cabeça estava enrolada uma ligadura branca, na qual se via uma mancha de sangue do tamanho de uma sanguessuga. O seu jaquetão era adornado por uma longa fila de botões semiesféricos. Das mangas da casaca destacavam-se punhos de renda. Tinhas as costas arqueadas e os ombros largos. Criava a impressão de que estava a agachar-se, uma fera prestes a realizar um salto para atacar. Com breves movimentos da mão arranjou o cabelo escuro, da cor do carvão. – Já nos conhecemos, Jean – disse ele. – Ou deverei dizer Antero? – Malagrida nunca esquece os seus filhos, não é? – Antero teve dificuldade em se endireitar. Continuava a sentir-se como se o joelho do soldado da Guarda Real lhe continuasse cravado no estômago. – Ainda bem que aí está – disse o arquiteto. – É tal qual você disse. Ele é um espião. Vi com os meus próprios olhos o modo como se esgueirou até aqui para vir espreitar os tratados do secretário de Estado do Reino. Heitor agarrou no tratado. As unhas compridas como o bico de um pássaro percorreram-no. – Era isto que ele queria ver? – foi dando uma vista de olhos pelo texto. – Terei de levar comigo este documento e mandar examiná-lo. De outro modo, não se conseguirá saber o que ele pretendia fazer com o tratado e por que razão queria este em particular. – Não pode tirar daqui esse documento – objetou o funcionário da chancelaria. – Se o seu patrão lhe criar problemas, diga-lhe que deverá dirigir- se à Inquisição. – Heitor abandonou a sala. Enquanto saía, ordenou: – Levem este patife para a Torre. Antero sentiu-se sufocar. Ainda por cima ajudara-os a obter o tratado! Levaram-no ao longo do estreito corredor. Os cocheiros, sentados debaixo da árvore, ficaram a olhar embasbacados, enquanto ele era arrastado dali para fora. Os soldados agarraram-no à esquerda e à direita, por baixo das axilas, sendo mais propriamente carregado do que conduzido. Era uma situação humilhante. Malagrida conseguira manobrar as coisas de modo a apanhá-lo. Tal como outrora com Julie, quando a pusera em xeque. Convidara- a para uma refeição e tinha-lhe oferecido sopa. Enquanto comiam, referira de passagem como a carne de porco ali contida realçava o gosto. Julie não conseguira disfarçar a aversão cultivada ao longo de toda uma vida. Uma reação quase imperceptível tornou-se a sua perdição, revelou-a enquanto judia. Ao longe viu as tendas reais. Aí, numa das tendas secundárias, pernoitavam Samira e as princesas. Deveria ter aproveitado para pôr Samira a dormir. Ela precisava dele. Afinal de contas, decidira por fim passar a ocupar-se mais dela! Estava, porém, a ser dali arrastado. Ansiou pela aguardente ordinária dos cocheiros. Sentia necessidade de se embriagar, para não ter de presenciar aquela desgraça em seu perfeito juízo. Regressara ao tentacular amplexo de Malagrida. 21
A primeira coisa em que Leonor reparou quando, na segunda-feira
de manhã, chegou próximo da porta da rua foi o facto de cheirar mal. Era como se a água das poças estivesse a apodrecer. O que restava do maremoto misturava-se com as sujidades que saíam dos canos de esgoto destruídos. Mas não era apenas isso. Um adocicado cheiro a putrefação pairava no ar. Ao pensar qual poderia ser a sua origem, Leonor teve de suster a respiração. O calor abafado resultante da chuvada do dia anterior mantinha os cheiros como que colados às ruas. Leonor dormira mal, acordara por diversas vezes e pusera-se a pensar na irmã. Tinha saudades de Dalila. Também se lembrara de Antero. Sentia-se como se tivesse levado pancada. Tudo se apresentava tão confuso! A situação estava num impasse e ela não sabia como sair dela. A única coisa que correra bem fora a intriga que iria guindar o seu pai aos meandros da governação. Malagrida mandara avisá-la de que já obtivera o tratado por outros meios. O dia do derrube estava próximo, mas essa era uma ideia que já não a animava. Antero odiava os Jesuítas e estes odiavam-no a ele. Desde que soubera disso, a colaboração com a Companhia de Jesus passara, para ela, a ter um gosto amargo capaz de lhe estragar por completo o paladar. O pequeno-almoço andava-lhe às voltas no estômago. Não deveria ser do toucinho-do-céu, pois ela sempre o tinha tolerado bem, desde criança que adorava aquele doce confecionado com amêndoas. Contudo, fora com um peso na consciência, por causa daqueles que passavam fome, que bebera o espesso chocolate líquido da Nova Espanha, aromatizado com canela, e também não deveria ter comido o queijo de Brie. Viam-se muitas pessoas entre as ruínas. Donde tinham elas surgido? Estariam os refugiados a regressar? Carregadas com trouxas, percorriam as ruas e trepavam pelas pedras e hastes metálicas retorcidas. Os seus rostos pareciam revelar que haviam perdido toda e qualquer esperança. Viam-se também soldados entre as pessoas: alguns deles a cavalo, trotando rua abaixo e impelindo os animais com as esporas, ao passo que nas praças marchavam os que iam a pé, de uniforme azul, com as espingardas ao ombro. Leonor reparou numa família de refugiados. Sete crianças seguiam, na companhia do pai e da mãe, junto a um carrinho de mão. Tinham um aspecto sujo e as pernas das crianças mais novas eram fininhas. Estavam decerto a passar fome. Era injusto. O novo secretário de Estado do Reino exigira que todos pusessem mãos à obra e ajudassem. Era essa a necessidade que naquele momento se impunha. E ela, que fazia? Comia até ficar farta e sentia saudades de Antero. Na Praça do Rossio um grupo de homens erguia uma trave tosca. Ao que parecia, preparavam-se para construir uma forca. Reparou num padre e em três soldados que empurravam uma carroça. As suas pesadas rodas ficaram presas numa viga, entre os escombros que atravancavam a rua, razão pela qual os homens, encostados à parte traseira da carroça, a empurravam. Leonor olhou a cena com mais detalhe. Por entre as travessas laterais da carroça conseguiu identificar uma mão. Mais à frente distinguiu depois um rosto cheio de cicatrizes. Eram mortos! Os homens não conseguiam. A mãe das sete crianças veio ajudá- los. E, de seguida, também o marido dela. «Não», pensou Leonor, «isso eu não faço. Não vou tocar em cadáveres.» Mesmo só dos coveiros tinha ela já medo. Por vezes, ao abrir a porta de uma loja, perguntava a si mesma se antes dela algum coveiro poderia ter tocado naquele manípulo. Nessa altura estremecia, tal a repugnância que sentia. Como conseguiria ela tocar em mortos? «Dalila tê-los-ia ajudado!», pensou de repente. Hesitou. A repulsa quase a sufocava, mas por fim colocou as mãos sobre as tábuas e ajudou a empurrar. – Quando eu disser três – anunciou o padre. – Um, dois… três! Empurrou todo o seu peso contra a carroça. Esta subiu e depois desceu para o lado de lá da viga. A carroça voltou a conseguir avançar com facilidade. Leonor largou-a e sacudiu as mãos no vestido. – Precisamos da sua ajuda – pediu o padre. Olhou-a fixamente e, depois dela, também o homem e a mulher. – Há um surto de tifo, por causa da abundância de cadáveres. Temos de tratar de removê-los antes que a cidade inteira seja dizimada. – A minha família e eu estamos a passar fome – retorquiu o homem. – Os soldados dizem que temos de regressar à cidade, mas aqui não há nada! Não posso, padre. Tratar dos mortos? Mas os vivos é que precisam de mim. Só falta que também os meus filhos tenham de... Este terramoto só tem causado pesadelos às crianças. – Deixe as crianças entregues à sua mulher. Ajude-nos – o padre ergueu as sobrancelhas e usou um tom de súplica. – Ao fim do dia, tratarei de ver se lhe consigo arranjar alguma coisa para comer, para si e para a sua família. Leonor tentou retirar-se discretamente, mas foi apanhada pelo olhar do padre. – Por favor – pediu ele. – Não se vá embora, ajude-nos! Fora apanhada. O padre percebera que ela quisera esquivar-se. Afinal de contas, aquela tarefa cabia-lhe a ele, não a ela! Ele é que era padre e recebia alguma coisa em troca dos seus serviços. Ou então aquilo era um castigo. Fosse qual fosse a razão, ele fora condenado a recolher e empilhar os mortos. Precisava de distraí-lo. – Para onde leva os cadáveres? – Para o Tejo. Há milhares de pessoas mortas. É impossível abrir uma cova para cada uma delas. – Vai lançar os cadáveres ao rio? Assim sem mais? – Vamos carregá-los em barcaças, que depois afundaremos a meio do rio. O patriarca autorizou que, nestes dias de exceção, se fizesse assim. Venha daí, vamos ali àquela ruína. Leonor olhou em redor. À sua direita, o pai daquela família de sete pessoas ia já a trepar uma parede caída, na companhia de um dos soldados. À sua esquerda, os outros dois soldados entraram num pátio. Se não ajudasse o padre, este teria de carregar os mortos sozinho. Sentiu o dedo da sua consciência apontado na sua direcção. Tinha de ajudar. Seguiu-o através do arco que dava entrada no pátio. Junto a um monte de destroços jazia uma mulher morta. Era impossível reconhecer qual a causa. O padre curvou-se e segurou-a debaixo dos braços. – Agarre nos pés – disse ele. Ela pegou nos pés e prontamente recolheu as mãos. Os pés estavam gelados. Tinha tocado a coriácea pele de uma mulher morta! Jamais voltaria a conseguir mexer naquilo. – Vá, deixe-se disso! – insistiu o padre. – É assim que todos nós acabamos! Todos os dias há pessoas que morrem. Pretende fechar sempre os olhos a esta evidência? – É horrível – disse ela. – Isso tem a ver com o facto de originalmente termos sido criados como imortais. Só que rebelámo-nos contra o nosso Criador e este retirou-nos a imortalidade, foi assim que aconteceu. Até que, no dia do Juízo Final, a recebamos de volta teremos de aprender a lidar com a morte. Vá, agarre nos pés! Não queria pensar que também um dia ela acabaria assim, nem recordar Dalila, que na sua sepultura estaria já a começar a decompor-se. Leonor agarrou naqueles pés frios. O padre ergueu o tronco da morta e transportaram-na através do arco da entrada até à carroça. Do monte de escombros ali ao lado retiraram um ancião cuja caixa torácica havia sido esmagada. Na ruína seguinte encontraram dois homens carbonizados. As mãos de Leonor ficaram pretas. Foi com dificuldade que conseguiram ainda equilibrar os mortos na carroça. Empurraram-na até à margem do rio. Leonor teve de seguir a pé, de um dos lados dela, e intervir quando algum dos cadáveres ameaçava escorregar e cair no chão. Cinco monges carmelitas ajudaram-nos a carregar os mortos para uma barcaça. Deixaram aos monges a tarefa de se desembaraçarem dos cadáveres e regressaram com a carroça vazia. Que tarefa medonha era aquela! Transportavam pessoas como se fossem sacas de farinha. Quando na Baixa, depois de içarem um corpulento homem morto com as pernas desarticuladas para a carroça, fizeram um intervalo para tomar alento, Leonor perguntou: – Por que razão nos castiga Deus com tal dureza? Não consigo perceber. – Devemos ter feito por merecer o castigo. De certeza que em Sodoma e Gomorra as pessoas também estavam convencidas de que faziam tudo certo, no entanto o seu modo de vida não agradava nada ao Senhor. Treparam pelo que restava de uma parede para ter acesso a uma ruela. Leonor sentia um nó nas entranhas. Algo não batia certo na explicação do padre, não se coadunava com a desgraça que atingira Lisboa. – Nesse caso, não deveria Deus destruir também outras cidades? Será que Lisboa era pior do que Madrid ou Paris? E mesmo que muitas pessoas, na capital, tenham feito por merecê-lo, foram essas mesmas as que o terramoto matou? Quer dizer que quem sobreviveu foram apenas pessoas boas? Se foi através do sismo que Deus mandou executar as pessoas más, deveria ter-me matado a mim também. O padre ficou calado alguns instantes. De seguida disse: – Tem razão. Perante a lei de Deus, todos nós somos culpados. Não existe ninguém que pudesse dizer de si mesmo que é completamente bom. Somos egoístas. Somos cegos para o sofrimento alheio. Por isso mesmo é que Jesus Cristo morreu. Ele pagou por todas estas faltas que cometemos. – E por que razão enviou Deus este terrível castigo se a nossa culpa já foi remida? Muitos foram os que se refugiaram nas igrejas. Por que razão destruiu Ele os seus próprios santuários? Ele bem podia ter poupado as igrejas. – Espere lá. – o padre encontrara alguma coisa. Afastou duas pedras. Como que paralisado, ficou a olhar para o chão. – O melhor é cada um de nós levar um deles. Aos pés dele estavam os cadáveres de duas crianças, de mãos dadas. Uma delas era uma menina, talvez com cinco anos. Os cabelos negros estavam arranjados numa coroa de tranças e os olhos fechados. O outro corpo era de um rapaz, que mal teria três anos. Os seus olhos estavam bem abertos. A cabeça, virada na direção da irmã, levava a crer que, mesmo morto, olhava para ela. Leonor estremeceu, horrorizada. Deu dois passos atrás. Era impossível que aquelas duas crianças tivessem cometido pecados tão graves a ponto de merecerem morrer. A morte delas era injusta, era um equívoco terrível, Deus mostrou-se desatento e negligente nas suas obrigações! – A morte calha a todos – disse o padre. De repente a sua voz enrouquecera. – Cada criatura que se aparta do Criador está condenada a morrer, do mesmo modo que uma planta que se subtraia à exposição ao Sol acabará por sucumbir. Algumas delas vivem oitenta anos, e só então morrem. Outras há que morrem jovens. Tenho a certeza de que Deus sente dor por toda e qualquer morte. Ele é o Criador, o Deus da vida! Escute bem, na altura do Juízo Final Ele irá ressuscitar estas duas crianças. A morte delas é apenas provisória. – Mas se Ele é o Deus da vida, por que razão mata? Por que razão deixou que estas crianças morressem, antes mesmo de a vida desabrochar nelas? É impossível que este terramoto tenha tido origem em Deus. Foi indiscriminadamente que Ele matou! Totalmente ao acaso! O padre inclinou-se e colocou a menina sobre os seus ombros. Fitou Leonor. O seu rosto estava pálido. – É possível que tenha razão e que o terramoto não tenha sido nenhum castigo. Foram porventura as incontroláveis forças da natureza. – Não poderia Ele ter protegido as crianças? Falamos tanto acerca de anjos e rezamos para obter proteção, e depois Deus Nosso Senhor não consegue sequer preservar duas criancinhas de serem esmagadas por blocos de pedra que se precipitam das alturas! – Não sei se é Deus quem nos envia cada doença que nos aflige, cada acidente que temos ao andar a cavalo, cada redemoinho que ocorre no Tejo e em que alguém se afoga. Sei, no entanto, que Ele pode evitar isso tudo. É capaz de enviar alguém para a guerra, fazê- lo atravessar uma chuva de balas e deixá-lo ficar incólume. Milagres desses acontecem! Mas é só raramente que o Criador intervém deste modo. Isso depende também do quanto somos dignos. Ela estremeceu de fúria. – Do quanto somos dignos? Como pode falar de… – Dignos de que os nossos atos suscitem um efeito – interrompeu-a o padre. – Na verdade, não somos plantas que cresceram e se mantêm fixas num determinado sítio. Ao invés disso, podemos movimentar-nos. O nosso Criador permite-nos caminhar rumo à sombra, afastando-nos dele. Deverá Ele seguir-nos e lançar a luz também na sombra? Para isso, melhor seria que nos tivesse mantido acorrentados. – Franziu as sobrancelhas. – Faz parte da nossa dignidade a possibilidade de nos decidirmos pelo mal. E Deus não anula as consequências desse mal. É por isso que morremos na chuva de balas. É por isso que morremos à fome quando o nosso vizinho rico é demasiado ávaro para connosco partilhar um pouco da sua refeição. É por isso que nos afogamos, ficamos doentes, morremos de frio. Esta Terra, da qual deveríamos cuidar e que Deus nos ofereceu, tratamos nós de conduzir rumo às trevas. Agora choramos e queixamo-nos de que está escuro e de que estamos a sofrer. Deus não transforma numa inofensiva espiga de trigo o cacete com que um homem mau quer sovar outro homem. Não transforma em elogios as imprecações que saem da nossa boca. Experimentamos as consequências da nossa maldade. – Isso não explica nada – replicou ela. – O terramoto não pode com certeza ter sido causado pelas pessoas ruins. Ele deveria tê-lo evitado! Ele devia ter-nos protegido! Não conseguia aguentar mais aquilo. Queria regressar a casa. Sem sequer lhe dar a possibilidade de responder, deixou o padre ali especado e foi-se embora. Antero deixara de conseguir mover os dedos. Os grilhões de ferro que tinha em redor dos pulsos impediam a circulação sanguínea e as correntes que o prendiam às paredes da masmorra e mantinham os seus braços estendidos em altura entorpeciam-lhe os membros. A superfície escura da água chegava-lhe até aos joelhos. Há quanto tempo estava ele com os pés mergulhados na água gelada? Já nem os sentia. Antero cheirou o ar da torre: pedra, humidade e cal. Quem ficasse ali prisioneiro não sobreviveria durante muito tempo. Gritar de nada servia, a Torre de Belém tinha ano após ano resistido às marés e agora ao terramoto, as paredes eram grossas e maciças. Antero estava enregelado. O seu peito estremecia de frio. Era irónico que fosse por Sebastião de Carvalho que ele aguardasse e nele que depositasse as suas esperanças: esse era precisamente o homem que baixara as taxas alfandegárias aplicáveis ao tabaco e ao açúcar, com vista a tornar o contrabando menos atrativo, impossibilitando assim que ele, Antero, realizasse qualquer lucro. O secretário de Estado do Reino era a sua única esperança. A dada altura ele acabaria por perguntar onde parava afinal o seu cientista. Doíam-lhe os ombros e o tremor dos músculos das costas era medonho. Tinha de concentrar a sua atenção noutra coisa. Que outras ideias poderiam acalentar a sua esperança? Pensou em Vasco e na persistência com que este construíra e defendera a Biblioteca Real. Quem pretendesse levar um livro emprestado teria de, antes, trazer e oferecer à biblioteca um outro, e não bastava que fosse um qualquer, teria de ser um bom, com uma boa encadernação. Além disso, deveria deixar um depósito de quatro cruzados em dinheiro. Quando o livro fosse entregue, o dinheiro seria devolvido. Vasco não tinha qualquer misericórdia com quem estragasse o livro emprestado. Ficava retida uma parte do depósito para com ela se poder pagar a sua reparação. A cada dia chegavam novos mensageiros com livros que os agentes de Vasco no estrangeiro haviam descoberto: literatura científica, manuscritos e edições raras, livros sobre arte, romances. Vasco construíra um verdadeiro reino dos livros. Qual fora aquele cuja leitura ele outrora começara por lhe recomendar? Urbis Olisiponis Descriptio, de Damião de Góis, uma descrição de Lisboa, publicada em 1554. Esse livro descrevia uma cidade que já não existia, uma urbe de outros tempos, agora em ruínas. Antero ergueu a cabeça. Ouvira um tilintar metálico. Pôs-se à escuta. Passos! Alguém descia a escada. Vinham buscá-lo. O secretário de Estado do Reino dera com ele. Através das fendas na porta da masmorra brilhava uma luz trémula vinda das escadas. Ouviu o retinir de um molho de chaves e o ferrolho foi empurrado para o lado. Abriu-se a porta. A luz de um archote encandeou-o, teve de cerrar as pálpebras. – Tal como disse – a voz revelava orgulho. – Ele estava junto do rei. Tive apenas de observar, identificar alguém que o olhasse com ceticismo e colocar-lhe a pulga atrás da orelha. Antero piscou os olhos diante da luz. A pouco e pouco os seus olhos habituaram-se, conseguiu reconhecer alguns guardas, mas também Heitor e, junto deste, Gabriel Malagrida. As suas esperanças foram por água abaixo. A desilusão retirou-lhe as últimas forças que lhe restavam. Malagrida cofiou a barba com a mão, produzindo uma espécie de restolhar nos pelos brancos. Cinco anos atrás, quando Antero fugira, ainda eram grisalhos. Quando o padre passava a mão pela barba, tal significava que estava sob tensão. Antero observara-o com frequência, sabia em que situações ele o fazia. Sentiu o olhar do líder dos Jesuítas concentrado em si, a examiná-lo. Enquanto o olho esquerdo morto apontava para Heitor, o direito dirigia-se em cheio ao coração de Antero. O rosto de Malagrida não produzia qualquer expressão. Em silêncio manteve o olhar de ciclope concentrado no prisioneiro. Antero sentiu-se como se uma pá se lhe enterrasse nas entranhas. «Vê se te controlas!», disse para si mesmo. Um suor frio irrompeu por todos os poros do seu corpo. Como pudera ele achar que era capaz de combater a poderosa ordem? Mal Malagrida se postou diante dele, Antero voltou de imediato a sentir-se o franzino rapaz que se encontrava à mercê do líder dos Jesuítas, para o que desse e viesse. Cerrou os maxilares com força. «Consegues vencer Malagrida», disse para si mesmo. «Há domínios em que lhe és superior.» «Ah, sim?», lamentou-se o rapaz franzino que havia nele. «Quais são?» «Sou capaz de manter um pensamento científico», pensou ele. Qual o seu estado de espírito quando uma qualquer observação lhe agradava? Como se sentia quando na biblioteca revolvia tudo em busca de conhecimento, quando, durante horas a fio, folheava livros e, com a pena, ia anotando os mais ínfimos pareceres, garatujando- os numa folha de papel até esta ficar repleta? Tinha de ser capaz de despertar em si mesmo a curiosidade e o pensamento claro e objetivo. E então tornar-se-ia forte. Segredou para si mesmo: «Malagrida é o meu motivo de estudo. Se o observar como o faria com um escaravelho raro, que posso eu descobrir a seu respeito? Eles não me maltrataram», pensou. «Quer isso dizer que, pelo menos por enquanto, Gabriel Malagrida me quer manter vivo. Se já estivesse condenado teria sido maltratado. Para ele ainda não fui. Ainda guarda algum plano que me envolve.» Devolveu o olhar de ciclope de Malagrida e, por sua vez, examinou-o, o ritmo da sua respiração, os movimentos das suas mãos. Estaria o líder dos Jesuítas inquieto? – Bem-vindo a casa – disse Malagrida. – Esta não é a minha casa. – Receio que, durante o tempo de vida que te resta, venha a ser. – Virão procurar-me. Você sabe bem disso. – Deverias ter fugido da cidade. O terramoto forneceu-te uma boa oportunidade para o fazeres. Pergunto-me por que razão aqui ficaste. – Porque matou Julie? – perguntou Antero. – Como poderia eu deter a Inquisição? – Uma deplorável tentativa de fazer de mim parvo, padre. Malagrida semicerrou as pálpebras. De seguida sorriu. – Tornaste-te mais forte. Antero manteve-se calado. – Concedi-ta de boa vontade. Nada tinha a opor que te sentisses bem. Se assim não fosse, a minha intervenção teria sido imediata logo que os meus informadores me transmitiram que foras visto com uma mulher. – Gabriel Malagrida inspirou com força. – Só que ela distraía-te. Comecei por achar que não passava de uma paixoneta sem importância. Se assim fosse, tudo bem, uma paixoneta dessas durante meio ano, isso acontece de vez em quando! Só que contigo a coisa foi mesmo séria. Ela explorava a tua faceta mais fraca, Antero, os escrúpulos, o teu lado sonhador. Aquela crítica surtia nele o mesmo profundo efeito que há cinco anos. Malagrida desprezava-o, pois considerava que a sua vontade era pouco firme. Para contrariar esse desprezo, cometera atos infames a pedido do seu mestre. Traíra, roubara, enganara os seus próprios pais. Tivera sempre problemas de consciência. De cada vez Malagrida absolvera-o das culpas: «Ego te absolvo.» As palavras tinham-lhe soado vazias, como se fosse mentira. Como poderia alguém cometer um pecado e de seguida pedir perdão a Deus, quando nem sequer havia arrependimento por ter cometido o ato? Nunca mais voltara a confessar-se. Odiava aquilo: «Ego te absolvo.» Detestava o princípio da reserva mental, observado pelos Jesuítas, que consistia em dissimular a verdade com vista a proteger um segredo ou então, como defendiam, para evitar prejuízos maiores. Às vezes, era moralmente mais correto mentir do que admitir abertamente a verdade, explicara Malagrida vezes sem conta. Era como que um espinho no coração de Antero. – Além disso – prosseguiu o jesuíta –, como se coadunava ela com o voto de castidade? Pretendias tu repudiá-la no fim do noviciado, pouco antes de pronunciares os teus votos? Sabias perfeitamente que só poderias pertencer aos Jesuítas se abdicasses da comunidade conjugal e se, em vez disso, optasses pela comunidade no seio da ordem! Preciso de ti forte, Antero. – Olhou-o penetrantemente. – Quero dotar-te de uma força maior do que aquela que consegues imaginar nos teus sonhos mais ousados. Podes vir a ser um homem importante, um homem de relevo, alguém que influencia os destinos do mundo, que os conduz! Sei que foi por isso que regressaste a Lisboa. – Quer que fique como você? Prefiro morrer. – Não devias desperdiçar o teu talento. Não és um contrabandista. No fundo do teu coração sabes bem que nasceste para voos mais altos. Só junto da Companhia de Jesus encontrarás a rede de apoio de que precisas para concretizar tudo o que de grande tens para realizar. – Os interesses dos Jesuítas já há muito que nada têm a ver com os meus. – Que te incomoda afinal? Que na América do Sul defendamos os índios dos caçadores de escravos? Que ponhamos o conhecimento da fé à disposição das pessoas? Que demos formação a crianças sem exigir dinheiro aos pais? – Tudo aquilo que faz, padre, serve apenas um propósito: pretende construir um aparelho de poder e dirigi-lo. – Ainda que assim fosse, não me envergonharia disso. Vivemos numa sociedade que é dirigida precisamente desse modo. Se não for eu a liderá-la, será outro qualquer. E são bons os desígnios em prol dos quais eu utilizo o poder. – Ah, sim? Que pretende fazer com o tratado político? Malagrida examinou Antero com o olhar. – Tornaste-te um homem. Às tuas notáveis capacidades veio acrescentar-se a força. Pois bem, dar-te-ei mais liberdade. Terás subalternos, receberás todo um território a teu cargo. – A minha alma não está à venda, Gabriel Malagrida. O rosto do jesuíta adotou uma expressão empedernida. – No que me diz respeito, não há neutralidade. Sabes isso perfeitamente. Fiz-te uma oferta magnífica. Se a recusares, serás meu inimigo. – E que fui eu afinal durante os últimos cinco anos? Gabriel Malagrida soltou uma risada breve e seca. – Pensavas que me escaparias? Chegaste mesmo a achar isso? Estive na América do Sul. Se não fosse assim, já teria tratado do teu caso há muito mais tempo. Consigo sempre obter aquilo que quero. Antero olhou-o bem nos olhos. – Engana-se. Em silêncio, o jesuíta devolveu-lhe a intensidade do olhar. – É uma pena, meu jovem – disse Malagrida por fim. – A verdade é que não tolero ter-te entre os meus inimigos. Vou certificar-me de que ainda hoje serás levado ao cadafalso. Deu meia-volta. Os homens abandonaram o calabouço. A porta fechou-se com estrondo. A luz afastou-se e depois regressou a escuridão. 22
Leonor bateu à porta. Ficou à espera. O pai não respondia. Voltou
a limpar as lágrimas do canto dos olhos. De seguida tornou a enfiar o lenço de seda azul na manga, pressionou o manípulo da porta e entrou. O pai ajoelhara-se diante da cama. Um jarro de água e uma escarradeira estavam por perto e, junto dele, ainda a antiquada escova de dentes, com uma pega de osso e um tufo de pelos de cabra. – Preciso de falar contigo – disse ela. – Estás a interromper as minhas orações – respondeu ele, pondo- se de pé. – Esteve aqui um mensageiro. Hoje à noite vamos compare-cer perante o rei. Primeiro temos de proceder a alguns preparativos. Os olhos dele estavam avermelhados, cobertos de finíssimos vasos sanguíneos. Tinha um aspecto cansado. – Não consigo deixar de pensar na Dalila – disse ele em voz baixa. – Basta olhar para ti. Queria viajar. Gostaria de estar noutro sítio qualquer, onde as coisas corressem bem, para me poder recompor. – Queres ir visitar a mãe? – Não sei onde ela está... Nem com quem. Leonor abriu muito os olhos. – Já há bastante tempo que as coisas não andavam bem connosco. Era essa a razão por que ela estava sempre de visita a familiares. Há quanto tempo ela não vem cá? Três anos? De início, sempre ia aparecendo em casa ao menos algumas semanas por ano, para vos ver. A verdade, porém, Leonor, é que a perdemos. A Dalila viera assim juntar-se também a mãe. Todos a abandonavam, deixando-a entregue a si mesma. Leonor engoliu em seco. – Agora preciso de ti. Temos de aparecer em público, pai. A família Velho da Rocha Oldenberg sairá reforçada desta crise, tu mesmo o disseste. – Aparecer diante de um público faminto, de gente morta – deixou escapar um suspiro. – Eu sei, eu sei, o importante agora é o rei. – Vêm hoje cá buscar-nos e levar-nos-ão para comparecermos diante dele. Eu acompanho-te. O pai acenou afirmativamente com a cabeça. Sentou-se sobre a cama. Extenuado, os ombros pendiam-lhe. Quis abraçá-lo e consolá-lo, mas tal afigurou-se-lhe impró-prio. Talvez as crianças o fizessem, mas os adultos não se abraçavam. – É melhor deixar-te aqui sozinho. O Jerónimo irá trazer-te a tua melhor casaca, está só a acabar de polir os botões. Atravessou a sala de estar, percorreu o corredor e saiu para o exterior. Respirou fundo. Se não fosse ela a tomar as rédeas da situação, tudo iria por água abaixo. A mãe fora-se embora, o pai estava enfraquecido e Dalila, morta. Teria de ser ela a assumir o comando das hostilidades. Talvez fosse chegada a altura de deixar cair a máscara. Diante da casa, bem no meio da rua, via-se uma mulher morta. Uma mosca esvoaçava de um lado para o outro, em redor do rosto dela. Ora desaparecia na escuridão da cavidade bucal, ora voltava a de lá sair para de seguida regressar. Leonor forçou-se a olhar para o lado, pois não queria que aquela imagem se lhe gravasse na mente. Em frente à casa havia uma parede em ruínas com um relógio de sol, só que neste não se conseguia distinguir claramente a projeção de qualquer sombra, uma vez que a que era causada pela vareta tremulava com inquietude sobre as marcações inscritas na parede. Era uma espécie de «hora de ninguém», alumiada pelas casas que continuavam a arder, mas só em brasa, já sem chamas. O amor que sentia por Antero não poderia continuar a tolhê-la. Não era por acaso que lhe chamavam a Jesuíta: ela criara toda uma rede de contactos que lhe conferira superioridade em relação a outros. E possuía as suas próprias forças. Apenas teria de usá-las. Deixou cair os braços como se fossem meros pedaços de carne sem vida, indo bater nos seus flancos. Depois, foram as pernas a ceder. Os esbirros tiveram de agarrar Antero por baixo das axilas e carregá-lo para fora da cela. As suas meias, encharcadas, deixaram marcas de água nas escadas. Não conseguia sequer sentir o corpo. «Vá, enforquem-me!», pensou ele. «Seja como for, já estou morto.» Quando o colocaram no barco e, a poder de fortes remadas, se afastaram do cais junto à Torre de Belém, deu-se conta de um rasgão num ombro. O sangue escorria-lhe pelos braços, e sentia-os pesados. Parecia que lhe cravavam milhares de agulhas. Depois, sentiu uma rápida sucessão de picadas a percorrer-lhe os antebraços. Doíam-lhe as mãos. As pernas latejavam. Cerrou os maxilares com força e fitou a margem. Os remos rangiam nos toletes. A proa ia cortando a superfície da água. Rumaram à branca igreja de Belém. Por entre os troncos das árvores conseguia avistar as tendas junto ao palácio real. Que iria ser de Samira depois de o enforcarem? Talvez Leonor se ocupasse da pequenita. Daria dinheiro ao Convento das Clarissas, isto se depois do terramoto ainda restasse algum à sua família, e pediria às freiras que aceitassem Samira. Iria, de início, visitá-la de tempos a tempos e, a certa altura, Samira acabaria por se tornar também ela uma clarissa. Não era essa a vida que tinha desejado para ela. Samira não deveria crescer num convento, sem mãe e sem pai, e tornar-se freira. Nos seus seis anos e meio de vida, já experimentara abandono que chegasse. Ela precisava dele. Os remadores recolheram os remos. Dois dos esbirros saíram do barco e amarraram-no ao pontão. De seguida agarraram nele e içaram-no. – Este monte de esterco não consegue andar sozinho – disse um dos esbirros. – Como o levamos para a cidade, até ao patíbulo? – Vou arranjar um cavalo para o transportar – disse um outro. – Espera aqui. – Tenho fome – disse Antero. A sua voz soou estranha, como um grasnido. – Estás à espera que te deem a última refeição do condenado? – perguntaram os esbirros, rindo. – Também nós tempos fome. E todos os milhares que sobreviveram ao terramoto. Deixaram-no sentado no chão. Mais adiante estavam as tendas. O secretário de Estado do Reino podia impedir a execução. Antero inspirou profundamente e gritou: – Socorro! Ajudem-me! Um dos esbirros sacou do sabre e apontou-o às costelas de Antero. – Se não parares já com isso, depois digo que te apliquei um golpe porque tentaste fugir. Fiz-me entender? – Antero calou-se. – Entendeste-me ou não? Ele acenou com a cabeça. Voltou a espreitar para as tendas. Era ilusória a ideia de que alguém teria ouvido os seus gritos enrouquecidos. Ainda assim, não deixou de ter essa esperança. Imaginou que Sebastião de Carvalho avançava pelos jardins, na companhia da Guarda Real, para vir salvá-lo. O esbirro afastou então o sabre e voltou a embainhá-lo. Antero examinou o indivíduo. A sua peruca estava suja. Era demasiado curta dos lados e junto às orelhas revelava o cabelo escuro do homem. Pouco lhe importava usar uma peruca em segunda mão que nem sequer lhe assentasse muito bem. Antero não duvidava de que, caso ele tentasse uma vez mais pedir ajuda, o esbirro lhe enfiaria o sabre no tronco, sem sequer o voltar a avisar. Assim sendo, manteve-se calado até que chegaram com uma pileca. Colocaram-no em cima dela e puseram-se a caminho de Lisboa. O fumo negro no horizonte revelava que a cidade continuava em chamas. Era no meio deste inferno de fogo, fumo e destroços que aguardava a forca, cujo nó corrediço lhe iria partir o pescoço. Leonor percorreu a rua com o olhar. Há alguns dias fora o novo cônsul-geral inglês ali recebido. A rua estava então limpa e ornamentada com grinaldas de flores. Nas varandas haviam sido pendurados panos coloridos. Música, gente a dançar, tudo isso se lhe afigurava agora como um sonho. Já só restavam escombros. À sua esquerda uma ruína continuava a arder. E perto jazia a mulher morta, com o rosto sujo de sangue já enegrecido. Um corvo pousou junto ao cadáver e ficou a olhá-la. – Vai-te embora daqui! – ordenou Leonor. – Desaparece! O corvo saltitou mais para diante, depois voltou a fitar a morta com os seus olhos negros como o carvão. Seria um dos corvos da Igreja de São Vicente de Fora? Nesse caso, deveria proteger os cadáveres. Na igreja eram mantidos corvos, pois as relíquias do orago da igreja, São Vicente, haviam sido veladas por eles. Aquele, porém, tinha um aspecto cobiçoso. Leonor detestava-o. Não podia ali ficar a tarde inteira a proteger a morta. Deu meia volta e entrou em casa. Não prestou sequer atenção aos escravos que com ela se cruzaram no vestíbulo. Dirigiu-se ao seu quarto e ficou parada diante do pesado roupeiro. Se o duque de Aveiro não cumprisse o acordado e não lhe enviasse um dos vestidos da sua filha, teria de arranjar uma alternativa para conseguir um vestido. Rodou a pequena chave que se encontrava enfiada na fechadura e abriu as portas do armário. No interior da porta esquerda estava colada uma imagem de Maria, a Virgem, em cores garridas e adornada com verniz dourado. Em redor da imagem fora reproduzido o texto de uma oração. A imagem recordou-lhe Dalila. A irmã tinha predileção por figuras de santos, os quais haviam sido parte integrante da sua vida quotidiana, uma espécie de mágico encanto que a ajudava quando se sentia desesperada. O interior do armário cheirava a amido de batata. A roupa de cama e os aventais continuavam arrumados com todo o asseio nas respetivas divisões. Abaixo destes havia umas quantas lâmpadas de óleo de baleia. Leonor procurou acima da pilha de roupa, tateando nas partes mais recônditas do armário em busca de alguma coisa escondida. Ao mexer no compartimento mais acima, apalpou algo duro que fora enrolado em papel. Retirou-o donde estava. Um cone de açúcar embrulhado em papel azul. Já lhe faltava a parte de cima. A ocupante daquele quarto deveria tê-lo roubado da cozinha ou então comprara-o e não pretendia partilhá-lo com os demais. Leonor desembrulhou-o e partiu um pedacinho. Colocou-o na boca e ele desintegrou-se em inúmeros e doces fragmentos, que se dissolveram na saliva. Não havia qualquer cravo naquela casa. Que faria a sua antecessora ao longo de todo o santo dia? Pousou o cone de açúcar sobre o edredão que cobria a cama e fechou o armário. Ao lado deste havia uma cómoda. Até àquele momento Leonor não se atrevera a abrir as gavetas. As coisas que lá estavam não lhe pertenciam. Era como se receasse que, logo que abrisse a cómoda, a antiga ocupante do quarto lhe surgisse à porta e a olhasse com uma expressão fria e reprovadora, repreendendo-a por estar a bisbilhotar em armários aonde não devia mexer. Leonor abriu a gaveta de cima. Havia combinações e lenços de pescoço no interior. Cheiravam a um perfume que desconhecia. Por que razão não tinha a mulher que aqui habitava levado nada consigo ao empreender a fuga? Oxalá ainda estivesse viva. Sobre os lenços de pescoço viu uma pulseira. Leonor pegou nela. Tinha sido feita de cabelo negro entrançado. Em tempos lera num romance que, entrançando o seu próprio cabelo, uma mulher fizera uma pulseira para dar ao namorado. Porventura teria a dona do quarto pretendido oferecê-la, mas não chegara a ter oportunidade de o fazer. Alguém bateu à porta. – Sim? – perguntou ela. O pai entrou no quarto. A sua casaca fora escovada, os botões dourados polidos, e colocara uma peruca que acabara de ser empoeirada com giz. – Que se passa, pai? – O duque de Aveiro enviou-nos o seu coche, e também um vestido para ti – disse ele, dando de seguida meia-volta. Uma criada entrou no quarto. Trazia nas mãos um vestido de damasco de um verde cintilante, que segurava como se pudesse partir-se em mil pedaços caso caísse ao chão. – Creio que o duque gostaria que usasses o vestido quando formos recebidos pelo rei – o pai estava com um ar sério. – É nestas próximas horas que se decide o destino desta família. Não deveremos desperdiçar qualquer oportunidade de que possamos tirar partido. Dito isto, fechou silenciosamente a porta ao sair. Leonor despiu o vestido já sem graça que trazia no corpo. A criada trouxe-lhe o de damasco e ajudou-a a vesti-lo. O tecido frio roçou na sua pele. Afagou-lhe os braços. Quando o último botão foi apertado, revoluteou com passos de dança através do quarto. – Como me fica? – Excelente, menina Leonor – respondeu a criada. – Parece mesmo uma princesa. Leonor encaminhou-se para a saída. O pai estava à sua espera diante da porta. – Estás maravilhosa, Leonor – elogiou-a ele. Ela sorriu e esboçou uma mesura. – Anda – disse o pai. – O coche já está à espera. Não te incomoda que o utilizemos mesmo ostentando as armas do duque? Assim era aquele novo mundo em que se aventuravam, o da alta nobreza portuguesa. Apoiada no braço do pai, Leonor e ele saíram de casa. Lá fora aguardava-os uma berlinda negra, coberta de gavinhas douradas a decorá-la. Os aros das rodas, pintados de vermelho, estavam ornamentados com entalhes e até mesmo os raios haviam sido todos adornados com folhas entalhadas na madeira. A berlinda era puxada por dois cavalos negros. A pelagem deles brilhava como ónix. Os bens do duque pareciam ter sobrevivido incólumes ao terramoto. A porta da carruagem estava já aberta. O pai deixou Leonor entrar primeiro. Ela subiu e espantou-se de ver que o cúmplice de Malagrida que se assemelhava a uma gralha estava no interior da berlinda. Sentou-se diante dele. O tipo não parava de esfregar as mãos magras uma na outra. Acima do nariz pontiagudo, os olhos, de um castanho da cor da terra, adejavam rapidamente de um lado para o outro. Não restavam quaisquer dúvidas: Malagrida já não confiava em Leonor por ela lhe ter mentido a respeito de Antero. Sobre o assento ao lado de Tomás estava uma enorme folha de papel, densamente manuscrita, com cada uma das linhas como se tivessem sido traçadas de uma ponta à outra do papel, imaculadas e sem erros. De seguida subiu o pai. De fora, Jerónimo fechou a porta da berlinda. O comerciante também olhou para o papel. – Então sempre conseguiu obter o tratado – reparou. E, para Leonor, acrescentou: – Não me disseste que tinhas sido bem- sucedida. – A ajuda dela deixou de ser necessária – comentou a gralha. – O antigo braço-direito do padre Malagrida arranjou maneira de nos obter o tratado. Leonor sentiu um mal-estar no seu interior. Antero roubara o tratado? Para os Jesuítas? Jamais! Era impossível que o tivesse feito de livre vontade. – Refere-se a Antero? Como vai ele? – Como seria de esperar, dadas as circunstâncias – respondeu Tomás, esboçando um sorriso. Leonor foi atravessada por um gélido terror. Fitou o tratado e nem sequer conseguiu respirar. Haviam conseguido aviltar Antero. De algum modo, tinham-lhe causado dor para que ele se submetesse à vontade deles. Mostrara-se tão odioso em relação aos Jesuítas e tão receoso de ser denunciado! Se era nas mãos deles que agora estava, não podia passar senão mal. O jesuíta entregou o tratado ao pai dela. – Veja-o com toda a calma – disse, batendo de seguida com a palma da mão na parede da berlinda. O cocheiro fez estalar o chicote e a carruagem estremeceu. As ferraduras dos cavalos ressoaram sobre o empedrado da rua, produzindo um distinto som metálico. O pai pôs-se a ler a grande folha de papel. Leonor passou a mão sobre o tecido de veludo vermelho do assento. Afagado numa direção apresentava-se áspero, mas, se o fizesse ao contrário recuperava o brilho. Escreveu um A de Antero no veludo, mas logo se apressou a apagá-lo. O medo parecia estrangulá-la. Olhou pela janela para as ruínas que desfilavam diante de si e tentou organizar os seus pensamentos com clareza. A ascensão social da sua família fora paga com o sangue de Antero. A pileca ossuda carregou Antero através da Rua dos Ferreiros, que ainda não fora desimpedida: havia blocos de pedra por todo o lado, vigas rachadas, pedaços de ferro, objetos domésticos. Só fora desimpedida uma faixa muito estreita. Reinava o silêncio. Nada de martelos a baterem nas bigornas, cavilhas em brasa a serem torcidas, pedaços de ferro a serem mergulhados numa tina da água. O sopro do fole emudecera e o fumo das chaminés fora há muito soprado para longe. Aquela ruína tinha sido a casa da família Pinto. O mais novo dos quatro filhos fora seu amigo quando eram crianças. Os irmãos mais velhos tinham emigrado para as colónias, pelo que para aquela família não havia outro tema de conversa que não fossem as condições de vida além-mar. Ainda assim, os filhos que viviam longe sempre teriam sido poupados, por estarem ausentes, mas continuariam os pais ainda vivos, e o seu velho amigo? A pileca seguia com uma estóica tranquilidade através da cidade destruída, como se transportar uma pessoa rumo ao reino dos mortos fosse a sua atividade de todos os dias. Talvez a noção de inevitabilidade do destino fosse algo bem real e existisse mesmo. O dia 3 de novembro de 1755 seria o da morte de Antero. Era uma sensação estranha ter conhecimento dessa data. Estava agitado, como se prestes a submeter-se a um exame. Passaram por uma fila de pessoas, umas de pé a seguir às outras, e aquela que estava mais à frente esperava diante de umas ruínas. O esbirro, que conduzia o cavalo, chegou-se junto dessa pessoa, um homem de cabelos brancos e com o rosto marcado por manchas próprias da idade. – Que se passa aqui? – perguntou bruscamente. – Corre o rumor de que hoje irá ser distribuída comida, aqui junto à padaria do velho Gonçalo. – Acredita mesmo que alguém vai distribuir pão? – Os militares obrigaram-me a voltar para a cidade, agora controlam as entradas e saídas, já ninguém consegue passar sem uma autorização especial. Se o rei não nos alimentar, vamos morrer à fome. Deviam ter pensado nisso quando nos mandaram voltar. Um homem saiu da fila. Trazia consigo uma mulher que nele se apoiava. – Por favor ajude-nos! – dirigiu-se ao esbirro. – Sabe dizer-me onde posso encontrar um médico? A minha mulher precisa de ajuda. – Vá até ao Terreiro do Paço – disse-lhe o esbirro. E, depois, mais alto, de modo a que todos os presentes o conseguissem ouvir: – Aqui não vão receber nada. Se o rei mandar distribuir pão, isso será feito numa das praças maiores, no Largo do Rato ou na Praça do Rossio. As pessoas fitaram-no, incrédulas. Ninguém disse nada. Mantiveram-se na fila. Uma criança desatou a chorar. – Escutem com atenção – disse o esbirro bem alto –, vocês não se podem fiar apenas no que se diz acerca do rei. Todos nós temos de pôr mãos à obra! De certeza que ainda haverá mantimentos escondidos debaixo dos escombros. – Se nos pusermos aí a escavar, ainda acabamos é na forca! O esbirro abanou a cabeça. – Tratem de arranjar uma autorização junto do magistrado da vossa circunscrição. Se conseguirem provar que a casa vos pertence, nada vos acontece. Ninguém queria abandonar o seu lugar na fila. Ficaram parados, a olhar para o esbirro. Este virou-se para os seus companheiros, abanou a cabeça e disse: – Onde acham eles que o rei vai arranjar pão? – Ao exército – respondeu-lhe um outro esbirro –, que vai buscá- lo com certeza aí às terras em redor. – E quem vai comer aquilo que conseguirem reunir? – O exército – respondeu o outro, com um sorriso trocista. Continuaram. Antero não pôde deixar de pensar na sua infância. Fora o melhor aluno de uma turma de oitenta. Ainda assim, todos os anos ficava nervoso de cada vez que tinha de fazer o exame para passar à classe seguinte. A quantidade de matéria que os obrigavam a aprender de cor era imensa. Nas aulas de latim e de grego, o professor ditava a matéria, ou então lia alto um texto, frase a frase, e os alunos repetiam-no, vergados diante do livro, após o que escreviam aquilo que tinham ouvido. Antero pensou nos livros já gastos que outrora utilizara, nas tabelas de cálculo de Pitágoras, na lista de homófonos que deveria ajudar a distinguir palavras que soavam de modo igual. Os Jesuítas exerciam o seu poder sobre os alunos por meio de um sistema insidioso: faziam deles espiões uns dos outros. Os professores designavam «prefeitos», estes delegavam em «decuriões» que, por sua vez, vigiavam os restantes alunos. Se alguém se destacasse pela sua insubordinação, tal seria rapidamente participado aos superiores através daquela cadeia de comando. Seguia-se uma admoestação e um registo no livro de ponto, a que reverentemente se dava o nome de «livro da vida». Em casos mais graves, eram aplicados castigos, alguns deles corporais. Os padres propriamente nunca lhes batiam, esses castigos eram aplicados pelos alunos mais fortes das turmas mais avançadas. Ainda assim, os professores traziam sempre na mão o bastão com que os alunos eram castigados. Agitavam-no pelo ar, produzindo um som sibilante, batiam com ele na cátedra em sinal de aviso ou desferiam uma forte pancada na mesa sobre a qual um aluno distraído adormecera. Porque insistira ele tanto em continuar na escola? É claro que havia boas razões, as apresentações públicas do teatro escolar ou as aulas de retórica nos dois últimos anos. Mas seria isso motivo suficiente para se ter travado de razões com o padrasto e ter saído de casa? Lembrava-se perfeitamente da sua comunhão. Completara então catorze anos, era o domingo depois da Páscoa e, em todas as ruas, crianças seguiam junto aos pais e dirigiam-se para a igreja, rapazes e raparigas, todos bem arranjadinhos. Na igreja seguravam uma vela acesa, de um dos lados os rapazes, do outro as raparigas. Ele limitara-se a olhar fixamente a mãe, cheio de fúria no seu âmago, pois o estranho sentado ao lado dela era o homem que jamais seria o seu pai. Era protestante, nem sequer deveria ali estar, naquela altura em que, perante toda a comunidade de paroquianos, as crianças recebiam a comunhão! O padrasto nada tinha a ver com a morte do pai de Antero, vitimado pelo tifo. Ainda assim, o rapaz imaginava que fora o padrasto que se tinha visto livre do pai dele, para assim se assegurar que ficava com a mãe. Com quinze anos, dois antes de entrar para o liceu, fugira de casa. Naquele dia de verão, fazia tanto calor logo de manhã que ele despira a camisa de dormir mal se levantara. Descera as escadas de tronco nu. Lá em baixo, o padrasto aguardava-o. – A oração em família é obrigatória também para ti, Antero – dissera ele. Oração em família. Isso queria dizer que o padrasto reunia a mãe, ele e os criados em seu redor para lhes ler versículos da Bíblia. Entoavam hinos de louvor e, por fim, rezavam o pai-nosso. A sua presença em orações em família fora algo que o seu verdadeiro pai jamais lhe exigira. Já só por isso Antero recusava-se a participar. – Sou católico – dissera. – Não participo numa celebração protestante. – Foram os Jesuítas que te meteram essas ideias na cabeça – disse o inglês. – Vou tirar-te desse colégio. – Isso é que não vai! – Vamos procurar um tutor privado. Não te dás conta do que essa ordem faz? A Ordem dos Jesuítas é uma associação que visa combater a fé evangélica. – Disparate. – Ah, mas é mesmo assim. Quando Inácio de Loyola fundou a Companhia de Jesus, estava a Igreja Católica entre a espada e a parede! Metade da Europa havia já lhe virara as costas. Por todo o lado se espalhavam as teses dos grandes reformadores. Disso não te falam eles, nem uma palavra acerca de Martinho Lutero, João Calvino, Ulrico Zuínglio, não é verdade? Ou, quando muito, referem- se-lhes com desdém. Foram os Jesuítas que conseguiram inverter a situação. Por que razão achas que, por todo o lado, os confessores dos soberanos de diversos países são jesuítas? Há um plano subjacente! Trata-se de convencer os reis a expulsarem os membros do clero protestante e a agirem contra os nobres que professem essa fé. – E as coisas estão muito bem assim – comentou Antero. – A exibição das relíquias! Aquela sumptuosa devoção! A questão central não diz respeito aos adornos terrenos e festivos, Antero. Trata-se, isso sim, da crença em Jesus Cristo. Trata-se do Deus eterno! É Ele quem está acima de tudo o que é terreno. – Não é à toa que os Jesuítas têm esse nome. Eles difundem a crença em Jesus! Os seus exercícios espirituais já levaram muita gente a ajoelhar-se. – Sim, e o seu instrumento mais eficaz são as escolas jesuítas, o que se pode comprovar perfeitamente com o teu exemplo – troçou o padrasto. – Formação escolar sem custos e de grande qualidade, com isso conseguiram eles encostar mesmo os protestantes a um canto. Confiamos-lhes as nossas crianças, o nosso maior tesouro. Qualquer um que venha mais tarde a ter nome e posição social é formado pelos Jesuítas: estadistas, diplomatas, comerciantes, estudiosos. Só que este sistema educativo também tem as suas fraquezas. Os alunos apenas adquirem conhecimentos de cor e, ao fazê-lo, estão a interiorizar a fé católica. E as vossas próprias faculdades, o vosso próprio entendimento, como é isso estimulado? Põem-se a marrar no latim. E que é feito da vossa língua materna, o português? – Desde quando se importa assim tanto com Portugal? – perguntou Antero. – Só veio de Inglaterra para aqui para juntar dinheiro! – Agora chega. O padrasto pegou em Antero pelo pescoço e arrastou-o até à cozinha. Aí sovou-o com uma colher de pau até quase ficar inconsciente. Ainda nesse mesmo dia, Antero abandonou para sempre a casa dos pais. Nessa altura, os Jesuítas consideraram que um jovem tão dotado como ele não poderia ficar entregue às ruas, tendo-lhe arranjado maneira de ser acolhido num asilo. Mais tarde, passou a viver com Malagrida, junto da Igreja de São Roque. Tudo correra com grande facilidade. Obteve uma recomendação para ingressar no liceu jesuíta. Estudou gramática, retórica, dialética; e depois o quadrívio, ou seja, aritmética, geometria, astronomia e música. Malagrida mantinha sobre ele a sua mão protetora. O facto de depender dele só se tornou claro para Antero quando começou a sentir dificuldades nos estudos de teologia: Tomás de Aquino, a teologia controversa, a casuística, o direito canónico e as Sagradas Escrituras. Antero não se interessava minimamente por nada isso. A sua curiosidade concentrava-se apenas nas leis da natureza. Malagrida, porém, fez-lhe sentir com toda a clareza que ele não era senhor de si mesmo. Quando decidiu protestar, recebeu uma conta, mais nada. Dessa conta constavam os custos de alojamento dos últimos anos, dos livros, da comida, da roupa que lhe tinha sido dada. Resultava numa soma que ele era absolutamente incapaz de reunir e pagar. Por baixo, estava escrito: «Posso continuar a patrocinar-te?» A mensagem não deixava dúvidas. Malagrida convidou cada vez mais Antero para o acompanhar nas visitas que fazia. Confiava-lhe segredos. Depois, porém, conduzira Julie à fogueira. O líder dos Jesuítas não a admitia como rival, pretendia ter Antero exclusivamente para si. A pileca tropeçou, o corpo de Antero estremeceu. Espreitou para a frente. A multidão enchia a Praça do Rossio. Acima das cabeças das pessoas erguiam-se três forcas, montadas sobre um tosco estrado de madeira. «Será numa daquelas que me vão enforcar», pensou. O medo fez com que todo o seu corpo tremesse. Talvez pudesse deixar-se cair da sela e esconder-se no meio da multidão? Tinha de se evadir! O esbirro que conduzia o cavalo parou. – Desmonta! – ordenou ele. Antero escorregou do dorso do cavalo. Lá em baixo, agarraram- no. Depois, um deles cobriu-lhe a cabeça com uma saca negra. Puxaram-lhe as mãos para trás das costas e ataram-lhe os pulsos. Uma corda grossa dilacerou-lhe a pele já ferida. Os joelhos de Antero perderam a sua firmeza. Era impossível empreender uma fuga. Iriam enforcá-lo. Ali mesmo. Naquele mesmo dia. «Esta foi então a minha vida», pensou. «Já não conseguirei derrubar Malagrida. Não voltarei a ver Samira.» Que tinha ele feito ao longo da vida? Acumulara dinheiro e voltara a perdê-lo. Investigara, mas não havia ninguém a quem pudesse transmitir os resultados obtidos. Gerara uma criança e abandonara- a. Amara e perdera a sua amada. Antero engoliu em seco. Sentia o coração bater com força contra as costelas. Não tardaria a ir ter com Deus. Melhor seria que pensasse num versículo da Bíblia. Um salmo. Nos seus estudos de teologia aprendera de cor o salmo 119: Viva eu sempre para te louvar, que os teus decretos me ajudem. Ando errante, como ovelha perdida; vem à procura do teu servo, pois não me esqueci dos teus mandamentos. «Ando errante, como ovelha perdida. Ajuda-me, meu Deus!», suplicou ele. «Concede-me ao menos a graça de ficar calmo e aguentar a morte.» Só que o seu coração bateu ainda com mais força. 23
Nicolau Fernandes estendeu os planos sobre a mesa. Através das
frinchas da barraca de madeira, o Sol desenhava faixas de luz sobre o papel. Retirou do estojo um dos seus dispendiosos lápis com grafite de Borrowdale. Ainda bem que os trazia sempre consigo. Se assim não fosse, decerto não teriam escapado ao terramoto. Os seus olhos percorreram a planta da cidade. Dentro de pouquíssimo tempo teriam de erigir milhares de barracas. Iriam ser necessárias tábuas, colchões de palha e lona. O melhor seria começar por edificar bairros provisórios nas zonas orientais e ocidentais da cidade, utilizando de seguida as zonas de planalto em redor da cidade. Escreveu sobre a planta Campo de Ourique, Campo de Santa Ana, Campo Grande e Campo Pequeno. Junto ao castelo, acrescentou Campo de Santa Bárbara. Na zona ocidental da cidade, anotou a palavra Estrela, na zona oriental, pôs Campo de Santa Clara. Mas como haveriam de distribuir os materiais de construção? E quem iria atribuir o lugar a cada família? Para cada um dos bairros provisórios precisava de alguém que o dirigisse. Reclinou-se e fez uma massagem no próprio pescoço, para descontrair. Mesmo que conseguissem pôr de pé aqueles acampamentos de emergência, seria uma tarefa quase impossível reconstruir a capital de Portugal, uma cidade que fora erigida com os lucros resultantes do comércio ao longo de séculos, uma urbe para cuja edificação haviam convergido o suor e as forças de povos inteiros. Porém, era evidente que teriam de tentá-lo. Agradava-lhe a noção de as pessoas trabalharem arduamente, nos estaleiros das construções, nas oficinas, fosse onde fosse. Conferia dignidade à sua existência. Alguém bateu à porta, fazendo assim estremecer toda a estrutura da barraca. – Tenha mais cuidado, homem! – gritou Nicolau, irritado. – Perdão. É para dizer que já estamos prontos. – Vou já. Em tempos de necessidade, o Reino exigia dos seus naturais mais capazes mais do que era costume. Erigir acampamentos com dez mil barracas já teria sido suficiente para um semideus. Além disso, haviam-lhe sido ainda atribuídas as competências de magistrado, uma vez que três deles tinham perdido a vida em resultado do terramoto, sendo por isso difícil em tão pouco tempo encontrar substitutos adequados. Levantou-se. Com uma expressão de preocupação, olhou para a caixinha com aqueles lápis caros. Por fim, voltou a colocar o que segurava na mão no interior da caixa e guardou-a. Saiu e disse para o soldado: – Fique aqui a guardar o escritório. Responde pela segurança daqueles planos com a sua própria vida! O soldado fez-lhe continência. Na Praça do Rossio, os soldados empunharam as suas armas e estenderam os braços, obrigando a população a afastar-se, para que ele pudesse passar. Os rostos sujos seguiam-no enquanto ia passando pelo meio da população. Centenas de pares de olhos fitavam-no com uma expressão zangada. Subiu para o patíbulo do meio e virou-se para a multidão. – Estão diante de uma cidade destruída – disse ele, apontando para as ruínas fumegantes em redor da praça. – Temos tempos difíceis pela frente. Irá haver fome. Faltarão as coisas mais simples da vida, sabonete, vestuário, medicamentos. O nosso novo secretário de Estado do Reino, Sebastião de Carvalho, encarregou o marquês de Abrantes de concentrar as tropas em Lisboa com vista a proteger lugares importantes e para evitar pilhagens. Além disso, instituiu um sistema de controlo que regula os acessos à cidade. – Acessos? – perguntou alguém. – Deve é querer dizer saídas! Obrigaram-nos a voltar a Lisboa, e agora, segundo parece, não nos deixam fugir deste inferno! – É verdade – concordou Nicolau. Conferiu à sua voz um tom de inabalável severidade. – Uma das minhas atribuições enquanto magistrado consiste em decidir qual o local em que as pessoas devem permanecer – eram muitas as famílias que traziam consigo trouxas com alguns pertences. Precisavam de um abrigo, ele sabia- o bem, e era para resolver isso mesmo que trabalhava! – Não vamos desistir de Lisboa. Reconstruíremos esta cidade. E, para isso, precisamos de todos. A multidão manteve-se em silêncio. – O secretário de Estado do Reino concedeu aos doze magistrados e ao presidente do Desembargo do Paço competências alargadas durante os próximos meses. A cada um dos magistrados é atribuído o direito de realizar julgamentos sumários a saqueadores e ladrões, no próprio local em que sejam detidos, condenando-os e mandando executá-los de imediato. Aconselho-vos a todos a trazerem sempre convosco provas inequívocas da vossa identidade, bem como os necessários títulos de propriedade quando andarem em busca de bens nas ruínas das vossas casas. – Provas? Mas isso ardeu tudo! – exclamou uma mulher. – Nesse caso dirija-se ao magistrado da sua circunscrição e leve consigo testemunhas, para que ele lhe possa emitir documentos provisórios. O aviso que vos faço é bem a sério! Nos dias que correm, não se perde muito tempo com ladrões. Num julgamento sumário não se anda em busca de indícios de uma possível inocência. Só conseguiremos sobreviver se nos mantivermos unidos. Teremos de deixar as vantagens pessoais para segundo lugar, o que conta é o bem comum. Estamos ameaçados por epidemias. Em certas partes da cidade já grassa o tifo. E, se não tratarmos de remover de imediato os cadáveres e de secar os fétidos charcos, a doença espalhar-se-á a outras zonas. Ajudem os membros do clero e os soldados a recolherem os cadáveres de pessoas e animais. Ajudem a recuperar os canais do sistema de esgotos. – Para onde deveremos nós ir? – perguntou um pai de família. – Tenho filhos e a minha mulher sofreu contusões. – Vamos erigir abrigos provisórios fora dos muros da cidade e, enquanto não estiverem prontos, montar-se-ão acampamentos vigiados aqui, na Praça do Rossio, no Terreiro do Paço e no Largo do Rato, onde poderão pelo menos depositar os vossos bens. Também é lá que guardamos aquilo que os militares e os funcionários públicos tenham recuperado das ruínas. Sei bem que têm fome e que não há onde dormir. É preciso paciência durante alguns dias! Vamos proceder à construção de barracas e reunir e distribuir alimentos, mas tudo isso leva tempo. Deus esteja connosco. Desceu do patíbulo utilizando uma pequena escada que a este dava acesso. Soldados empurraram para cima desse estrado homens cujas mãos haviam sido atadas atrás das costas e as cabeças tapadas com sacas negras, e dispuseram-nos em fila, quatro deles junto a cada uma das forcas. Só então lhes foram retiradas as sacas da cabeça. – Merda – disse um dos condenados, um homem robusto, que tinha a barba entrançada de modo a formar rabichos, ao olhar para cima e ver o nó corrediço na forca. E aquele outro junto dele não era Antero Moreira de Mendonça, o tipo bronzeado que ele tinha apanhado na chancelaria provisória do secretário de Estado do Reino a espiar documentos importantes? Ainda bem que o tinham desmascarado. Um espião a cometer atos de alta traição era coisa de que não precisavam nos dias que corriam. O Estado encontrava-se enfraquecido e vulnerável. O olhar de Nicolau cruzou-se com o do traidor. Não parecia ter levado pancada. Ainda assim, parecia um esqueleto, com um ar de quem só a custo se mantinha de pé. De certeza não deveria ter passado uma noite nada agradável. Era estranho que ele tivesse sabido do terramoto antes mesmo de este ocorrer. Haveria possibilidade de, pela mão humana, desencadear um sismo? Teriam sido os Ingleses ou os Espanhóis a incumbi-lo de destruir Lisboa por meio daquele forte abalo? Mas isso era absurdo, ninguém seria capaz de desencadear um terramoto. – Podem começar – ordenou ele. Para cada um dos patíbulos subiu um carrasco e conduziu o primeiro da fila até junto do nó corrediço. Foi-lhes dito que subissem para um banco e colocaram-lhes a corda em redor do pescoço: o tipo robusto com a barba entrançada, depois uma mulher ruiva, possivelmente irlandesa, e à direita um negro. O branco dos seus olhos fazia com que estes se destacassem e dava a entender que sentia medo. – É a minha própria casa! – balbuciou ele. – Não sou um saqueador. Só estava nas ruínas da minha casa à procura de alguma coisa que pudesse aproveitar! O povo ficou à espera. Os carrascos olharam para Nicolau. Este acenou com a cabeça. Foi dado um pontapé nos bancos sobre os quais os malfeitores estavam de pé, derrubando-os. Cada um dos três corpos deixou-se cair e ficou a oscilar, pendurado na corda da forca. A mulher não tardou a imobilizar-se, mas o tipo robusto e o negro ainda espernearam algum tempo. Os carrascos esperaram até poderem ter a certeza de que todos os três estavam mortos. Depois, cortaram a corda para os soltar e os soldados deitaram os cadáveres no patíbulo, junto aos ainda vivos. Por que razão não se ouvia nenhum aplauso? A multidão costumava rejubilar sempre que um criminoso era executado. Estavam a ser ingratos! Apanhar ladrões não era coisa fácil, mas, pelos vistos, não sabiam agradecer o esforço despendido. A proteção que naqueles dias difíceis ele, o magistrado, lhes proporcionava não parecia ter para eles qualquer valor. Os carrascos atiraram cordas por cima das traves horizontais e, com gestos experientes, voltaram a prender nas forcas novos nós corrediços. Foi então que, sem que para tal o tivessem chamado, Antero Moreira de Mendonça deu um passo em frente. – Isto ainda não está pronto – disse o seu carrasco. – Espere. O acusado de alta traição, porém, não se dignou sequer a olhar para o carrasco. Chegou-se até à borda do patíbulo e disse bem alto: – Exijo justiça – ao dizê-lo, olhou Nicolau nos olhos, como se quisesse desafiá-lo para um combate. O tipo que não pensasse que iria receber tratamento especial, lá porque estava a cumprir alguma missão diplomática, ou fosse lá por que razão fosse. Seria enforcado, tal como os outros. Com ele, Nicolau Fernandes, não havia lugar a favorecimentos a funcionários públicos. – E irá recebê-la – respondeu ele, apontando para a forca. A carruagem parou. Leonor puxou para trás a pesada cortina de veludo e espreitou para o exterior. A entrada para o palácio encontrava-se ainda a cerca de cinquenta passos de distância. Que sentido fazia aquilo, afinal? Queriam humilhá-la, mostrar-lhes que ainda não pertenciam à elite do país, a qual seria obviamente transportada mesmo até diante da porta do palácio? Do lado do pai, aquele que dava para a entrada do palácio, abriu- se a porta da carruagem. Nessa altura teve Leonor oportunidade de verificar que, na realidade, ela tinha parado bem diante de uma tenda magnífica, com debruns prateados. Quatro soldados da Guarda Real estavam de pé diante da entrada da tenda, na confeção da qual havia sido utilizado tecido azul. Seguravam as respetivas alabardas na vertical e faziam como se nem se tivessem dado conta da presença da berlinda que acabara de parar diante dos seus narizes. Os dois pedaços de tecido que tapavam a entrada afastaram-se e para o exterior saíram criados que seguravam um chapéu-de-sol do qual pendiam cordões dourados. Seguiu-se-lhes um homem, por cima de quem eles seguravam o tal chapéu-de-sol. Trazia vestido um casacão escarlate. Sobre o peito reluzia uma torre dourada. O homem estendeu diante de si um bastão cuja ponta prateada brilhava. – O rei-de-armas – murmurou Tomás. – Saia você. Eu tenho de ficar aqui. Que tudo lhe corra bem! O pai guardou o tratado político debaixo do braço e deixou a carruagem. O rei-de-armas recebeu-o debaixo do chapéu-de-sol. O pai ofereceu o braço a Leonor, para que nele se apoiasse ao descer da carruagem. Ela saiu e os seus sapatos pisaram um tapete, que fora simplesmente estendido sobre a relva. – Prezado barão – disse o rei-de-armas –, o rei já está à sua espera. Aquilo na nuca do pai seria pele-de-galinha? Ele apontou para Leonor e disse: – Permita-me que lhe apresente a minha filha Leonor! – Encantado por conhecê-la – disse o rei-de-armas num tom que soou pragmático. Os criados mantinham seguras as tiras de tecido da entrada da tenda. Estava abafado no interior. Sobre uma graciosa mesa via-se uma jarra de porcelana chinesa, uma poltrona verde com pernas douradas fora colocada diante desta, e uma tapeçaria, pendurada por detrás da poltrona, era tão grande que a área que ocupava corresponderia perfeitamente à necessária para apascentar um pequeno rebanho de ovelhas. Nela estavam representados um herói grego e uma mulher bela, rodeada de cavaleiros da época. – O Rapto de Helena – disse o pai. – Uma tapeçaria francesa dos Ateliers de la Manufacture Royale d’Aubusson. Pertence ao ciclo da história de Tróia. Vendi ao rei o ciclo inteiro, por uma pequena fortuna. Ele parece gostar dela, o que é um bom sinal! De certeza que não se esqueceu de mim. Dois criados com meias brancas até ao joelho e gibão azul ocultaram o acesso a um corredor na extremidade traseira da tenda. Com um gesto do braço, o rei-de-armas deu a entender a Leonor e ao pai que o deveriam seguir. Entrou por aquela abertura e anunciou: – O barão Martinho Velho da Rocha Oldenberg e a sua filha Leonor. Entraram para uma divisão da tenda com o tamanho de uma casa. Era evidente o brilho do ouro. A prata cintilava à luz das velas. O rei deveria ser um colecionador de tesouros artísticos e era óbvio que gostava de exibir esses seus tesouros. Havia ali móveis indianos, modelos de igrejas e palácios, livros, pinturas, taças douradas e jarras de prata, uma luxuosa espingarda adornada com aplicações também de prata, troféus de caça. O rei Dom José I estava sentado numa poltrona larga feita de pau-brasil, cujos braços e pernas se apresentavam laboriosamente entalhados. Passou os dedos pelos grossos lábios que pareciam fazer beicinho. A sua cara redonda reluzia dos cremes nela aplicados. Por detrás do trono havia soldados da Guarda Real. O rei acenou ao pai de Leonor no sentido de este se aproximar. Numa atitude obediente, ele deu três passos. – Agradeço a honra de me conceder esta audiência, Majestade – declarou o barão, curvando-se numa vénia bastante pronunciada. – Faça o favor! – o rei alargou os lábios. – O senhor conta-se entre os comerciantes mais bem-sucedidos do nosso Reino. Já durante o reinado do nosso pai conduziu o negócio do comércio do tabaco e foi ele quem o nomeou fidalgo desta Corte. Os seus terrenos no ultramar são por si explorados com competência, ainda que as compassivas damas da Corte nos façam chegar aos ouvidos pedidos para que os escravos africanos e os índios não sejam atormentados nas plantações. Mas é isso mesmo que se espera do espírito de uma mulher. Prezamos bastante o seu trabalho árduo em prol do Reino. É alemão, não é verdade? – Assim é, Majestade. – Pelo que tanto mais lhe devemos agradecer por contribuir para a prosperidade de Portugal – Dom José pegou num pequeno garfo de aço e, como que ausente, bateu com ele no nó de um dedo. – Podemos concretizar algum desejo seu? – Majestade, em primeiro lugar a minha presença aqui serve para lhe oferecer a minha ajuda sob a forma de um empréstimo para a reconstrução de Lisboa. Este terrível terramoto colocou diante de vós enormes tarefas. Gostaria de poder cumprir a minha parte, para que Lisboa regresse à prosperidade. O rei acenou amigavelmente com a cabeça. – A experiência ensinou-nos que um negociante pensa sempre de acordo com as regras comerciais. O que espera obter como retribuição pela sua ajuda? – Nada, Majestade. Os meus recursos estão à vossa disposição. Poderia, no entanto, ir ainda mais longe na minha proposta. Pertenço a um grupo de nobres e banqueiros que vos poderão prestar um importante auxílio, tanto do ponto de vista financeiro, como através do próprio empenho pessoal. O duque de Aveiro conta-se entre eles, e também o duque de Lafões, o marquês de Angeja e o estribeiro-mor, o marquês de Marialva. – Apreciamos muito cada um dos referidos. – Fui incumbido de vos propor o empréstimo de uma soma considerável para a reconstrução. Prescindiríamos dos juros desse empréstimo. Juntamente com ele, pomos à vossa disposição a ajuda que poderemos prestar no governo dos assuntos do Estado. O rei Dom José franziu a testa. – Ajuda no governo dos assuntos do Estado? Sugere que alteremos a atual solução de governação? Estamos bastante satisfeitos com ela. – Verá que a cooperação entre nobres capacitados e o emprego dos respetivos recursos constitui um forte argumento no sentido de repensar a vossa posição. As asas do nariz do rei incharam. Bateu com o tal garfo de aço contra o braço do seu trono e segurou-o junto ao ouvido. Manteve- se assim durante algum tempo. De seguida, disse em voz baixa: – Veremos aquilo que acharmos por bem e por correto. Não aquilo que nos dá a provar previamente mastigado. Leonor esforçou-se por manter a respiração calma. As informações que obtivera acerca do estado das contas reais não deixavam margem para dúvidas! O rei precisava do dinheiro. Além disso, ela escolhera bem os nobres que deveriam participar naquele empreendimento. Dom José apreciava-os e confiava neles. As mãos dela estremeciam. Apressou-se a escondê-las detrás das costas. – Peço desculpa, Majestade – disse o pai, acompanhando o pedido com uma profunda vénia. – Em Portugal os cargos de governação não estão à venda – afirmou o rei. – Contudo, a situação extraordinária que se vive no Reino poderá requerer que se tomem medidas extraordinárias. Com a sua proposta prende-se uma série de questões. A quantia exata, o modo de reembolso, os cargos pretendidos pelos seus amigos. Queremos que discuta todos esses pormenores com Sebastião de Carvalho, o secretário de Estado do Reino. É com ele que depois deliberaremos e tomaremos uma decisão. – Lamento – disse o barão –, mas não posso fazê-lo. Haviam chegado ao ponto crucial da audiência. Leonor susteve a respiração. – Como assim? – O rei semicerrou as pálpebras. – Não negoceio com impostores – afirmou o negociante. O rei ergueu-se. Os soldados da Guarda Real, por detrás do trono, puseram-se de imediato em sentido. – Atreve-se a chamar impostor ao secretário de Estado do Reino que por nós foi escolhido? – perguntou o rei encolerizado. – Isso é um ataque à nossa dignidade real! – Sebastião de Carvalho delapida os dinheiros públicos. Pegou em ações da Companhia do Grão-Pará e meteu-as ao bolso, muito embora não lhe competisse fazê-lo. E, no âmbito da negociação de tratados políticos, aceita subornos. Veja Vossa Majestade com os vossos próprios olhos. O pai entregou o documento do tratado ao rei. Melhor seria que nunca tivesse começado a dedicar-se ao contrabando! Tivesse ele ficado em Groningen, onde começara por se esconder, e aí aceitasse um trabalho como escrivão! Talvez os Jesuítas não dessem com ele ali, onde poderia levar uma vida calma, habitando numa daquelas casas vermelhas com os telhados pontiagudos. Teria passeado pelos canais e faria compras no mercado do peixe. Só que isso implicava nunca mais ver Samira. «Quero viver, meu Deus», rezava Antero em silêncio, «por favor, deixa-me continuar a viver! Pela minha filha.» Devia cuidar de Samira, queria ser um bom pai para ela, pô-la na cama, a dormir, e cantar-lhe uma canção de embalar. Além disso tinha ainda de investigar. Queria tentar saber se a terra também tremera noutras cidades. O terramoto deveria ter começado algures e terminado em algum lado. Ou então propagar- se-ia a partir de um centro, como se fosse uma onda. Antero olhou para o arquiteto. Parou de tremer. Uma estranha calma tomou conta dele. Voltou a conseguir respirar normalmente. Disse em voz alta: – É com toda a razão que aqui estou. Fiz contrabando e fugi ao pagamento de impostos. – Tiro o chapéu à sua sinceridade – comentou o arquiteto, cujos cantos da boca tremeram. – Seria possível facultarem-me um último desejo? – perguntou Antero. – Um criminoso condenado não tem de receber qualquer deferência. Cale a boca, ou mando amordaçá-lo. Os lábios de Antero ardiam, como se tivesse acabado de levar um murro na boca. Puxou as cordas que mantinham as suas mãos unidas. Era chegada a altura. Apostava tudo numa única cartada. – Subtraí-me ao pagamento de uma parte dos impostos – anunciou ele –, mas este fidalgo que aqui se arvora em juiz nunca pagou um que fosse! O povo enfureceu-se. Os fidalgos, os nobres, toda essa gente estava isenta do pagamento de impostos, algo que desde sempre irritara a população. Além disso, aos filhos mais novos dos nobres eram ainda atribuídos cargos ao serviço da Coroa ou nas instituições militares. – Ao contrário de nós, ele não trabalhou arduamente pela posição que agora ocupa – incitou Antero. – Também não foi por possuir uma competência extraordinária que essa posição lhe foi atribuída. Não, foi graças ao seu nascimento que lhe veio parar às mãos! A multidão clamava, furiosa. – Silêncio – gritou o arquiteto. Berrou uma ordem a um soldado e este pegou num cartucho, mordeu-o para o abrir e deitou a pólvora para o cano da espingarda. Antero manteve o soldado debaixo de olho. – Acreditam que é na rua que ele dorme? – continuou Antero. – Não, recebe refeições e alojamento, hoje à noite vai ter uma almofada macia na qual encostar a cabeça, disso podem ter a certeza! E a nós, que, desesperados como estamos, até já somos capazes de comer as solas dos sapatos, põe-se a fazer discursos, a dizer que temos de carregar os mortos e devemos escavar e desimpedir os canais de esgoto. Uma mulher cuspiu na cara do arquiteto. – É uma vergonha! – exclamou ela. – Uma vergonha! A saliva dela escorreu-lhe pela cara. Ele limpou-a com a manga. – Acreditam que ele vai tocar num único cadáver que seja? – perguntou Antero. – Julgam que ele vai pegar numa pá para escavar aqueles canais malcheirosos? Nem pensar, nunca! O soldado fez pontaria e disparou, mas, nesse mesmo instante, Antero lançou-se para o chão. Sibilante, a bala passou acima do corpo dele, teve a impressão de sentir o calor dela nas suas costas. Atrás dele a trave da forca estilhaçou-se. Voltou de imediato a levantar-se, só que então o carrasco acercou-se e cravou-lhe o punho na barriga: foi como se lhe perfurasse o estômago. Teve a sensação de que as entranhas tinham sido esmagadas. Deixou de conseguir respirar. Teve de se curvar. O povo bramava de tal modo que já não era possível detê-lo: precipitou-se sobre os patíbulos e ouviu-se o estrondo de outros tiros. – Aqui! – gritou o arquiteto. – Sargento, ajude-me! 24
Antero desceu do patíbulo. Um homem cortou as cordas que lhe
prendiam as mãos. Dezenas de pessoas felicitaram-no com pancadas nas costas, estranhos abraçaram-no. Esgueirou-se por entre a multidão. Por todo o lado onde passava as pessoas rejubilavam. Recuperara a sua vida. Iria agora, com cada hora dessa vida reconquistada, fazer algo que realmente contasse. Tal como Diogo de Silves fizera no século XIV, ao descobrir os Açores, um conjunto de ilhas desabitadas e situadas a milhares de milhas para oeste, no meio do Atlântico, terra nova que poderia ser povoada e ocupada, também ele iria mudar o mundo. Quem se propusesse a conseguir muita coisa, poderia alcançar muito. Se investigasse com afinco, encontraria uma explicação. Salvaria milhares de vidas humanas, pois logo que se conseguisse perceber o funcionamento e aquilo que desencadeava os tremores de terra, poder-se-ia prever antecipadamente novas catástrofes. Porventura seria até possível prevenir a ocorrência desses fenómenos! Iria finalmente também arranjar tempo para estar com Samira. Ensinar-lhe-ia canções e andaria com ela às cavalitas. Iria ouvi-la a inventar histórias, escutá-la-ia pacientemente e só de vez em quando se riria delas; beijá-la-ia todas as noites na testa e ficaria ao seu lado até que adormecesse. Ecoaram tiros através do ar quente do fim de tarde. Antero ergueu a cabeça. O som dos disparos provinha do Largo do Rato. Quem estaria lá a disparar? Será que, por todo o lado, o povo se sublevava contra os soldados? – Venha connosco para o Largo do Rato! – gritaram para ele. – Parece que há lá comida – a multidão entusiasmada que o envolvia avançava e obrigava-o a avançar também. – Não vamos continuar a ser comidos por parvos. Vamos buscar aquilo que por direito é nosso! Ele seguiu com os amotinados na direção do Largo do Rato. Chegava até ele o som dos berros. – Mais depressa, minha gente! – gritou um homem que integrava a turba no meio da qual ele seguia. – Temos de lá chegar, talvez até já estejam a distribuir! Quando alcançaram o Largo do Rato, havia já uma multidão três vezes maior do que aquela que com ele tinha vindo. Os vários grupos de amotinados confluíam em vagas para ali. Quatro soldados refugiaram-se nas ruínas do pedaço de cantaria do aqueduto que caíra na praça e, num misto de desamparo e de comportamento intimidatório, agarraram-se às espingardas. Antero debateu-se para avançar até junto deles. Lá chegado, gritou para os soldados: – Deixem-me subir. Trabalho para Sebastião de Carvalho, o secretário de Estado do Reino. Posso ajudar-vos! Um dos soldados deu-lhe a mão e ajudou-o a trepar para os destroços. Já junto dos homens, pôde ver como as gotículas de suor lhes brotavam do rosto e como, com o medo, as suas sobrancelhas rapidamente abriam e fechavam. – Não conseguimos detê-los – disse o soldado que o tinha ajudado a subir. – Isto vai tornar-se cada vez pior. – Vão mesmo trazer comida para aqui? – perguntou Antero. – O exército confiscou bens e foi-nos dito que deveríamos, a título provisório, montar uma cozinha de campanha e um forno no Largo do Rato. Está a ver ali aquela barraca de madeira? Mas o que lhe digo é que, quando o carregamento aqui chegar, a multidão amotinada vai arrasar a cozinha e pode até haver derramamento de sangue. Já se distinguia a vozearia daquela gente furiosa. Além disso ouvia-se também o ruído de um grupo que se aproximava a marchar. Seria uma companhia inteira que vinha manter a ordem? Na orla da praça, conseguiu avistar quatro soldados, que avançavam lado a lado com as espingardas ao ombro. Atrás deles vinham outros quatro, a seguir mais quatro. Depois de ainda mais uma fila de soldados apareceram os cornos de dois bois e, após estes, logrou distinguir uma carroça. Uma nova multidão cercava a carroça, sitiando-a e gritando em redor dela. Seguiram-na até à praça. À esquerda e à direita, os soldados tinham as suas espingardas prontas a disparar e apontavam ameaçadoramente as baionetas à multidão em fúria. – O meu nome é Antero Moreira de Mendonça e sou um colaborador do secretário de Estado do Reino – declarou Antero. Ninguém lhe prestou atenção, pelo que continuou: – Hoje todos irão ser saciados! Então diminuiu o ruído produzido pela multidão e, passados alguns instantes, o povo começou a rejubilar. – O que está nas sacas? – perguntou ele a um dos soldados, falando-lhe ao ouvido. – Farinha, penso eu – respondeu o soldado. – Foi construído um forno aqui junto desta cozinha provisória – disse Antero. – Há aqui algum padeiro entre vós? De vários sítios ouviu-se gente gritar: – Sim, aqui! – Eu sou padeiro! – Eu também! – Dirijam-se à cozinha de campanha. Cozam pão com a farinha que irão receber daqui a pouco. E todos os outros façam uma fila diante da cozinha provisória! Cada família recebe um pão, como presente do rei Dom José. A multidão avançou na direção da barraca de madeira. – O custo dos alimentos irá de futuro ser fixado pelo secretário de Estado do Reino – explicou ele em voz alta. – O pão, a carne e o peixe deverão manter-se a preços acessíveis. Ali em frente, formem a fila ali em frente! – a conversa que tinham tido no interior do coche revelou-se útil. Soldados descarregaram as primeiras sacas de farinha, depositando-as junto ao forno. Dois padeiros seguraram e deitaram o conteúdo para uma gamela. Levantou-se uma nuvem branca. – De futuro, sobre o peixe que for vendido entre Belém e Santarém não será cobrado imposto – anunciou ele. De súbito, a multidão emudeceu. As cabeças viraram-se. Abriu-se espaço, as pessoas afastaram-se respeitosamente. Surgiu um homem que se erguia cerca de um palmo acima da generalidade da multidão. Usava uma barba branca e a elevada estatura igualava a de um urso. Com uma voz sonora começou a falar: – Percebam, ó gentes de Lisboa, que os únicos responsáveis pela destruição de tantas casas e palácios, de igrejas e conventos, pelo sacrifício de tantos habitantes e pelo consumo pelas chamas de tantos tesouros não foram cometas nem estrelas, nem gases ou quaisquer fenómenos naturais. Os nossos próprios pecados é que deram origem a tamanha desgraça. Era Malagrida. Para poder sair do cimo da ruína do aqueduto, Antero teve de ajudar a dobrar a sua própria perna, a direita, que se mantinha rígida. Nesse mesmo instante o olhar de Malagrida concentrou-se nele, o que fez com que o jesuíta estremecesse. «Desta não estavas à espera, não é?», pensou Antero furioso. «Ver-me aqui vivo e livre?» Voltou a levantar-se. – O terramoto realizou uma vasta colheita de almas pecadoras e enviou-as para o Inferno – prosseguiu Malagrida. – E vou explicar- vos porquê. Homens e mulheres vieram confessar-se sem, no entanto, terem feito antes a mais pequena tentativa de indagação das suas consciências. Não haviam ainda realizado a expiação que lhes fora imposta aquando da última confissão. Apresentaram desculpas e pretextos para justificar os seus pecados. Acusaram os vizinhos, os inimigos, o mundo inteiro, ao mesmo tempo que batiam no ombro a si mesmos e se convenciam de que tudo estava bem. Na confissão fizeram tudo menos aquilo que deveriam, ou seja, reconhecer os seus pecados e arrepender-se deles com sinceridade. Embaraçadas, as pessoas olhavam para o chão. – Entregaram-se ao teatro – insistiu Gabriel Malagrida –, à música, à dança e às sacrílegas corridas de touros. Há alguns que, por misericórdia, Deus poupou e que, ainda assim, se comportam como se o tremor de terra tivesse sido um fenómeno de causas naturais. Se isso fosse verdade, não haveria necessidade de fazer penitência e de tentar aplacar a ira de Deus. Uma ideia dessas só pode ter tido origem no próprio Diabo! E escutem o que vos digo: ele já cravou as suas garras em Lisboa. Gabriel Malagrida pregava contra o secretário de Estado do Reino – qualquer dos presentes deveria ser capaz de entender a quem ele se referia –, pois Sebastião de Carvalho considerava o tremor de terra um fenómeno natural e defendia a reconstrução da cidade. Os pensamentos de Antero misturavam-se confusamente. Precisava de uma estratégia. Tinha de dizer alguma coisa! – Prendam esse fulano! – ordenou. Os soldados olharam para ele, pasmados. Tiraram os respetivos chapéus. – Não podemos fazer isso – disse um deles. – Ele está a injuriar Sebastião de Carvalho! – insistiu Antero. Eles abanaram a cabeça. – Não pomos as mãos num profeta. – Garanto-vos que o homem não é um profeta. – É, pois. Ele anunciou a morte da rainha-mãe precisamente no momento em que ocorreu, muito embora estivesse a meio de um sermão e há vários meses não a visse. Se não é profeta, como saberia ele a hora da morte dela? Também conseguiu prever a ocorrência do tremor de terra, o dia certo e a hora. Gabriel Malagrida era um manipulador de fantoches. Uma espécie de pesadelo. Já há muito que havia dado origem às lendas que lhe deveriam conferir poder. Era por causa deste homem que hoje Antero quase chegara a ficar pendurado pelo pescoço. Como poderia deter aquele demónio? – Acreditem em mim – disse Malagrida –, o Senhor tem-nos debaixo de olho, e continua com o azorrague na mão. Orações e lamentações não significam só por si qualquer inversão no comportamento. Para tal é necessário empreender esse processo sob as instruções de um jesuíta experiente. Se quiserem salvar a vossa alma, venham ter connosco a Setúbal, escutem os nossos ensinamentos e empenhem-se em cumpri-los! – Dê-me a sua espingarda – segredou Antero a um dos soldados. – Está louco? Se tocar nem que seja num cabelo do profeta, o povo fá-lo em pedacinhos! – O povo tem é de obedecer ao rei e ao secretário de Estado do Reino. – Quer meter-se com esta horda de gente raivosa? Eles adoram Malagrida! Mais até do que o rei. Qualquer um aqui sabe bem que, no Brasil, ele converteu os índios e construiu igrejas por todo o lado, que foi o confessor do anterior rei e que o monarca morreu pacificamente nos seus braços. Até mesmo o Papa elogia os Jesuítas. O homem é um santo! Não lhe toque, escute o que lhe digo. O jesuíta sabia que a presença do povo o protegia. Por essa razão, podia apresentar-se sem qualquer guarda-costas. Simultaneamente isso dava a impressão de, num gesto de coragem, enfrentar o maléfico secretário de Estado do Reino totalmente sozinho. – Prendam esse homem! – gritou Antero bem alto. Malagrida ficou em silêncio. Olhou para Antero. – Prendam-no! Ele é um impostor. – Então eu não sou eu mesmo? – O jesuíta riu-se. – E quem és tu para afirmar uma coisa dessas? Tinha mordido o isco. – Sou Antero Moreira de Mendonça e estou a agir em nome do secretário de Estado do Reino. Malagrida arquejou. – Deus está a limpar esta cidade. E vai limpar também a Corte. O teu secretário de Estado do Reino vai deixar de exercer o cargo. Apoias-te num homem que está perdido. Malagrida estava a jogar a cartada do profeta. Nesse caso, para es-tar à altura da jogada, Antero teria de se fazer valer dos seus trunfos. – É precisamente com afirmações destas que se vê que este impostor jamais poderia ser Gabriel Malagrida – argumentou ele. – Sebastião de Carvalho goza de enorme estima junto do rei. Será responsável pela reconstrução desta cidade. Será algo que fará ao longo dos próximos dez anos. As tenebrosas profecias deste homem estão erradas. É um mentiroso e jamais poderia ser o jesuíta que todos nós respeitamos! Vejam só a barriga dele. O verdadeiro Gabriel Malagrida é uma pessoa forte, mas não gorda. Olhem bem para as suas mãos. O verdadeiro Gabriel Malagrida não usa anéis dourados, pois as riquezas que possui estão depositadas no grande tesouro do Céu. Não se dão conta do modo deplorável como este intrujão tenta imitá-lo? O seu antigo mestre empalideceu. – Cidadãos de Lisboa – prosseguiu Antero –, escutem-me bem. O patriarca pronunciou ontem a excomunhão de todos aqueles que falsamente proclamem ser padres, monges ou freiras, com vista à obtenção de esmolas. Também este falso padre jesuíta irá obter a sua punição. Não o deixem escapar! Malagrida abriu os braços e manteve-os estendidos. – Façam o favor! Prendam-me, pois, e verão que sou mesmo o Gabriel Malagrida que nasceu em mil seiscentos e oitenta e nove na distante Itália, que, com trinta e dois anos, foi como missionário jesuíta para o Brasil, verão que fui eu quem erigiu os conventos nos nossos territórios além-mar e que conduzi os índios até Cristo. Verão que fui eu o confessor do rei Dom João. A minha profecia está errada? Ah, não, não está. O secretário de Estado do Reino foi deposto. No preciso momento em que aqui falamos os soldados do rei estão a agrilhoá-lo. Ponham-me à prova! Irão descobrir que estou a falar verdade. Não receio ninguém. Como poderia ele arengar com tanta certeza assim? Malagrida falava com grande convicção. E se fosse realmente verdade que estavam prestes a capturar e depor o secretário de Estado do Reino? Mas isso era impossível. O rei jamais o permitiria. – Blasfemador! – gritou alguém. – Sim, deixe o profeta em paz! – Este não é o tipo que era para ser enforcado como espião? Com que negros poderes conseguia Malagrida dominar o povo? Afinal de contas, o secretário de Estado do Reino havia-lhes trazido comida. Iria mandar construir para eles alojamentos provisórios. Tomavam isso tudo como se fosse algo óbvio. Ao jesuíta, porém, que por eles nada fazia, veneravam-no como se fosse um deus. Antero teve de reprimir a vontade de lhe responder, ainda que a sua vontade fosse repreender aqueles imbecis. – Providencie para que cada família receba um pão. Eu vou tratar de ver, junto do rei, como estão as coisas – disse Antero em voz baixa para os soldados, após o que desceu da ruína. A mesma gente que com ele antes havia rejubilado mostrava-lhe agora o seu desprezo. Houve homens que lhe cravavam os cotovelos nas costelas, mulheres que lhe cuspiram para cima. Tentavam passar-lhe rasteiras e arrancaram-lhe a peruca. Quando se curvou para apanhá-la do chão, uma criança, de olhos muito abertos, pôs-se a olhar para ele e disse: – Eu queria um pão. – E vais recebê-lo – respondeu Antero. 25
–Antero Moreira de Mendonça – anunciou o rei-de-armas. Leonor
estremeceu. Teve de colocar uma mão sobre a barriga. Aquela sensação de debilidade de antes, onde estava ela? Mal começava a pensar em Antero, sentia-se como se no seu interior tivesse uma ninhada de pintos acabados de sair do ovo. Era uma sensação semelhante à do medo, mas não deixava de ser uma alegria e simultaneamente uma dor. Antero estava vivo! Pensava nos abraços dele, que lhe haviam transmitido o seu calor, no som das suas palavras, quando, imersos na escuridão do quarto, ele falava a meia voz, e em como as mãos dele eram meigas ao afagar-lhe o rosto. O rei esboçou com os grossos lábios uma expressão de algum desprezo. – O cientista? Temos agora coisas mais importantes a tratar. Ele que venha mais tarde. O rei-de-armas fez uma vénia e voltou a sair da tenda. Leonor ficou a ver como as lonas da entrada da tenda, grossas como uma tapeçaria, se fecharam atrás dele. Não o haviam deixado entrar. Uma grossa e irritante lona separava-os. O rei-de-armas voltou a surgir. – Majestade, é o destino de todo o Reino que está em jogo, diz ele. Insiste em falar convosco com urgência. – Tratemos então disso rapidamente – disse o rei, depois de soltar um suspiro. Ainda Antero não havia dado dois passos no interior da tenda e já descrevia uma profunda vénia. – Majestade! – Que pretende? – Dom José semicerrou as pálpebras. – Seja rápido. Estamos aqui muito ocupados! Antero voltou a erguer o tronco. Deteve-se por momentos nesse movimento ascendente ao dar-se conta da presença de Leonor. O seu olhar avançou depois para o pai dela. Um profundo franzido surgiu na testa de Antero. – Majestade, tenho de dar-vos conhecimento de uma conspiração que visa depor o vosso secretário de Estado do Reino. Leonor sentiu um nó na garganta. Antero acabara de desferir um golpe. Pretendia destruir-lhe o sucesso que tão longamente ela preparara. Era óbvio que eram inimigos, muito embora ela se tivessse esquecido desse pormenor durante alguns agradáveis instantes. Ele combatia o poder ao qual ela se havia aliado. – É ele que o envia para se salvar? – perguntou o rei. – É demasiado tarde, meu caro. – Vossa Majestade conhece decerto a inimizade entre os Jesuítas e o secretário de Estado do Reino – disse Antero. – Foi este último quem retirou à Companhia de Jesus todo o poder de que ela dispunha no Brasil. E também aqui, no Reino, Sebastião de Carvalho não é de todo adepto desta compungida religiosidade. E por isso mesmo é detestado pelos Jesuítas. – E estão no seu direito. – Pode ser que sim, mas isso não lhes dá o direito de difamarem o secretário de Estado do Reino e de instigarem o povo contra ele. Enquanto aqui estamos a falar, o padre Malagrida prega nas praças da cidade destruída contra Vossa Majestade e contra o vosso secretário de Estado. À entrada da tenda abriram-se as lonas e entrou o rei-de-armas, que anunciou: – Majestade, aqui está ele. – Mande-o entrar. O rei-de-armas segurou a lona para franquear a entrada e anunciou em voz alta: – Sebastião José de Carvalho e Melo, secretário de Estado do Reino de Portugal. Quatro soldados entraram na tenda. No meio deles vinha Sebastião de Carvalho com o rosto enrubescido de fúria. Deteve-se e fez uma vénia. – Estamos desiludidos consigo – declarou o rei. Pegou no tratado que se encontrava sobre a mesa dourada e abriu-o. – O senhor recebe subornos quando, em nosso nome e em prol de Portugal, negoceia tratados com outras nações. Apropriou-se de ações da Companhia do Grão-Pará. Desvia dinheiros públicos. Qualquer um sabe que vive acima das suas possibilidades para impressionar a família da sua noiva, mas consideramos inaceitável que utilize os altos cargos que desempenha para custear essas despesas. Dos olhos do secretário de Estado do Reino brotaram lágrimas. – Sempre vos servi fielmente, tanto no país como no estrangeiro. As acusações não são verdadeiras. – E que é então isto que seguramos na mão? – É um tratado que foi falsificado, Majestade! – exclamou Antero, dando um passo em frente. – Ninguém lhe perguntou nada! – berrou o rei. – Não se atreva a voltar a interromper! Leonor sentiu um calafrio subir-lhe pela espinha. A disposição do rei não era nada boa. Não era de admirar, já que fora uma informação bastante grave aquela que lhe haviam transmitido; ele apreciava bastante o seu secretário de Estado do Reino. Não deixava de ser perigoso estar na mesma sala junto de um rei mal- disposto: aquele homem pequeno e entroncado poderia, com uma única palavra, acabar com a vida dela. Sebastião de Carvalho pigarreou. – Majestade, gostaria de poder responder à vossa pergunta. Permite-me que veja esse papel? Dom José estendeu o braço e, com um gesto contrariado, agitou o tratado. Um dos soldados chegou-se junto do trono, feito de pau- brasil avermelhado, recebeu o tratado das mãos do rei, fez uma mesura, recuou e entregou-o ao secretário de Estado do Reino. Este estudou o documento cuidadosamente. De seguida ergueu o olhar. – É um tratado comercial com a Inglaterra. Refere-se à exportação de vinho português e à importação de tecidos ingleses. – Julga que não sabemos ler? – O tratado contém ainda uma cláusula de despesas muito estranha que faz referência à minha pessoa. Asseguro-vos que esta cláusula não figura no tratado original. – Este é o tratado original. – Se consultar o duplicado que se encontra em Londres, Vossa Majestade concluirá que foi aqui introduzida uma alteração. – Está a exigir que enviemos alguém a Londres? Na presente situação, não podemos dispensar navio algum, sabe isso perfeitamente! Temos outras preocupações, não compreende? Não compreendem todos vocês? O secretário de Estado do Reino acenou, em sinal de concordância, e disse: – Claro que sim, entendo perfeitamente. Vossa Majestade é rei num país que se deixou conduzir a um beco sem saída. – Como ousa…? – Estaríamos num aperto mesmo sem o tremor de terra – disse Sebastião de Carvalho – e quem quiser refletir um pouco sobre o assunto também entenderá porquê. Abominamos os Judeus de tal maneira que nem sequer queremos ocupar-nos de atividades que sejam tipicamente levadas a cabo por eles. O comércio de longa distância? Os negócios financeiros? Tudo isso entregámos nas mãos de outros. Qual bando de gralhas, a nossa nobreza concentra- se na posse de terras, pois isso é algo que há muito está vedado aos Judeus. Mas qual o papel da agricultura nos tempos que correm? Portugal voltou a definir-se como uma terra de lavoura, enquanto os ofícios estão de rastos. Já quase não existem navios mercantes na mão dos Portugueses. Os Ingleses e os Alemães é que conduzem o lucrativo comércio de longa distância com os nossos territórios de além-mar. – Não consinto que fale assim! – interrompeu o barão. – O se- nhor secretário de Estado do Reino é precisamente aquele que está a conduzir Portugal à ruína! – O duque de Aveiro – disse o rei-de-armas à entrada da tenda. – E o estribeiro-mor e terceiro marquês de Marialva, Dom Diogo de Noronha. Os nobres entraram na tenda. O marquês de Marialva, um homem alto e grisalho, e o duque de Aveiro, de baixa estatura, que chegava à altura do pescoço do outro, inclinaram-se numa vénia galante. Os movimentos que esboçavam eram fluidos como a seda das roupas que traziam vestidas. O rei recebeu-os com uma expressão sombria. – Finalmente atrevem-se a comparecer aqui. Ter-se-á a nobreza portuguesa tornado tão timorata a ponto de mandar um comerciante alemão à frente, antes de ela mesma aqui comparecer? Em resposta, os nobres voltaram a fazer uma vénia. Assim aperaltados, pareciam dois pavões. Porém, a aparência iludia. Leonor já por diversas vezes assistira ao modo como, em ocasiões festivas, aqueles dois começavam por distribuir sorrisos e galanteios, por beijar a mão de diversas senhoras, para de seguida e juntamente com outros homens se retirarem para salas mais recolhidas, onde se dedicavam a conferenciar e a conduzir as suas negociações. Tinham espiões a soldo nas grandes tabernas junto ao porto. Compravam o apoio que pretendiam e sabiam manipular as relações de poder na Corte em proveito próprio. Até mesmo Gabriel Malagrida falava deles com respeito. – Só poderemos dar a fraude como provada se enviarmos alguém a Londres – disse o rei. – Porém, todos os navios de guerra em condições de navegar foram enviados para o Brasil, para a Índia e para África. Por todo o lado irão saber da desgraça que nos aconteceu. Os piratas vão atacar as nossas rotas comerciais, por nos tomarem por enfraquecidos. Temos de mostrar que o comércio com Portugal é seguro. – Um pequeno navio mercante seria o suficiente, e poderia, juntamente com ele, enviar um pedido de ajuda ao rei britânico – disse o duque de Aveiro, num tom esganiçado. – Não vamos empregar uma única embarcação para servir as vossas disputas de poder! – disse o rei, batendo com a palma da mão no braço do seu trono. – Se pretendem denunciar o secretário de Estado do Reino, terão de apresentar provas bem sólidas, está entendido? – Permite que debatamos este assunto numa audiência privada? – perguntou o duque de Aveiro, dobrando-se numa vénia e esboçando um sorriso. – Apresente, de preferência já, aquilo que quer dizer! Não temos qualquer vontade de andar dias e dias a ocupar-nos deste circo. Os dois nobres olharam para o barão com um ar irritado e depois para ela. Leonor teve uma sensação de fraqueza na barriga. Oxalá não pensassem que fora o pai quem estragara os planos. Ele nada podia fazer contra o facto de o rei ter ficado de mau humor. – Como desejar, Majestade – prosseguiu o duque de Aveiro com voz de falsete. – Não se trata apenas da fraude. Sebastião de Carvalho é totalmente incapaz para as tarefas da governação. A reconstrução de Lisboa, tal como ele a planeia, irá ser demasiado dispendiosa. Já houve oportunidade de ele vos relatar detalhadamente todos os custos envolvidos? Ele arruinará o Reino. O vosso Reino, Majestade. O secretário de Estado do Reino saiu do meio dos soldados. – Sim, realmente os custos são elevados. Há que construir fornos para cozer tijolos, telhas e azulejos. Os topógrafos e os arquitetos têm de esclarecer as questões de propriedade dos terrenos e realizar um levantamento de tudo isso. Depois, as áreas junto ao rio e toda a extensão entre o Tejo e a Praça do Rossio deverão ser aplanadas. Também algumas das ruas mais declivosas na parte ocidental da cidade deveriam ser tornadas mais planas. Mandei executar esboços de tudo isso. Podemos reconstruir Lisboa segundo um padrão ortogonal, à semelhança de Turim ou de Covent Garden. Do Paço da Ribeira deverão partir duas ruas largas que seguem a direito até à Praça do Rossio, a Rua Áurea e a Rua Augusta. – Durante quanto tempo tenciona andar a construir? – troçou o marquês de Marialva. – Cem anos? – Para tornar a obra mais rápida iremos fabricar antecipadamente materiais de construção em grandes quantidades. As peças de ferro e as junções de madeira, mas também azulejos, telhas e tijolos. Além disso, os edifícios novos deverão já ter uma estrutura interna de madeira, que os tornará mais capazes de resistir a tremores de terra que futuramente venham a ocorrer. Será uma cidade muito bonita, com fachadas de pedra branca. Uma capital bastante vistosa. – Não terá esquecido um pormenor importante? – acautelou o duque de Aveiro com a sua voz de falsete. – O novo sistema de esgotos de que fala constantemente? E os chafarizes que deverão fornecer água fresca? – Tudo isso é necessário. É o que torna os edifícios atrativos para os comerciantes e, no final de contas, são eles que irão financiar a construção. – Os comerciantes é que deverão pagar a reconstrução? – O barão colocou as mãos nas ancas. – Nem pensar! – É com isso mesmo que estou a contar – disse o secretário de Estado do Reino. – Logo no primeiro ano após o terramoto deverá ser reconstruído um milhar de casas particulares. Além disso, iremos começar a erguer os edifícios públicos. Para o resto da população precisaremos de dez mil barracas para a instalar em bairros provisórios, em redor da cidade. Necessitaremos ainda de distribuir regularmente alimentos. O povo tem de recuperar a confiança. Precisa de ser apoiado. O rei e a nobreza devem dar a entender que compartilham os sentimentos das pessoas simples. – Devem... – o velho marquês de Marialva fez com a mão um gesto de desprezo. – Melhor seria que dissesse como pretende pagar tudo isso! Está a construir castelos no ar, senhor secretário de Estado do Reino! Sebastião de Carvalho olhou firmemente para o rei. – Isto pode funcionar. Se administrarmos a economia do Brasil mais de harmonia com a nossa e vedarmos a estrangeiros certos setores do comércio, iremos conseguir aumentar consideravelmente as nossas receitas. – Estão a ouvir? – o barão avançou e colocou-se entre o trono e o secretário de Estado do Reino. – Ele fala de «as nossas receitas» como se a estas tivesse o mesmo direito que vós tendes enquanto rei. Está a alçar-se à condição de soberano! E é por essa razão que não vê mal algum em servir-se do tesouro do Estado. – Com efeito – o rei esfregou o queixo duplo. – Não nos agrada o tom das suas palavras, Dom Sebastião de Carvalho. Os olhos do secretário de Estado brilharam. – É precisamente esse o erro! Damos demasiada importância ao protocolo, ao tom com que se fala, a rituais e, no entanto, em nosso redor há uma nova era que se anuncia! Majestade, não enriqueci indevidamente e também não quero fazê-lo. A verdade, porém, é que temos de reestruturar a justiça. Temos de fomentar as ciências. Portugal precisa de recuperar a sua força política e de se modernizar! O Brasil e Portugal deverão complementar-se, concentrando-se a colónia e a metrópole em tarefas diferentes. O Brasil deverá produzir mais matérias-primas e é lá mesmo que surgirão as indústrias que as começarão a transformar. Portugal, pelo contrário, tem de expandir a sua frota e dedicar-se à manufatura de produtos. O rei franziu as sobrancelhas. Sebastião de Carvalho prosseguiu: – Temos de acabar com os privilégios. A propriedade herdada ou o estatuto social hierarquicamente superior não poderão continuar a ser o critério decisivo. Deverão ser a capacidade e as características pessoais a habilitar alguém para o exercício de um cargo. O Estado é um mecanismo que o rei domina e dirige, com vista ao bem-estar de todos. É assim que de futuro deveremos encarar esta realidade. É a vós, Majestade, que cada um de nós atribui esse importante papel. A cabeça de Sebastião de Carvalho parecia estar próximo de um nó corrediço e, no entanto, ele ainda tinha a coragem de atacar o rei e reclamar por reestruturações do Reino! Leonor viu os seus planos ir por água abaixo. Jamais havia contado com uma tal tenacidade por parte do secretário de Estado do Reino. Parecia não recear absolutamente nada. Ao invés disso, falava com o rei como se lhe coubesse a ele admoestar o soberano de Portugal e não o contrário. Um homem daqueles era imune a intrigas. Os nobres olharam para ela, desesperados. – Digam o que disserem, Portugal precisa deste homem – afirmou o rei. – Pode ser que ele tenha cometido erros, que não estamos agora em posição de comprovar. No entanto, nenhum de vós apresenta uma visão do que há a fazer como Sebastião de Carvalho. Continuará no cargo de secretário de Estado do Reino e quem o atacar atacará o Reino e, como tal, a nós. Se de futuro levantarem nem que seja um dedo contra ele, e isto aplica-se tanto a si, barão, como aos outros senhores, irei expropriá-los e votá-los- ei à insignificância – olhou para o secretário de Estado do Reino. – Ou pretende exigir reparação pelo ultraje a que hoje aqui o submeteram? Os nobres e o barão alemão deverão ser castigados de uma maneira que considere satisfatória. Antero pigarreou. O rei revirou os olhos. – Se tem mesmo de ser, diga lá o que tem a dizer! – Gostaria de deixar à vossa consideração que desse modo apenas se estará a punir os cúmplices – começou Antero. – Aquele que está por detrás de tudo isto, a puxar os cordelinhos, é Gabriel Malagrida. Enquanto falamos, conspira contra o secretário de Estado do Reino e está a vaticinar a sua queda. – Afirma então que os Jesuítas pretendem derrubar o nosso secretário de Estado? Esperamos que tenha noção de que fez uma afirmação politicamente bastante explosiva. Está a ofender e a acusar a ordem mais importante da Igreja Católica, a ir contra nada menos do que o braço-direito do Papa. O secretário de Estado do Reino fez um gesto dirigido a Antero para que ele se calasse e disse: – Majestade, creio que seria melhor se discutíssemos estas questões numa breve conversa a sós. O rei acenou afirmativamente com a cabeça. – Sargento, acompanhe o barão e todos os outros até à antecâmara da tenda. Não os perca da vista! Os mesmos soldados que haviam trazido o secretário de Estado do Reino até ao interior da tenda conduziram então Leonor, o seu pai e os nobres para fora daquele espaço. Também Antero saiu com os demais. No entanto, não lançou sequer um olhar a Leonor. Dirigiu-se à saída da tenda, manteve aberta uma fresta entre as lonas e ficou a olhar para o exterior. O plano de derrube do poderoso secretário de Estado do Reino saíra gorado. Pior ainda: tinham-no agora como inimigo. Leonor olhou na direção do pai. Ele e os nobres conferenciavam, aproximando as cabeças uns dos outros. Pretenderiam tentar fugir dali? Estariam a discutir como haveriam de fazer para se irem embora, como poderiam escapar-se para o estrangeiro? Desde que Leonor começara a colaborar com os Jesuítas nunca os seus planos fracassaram. De uma maneira ou de outra, sempre tinha conseguido alcançar todos os seus objetivos, quando muito apenas com pequenas demoras ou recuos. Não sabia como lidar com um revés como este. Acercou-se para escutar a conversa dos nobres. – A questão não é essa – dizia o seu pai. – O problema é o secretário de Estado do Reino! Ele é tão abominavelmente diligente que o rei cada vez se recolhe mais e trata de cuidar dos seus interesses pessoais. Tem total confiança naquele homem. Não tardará a ser uma espécie de marioneta dele! Ou então já o é! – Já não conseguimos sequer chegar junto dele – constatou o marquês de Marialva enquanto esfregava o rosto coberto de rugas. – Estamos perdidos. Não há salvação. – Não é assim que vejo as coisas – comentou o duque de Aveiro, com a voz esganiçada. – Se a fúria do secretário de Estado do Reino se virar contra Malagrida, ganhamos tempo. Assim conseguimos pôr os nossos interesses a salvo. – Que quer dizer com isso de ganharmos tempo? – perguntou o barão. – Ora, ele não pode simplesmente submeter o padre a um tribunal. Para tal seria necessária uma dispensa papal. Se ele agir contra o jesuíta sem a autorização do Papa, Portugal vai ter a Igreja à perna. Deram-se conta da presença de Leonor. – Por favor, deixa-nos sozinhos, Leonor – pediu o pai com frieza. Aquelas palavras feriram-na bem fundo. O pai tratara-a como se ela mais não fosse do que um belo colar para trazer ao pescoço. Estava ali pela sua boa aparência, a sua presença servira apenas para predispor favoravelmente o rei, só isso. E eis que, chegada a hora de a festa acabar, ele guardava a joia na caixa. No entanto, até era melhor que, nem soubesse que toda aquela intriga fora ideia dela. Se acreditasse ter sido ele mesmo a causar aquele revés, ser- lhe-ia mais fácil aceitar as consequências. Virou-se e deixou os três homens a falar. Como gostaria de poder ir ter com Antero! Este escapara-se-lhe. Era livre. Leonor tomou então consciência de que ele sempre fora ter com ela pelas suas próprias razões. Não conseguia segurá-lo com a sua beleza. Por que razão olhava ele para fora da tenda com uma expressão tão entristecida? Era claro que havia vencido! Defendera-se dos seus inimigos e conseguira derrotá-los. No seu lugar, qualquer outro ficaria eufórico. Lamentaria ele o facto de esmagar Leonor juntamente com os outros? Teria ele saudades dela, pensaria nas ditosas horas que haviam passado juntos? Vê-lo diante de si e saber que o perdera para sempre provocava nela sofrimento. Um soldado da Guarda Real chegou à antecâmara da tenda e disse: – Podem ir. O barão, o duque e o marquês entreolharam-se. Os rostos de todos eles estavam lívidos. Um após outro esgueiraram-se para o exterior, passando junto a Antero. O negociante foi, de todos, o último a sair. Seguiu-se-lhe Leonor. Abriu amplamente a lona para não tocar inadvertidamente em Antero. Isso seria algo que não suportaria, a pele dele a roçar a dela, seria como uma queimadura. Deixou-o para trás, no interior da tenda. Nem uma palavra de despedida foi pronunciada por Antero. Quando ela o olhou, ele desviou a cara. Nem mesmo um olhar se dignava Antero dirigir-lhe. O Sol a pôr-se tingia o céu de vermelho. Os campos largavam um agradável aroma. No meio das árvores, um melro, trauteava. Se Dalila ainda estivesse viva, teria estacado por momentos e, com um sorriso deixaria o seu olhar vaguear pelo jardim. Só que a irmã nunca mais poderia assistir a um pôr do Sol. As duas berlindas do duque de Aveiro aguardavam. Eram ambas negras, qualquer das duas profusamente ornamentada com gavinhas douradas. A tinta vermelha das rodas brilhava com a água das poças. Junto a elas estava uma berlinda de cor verde. Das duas carruagens negras, a que estava mais à frente arrancou dali com o duque. Também a berlinda verde do marquês de Marialva se pôs em movimento, puxada por dois cavalos ruços. O barão subiu para a berlinda emprestada, assim como Leonor. A porta foi fechada de fora. – Pode seguir! – anunciou o pai. O cocheiro fez as rédeas estalarem no dorso dos cavalos. A berlinda arrancou. As rodas esmagavam a areia com o peso que suportavam. Nunca vira o seu pai assim tão pálido. – Que se passa contigo? – perguntou ela. O barão fitou-a. – As coisas não vão correr bem para nós. – Como sabes tu isso? – O rei deixou de nos conceder a sua proteção. Dispensa-nos pela voz de um soldado. Isso significa que o secretário de Estado do Reino vai caçar-nos à sua vontade. – Não poderá dar-se o caso de o rei estar apenas maldisposto e de vos querer castigar com este gesto? – Castigar? A mim bem pode ele desprezar. Sou alemão e comerciante, mas o duque de Aveiro não é um qualquer! Está à frente dos destinos da mais prestigiada família nobre do Reino, em termos de hierarquia social os Aveiro surgem logo a seguir à família real. E o respeitável estribeiro-mor, pensa lá bem nisso, já serviu o pai do presente rei, para além de comandar uma parte do exército e de ocupar um cargo de grande importância. Colocou-lhe a mão no braço. – Pai, estes homens têm influência. Nem mesmo o rei pode indispor-se assim contra estas famílias tão poderosas. Ele precisa do apoio deles. – É precisamente isso que me preocupa. – Que queres dizer com isso? – Ao duque e ao estribeiro-mor ele não vai fazer nada, por isso hei de ser eu que pagarei por tudo. Atacámo-lo e, por isso, estamos arrumados. Agora é a vez dele. O secretário de Estado do Reino vai pedir satisfações à nossa família, Leonor. 26
Antero sentiu algo tocar-lhe. Olhou para o lado. Um bastão com
uma ponta prateada e brilhante pousara sobre o seu ombro. Antero virou-se. O rei-de-armas olhou-o com um ar sério. – Parece que está distraído! Eu disse que o rei quer vê-lo. Os seus pensamentos estavam com Julie. E com a filha. E com Dalila, que já não era viva, por ter salvo a vida a Samira. E com Leonor, que usara o colar de Dalila, para que ele a tomasse pela irmã. Tinha de reunir as suas energias. Era melhor que se concentrasse na tentativa de derrubar Malagrida. Quando Antero quis passar à frente para entrar na sala principal da tenda, o rei-de-armas segurou-lhe no braço. Sobre o seu casacão escarlate resplandecia a torre dourada. Também o seu rosto parecia reluzir como se estivesse coberto de ouro. – O rei está irritado – avisou ele, sem que o seu rosto comprido revelasse qualquer expressão. – Pense bem naquilo que vai dizer. Antero acenou afirmativamente com a cabeça. Dois criados dobraram os pedaços de lona que, fazendo as vezes de uma porta, tapavam o acesso à sala principal da tenda, deixando-o passar. Voltou a fazer uma vénia diante do queixo duplo, dos lábios que pareciam fazer beicinho e do entroncado adulto num corpo de criança envolto em brocados. Sentado no seu trono de pau-brasil, o rei inclinou-se para a frente e perguntou: – Como vai a sua investigação das causas do terramoto? Sebastião de Carvalho estava de pé junto ao trono e observava Antero, que acabara de se endireitar. Que tinham discutido o secretário de Estado e o rei? Entre todos os troféus de caça e as taças de prata, as mesas de apoio e os modelos de palácios e livros antigos, o ar parecia crepitar, como se ocorresse uma descarga elétrica. – Estou quase a conseguir entender as relações de causa e efeito que estão em jogo. Já só me falta recolher certas informações. Tenho de descobrir se noutras cidades também ocorreram tremores de terra. O rei recostou-se no trono e puxou o lábio inferior. – Chegou hoje de Cádis um mensageiro. No sábado, houve lá um tremor de terra, do qual também resultaram graves estragos. No entanto, nada de tão destrutivo como aqui. – Quando tremeu por lá a terra? A que hora? – Não tomámos nota desse pormenor. Acha que a nossa cabeça se preocupa com essas minudências? O senhor tem de apresentar resultados, e depressa. Sem uma explicação científica para o terramoto, não mexeremos uma palha no sentido de nos indispormos com os Jesuítas. Antero foi percorrido por um calafrio. O rei iria consentir que os conspiradores se mantivessem ativos? – Gabriel Malagrida andou a caluniar o vosso secretário de Estado do Reino. Nos seus sermões públicos diz que Deus tem de limpar a Casa Real! – O povo anda em busca de respostas. A Companhia de Jesus fornece-as. Dá-lhes algo em que se possam apoiar. O que acha que acontece se retirarmos ao povo esse esteio? Ocorrerá uma sublevação. Acharão que somos inimigos da Igreja e alguém que não soube retirar as devidas lições da catástrofe. No fim, acabaremos por ser considerados culpados do terramoto, aquele que convocou o castigo de Deus para o seu povo. O rosto do secretário de Estado do Reino iluminou-se. – Faltava um quarto de hora para as dez. Foi isso que o mensageiro disse. Antero deu um passo na direção do rei. – O povo irá obter a sua explicação, a qual derramará uma nova luz sobre este assunto. Um quarto de hora antes das dez! Entendem? – Antero sorriu. – É uma onda! – o rei franziu a testa. – O terramoto tem um centro – afirmou Antero. – As horas comprovam-no. – O que têm as horas a ver com isso? – O tremor movimenta-se como se fosse uma onda, a partir de um centro. Às nove e meia, Lisboa estremeceu, às nove e quarenta e cinco minutos foi a vez de Cádis. Se tiver sido suficientemente forte para alcançar também Madrid, irão ver que por lá o sismo ocorreu já depois das dez horas. Não pode ser uma explosão subterrânea. O tremor de terra é uma onda. – Isso não explica nada ao povo – disse o rei, levantando-se. – Terá de lhe dar mais do que isso. Dirigiu-se a um dos modelos que se encontravam no interior da tenda e pôs-se a observar as torres em miniatura. – Sei disso. E vou explicar melhor. O povo conseguirá perceber que este lugar não está amaldiçoado. Os avisos dos Jesuítas serão rejeitados, como se fossem um cobertor velho e esfarrapado. Um quarto para as dez em Cádis. Como poderia o tremor de terra percorrer mais de quatrocentos quilómetros num quarto de hora? Tratar-se-ia de um processo elétrico? Aquela explicação conduzia-o a um beco sem saída. Apenas dava resposta à questão da velocidade a que a onda viajava, não explicava a força destrutiva associada ao tremor de terra. O rei virou-se bruscamente para ele. – Pelos vistos, não entende mesmo a situação. Os Jesuítas, juntamente com a nobreza, representam tudo aquilo que está estabelecido há muito. Conseguimos ver hoje muito bem que eles defendem ambos interesses comuns. Irão decerto também proteger- se mutuamente. O terramoto arruinou-nos, destruiu a nossa capital e, de acordo com as estimativas dos nossos magistrados, custou a vida a trinta mil pessoas. Mesmo se não fosse a nobreza… – Majestade – interrompeu Sebastião de Carvalho –, entendo as vossas objeções. Porém, há uma coisa de que o povo precisa mais até do que de consolo: de forças para recomeçar. E os Jesuítas teimam em prender o povo ao passado. Enfraquecem-no ainda mais ao atribuir-lhe a culpa pela catástrofe. Se Antero Moreira de Mendonça conseguir encontrar argumentos para refutar os sermões penitenciais dos Jesuítas, o povo poderá dedicar todas as suas energias à tarefa da reconstrução. E é precisamente disso que precisamos. O rei pegou no diapasão, deu-lhe uma pequena pancada e segurou-o junto ao ouvido. Fixou o olhar na distância e pôs-se à escuta. – Vá, então – disse, por fim. – Utilize as suas descobertas científicas para conseguir convencer o povo. Se conseguir isso, eu poderei embotar as garras dos Jesuítas. Na terça-feira de manhã, o vento mudou de direção. Começou a empurrar o fogo na direção do interior, avançando sobre os pomares. As chamas consumiam as árvores. Por entre as ruínas de Lisboa, duzentas e cinquenta mil pessoas passavam fome. Leonor oferecia tudo o que tinha. Estava diante de casa e, a quem passava, ia entregando ovos, arroz, azeitonas recheadas, galinhas- do-mato, pedaços de manteiga da Irlanda, de chocolate, cestos de vime com queijo fresco e chouriços. Um homem que agarrou num pedaço de pão e noutro de queijo estava com tanta fome que, naquele mesmo instante, mordeu primeiro o pão, depois o queijo e, por fim, de novo o pão. Mastigava com a boca completamente cheia e olhava em redor, como um rapaz que come às escondidas na escola, durante uma aula. Uma mulher mais velha abraçou Leonor. Encostou a sua face enrugada e macia ao rosto de Leonor e disse: – Deus esteja consigo, são difíceis os dias que passamos, mas Deus esteja consigo! – colocou o chouriço que Leonor lhe entregara na sua sacola esfarrapada e foi-se embora a coxear. Leonor levou a mão ao pescoço para sentir o colar de Dalila. Era a herança que a sua bondosa irmã lhe legara: para que também ela aprendesse a amar as outras pessoas. Encontrou em si mesma um amor que nem sequer suspeitava de que pudesse existir. Fazia-a feliz ajudar as pessoas que passavam fome. A um rapaz entregou uma caixa com bombons. Ele levantou a tampa e ficou a olhar para os doces. De seguida, começou a correr, levando a caixa pressionada contra o peito, como se temesse que esta lhe pudesse ser tirada. Aos olhos de Leonor, as pessoas comportavam-se como se fossem ladrões, embora roubassem comida que a ela e ao pai não faltava. Ainda assim, Leonor tinha prazer em lhes dar alimentos. Os mantimentos começavam a escassear, mas ainda via tanta gente à espera! Que poderia ela oferecer-lhes? Ainda havia alguns chouriços. A cada um que Leonor oferecia, a criada deitava um olhar angustiado. Agarrava o avental com as mãos e amarrotava-o nervosamente. Também Jerónimo exprimiu a sua surpresa, abrindo muito os olhos e pegando de seguida no braço de Leonor. – Menina Leonor, o barão vai ficar terrivelmente enfurecido – avisou ele. – Ele vai proibi-la de sair de casa. – Estou a fazer isto por Dalila – disse ela, libertando-se. Pelo canto do olho apercebeu-se de um movimento na sua direção. Um cão vinha aos saltos, na sua direção. Virou-se para ele, mas nesse mesmo instante o animal abocanhou os chouriços que permaneciam atados uns aos outros, formando uma espécie de corrente. Ao afastar-se, arrastou atrás de si essa corrente. As pessoas que estavam à espera começaram a gritar e puseram-se a perseguir o cão. A uma mulher com três crianças Leonor deu o último pão e a um ancião entregou o último pedaço de peixe salgado. – É tudo o que tinha. Não há mais nada – disse ela, levantando as mãos. – Aquele maldito cão! – vociferou um homem. – Há de estar algures sentado a babar-se para cima daquele belo chouriço. Vai engoli-lo num ápice, enquanto nós aqui estamos a passar fome! Havia outro cão que andava por ali perdido e que se aproximou. Tinha uma pelagem clara e olhos escuros. Vinha a abanar a cauda e, com um latido, saltou para cima dela. – Bento? – perguntou Leonor, perplexa. Afagou-lhe o pelo com a mão e o animal desatou a correr em redor dela, de tão feliz que estava. Leonor soltou uma gargalhada de alegria. Acreditara que Bento ficara soterrado sob as pedras do palácio, mas afinal estava vivo! Por onde teria ele andado? Tinha de levá-lo até Samira. Aquele cão era tudo para a pequenita. Decidiu ir assim mesmo, tal qual estava. Dava-lhe uma sensação de liberdade sair daquele jeito, sem levar dinheiro, sem uma empregada, sem colocar pó-de-arroz. Não precisava de nada disso. – Anda, Bento! – chamou ela. Logo pela alvorada o pai tinha saído de casa para se ir encontrar com Edward Hay, o cônsul inglês. Pretendia vender os seus negócios e manufaturas aos membros da feitoria britânica. Ao duque de Aveiro ou ao marquês de Marialva não se podia dirigir, pois os nobres nada poderiam fazer por ele, já que a lei proibia-os de exercerem atividades comerciais: se assim não fosse, eles estragariam o negócio aos demais, uma vez que estavam isentos de todos e quaisquer impostos, explicara-lhe o pai certa vez. Quando soubesse de tudo aquilo que ela oferecera, ele ficaria furioso. Diria que aquela comida lhe tinha custado uma fortuna e bateria nos escravos, por achar que estes deveriam ter impedido Leonor. Abriria a porta da despensa e deparar-se-lhe-iam com as prateleiras vazias. Naquela divisão, mantinha-se o odor a queijo e a chouriços, a ponto de fazer crescer água na boca, mas nem uma só fatia de pão lá havia. Fosse como fosse, tudo estava perdido. Teriam de aprender a viver na pobreza. A despensa cheia era apenas o último resquício daquela vida de conforto da qual iriam abdicar. – Vamos ter com a Samira, Bento – disse ela. O cão seguia ao lado dela e ia olhando atentamente para o seu rosto. Gostava do modo como a dona falava com ele. A voz era suave e o olhar amigável. Além disso, fascinava-o o cheiro dela. Não conseguira encontrar uma única pista que lhe indicasse onde estaria a sua dona mais nova, embora andasse a vaguear pela cidade desde o nascer do Sol. Aquela mulher que seguia ao lado dele tinha um cheiro que conhecia. Bento inalou o odor dela. Era semelhante ao do cabelo da pequena dona, quando ele lá mergulhava o focinho. Aquela mulher fazia parte da matilha, ainda que não fosse muito frequente andar junto dos outros. As relações entre os humanos não eram fáceis de entender. Alguns pertenciam a mais do que uma matilha. Para onde ia a dona? Ela tinha uma posição cimeira no grupo a que pertencia. Observara-o com atenção: as pessoas davam-lhe preferência no acesso à comida e era ela quem lhes distribuía os pedaços. Além disso, as de pele escura tinham emitido um odor que indicava medo quando ela falara com elas. Saberia ela onde a sua pequena dona se encontrava? Desde que, na orla da cidade, comera o cadáver de um animal e ficara saciado, voltara a lembrar-se da sua matilha. Recordava-se sobretudo de como a pequena dona brincava com ele. Quando a reencontrasse, ela passar-lhe-ia a mão pelo pelo e mandá-lo-ia ir buscar o sapato. Ele arrancaria com toda a pressa, iria procurá-lo debaixo da cama e levar-lho-ia. Nessa altura, ela trataria de elogiá-lo. Tudo voltaria a ser como dantes. Os pássaros começaram a cantar bem alto e com alegria. O caminho que conduzia até Belém estava molhado, havia poças de água por todo o lado. Leonor inspirou profundamente. Sentia que o ar húmido da chuva produzia nela um efeito purificador. Já não tinha uma irmã. Estava agora sozinha. Nunca antes tivera tanta consciência do quanto precisava de Dalila. O cão de pelo claro mantinha-se sempre junto a ela. Quando se detinha, também ele o fazia e ficava a olhá-la ansiosamente. – Anda daí! – dizia Leonor. Então Bento seguia-a. Devia ter-se sentido sozinho, sem as pessoas que o haviam acompanhado e alimentado ao longo de todos os anos. Seguia a trote por cima das poças. A água suja saltou para o vestido novo de Leonor. Ao longe, via-se ainda a chuva a cair sobre os campos. Entretanto a luz do Sol conseguira romper por entre as nuvens. Os seus raios atravessavam as cortinas de chuva que se desprendiam de bojudas nuvens que seguiam baixas no céu, fazendo-as brilhar. Era como se chovesse luz. Milhares e milhares de gotas de luz dourada pairavam e precipitavam-se lentamente sobre aquela região destruída. No Tejo flutuavam utensílios domésticos: baldes, tábuas, pedaços de móveis destroçados. Gaivotas baloiçavam nas ondas, as asas cuidadosamente encostadas ao corpo, os bicos imóveis, num misto de silêncio e seriedade, como se fosse uma tarefa importante flutuar ali no rio, à deriva, no meio de toda aquela trastaria. Ao longo de uma hora passou diante de pomares devastados e de campos onde fora plantada batata-doce. Agora, após a «colheita» realizada pela enchente, o seu relevo irregular aplanado pelas águas. Algumas árvores estavam torcidas e partidas. Nos sítios onde o tronco se quebrara a madeira mais clara destacava-se da casca escura. O ar cheirava a terra e a batatas. A seguir eram residências e casas nobres que orlavam a beira da estrada. Já conseguia avistar a igreja de pedra branca e o mosteiro dos monges Jerónimos. Diante do Palácio Real estavam montadas sumptuosas tendas. Estandartes de damasco verde esvoaçavam ao vento. Se se cruzasse com Antero, não saberia o que lhe dizer. Ele desprezava-a. Poderia pedir-lhe desculpa, mas isso não o iria demover. O muro que se erguera entre eles impediria que as palavras lhe chegassem aos ouvidos. O cão deteve-se. Levantou a cabeça e olhou fixamente na direção do jardim real. As narinas dilataram-se-lhe. Leonor olhou para o jardim. À beira de um lago viu crianças a brincarem na companhia de umas quantas amas. O que o fazia reagir assim? Estaria Samira entre essas crianças? O cão ladrou. Ladrou de novo, brevemente. Soou como um chamamento. Uma das crianças que ao longe brincavam levantou- se e fixou o olhar na direção dele. Bento desatou a correr, foi dando longos saltos até alcançar a criança e derrubá-la. Esta riu-se de puro prazer e rebolou em cima da relva com o cão. As águas negras do Tejo embatiam nos degraus de mármore despedaçados. Onde ainda há quatro dias estava o mercado do peixe havia agora umas quantas barracas, mandadas lá pôr à pressa pela administração do município. Entre elas viam-se várias tendas. Era meio-dia, mas não tocou qualquer sino. O Terreiro do Paço, o coração de Lisboa, já não distribuía o pulsar da sua gente pelas artérias da cidade. O flanco ocidental do palácio real ardera. As suas arcadas, enegrecidas pela fuligem, contrastavam com o céu, quais ruínas de uma civilização perdida. O Arsenal de Guerra já só apresentava a sua fachada, sem nada por detrás. Armas retorcidas eram retiradas da sua sepultura de pedra. A Alfândega ficara reduzida a um monte de escombros. Antero olhou para a fila de pessoas que aguardavam que lhes fosse distribuída comida. Dos seus rostos desaparecera qualquer vestígio de orgulho. Traziam nos seus corpos feridas que iam já começando a formar crosta, e também queimaduras. Os ombros estavam descaídos. Nos seus olhos percebia-se a apatia em que haviam mergulhado. Monges carmelitas e teatinos e freiras clarissas tratavam dos necessitados. Como nada tinham para lhes dar, pegavam-lhes na mão e rezavam com eles. Era com pedaços lascados de madeira, obtidos das ruínas, que lhes faziam talas para corrigir os membros partidos. Muitos andavam em busca dos seus familiares ou amigos. Percorriam toda a fila de pessoas feridas e iam perguntando por um determinado nome. Alguém tinha visto uma dada mulher? Estaria soterrada, morta ou ainda se manteria viva? Junto à margem do Tejo, soldados controlavam o acesso aos barcos. Até mesmo as embarcações mais pequenas só podiam ser usadas mediante a apresentação da devida autorização. As pessoas eram mantidas presas na cidade destruída. Diante do Arsenal, Antero trepou para um bloco de pedra. Com o joelho direito magoado, aquela era uma tarefa bastante difícil. Alguns dos que estavam naquela fila olharam brevemente para ele, virando-se logo de seguida. O que eles queriam era comer. Um homem em cima de uma pedra não lhes interessava. – Frequentei o colégio dos Jesuítas até aos treze anos – começou Antero. – Com dezassete, passei para o liceu. Aprendi a regra de três e a fazer câmbios de valores em diferentes moedas. Estudei a filosofia de Aristóteles. Os Jesuítas ensinaram-me muita coisa. Entretanto já alguns o olhavam. Observavam-no com uma expressão mal-humorada, como se mais não fosse do que uma das gralhas que passeavam pelo chafariz. – No entanto, acredito que os Jesuítas estão a cometer um erro – prosseguiu. Houve cabeças que se viraram. Era capaz de perceber a curiosidade nos rostos. Alguém que se arriscava a falar contra os Jesuítas? Aquilo iria dar-lhe problemas! Acabaria por ser preso, pensavam decerto as pessoas, ou na fogueira. – É claro que eles têm razão quando dizem que por vezes é Deus que faz a terra estremecer. No Primeiro Livro de Samuel é-nos relatada uma batalha entre Israel e os filisteus, na qual Deus interveio: «Espalhou-se o pânico no acampamento, no campo e entre todo o povo. A guarnição e o corpo de choque ficaram aterrorizados; a terra tremeu e originou um temor imenso.» É isto que lá se pode ler. Deus também provoca tremores de terra como sinal da sua misericórdia. E nos Atos dos Apóstolos, capítulo quatro, podemos ler: «Tinham acabado de orar quando o lugar em que se encontravam reunidos estremeceu, e todos ficaram cheios do Espírito Santo, começando a anunciar a palavra de Deus com desassombro.» – Quer com isso dizer que este tremor de terra foi uma coisa boa? – perguntou um homem em voz alta. Antero ignorou-o. – E por vezes a presença de Deus não está no tremor de terra – prosseguiu ele. – Por vezes Ele está presente naquilo que se segue. Estou convencido de que é isso que se passa com Lisboa. No Primeiro Livro dos Reis, é-nos relatado que Deus aparece a Elias. Primeiro, começa por se levantar um vento impetuoso, que fendia as montanhas e quebrava os rochedos. Depois, veio um tremor de terra. Só que Deus não estava presente nesse sismo. A seguir, ateou-se um fogo, mas nem tão-pouco nesse se encontrava Deus. E depois ouviu-se o murmúrio de uma brisa suave. Então Elias soube que Deus se aproximava e cobriu o rosto, pois pessoa alguma que veja Deus poderá sobreviver. – Aquele tipo deve ter ficado maluco – comentou uma mulher. – Esta cidade não está amaldiçoada – disse Antero. – O terramoto não foi um castigo de Deus. – Ah, não? Então o que foi? – perguntou um homem que estava à frente na fila. Antero engoliu em seco. Agora soara a hora da verdade. – Foi um fenómeno natural, tal como o são a chuva e o brilho do Sol, as tempestades e o granizo. Recorda-se de que a água dos chafarizes sabia a enxofre? Lembra-se de ter reparado como os animais estavam irrequietos na noite antes do tremor de terra. Não se deu conta de que não havia um único pássaro junto à água ou nas árvores? Um silêncio sepulcral instalou-se na praça. Antero apercebia-se da perplexidade nos rostos das pessoas. – Os animais possuem uma sensibilidade muito apurada para os fenómenos naturais. Talvez tenham cheirado o enxofre que se soltava do interior da terra ou pressentido terramotos mais fracos, antes do grande. Sou cientista e proponho-me investigar aquilo que desencadeia os tremores de terra. Quero descobrir o que se passa abaixo da superfície quando a terra treme. Virá um dia em que conseguiremos prever a ocorrência destes fenómenos. Quando no céu se formam daquelas nuvens que anunciam uma tempestade, percebemos que vem aí uma. Do mesmo modo, saberemos um dia interpretar os sinais que avisam que um tremor de terra está iminente, para assim nos podermos pôr em segurança. Talvez consigamos até evitá-los. Um cónego dos Agostinhos, cujo hábito branco se apresentava sujo no peito, disse: – Quer é fazer com que se deixe de acreditar em Deus, não passa de um ateu! Como pode dizer que os fenómenos naturais ocorrem sem a Sua intervenção? – Eu acredito em Deus – respondeu Antero. – O facto de se poder encontrar uma explicação científica não significa que esse fenómeno não tenha tido a sua origem em Deus. Alguns dos maiores cientistas de todos os tempos eram cristãos. Johannes Kepler, o fundador da astronomia física, acreditava em Deus. Chegou mesmo a estudar teologia, durante dois anos. Não conhece o seu lema? «Reflito sobre as ideias de Deus», disse ele. Para Kepler, os astrónomos eram «sacerdotes do Deus supremo». E pense, por exemplo, em Robert Boyle, o pai da química. Era um cristão convicto, estudava profundamente a Bíblia e fez a exegese da mesma. Sir Isaac Newton, do qual frequentemente se diz ter sido o maior cientista que jamais viveu, o mesmo que formulou as três leis do movimento, que descobriu as leis da gravitação e que construiu o primeiro telescópio, também ele acreditava em Jesus como seu redentor e nos seus escritos recusou o ateísmo. – Então, afinal, o que quer você? – O cónego dos Agostinhos franziu a testa. – De que nos vale conseguir reconhecer os indícios de um tremor de terra se é Deus em pessoa que no-lo envia, como um castigo? Como podemos nós escapar-nos à mão Dele? Quando quer matar alguém, fá-lo simplesmente, seja onde for que o visado se esconda. – Claro que sim, mas os fenómenos naturais não podem ser usados como modo de perpetuar o poder. Os Jesuítas pregam a necessidade de atos de penitência, e dizem que a mesma deve ser alcançada mediante a prática dos seus exercícios. Ainda mal a terra acabou de estremecer e já eles propõem um dos seus como o santo de escolha em caso de terramoto. Francisco Bórgia, o terceiro superior geral dos Jesuítas, surge de repente como o santo a que se deve recorrer quando há tremores de terra. Algumas pessoas já acenavam com a cabeça, em sinal de aprovação. – Lá que ele tem razão, isso tem – disse alguém. – É uma patifaria. – Não estou a falar contra Deus. Isaac Newton investigou ambos, tanto a natureza quanto Deus. Para ele, as leis naturais sempre foram apenas a causa segunda do fenómeno, a primeira manteve- se para ele sempre o ser vivo chamado Deus. Newton investigou essas leis e, ao fazê-lo, sondou os desígnios de Deus. – Diz que este lugar não está amaldiçoado – interpelou-o uma mulher – e que não virá aí mais nenhum tremor de terra. Nesse caso, por que razão o rei não voltou a ocupar o Palácio de Belém? Porque dorme numa tenda todas as noites? – Pela mesma razão que leva muitos de vós a dormirem ao relento, ao invés de procurarem abrigo no meio das ruínas. Muitos não se conseguem esquecer de como tudo começou a cair-vos em cima. Têm medo. Mas nós não acreditamos numa divindade que é indolente e se entrega aos prazeres, que se refastela no meio dos céus e não se preocupa minimamente com o que acontece aqui em baixo na Terra. O olhar de Deus abrange toda a imensidade das criaturas a que deu origem. Conhece cada uma das estrelas e sabe o nome de todas. A sua sabedoria tem profundidade e amplidão. Não precisa de ser despertada por um jesuíta que é considerado santo. Apesar de toda a desgraça que nos acometeu, Ele mantém- se lá e irá ajudar-nos. «Acreditas mesmo naquilo que para aí estás a dizer?», perguntou a si mesmo. Com as suas investigações pretendia penetrar no âmago das coisas, mas será que contava vir a encontrar-se com Deus? Não pôde deixar de se lembrar de quando, ainda criança, se pusera a observar um percevejo: este escondia-se nas fendas entre as pedras, andava em busca de presas por todo o lado, reaparecia, procurava a próxima fenda, era um predador bastante atarefado, que nem sequer se dava conta dele de que era observado. Questionara-se outrora se também seria assim na relação entre Deus e os seres humanos. As pessoas brincavam, trabalhavam, dormiam e nem se davam conta de haver alguém que afetuosamente os observava. Sim, claro, de certo modo andava em busca de Deus. Com cerca de dez anos pusera-se a observar um estorninho que iniciava o voo e, pela primeira vez, tomara consciência de que o pássaro pressionava as asas para baixo para assim se elevar no ar. O estorninho comia uma minhoca e alguns escaravelhos e era daí que retirava as forças para bater as asas milhares de vezes o que lhe permitia voar. Era algo maravilhoso, um milagre. Anos mais tarde, vira com grande assombro como as pedras de granizo caíam. Embatiam no chão e, após realizarem alguns breves saltos, paravam. Que distância teriam percorrido durante a queda desde os céus! E que propriedades da água ou do ar impediriam que se tornassem grandes como ovos de galinha, passando assim a representar um perigo para a vida das pessoas? Estava rodeado de milagres. E a cada descoberta que fazia, a cada pedaço de conhecimento acerca deste mundo que recolhia, mais ia sentindo a presença do Criador, do misterioso Deus. 27
Samira veio a correr pela relva, na direção de Antero. Um grande
monte de pelo, de cor clara vinha a correr ao seu lado. – O Bento está de volta! – exclamou a pequenita. – O Bento voltou! O discurso que há pouco fizera na praça correra-lhe bem, e agora ainda mais aquilo! O dia prometia vir a ser bom. Antero acocorou-se. Pousou a tigela que trazia nas mãos, colocou a palha ao lado e abriu os braços de par em par. Samira correu ao seu encontro. Pôs- se de pé e, segurando-a ao colo, andou com ela em círculos. – Minha pequenina! – exclamou. Doía-lhe a perna, mas não se preocupou com isso. Bento saltou para ele e ladrou. O cão lambia-lhe a mão. Uma mulher avançava na sua direção. Era Leonor. O seu vestido estava sujo. O Sol parecia ter-se aninhado no seu cabelo, que brilhava como o ouro dos Incas. Antero pôs Samira no chão. Leonor manteve-se imóvel, a alguma distância, a olhá-lo. Ela colaborava com os Jesuítas, ela e o pai tinham até tentado derrubar o secretário de Estado do Reino, para com isso conferir mais poder à Companhia de Jesus, e decerto a si mesmos. Ainda assim, de certo modo, de uma forma que o surpreendia, Antero ansiava por estar próximo dela. Como podia ser tão obstinada, tão cega, a ponto de ajudar o lado errado? Virou-se para Leonor e perguntou: – Foste tu que encontraste o cão? – Não – respondeu Leonor –, ele é que me encontrou. – O Bento é um bom animal. Ela concordou, acenando com a cabeça, e ficou a olhar para o cão. Tinha lágrimas nos olhos. – Lamento – disse. – Tu e o teu pai caluniaram um homem íntegro e trabalha- dor. Os lábios de Leonor tremeram. Agarrou no colar dourado que trazia ao pescoço e puxou-o, quase como se o quisesse arrancar. – Foi um erro – justificou-se. Tinha salpicos de lama até mesmo no rosto. O modo como se apresentava era tudo menos apropriado. Ainda assim, viera ter com ele. Não tentava enredá-lo ou enganá-lo com os seus jogos de sedução. Viera como estava. Talvez se fosse transformando no sentido do bem. – Papá! – chamou a pequenita atrás dele. – O Bento não quer beber a água. Deu meia volta. – Isso não é para beber – foi ter com ela e ergueu a tigela. – Trouxe isto para te mostrar uma coisa. Olha para aqui! Mergulhou a palha na água com sabão, levou a boca à extremidade que ficou de fora e soprou para a palha. Formou-se uma grande e iridescente bolha de ar, a qual se desprendeu da palha e, afastando-se, ficou a pairar sobre a relva. Samira olhou-a, espantada, de boca aberta. Antero voltou a mergulhar a palha e desta vez soprou com mais força. Dezenas de bolhinhas subiram pelo ar. Bento foi atrás delas e pôs-se a ladrar. Samira ria-se. – Consegues fazer magia! Faz muitas bolinhas para mim! – Chamam-se bolas de sabão – explicou ele. Leonor mantinha-se ali de pé e sorria. Uma das bolas voou até junto dela. Ergueu a mão e deixou-a pousar lá. A bola de sabão rebentou. – Queres experimentar, Samira? – perguntou ele. A pequenita olhou para ele, com um ar que exprimia dúvida. – Será que consigo? Ele acocorou-se e estendeu-lhe a palha. – Aqui tens. Mergulha-a na água com sabão. É aqui que sopras. Ela subiu para o joelho dele, mergulhou a palha na água e soprou. Saíram de lá umas bolhas muito pequeninas. Samira rejubilou de alegria. – E agora sopra devagarinho. Samira tentou, mas só conseguiu projectar algumas gotas de água da outra extremidade da palha. – Outra vez! Voltou a colocar a palha no líquido, soprou e formou-se uma grande bola de sabão, que flutuou até tocar no chão e rebentar. Aquela criança que ali estava, sentada sobre o seu joelho e a fazer bolas de sabão, pertencia-lhe. Sentia-o. Samira era pequenina e precisava da sua proteção e do seu amor. – Sabes – disse ele –, um mês antes de nasceres a tua mãe já te tinha comprado uma caminha de verga e um cobertor. Tricotou meias para ti. E logo depois do teu nascimento acariciou-te e beijou- te, muito embora se diga que depois do nascimento as mulheres estão impuras e não devem tocar nas crianças. A Julie não se preocupou com o que a ama dizia, pegou em ti e beijou-te. Ela gosta- va muito de ti – Samira voltou a mergulhar a palha no líquido. Olhou-o. – Rias-te quando ela te mudava a fralda e te fazia cócegas. Quando ainda não tinhas nem meio ano, a tua mãe disse-me que encomendasse a um marceneiro uma cadeirinha para ti. Queria que tu começasses logo a aprender a sentar-te. E a certa altura já conseguias rastejar escada acima e tentavas abrir as portas sozinha. – É melhor eu ir andando – murmurou Leonor. Inclinou-se e pegou em algo que estava sobre a relva. – Toma, Samira. Tem cuidado para não pisares – era o fantoche. Tinham-lhe pintado um gibão vermelho com botões amarelos. A tinta estava lascada em vários sítios. Samira sempre gostara muito dele. – Colei-lhe as pernas para o consertar. Já não se aguentam tão bem como antes. Samira aceitou o fantoche das mãos de Leonor. Puxou o cordel e as pernas subiram e voltaram a descer. – Ainda funciona – disse a pequenita. – Estás a ver? – Onde o encontraste? – perguntou Antero. – No meio dos escombros – respondeu Leonor. – Este fantoche, Samira, foi-te oferecido pela tua mãe, no teu primeiro aniversário – disse ele. – Foi a Julie quem to deu. A pequenita olhou para o fantoche. – A sério? Antero acenou afirmativamente com a cabeça. Samira pressionou o fantoche contra o peito. – Gosto muito dele. – Leonor, deixa-te ficar – disse Antero. Gabriel Malagrida mantinha aberta a aba que dava entrada para a tenda e olhava para o exterior. A barcaça a remos permanecia tranquilamente amarrada. Para oeste, onde o Tejo desaguava no oceano Atlântico, a luz do Sol refulgia sobre a água. A beleza da natureza afigurava-se-lhe enganadora. Aquela mesma que agora evocava um ambiente de romantismo dois dias antes, e por ordem de Deus, arrasara Lisboa, largando-lhe depois fogo. Repugnava-lhe aquela oferta de tréguas que ela agora fazia. Voltou para o interior da tenda. – Qual foi a última frase que ditei? – «Se existir em Portugal um herege que seja…» – relembrou o escrivão. – Ah, sim. Escreva então: «…que se atreva a afirmar que o terramoto foi apenas um efeito de causas naturais e não um castigo de Deus pelos nossos pecados»… A tentativa de derrube falhara. Contra ele, Malagrida, nada poderiam fazer. Para o levar a tribunal precisaria o secretário de Estado do Reino de uma autorização papal, e isso era coisa que não obteria, o Papa mantinha-se fielmente ao seu lado. Porém, Sebastião de Carvalho iria aniquilar os seus aliados. E com isso iria enfraquecê-lo a ele, Malagrida. Dias terríveis. – Padre Malagrida! – chamou alguém de fora, que parecia completamente esbaforido. – Por favor, deixe-me entrar! – Se tem mesmo de ser – resmungou ele. A lona da tenda abriu-se e o barão entrou. O tecido da sua casaca exibia sob as axilas manchas de transpiração. A peruca estava desalinhada. – A minha filha desapareceu – disse ele. – Incumbiu-a de alguma tarefa? – Vá ver dela junto de Antero Moreira de Mendonça. Até aposto que estará ao pé dele. A parvinha apaixonou-se. – Como pode dizer uma coisa… – antes mesmo de acabar o que ia a dizer, o barão calou-se. Depois recomeçou: – Preciso da sua ajuda. – Ah, sim? Diga-me lá então o que correu mal com a conversa com o rei. – Sebastião de Carvalho foi demasiado convincente. Ele é esperto. Subestimámo-lo. – E agora quer que eu o livre de se afundar no pântano. – Vendi as minhas fábricas. Vou sair de cá. Só que os meus parceiros de negócios mais importantes estão em Portugal, e ainda aguardo a chegada de um navio com um carregamento de trigo siciliano. Ajude-me, para que eu não perca tudo. – O senhor falhou. De resto, os seus outros assuntos não me dizem respeito. – O padre é a única pessoa suficientemente poderosa para nos ajudar. Arriscámos muita coisa para o ajudar. Seja justo. Faça agora alguma coisa por nós em troca! Lá fora ouviram-se vozes a barafustar. Pelos vistos, parecia haver uma briga. A barcaça a remos balançava. Depois, ouviu-se algo a cair de chapa na água, como se corpos estivessem a ser deitados ao rio. Uma sensação de fúria foi-se acumulando no seu interior. – Mas que está aqui a tentar fazer? Barão, se acha que é assim à força que consegue alguma coisa de mim, fica a saber que bem se engana! – Eu... mas eu vim sozinho… – disse o barão. – Essa gente não veio comigo. Malagrida abriu a lona da entrada da tenda e deu de caras com Filippo Acciaiuoli. – Desta vez exagerou, padre – disse o núncio papal. – Assim, não posso protegê-lo. Atrás dele, soldados mantinham os homens de Gabriel Malagrida em respeito. Sem servirem para nada, as espadas destes haviam sido atiradas para o chão da barcaça a remos; os homens do padre tinham-se rendido. Dois deles nadavam no Tejo. – Vou-me queixar junto do Papa. Fica desde já a saber. – Até nova ordem, deve abandonar Lisboa, por ordem do rei – declarou o núncio. – Ser-lhe-á indicada a cidade de Setúbal como local de residência. Não poderá sair de lá. – E que hei de eu fazer em Setúbal? – Funde um convento. Escreva um livro. – Isso é um descaramento! O seu comportamento irá ter consequências. Eu mesmo tratarei de me certificar disso. Nem mesmo o rei pode lidar assim com a Ordem dos Jesuítas. E o senhor, enquanto enviado do Papa neste país, deveria ter-me defendido diante dele. Quatro soldados de uniforme azul vieram ter com Malagrida. – Venha daí. Tem uma carruagem à espera. – Permitir-me-ão com certeza levar comigo a minha Bíblia! – disse com aspereza. Recolheu-se à sua tenda. Mesmo ao pé da Bíblia estava a caixa de ferro amolgada. Pegou no livro e na caixa e saiu. – Sentemo-nos – propôs Antero. De seguida, instalou-se sobre um pequeno monte de relva, no jardim. A alguma distância Samira fazia bolas de sabão com a palhinha. Bento deitara-se junto a ela e pestanejava por causa da luz do Sol, que se punha. Hesitante, Leonor sentou-se perto de Antero. Os seus joelhos tremiam. – Estive ontem sobre um patíbulo, prestes a morrer enforcado – disse ele. – Senti que estava tudo acabado para mim. Foram os Jesuítas que tramaram isso. – Por que razão te odeiam eles assim tanto? – Porque deixei de trabalhar para Gabriel Malagrida. Agora tornei- me seu inimigo. Ele sabe que a minha intenção é prejudicar os seus planos. Irei explicar o tremor de terra ao povo, o que fará com que, aos olhos das pessoas, ele surja não como um profeta, mas sim como um mentiroso sedento de poder. – Antero olhou-a. – Por que razão ajudas os Jesuítas? Não vês o que estão a fazer? – Admirava a fé deles. E admirava também Gabriel Malagrida. É um homem sábio, pode aprender-se muito com ele. – Sim, é verdade – Antero esboçou um sorriso amargo. – Em tempos também pensei assim – manteve-se em silêncio. Por fim, prosseguiu: – o teu pai e tu não proporcionaram a Malagrida aquilo que ele queria. Ele vai provocar a vossa queda. A tua família está em maus lençóis, Leonor. Deverias mudar-te para o campo. Conheces alguém por lá? – Temos familiares. Uma prima minha vive a um par de horas daqui, numa herdade. – Vai para lá. Quando o perigo tiver passado, vou buscar-te. Leonor tremia enquanto inspirou fundo. – Antes, quero dizer, quando tu só lá ias de visita de vez em quando... Agora conheço-te melhor. Lamento ter-te desapontado desta maneira. Sei que não agi de modo a que me amasses como amaste a Julie... Mas eu vou mudar, já comecei a fazê-lo. Ele manteve-se calado. Como ela era capaz de ultrapassar assim a frieza que entre eles se instalara? Como podia atrever-se a lembrá-lo dos dias em que se riram e trocaram carícias? Naquela altura, a relação entre eles fora de facto calorosa! Avançando com a mão por sobre a relva, ela tocou na mão de Antero. «Por favor», suplicava no seu interior, «dá- me uma oportunidade!». – Leonor! Era a voz do pai. Veio a correr sobre a relva na direção dela, passos arrastados, cambaleantes, manquejantes. Com o rosto muito vermelho, a transpiração na sua testa fazia com que esta brilhasse. – Explica-lhe que queres mudar-te para o campo, Leonor – aconselhou-a Antero. – Deves partir ainda hoje. Ela levantou-se e caminhou para o pai. – Endoideceste? – perguntou o barão ofegante. – Logo hoje desafiar a Guarda Real dessa maneira! Não tens nada que vir aqui para Belém. A nossa vida corre perigo, Leonor. Nem uma só palavra acerca de toda aquela dispendiosa comida que ela se pusera a oferecer? Para não falar daquilo, o pai deveria estar mesmo cheio de medo. – Que se passou? – Gabriel Malagrida foi banido de Lisboa. As coisas não vão correr bem para nós, Leonor. Ninguém nos pode proteger da fúria do secretário de Estado. – Mudemo-nos para o campo, para casa da prima. – Isso não é suficientemente longe. Achas que o secretário de Estado do Reino não nos encontra lá? Vamos é para a Alemanha. Vou escrever ao meu irmão, ele prepara tudo. – Pousou-lhe a mão nas costas e encaminhou-a na direção da cidade. – Já não sais de junto de mim até irmos daqui para fora. Já perdi Dalila, não te vou perder a ti também. O pai fedia a suor. Leonor sempre tivera dele a imagem de um homem forte. Agora, porém, ele afigurava-se-lhe um cobarde. Fosse como fosse, não viajaria com ele para a Alemanha. Algures nas imediações de Lisboa deixá-lo-ia e regressaria para junto de Antero. Virou-se na direção dele. Antero levantara-se e ficara a olhar para ela. «Vai lá, despede-te dele», dizia uma voz no seu interior, mas ela não conseguia obedecer-lhe. Caminharam lado a lado durante uma hora, em silêncio. No azul- escuro do céu noturno esvoaçavam andorinhas que emitiam pios estridentes. Entre as ruínas das muralhas da cidade que se apresentava diante deles viam-se muitos soldados. Estariam agora também a interditar o caminho para Belém? Havia uma cancela provisória. Alguns soldados andavam por ali, de um lado e de outro da cancela, outros estavam sentados nas pedras e jogavam às cartas ou então dormitavam. Outros ainda limpavam as espingardas. Junto à cancela estava um sargento. – A autorização de acesso, se faz favor – pediu ele. – Não tenho nada disso – respondeu o barão. O sargento olhou para ele e para Leonor, examinando-os. – Sem autorização de acesso já não é possível. Dirija-se ao magistrado da sua circunscrição e obtenha uma. – Quero deixar a cidade amanhã de manhã, bem cedo. Sou comerciante, ainda há de ser possível, mesmo sem a autorização, não? – Pode entrar. Sair é que não. – O meu nome é Martinho Velho da Rocha Oldenberg – disse o pai – e há vinte e oito anos que sou membro da Ordem de Cristo. Até há pouco tempo era o responsável por todo o comércio de tabaco deste país. Os meus índios trabalham no Brasil para que receba o seu salário, assim como todos os outros soldados que aqui estão sem fazer nada e a olhar embasbacados. Se este país enriqueceu, foi graças ao meu esforço – ao dizer isto, batia com a mão no peito. – Não será o sargento que me vai dizer onde devo ou não devo ir. – Ergueu a cancela com as próprias mão e chamou: – Leonor! Esta apressou-se a passar pela cancela. O pai voltou a baixá-la e entrou na cidade. Leonor voltou-se para trás. Os soldados olhavam para ele de boca aberta. – Quem pensam eles que são? – resmungou o pai. – Antes disto eu andava por aqui como um homem livre. E agora querem passar a decidir onde devo ir ou deixar de ir. Leonor sentiu-se abalada. Talvez não voltassem mesmo para a Alemanha. Talvez afinal conseguissem ficar por Lisboa. Se o pai recuperasse as suas antigas forças, deixaria de precisar de Malagrida. Seria capaz de lutar sozinho pela família. Quando entraram em casa, estava tudo em silêncio no corredor. – Jerónimo! – chamou Leonor. Em resposta ouviu um gemido abafado vindo da sala de estar. Apressou-se na direção da porta da sala e abriu-a. Tolheram-se-lhe os movimentos. Tomás, o Alfaiate, estava pendurado no lustre, com uma corda em redor do pescoço, estreito como o de uma tartaruga. Tinha os lábios roxos e os olhos muito abertos, fixados em duas cadeiras, nas quais os criados estavam sentados, amarrados e amordaçados. Atrás dela, o pai entrou no quarto. – Corre à cozinha e vai buscar uma faca – ordenou ele. A caminho da cozinha vários pensamentos passaram-lhe pela cabeça. O jesuíta já não estava na berlinda quando eles regressaram da tenda do rei. Deveria ter-se apercebido de que as negociações estavam a correr mal, pelo que fugira dali para fora. O facto de se ter enforcado era mau sinal. Leonor regressou à sala de estar e estendeu a faca do pão ao pai. Este não a aceitou, dizendo, ao invés disso: – Liberta os escravos. Tentou cortar as cordas que prendiam os criados. Não era simples, elas não cediam facilmente à ação da lâmina. Leonor teve de usar a faca como se fosse uma serra, com um movimento de vaivém, até que por fim elas cederam. Retirou também as mordaças. Jerónimo e a criada puderam por fim respirar livremente. – Por que razão vos obrigou ele a assistir a isto? – perguntou Leonor. – Podia ter-se enforcado calmamente aí numa ruína qualquer! – Não foi ele – disse a criada. – Foram uns homens. O barão chegou-se junto do enforcado e virou-o. Atrás das costas, tinha as mãos atadas. Havia sido morto! – Qual era o aspecto desses homens? – perguntou Leonor. – Não conheci nenhum – afirmou Jerónimo. – Mas um deles tinha uns polegares com umas unhas enormes, horríveis e compridas – acrescentou a criada. – Como se fossem as garras do Diabo. – Vamos de viagem – declarou o comerciante. – Vou buscar os documentos mais importantes. Leonor, tu vais ter com o duque de Aveiro e solicitas-lhe que nos empreste um coche para viajarmos. 28
Quando Leonor regressou, já era tarde. Esgueirou-se até ao
quarto do pai para lhe dizer que o seu pedido fora recusado. Por baixo da porta havia uma frincha através da qual se percebia a luz cintilante de velas. Pressionou com cuidado o ferrolho, para não fazer barulho, e abriu-a. O pai adormecera debruçado sobre a secretária. À medida que respirava, o seu peito subia e descia ligeiramente. A vela ardera quase até ao fim, estava prestes a apagar-se. Leonor veio por detrás do pai e espreitou para a folha sobre a qual ele se deitara, tapando a maior parte do texto; no entanto, conseguiu ler o início. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Considerando que nada é mais certo do que a morte e nada é mais incerto do que a hora em que esta sobrevem, começo por encomendar a minha alma a Deus, o nosso pai todo-poderoso, e a Jesus Cristo, seu filho unigénito. Determino que a minha sepultura deverá ficar situada em Oldenberg e, em memória do meu falecido pai, decido doar… E mais adiante estava a sua mão e a seguir o ombro. Conseguia ainda distinguir as palavras «paz de alma» e «para todo o sempre». O pai adormecera com aquelas roupas encharcadas de transpiração ainda vestidas, enquanto redigia o testamento. Leonor escutou um rangido. Vinha da janela, não seria nem a dois passos de distância donde se encontrava. Olhou mais atentamente nessa direção. Um dos pregos mexia-se. Estava a ser rodado e rangia contra a madeira. De repente, ficou tudo escuro. A vela extinguira-se. A mecha ainda ardeu mais uns instantes, depois também ela se apagou. Os ruídos que chegavam vindos da janela pararam. Leonor estava ali, imóvel, e respirava sem fazer qualquer ruído, para não revelar a sua presença. Após uma breve pausa, recomeçou o rangido. Ouvia-se ligeiramente a madeira a fender-se. Leonor curvou-se sobre o pai e apertou o braço deste. – Pai – murmurou-lhe ela ao ouvido –, acorda! Está ali alguém à janela. Ele ergueu-se de um salto. – Estás a ouvir isto? – sussurrou ela. O pai pôs-se de pé e deteve-se, à escuta. Depois disse-lhe ao ouvido: – Vai buscar o escravo. Ele que traga as espingardas e os floretes. Sem fazer barulho! Leonor esgueirou-se para fora do quarto, atravessou o corredor e abriu a porta do quarto do escravo. Chegou-se junto da cama dele e abanou-o. – Levanta-te. O meu pai precisa de ti. Vai buscar as espingardas e as espadas e segue para a sala de estar sem fazer barulho. – Sim, menina Leonor. Dirigiu-se ao o quarto da criada e acordou-a também a ela. No meio da escuridão, o branco dos seus olhos apresentava um aspecto fantasmagórico. – Estão a tentar roubar-nos? – perguntou a criada. – Mas já ofereceu tudo o que cá tínhamos, menina Leonor! – Podem ter em mira o ouro do pai. Ele disse que fôssemos ter com ele à sala de estar. Juntamente com a criada, que a acompanhou de roupão vestido, atravessaram o corredor. Deram de caras com Jerónimo, que trazia nos braços as espingardas e os floretes. As bolsas onde se encontravam guardados os cartuchos pendiam das próprias armas. Da sala de estar ouvia-se claramente o ruído de madeira a estalar. Leonor estremeceu. – Depressa! – disse, e logo apressou o passo. Na janela entaipada da sala de estar já faltavam algumas tábuas. Por entre as frinchas que haviam sido abertas entrava a débil luz da noite. O barão acenou-lhes. O escravo apressou-se a assumir uma posição junto dele, tendo este pegado de imediato numa das espingardas. Alcançou a bolsa que dela pendia e retirou de lá um cartucho. Mordeu-o para o abrir, despejou a pólvora no cano da espingarda e então empurrou uma bala para o interior do cano. – Agora tu – murmurou. – E peguem nestes floretes – sussurrou para Leonor e para a criada. – Esqueça isso – disse uma voz vinda do exterior. Cinco canos de espingarda foram enfiados no espaço antes ocupado pelas tábuas agora em falta. – Pouse as armas e encoste-se à parede com as mãos no ar. O barão deteve-se. Depois, tão baixinho que pouco mais era que um sopro, murmurou: – Vão lá para baixo! Vão de rastos até à porta. Deitaram-se no chão e foram rastejando enquanto sustinham a respiração. Um dos floretes ia arranhando o solo. – Rendemo-nos! – gritou o pai, porém continuou a rastejar. Chegado junto à porta agarrou no cotovelo de Leonor e empurrou-a. – Cabeça para baixo – ordenou ele. Junto à ombreira da porta, Leonor virou-se para trás. Os outros não vinham também? O barão pressionou o gatilho. A sua espingarda produziu um estrondo. Por um instante, a boca da arma cuspiu fogo. Nos ouvidos de Leonor instalou-se um assobio permanente. Ele empurrou-a, para que continuasse a rastejar. Da janela, surgiram então também fulminantes clarões, dois, três, quatro. Leonor levantou-se de um pulo e correu pelo corredor. Estava escuro. Continuava a ouvir distintamente o assobio, para além deste apenas um impenetrável silêncio, como se lhe tivessem enfiado algodão nos ouvidos. Abriu a porta que dava acesso ao seu quarto e fechou-a atrás de si. Sentia os batimentos do coração directamente no pescoço. Embora respirasse com força, tinha a sensação de não conseguir inspirar ar suficiente. Os seus olhos tentavam debalde romper as trevas. Jogos de cor, fantasmagóricas ilusões, teciam-se diante de si, no meio da escuridão. Havia demasiados homens lá fora, diante da casa. Era impossível resistir-lhes. Tateou pelo quarto fora até que bateu com a canela na cama. Junto a esta havia uma janela. Leonor sentiu uma brisa suave a afagar-lhe o rosto. Enfiou os dedos numa das frestas entre as tábuas e puxou. As tábuas não davam de si. Tinham sido pregadas de modo a que a janela ficasse firmemente tapada. Puxou com mais força. A madeira nem sequer se mexeu. Precisaria de ferramentas. Estariam por ali soldados, patrulharia alguém as ruas? Mesmo ao longe, talvez ouvissem os disparos! Leonor chegou-se mais junto à janela. Sentiu nos lábios a aspereza das lascas de madeira das tábuas. – Socorro! – gritou – Estamos a ser roubados! Ajudem-nos! A sensação de ter algodão nos ouvidos foi deixando de incomodá- la. Também o assobio diminuiu de intensidade. Virou-se. Onde conseguiria arranjar uma haste ou qualquer outra coisa de ferro? Talvez conseguisse desmontar o ferrolho da porta. Chegou-se junto desta, mas hesitou. Debaixo dela conseguia aperceber-se de um brilho inconstante proveniente do outro lado. A porta abriu-se. Leonor saltou para junto da mesa, pegou numa cadeira e segurou-a ameaçadoramente no ar. Por momentos, a luz de um archote encandeou-a. Leonor piscou os olhos. Junto à ombreira da porta estava um homem. – Graças a Deus! – balbuciou ela. Era Antero. Leonor pousou a cadeira. – Fomos roubados. Ouviste os tiros? Os ladrões entraram pela janela. Trouxeste contigo os soldados? Antero nem sequer sorriu. Por que razão estaria ele com um ar tão sério? – Tinha-te pedido que te fosses embora – disse ele. – E era o que tencionava fazer. Ele manteve o silêncio. O seu olhar era grave. Iria acontecer algo terrível, ela conseguia pressenti-lo. As chamas do archote iluminavam-lhe irregularmente o rosto hirto. – Porque não escutaste o que te disse? – perguntou ele. Aqueles homens estavam ali para levar o pai dela. Fora o secretário de Estado do Reino quem ordenara aquela investida. – Não deverias ter ficado aqui. – Queríamos ir já amanhã – respondeu ela. – Por favor, poupa o meu pai. Deu ouvidos a quem não deveria – «a mim», pensou ela. «A culpa de tudo isto é minha.» – O meu pai não é má pessoa. Ele merece uma oportunidade de recomeçar. – A ordem do secretário de Estado do Reino é inequívoca. – O que lhe vai acontecer? Vindo de fora, ouviu-se o pai gritar: – Leonor, pára já de falar com esse degenerado! – Eu... Eu ofereci toda a comida que tínhamos – disse ela. – Mesmo que ela agora esteja morta, estou a aprender com a Dalila. Vou mudar, já mudei, mesmo que tu ainda não sejas capaz de o reconhecer em mim. Por favor, não destruas as nossas vidas! – Isso não está nas minhas mãos. – Mas tu vieste aqui. Os soldados fazem aquilo que lhes disseres. A expressão do rosto dele manteve-se empedernida. – Receei que não me fosses dar ouvidos. Por isso mesmo é que os segui assim que os vi partir – começou a falar mais baixo. – O teu pai já não posso ajudar, mas quero salvar-te a ti, em nome dos bons dias que passámos – retirou um alicate que trazia à cintura e aproximou-se da janela. Um após o outro, começou a retirar os pregos das tábuas. Ela apressou-se até junto dele. – Antero – implorou ela –, ele tomou conta da tua filha enquanto ela crescia. Isso não significa nada para ti? Ele errou, mas é um homem bom. Não podes retribuir-lhe dessa maneira aquilo que ele fez! Antero baixou o archote. Pez bem quente pingou para o chão. Com o alicate apontou para o que estava a passar-se ali ao lado. – Não entendes? O teu pai acusou o secretário de Estado do Reino de alta traição! Falsificou documentos do Estado! Tentou derrubar o Governo, para obter benefícios para si mesmo. Ali ao lado está o vosso escravo, a esvair-se em sangue depois de ter sido ferido a tiro. Então ele não tem qualquer responsabilidade pelo que aqui está a acontecer? Não foi ele quem enganou o Rei? E o soldado a quem o teu pai acabou de desfazer o rosto? Vocês intrujaram pessoas insidiosamente. A tua família tem de pagar por isso, tal como foi ordenado pelo secretário de Estado do Reino. Leonor apressou-se a entrar na sala de estar. Aí encontrou Jerónimo. Rebolava-se numa poça de sangue e gemia entre dentes, que, com o maxilar cerrado, apertava uns contra os outros, ao mesmo tempo que pressionava ambas as mãos contra a barriga. O sangue brotava-lhe por entre os dedos e a camisa tingira-se de vermelho-escuro. Leonor atirou-se para junto dele e acariciou-lhe o rosto. – Jerónimo, lamento muito. Lamento tanto! Quando era pequenina, o negro construíra-lhe um cavalinho de baloiço, de madeira. Jogara à bola com ela. Contara-lhe histórias acerca de África. Nos últimos anos, haviam-se afastado, tornado estranhos, mas a familiaridade que os unia dos tempos da sua infância abatia-se agora sobre Leonor com uma impetuosidade que parecia tirar-lhe o fôlego. – Tens de viver! Tens de conseguir sobreviver! Ninguém cuidaria dele. Olhou para cima. O pai fora imobili-zado por dois soldados, enquanto um terceiro lhe colocava grilhões em redor dos tornozelos. Olhava para baixo com um ar horrorizado enquanto o punham a ferros. Naquele preciso momento desmoronava-se tudo aquilo que até então fora a sua vida. E Antero nada fazia! Levantou-se de um salto e correu para a sala contígua. – Deverias ter-lhes dado ordem para não atirarem! – ao dizer isto, Leonor ia batendo em Antero. – Devias ter evitado isto! Ele segurou-lhe nos pulsos e agarrou-os com força. Só então reparou que as suas mãos estavam vermelhas. Tinha nelas o sangue de Jerónimo. – Odeio-te, Antero, odeio-te! Este continuava a segurar-lhe os pulsos. O olhar dele fixou-se penetrantemente no dela. – Sim, faz isso, odeia-me. E, se amas o teu pai, vais agora saltar por essa janela e fugir. Esfrega sujidade na cara, rasga as roupas e nunca mais digas alto o nome Velho da Rocha Oldenberg. Abri a janela para poderes fugir. Isso é tudo o que posso fazer por ti e por ele. Dito isto, largou-a. – És um monstro! Deu-lhe um estalo, tendo ele ficado com sangue na face. Passou pela abertura na janela para o exterior da casa e correu colina acima. Atrás de si, ouviu os soldados a gritarem: – Pare já onde está! Ela está a fugir, a filha escapou-se! *** Uma leitosa luminosidade matinal espalhava-se sobre o Mar da Palha. Os mastros de navios afundados elevavam-se acima da linha de água. Velame boiava nas vagas, inchado como bolhas que se formassem num corpo doente. Onde antes estavam ancorados os cinquenta navios da frota do Brasil, havia agora dois galeões e cinco caravelas a flutuarem, inclinados, e envoltos em destroços, pranchas de madeira rachadas, restos de navios destruídos à deriva. Mais adiante, no porto de guerra, tentava-se a custo, com recurso a cordas e roldanas, endireitar uma corveta que sofrera um rombo no casco. Os gritos dos trabalhadores e dos soldados ressoavam por sobre a água. Uma outra corveta parecia praticamente incólume, à exceção de algumas escotilhas para as peças de artilharia, que haviam sido destruídas. De certeza que os canhões que ali faltavam teriam caído ao fundo do rio, onde estariam enterrados na lama. No mastro da corveta fora içada a bandeira branca com o escudo encimado por uma coroa que representava o Reino de Portugal. Leonor acocorara-se por detrás de uns barris alinhados em frente ao cais. Fediam a bolacha de munição. Escondida entre dois deles assistiu à aproximação dos condenados. O pai seguia no fim da fila mais próxima dela. Uma corrente de ferro ligava os seus tornozelos aos dos outros homens. Apenas podia dar pequenos passos de cada vez. Leonor olhou para o navio. Os soldados iam levar o pai para bordo, seguindo depois, por entre aquele cemitério de navios, para longe dali. Era uma viagem sem regresso. Leonor julgava quase sufocar com o sentimento de culpa que, como um nó corrediço em redor do pescoço, lhe apertava a garganta. Fora ela quem urdira a intriga que se desenrolara na Corte. Era sua a responsabilidade pelo destino do pai. As correntes nos pés tilintavam e o pai ficou o olhar o Mar da Palha. De repente, parou e desatou a gritar: – Aquele é o Sol Dourado! – tentou saltar, mas foi retido pelas correntes. Leonor olhou para o horizonte. Um navio aproximava-se de Lisboa, vindo do Atlântico. As suas velas estavam magnificamente enfunadas. O pai conseguira semear a desordem na fila dos prisioneiros, que avançava, pois deixara de acompanhar os demais, tentava afastar-se, aproximar-se da margem. Os soldados derrubaram-no com coronhadas. Soltou um gemido. Voltou prontamente a levantar-se e exclamou: – O meu navio! Perplexos, também os soldados olharam na direção do horizonte. O navio ia-se aproximando com a lentidão de um pôr do Sol. Também os homens que trabalhavam no porto de guerra se deram conta. Rejubilaram, tiravam os casacos e mandavam-nos ao ar. Entretanto, da corveta foi lançado à água um escaler. – O que transporta ele? – perguntou o sargento ao barão. – Trigo. Oito mil sacas de trigo siciliano. – Trate já de participar isto – ordenou o sargento a um dos seus soldados. – A carga do navio tem de ser imediatamente confiscada. O soldado afastou-se. Enquanto o escaler da corveta se dirigia à margem a poder de remos, o Sol Dourado navegava na direção do porto. Era um galeão de construção à espanhola, com o gurupés à frente, tão inclinado que parecia mergulhar, como se quisesse pescar à linha. Tinha quatro mastros e peças de artilharia que brilhavam ao Sol. O escaler da corveta atracou junto ao cais destruído. Os soldados empurraram os prisioneiros, para que estes avançassem. – Vá, entrem! – ordenaram. Pelo rosto de Leonor corriam lágrimas amargas. Queria saltar donde estava e gritar que amava o pai. Queria ir ter com ele a correr, lançar-se-lhe ao pescoço, abraçá-lo e pedir-lhe perdão. Porém, manteve-se no seu esconderijo. Se se mostrasse, acabaria por ser acrescentada ao grupo de gente acorrentada que ali seguia. A fila dos prisioneiros subiu um pequeno monte de cascalho e entrou para o escaler. De um lado, para além dos condenados, seguiam soldados. Com o peso de tanta gente, a embarcação quase parecia afundar-se. Ia baloiçando. O Sol Dourado recolhia as velas. Tinha um aspecto magnífico, algo escapara ileso a toda aquela destruição. O escaler com os prisioneiros afastou-se do cais. Os remadores deram meia volta e dirigiram-no para a corveta. O pai pôs-se de pé, a olhar para o seu galeão. Os barris começaram a ser carregados. Leonor ergueu-se e perguntou a um dos estivadores: – Para onde vai a corveta? – Para África. Se os piratas ouvirem falar do que aconteceu a Lisboa, os ataques aos navios ainda vão duplicar. O Duarte vai combater os piratas. Julgo que, antes disso, ainda carregará uns canhões espanhóis. – E os prisioneiros? Ele deteve-se e pôs-se a observá-la com atenção. – O meu pai está entre eles – disse ela, baixinho. – Serão desembarcados em Angola. SEGUNDO LIVRO 29
Na noite de 8 de novembro, os habitantes de Lisboa foram
acordados por um violento abalo. Em pânico, rastejaram para fora dos buracos onde se abrigavam, deixaram as barracas e as ruínas e correram para o meio das ruas. No entanto, mais não houve do que esse único tremor de terra. Uma semana mais tarde, o patriarca conduziu uma procissão através das ruas ainda meio obstruídas. O rei e a rainha participaram. Dezenas de milhares de pessoas seguiram o seu exemplo. Avançaram desde a Ermida de São Joaquim, em Alcântara, colina acima, até à Igreja das Necessidades e suplicaram misericórdia a Deus, bem como a remissão dos seus pecados. Quando, depois disso, a terra permaneceu sem tremer durante três semanas, a disposição das pessoas na cidade melhorou substancialmente. A 11 de Dezembro ocorreu mais um forte terramoto. Aos gritos, cheias de medo, as pessoas fugiram então para os campos. Muitas delas só regressaram alguns dias mais tarde e porque a isso foram obrigadas pelos soldados. – É um erro voltarmos já às tarefas do costume – começaram os Jesuítas a pregar nas ruas. – Que se pretende afinal com a reconstrução da cidade, começada já de modo quase mecânico? Primeiro, é preciso fazer penitência! Deus está irado. Só deixará de ter Lisboa na mira quando desistirmos dos nossos comportamentos depravados e passarmos a não contar exclusivamente com as nossas próprias forças. A nobreza ajudou a Companhia de Jesus. Os nobres detestavam o novo secretário de Estado do Reino, que pretendia pôr fim aos seus privilégios, à isenção de impostos de que gozavam, aos cargos que ocupavam e aos favores de que eram beneficiários. O facto de serem os Jesuítas a instigarem abertamente a agitação contra o secretário de Estado era algo que convinha aos nobres, que tratavam de fornecer dinheiro e materiais de construção à Companhia de Jesus. Sebastião de Carvalho, porém, não gozava de aceitação entre os membros da nobreza. Falava mesmo de retirar todos os poderes à Inquisição. Esta instituição deveria acabar com as suas condenações de pessoas resultantes de sessões que decorriam à porta fechada; ao invés disso exigia que passassem a ser conduzidos processos civis de cariz público. Pretendia que houvesse liberdade de consciência para católicos, protestantes e judeus. Antero tornou-se o seu porta-voz. Entregou-se a acesos debates com os Jesuítas. Enquanto estes pregavam contra os protestantes, ele percorria as listas com o registo dos mortos e demonstrava-lhes que apenas vinte por cento de todos os protestantes residentes em Lisboa haviam sucumbido ao tremor de terra. Assim, ficava provado que Deus não tinha pretendido castigar os «hereges», como eles lhes chamavam. Era absurdo querer representar as vítimas de uma catástrofe natural como pecadores castigados. Desde a noite em que o barão fora detido que Antero andava agitado. A fúria ia ardendo lentamente no seu interior. Dormia mal e trabalhava com obstinação, tomava apontamentos, fazia medições, experimentava, percorria e voltava a percorrer as ruínas, provava a água dos chafarizes e observava os animais. Fez cálculos no sentido de determinar qual seria a fase da Lua aquando da ocorrência de anteriores tremores de terra, com vista descobrir a possibilidade de alguma correlação. Explorava cada ideia que lhe ocorria e examinava a credibilidade que a mesma poderia merecer. Certa vez, em Alfama, foi capaz de convencer não apenas as pessoas que escutavam como também o próprio representante da Companhia de Jesus. – Como ousa criticar os intentos de Deus? – perguntou o seu opositor. – Ele é infalível e não um homem perdido, imperfeito. Não se coloque acima Dele, questionando os Seus desígnios! Não lhe compete a si fazê-lo. – É claro que o questiono – declarou Antero. – Quero saber por que razão Ele nos exige este sofrimento. Quero saber o que terá pretendido com isto. – Se daqui em diante conduzirmos a nossa vida longe do pecado, Deus proteger-nos-á de novas infelicidades – disse o jesuíta. – São então só os pecadores que por ele são castigados? – perguntou Antero com aspereza. – Se Deus eliminou os malandros através do tremor de terra, por que razão destruiu os seus próprios santuários? As igrejas, tal como as casas de habitação, foram também vítimas da catástrofe. Não foi Deus que aqui agiu, mas sim uma força da natureza, incapaz de distinguir os criminosos dos benfeitores. Passou por todos nós e varreu Lisboa como se fosse uma tempestade. – Errado, meu amigo. Uma das imagens do Santo António de Pádua foi encontrada ilesa. Testemunhas há que afirmam tê-la visto a chorar! Uma outra sobreviveu na igreja em que o santo foi batizado, toda a capela lateral da mesma foi poupada, ao passo que o resto do edifício ardeu com tal intensidade que até a prata e o ouro da sua ornamentação derreteram. Um jesuíta mais velho e de cabelos brancos destacou-se do grupo de pessoas que assistia, pousou a mão no ombro do seu colega e disse: – Padre, por vezes é melhor ficar calado. Não sabe como responder, nem tão-pouco o sei eu, por isso ajude o homem e cale- se. Os exercícios dos Jesuítas começaram a ter grande aceitação. Enquanto Antero não conseguisse descobrir qual era exatamente a origem dos tremores de terra, não poderia ganhar este combate. Passava noites em claro a meditar no assunto. Que fatores seriam decisivos na ocorrência de um sismo em determinado lugar? Jamais havia a terra tremido com uma tal força como acontecera em Lisboa e isso deveria ter uma razão. E como se explicava o facto de ao grande terramoto se seguirem depois outros abalos? Uma onda que se acalmara e deixara de se propagar já há semanas não se agitava de novo sem razão aparente. Escrevia cartas a cientistas de todo o mundo e enviava-as por intermédio dos mensageiros reais. Com as próprias mãos construiu uma caixa de madeira, encheu-a de terra e desferiu-lhe golpes de diferentes maneiras. As fissuras que surgiam na terra que fora firmemente calcada foram por ele registadas, desenhadas e comparadas. Em busca de semelhanças, leu os relatos acerca de todos os tremores de terra de que havia relatos históricos. Teria aquele fenómeno natural alguma relação com o tempo atmosférico, seria este um desencadeador, uma condição necessária à ocorrência? Seria precedido por alguma praga de serpentes? Ou de lagartas, ou talvez de um número anormalmente grande de ratazanas? Não via Samira com frequência, muito embora vivesse com ela e com uma empregada debaixo do mesmo teto. Quando ia ter com Samira ao quarto, esta punha-se com teimosias, irritando-o com atitudes descaradas e desdizendo-o em tudo o que ele lhe contasse. Sabia que ela estava furiosa com ele, que se sentia desprezada e que não arranjava outra maneira de lidar com essa fúria, uma vez que o amava muito. Ele sabia-o bem, porém a tarefa que tinha diante de si absorvia toda a sua atenção, naquela altura não podia dar-lhe aquilo de que Samira precisava, ainda que se detestasse por isso mesmo. Também pensava em Leonor. Ficara tão desiludida com ele! E nem sequer sabia se ainda estaria viva. Por outro lado, com a sua avidez e egoísmo, ela mesma e o barão haviam provocado danos consideráveis. Tinham feito por merecer aquele castigo. Por vezes parecia a Antero que, no seu interior, tudo se resumia a um imenso e doloroso nó. Começaram a chegar cartas de resposta. A sua teoria de que um tremor de terra se propagava como se fosse uma onda não mereceu o crédito de nenhum dos outros cientistas. Apesar disso, ia dar sempre ao mesmo: dispunha entretanto de dezassete relatos da hora exata em que noutras cidades se haviam sentido os fortes abalos. As horas de que dispunha correspondiam a círculos concêntricos, sendo que esse centro se encontrava a 124 milhas a oeste do cabo de São Vicente, a sudoeste de Lisboa, no oceano Atlântico. Teria sido a partir daí que o terramoto se propagara? Que haveria ali no meio do mar? Antero estruturava os seus pensamentos em grandes quadros. Ao fazê-lo, foi-se-lhe tornando claro aquilo que deveria empreender de seguida: teria de escrever um livro. Essa obra iria convencer as grandes inteligências de então, a elite intelectual, a qual, por sua vez, transmitiria estas novas ideias ao resto da população. Noite após noite, sentava-se ele agora à secretária, a trabalhar à luz de velas, e desenvolvia o conceito de cada capítulo. A primeira versão era escrita a lápis, ao passo que a versão final era já passada com a pena. Em diversos pontos da casa que o rei lhe havia atribuído escondia diferentes partes do seu trabalho: a primeira versão numa caixa de chá junto às especiarias, na cozinha, a versão final debaixo das escadas, por detrás de uma tábua que estava solta. O facto de andar entretido com a escrita deixava-o eufórico. Imaginava a grande agitação que a publicação do seu livro iria desencadear. No entanto, o rei começou a perder a paciência com ele. As suas simpatias voltaram a dirigir-se para os Jesuítas. A pedido do rei, o Papa Bento XIV determinou, em Maio de 1756, que o terceiro superior geral dos Jesuítas, São Francisco Bórgia, passasse a ser o santo cuja ajuda se deveria invocar caso ocorresse um terramoto. Em Coimbra, onde se situava o mais antigo colégio jesuíta de Portugal, foram celebradas festas religiosas em sua honra. De repente, o rei chegou até a afirmar existir um parentesco entre ele mesmo e São Francisco Bórgia. Durante nove meses, o rei Dom José permaneceu nas suas tendas nos jardins diante do Palácio de Belém. Depois disso mudou- se para um edifício de madeira que pretensamente seria capaz de resistir a sismos, edifício esse erigido na Ajuda, um pouco a norte de Belém, e que não tardou a ser conhecido como a Real Barraca. Tanto o secretário de Estado do Reino como o próprio Antero instavam o rei a regressar ao seu palácio, com vista a dar um exemplo e encorajar o povo. A casa de madeira representava o medo, argumentavam eles, e o rei deveria mostrar ao povo que confiava em Deus. Só que o rei Dom José não lhes dava ouvidos. Foi ao aproximar-se o dia 1 de novembro de 1756, altura em que faria um ano desde que ocorrera o grande terramoto, que Antero voltou pela primeira vez a ouvir falar do nome de Malagrida. Os Jesuítas anunciaram que Gabriel Malagrida, após ter recebido uma visão de Deus, profetizou que a 1 de novembro, e como castigo pela obstinação demonstrada por toda a cidade de Lisboa, ocorreria um novo tremor de terra, igualmente destruidor. Além disso, um maremoto mataria muitas pessoas e depois o Sol queimaria tudo o que por ali se encontrasse, de tal modo que onde agora estava Lisboa iria depois restar pouco mais do que um pedaço de terreno enegrecido. Só mediante uma grandiosa acção de penitência é que se poderia evitar o castigo de Deus. A Gazeta de Lisboa, cujos prelos haviam voltado a trabalhar graças à intervenção do secretário de Estado do Reino, publicou essa mesma profecia, muito embora este o tivesse proibido expressamente. Em consequência disso, espalhou-se o pânico entre a população. Foram aos milhares as pessoas que quiseram sair da cidade: os operários abandonaram as obras, os pescadores afastaram-se do rio, os padeiros foram-se embora das padarias acabadas de construir. Uma grande parte dos soldados estava no Algarve para combaterem a ameaça dos piratas africanos. O secretário de Estado do Reino voltou a chamar cinco companhias montadas que estavam aquarteladas em Loulé e Faro, dando ordens para que a cidade fosse cercada por elas. Já ninguém conseguia sair de Lisboa. A população lastimava-se. Injuriava o secretário de Estado do Reino, considerando-o demoníaco, dizendo que queria enviá-los a todos para o Inferno. Havia quem incitasse os soldados a amotinarem-se. Até mesmo Antero não pôde deixar de sentir algum receio pelo dia do aniversário da grande catástrofe. No entanto, o dia 1 de novembro chegou e passou-se, e nada aconteceu. De repente, todos troçavam já da ansiedade que os seus vizinhos haviam sentido. O secretário de Estado do Reino conseguiu recuperar o apoio da população. Os topógrafos e os engenheiros puseram novamente mãos à obra e realizaram inventários dos proprietários de terrenos. Manuel da Maia, o principal engenheiro e funcionário do Arquivo Real da Torre do Tombo, conduziu o trabalho deles. Mandou trazer madeira e pedra de todo o Reino e tomou medidas para impedir todos os projectos de construção que não correspondessem aos novos planos para a cidade. Para as obras que ele dirigia, os operários coziam tijolos e azulejos nos fornos. Um ano e meio depois do terramoto já um milhar de casas havia sido construído. A área que se estendia entre o Tejo e a Praça do Rossio fora aplanada. Onde antes tinham estado ruas e travessas sinuosas havia agora ruas amplas que seguiam bem a direito, orientadas de norte para sul. Os passeios foram calcetados. Com as suas arcadas e os telhados triangulares, que se assemelhavam a tendas de pedra, as novas casas pareciam templos da Antiguidade. Os chafarizes obstruídos pelo entulho foram reparados. O Terreiro do Paço passou a chamar-se Praça do Comércio. Apesar dos progressos visíveis, os Jesuítas conseguiram que do secretário de Estado do Reino se impusesse uma imagem de um homem ambicioso, um desapaixonado sacrílego, que sentia indiferença em relação ao povo. Conseguiram até justificá-lo: outrora, os pobres e os mendigos eram considerados criaturas de Deus e as pessoas sentiam-se na obrigação de os ajudar. Agora, porém, os pobres eram encarados como ameaçadores seres associais. Era frequente haver detenções. Os Jesuítas, pelo contrário, eram aqueles que, através das suas fervorosas orações, tinham conseguido demover Deus de aplicar novos castigos à cidade de Lisboa. Três anos volvidos após o tremor de terra, alguém assaltou a casa de Antero enquanto este recolhia amostras de água dos chafarizes. Quando regressou, deu-se conta de que faltava não só a correspondência trocada com outros cientistas, mas também os livros. Tudo havia sido revolvido. Com o coração a bater fortemente, foi de imediato verificar os esconderijos na cozinha e debaixo das escadas, mas os ladrões não tinham conseguido achar o manuscrito do seu livro. Pôs-se a caminho de Belém e solicitou uma audiência ao rei. Dom José recebeu-o, se bem que, tal como acontecera ao longo de todo o último meio ano, não fosse grande a vontade de falar com Antero. – Já conseguiu finalmente descobrir o que se passou com aquele maldito tremor de terra? – começou ele logo, antes mesmo de qualquer cumprimento. – Estou quase a lá chegar, Majestade – respondeu Antero. – Isso é só palavreado! – aborrecido, o rei abanou a mão no ar. – A minha paciência esgotou-se. Vou colocar-me ao lado dos Jesuítas e pôr um fim às especulações. Não precisa de abrir assim os olhos, tivesse trabalhado com mais afinco. Há que fazer com que regresse a calma! Sei bem aquilo que o meu povo reclama de mim. – Estou a preparar a publicação de um livro, daqui a poucos meses será possível ler as surpreendentes considerações que farei! – apressou-se Antero a dizer. – É claro que dedicarei essa obra a Vossa Majestade. Irá ser lida por todo o mundo e explicará às pessoas os fenómenos que originam os tremores de terra. – Há anos que ando a financiá-lo. E que recebi eu em troca? Sempre e só desculpas para protelar os resultados! Isso é apenas mais uma das suas tentativas de ganhar algum tempo. – De modo algum, Majestade. Hoje a minha casa foi assaltada. Tenho a certeza de que Gabriel Malagrida está por detrás disso. Deve ter sabido do livro que ando a escrever. A correspondência que tenho mantido com outros cientistas foi também roubada. Malagrida quer evitar a todo o custo que eu consiga terminar esse manuscrito. Isso só comprova como ele teme aquilo que nele será revelado! – Você está sempre a inventar fantasmas. Já me conseguiu convencer vezes de mais das suas inquietações. Que quer afinal de mim? Dinheiro não lhe dou mais, nem pensar! Antero engoliu em seco. Ao que parecia, estavam contados os dias que poderia dedicar à investigação e à escrita. – Por favor, dê ordem para que sejam colocados soldados diante de minha casa. Preciso de terminar a redação do livro sem mais interrupções. – De que servem os soldados? Se alguém estiver de olho em si, poderá surpreendê-lo numa ruela escura, não tem de ir ter consigo a casa. – Matar-me ou levar-me preso só atrairia ainda mais atenção para a mensagem que tenho para transmitir. Malagrida sabe bem disso. Torná-la-ia um legado com um efeito ainda mais explosivo, o que a poria tanto mais depressa na boca de toda a gente. Não, ele quer é pôr as mãos no manuscrito. É por isso que preciso de proteção. O rei esfregou o queixo duplo e fitou-o. – Escute bem. Vai receber os soldados e dispor de mais quatro semanas certinhas. Passado esse tempo, quero ter o livro nas minhas mãos. Se não o conseguir até essa altura, deixo-o entregue a si mesmo. – Quatro semanas! Majestade, como irei eu conseguir… – Poupe-me as suas objeções. É a última concessão que lhe faço. Desta vez não me compadecerei mais. Vá, vá-se daqui! Já me aborrece vê-lo. Durante o caminho de regresso à cidade, Antero estava tão irritado que mal reparou nas andorinhas que cruzavam o céu e no cheiro adocicado dos campos. Aquele quente dia de Agosto já lhe fora estragado por completo. O rei Dom José estava a tratá-lo como se fosse um pedinte! E, no entanto, até mesmo a Royal Society demonstrara interesse por aquilo que ele lhe comunicava, precisamente a academia a que Sir Isaac Newton pertencera, bem como Robert Boyle e James Cook. Adam Smith convidara-o a ir a Londres no Outono, o mesmo Adam Smith que, com vinte e sete anos, há precisamente oito, se tornara professor de lógica e, pouco depois, de filosofia moral, na Universidade de Glasgow, e um dos primeiros que ensinavam em inglês, ao invés de fazê-lo em latim. Dizia-se que as suas aulas apesar de bastante exigentes, ainda assim eram sempre muito concorridas. Os mais prestigiados investigadores do seu tempo queriam conhecê-lo, a ele, Antero. Só aquele casmurro do rei é que lhe colocava entraves no caminho. Já de regresso à cidade, foi ao banco levantar dinheiro, cinco cruzados de ouro, um oitavo de tudo aquilo que tinha. A Rua Áurea encontrava-se limpa e desimpedida. Iluminadas pela luz do Sol, as fachadas de pedra branca resplandeciam. Entretanto havia em toda a cidade já cerca de dez mil casas de pé. Um terço de Lisboa estava de novo habitável. Havia lojas em abundância, só as vitrinas é que estavam vazias. De início, tinham chegado remessas de ajuda de outros países soberanos: manteiga, artigos de pastelaria, arroz, farinha de trigo, carne de vaca da Irlanda, arenques fumados, mas também botas, picaretas e pás. Tudo isso, enviado pelo rei britânico, tinha chegado a Lisboa a bordo do HMS Hampton Court, no dia 31 de Dezembro de 1755, precisamente o último do ano da catástrofe. Quando o Parlamento inglês tomou conhecimento das condições em que Lisboa se encontrava, concedeu de imediato a Portugal uma ajuda suplementar, remetendo a quantia de cem mil libras. Também o rei de Espanha ajudou generosamente com dinheiro e comida, para além de aligeirar os controlos fronteiriços, de modo a que os bens pudessem entrar em Portugal com mais facilidade. De Hamburgo, a Liga Hanseática enviou três navios com madeira, telhas, ferro e ferramentas, para além de um pequeno donativo de vinho e açúcar para o rei. Entretanto, porém, já tudo isso fora consumido. Muitos dos comerciantes nem sequer levavam as suas mercadorias para Lisboa. Aquela cidade, outrora tão rica, era agora incapaz de pagar pelas mercadorias de que precisava, deixara de ser um destino que valesse a pena. Portugal estava habituado a poder comprar aquilo de que necessitava. Sem dinheiro, o abastecimento da população entrou em colapso. Ainda assim, o secretário de Estado do Reino promovia a reconstrução. Os novos edifícios deveriam acabar por atrair os comerciantes. Pretendia-se que estrangeiros se estabelecessem em Lisboa e investissem na cidade. Esse era um desígnio mais importante do que matar a fome dos Portugueses. Antero passou junto a uma estalagem que se chamava A Coroa, erigida sobre as fundações de um café que fora destruído. Os azulejos verdes que cobriam a parte inferior das paredes de alvenaria prestavam testemunho dessa outra construção. Muitos deles haviam estalado sob o efeito do forte calor dos incêndios ou tinham sido atingidos por pedras resultantes de desabamentos. Acima dos azulejos, as paredes eram brancas, limpas e resplandecentes, e sobre a porta fora pintada, com tinta dourada uma coroa. Uma porta mais pequena diante dessa conduzia ao interior da estalagem. Cheirava a peixe grelhado. Antero gostaria de ter podido entrar, lá dentro o ambiente era sempre fresco, almoçar ali seria um alívio naquele dia de verão quente e seco, ainda que os preços que lá se praticavam fossem terrivelmente altos. No entanto, tinha de tratar de outros assuntos. Era preciso proteger o manuscrito. Os soldados colocados à porta de sua casa não eram suficientes. Para o caso de alguém conseguir entrar-lhe em casa, Antero precisava de pistolas. Ao longo das semanas seguintes, ele mesmo seria o melhor guarda. Iria conseguir dormir pouco. A um canto da estalagem estava um homem que falava com um grupo de pessoas reunidas em seu redor. As mangas da sua camisa, arregaçadas, mostravam os seus antebraços densamente cobertos de pelos. – O secretário de Estado do Reino… – disse ele, introduzindo uma pausa deveras teatral, durante a qual observava as expressões nos rostos dos que o escutavam – encerrou a Universidade de Évora. Um murmúrio de espanto atravessou todo o grupo. Foi então que os punhos se cerraram. – O secretário de Estado só faz isso por recear! – exclamou um deles. – Medinho é o que ele tem! – Sim, ele odeia os Jesuítas – o orador olhou com um ar sério para o seu público. – Sei de fonte segura que enviou o seu irmão em missão secreta junto do Papa, para que este lhe conte mentiras acerca da Companhia de Jesus, para lhe dizer que estaríamos a tentar usurpar o poder do rei e a revelar uma pouco salutar ambição de obter riquezas. – Falar assim acerca dos fiéis Jesuítas constitui uma aleivosia contra a Igreja! – disse uma mulher. O jesuíta esboçou um sorriso que denotava raiva e acenou afirmativamente com a cabeça. – E qual a consequência disso? Estão a retirar-nos as tarefas que desde sempre nos couberam. Como o secretário de Estado do Reino nos odeia, já não podemos pregar, nem sequer ouvir em confissão seja quem for. E dão a isso o nome de reformas. Antero teve de forçar-se a não continuar a olhar, pois já alguns dos membros daquele grupo se haviam virado na sua direção. Continuou a andar. Se o rei se colocasse ao lado daqueles agitadores, daria uma forte machadada nas costas do seu progressista secretário de Estado do Reino. Há semanas que o povo andava irado, pois o secretário de Estado tinha anunciado que pretendia abolir as leis sobre a pureza do sangue e equiparar os direitos dos judeus aos dos cristãos. No decurso do ano anterior havia, no Brasil, retirado o poder aos Jesuítas e, mediante uma lei, acabara com as suas missões no Pará. Sebastião de Carvalho já só os autorizava a permanecer nas aldeias do Brasil na qualidade de padres comuns. Quando quiseram retirar as figuras dos santos das igrejas, foram informados de que estas tinham passado a ser propriedade do Estado. Em consequência disso, haviam pegado em armas e instigado os índios contra Portugal. No ano passado, em Setembro, depois de ter recebido a notícia dessas ocorrências, o rei expulsara os confessores jesuítas da família real, pondo-os fora de casa, no meio da rua, às quatro da madrugada. Desde então, os consultores espirituais do rei eram monges franciscanos, agostinhos e carmelitas. No entanto, ele parecia já arrependido de ter dado esse passo. Quando voltou a olhar naquela direção, Antero reparou que o homem, sentado no canto da sala, pegou num pedaço de papel. – Eis o que o padre Malagrida escreveu ao novo Papa Clemente! – o jesuíta pigarreou e começou a ler: – «Os arautos da palavra de Deus, expulsos! O arquiteto desta catástrofe é o secretário de Estado do Reino Sebastião de Carvalho e Melo, que possui enorme influência na Corte. Cheio de ódio, combate a nossa comunidade. Se, com um só golpe, pudesse decapitar todos os jesuítas, alegremente o faria.» Antero sentia uma imensa revolta no seu interior. Aquele discurso difamatório não era o primeiro que ouvia. Há já duas semanas que andava sempre a escutar aquele género de conversa. Os Jesuítas tinham saído dos seus esconderijos e andavam a incitar a população. Durante três anos, Malagrida estivera calado. Decerto, não o estivera por falta de vontade de falar. Ao que parecia, o jesuíta preparava um contragolpe. Mas também ele, Antero, estava praticamente a conseguir aquilo que pretendia. Quando o seu livro fosse finalmente impresso, não mais seria possível deter o seu efeito. Teria apenas de escrever rapidamente os últimos capítulos e continuar a escondê-lo dos cúmplices de Malagrida até que tudo ficasse pronto. Talvez as capacidades que havia adquirido quando era contrabandista viessem a revelar-se úteis na realização desse intento. Mais quatro ou cinco semanas a escrever dia e noite e, lograsse ele aguentar esse ritmo de trabalho, iria também conseguir, de uma vez por todas, conquistar a supremacia e impor a sua explicação dos tremores de terra. Por todo o lado, havia na cidade gente sem nada de seu, que pretendia melhorar a sua sorte e tentava escapar à fome, recorrendo a estratagemas, alguns honestos, outros porventura menos sérios. Eram subterfúgios que podiam começar na recolha de garrafas de vinho vazias, que eram entregues aos vinhateiros em troca de um pequeno valor, mas que não se detinham perante o roubo de carteiras. Começara já a reencontrar rostos conhecidos de há muito entre os sobreviventes do terramoto. Recetadores, com os quais, outrora, quando era contrabandista, fizera negócio. Vigaristas que já antes da catástrofe se dedicavam a negócios sujos. Os seus moços de recados andavam pelas esquinas como dantes, tomavam nota das casas onde havia algo que se pudesse levar, entendendo-se através de sinais secretos feitos com as mãos. Antero mantinha-se afastado desse mundo, mas aquilo que observava levava-o a pensar que, em tempos de necessidade como aqueles em que viviam, o submundo parecia florescer. A escassez poderia, obviamente, proporcionar bons negócios. Era alto o valor de um pedaço de carne, de um relógio roubado, de dois ovos abarbatados algures ou de um chapéu alto. Alguns dos ladrões reconheciam Antero. Olhavam-no diretamente nos olhos, sem que o rosto revelasse qualquer expressão, cumprimentavam-no com não mais do que um baloiçar do pé ou um movimento quase impercetível das mãos que pendiam frouxamente. Parou diante de uma casa que havia sido construída com pedras retiradas dos destroços. Ao longo das últimas semanas vira com alguma frequência larápios a entrarem para ali. A poeirenta parede da frente não lhe inspirava muita confiança. Com a mão, deu uma pancada na porta, que se abriu de imediato. Lá dentro o ambiente estava escuro e fresco, mas com um fedor a vísceras a apodrecer. Junto a umas escadas viu peles de animais penduradas a secar, à direita destas, uma sala com mesas de pedra. Do teto pingava sangue. Do andar superior ouvia-se o ruído de facas que cortavam carne e rachavam ossos. Era um açougue. O facto de não haver ali soldados de guarda veio confirmar a sua suspeita. Nos dias que corriam, a carne valia tanto como o ouro, mas, no submundo de Lisboa, qualquer um sabia que com aqueles que tinham tomado conta desta casa era melhor não se meter. Subiu as escadas. Lá em cima deu de caras com um magarefe que esquartejava um porco. Antero observou o avental manchado de sangue, os braços fortes e o nariz já partido em vários sítios. Não se lembrava do nome do tipo, mas conhecia-o de vista. O homem olhou brevemente para cima. Em redor da sua boca esboçou-se um sorriso. – Voltaste ao negócio, Jean? – Preciso de armas. O magarefe colocou de lado a cabeça do porco que acabara de separar e começou a serrar as costelas. – Vai ter com o Ruivo. Conheces? – Sim – esse recetador comprara-lhe em tempos, e por um bom preço, canela de Ceilão que ele contrabandeara. – Onde o encontro? – Fora da cidade. Lá onde têm os fornos para cozer os tijolos. – Muito bem – disse Antero, e virou-se, fazendo tenção de ir embora. – Se tiveres alguma coisa que precises de vender vem ter comigo. – Logo se vê. Antero deixou o açougue. Apressou-se a descer a rua. Ao passar por uma mulher que tentava vender fósforos a toda a gente que passava, virou para o lado. Numa casa mais à frente, dois estropiados bulhavam pelo melhor lugar para mendigar. – A esquina é minha! – repetia um deles vezes sem conta. – Desde quando? Afinal desde quando? Eu é que estive aqui ontem! – respondia-lhe o outro, enraivecido. Antero passou pelas portas da cidade. Um autêntico mar de milhares e milhares de barracas estendia-se diante dele. Os bairros de refugiados, que haviam sido instalados pelo secretário de Estado do Reino como blocos separados, cresciam sem parar e cercavam já toda a cidade. Parecia que os habitantes de Lisboa estavam a montar um cerco à sua própria cidade. Formando longas filas, artífices e operários dirigiam-se para lá, para os estaleiros das obras. Esses bairros de refugiados eram perigosos. Portugueses viviam lado a lado com espanhóis, irlandeses lado a lado com franceses, polacos lado a lado com flamengos. Todos eles passavam fome. Muitos estavam suficientemente desesperados para atacar qualquer pessoa, nem que fosse para obter apenas uma peça de roupa ou alguns trocos. Não poderia arriscar-se a vaguear por ali durante muito tempo. Antero virou junto às barracas e olhou para o céu. Orientou-se pelas colunas de fumo que os fornos para cozer tijolos emitiam. Na beira do caminho, estava uma mulher de faces encovadas a amassar pão, por pouco que Antero não a derrubava. A mulher acrescentava cinzas à massa, pois a farinha era demasiado cara para os habitantes das barracas. Um pouco mais adiante, dois rapazes carregavam feixes de lenha miúda. Um grupo de jovens magros ficou a observá-lo enquanto ele passava. Melhor seria que não estivesse assim tão bem vestido! Tivera bastante cuidado a empoeirar a peruca com pó de giz, com vista a provocar no rei uma boa impressão, para além de ter escovado a casaca. As suas botas brilhavam de terem sido engraxadas. Naquele lugar, tudo isso dava nas vistas. Era com força que o coração lhe batia no peito. Afastou-se dos jovens com passos largos e virou à esquerda numa ruela entre as barracas. Os fornos já não estavam longe dali. Parou, espantado. Aquele não era o recetador? Já há muito tempo que não o via, mas parecera-lhe que conhecia aquele tipo alto e ruivo que ali estava sentado diante da barraca e que desferia pancadas em pedras das ruínas para despegar o reboco ainda nelas preso. A sua barraca era feita com traves e esteiras de palha, o telhado não era mais do que um pedaço de lona. Era esse o aspecto que tinha a maioria das barracas ali existiam. Ficou parado diante do homem e limitou-se a dizer calmamente: – Preciso de pistolas. O Ruivo olhou para a cara de Antero. – Já há muito que não te via. – Andei ocupado. O recetador levantou-se e entrou na barraca. Sem sequer esperar que o convidassem, Antero seguiu-o. Estava escuro lá dentro. Dezenas de caixas ocupavam o espaço interior, como que à espera de ser levadas. Não vivia ali ninguém, não havia sequer lugar para estender um colchão ou pôr uma cama. A barraca era um esconderijo para artigos roubados. – São duas boas peças – disse o Ruivo, estendendo algo envolto em cabedal na direção de Antero. Com breves movimentos dos braços abriu-o. Ainda parcialmente ocultos pelo couro, os canos de duas pistolas reluziam. – Vêm com dez balas, mais os cartuchos. Antero segurou nas pistolas. Nos seus dedos sentiu o frio dos canos, onde tinham sido lavrados ornamentos. As armas eram idênticas, como se fossem gémeas. De imediato, lembrou-se de Dalila e Leonor. – Quanto queres por elas? – perguntou. – Quatro cruzados. Era menos do que esperava. Ainda assim disse: – Três. Não te dou mais do que três. – Pode ser. Enquanto Antero contava as moedas de ouro que ia retirando da sua bolsa, o Ruivo olhava-o serenamente. Recebeu-as e estendeu a Antero o resto do invólucro de couro. Antero já ia a sair, mas foi então que o Ruivo lhe disse ainda: – Na semana passada alguém perguntou por ti. Antero deu meia-volta. – Quem foi? – Está escondida ali nas barracas. Tens inimigos para quem ela esteja a trabalhar? – É bem possível. Onde a encontro? – Na terceira fila a partir daqui, na décima quarta barraca. – Obrigado. O Ruivo acenou com a cabeça. – Bem-vindo de volta. Aceito tudo, tabaco, papel, açúcar, pólvora. Antero saiu. As pistolas davam-lhe agora uma sensação de segurança. Foi passando pelas filas de barracas, até chegar à terceira, altura em que virou. Contou-as desde a esquina. Nove, dez, onze, doze, treze. Após uma breve hesitação chegou-se junto da entrada da décima quarta barraca e perguntou: – Avó? Estás aqui dentro? Não recebeu qualquer resposta. Ergueu a esteira de palha e espreitou para o interior. A barraca continha uma enxerga em mau estado e uma caixa de madeira toscamente carpinteirada onde se podia ler a inscrição «Tabaco Brasileiro». Não se via vivalma. Antero entrou e ajoelhou-se diante da caixa. Abriu-a com todas as cautelas. No seu interior estava um saco de arroz quase vazio e uma lata que cheirava a bacalhau seco. A barraca foi inundada pela luz. Alguém entrou e Antero viu uma sombra projetada na parede. Com um gesto rápido, sacou de uma das pistolas do invólucro de cabedal, virou-se e apontou-a à pessoa recém-chegada. – Antero? Diante dele viu Leonor. O cabelo, de um louro escuro, estava enredado e caía-lhe da cabeça como se fosse um trapo velho. Os olhos azuis, porém, reluziam como safiras no meio do seu rosto coberto de sujidade. – Queres dar-me um tiro? – perguntou ela. 30
Gabriel Malagrida apoiou-se numa árvore. Doíam-lhe as pernas da
subida. Não admirava que ninguém ali fosse. O caminho até lá era um tormento, e nada mais ali havia a não ser aquela mofenta ruína do palácio inacabado, que cheirava a húmidas imundícies. As paredes cobertas de musgo encontravam-se cercadas de silvas e árvores nodosas. Era como se se estivesse no pátio mais recôndito de Lisboa. Limpou a transpiração do rosto com a manga. Já se desabituara àquelas correrias. Já só costumava sair na liteira. Como se fosse um prisioneiro, andava escondido, sentava-se por detrás dos cortinados vermelhos, enquanto aqueles quatro tipos imprestáveis o baloiçavam pela cidade. Quando julgavam que ele não conseguia ouvi-los, comentavam que as barras da liteira até se curvavam, ou então queixavam-se de que as correias de cabedal lhes vincavam os ombros. Cambada de preguiçosos. Enquanto não lhe fosse revogada a ordem que o exilara em Setúbal, não lhe restava outra hipótese senão aquilo. E podia dar-se por contente que os seus contactos em Lisboa lhe permitissem chegar à cidade sem ser visto. Nas ruas só mesmo assim escondido é que podia andar. Voltou a limpar o rosto. Antes de rezar, teria primeiro de recuperar o fôlego. Chegou-se à beira da encosta. Lá em baixo avistava a Baixa com os seus novos edifícios de pedra branca, envolta por montes de destroços e ruínas de palácios, quais dentes cariados na boca de um gigante. Era essa a cidade pela qual ele tanto ansiara quando andava na selva brasileira, aquela com cujas ruas ele havia sonhado, quase tão frequentemente como com Menaggio. Era isto que restava da cidade mais importante logo a seguir a Londres, Paris e Nápoles, da que ainda não há três anos era o mais conhecido entreposto comercial do mundo. Conseguia ver o Mar da Palha. Era junto à linha do horizonte que o Tejo desaguava no Atlântico. Antes, toda aquela extensão estivera repleta de navios. Hoje, só o Sol refulgia sobre as ondas, e umas poucas naus, já velhas, estavam atracadas no porto. A maioria dos navios havia alterado as suas rotas. Eram amantes de pouca confiança. Uma gaivota pousou no chão diante dele e fitou-o, curiosa, olhando para cima. Ele chegou-se junto dela, que saltitou até à beira da encosta. Malagrida seguiu-a. A gaivota estendeu as asas e foi ter com as outras da sua espécie que revoluteavam sobre a cidade. As terras em redor de Lisboa estavam repletas de barracas, semelhantes a pústulas castanhas. Eram às dezenas de milhares que aí viviam, aqueles a quem o terramoto tudo tirara. Os nobres em Belém, Setúbal e na Baixa, por seu turno, esses já tinham voltado a ler jornais. Bebiam café com leite e açúcar e jogavam bilhar. Nunca ficavam a perder. E também os judeus se tinham saído bem, uma vez que já bem antes do terramoto haviam discretamente transferido tudo o que possuíam para Londres, Amesterdão ou Ruão, para que, no caso de serem condenados em algum processo, a Inquisição não lhe deitasse a mão. Porque haviam os Jesuítas sido tão fortemente atingidos? O inimigo deles triunfara. Sebastião de Carvalho fizera com que os índios tivessem deixado de estar sob a alçada dos Jesuítas, sob o pretexto de que estes pretendiam fundar uma espécie de reino jesuíta no Brasil, um Estado autónomo. Sebastião de Carvalho encerrara a Universidade que tinham em Évora. A pouco e pouco, minava-lhes as fundações, para no fim os reduzir a um monte de escombros e pó. Os Jesuítas estavam no caminho da sua sede de poder. E ele, Gabriel, que com tanta veemência desaconselhara o rei de tornar aquele individualista o seu secretário de Estado do Reino! Confiara em que os nobres iriam conseguir impedir que ele se mantivesse no cargo. No final de contas, fora aos Jesuítas que o rei retirara o apoio, e não a ele. Existiam em Portugal centenas de homens melhores e mais merecedores do que Sebastião de Carvalho. E aqueles molengas tinham-se conformado com o facto de o rei o haver nomeado. Para não falar do próprio rei! Enquanto Sebastião de Carvalho tratava dos assuntos da governação, Dom José I entregava-se aos seus prazeres. A equitação, os jardins, o teatro, os jogos de cartas, a música: tudo isso era para ele mais importante do que o seu Reino. Só existia uma maneira de resolver a questão. O nó górdio teria de ser desfeito. Gabriel inspirou profundamente. Cerrou os punhos e voltou a desfazer esse movimento. O rei, o secretário de Estado do Reino e o desleal Antero, todos esses três iria ele esmagar com um só golpe. Arquitetara aquele plano durante anos, era perfeito. Ajoelhou-se e fechou os olhos. – Senhor dos exércitos celestes, fui eu quem levou a verdadeira fé aos índios. Ofereci-me para o sacrifício. Por que razão Te man- téns em silêncio? Eu cumpro a minha tarefa! – enfiou as mãos na terra. – A Moisés trataste Tu melhor do que a mim e Moisés era um assassino! Peço-te, por favor, meu poderoso Deus, envia-me uma visão. Deixa que eu seja o Teu profeta! Estou pronto para sê-lo. Manteve-se ajoelhado e imóvel, à espera. Pressionou as pálpebras com tanta força que parecia haver raios a dançarem-lhe diante dos olhos. Foi então que, no interior da sua cabeça, soou uma voz que lhe disse: «Seu molengão! É contigo que queres que Eu fale? Trabalha com mais afinco! Prova-Me que serves para alguma coisa!» Surgiu-lhe na mente a expressão sarcástica do rosto do seu professor particular, enrubescido de gozo e excitação, quando, com um bastão, batia nos dedos de Gabriel, uma e outra vez, até estes ficarem em ferida e sangrarem. Arregalou os olhos. Aquela voz era apenas uma invenção sua, sabia que aquele não era Deus. – Se não falares comigo – ameaçou ele –, terei de agir por minha própria iniciativa. Se assim for, eu mesmo trato do que há a tratar – Deus não reagiu. – Por favor – murmurava ele –, por favor mostra- Te a mim, só uma vez – voltou a fechar os olhos. – Se me amas, mostra-Te a mim. Nada desejo com mais veemência do que ver-Te. Preciso que me atribuas uma missão. Deus manteve-se em silêncio. Foi-se abaixo. «Não estou à altura», pensou. «Deus abandona- me porque não me esforço o suficiente.» *** Antero levantou-se. Mantinha a pistola apontada a Leonor. – Continuas sem ter aprendido nada? – o coração de Antero parecia bater aos solavancos, por estar contente de a ver. Ao mesmo tempo, porém, era como se sobre a sua pele corresse água gelada, tal a aversão que sentia. Detestava-a e, no entanto, amava- a. Queria lançar-se nos braços dela e simultaneamente desejava que a pistola estivesse carregada para que pudesse matá-la. – Que foi que os Jesuítas te ofereceram desta vez? – Já não possuo nada, Antero. Há três anos que, tal é a fome que passo, até como côdeas sujas – disse aquilo serenamente e, no entanto, as suas palavras possuíam arestas afiadas. – Queres vir novamente acusar-me de alguma coisa? De quê, desta vez? De trabalhar até ficar com as mãos calejadas? És tão presunçoso! Introduziste-te na minha barraca, remexes na minha caixa, ameaças-me, como se eu fosse uma criminosa. Tu é que devias ser acusado! Durante uns instantes ele assumiu a verdade existente nas palavras dela, sentindo as faces ruborizarem-se e aquecerem da vergonha que sentiu. No entanto, logo de seguida recordou-se de como os espiões que trabalhavam para Malagrida podiam ser bons na arte da dissimulação. Por muito que Leonor parecesse ter tomado consciência do seu aspecto miserável, a verdade é que poderia muito bem estar a representar um papel qualquer. O facto de ela se ter ido informar a respeito dele poucos dias antes do assalto não fora decerto um acaso! – Alguém entrou na minha casa. Fui roubado. Tens alguma coisa a ver com isso? – Estás a ver fantasmas. Leonor envergava o mesmo vestido com que a vira da última vez. O tecido de damasco verde apresentava-se já puído em diversos lugares. Tinha nódoas. Os botões haviam sido arrancados. Antero ficou pasmado. O seu olhar ficou preso nos contornos redondos e bem definidos de um objeto que ela trazia guardado acima do peito. – Já chegámos a isto… – comentou ele em voz baixa. – Malagrida ofereceu-te um dos seus relógios de bolso de prata. Deu dois passos rápidos em frente e agarrou no vestido de Leonor junto à orla do decote. Tentou pôr à vista o fio prateado, puxando-o para fora do decote. Contudo, não era um relógio que lá estava pendurado. Do fio pendia uma pequena caixinha azul-escura, com uma representação da deusa Afrodite. Com o seu brilho, destacava-se da pele suja de Leonor. Esta respirava depressa, Antero conseguia ver como o seu peito se elevava e voltava a descer. – Que é isso? – perguntou ele. – Já não sabes? – replicou ela, num tom que soou atormentado. – Devia saber? A caixa era um objeto caro e requintado. Os cantos da boca de Leonor tremeram e aos seus olhos arregalados assomaram lágrimas. – Foste tu que ma deste. Foi então que lhe sobreveio a recordação. Fora num dos seus primeiros encontros. Introduzira-se secretamente no palácio do barão. Apenas a lua cheia iluminava o quarto dela. Junto à janela ele oferecera-lhe uma caixinha cheia de mouches, pequenos sinais de beleza para aplicar na pele, feitos de seda, que tinham a forma de estrelas e luas. Leonor usara-os frequentemente. Quando se encontravam, ele costumava, em jeito de cumprimento e de brincadeira, tocá-la no sítio onde ela colocara o sinal. – Por que razão guardaste isso? Ela dirigiu o olhar para o chão. – Por favor, deixa-me em paz. – Afinal de contas disseste que sou presunçoso! – E apesar disso amo-te – murmurou ela. Houve nele algo que desabrochou. Engoliu em seco. – Nas tuas recordações, Julie é perfeita e ninguém consegue chegar-lhe aos calcanhares – disse-lhe ela. – Que tem isto a ver com Julie? – Sei bem que a amaste muito e que jamais permitirás que uma outra qualquer ocupe um espaço no teu coração. No entanto, esse amor que tu procuras é uma ilusão. Em breves noites, achamos que é realidade. E de cada vez chega a manhã e, com a manhã, o reconhecimento de que somos estranhos um para o outro e que essa condição de estranheza nunca desaparece por completo. Essa ânsia de perfeição e completude no amor, não há ninguém que consiga resolvê-la, Antero. – Deixa a Julie fora disso. – Mas será ela uma deusa cujo nome não possa ser pronunciado? Não havia também alturas em que ela era para ti uma estranha? Nunca te magoou? Nunca te tratou com frieza? Ela tinha com certeza hábitos que tu não suportavas. Só te esqueceste disso porque queres sonhá-la assim, sem falha alguma. Nunca se riu na companhia de outro qualquer, não a odiaste nessa altura? Antero largou-a e deu um passo atrás. – Não me vais envenenar a imagem que tenho de Julie. – Estou a abrir-te os olhos, é só isso. Refleti muito acerca de ti estes últimos anos. Creio que andas em busca de algo que não conseguirás encontrar. Achas que Dalila teria sido para ti o verdadeiro amor? Sim, ela era uma boa pessoa. Sinto saudades dela todos os dias. Mas era fraca, Antero, e em dada altura a fraqueza dela incomodar-te-ia. Era capaz de reclamar a comiseração dos outros, mesmo que só tivesse sentido ainda os indícios de uma constipação. Não dizia nada, mas olhava para nós com um ar muito miserável e ficava à espera de que tratassem dela. A Dalila era supersticiosa, sabias disso? Ela achava que as suas muitas imagens de santos, quais bonecas, a ajudavam. E a Dalila sobrestimava-se. Julgava-se mais esperta do que todos os outros. Até mesmo a «Santa Dalila» era capaz de desprezar pessoas. Eu amo a minha irmã, mas também ela não era perfeita. A certa altura irias odiá-la como me odeias a mim, porque a certa altura ela magoar-te-ia. Leonor estragava tudo com aquela conversa. Se se tivesse mantido calada, se se limitasse a olhá-lo, Antero ter-se-ia tornado mais afável. Contudo, o facto de atacar todos os demais, ao invés de admitir as suas próprias fraquezas, irritava-o. – Que estranho, são sempre os outros que cometem erros… – comentou ele. – Não preciso de te enumerar os meus. Tu vives as consequências deles. Mas a respeito de Julie e de Dalila podes entusiasmar-te a tua vida inteira, pois não haverá realidade que te destrua os sonhos. – Continuas a desmentir que colaboras com os Jesuítas? – perguntou ele com aspereza. – Achas que, se assim fosse, estaria aqui? – apontou para a enxerga esfarrapada. – Passaria fome todas as noites, de tal modo que mal consigo adormecer? – Estás a mentir. Se não continuasses a colaborar com os Jesuítas, já há muito que terias ido para junto dos teus familiares. – E estive lá. A minha prima morreu. – Mas a tua mãe continua viva e é abastada. Poderias ter voltado para a Alemanha. Leonor abanou a cabeça. – Ah, Antero! Achas que deveria ir lá para ver como ela ficaria satisfeita com a notícia de que o pai foi desterrado para Angola? Pensas que deveria ir lá conhecer o seu novo marido e ser por ele tratada como se fôssemos parte da mesma família? Ela já nos negligenciou que chegasse. Não vou lá para rastejar diante dela. Leonor emagrecera. As faces estavam cavadas. Naquele rosto mais estreito, os olhos azuis pareciam ainda maiores. Não estaria ele a ser injusto com ela? – Por vezes, acho que a vida de antes não passou de um sonho. Parece-me algo irreal. Os passeios, os cafés com as amigas, os vestidos, as comidas exóticas. É como se tudo isso não tivesse acontecido. Antero observou a boca de Leonor enquanto ela falava. Os seus lábios encantavam-no. Apesar de estar assim suja, a sua beleza não deixava de ser notória. E nela havia uma novidade. O sofrimento conferira-lhe sabedoria. Guardou a pistola no cabedal que a envolvia. – Já não me queres matar? – perguntou ela. – Não – fechou o embrulho de cabedal. – Por favor, perdoa as minhas suspeitas. Disseram-me que tinhas perguntado por mim. Ela sorriu e respondeu: – Isso é proibido? – Sou capaz de precisar da tua ajuda. Não deverás continuar a passar fome. Vem comigo para minha casa. – Para onde? – Para a Baixa. Vivo, com Samira e uma empregada, numa das novas casas brancas. Lá poderás ter o teu próprio quarto. Samira já está crescida, vais ficar espantada! E passa o dia inteiro a tagarelar e a cantar. Precisa de alguém que se ocupe dela e que a eduque. Ultimamente anda sempre com o meu lenço de bolso, quer eu lho peça a bem ou ralhe com ela, recusa-se a devolver-mo. Creio que necessita de quem fique com ela durante o dia. Sobretudo nas próximas semanas. Vou ter de trabalhar dia e noite. – As pessoas vão falar. – E porquê? Por eu contratar uma ama? Vais ter que comer, Leonor, e eu compro-te um vestido novo. – Então é isso que serei, a ama de Samira? Ele levantou-se e foi ter com ela. – Não – inclinou-se e beijou-a na boca, demoradamente e com grande intimidade. Leonor retribuiu-lho. Embora caminhasse ao lado de Antero, os habitantes da recém- construída Baixa fixavam o olhar nela com desconfiança. Os homens franziam a testa. As mulheres aguçavam o olhar, semicerrando as pálpebras, e observavam Leonor com severidade. – Esta gente não me quer por aqui – disse ela. – Eles vão respeitar-te. Eu ocupo-me disso – prendeu o embrulho com as pistolas debaixo do braço esquerdo e ofereceu-lhe o direito para ela pousar a mão. – Não te esqueças de que há três anos tinhas uma posição social superior à de muitas dessas pessoas. Era bem verdade. Há três anos ela pintava o rosto de modo a empalidecê-lo e desenhava a azul as linhas das veias. Mandava a criada de quarto ir buscar rouge. Tinha vinte belos vestidos por onde escolher. Há três anos deixava cair o seu lenço de bolso bordado a seda para que um cavalheiro lho pudesse levantar do chão. Agora, no entanto, era no chafariz que lavava a cara mal e parcamente com água fria, usando um dia após o outro sempre o mesmo vestido já remendado. Tinha de lutar pela sobrevivência. A mimada filha de comerciante que em tempos fora parecia-lhe agora uma pessoa diferente. Era uma rapariga pobre, que trabalhava nos fornos dos tijolos e que, tal como dezenas de milhares de outros, passava fome. Ainda bem que o pai não sabia disso. Se, no meio do calor de África, ele ainda estivesse vivo, poderia ao menos consolar- se com a ideia de que, junto da sua prima, ela estava bem provida. – Ainda coxeias – disse ela, olhando para a perna direita de Antero, que este arrastava um pouco a cada passo. Parecia não conseguir dobrar o joelho. – Sim. Uma pequena recordação do terramoto. No cruzamento que atravessavam um operário, ajoelhado, batia com um martelo envolto em farrapos, nas pedras da calçada que colocara, para lhes conferir maior firmeza. De uma das entradas do edifício ressoavam imprecações. – Que descaramento, entrar assim por aqui – ralhava alguém. – Desaparece daqui! Se te voltar a ver, mando-te prender! Uma anciã já encurvada tropeçou porta fora. – Só um pedaço de manteiga, senhor, ou um pouco de farinha! – Esquece isso! Achas que a vida é fácil para nós? A porta fechou-se atrás dela com força. A anciã permaneceu ainda ali alguns instantes e alisou os cabelos brancos, como que para compor o que restava da sua dignidade. O vento voltou a deixá-los em desalinho. Seguiu, coxeando, pela rua abaixo. Ia esticando a mão a cada uma das pessoas com quem se cruzava. Enquanto Leonor ainda ficou a vê-la afastar-se, Antero foi subindo os degraus que conduziam à entrada do edifício, com três andares. Na fachada, estavam integradas colunas, apenas como meras alusões. No último andar, havia varandas que se projetavam para a rua. Os seus balaústres estavam adornados com arabescos e flores de ferro. – Entra – disse ele depois de abrir a porta. Leonor entrou para o vestíbulo. – Como conseguiste uma casa destas? Com que dinheiro a compraste? – O rei proporciona-me um bom rendimento enquanto estou a investigar as causas dos tremores de terra. – Virando-se para o interior da casa, chamou: – Samira! Temos visitas! – Ela vai assustar-se. Estou com um aspecto horrível. Antero franziu a testa. – Já te deste conta deste cheiro? A empregada deixou a comida queimar. Inclinou-se e pegou num dos brinquedos, um cavalo de madeira. – Bento! – chamou ele, mas o silêncio reinava naquela casa. Ao pé de Leonor havia uma porta encostada. – A cozinha é aqui? – empurrou a porta. O cheiro dos legumes queimados era quase insuportável. Um caco quebrou-se debaixo das solas dos seus sapatos. Olhou para o chão. Havia loiça partida espalhada por todo o lado. Numa frigideira, sobre o fogão, estavam dois pedaços de comida enegrecidos. – Antero, ela ainda tem a comida no fogão. Já há muito tempo que esta empregada trabalha para ti? A porta voltou a abrir-se. Antero ficou parado junto à ombreira. Olhou em redor da cozinha. Engoliu em seco. O seu rosto empalideceu. – Vais mandá-la embora, não? – perguntou ela. – Senti-me demasiado seguro – murmurou ele. – Que queres dizer com isso? Achas que houve ladrões que...? – Malagrida ficou à espera de que eu me desleixasse. 31
Um verme forçou a entrada através do pescoço de Bento. Foi-se
introduzindo cada vez mais pelo seu interior, chegou ao estômago e começou a devorar-lhe as entranhas. Dava picadas dolorosas. O verme ia dando dentadas. Bento já nem conseguia respirar bem. Estava a sufocar. Voltou-se e lutou para conseguir vomitar o verme. Tal era o esforço que fazia que por pouco ia ficando sem sentidos. Algo duro bateu-lhe no flanco. Ouviu o riso de crianças. Abriu os olhos com esforço. Dobrados por cima dele estavam dois rapazes, um deles com um pau na mão, que apontava a ele. Quis levantar-se de um salto, mas as patas não lhe obedeciam. Estava deitado de lado, sobre o duro chão de pedra, e nem sequer conseguia mexer-se. Um dos rapazes sacou de uma navalha. Bento reuniu todas as forças de que dispunha e rosnou. Os rapazes assustaram-se. Lançaram fora o pau e fugiram a correr. Donde viria aquele cheiro pungente? Pestanejou. Diante do seu focinho estava uma poça de vomitado. O cheiro deixava os seus sentidos meio atordoados. Fora ele que expelira aquilo? Estirou o corpo. Por fim, foi começando a conseguir mexer as patas traseiras. Arrastou-se para mais longe daquela papa malcheirosa. Não se sentia nada bem. Ganiu. Encontrara um pedaço de carne nas traseiras do prédio e comera- o. O verme! Será que conseguira vencê-lo? As patas dianteiras de Bento estremeceram. Sentia uma sede terrível. Ergueu a cabeça. Sentia dores ao tentar esticar o pescoço. Com um solavanco levantou-se e pôs-se de pé, cambaleando depois alguns passos. Devia ter comido alguma coisa que não estava boa. Não iria sequer tocar mais naquilo que vomitara. Sentia dificuldades em andar. Estava com tonturas, mas conseguiu chegar junto da porta. A sua pequena dona tinha de ajudá-lo. Iria dar-lhe de beber. Pôs-se a ladrar. Ninguém veio abrir-lhe a porta. Voltou a ladrar. A casa permanecia em silêncio. À janela da casa vizinha assomou um vizinho que se pôs a ralhar-lhe. Bento conhecia-o. O homem não gostava que ele ladrasse. Bento baixou a cabeça e farejou. A pequena dona estivera ali, não podia ter sido há muito tempo. A pista indicava que ela saíra porta fora. A pequena dona devia ter-se ido embora sem o levar. Bento pôs-se a seguir a pista. Manteve o nariz bem junto do chão e desceu as escadas. De repente, a meio da rua perdeu a pista. Em vez desta, deu-se conta do cheiro acre de um cavalo. Se não se sentisse tão tonto…! Ergueu a cabeça. Já vira que, por vezes, as pessoas se sentavam em cima dos cavalos, ou então, entravam numa caixa, que era por eles puxada. Tinha medo destas caixas, eram rápidas e faziam muito barulho ao andar pelas ruas. Se a dona tivesse saído dali numa dessas coisas puxada por um cavalo, então poderia seguir a pista deste. Bento vasculhou o chão em busca de pistas. O cheiro a cavalo afastava-se em duas direções opostas. Optou por ir para a esquerda. Estava agitado. A sensação de tontura deixou de ser importante. Bento partiu em busca. Ia sempre verificando o chão, a ver se a pista se mantinha. Desceu a rua, virou para um dos lados, e avançou por essa rua. Havia pistas de outros cavalos, que se cruzavam com aquela, mas nenhum outro cheirava como aquele que Bento seguia: era um odor a azeitonas esmagadas e apodrecidas. Era fácil acompanhar aquela pista. Já na orla da cidade, pôs-se a beber de uma poça. Alguns passos mais adiante encontrou um pedaço de tabaco de rapé ali perdido, que cheirava a boi. Quando, seguindo pela estrada, começou a atravessar os campos, descobriu, à beira do caminho, um tufo de cabelos ruivos. Farejou-os. Tinham o maravilhoso cheiro da sua pequena dona. Como podia ela perder o seu pelo? Aquilo inquietou- o. Leonor tentou acompanhar o passo apressado de Antero. Passaram diante da oficina de um ferreiro. A agitação dele parecia acelerar tudo, o claro retinir das pancadas do martelo, o resfolegar do fole, a própria respiração de Leonor. Ainda sentia nos lábios o sabor do seu beijo. Há tanto tempo que ela ansiava por estar junto de Antero! Quantas vezes pensara nele! E eis que ele viera ter com ela, no entanto tudo agora se apresentava bem diferente daquilo com que sonhara. Acontecera algo de grave. Samira estava em perigo. Ela tinha de ajudar. Antero pisou uma poça, mas nem sequer sacudiu a água das botas. Limitou-se a continuar a andar. A chaminé lançava fumo para o ar. Leonor sentiu o cheiro de carvão a arder e de ferro em brasa. Antero cerrou os punhos. – Ele sabia, aquele filho de uma puta – disse. – Ficou à espera até que, depois do assalto, eu saísse para ir arranjar maneira de me proteger. – Que pensas fazer? – perguntou ela. – Vou libertar a Samira. E depois mato-o com as minhas próprias mãos. – Se ele raptou a Samira, deve contar que irás ter com ele. – Por isso mesmo, vou buscar soldados. Raptar uma menina de oito anos! Já devia era ter morto Malagrida mais cedo. – Antero, tu não és um assassino. – Ele raptou a minha filha! Outrora, quando ele conduziu a Julie à fogueira, fiquei a odiá-lo. Mas hoje... Vou estrangulá-lo com as minhas próprias mãos. O modo como ele pronunciou aquelas palavras entre dentes e como, ao fazê-lo, olhava em frente, ao invés de a encarar, provocou- lhe receio. – Antero, por favor não faças nada de irrefletido – disse Leonor. Contraiu os músculos do maxilar. Continuou a andar em silêncio. – Aonde nos dirigimos? – perguntou ela. – Ao secretário de Estado do Reino. O rei não está muito satisfeito comigo. Diante deles estava a ser construída uma casa. Com a ajuda de um sistema de roldanas, os operários içavam um bloco de pedra branca para o terceiro andar. O andaime, sobre o qual se equilibravam, vacilava. – Não posso aparecer diante de Sebastião de Carvalho – disse ela. – De certeza que não se esqueceu de mim nem do meu pai. – Tens razão. – Como posso ajudar-te? Antero refletiu durante uns instantes. – Vai em busca de Samira. Volta a casa e pergunta aos vizinhos se viram alguma coisa. – Está bem. E depois venho ter contigo, mas espero-te diante do edifício onde fica o gabinete do secretário de Estado do Reino. – Não. Malagrida já deve ter calculado de antemão cada um dos nossos passos. Colocará espiões junto do rei e do secretário de Estado. Melhor será que nos encontremos num lugar que ele desconheça. – E onde há de ser? Ficou parado diante de uma casa de quatro andares e de aspecto sumptuoso. – Quando vais do Convento do Carmo em direção a Belém, encontrarás uma amendoeira junto à margem do Tejo. Espera lá por mim. – Mas ali há inúmeras amendoeiras! Até Belém a margem do Tejo está repleta delas. – Esta está um pouco afastada das outras. – Não sei se a consigo reconhecer. Antero olhou para o chão. – Tem um coração gravado na casca. «Um coração!» Ela quis dizer qualquer coisa que soasse indiferente, para que, naquele momento difícil, o seu ciúme não dificultasse ainda mais a situação, mas não conseguiu mais do que um aceno da cabeça. – Rezemos para que a Samira ainda esteja viva – acrescentou ele. *** Antes de acionar o batente prateado da porta, voltou a olhar em redor de si. As pessoas que estavam na rua pareciam-lhe transeuntes perfeitamente comuns. Se entre elas houvesse um espião jesuíta, então conseguira disfarçar irrepreensivelmente a sua presença. Bateu à porta. Um criado de libré veio abrir. Antero limitou-se a dizer-lhe com brusquidão: – Tenho de falar imediatamente com o secretário de Estado do Reino. Não permitiria que lhe recusassem a audiência. O criado de libré deve ter-se apercebido disso, pelo que pestanejou por breves instantes e disse: – Siga-me, por favor. Nas paredes, azulejos pintados representavam a nova Praça do Comércio e o castelo. Numa sala que atravessaram ainda havia operários a trabalharem: três homens aplicavam na parede um revestimento de tecido com um padrão dourado. O criado de libré abriu a porta que conduzia à biblioteca, deu um passo para o interior dessa sala e disse: – Senhor secretário de Estado, Antero Moreira de Mendonça insistiu em falar imediatamente consigo. Já antes Antero ali havia estado uma noite, a conversar com Sebastião de Carvalho enquanto bebiam um copo de vinho, a discutir as suas investigações. O secretário de Estado do Reino levantou o olhar, que até então mantivera fixado na secretária. Pousou a pena e fez deslizar a folha onde naquele momento escrevia um pouco para a esquerda. O seu rosto não revelava qualquer emoção. As longas rugas, que de ambos os lados do nariz lhe percorriam a face até aos cantos da boca, mantiveram-se imóveis. Ainda assim, o olhar severo denotava que aquele incómodo não anunciado lhe desagradava. – Passou-se algo terrível – informou Antero. – Gabriel Malagrida raptou a minha filha. Por favor ajude-me. Não posso ir ter com o rei. Preciso de soldados. – Há quanto tempo está ela desaparecida? – Não sei ao certo. Talvez não mais que algumas horas... – Com base em que indícios concluiu que ela foi raptada? O secretário de Estado do Reino tinha sempre uma abordagem objetiva e sem rodeios. – Houve uma luta na cozinha. Há lá loiça partida e a comida ainda estava no fogão, já completamente carbonizada, quando regressei a casa. Pensativo, o secretário de Estado esfregou o queixo. De seguida disse: – Não poderá ter acontecido que a sua filha se tenha magoado na cozinha e que, no meio da confusão, a cozinheira deixasse tudo à pressa e se dirigisse com ela para o novo hospital? – ergueu a mão. – Espere lá antes de dizer seja o que for. Nenhum de nós suporta o padre Malagrida e a sua Companhia de Jesus. Acontece que eu já tratei de bani-lo para Setúbal e, com isso, deixei o povo furioso. Ele encontra-se sob proteção papal. Enquanto não tiver provas concludentes, não posso deitar mais achas nesta fogueira. Todos nós acabaríamos por nos queimar. – E quer que eu deixe de acudir a Samira por o senhor ter receio do povo? Também tem um filho. Não moveria céu e terra se ele desaparecesse? Um após o outro, o secretário de Estado do Reino foi rodando os anéis dourados que tinha nos dedos. – Posso incumbir o exército de procurar a sua filha – disse ele. – Desde que não acusemos os Jesuítas de a terem raptado. – Faça isso e ceda-me uma dúzia de soldados. – Sabe tão bem quanto eu que, se isso acontecesse, iria tentar fazer alguma coisa disparatada. Não lhe vou ceder soldados nenhuns. Conseguiu avançar com as suas investigações? Que lhe interessavam agora as investigações?! A filha deveria estar assustada! Ou pior ainda, mas ele preferia nem imaginar. Sebastião de Carvalho suspirou. – Meu caro, quantas vezes lhe disse já que deveria entregar a educação da sua filha a uma ama! O rendimento que o rei lhe proporciona chega perfeitamente para isso. Não precisa de fazer como os pobres diabos que têm de ser eles mesmo a tratar da sua prole. E se uma ama estiver presente, a pequenita não mais fugirá de casa nem se magoará. – Samira foi raptada! – insistiu Antero quase a gritar. Chegou-se junto da secretária. – O senhor conhece-me e sabe que tenho um modo de pensar científico. Acredita mesmo que não refleti sobre isto? Existem razões de sobra para presumir que os Jesuítas estão por detrás deste rapto. Já se deu conta de que, nos últimos dias, os simpatizantes da Companhia de Jesus andam por toda a cidade a proferir discursos inflamatórios? E do que acha que os cúmplices dos Jesuítas andaram à procura em minha casa? Estou prestes a ter pronto um livro que irá explicar a origem dos tremores de terra – o secretário de Estado do Reino franziu a testa. – Gabriel Malagrida está de volta. E tem consigo a minha filha. Sei bem que, no que toca ao padre, nada acontece por acaso. Ceda-me os soldados! – E se for isso mesmo que ele pretende que aconteça? – A velha raposa tem de novo a vantagem do lado dele. Ficámos a dormir enquanto ele se manteve ativo. Se não reagirmos depressa e de modo decidido, ele acabará por triunfar. – Depressa e de modo decidido. Com isso quer dizer «irrefletidamente». – Pense em Samira. Ela tem apenas oito anos! – Vi o cão – disse o homem –, mas de resto nada mais. – Ele comportou-se de forma estranha? – perguntou Leonor. – Ladrou ou rosnou? – Não, nada disso. – o homem esboçou um sorriso largo. – Estava ali deitado, até parecia morto. Passadas umas duas horas pensei que o bicho tivesse por fim ido desta para melhor. Não suporto ouvi-lo a ladrar. Só que, depois, ele afinal voltou a levantar- se, porque um par de gaiatos queriam judiá-lo. Aquele rafeiro desatou logo a ladrar outra vez. Se o senhor vizinho não fosse tão querido das altas esferas, já há muito que teria tratado da saúde ao seu cãozinho. – Onde está o animal agora? – Fugiu quando lhe disse que parasse de ladrar. – Mas antes disso esteve aí deitado durante horas? Poderá ser que alguém o tenha envenenado? Os olhos do homem arregalaram-se. – Está a pensar em acusar-me? É verdade que não suporto o bicho, mas não me vou meter assim com esse Antero Moreira de Mendonça! Que sei eu, se calhar o animal comeu aí qualquer coisa estragada! Essas criaturas idiotas comem tudo o que lhes aparece à frente. – De resto, não viu nada invulgar? – Mas a senhora é espia do secretário de Estado? – olhou-a de alto a baixo. – Tem um bom disfarce. – Obrigado. Deixou-o ali e dirigiu-se para a casa de Antero. Entrou sem sequer bater à porta. Vagueou pelas assoladas divisões da casa, que ao todo eram dez: uma antessala, uma sala de jantar, uma sala de estar para o verão, outra para o inverno, que se podia aquecer, uma divisão que servia de escritório e biblioteca, e dois quartos com roupeiros. Outrora, uma casa destas ter-lhe-ia parecido pequena e acanhada. Agora, porém, depois de ter vivido três anos numa sórdida barraca, afigurava-se-lhe bastante espaçosa. Luxuosa, mesmo. Voltou a entrar no quarto de Samira. Tinha uma janela que dava para o pátio das traseiras. No chão haviam sido construídos, com pequenas peças de madeira, cercados para os cavalinhos de brincar, os quais estavam no interior desses cercados. Havia uma cama de criança onde se empilhavam várias almofadas coloridas. Sobre uma cómoda via-se, deitada, uma boneca. Como estaria Samira? Se realmente tinha sido raptada, de certeza que o autor não andava a brincar e a saltar à corda com ela. Uma criança como Samira pouco poderia fazer para se lhe opor. – Bondoso Deus, mantém-Te junto dela – pediu Leonor, em oração. – Faz com que a encontremos depressa. Atravessou o corredor e entrou no quarto de Antero. A prateleira junto à sua cama fora esvaziada. Espalhadas no chão viam-se folhas de um bloco de apontamentos, desordenadas e sem nada escrito, como se uma tempestade tivesse assolado o quarto. As gavetas da secretária estavam abertas. Chegou até junto da cama, pegou na coberta e levou-a ao rosto. Tinha impregnado o cheiro dele. Ficaria Antero furioso se soubesse que ela estava ali no seu quarto, agarrada à sua coberta? Em cima da cadeira colocada diante da secretária havia uma folha de papel. Leonor pegou nela. Queres voltar a ver a tua filha? Por enquanto, ela ainda está viva. Hoje à noite, segue pela estrada que vai de Belém para a Póvoa e para onde um ribeiro atravessa o caminho. Vem sozinho e traz contigo tudo, o teu manuscrito, os apontamentos a lápis e os esboços que fazes no teu caderninho. Conhecemos perfeitamente os teus truques. Se tentares alguma coisa, a pirralha judia vai passar mal. Leonor fitou o papel. Sentiu um espasmo no coração. Com ele na mão, apressou-se a descer a escada, deixou a casa, segurou na saia e desatou a correr rua abaixo. Não tardou que a transpiração lhe corresse pelas costas, no entanto, nem sequer parou para descansar um pouco. Quando, no edifício onde ficava o gabinete do secretário de Estado do Reino, lhe abriram a porta, estava tão ofegante que foi incapaz de dizer fosse o que fosse. Arquejava e apoiou-se na ombreira da porta. O criado de libré franziu a testa. – A senhora pretende… ? Foi com esforço que as palavras lhe saíram: – Antero Moreira de Mendonça. Tenho de falar com ele. Ele está com o secretário de Estado. Pouco depois, na biblioteca, o secretário de Estado do Reino e Antero leram a carta. – Tenho de lhe pedir desculpa – disse Sebastião de Carvalho. – Tinha razão, a sua filha foi realmente raptada. – Depois, olhando para Leonor, perguntou: – E quem é a senhora? – Esta é Leonor – disse Antero. O secretário de Estado do Reino observou-a cuidadosamente. – A filha do barão, aquele tal Martinho Velho da Rocha Oldenberg? Ela acenou afirmativamente com a cabeça. – A minha filha está a passar mal – declarou Antero. – O senhor leu. Ceda-me os soldados. – Serão postos à sua disposição. *** Ainda lhe doía o couro cabeludo, embora tivessem passado já cerca de duas horas desde que os homens lhe haviam puxado os cabelos. Tinham-lhe batido, cuspido nela e também troçado, chamando-a «pequena porca judia». Samira sentia-se entorpecida. Sentia-se como se estivesse morta. Os homens tinham matado Bento. Durante o tempo todo ela viu-o diante de si, jazendo, junto à entrada das traseiras, as patas estendidas, a cabeça assente no duro chão de pedra. – Nunca te vou esquecer, Bento, nunca… – murmurava. Será que os cães também iam para o Céu? Nesse caso ela queria morrer, para poder estar com ele. Queria passar-lhe as mãos pelo pelo, deitar o rosto sobre o seu dorso quente. Queria brincar com ele pelos campos e ensinar-lhe novos truques. De certeza que no Céu também existiam campos. Samira afastou o saco esfarrapado que os homens lhe tinham dado, e deitou-se sobre o chão de pedra. Estava pronta. – Meu querido Deus, já não quero viver mais. Por favor, deixa-me morrer. – Então, ó pirralha pequena, tens sede? – perguntou alguém através da porta. A tranca foi arrastada para o lado e a porta abriu-se, deixando entrever uma frincha. Um homem de barba espreitou lá para dentro. De seguida a porta abriu-se de par em par. Trazia consigo um jarro e uma caneca. – Como se há de saber quanto uma criança precisa de beber? Bem, cá está… – verteu uma grande quantidade de água para a caneca. Metade foi por fora e caiu ao chão. – Toma – disse ele, estendendo-lhe a caneca. Ela despejou a água e devolveu a caneca. – Que vem a ser isto? – berrou ele. Voltou a encher a caneca, pousou o jarro no chão e agarrou-a pelos cabelos. Foi assim que a puxou para cima. – Vais beber! Vais viver enquanto nós quisermos que vivas! – empurrou-lhe a caneca contra a boca. O couro cabeludo doía-lhe terrivelmente. – Deixa-me! A água gorgolejava-lhe na boca. Escorria-lhe pelo pescoço e pelo vestido abaixo. Ia-se engasgando. De repente, o homem deixou cair a caneca e deu meia-volta. – Merda! – exclamou ele. – O cão está aqui! – Que cão? – perguntou uma voz vinda de fora. O homem largou a cabeça dela. Samira tossiu. Virou-se na direção da porta. Bento? Estava vivo! A abanar a cauda, chegou até junto dela, que se acocorou e lhe passou carinhosamente a mão pela cabeça e pescoço. Bento lambeu-lhe o rosto. – Bento, estás vivo! – O cão está aqui dentro – gritou o homem. – Juro que é o dela! Samira pôs-se de pé. – Agora tens medo, não é? – acercou-se do homem, com Bento ao seu lado. – Ataca, Bento! – ordenou ela. Bento rosnou e arreganhou os beiços. A sua afiada dentadura ficou bem visível. O homem recuou lentamente, sem nunca tirar os olhos da boca de Bento. Por fim, deu apressadamente três passos para o exterior e fechou a porta. O ferrolho rangeu quando ele o fez deslizar. – Temos de nos ver livres do cão – disse em voz baixa. – Vou matá-lo a tiro. – Se acertas na miúda, deixamos de ter com que negociar. E Malagrida logo nos trata da saúde. – Abro a porta de repente e disparo. – Nem pensar nisso. Podes acertar na miúda. É preferível dar-lhe veneno. – Onde queres que vá arranjar carne, agora, assim sem mais? – Mata uma gralha a tiro. Alguma coisa há de haver por aí. Já bem basta que ele nos tenha encontrado. É perigoso. Samira acocorou-se. – Bento, não podes comer aquilo que eles te derem. Ouviste o que eu disse? Está envenenado. Não podes comer nada, dê por onde der! O couro cabeludo doía-lhe tanto que ela até estremecia. Confuso, Bento ergueu as sobrancelhas. Abanou a cauda. – Não! – com as mãos, pegou na cabeça dele e olhou-o firmemente nos olhos. – Não comas nada. Estes homens são maus! Querem fazer-te mal! Bento soltou um breve latido. Depois começou a lamber-lhe as mãos. Decerto não tinha percebido aquilo que ela lhe dissera. Lá fora ouviu-se um tiro. Que haveria ela de fazer quando o homem chegasse com a carne envenenada? Conseguira recuperar Bento. De certeza, que não iria perdê-lo uma segunda vez. Pôs-se a pensar. Como poderia ela distraí-lo da comida? Com comida ainda melhor. Olhou em redor. Viu apenas uma bacia de lagar vazia. Se aqui houvesse alguma coisa que se pudesse comer, decerto que Bento já o teria farejado. Tinha de lhe dar uma missão para ele cumprir. Ele ficaria à espera de receber uma pequena gulodice como recompensa, algo que seria bem mais delicioso do que a carne crua dos raptores. – Vai buscar a bola! – ordenou ela. Bento desatou à procura. Com o focinho junto ao chão, esquadrinhou todo aquele espaço, procurou debaixo da bacia, nos cantos, farejou o saco esfarrapado. Depois, regressou para junto dela. Veio a abanar a cauda e ficou a olhar para ela. – Eu sei, não há aqui bola nenhuma. Ele já conseguira encontrar o caminho até aqui. Voltaria a fazê-lo. Se fosse até junto de Antero, conseguiria trazê-lo até ali. Samira tirou do bolso o lenço do pai e desdobrou-o. Há semanas, desde que ele tinha menos tempo para estar com ela, trazia o lenço consigo, que talvez ainda conservasse o cheiro de Antero. Segurou- o diante do focinho de Bento. – Vai procurar o meu pai! Bento tocou com o focinho no chão e voltou a erguê-lo, olhando para cima. Parecia não estar mesmo a perceber aquilo que Samira pretendia dele. Como poderia ela explicar-lho? Segurou-o pelo cachaço e conduziu-o por aquele espaço. – Busca! – disse ela. Ouviu vozes lá fora que se aproximavam. Bento ganiu. Não parecia entender aquilo que ela pretendia dele. Samira amarrotou o lenço, atirou-o e disse: – Vai buscar! Bento disparou na direção do lenço, abocanhou-o e trouxe-lho. Samira tirou-lho da boca. Que poderia ela fazer para que ele pensasse no pai dela? Apontou para o chão, tal como Antero costumava fazer. Além disso, com um tom austero, a imitar aquele que o pai costumava usar com o cão, disse: – Bento! Vem cá! O animal ficou parado. Olhou-a, espantado. O ferrolho voltou a deslizar e a porta começou a abrir-se. Samira estendeu o lenço a Bento, deixou-o farejá-lo e murmurou: – Vai buscar o meu pai! Nada aconteceu. Bento ficou ali parado, sem se mexer. Então, de repente, sob a pelagem, os seus músculos retesaram-se, Samira conseguiu aperceber-se disso. Bento virou-se e saltou para junto da porta. Desatou a ladrar com força. – Estás a ver, ele já farejou isto – disse o homem que estava por detrás da porta. E, para atrair o cão, continuou: – Hmm, é bom! – O meu pai está aí? – perguntou Samira com um tom severo. Porém, Bento nem sequer lhe prestou atenção. Saltava sobre a porta e continuava a ladrar. Abriu-se uma frincha e foi lançado um pássaro morto e ensanguentado lá para dentro. Samira correu para a porta, agarrou- a com toda a sua força e puxou. A largura da frincha em relação à ombreira aumentou. Foi este o momento que Bento tratou de aproveitar. Saltou de imediato lá para fora. Perplexo, o homem largou a porta. Ficou a olhar para o cão a afastar-se. Samira também se esgueirou para o exterior e desatou a correr. – Foge! – gritou ela. – Foge! Ainda mal tinha dado uns passos e já o homem lançara o seu corpo grande e pesado para cima dela, derrubando-a. Rebolaram pelo chão sujo. Segurou Samira pelo pescoço e ergueu-a no ar. – Tu não vais a lado algum. – E o cão? – perguntou o outro homem. Bento correu pelo vinhedo abaixo até à estrada. – Não voltei a carregar a espingarda. Merda! – Carrega-a agora. Se esse rafeiro voltar a aproximar-se, puxas o gatilho. 32
A respiração da égua continuava uniforme. A pelagem dela
brilhava com a transpiração e, no entanto, mantinha a cabeça bem erguida e a crina esvoaçava. Devia ser um animal bastante valioso. O pelo era castanho-avermelhado, tal como a crina. Uma égua alazã. – Ela é de confiança – dissera o oficial. – Não lhe vai fugir. Antero seguiu pelas encostas onde havia campos de pastagem. Vacas pasciam de ambos os lados do caminho. Passou diante de um olival, no meio do qual se via uma imponente vivenda rodeada de árvores. Seguiam-se campos semeados com batata-doce. Escravos negros cavavam a terra e dela retiravam tubérculos, que recolhiam em grandes cestos. Era aquele o dia em que finalmente tudo terminaria. Gabriel Malagrida iria receber o golpe mortal. Logo que encontrasse vestígios de que o jesuíta tinha raptado a sua filha, secaria o suor da testa com um lenço encarnado. Os oficiais estavam a observá-lo com os seus monóculos. Quando o vissem fazer o sinal, viriam com as suas tropas e prenderiam o jesuíta. Poderia então finalmente intentar-se um processo contra Malagrida. Entre dois campos crescia uma longa fila de arbustos. Deveria haver ali uma linha de água. Antero puxou as rédeas da égua. Mais adiante, lá estava. Uma pequena ponte. Era ali que Malagrida pretendia encontrar-se com ele? Antero olhou em redor. Para a direita conseguia ver à distância, não parecendo maiores do que bonecas, as árvores atrás das quais os soldados se escondiam. Aquele pedaço de bosque estava afinal mais longe do que ele pensara ao olhar para os mapas. Os oficiais tinham dito tratar-se de «um ponto estrategicamente bom e a pouca distância», enquanto apontavam para o mapa, pondo no rosto expressões de superioridade. – Seguimos até lá a cavalo, mas fazendo um desvio, para não sermos detetados – haviam dito com um ar grave. Para o caso de algo correr mal, Antero deveria arrancar a peruca. Eles veriam esse gesto através dos monóculos e disparariam de imediato tiros de aviso. Aproximar-se-iam a cavalo tão depressa quanto possível e ajudá-lo-iam. – Meu Deus – pôs-se ele a rezar –, durante bastante tempo tive raiva de Ti. Quero agora fazer as pazes contigo. Toma conta da minha menina. Permite que ela aguente esta provação. Os soldados precisariam de bastante tempo até ali chegar. A ponte era bem visível de todas as direções, e nas proximidades não existia outro esconderijo que não fosse aquele bosque mais distante. Porventura era essa mesma a razão que levara Malagrida a propor aquele ponto de encontro. Nunca era bom sinal ter de agir segundo as regras do jesuíta. Se Gabriel Malagrida o ameaçasse ou se porventura o arrastasse consigo, os oficiais não chegariam ali com os soldados a tempo de frustrar essa tentativa. Por outro lado, Antero trazia consigo o manuscrito, os esboços e o caderno de apontamentos. Talvez bastasse a Malagrida recebê-los para conseguir obter Samira em troca. Iria colocá-lo a ele, Antero, pelo menos, tal como estava há um ano, e o padre ganharia tempo para as suas tentativas de subversão. Não era afinal isso mesmo que ele pretendia? Os escravos puseram as enxadas ao ombro e, em pequenos grupos, começaram a abandonar os campos. A oeste, o Sol assemelhava-se a um pedaço de manteiga que se derretia no horizonte. Antero prendeu as rédeas da égua aos ramos de um arbusto. Esta pôs-se a mordiscar as folhas, mas sem tentar soltar- se. Antero mordeu dois cartuchos e carregou ambas as pistolas. Olhou para os campos. Com a luz do Sol que se punha, a terra assumiu um tom acastanhado, semelhante ao da ferrugem. Não pôde deixar de se lembrar de uma conversa que tivera com a mãe. Também então decorria o mês de Setembro. Estava ela na cozinha e disse: – Deixa essa judia, Antero. Vais ser infeliz com ela – limitara-se a mãe a pedir. Só assim, sem sequer olhar para ele. – Eu amo-a – retorquira ele. – Eu sei – respondera a mãe, esboçando um sorriso indulgente. – Como podes sorrir a propósito disto? – O amor, meu filho, é instável. Pelo menos esta forma de amor. Desde os tempos da Criação que os seres humanos começaram por se casar e só a seguir passaram a amar-se. Durante séculos, o amor foi algo que precisava primeiro de amadurecer. E agora vocês, os jovens, querem senti-lo desde logo e já só querem casar-se depois de terem sentido o que é o amor. – De outro modo, como queres que se saiba que se vai ser feliz com uma pessoa? Pelo menos, eu agora sei-o. Sei que com nenhuma outra poderei ser feliz. Só mesmo com Julie. – Feliz? Antero, olha bem como as coisas correm para aqueles que impetuosamente se apaixonam e mergulham nesse amor. Não tardam a querer fazer um desmancho. Ou se calhar até se casam, mas nem por isso esses casamentos são mais felizes do que o meu. Também eles têm de se esforçar para conseguir conquistar esse amor. – Tu não conheces a Julie. – Eu já a vi. É uma mulher bonita, isso ninguém pode negar, mas a verdade é que é judia. Sabes bem que as leis sobre a pureza do sangue vos proíbem que se relacionem. Chegará o dia em que se saberá o que aí andam a fazer. E depois? Ficou furioso com a mãe durante vários dias. «O que aí andam a fazer» chamara ela aos belos e libertadores diálogos que mantinham, aos íntimos olhares que trocavam. Cerca de uma semana mais tarde, num domingo, a caminho da igreja, ele dissera- lhe: – Tu não conheces esta forma de amor e é por isso que não consegues entendê-la. – Ainda costumas rezar? – perguntara ela. – Caso não saibas, também os cristãos-novos rezam. – Mas não te vais tornar judeu? – Se tu soubesses aquilo que partilho com ela, mãe... Posso rezar com ela como nunca consegui contigo. Confiamos completamente um no outro. – Se ainda continuas a rezar, isso é bom. Nunca percas Deus de vista, meu rapaz, e desse modo sempre arranjarás maneira de aguentar tudo na vida. Entretanto, ela mesma fora ter com Julie, ambas estavam mortas. E ele deixara de rezar. Por raiva. A um Deus que permitia que Julie morresse numa fogueira ele nada tinha a dizer. Talvez fosse um erro deixar de falar com Deus. Os escravos tinham-se ido embora. Estava sozinho. Com uma vareta calcava farrapos no cano das pistolas para que os projéteis de chumbo ali se mantivessem presos. Deste modo, conseguia-se preencher melhor todo o espaço, proporcionando assim mais pressão ao tiro; fora um pirata que, na taberna de um porto inglês, certa vez lho explicara. Prendeu as pistolas no cinto. Em caso de dúvida, não hesitaria. Dispararia. O tenente segurava uma pega domesticada na mão. Ia-a alimentando com migalhas de pão. As penas da pega refletiam um brilho branco e um negro violáceo. Os seus olhinhos piscavam e conferiam-lhe um aspecto astuto. O bico grosso ia apanhando as migalhas entre os dedos avermelhados e balofos do tenente. – Vamos lá ver isso – disse este passado algum tempo, deixando a gralha saltitar para cima de uma vara que fazia parte de uma estrutura de madeira colocada ao pé da sua secretária. Estendeu a mão na direção da carta. Leonor reteve-a. – Você não é o capitão – disse ela. – Não. Mas sou responsável em vez dele. Dê-me a carta. – Tenho de entregá-la pessoalmente ao capitão e apenas a ele. O tenente sorriu com uma expressão condescendente. – Só que ele não está. Estou eu por ele. – Então espero. – Não lho aconselharia. Ele está fora e pode demorar horas até voltar. – Onde está? – Isso é segredo. Por que razão o secretário de Estado do Reino não a preparara para aquela eventualidade? «Para que veja que confio em si», limitara-se ele a dizer. «Não lhe guardo qualquer rancor.» Que deveria ela fazer agora? – Posso falar com alguém da Guarda Real? – Não está aqui ninguém. – O tenente juntou o resto das migalhas e deitou-as numa lata de tabaco verde. Passou a mão por cima da mesa para limpá-la. Por fim, fechou a lata ruidosamente. – De que se trata afinal? Logo lhe direi se diz ou não respeito à Guarda Real. – É claro que lhe diz respeito. Regressou à cidade um grande inimigo do rei e o secretário de Estado do Reino considera possível que venha a ocorrer um atentado à sua vida. Terão de ser tomadas medidas para a proteção do rei. – Já há muito que a Guarda Real recebeu essa informação – o sorriso do tenente alargou-se. – Está a ver? Basta que fale comigo. Já conseguimos esclarecer tudo. Era mentira. Apenas tentava desembaraçar-se dela, pelo que Leonor endureceu a sua atitude. – Pretendo falar com um membro da Guarda Real, e já. – Como acabei de lhe dizer, eles estão ausentes – o sorriso dele desapareceu. – Não ouviu o que eu disse? A pega olhava com um ar de curiosidade para Leonor. Parecia conseguir perceber tudo aquilo que ali se dizia. Virou a cabeça de lado e mantinha o bico negro ligeiramente aberto, como se estivesse a ponderar dizer alguma coisa para contribuir para aquela discussão. Leonor fitou o tenente. – Diga-me então quem é o inimigo. Só assim poderei acreditar em si. Ele rodou os olhos. – Entrega de cartas em duplicado é coisa que acontece aqui todas as semanas. Acabei de lhe dizer que já recebemos essa comunicação! Aposto consigo que o que está escrito nessa carta é que, segundo o conselho do secretário de Estado do Reino, o rei deverá hoje seguir um percurso diferente, além de usar uma carruagem comum, para maior segurança. A Guarda Real, por sua vez, deverá seguir o percurso habitual, para assim atrair os potenciais atacantes para fora dos seus esconderijos, e dentro do coche estarão reforços, ao invés do rei. Então? Vá, abra lá a carta. Como lhe digo, essa recomendação já cá chegou hoje de manhã. Era impossível. Antero só se dera conta do desaparecimento de Samira ao início da tarde. Além disso, o secretário de Estado do Reino nada dissera a respeito de uma carruagem comum, de um percurso alternativo ou de a Guarda Real armar qualquer emboscada. O ritmo da respiração de Leonor aumentou. – A recomendação de que fala não foi emitida pelo secretário de Estado do Reino. Sei disso, porque acabei de estar com ele. Há que avisar o rei! – Acabou de dizer que o secretário de Estado do Reino a enviou para transmitir um aviso à Guarda Real. Se me permite, está enganada. – Mas ele só redigiu essa recomendação hoje à tarde. Escute bem, não lhe posso explicar tudo, só lhe posso dizer que a vida do rei está em perigo! – Dê-me a carta – insistiu ele. Parecia ser essa a única maneira de conseguir alcançar alguma coisa sem mais demoras. Não tinha outra hipótese. Entregou-lha. O homem leu-a. – Diz então que a carta desta manhã é uma falsificação? – o tenente semicerrou as pálpebras. – Mas por que razão alguém que planeia um atentado ao rei haveria de avisar a Guarda Real? – Porque está à espera no novo percurso! E porque não dará tanto nas vistas se for uma carruagem comum a ser atacada. Antero andava, impaciente, de um lado para o outro. Atravessou a ponte repetidas vezes. Não conseguia impedir que a sua imaginação lhe apresentasse diante dos olhos cenas terríveis. Os homens a baterem em Samira. Como eles troçariam dela, enquanto a pequenita choraria e tremeria de medo. Lágrimas de fúria assomaram aos olhos de Antero. Cerrou os punhos com tanta força que as unhas se lhe espetavam na palma da mão. Vindo de longe, escutou um ruído. Olhou nessa direção. Na estrada, viu uma nuvem de pó que se aproximava. Foi piscando os olhos até conseguir ver claramente. Era uma carruagem puxada por um só cavalo, com cortinas de cabedal negras na parte da frente, que levantava aquela coluna de pó. As paredes laterais e a parte traseira eram de madeira. As rédeas estavam nas mãos de um homem sentado na diminuta boleia. Atrás dele, o ocupante da carruagem poderia olhar para o exterior através de dois buracos redondos, janelas abertas no cabedal. Aquela carruagem pertencia a Gabriel Malagrida, Antero conhecia-a. Era Malagrida que ali vinha. Antero retirou a camisa do cós dos calções e voltou a colocá-la, mas de modo a tapar o punho das pistolas. Tirou o manuscrito, os esboços e o livro de apontamentos do alforge. Segurando os papéis diante da barriga, escondia assim as protuberâncias na camisa. E assim ficou à espera na berma da estrada. A carruagem começou a diminuir a velocidade, até que o cavalo branco que a puxava se pôs a andar a passo. A pele do rosto do cocheiro era de um amarelo de aspecto febril. Pareceu a Antero que já teria visto aquele homem no palácio do rei. O cocheiro fez a carruagem parar. Estendeu a mão para receber os papéis. – E a minha filha? – perguntou Antero. – Lá atrás. Estaria ela viva? Estaria ferida? Com as mãos a tremer, estendeu o manuscrito e os esboços ao cocheiro. Foi com dificuldade que conseguiu chegar junto do fecho da porta, pois os joelhos estavam- lhe já moles, sem firmeza, as pernas não queriam carregá-lo. Ao querer abrir a porta, deu-se conta de que esta estava trancada. O cocheiro inclinou-se de lado, erguendo-se da boleia, e cuspiu para o chão. – Ela não está aqui, imbecil! Vai procurá-la no Inferno! – disse o homem e soltou um riso sórdido. Fez estalar as rédeas sobre o dorso do cavalo branco. A carruagem voltou a arrancar. Malagrida estava sentado lá atrás e ficara a rir-se maliciosamente! Antero sentiu a pulsação a aumentar. Aquele demónio ia a fugir com o livro. Enganara-o. Os seus homens estavam a atormentar uma menina com oito anos, tinham-lhe raptado a filha, a pequena Samira, e não lha devolviam. Além de tudo, Malagrida tinha agora também o manuscrito em seu poder. Bastaram cinco passos para que Antero chegasse perto da égua alazã. Desprendeu-a do arbusto. Montou no animal. Era agora ou nunca. Conduziu-a para a estrada, depois incitou-a com golpes dos calcanhares nos flancos. Largou a galope. A carruagem seguia bem à frente deles. Antero ergueu-se na sela e murmurou: – Vá, mostra-me aquilo de que és feita. Apertou os joelhos. A égua alongou o galope. Os seus cascos iam marcando no chão um ritmo frenético. Aproximaram-se da carruagem. Não tardou que a distância que os separava fosse a do comprimento de quatro cavalos, depois apenas de três e já só de dois. – Alto! – berrou Antero. Apertando os joelhos, segurou-se na sela e sacou as pistolas debaixo do cinto. A carruagem seguiu a toda a velocidade. Esperou até que a égua se encontrasse ao lado dela e então disparou. Do interior ecoou um grito. Antero disparou também a segunda pistola. A carruagem reduziu a velocidade. Também o cocheiro sacou de uma pistola. Antero voltou a aplicar os calcanhares com força no flanco da sua égua alazã. O ruído de um tiro atravessou o céu de fim de tarde. Antero sentiu no rosto uma aragem quente. Seguia velozmente na direção da cidade. Quando se virou, já a carruagem se detivera por completo. Do pequeno bosque junto à linha do horizonte surgiam soldados. Eles que se ocupassem do resto. Antero puxou para si as rédeas da égua e sentou-se. O animal ofegava. A sua pelagem brilhava. Oxalá tivesse conseguido acertar em Malagrida. A sua presença no local do encontro era prova suficiente de que estava por detrás do rapto. Um animal de pelo claro desceu pela encosta ao seu encontro. Era Bento! No entanto, ao contrário do que era costume, o cão não tentou saltar para Antero em jeito de cumprimento. Farejou-o brevemente e depois ladrou. Talvez o incomodasse o cheiro do fumo, provocado pela explosão da pólvora, que se mantinha pegado a ele. Bento voltou a correr pela encosta acima. A meio da subida parou e voltou a ladrar. Talvez tivesse achado alguma pista. Por outro lado, sempre que andava a seguir alguma, o nariz mantinha-se colado ao chão. A cabeça de Bento, porém, continuava erguida. Olhava-o fixamente. Parecia que o instava a segui-lo. Samira! Antero deixou a égua alazã para trás. Subiu a coxear pela encosta. De imediato Bento virou-se e continuou a avançar a toda a pressa. Antero seguiu-o, atravessando um batatal, um pomar, um olival e uma vinha. Amaldiçoou a rigidez da sua perna. Era uma quinta de grandes dimensões. O faustoso edifício principal ficava situado entre arbustos ornamentais e enormes carvalhos. Bento, porém, dirigia-se para umas instalações anexas. Foi disparado um tiro de um barracão junto a um lagar que ele conseguiu identificar devido à chama que saiu do cano da arma. Bento caiu sobre si mesmo, como se um punho invisível o tivesse esmurrado, e ficou deitado no chão, a ganir. Antero continuou a correr na direção do barracão. Ia aos ziguezagues, tendo o cuidado de manter árvores e arbustos entre si e o atirador, até ficar próximo de um dos lados do barracão, aquele que não tinha quaisquer janelas ou portas. Abandonou então a segurança da vegetação que o protegia e esgueirou-se até junto do tabique. A avaliar pelo ruído que a arma fizera, tratara-se de uma espingarda. Entretanto, deveria com certeza ter sido recarregada. Não sabia quantos eram os outros e não tinha consigo qualquer arma, nem sequer uma faca. Só que Samira estava ali. Iria libertá-la, custasse o que custasse. Antero inclinou-se e esquadrinhou o chão em busca de pedras. Não as encontrou grandes, mas apenas pequenas e de tamanho médio. Despiu a camisa e deu um nó numa das mangas. Foi no interior desta que as pôs. Escolheu mais algumas do chão e colocou-as lá dentro, até que toda a manga ficou bastante pesada. Agarrou a camisa na extremidade que não fora preenchida com pedras e balançou-a de um lado para o outro, em jeito de experiência. De seguida, assim munido daquilo, seguiu até à entrada do barracão. Colocou-se junto à porta e deu-lhe um pontapé. Durante alguns instantes nada aconteceu. Depois a porta abriu-se. Porém, aquilo que surgiu não foi o que ele esperava: ao invés do cano da espingarda, foi antes Samira quem saiu primeiro, e atrás dela dois homens, um dos quais lhe pressionava a ponta da arma contra a nuca da menina, como se pretendesse matá-la. – Vamos a ver se te portas com juízo – disse o homem –, senão a criança morre. O companheiro dele trazia uma corda na mão. Pelos vistos deviam querer amarrá-lo. – Nada de disparates. Samira viu o pai e deu largas à sua felicidade. – Encontraste-me! De repente o rosto dela adotou uma expressão de indizível horror. Afastou-se do cano da espingarda e pôs-se a correr pela encosta abaixo, na direção do cão, que sangrava. – Bento! Antero não hesitou. Deu um pontapé na espingarda do tipo, tirando-lha dos braços. Quanto ao outro, arremessou-lhe a manga da camisa cheia de pedras direita à cabeça. Cravou o joelho no estômago do atirador, largou a camisa, agarrou o pescoço do homem e puxou-o para si com toda a força. Ao mesmo tempo, deu- lhe uma cabeçada na cana do nariz. O atirador vacilou. O companheiro quis acudir-lhe, muito embora tivesse de conter a hemorragia que lhe cobria a cara de sangue. Com o punho, Antero desferiu-lhe um golpe no rosto. – Isto é pela minha filha! – gritou. E bateu. E voltou a bater. O homem perdeu os sentidos e caiu. Também o atirador estava entendido no chão. Antero pegou na espingarda e foi até junto de Samira. Doíam-lhe os punhos, como se tivesse participado numa rixa de taberna. A pequenita pousara a cabeça de Bento no colo e acariciava-o. O cão ganiu. Tinha o pelo ensopado de sangue. Antero pegou em Samira ao colo. – Nunca mais te deixo sozinha. Nunca mais. Apertou-a firmemente contra o peito. Samira abraçou-o. Manteve- se assim durante bastante tempo. – O Bento está a sangrar – murmurou ela. – Ele vai morrer? – Samira... Antero ficou sem saber o que devia responder. O facto de, para um cão, Bento ter já tido uma vida longa em nada iria consolá-la. Dizer-lhe que ele não sofria quaisquer dores seria uma mentira. – Vamos levá-lo connosco! – disse ela. – Talvez ele volte a ficar bom. Bento levantou a cabeça e dirigiu o olhar a Samira. Esta segurou- lhe na pata e ele lambeu-lhe a mão com a língua ensanguentada. De seguida, ganiu. – Temos de ajudá-lo! – exclamou Samira olhando para cima. Antero examinou o animal. O sangue estava espalhado por todo o lado, mas parecia que apenas a pata traseira esquerda ficara ferida. Antero voltou junto do barracão e foi buscar a sua camisa. Desfez o nó e deixou cair as pedras. Depois rasgou-a às tiras e, com todo o cuidado, ligou a perna do cão. Samira atirou-se ao peito de Antero, que a segurou ao colo e a acariciou. 33
Fulminante como a pólvora, o vinho da Borgonha ardia-lhe no
estômago. Gabriel Malagrida bebeu outro gole. A bebida possuía a doçura do açúcar brasileiro e o aromático sabor das especiarias indianas. Como fogo, desceu-lhe pelo esófago. Gabriel Malagrida sorriu. – Ainda está no Borgonha? – disse o duque de Aveiro, com a sua estatura de anão e num tom esganiçado. – Não consigo entendê-lo. – Ergueu uma garrafa. – Vinho branco espumoso da Champanha, isto sim, é o ponto alto da Criação. Por que razão acha que ele é assim tão vergonhosamente caro? Os verdadeiros conhecedores disputam-no e esforçam-se por obtê-lo. O marquês de Távora, antigo vice-rei da Índia, abanou a ca-beça. – Estão ambos enganados – tocou com a ponta do dedo numa garrafa larga que tinha à sua frente. O vidro ressoou ligeiramente. – O melhor vinho do mundo é produzido na ilha da Madeira. De um castanho da cor do caramelo e, quanto ao gosto, doce e frutado, é a isso que eu chamo um vinho. De resto, sabem como se obteve o vinho da Madeira pela primeira vez? Foi levado de navio da ilha para a Índia, só que não se conseguiu vendê-lo por lá, pelo que teve de regressar para Portugal. Por causa do calor tropical e do constante oscilar do navio, conseguiu-se que se tornasse tão saboroso que os preços a que foi vendido foram bastante altos. Desde então o vinho da Madeira é aquecido a quarenta e cinco graus, depois deixado a amadurecer pelo menos três anos em pipas e, por fim, é mantido em movimento dentro das mesmas durante três meses antes de ser engarrafado. E todo este esforço tem uma razão de ser – concluiu ele, esboçando um sorriso. Estavam sentados à mesa e envergavam roupões feitos de cetim castanho e com flores bordadas. Esta seria uma festa que nenhum dos criados iria conseguir esquecer tão cedo: extravagante, dispendiosa, invulgar. Os criados viriam talvez a ter de se lembrar da festa, e diante de um tribunal. Criadas negras punham na mesa espetadas de carne, coração e fígado de vitela, cabeças de cabritinho assadas. Cheirava a pimenta e a manteiga derretida. Gabriel já tinha água na boca. O duque de Aveiro pegou numa salsicha que estava sobre a mesa e colocou-a no tabuleiro transportado pela criada mais próxima. – Tome, pode levar de volta. Não gosto de comer isto. – E porque não? – perguntou o marquês. – Não consigo deixar de pensar no modo como são feitas – o duque de Aveiro estremeceu. Prosseguiu no seu tom esganiçado: – Nunca repararam como, nos últimos dias de vida antes da matança, os porcos são alimentados só com ervas? – Claro que sim. Faz-se isso para que os intestinos fiquem a cheirar bem. – Os intestinos com que depois se fazem as salsichas! – E então? – Intestinos! Pensem lá bem naquilo que por ali passou! É certo que são lavados e esfregados com laranja, para que cheirem bem, mas são e continuam a ser… – Por favor… – tratou Gabriel Malagrida de interromper o duque. – Peço-lhe que nos poupe isso. Ou aqueles dois eram excelentes atores ou na realidade tinham esquecido por completo as razões pelas quais todos os três ali estavam sentados. Para ele era difícil escondê-lo. Não conseguia deixar de pensar em tudo aquilo que podia correr mal. A velha marquesa entrou na sala. – Está aqui um senhor que quer falar consigo. Era chegada a altura. – Mande os criados embora e depois diga-lhe que entre, minha cara. Leonor de Távora sorriu. – Espero que a comida vos tenha agradado… Todos os três acenaram afirmativamente com a cabeça. Porém, os rostos deles demonstravam agora claramente alguma tensão. Quando as criadas saíram, um homem de uniforme entrou na sala. A pele do seu rosto apresentava-se amarelada. Estaria ele mais pálido do que era costume? Gabriel Malagrida ergueu-se. – Vá, diga. – Ambas as balas acertaram – disse o soldado. Todos rejubilaram. – Você é um génio, Malagrida! – gritou o duque de Aveiro, num tom agudo. O marquês de Távora ergueu o seu copo. – Um viva a Gabriel Malagrida! Contagiado por tamanha alegria, nem mesmo o soldado conseguiu deixar de sorrir. – Mas ainda está vivo? – perguntou Gabriel. – Sim. Os médicos estão a tentar salvá-lo. Mas, no fundo, sabem que não há quaisquer esperanças. O marquês voltou a pousar o copo. – Não haverá averiguações por causa da carta falsificada? – Enquanto for eu o presidente do Desembargo do Paço… – respondeu o duque de Aveiro. – É claro que sim… – interrompeu-o Gabriel Malagrida. – Também não pretendo que as impeça, senhor duque. Veja bem, o secretário de Estado do Reino tinha todas as razões para escrever ambas as cartas. Uma delas para permitir que o atentado ocorresse. A outra para demonstrar a sua inocência. Qualquer um perceberá que ele quer matar o rei. Na prática, ele próprio já é rei, uma vez que o poder está nas suas mãos. Agora, além disso, quer também a coroa. Não será muito difícil atribuir-lhe as culpas do atentado ao rei. – O rei gosta dele – disse o marquês. – Irá protegê-lo, façamos nós o que fizermos contra o secretário de Estado. – Enquanto estiver vivo… – Gabriel dirigiu-se então ao soldado: – Disse que não há quaisquer esperanças? – Está mortalmente ferido. Viverá um ou dois dias, no máximo. Gabriel ergueu o copo. Num único dia, os seus três maiores inimigos haviam sido aniquilados, o rei Dom José, o secretário de Estado do Reino e Antero. – Brindemos. A um Portugal renovado! *** O céu estava repleto de estrelas. Samira caminhava junto a ele, de mãos dadas. Antero levava o cão por cima dos ombros. Era pesado, pelo que o suor lhe escorria pelas costas. – Agora tudo vai correr bem – disse ele, apertando a mão de Samira. Onde começava o mar de barracas brilhavam dezenas de archotes. Os soldados estavam a montar barreiras. Antero parou, surpreendido. Haveria distúrbios na cidade? Pôs Bento no chão, este ganiu, e chegou-se junto dos soldados. – Peço desculpa, pode dizer-me o que se passou? – O rei sofreu um atentado – informou-o um soldado, que se apoiou numa pilha de sacos de areia. – As perspetivas não parecem boas para ele. Levou com as balas bem a meio do corpo. – Alguém disparou sobre o rei Dom José? – Ainda não ficou bem esclarecido quem está por detrás disso. Deve ter sido um tipo a agir isoladamente. Simplesmente disparou através da cobertura da carruagem em que o rei seguia. Vamos dar caça a esse animal. Quando o conseguirmos apanhar, logo se sabe para quem trabalha. – Estou a perceber. Antero voltou a içar o cão para cima do ombro e virou à direita, por entre as barracas. Avançou a manquejar, cinco barracas, seis barracas. Arrastava-se ao longo das paredes quando se foi abaixo, depois de se dar conta do que sucedera. – Que tens tu? – perguntou Samira, debruçada sobre ele. Ouviu a voz dela como que a grande distância. Um sopro de ar frio passou-lhe pelo rosto. Tudo fora planeado por Malagrida. O jesuíta conhecia-o há muitos anos, sabia que iria tê-lo mais suscetível se lhe raptasse Samira, sabia que ele dispararia, simplesmente sabia-o! Era o rei quem seguia na carruagem de Malagrida. «Disparei sobre o rei de Portugal», pensou ele. Sentiu a língua contrair-se bem junto à garganta. Esforçou-se por respirar normalmente. Foi com dificuldade que reprimiu um vómito. Levantou-se, pegou na mão de Samira e desapareceu com ela no meio da noite. – Porque não vamos para a cidade? – Vamos por fora, descrevemos um arco em redor de Lisboa, vai demorar mais um bocadinho. Avançaram pela noite fora, em silêncio. Chegaram junto das águas negras do Tejo. Encontrou a amendoeira e foi aí perto que depositou Bento. – Está tão escuro aqui – comentou Samira. Antero aproximou-se da árvore. – Estás a ver este coração aqui na casca da árvore? – perguntou. Samira tocou nele. – Sim, esse mesmo. Foi a tua mãe quem o gravou. Porque nos amávamos. Samira manteve a sua pequena mão pousada sobre o coração e não respondeu. Depois, virou-se para ele e disse: – É bonito. – Tenho de me despedir de ti – murmurou ele. – Papá? – Samira tocou no rosto dele e colocou-lhe os braços em redor do pescoço. – Mas não podes fazer isso – pôs-se a chorar. – Não me podes deixar sozinha! As lágrimas também corriam pela face dele. Abraçou Samira com firmeza. – Eu amo-te muito, sabes disso, não sabes, minha pequenita? – Então não me deixes sozinha! Tu prometeste que nunca mais me farias isso! – Não pode ser de outra maneira. Tens de te esconder aqui, com o Bento, e só podes sair quando vires a Leonor. Ela vai tratar de ti. – Não! Fica aqui comigo! Antero abraçou-a durante bastante tempo. Depois, soltou-lhe os dedos do seu pescoço e, embora Samira continuasse a soluçar, pousou-a no chão. Acocorou-se diante dela. – Samira, eu disparei sobre o rei. Por todo o lado, vão andar à minha procura. – Então escondemo-nos num navio e vamos para outro país. – De certeza que também têm o porto vigiado. Desde o terramoto que são poucos os navios que cá chegam, por isso é fácil tê-los vigiados. Samira, há um homem que quer a todo o custo que eu seja executado como regicida. Mesmo que nós fugíssemos de Portugal, ele iria procurar-nos e encontrava-nos, por todo o lado onde pudéssemos estar. A minha existência representa um perigo para ele, pois sei que está por detrás do atentado ao rei. Ele só terá descanso quando eu morrer. – Mas tu não podes morrer. – Por isso mesmo é que preciso de ir, para poder lutar. Tenho de vencer esse homem – levantou-se e deu meia-volta. Depois de três passos, tornou a virar-se para ela e disse: – Samira, estou de coração despedaçado por não poder ficar junto de ti! Gostaria de ter sido um melhor pai. Samira pôs-se de pé de um salto e correu na direção dele. Abraçou-o e, a soluçar, disse-lhe: – Mas tu és um bom pai! Tu és o melhor pai do mundo! O soldado segurou o archote diante do rosto de Antero. – O que andava a fazer fora da cidade depois do pôr do Sol? Junto a ele, um oficial colocou a mão sobre a espada. Antero afigurava-se-lhes obviamente suspeito, um homem que andava sozinho e que pretendia entrar na cidade já depois do anoitecer. Porventura até já dispunham da sua descrição. – Um homem ferido por um disparo está ali escondido, por detrás daquelas barracas – inventou. – Achei que seria melhor se vos avisasse disso. O oficial desembainhou a espada de imediato. – Venha daí, depressa! – ordenou ele ao soldado. – Pode ser que seja ele! Saíram dali a correr na direção das barracas. Antero ficou a vê-los afastarem-se. Esperou até que estivessem suficientemente longe. Depois, acercou-se do cavalo, que aguardava junto da cancela, e soltou as rédeas. Subiu para o dorso do animal. Espantado por estar a ser montado por um cavaleiro que não era o do costume, o animal pôs-se a dar passos para o lado e relinchou. Antero incitou-o a andar, mas não obedeceu. Os soldados voltaram-se e gritaram: – Alto aí! Puxou-lhe as rédeas com força, para demonstrar ao cavalo que não iria tolerar aquele comportamento. Voltou a aplicar um golpe com os calcanhares nos flancos do animal e então este largou a galope. Seguiu a toda a velocidade através da noite, ao longo da margem do Tejo. De início, o cavalo, ainda irritado, mantinha as orelhas esticadas para trás. No entanto, não tardou a descontrair-se, o seu galope tornou-se mais fluido, virou-as para a frente e adotou uma respiração mais regular. Parecia a Antero que o animal não só aceitara por fim submeter-se ao destino que ele lhe impusera, como também galopava por vontade própria. Não teve de voltar a incitá-lo. O vento frio soprava-lhe no rosto. A barriga do cavalo mantinha- lhe as pernas quentes. Antero pensava em Samira, como esta chorara, como ele quebrara a sua promessa. Pensou nos tiros que disparara na direção da carruagem, como haviam furado a madeira, e lembrou-se do grito que ouvira vindo do interior, como que um urro humano. A luz dos archotes rodeava a casa de madeira, na encosta da Ajuda. O exército envolvia o rei, do mesmo modo que as vespas esvoaçam em redor da sua rainha. Em cada uma das vinte e cinco janelas da comprida fachada principal via-se também luz, inúmeras velas ardiam nas divisões daquela construção, cada uma das pessoas que vivia ou trabalhava na residência real estava acordada. De certeza que os médicos assistentes se encontravam junto do rei, e aqueles que nada podiam fazer para ajudar tratavam de rezar. No início da estrada de acesso, um portão de ferro fundido vedava a entrada. Soldados munidos de archotes foram ter com ele. Antero desmontou e disse: – Tenho de ir falar com o secretário de Estado do Reino. – Quem é você? – Trabalho para Gabriel Malagrida como espião, no Campo Gran- de. É possível que tenhamos uma pista referente ao atentado ao rei. O sargento examinou o cavalo do exército encharcado em transpiração. – A sentinela que lá está conhece-me. Colocou-me o seu cavalo à disposição. Disse que era precisamente para situações dessas que ele servia. Com a cabeça, o sargento fez um sinal aos soldados. Estes revistaram Antero para ver se ele trazia armas consigo. Uma vez que não encontraram nada, abriu o portão. Antero voltou a montar no cavalo. Conduziu-o pela estrada de acesso e, junto à porta da casa de madeira que servia de residência real, saltou da sela, entregou as rédeas a um soldado e disse: – Depressa, tenho de falar com o secretário de Estado do Reino. É a respeito do atentado ao rei. Ninguém fez mais perguntas. Conduzido por outro soldado ao interior da casa, foi recebido por um criado que o levou de-pois através dos corredores. De fora, a casa parecia uma espécie de pavilhão de caça de proporções desmedidas, disposto em comprimento. No interior, era um verdadeiro palácio. As paredes estavam revestidas a tecido e tinham sido decoradas com flores pintadas. Diante destas, viam-se móveis indianos finamente ornamentados, do teto pendiam candeeiros de cristal. Nas superfícies polidas dos armários, refletia-se a luz produzida pelas chamas das velas. Nem sequer o criado tinha acesso ao local onde o rei, gravemente ferido, se encontrava. Segredou ao ouvido de um outro criado, hierarquicamente superior, o que ali o trazia, e esse outro desapareceu por detrás de uma porta. Esta voltou a abrir-se rapidamente, só que não foi o criado que Antero esperava que saiu, mas antes um homem com uma barba curta mas pontiaguda, que trouxe panos ensanguentados cá para fora. «Se soubessem que fui eu quem disparou esses tiros», pensou Antero, «tratariam logo de me dar uma sova e acorrentar.» Não podia, desse lá por onde desse, cruzar-se com o fulano que estivera sentado na boleia da carruagem. Esse de certeza que o reconheceria. Por fim, apareceu o segundo criado, que o conduziu a uma sala anexa. – Por favor, espere aqui – disse ele. – O secretário de Estado do Reino virá já ter consigo. Antero não conseguiu sentar-se no banco acolchoado vermelho, pois a agitação que sentia não lho permitia. Andava de um lado para o outro em cima do tapete grosso que cobria o chão e tentava organizar as suas ideias. Que aconteceria à filha de um regicida? Era impossível provar que Malagrida estava por detrás daquilo. A porta abriu-se e o secretário de Estado do Reino entrou na sala. Voltou a fechar a porta atrás de si. – Que se passou? – perguntou ele em voz baixa. – É o que lhe quero explicar. Por isso mesmo vim até cá. – Quem foi que disparou sobre o rei? Antero começou por manter o silêncio, mas depois disse: – Fui eu. Os olhos do secretário de Estado do Reino abriram-se de espanto. – Mas será que perdeu o juízo? Pensei que estivessem apenas a tentar incriminá-lo! – Por favor, deixe-me explicar. – Não há nada a explicar. Disparou sobre o rei de Portugal e feriu- o mortalmente. – Ele está morto? – Já só deve resistir mais algumas horas, dizem os médicos que o assistem. Ou seja, é como se estivesse morto. Sejam quais forem as suas razões para disparar sobre ele, agora não interessam. Cometeu um homicídio e, com isso, provocou a este país um dano cujas consequências ainda não somos capazes de descortinar. – Não sabia… – Guarde antes a sua história para contar aos juízes. Eu tenho de me ocupar do Reino e evitar que se instale o caos. – Irei parar ao cadafalso? – Será com certeza executado. E sabe bem que fez por mere-cê- lo. – O rei seguia na carruagem de Malagrida – o secretário de Estado do Reino deteve-se. – E não levava consigo nenhum membro da Guarda Real. Com ele só ia um único homem. Sebastião de Carvalho pestanejou e de seguida baixou o olhar. – O senhor sabe tão bem quanto eu – prosseguiu Antero – que este homicídio foi premeditado. – E por quem? – Para quem é que o rei Dom José era uma pedra no sapato? A carta que surgiu em minha casa era de Gabriel Malagrida. A carruagem era dele. – Ele não ousaria uma coisa dessas. Os Jesuítas não planeiam atentados aos reis. – O rei gosta de si e, enquanto ele estiver vivo, ninguém conseguirá que seja destituído. A quem julga afinal que irão associar o assassínio? Não será apenas a mim. Tentarão destruí-lo a si. Foi o senhor quem enviou soldados para aquele lugar. Como poderia ter sabido daquilo de antemão? Perguntar-lhe-ão isso mesmo. Foi o senhor quem enviou uma carta ao capitão da Guarda Real, a avisar. Malagrida irá manipular os factos de modo a parecer que com isso quis apenas arranjar um álibi. O secretário de Estado do Reino dirigiu-se ao banco e sen- tou- se. – Por que razão não tratou de tomar melhor conta da sua filha? Já há muito tempo que lhe disse que ela deveria estar entregue aos cuidados de uma governanta. – Amei uma mulher que era uma cristã-nova. A Inquisição ordenou a sua execução. Samira é a nossa filha. Mantive a pequenita escondida ao longo de vários anos, com medo de que a Inquisição viesse a descobri-la. Sou a única pessoa que ela ainda tem. Não poderia entregá-la a outra pessoa qualquer. – Estas malditas leis sobre a pureza do sangue. Deviam ser abolidas – o secretário de Estado levantou-se. – Mas como pôde atirar em alguém sem ter a certeza de quem se trata? – Era a carruagem de Malagrida. – Fazer justiça pelas próprias mãos nunca é uma boa solução. É para isso que existem tribunais! – Tribunal nenhum deste mundo vai condenar Malagrida. Sebastião de Carvalho chegou-se junto de Antero. – Agora já não – afirmou. – Foram vários os oficiais do exército que o viram a disparar sobre o rei. Cheguei a pensar que tivesse sido subornado! Porém, tudo indica que está a dizer a verdade, ao passo que contra Malagrida nós nada temos de palpável. – Tente impedir a minha execução! Converta a minha condenação em prisão nas masmorras! – Eu próprio, segundo me disse, serei também implicado nesse assunto. Se tentar impedir uma execução pública do responsável pelo atentado, aumentarão as suspeitas de que estávamos em conluio. Tomarei conta da sua filha, farei isso com todo o gosto, mas não lhe posso conceder uma amnistia. – Escute o meu plano… – propôs Antero. – Tudo aquilo de que preciso é que me dê um pouco de tempo antes da minha execução. TERCEIRO LIVRO 34
Todas as manhãs, desde que os criados de libré haviam deixado
de lhe franquear o acesso ao secretário de Estado do Reino, Leonor esperava junto dos demais solicitantes no ministério. Aqueles que ali ficavam à espera pretendiam apresentar uma queixa, obter uma autorização especial, reclamar a propósito de alguma injustiça. Os solicitantes precisavam de materiais de construção, alimentos, licenças. Todos eles dispunham de uma hora para poderem ser atendidos, durante a qual seriam ouvidos pelo secretário de Estado do Reino, desde as oito horas em ponto até às nove. Todas as manhãs eram chamadas e escolhidas nove ou dez pessoas, uma após a outra, em dias bons chegavam a ser onze, tendo os restantes de regressar a casa com os assuntos por tratar. Isso equivalia a umas vinte ou trinta pessoas. Todos os dias voltavam alguns dos que já lá tinham estado, mas também muitos novos solicitantes. Não havia uma ordem preestabelecida pela qual se fosse chamado da sala de espera. Chegava lá um funcionário, apontava para uma qualquer pessoa e dizia: – Você aí… Para Leonor, porém, ele nunca apontava. Chegou Outubro. A seguir novembro. Ela apercebeu-se de que não era fruto do acaso o facto de nunca ser chamada. O secretário de Estado do Reino não queria vê-la. Regularmente mandava entregar-lhe dinheiro, destinado a Samira. Desde o atentado que diante da casa de Antero, onde ela agora vivia com a menina, havia dois soldados de guarda. Contudo, Sebastião de Carvalho não estava na disposição de ouvi-la. Leonor dirigia-se também a outras instituições, ao exército e ao tribunal, onde conseguiu chegar à fala com um escrivão, a quem suplicou pela vida de Antero. Foi-lhe explicado que era um disparate pedir clemência para um regicida. – Mas o rei ainda está vivo – argumentou ela. – Está prestes a morrer – foi a resposta que ouviu. – E mesmo que sobreviva, acha mesmo que ele vai amnistiar aquele que lhe colocou duas balas no corpo? Na cidade, instalara-se o medo. Embora se segredasse que fora o próprio secretário de Estado do Reino a encomendar o atentado à vida do rei, ninguém se atrevia a dizer alto fosse o que fosse, pois Sebastião de Carvalho agia de modo bem mais duro do que até então. Até mesmo os nobres que ousassem acusá-lo eram por ele convidados a comparecerem perante um tribunal; encerrava as igrejas onde alguém pregasse contra ele, colocando soldados à porta das mesmas. Era palpável a grande tensão em que se vivia. Certa vez, quando estavam as duas sentadas a tomar o pequeno- almoço, Samira pôs-se a chorar, afastou o pão que ia comer e exigiu ver Antero. – Ele está na prisão, tu sabes isso. – Mas eu quero vê-lo! – exclamou a pequenita a chorar. Leonor foi com ela até à margem do Tejo, junto à Torre de Belém. Aquela torre fortificada, com quatro andares, erguia-se sobre o rio como um rochedo negro. – Gosto de ti, papá! – exclamou Samira. Leonor não lhe disse que, àquela distância e através das paredes grossas, ele não a conseguia ouvir. Na manhã seguinte, levou Samira consigo para a sala de espera do secretário de Estado. Quando o funcionário lá entrou para escolher um dos muitos solicitantes, Leonor pôs-se de pé. – Há dois meses e meio que venho cá todas as manhãs e continuam sem me chamar – pousou a mão sobre o ombro de Samira. – Diga ao secretário de Estado do Reino que está aqui à espera uma criança cujo pai está encarcerado nas masmorras. Se ele não me quer ouvir a mim, pelo menos que a oiça a ela. O funcionário ficou em silêncio e olhou para Samira. Por fim, acenou com a cabeça e deixou a sala. Passado algum tempo voltou. – Venha comigo. Quando alguém era chamado, havia sempre insultos e protestos daqueles que já estavam à espera há vários dias. Desta vez, porém, ninguém se queixou. Os homens e as mulheres deram pancadinhas de apoio nas costas de Samira quando esta passou por eles. A pequenita seguia de mão dada com Leonor. O funcionário conduziu-as a uma sala grande. Lustres com peças de cristal fracionavam a luz em inúmeros raios, que incidiam como pequenos sóis sobre a seda cinzenta que revestia as paredes. Cheirava a azeitonas. O cheiro recordou Leonor do palácio onde crescera: aquele cheiro indicava que para a iluminação se utilizava apenas o dispendioso azeite. Por detrás da sua secretária, o secretário de Estado do Reino levantou-se. Leonor manteve-se a uma distância adequada. – Peço-lhe, por favor, que liberte Antero. Ele foi atraído para uma armadilha. Não disparou sobre o rei com consciência do que estava a fazer. Sebastião de Carvalho contornou a secretária e acocorou-se diante de Samira. – Tens que chegue para comer? – Sim, senhor secretário do Estado. – E não passas frio? Não tarda é inverno, as noites vão ficar frias. – Não, eu não tenho frio. – Então está tudo bem – disse ele, com um trejeito de satisfação no rosto, após o que se levantou. – Não está tudo bem – contrapôs Leonor. – Antero passa frio. E passa fome. E, por fim, acabará por… – interrompeu o que ia a dizer, para que Samira não o ouvisse. O secretário de Estado voltou a contornar a secretária e sentou- se. O seu rosto assumiu uma expressão dura. Os pés-de-galinha junto aos olhos ficaram imóveis, como que petrificados, e as rugas longas que, à esquerda e à direita do nariz, lhe percorriam a cara até aos cantos da boca pareciam agora ter sido esculpidas a cinzel. – Há que ser feita justiça e, no caso de ser cometido um crime, o seu autor deve expiar o castigo que lhe for aplicado. – Por que razão não se ouve dizer nada a respeito do andamento de um processo judicial? – Eu próprio dei ordem para que, neste caso, o processo decorra dentro do máximo sigilo. Com certeza não é capaz de imaginar as pressões a que estou sujeito. Portugal tornou-se um autêntico barril de pólvora e os meus adversários tentam incessantemente produzir faíscas que o façam explodir. A qualquer momento tudo pode saltar pelos ares. Samira desprendeu-se da mão de Leonor. Acercou-se da secretária e disse: – Por favor, diga ao meu pai que estamos à espera dele. Pode dizer-lhe isso? Foi com as mãos a tremer que Antero cobriu de palha aquela mucosidade cheia de sangue. Há alguns dias que o seu corpo deixara de expulsar excrementos. Em vez disso, saía dele aquele caldo ensanguentado. Também deixara de sentir frio, mas, pelo contrário, um calor, que exercia pressão sobre a sua cabeça, como se esta fosse rebentar. Arrastou-se de volta ao outro canto da cela. Ia sendo sacudido por cãibras. Lançou os braços em redor dos joelhos. A sua perna estava peganhenta com pus. Uma ferida ulcerada ia produzindo aquele líquido purulento e malcheiroso. Antero baloiçava para trás e para a frente, para se acalmar. – Ainda estou vivo – murmurou no meio da escuridão. – Vais pagar por cada um dos dias que aqui passo, Malagrida – não largava aquela ideia. – Também tu vais tremer de frio. Também tu hás de sangrar. Sentia a boca seca. Era como se um grampo lhe comprimisse a cabeça e a mantivesse apertada, ao passo que, de dentro, a febre exercia uma pressão contrária. Combatia o desespero que ameaçava levar-lhe a melhor, e pensava na altura em que, nos jardins diante do palácio do rei, Samira formara as suas primeiras bolas de sabão. Recordou como à noite ele se chegava junto da cama dela e ficava a vê-la dormir. A sua respiração calma e regular, os olhos fechados com as delicadas pestanas. Samira irradiava uma enorme tranquilidade enquanto dormia. O secretário de Estado do Reino tomava conta dela. Leonor tomava conta dela. Estava bem, era isso o mais importante. Se as crianças, os campos e o pôr do Sol eram obra de Deus, então este Deus criador era uma entidade afetuosa. Ele, Antero, odiara os Jesuítas durante todos aqueles anos e, juntamente com eles, também o Deus que representavam, mas talvez Deus não fosse assim como eles. – Ajuda-me – murmurou ele. – Por favor, ajuda-me. Na sua cabeça, já tudo se confundia. Os pensamentos haviam perdido a sua ordem. De repente, ele era de novo um rapazinho e estava sentado na biblioteca, debruçado sobre um livro. – O leitor mais experiente lê em silêncio. Limita-se a seguir o texto com os olhos e assim explora todo um mundo – dizia-lhe Vasco baixinho ao ouvido. Estava de cócoras à beira do caminho e olhava para um campo, tinha oito anos, ou talvez nove, e observava os zângãos, que voavam de flor em flor. Ficava espantado a observá-los. Como conseguiriam eles voar com as suas asinhas pequenas e transparentes? Onde iriam aqueles animaizinhos roliços e peludos buscar as forças necessárias para bater as asas tão velozmente? Um caracol atravessou o caminho a rastejar. Demorou uma eternidade até chegar ao outro lado. Deixava um cintilante rasto de muco viscoso sobre as pedras. Por que razão atravessava o caminho de um lado para o outro? Do lado onde estava existia erva, arbustos e pedras com fartura, exatamente o mesmo que do outro lado. Assim sendo, para quê empreender aquela trabalhosa viagem? Aquele animal causava-lhe admiração. De repente, ficou noite e na rua, no meio de Lisboa, estava a olhar para cima. Fogo-de-artifício atravessava o céu, deixando um rasto de cintilantes faíscas, e depois explodia. Sabia que os foguetes eram feitos com o papel velho usado nos registos e que era um mestre fogueteiro que, com grande destreza, os enchia de pólvora. Apesar de o saber, não deixava de lhe causar admiração. O fogo-de-artifício festivo, lançado por ocasião do nascimento da terceira princesa, Maria Doroteia, constituíra um espetáculo fascinante. Depois, lá estava ele sentado no telhado, encostado à chaminé, a ler um romance. A inclinação daquele era na justa medida em que lhe proporcionava uma posição confortável. A chaminé fora aquecida pela luz do Sol, que brilhava com intensidade de ambos os lados. Gaivotas cruzavam os céus, enquanto ele lia. O Sol ia aquecendo. Antero pôs-se a correr. Seguia a sombra que uma nuvem projetava sobre a rua. Ansiava por se sentir mais fresco, mas a nuvem movia-se mais depressa do que conseguia correr. Implacável, o Sol lançava sobre ele o seu calor infernal. – O leitor mais experiente lê em silêncio – disse em voz alta, de volta à sua cela. «Estarei a enlouquecer?», perguntou a si mesmo. A febre dava- lhe a impressão de sentir na boca o gosto de limões. Sentiu o cheiro do seu próprio pus e o fedor dos excrementos ensanguentados. Alguém o abanou, colocando a mão no seu ombro. Antero abriu os olhos. Ter-se-ia deixado adormecer? Alguém segurava uma caneca diante dele. Bebeu sofregamente. – Deixe-nos sozinhos. E dê-me o candeeiro – disse uma voz. Antero levantou o olhar. Um homem abandonou a cela. Um outro acocorou-se diante dele e iluminou-lhe o rosto com o candeeiro. – Está mesmo com mau aspecto. Com a luz desenharam-se os contornos de quem tinha diante de si: o secretário de Estado do Reino. – Que está o senhor a fazer aqui? – grasnou Antero. – Não se esqueça do que combinámos! – Tem consciência de que são poucos os dias de vida que lhe restam? Está com disenteria, segundo o médico. Com um tratamento intensivo conseguiria sobreviver, mas aqui dentro será impossível. – Por que razão me diz isso? Seja como for não posso sair… O secretário de Estado do Reino acenou afirmativamente com a cabeça e disse: – Temos de despedir-nos. Encostado à parede, Antero tentou endireitar-se. Estava demasiado fraco. O seu braço tremia e as pernas deram de si. – O rei ainda está vivo? – Entretanto tomei providências para que a rainha seja a regente. Mas ele está vivo, sim. Os médicos esperam que assim continue. – Há quanto tempo já estou aqui? – Três meses e meio. Tinha razão na sua conjetura. Os meus homens intercetaram cartas no Brasil que foram enviadas por Malagrida antes do atentado. Nelas ele anuncia que algo iria acontecer ao rei. – Nesse caso já o apanhámos! – Ele não deixa de ter razão, realmente algo aconteceu ao rei. Os juízes irão entender isso como resultado de um dom profético e não o considerarão um indício de que ele é o autor. Lá fora há imensa gente à espera de que, com esta escassez de provas, eu faça uma denúncia, para poderem aproveitar a debilidade do processo para me derrubar. Antero ficou em silêncio. Tinha a sensação de que alguém lhe estava a atarraxar um parafuso na nuca. Ao mesmo tempo, havia no interior da cabeça uma roda de fogo que não parava de girar. Fazia pressão contra as paredes do crânio e espalhava faúlhas ardentes. – Com certeza não devemos voltar a ver-nos – disse o secretário de Estado do Reino. – Talvez tenha interesse em saber que Leonor lutou todos os dias por si. E a sua filha pediu-me que lhe dissesse que está lá fora à sua espera. «Vai esperar em vão», pensou ele. «Já daqui não saio vivo». Reuniu as suas últimas forças e perguntou: – Não podemos arranjar maneira de acelerar um pouco as coisas? – Como assim? – Temos de conseguir que Malagrida sinta medo. Há de questionar-se por que razão ainda não fui executado, por que razão a aplicação da pena está a ser adiada – Antero refletiu durante alguns momentos. – Dê-lhe um indício que o deixe confuso. Envie quatro homens às ruínas da Biblioteca Real. Mande escavar os escombros e examinar cada um dos livros encadernados e queimados que conseguirem encontrar. Mande fazer tudo isso de preferência sob a supervisão de vários soldados. – E que irão eles encontrar? – Nada. Mas não é disso que se trata… O secretário de Estado acenou com a cabeça e disse: – Estou a perceber. «SECRETÁRIO SANGUINÁRIO» podia ler-se na parede, escrito a carvão sobre as pedras novas e brancas. Por cima fora desenhada uma caveira com uma coroa. Leonor seguiu o seu caminho apressadamente. O secretário de Estado do Reino não estava por detrás do atentado ao rei, como o autor daquela injúria acreditava. Ainda assim, achava ela, não lamentava nada que sobre ele recaísse aquela suspeita. Era um hipócrita. Recusava-se a retirar Antero daquela masmorra, muito embora soubesse perfeitamente que fora Malagrida a promover o atentado. Que era fácil alguém deixar-se manipular por Gabriel Malagrida ela própria sabia e experimentara-o. Também o secretário de Estado do Reino deveria entendê-lo. Olhou para o interior do seu cesto. Os ovos, o pedaço de queijo, a farinha e o azeite, tudo aquilo fora comprado com o dinheiro de Sebastião de Carvalho. Pela centésima vez propôs-se a não aceitar mais o dinheiro dele. Da próxima vez, iria mandar embora o mensageiro do secretário de Estado. Ele estava a comprar o seu silêncio, mas ela não queria continuar calada. No momento em que ia a começar a subir as escadas para ir para casa, alguém chamou o seu nome. Virou-se na direção dessa pessoa. Uma negra gorda pousou um cesto da roupa no meio da rua e acercou-se de Leonor. – Minha menina! – exclamou ela, sorrindo. Abraçou Leonor e pregou-lhe um beijo na cara. – Minha boa menina! A criada! Leonor abraçou-a. O corpo dela era macio como uma almofada. Abraçar aquele corpo enorme proporcionava o prazer de uma recordação de infância. A escrava limpou uma lágrima. – Vim a segui-la desde o mercado. Não sabia se era realmente a menina. – Conseguiste arranjar trabalho? – Sim. Agora sou lavadeira. – E é bom ter a própria liberdade? – Ah, não faz diferença alguma. Seja como for, trabalho para os senhores. Fica tudo como era dantes. O seu pai sempre me tratou bem – a criada pousou as mãos na base das costas. – E a menina Leonor, como tem passado? Temia que já não estivesse viva. – Eu continuo viva, mas o meu coração é como se estivesse morto. Antero está preso nas masmorras. E tenho aceitado dinheiro do homem que o deixou em apuros. Estou farta disto. Sabes como poderei arranjar maneira de ganhar dinheiro? A criada voltou para junto do cesto da roupa e ergueu-o. Lá dentro estavam lençóis e roupas dobradas. – Eu só conheço um. Trabalhando… – disse ela. – É isso que eu também quero fazer. – Podia passar a roupa a ferro. Tenho encomendas que cheguem para duas. Leonor olhou para o cesto e disse: – Só que eu não sei como isso se faz. A criada sorriu. – Eu mostro-lhe, menina Leonor. Já há muito que lho teria ensinado, mas não era coisa que se fizesse, e como também nunca quis saber disso… Dali a alguns instantes estavam já na cozinha, com um lençol estendido sobre a mesa, e a criada ia explicando: – Põe-se sempre vários ferros no fogo. Atrás delas, fez-se ouvir uma voz de menina: – Mas eles estão em cima da placa do forno, não estão no fogo. A criada deu meia-volta. – Samira! Minha querida! – acocorou-se e abriu os braços. Samira saltou para os braços dela. A criada recebeu-a no seu abraço. Os cabelos ruivos da pequenita caíam em suaves ondas sobre as mãos negras da mulher. Por fim esta largou Samira e pôs- se de pé. – Podes já ir assistindo, minha querida, não faz mal algum ficares a saber passar a ferro. Ora bem, diz-se «pôr o ferro no fogo» porque dantes eram mesmo colocados sobre as brasas. Só que hoje em dia já ninguém faz isso assim. Enfiou a mão num balde com água e borrifou a superfície quente de um dos ferros. Produziu-se um silvo. Num instante a água evaporou-se e desapareceu. – Estás a ver? Agora o ferro já está suficientemente quente – pegou num cabo de madeira com uma haste de ferro, que servia para enfiar em duas argolas existentes na base, também de ferro, que ficara a aquecer no fogão. – É assim que o cabo é fixado. – Com o ferro na mão dirigiu-se ao lençol. Aquela base tinha a forma de um navio, terminava numa extremidade bicuda que parecia a proa. Passou com o ferro por cima do lençol e os vincos desapareceram como por magia. O pano estava tão limpo que a pureza da sua brancura quase feria os olhos. E com que mestria a criada fazia desaparecer os vincos com o ferro! Era bom só de ver. Ao observá-la, Leonor sentiu no seu interior uma tranquilidade pela qual já há muito ansiava. A criada voltou a colocar o ferro na placa do fogão e retirou o cabo. – E agora a menina Leonor – disse ela, entregando-lho. Leonor recebeu-o. A madeira estava quente. Enfiou a haste de ferro do cabo através das argolas da base, que aquecera no fogão, tal como vira fazer. Ergueu-o e voltou a pousá-lo imediatamente. – Meu Deus, como é pesado! A criada riu-se. – Eu também quero experimentar! – exclamou Samira. – Pega num pequeno – disse a criada. Retirou o ferro das mãos de Leonor, puxou o cabo e entregou-o a Samira. Conduziu a mão da menina de oito anos à base mais pequena de todas. Juntamente com ela, enfiou o cabo nele e levantou-o. – Oh, como isto é pesado… – disse Samira toda satisfeita. – Quero passar a ferro com ele! – Que pensas do atentado ao rei? – perguntou Leonor. A criada dirigiu-se para a mesa juntamente com Samira e ajudou- a a passar com o ferro por cima do lençol. – Cada um tem de obedecer ao senhor que tiver acima de si – respondeu ela. – E isto é válido para todos, desde o mais simples, por aí acima, até ao rei. Não nos cabe a nós a ousadia de falar acerca do rei. – Mas deves ter ouvido falar do atentado. – Foi Deus que determinou que José fosse o nosso soberano. O assassino não tem nada que mudar aquilo que Deus decidiu. Isso é uma insurreição contra Deus. Antero passou as pontas dos dedos por entre as pedras frias. Sentir as respetivas arestas dava-lhe a sensação de que as coisas tinham um início e um fim, de que havia uma realidade para além daqueles sonhos febris, das feridas ulceradas e latejantes e do sangue. Mantinha-se preso às arestas das pedras. O muro constituía um refrescante alívio. Encostou a face à pedra. Aquele terrível ribombar no interior da cabeça baixou de intensidade. Antero sentiu pó a fazer-lhe cócegas no nariz e teve de espirrar. Donde viria o pó? Talvez a torre estivesse a sofrer algum movimento. Aquando de grandes tempestades ela deveria oscilar, do mesmo modo que as árvores se dobravam para não se partir. E, se a torre oscilava, as pedras colocadas umas em cima das outras rangiam, moendo e triturando-se mutuamente, criando assim o pó. Talvez se conseguisse ouvir as pedras a estalar. As superfícies delas não eram perfeitamente uniformes, devia haver rachas e pequenas elevações, nas quais ficassem presas e não se deixassem mover, até a força da tempestade ser tão grande a ponto de parti-las. Pôs-se à escuta. Pareceu-lhe que a torre, com todas as suas pedras que se moviam e friccionavam, estremecia ligeiramente. Eram às centenas as mós que comprimiam as pedras e produziam aquela «farinha» de pedra. Poder-se-ia cozer pão a partir dessa farinha, um nutritivo pão de pedra. E a terra, essa poderia… Antero afastou-se da parede. Fitou a escuridão da cela e respirou profundamente. Era isso que dava origem aos tremores de terra! Em relação umas às outras, as rochas movimentavam-se paralelamente e era ao roçarem que se produziam os terramotos. Enormes massas de rocha que, ao longo de milhas e milhas e abaixo da superfície terrestre, moíam a pedra até a transformar numa espécie de farinha de pedra. Por isso não havia explosões. Por isso não se abriam enormes desfiladeiros. Por isso os tremores de terra também eram sentidos em cidades bastante distantes. Era a crosta terrestre. Possuía fissuras que não respeitavam as fronteiras entre os estados. Quando se conseguisse encontrar essas fissuras, talvez se pudesse passar a medir a movimentação das diferentes placas de rocha que constituíam a Terra, além de entender a estrutura do planeta e de calcular quando e onde se corria o risco de ocorrer um tremor de terra. Antero engoliu em seco. Iria reescrever o seu livro. Conseguiria agora explicar os tremores de terra ainda melhor e de um modo científico e assim quebrar o poder dos Jesuítas. Tinha agora de pôr tudo aquilo por escrito e de, antes de morrer, transmitir aquela sua descoberta. Arrastou-se até à porta da cela. – Guarda! – grasnou ele. – Guarda! Ninguém veio. Encostou o ouvido à porta. Afinal sim, sentia passos, só que não se aproximaram; ao invés disso afastaram-se. Bateu à porta. O seu punho enfraquecido não era capaz de produzir mais do que um ruído tímido. Ali ficou durante horas, com o ouvido encostado à porta, e ia gritando pelo guarda. Foi então que, de repente, se aproximaram passos. Eram várias pessoas. – Guarda! – gritou ele, produzindo um tom agudo. Entreviu-se luz, que entrou por uma greta abaixo da porta. Ouviu- se o tilintar de um molho de chaves e, para além disso, fizeram-se deslizar grossos ferrolhos. Antero arrastou-se para longe da porta, que não tardou a abrir-se. A luz encandeou-o, teve de proteger os olhos com a mão. – Preciso de ditar uma coisa – disse ele –, tenho de ditar uma coisa com urgência! A porta voltou a fechar-se e os ferrolhos trancados. A luz manteve-se. – Isto aqui não é um escritório, meu imbecil. A voz de Malagrida. Antero teve de conter-se, para não deixar transparecer nada. Colocou a palma da mão por detrás da ore- lha. – Que diz? – Ficaste duro de ouvido? – Malagrida passou a falar mais alto. – Estás com mau aspecto. Já não deves durar muito tempo! – É o padre Malagrida? Malagrida assoou-se com a mão, fazendo com que o ranho fosse projetado no chão da cela. Enojado, Antero recuou. O jesuíta esboçou um sorriso. Chegou-se junto de Antero. – Que foi que escondeste? Por que razão te mantêm vivo? Antero arrastou-se até à parede da cela, sentou-se e juntou os joelhos à barriga. – Eles querem saber alguma coisa a teu respeito – Malagrida acocorou-se, como um pai diante do seu filho –, e tu continuas calado. Achas que te executam mal lhes dê a conhecer o teu segredo, não é? – Fiquei a apodrecer nesta masmorra no seu lugar – disse Antero num tom raivoso. – O padre está por detrás do atentado ao rei. Gabriel Malagrida fez um esgar irónico. – Olha só quem se está a fazer de mau! Na actual conjuntura, cada um de nós cumpre o seu papel. E o teu é ficar aqui – disse Malagrida, esboçando ainda um sorriso. – Assassino! – Não, Antero. Limitei-me a promover o encontro das pessoas certas. – A marquesa de Távora jamais… – Oh, sim, a marquesa de Távora e o seu marido, o respeitável duque de Aveiro. Eles ajudaram com todo o prazer. Será que consegues ter a mais pequena ideia de como este rei débil e fraco se foi a pouco e pouco tornando um repugnante estorvo para eles? E Sebastião de Carvalho é o próximo a ser derrubado. Mas isso só vai acontecer depois de tu partires. Não tens razões para ficar preocupado – inclinou-se um pouco para a frente. – Anda lá, murmura-mo ao ouvido. Não vais querer levar o teu segredo contigo para a cova. Diz-me lá de que andam eles à procura ali nas ruínas da biblioteca. Diz-me por que razão não te executam de uma vez. Depois disso, já vou poder dormir descansado, e tu também. É claro que queres isso. Alivia-te de uma vez. Vais ver como isso te faz sentir melhor. Esse negro segredinho deve estar a pesar-te na consciência. Livra-te dele. Deixa-o escapar-se. Antero ergueu-se, mantendo-se, no entanto, encostado à parede, e olhou Gabriel Malagrida diretamente nos olhos. – Revelo-lhe a razão por que ainda estou vivo e por que estou aqui na masmorra a apodrecer, mas só o faço sob uma condição: que me explique como consegue conciliar com a sua fé o rapto de uma menina, o assassínio do rei e o facto de um inocente apodrecer aqui neste buraco. O rosto de Malagrida adotou uma expressão séria. – Sempre fui um promotor dos interesses da Coroa. Servi a Casa Real, tanto nos territórios ultramarinos como em Portugal. Sempre me mantive à disposição, prestando a minha ajuda e os meus conselhos, ano após ano. Foi precisamente assim que servi a Deus. Fui eu quem converteu os índios em cristãos. Fui eu quem, após o terramoto, exortei para que se realizassem penitências. Estou a cumprir a missão que Deus me confiou. Deus é o mestre da vida e da morte. Se eu libertar alguém da vida, alguém que deixou de ser fiel ao cumprimento da sua missão, então ajo em nome de Deus! – Quando lhe atribuiu Ele essa missão? Quando lhe disse Ele que matasse o rei? Quando lhe ordenou Ele que raptasse Samira, com oito anos, quando? O olhar de Malagrida cintilou. – Deus não tem de me indicar cada um dos passos que dou. – Eu digo-lhe qual é o meu segredo, o padre é que vai passar o resto da vida no buraco que é esta masmorra, ao passo que eu sairei daqui. As ratazanas arrancar-lhe-ão das mãos o pão já bolorento. Às tantas, deixará de saber quando é dia ou quando é noite. Há de cagar sangue. Há de ter feridas que infetam e vertem pus. Malagrida esboçou um sorriso desdenhoso. – E como queres tu alcançar isso? Ninguém vai acreditar em ti. Queres acusar os nobres mais poderosos do Reino de terem conspirado para assassinar o rei, e a mim, o líder dos Jesuítas? Uma tentativa deplorável, a tua, de te livrares da tua própria culpa. Ela é só tua, Antero, está colada a ti como pez, não se desgruda dos teus dedos. Desta vez não há nenhum «ego te absolvo». Antero reuniu as últimas forças de que dispunha. Arrastou-se até à porta. Com muita dificuldade conseguiu erguer-se, já junto a ela, até ficar de pé nas pernas que lhe tremiam. – Abram – disse ele. Os ferrolhos voltaram a deslizar e a porta abriu-se. Por detrás desta, tal como fora combinado com o secretário de Estado do Reino, estavam os homens que tinham sido de imediato notificados para ali comparecer logo que Malagrida surgisse junto da torre. Um notário. Um escrivão. Quatro guardas, para o caso de o padre tentar fugir. Antero cambaleou. As pernas dobraram-se-lhe, incapazes de o segurar de pé. Um dos guardas apoiou-o e manteve-o assim. Antero virou-se para Malagrida. – Eu não tenho problemas de audição. Só precisava era que falasse suficientemente alto para que este notário e este escrivão conseguissem, através da porta, ouvir bem as suas palavras. Sinta- se à vontade aqui na cela. Ela agora pertence-lhe. O rosto do jesuíta ficou lívido. – Eu estou sob proteção da autoridade papal! Antero acenou com a cabeça, em jeito de concordância. – Pode até ser, mas isso pouco diz a um rei que por sua causa recebeu dois tiros. 35
À alvorada, os soldados puseram-se em marcha. Os passos que
davam com as suas botas ecoavam por entre as casas. Entraram no palácio da família Távora. Os nobres foram arrancados do conforto das suas camas e a a marquesa de Távora arrastada para a rua em camisa de dormir. Ao marquês os soldados trataram de prender os braços atrás das costas. Ele protestou com veemência e de imediato foi amordaçado por um oficial. Ao mesmo tempo puderam ouvir-se gritos no palácio do duque de Aveiro. – Acudam! Estou a ser assaltado! Entre gritos agudos, o duque foi levado para o exterior. No meio dos soldados, homens de estatura acima da média, ele parecia uma criança. Um sargento aplicou-lhe uma bofetada com a palma da mão. Só assim o duque se calou. Ao ver que também a mulher e os filhos eram trazidos para fora de casa, viu-se nos seus olhos uma expressão de profundo medo. Em Belém, um soldado da guarda pessoal do rei, de tez amarelada, foi conduzido até um muro. Foram-lhe vendados os olhos. Aguardou em silêncio. – Apontar! – ordenou um sargento. – Fogo! Os tiros disparados pelas armas estrondearam. O soldado caiu por terra e morreu sem um ai. Pelas nove horas da manhã, Filippo Acciaiuoli, o núncio papal, entrou intempestivamente no gabinete do secretário de Estado do Reino: – Exijo uma explicação! Da secretária à qual estava sentado, Sebastião de Carvalho, com o rosto impassível, fitou-o. – A respeito de quê? – perguntou. – Com que direito mantém preso o padre Malagrida? – a voz de Acciaiuoli soou esganiçada, tal a fúria que trazia. – Ele é acusado de ter vaticinado a morte do rei e de, por meio de uma conspiração, ter efetivamente tentado levá-la a cabo – respondeu o secretário de Estado. – Há provas disso em quantidade suficiente. – E que provas vêm a ser essas, afinal? – Uma confissão pessoal, por exemplo. O núncio engoliu em seco. – E quem o vai julgar? – perguntou, num tom de voz substancialmente mais baixo. – Ninguém aqui tem competência para tal. – Enquanto secretário de Estado do Reino, sou eu mesmo o responsável por este caso. Serei eu a conduzir os interrogatórios aos suspeitos e dirigirei o processo, com a ajuda de outros juízes sob as minhas ordens. O núncio franziu o sobrolho. – Julgar um jesuíta está fora da sua alçada! – Deverei talvez recordá-lo de que estudei direito na Universidade de Coimbra. Se pretender queixar-se junto de Clemente XIII, não se esqueça de lhe dizer também que há nove anos fui eu quem conduziu as negociações entre Maria Teresa de Áustria e o Vaticano, quando ainda o seu antecessor estava em funções. O Papa irá pelos relatos dos seus colaboradores perceber que eu não tenho qualquer receio de ameaças vãs. Filippo Acciaiuoli pressionou os lábios com tal força que estes ficaram sem cor. – Esta ainda não foi a última palavra que se disse sobre este assunto! – balbuciou ele por fim. Deu meia-volta e avançou até à porta. – Espere – chamou-o ainda Sebastião de Carvalho. – Cumpre-me informá-lo de que está obrigado a manter silêncio em relação à acusação e ao processo. O rei deseja que tudo seja mantido em segredo. É claro que não vai respeitar esta ordem do rei. Mas depois não me venha dizer que não foi avisado. Ainda nesse mesmo dia uma mulher nobre foi libertada. A jovem Teresa de Távora colaborou com a investigação e indicou mais outros conspiradores da sua família. Era a amante do rei. A sua execução teria partido o coração a Dom José. Em Portugal não se falava de outra coisa que não fosse o facto de o duque de Aveiro, presidente do Desembargo do Paço, ter sido detido. Homens e mulheres para quem o povo olhava como se fossem semideuses, estavam agora detidos na prisão como criminosos perigosos: o conde da Atouguia, a velha marquesa de Távora e o marido. Além disso, circulava o rumor de que cerca de uma dúzia de padres jesuítas havia igualmente sido encarcerada. Leonor continuava a não ter acesso ao secretário de Estado do Reino. A hora que diariamente ele dedicava a ouvir as pessoas foi cancelada até nova ordem, ninguém conseguia chegar até junto dele, nem mesmo os nobres que pretendiam suplicar pela vida dos seus familiares. Os advogados que Leonor tentou convencer a defenderem Antero limitaram-se a recusar, argumentando que quem dispara sobre o rei não tem defesa possível. Foi marcada uma execução pública para o dia 12 de Janeiro de 1759. Leonor entregou Samira à guarda da criada e fez esta jurar que a pequenita não sairia de casa. No meio de grande nervosismo, ela mesma dirigiu-se a Belém. Ao avistar o potro e o cadafalso, sentiu-se mal. – Por favor, meu bondoso Deus – rezava ela –, permite que Antero não esteja entre os condenados! Entre o público dizia-se que, sob tortura, os acusados haviam revelado o nome de doze jesuítas. Todos os edifícios e instituições pertencentes à ordem estavam agora cercados por soldados do rei. O falatório emudeceu quando começaram as execuções. Muitos foram os que desviaram o olhar para não ver. Leonor ficou a assistir. O duque de Aveiro, com a sua pequena estatura, foi supliciado no potro. Gritou bem alto com a sua voz de falsete. Atrás dele, um britânico soltou um gemido. – Tratar assim um membro da alta nobreza! – vociferava ele. – É uma barbaridade. Arrastou-se aquele pequeno corpo desarticulado para o cadafalso e foi-lhe cortada a cabeça. O cadáver foi queimado naquele mesmo lugar, naquela mesma altura. De seguida, foram buscar a marquesa de Távora. Também ela foi torturada no potro. Os seus gritos estridentes ouviram-se bem longe. Depois dela, foi a vez do antigo vice-rei da Índia, o seu marido. A seguir a este veio o conde de Atouguia e outros seis. Todos foram por fim decapitados. Para terminar, o carrasco pegou fogo ao cadafalso. As cinzas dos executados, misturadas com as do cadafalso, foram espalhadas pelo Tejo. Leonor, como que atordoada, assistiu a tudo. Antero não surgira entre os executados, mas ainda assim ela era incapaz de sentir qualquer alegria. Sabia bem que aquilo que vira persegui-la-ia em pesadelos durante anos. O vento mudou de rumo e soprou as cinzas na direção da assistência. Não tardou que ficassem com os cabelos, a cara e a roupa cheios de partículas, que se depositaram por todo o lado, como se os defuntos não quisessem deixar de estar presentes. Chegara a Primavera. Leonor não tardou a passar a ferro camisas, jaquetões e toalhas de mesa com uma mestria tal que se diria que não tinha feito outra coisa a vida toda. O rendimento que daí obtinha não chegava para pagar a uma cozinheira, mas Leonor era capaz de ganhar o bastante para o vestuário e alimentação de Samira e de si mesma. O ar quente que entrava pela janela invadia a casa. O canto dos pássaros soava mais esperançoso, mais alegre. Leonor pousou sobre o fogão a base do ferro de engomar em uso, retirando de lá uma outra, já quente. Pela janela, lançou uma olhadela para o exterior. Chapins, pendurados nos ramos de cabeça para baixo, debicavam os rebentos mais jovens. No pátio vizinho, cabritinhos ensaiavam os primeiros passos. – Mas eu não tenho vontade alguma de arrumar o quarto! – ouviu ela Samira gritar. A voz meiga da criada, que viera de visita, respondeu-lhe: – Vá, anda daí, querida, eu ajudo-te a fazer isso. Foi então que, atrás de si, ouviu a porta abrir-se. Alguém entrara na cozinha. Pousou o ferro de engomar e virou-se. Antero estava ali diante dela, esquelético. – Leonor – disse ele –, que bom ver-te. Ela teve de apoiar-se no móvel. – Mas tu… Foi o secretário de Estado do Reino que te… O coração dela batia descompassadamente. – O rei Dom José concedeu-me uma amnistia. Estou livre. Prometi-lhe que iria realizar conferências sobre a origem dos tremores de terra. Como bem sabes, o povo está furioso com os Jesuítas, que por todo o lado estão a ser perseguidos. Assim sendo, vão precisar de mim. Como te correm as coisas? – Nem sei bem… – balbuciou ela. Dos olhos brotaram-lhe lágrimas. – Não consigo compreender como te podem ter feito isso. Estás mesmo com mau aspecto. Antero riu-se. – Devias ter-me visto há umas semanas! Antes de os médicos do secretário de Estado tratarem de mim, eu parecia mesmo prontinho para a sepultura. «A vida e a morte andam sempre tão próximas», pensou Leonor. Chegou-se junto de Antero, pegou na sua mão emagrecida e puxou- o para junto de si. – Vou dar-te de comer – disse ela. «E vou amar-te», pensou. – Vou trazer-te de volta à vida. Ouviu-se as patas de um cão a trepar pelas escadas, arranhando os respetivos degraus enquanto as subia. Bento ladrou e chegou ali impetuosamente. Antero acocorou-se e afagou-lhe o pelo. Depois quis ver como estava a pata de Bento. O cão coxeava, mas a ferida tinha sarado bem. – À noite logo arrumo o quarto! – gritou a voz límpida de Samira da outra parte da casa. – Deixa-te ficar aqui! – ordenou a criada. Mas já os pés de uma criança, aos saltos, ressoavam pelas escadas. Samira ficou parada na entrada da cozinha, os olhos muito abertos. – Papá? – murmurou ela. Ele sorriu. Com uma exclamação algures entre o choro e o riso, Samira lançou-se nos braços de Antero. Agradecimentos Dra. Rita Haub, da Província Alemã dos Jesuítas, que gentilmente me respondeu a algumas questões acerca da Companhia de Jesus. Barbara Fellgiebel, por uma lista de palavras portuguesas e respetiva pronúncia. Barbara Fellgiebel dirige a Associação dos Amigos da Literatura e do Filme no Algarve – Assoziation der Literatur und Filmfreunde der Algarve (ALFA), www.alfacultura.com As colaboradoras do Departamento de Cartografia, na Biblioteca da Universidade de Göttingen e do estado da Baixa Saxónia. Com elas, a caça ao tesouro foi realmente um prazer! Nunca antes tive à disposição uma tão rica variedade de material cartográfico para a preparação de um romance. Ruben Grieco, por informações a respeito da história da Companhia de Jesus. Ralf Döbbeling, que me abriu os olhos para algumas redundâncias retóricas no romance e fortaleceu a figura de Leonor. Elli Bochmann, que, com as suas súplicas, salvou a vida de Bento. Andreas Wilhelm, por me ensinar uma imprecação em português. Justus Hotte, cujo olhar atento de livreiro e leitor me ajudou a intensificar, entre outras, a tempestade no início do romance e a descrição do terramoto. Lena Schußmann, pela ajuda nas passagens mais emocionais do romance. E por muito mais. Michael Gaeb, o meu agente literário, que, ao longo de uma cansativa hora, me explicou por que razão eu iria ter de recomeçar o romance do início, muito embora já quase o tivesse pronto. Gunnar Cynybulk, pelo oitavo livro que fazemos em conjunto. Muito obrigado pelas muitas horas de empenho que investes nos meus romances! A tua capacidade de trabalhar o cerne de uma história nunca deixa de me surpreender. Agradeço sobretudo aos meus leitores fiéis. São eles que me possibilitam continuar a cumprir este meu sonho, que consiste em contar histórias e, com elas, conseguir comprar o meu sustento e pagar a renda de casa. Essa é, para mim, uma maravilhosa dádiva! Índice CAPA Ficha Técnica PRIMEIRO LIVRO 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 SEGUNDO LIVRO 29 30 31 32 33 TERCEIRO LIVRO 34 35 Agradecimentos