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Não importava quantas vezes ele tentasse, ou de quantas

maneiras ele tentasse, ou, até mesmo, a intensidade em que ele


tentasse; Ezra Mullighan Fraiser era incapaz de tirar aspecto
molhado que suas mãos carregavam.
O homem já havia tentado de tudo e nada parecia ter efeito.
Lavava as mãos com a frequência diária de um parteiro recém-
formado, assim como passava seu lenço de bolso nelas com a
mesma avidez de uma donzela virgem tentando se amostrar a
cavaleiros. Ele tentou até mesmo molhar, de fato, os dedos —
tentar fazer com que a realidade mostrasse que aquela sensação
era apenas uma alucinação, um sentimento engarrafado, uma
impressão errada. Suas mãos não estavam realmente molhadas,
não estavam realmente sujas. Não era real. Nada daquilo deveria
ser real.
Não funcionou. Quando acordava de madrugada suado em seus
lençóis, acreditava cegamente de que suas articulações estavam
cobertas em gosma escura, até que ascendesse a luminária e
visse com os próprios olhos que não tinha nada ali. Dedos
limpos, esguios e magros era tudo que encontrava, e ainda sim...
ainda sim...
As luvas ajudavam. Sua irmã não disse nada quando ele comprou
o par mais vagabundo no píer quando saíram das Terras Altas, e
sua mãe também fez vista grossa quando sua primeira compra
em Londres foi uma encomenda sob medida de luvas grossas em
material negro. Estava contente de nenhuma das mulheres ter
lhe dito nada, porque ele certamente não precisava delas
falando que aquilo não era uma boa ideia — Ezra sabia disso. A
maior missão de todos ali era não chamar atenção de maneira
negativa, e usar luvas de couro no verão certamente não
ajudava.
Mas Ezra passou anos sentado no fundo do escritório de seu pai
observando o jeito como o patriarca lidava com a contabilidade
da família, e ele podia dizer com certeza de que se havia algo que
sabia fazer, era gerenciar riscos. Às vezes, era necessário vender
três tubos de linho fino para receber a confiança de um possível
vendedor de seda no futuro, e essa era a mesma situação de
agora: ele precisava comparecer a bailes de gala, precisava
ajudar no re-debute de suas irmãs, precisava ser o homem da
casa e o novo patriarca da família. Ele precisava ser tudo isso, e
ele não iria conseguir se não controlasse a vontade berrante e
constante de lavar as próprias mãos. As luvas eram chamativas,
mas ajudavam. Era um risco necessário, seu pai concordaria.
Seu pai. Hm. Imaginava o que o grande Sr. Fraiser diria se
soubesse que de agora em diante, todos os seus filhos seriam
ingleses – ou ao menos, desesperadamente tentando se casar
com algum. O homem provavelmente preferia morrer do que ver
tamanho antipatriotíssimo.
— Ezra? — a voz mais harmônica do mundo chamou atrás de si,
distante, mas se aproximando. — Ezra, você está bem?
Demorou alguns segundos e alguns passos afofados até que o
mais velho sentisse a presença de alguém por perto, e quando
virou-se, encontrou a imagem reluzida de sua irmã atrás de si,
ostentando uma expressão de preocupação que estava quase se
mesclando com seus traços faciais de tanto que a jovem a usava
nos últimos tempos.
— Estou bem. — respondeu, de maneira flutuante, juntando as
próprias sobrancelhas em desentendimento. Não era do feitio de
ninguém comparecer a seu quarto, por mais novo que este seja.
— Estou bem, por que não estaria?
Sua irmã mais nova abaixou o olhar de seu rosto até a altura de
seu colo, e então para o rosto de novo, e o colo de novo,
receosa.
— Você disse para que nos arrumássemos rapidamente — a
garota obviamente forçava a voz para deixa-la a mais suave
possível, a mais calma possível, quase que para não assustar o
outro. —, entretanto, subiu para o seu quarto e passou a última
hora aqui em cima. Está doente, irmão?
A nuvem sombria de seus próprios pensamentos se dissipou na
mesma hora em sua mente, e de maneira sufocante, Ezra tomou
conhecimento total do tempo e espaço. Abaixou o olhar para o
mesmo ponto onde sua irmã estava encarando a poucos
segundo atrás e notou ambas suas mãos ensaboadas,
avermelhadas, pingando água no carpete abaixo de si. Notou
também a pia do seu banheiro logo atrás de si, o enorme
espelho que refletia sua própria imagem, e lembrou-se que
estava em seu quarto, arrumado e bem vestido, esfregando as
mãos com avidez.
Lembrou-se também que dia era o de hoje, e desejou poder
esquecer de novo.
— Não. Não se preocupe, só me distrai um pouco. — murmurou,
pegando a toalha branca que havia ao seu lado e esfregando
seus dedos nela com uma rapidez impressionante. Quando
terminou, havia resquícios de fios de algodão em sua pele e o
atrito áspero da secura de sua pele; mas ele ainda a sentia
profundamente encharcada. — Já estão todos prontos?
Encontrou seu irmão?
— Ezra. — a outra recitou mais uma vez, o tom lavado e
calculado começando a irritar o mais velho. — Talvez... talvez nós
não devêssemos ir hoje.
A ideia demorou um pouco para ser absorvida por si, e quando o
fez, foi tão absurda que se permitiu soltar uma risada – um único
risinho frouxo, impressionado, antes de perceber que a garota
não ria consigo, e voltou a seu semblante desconfiado. Em um
estalo de segundo, seus olhos praticamente saíram de seu rosto.
— O que Edward fez agora? — soltou a tolha na mesma hora, se
aproximando da garota, as orelhas já zunindo. — Ele está preso
de novo, não é?
— O que? Não! Não, por Deus, eu...
— Jogando? Apostando? Bebendo, certamente.
— Ezra!
— Se você disser que ele está com alguma prostituta no beco
atrás da Allenwood de novo, Eliza, eu juro que eu...
— Ezra Fraiser, controle-se!
O primogênito parou no mesmo lugar onde estava, piscando
demorada e fortemente, atordoado. Não era todos os dias que
se era escoltado por sua irmã de dezenove anos – bem, no caso
dele, de fato era todos os dias, bem rotineiro até, mas havia
alguns bons meses que Eliza não agia de tal maneira. Fazia alguns
meses que nenhum dos irmãos agia da maneira rotineira.
Sentiu o rosto se esquentar com o calor de mil sois, e por tal
engoliu a seco, abaixando a cabeça. Sabia que estava uma
bagunça, uma confusão, um tornado de descontrole e
pensamentos avoados; mas prometeu a si mesmo que não
deixaria nenhum dos outros Fraisers sequer desconfiarem de tal.
— Desculpe. Desculpe, Eliza, eu não quis assustá-la. — ambos
sabiam que a garota precisaria de muito mais para se assustar,
mas ela concordou com a cabeça de todo jeito. Ezra pigarreou.
— Essa é uma noite importante, muito importante. Tudo precisa
ser perfeito. Eu... talvez eu esteja um pouco afetado por conta
de tudo isso.
— E é exatamente por tal que, talvez, seja melhor se não
comparecêssemos ao evento de hoje. — a garota retomou o
assunto. — Apenas... é apenas um baile. Apenas isso. A
temporada acabou de começar, e eu tenho certeza de que ela
será repleta de inúmeros bailes. Podemos ir a qualquer outro,
não há necessidade de irmos hoje. Um único dia não vai atrasar
nossos planos.
Ezra olhou para a irmã – finalmente olhou para ela. Por exemplo,
essa era a primeira vez desde o início da conversa que ele notava
o vestido de festa que a mesma usava. Era colado ao corpo,
como todos sempre eram, com o colo desnudo por ser uma
debutante, e todo trabalhado em uma tonalidade azulada que
complementava lindamente os olhos de Eliza; olhos esses que
não eram nem parecidos com os do pai, e nem com os da mãe.
Os olhos da segunda filha do Sr. e da Sra. Fraiser eram um azul
submergido, apagados, mais acinzentados do que tudo. Uma vez,
Elijah disse que era como se tivessem pegado os olhos azuis do
papai e passado uma camada dos marrons de mamãe por cima,
misturando-os, e essa era uma ótima definição.
Os cabelos, como os olhos, também eram uma mistura – nem o
vermelho vivo do pai, nem o breu negro da mãe. Um castanho-
avermelhado, ao tom do vinho tinto, vermelho unicamente
quando posto ao sol, e agora o cabelo estava posto em um
penteado erguido que segurava os cachos grossos, enfeitado
graciosamente por fitas azuladas. Azul e vermelho sempre
combinaram bem, e sempre foram as cores da família Fraiser.
Eliza estava completamente deslumbrante.
Era uma pena que, se continuasse com tamanhas baboseiras, ela
iria ser deslumbrantemente trancada dentro do próprio quarto.
— É o baile de Lady Heathcliff. É o primeiro baile da temporada,
a apresentação de todas as debutantes da temporada. — agora
era ele quem usava o tom calmo e calculado, como se explicasse
para uma criança de seis anos uma regra que já havia sido
repetida mil vezes. Era exatamente assim que se sentia. — É
claro que nós iremos.
— Não há necessidade alguma para irmos hoje, não quando os
nervos de todos estão tão...
— Você perdeu a cabeça? Estamos esperando esse baile a
meses, estamos treinando e estudando a meses. Como pode
achar que essa é o tipo de ocasião em que podemos
simplesmente...
— Ezra, a Eileen não está bem.
O mais velho piscou uma vez. Uma única vez.
No momento seguinte, antes mesmo que se desse conta, seus
pés já estavam se movendo escadas abaixo.
— Ezra! Ezra!
Eliza berrava seu nome atrás de si, provavelmente o
acompanhando nos passos também, mas o mais velho dos
irmãos mal conseguia ouvir – passou por algumas centenas de
arrumadeiras que preparavam os últimos ajustes da casa antes
de se porem a dormir, assim como passou por Roosevelt, o novo
mordomo da casa, descendo diretamente para o salão principal
da casa.
Quando abriu a porta, a sala principal de descanso estava vazia,
o que era completamente raro de se acontecer em uma família
de sete; completamente vazia, se não fosse pela visão da
matriarca da família, a Sra. Daisy Fraiser, parada no meio da
mesma, parecendo magnificamente preocupada.
— Onde ela está? — a mãe não precisava de muito além para
saber do que aquilo se tratava. — Ela está bem? Está se sentindo
bem? Já chamaram um médio, um...
— Meu querido, ela está bem. — a mais velha disse, usando uma
única mão para apoiar delicadamente na bochecha do outro. —
Shh, está bem, está tudo bem. A saúde dela está bem, está tudo
certo.
Ezra respirou com dificuldade, espreitando os olhos, sentindo as
linhas de sua testa se apertarem.
— Mas... Eliza disse que...
— Eileen está nervosa. — corrigiu sua mãe, ainda com o mesmo
olhar de preocupada. — Não é para menos, dado as
circunstâncias, mas ainda sim. Honestamente meu filho, eu
nunca vi sua irmã tão perto de um colapso mental.
O mais velho conseguia ouvir o palpitar de seu próprio coração,
assim como conseguia quase sentir as engrenagens de seu
cérebro, desesperadamente trabalhando entre si.
— Incluindo aquela vez no lago de Glenfinnan?
Daisy concordou com a cabeça.
— Incluindo aquela vez no lado de Glenfinnan.
Ezra engoliu um xingamento que surgiu na ponta de sua língua.
Ele já tinha se mostrado demais fora do controle na frente da
família e, mesmo desconsiderando o monstro de vinte cabeças
que aquela situação toda se tornou, ele nunca gostou de estar
fora do controle. Por tal, ele fechou os olhos, e com toda a força
do mundo que tinha, respirou fundo. O mais fundo que pode,
fundo o suficiente para doer o peito quando ele, por fim,
expirou. Sua mãe acompanhou todo o processo de olhos atentos
e boca calada, como ela vinha fazendo nos últimos tempos. O
mais velho era grato por tal.
— Ela está nervosa. É claro. Todos nós estamos nervosos, eu
também estou nervoso, é uma grande noite. — ele disse. — Mas
não é motivo para faltarmos o baile de hoje.
Foi a vez dela de juntar as sobrancelhas, do mesmo jeito que ele
fez antes.
— Quem disse que faltaremos o baile de hoje?
O outro deu um passo para o lado e virou-se para trás,
encontrando Eliza parada a pouco atrás de si, parecendo
subitamente surpresa pela falta de apoio automático de sua
mãe.
— Eu não disse que não iremos! Eu só disse que, talvez, talvez,
não fosse a melhor das ideias, dado em conta o estado que todos
nos encontramos hoje. Mas foi só eu falar da Eileen que o Ezra já
saiu correndo e...
— E qual o estado em que nos encontramos hoje, Srta. Fraiser?
— a matriarca respondeu, o rosto impassível e o subjetivo na
frente do sobrenome da outra provocando arrepios até no mais
velho. Ezra quase sorriu.
— Oh, mamãe, por favor! Nós estamos uma bagunça! Ezra está
nervoso, Eileen parece que vai matar alguém a cada respirada, a
senhora vai fazer um buraco no carpete novo de tanto andar, e
eu não vou nem começar a falar sobre Edward!
— A única coisa que eu vejo, jovenzinha, é uma família recém
chegada a Londres, e que ainda não foi apresentada a ninguém.
O baile de Lady Heathcliff é o único baile sem convites da
temporada, e o único no qual podemos entrar, visto que não
conhecemos ninguém aqui. — Daisy retrucou. — É de súbita
importância que comparecemos ao baile de hoje, para fazer
conexões, para conhecer novas pessoas, e para sermos
chamados aos próximos bailes. Como pretende ser convidada a
futuros bailes se ninguém a conhece?
— Oras, mamãe, a senhora sabe que...
O primogênito aproveitou que sua progenitora e sua irmã
estavam discutindo tão avidamente e rapidamente foi para o
segundo salão da casa, a pequena e privada sala de leitura, tal
qual de tomar chá. Não encontrou Eileen ali. Rodou pela
biblioteca, também no andar de baixo, e igualmente, nada.
Olhou até mesmo nos banheiros, e na bancada que levava ao
jardim; e, mais uma vez, nada. Estava quase voltando para a
confusão do salão principal para perguntar o paradeiro da outra
a sua mãe, quando viu a porta do escritório lateral estando
levemente aberta.
Quando deu o primeiro passo dentro do cômodo, um par de
olhos azuis lhe fuzilou o rosto.
— Olá.
A outra o encarou por alguns segundos, um livro grosso apoiado
em seu colo, seus dedos longos agarrando-se na capa como se
fosse um colete salva-vidas. Ezra não precisou de nenhuma
informação além.
— Olá. — ela murmurou.
Olhar para Eileen era como ver o seu próprio reflexo costurado
no rosto de um outro alguém – e isso estava fortemente ligado
ao fato dos dois serem gêmeos. Gêmeos de sexo diferentes não
costumavam ser muito idênticos, mas Ezra e Eileen não
poderiam ser mais parecidos nem mesmo se quisessem. E se um
era a imagem refletida do outro, ambos eram a imagem cuspida
de seu pai.
Era impossível negar a origem escocesa dos dois, não com ambos
tendo cabelos cor de fogo e olhos cor de água. De todos os
irmãos, os gêmeos eram os que tinham os atributos mais
marcantes, os traços mais fortes: as sobrancelhas grossas, a
mandíbula marcada, os olhos pequenos, os gigantescos cachos
que Ezra tinha que aparar mais que mensalmente para manter
em um tamanho respeitável.
Se os cabelos de Eliza eram um castanho puxado ao vinho tinto,
mal perceptíveis até mesmo sob o sol da tarde, os cabelos de
Ezra e Eileen não eram nada menos do que ruivo. Não chegavam
a ser laranja, mas era um acobreado vivo; cobre que refletia e
brilhava tanto na luz do sol, quanto na luz da lua.
Dos seis filhos de sua mãe, os gêmeos eram os que tinham os
cabelos mais claros, as sardas no rosto mais visíveis, os olhos
azuis mais pálido e clareados, o sotaque escocês mais forte e
palpável. Os outros poderiam até fingir, praticar, moldar-se a
novas maneiras, maneiras mais inglesas; mas Ezra e Eileen nunca
poderiam fingir serem menos escoceses do que eram. Era
inegável.
Quando moravam em Inverness, aquilo não era nada além de o
normal – era uma beleza comum, agradável, rotineira, onde o
tom de ruivo escurecido e quase acastanhado dos filhos mais
novos sempre se destacavam mais. Ali, na Inglaterra, esse tipo de
tonalidade clara fazia com que nunca saíssem despercebidos de
lugar nenhum.
Ezra suspirou com o destino imutável, abaixando seu olhar para
o vestido de festa que a irmã usava. Hoje em especial, Eileen
usava de uma peça brilhante roxeada para ir ao baile, e apesar
de incrivelmente bela, Ezra não pode deixar de pensar que
aquela cor a fazia parecer um pouco mais velha. Mais do que
seus já 24 anos.
— Está pronta? — foi tudo que perguntou, porque não teve
coragem de perguntar mais nada. Não podia perguntar sobre o
nervosismo da outra, porque se o fizesse teria que reconhece-lo,
e se o fizesse, teria que ser abertamente insensível e bruto ao
ignorar tal sentimento.
Sua irmã pareceu entender a deixa, porque rapidamente
concordou com a cabeça.
— Certamente. — respondeu, e nada mais foi dito. Eileen não se
levantou da cadeira onde estava, e Ezra não saiu de perto da
porta do escritório. Os dois mal respiravam.
— Eu... — ele começou.
— Acredito que... — ela disse ao mesmo tempo.
Ambos se calaram de novo. Ezra percebeu que a infamiliar
vergonha entre eles se pautava no quanto que um estava
tentando fingir que estava tudo bem para o outro – o que era
patético. Ezra fazia tudo com sua gêmea. Quando tinham catorze
anos, eles fugiram de casa numa noite fria e pegaram hipotermia
ao nadar no lago Gutthus. Quando tinham dezoito, Ezra pegou o
charuto que ganhou do pai e partiu ao meio, dividindo-o com a
irmã antes do baile de debutante da mesma (nenhum dos dois
conseguiu tragar nada). Quando tinham vinte e três anos, Eileen
permitiu que o irmão chorasse em seu colo quando o pai
finalmente escolheu uma noiva para si.
Mas isso fazia anos, e desde que se mudaram para Inglaterra,
parecia ainda mais distante. Além disso tudo, nenhum deles era
burro; eles sabiam o que tinham que fazer. Eles sabiam seus
deveres como irmãos mais velhos, como o primeiro homem e a
primeira mulher entre os filhos. Acima de tudo, eles sabiam o
que tinham que fazer para que o plano desse certo. Eles não
podiam sequer fingir que as coisas são ou poderiam ser
diferentes, como Edward (e as vezes até Eliza) constantemente
fazia. Eles tinham que enfrentar a realidade. Eles precisavam se
casar bem, todos eles precisavam, e o mais rápido possível.
E por que eles tinham que fazer tudo isso?
— Eu fui no quarto checar como estava o sono de Erin. — Eileen
falou, tão distante, mal parecendo ser direcionado para Ezra.
Talvez sequer fosse.
Os músculos da face do outro se relaxaram um pouco ao ouvir
falar da caçula.
Por isso.
— E como ela está?
— Dormindo como um anjo. — disse. — Bem, se anjos
roncassem. E ela ronca, Ezra. Auditivamente. Como uma menina
de seis anos pode roncar tão alto assim?
— Oh, foi por isso que tiramos Eli da ala infantil, de fato. —
respondeu. — Era castigo demais para os ouvidos do garoto
dormir no quarto ao lado do dela.
— Ele tem só onze anos, os ouvidos ainda estão em
desenvolvimento.
— Tal barulho pode gerar uma perda auditiva a longo prazo, sem
sombra de dúvidas.
Os olhos de Eileen se iluminaram por uma fracção de segundo, e
Ezra quase se sentiu orgulhoso por tal. E então a faísca morreu,
as luzes se apagaram – e seu olhar ficou mais sombrio do que em
qualquer outro momento da conversa.
— Ela ronca como o papai. — Eileen disse. — Eu entrei no quarto
dela. Estava tudo escuro. Eu só conseguia ouvir o ronco dela, e
por um segundo, por um segundo, eu pensei que ele estava ali.
Ezra abaixou a cabeça, tocando os próprios pulsos atrás de
equilíbrio, desejando estar com suas luvas, desejando ainda mais
que a gêmea não tocasse nesse assunto. Ele definitivamente não
tinha cabeça para isso agora.
— Ela só tem seis anos, Z. — ela disse. — Tanta coisa aconteceu
nos últimos meses. Ela agora está em um lugar novo, um país
novo, com pessoas que ela não conhece, com hábitos que ela
não entende, falando em um sotaque que não parece em nada
com o nosso. Deve ser horrr... — quando seu sotaque escocês
escapuliu na última palavra, ela parou, engolindo a seco, e se
forçando a utilizar o sotaque mais moderado e suave que
estavam praticando a meses, retomando: — Deve ser horrível.
O mais velho concordou, não achando que cabia espaço para ele
falar alguma coisa, porque não havia nada a se falar. É claro que
era horrível, aquilo era horrível para todos eles; mas era
diferente para eles, porque eles eram mais velhos. Ele e Eileen
tinham 24, Edward tinha 20, Eliza tinha 19 e até mesmo o jovem
Elijah já tinha 11 anos – era difícil, mas eles eram mais velhos.
Eles tinham memorias na terra natal, memorias com sua família
paterna, memorias com seu pai. Boas memorias.
Enquanto Erin, a caçula dos seis irmãos... se fosse para ela ter
como memoria os últimos acontecimentos que se desenrolaram
na Escócia antes deles se mudarem, Ezra preferia que ela não
tivesse memoria alguma.
— Nós precisamos fazer certo. — os olhos de Eileen encontraram
os de Ezra, e ele soube que ela entendia. — Por ela. Nós
precisamos fazer certo por ela, para ela. Não importa o que
aconteça, ela precisa estar protegida. Ela precisa ser de uma
família rica, influente e conhecida quanto atingir a idade de fazer
seu debute.
Aos 18. Erin tinha que pertencer a uma família rica, influente e
conhecia no meio londrino até seus 18 anos de idade – daqui a
doze anos. Parecia ser muito tempo, mas considerando que eles
precisavam criar um nome e uma reputação impecável para si
nesse meio termo, com cinco casamentos e diversos herdeiros
até lá, talvez não fosse tanto tempo assim.
— Nós vamos fazer o certo, nosso plano vai dar certo. — ele lhe
assegurou, porque era a única coisa que poderia fazer. Não podia
lhe assegurar que não iriam naquele baile (o mesmo que nem ele
queria ir), não podia assegurar que seria fácil, muito menos
prazeroso; mas podia assegurar isso: — Erin vai estar bem
quando fizer 18 anos. Ela vai ser rica, influente e relevante. Ela
vai ser todas essas coisas, e ninguém nunca poderá dizer um “a”
dela, e ela nunca precisará se casar, e ninguém nunca vai saber.
Ninguém nunca vai saber.
Eileen concordou veementemente com a cabeça, e em algum
momento no meio daquela conversa, Ezra se aproximou e
segurou a mão dela com a sua. O gesto mal foi notado pelos
dois, mas de todo jeito, nenhum deles soltou. A garota estava
sentada e ainda sim, o mais velho sentiu que ela poderia cair se
ele não a segurasse.
— É tolice eu dizer que não quero fazer isso? — ela murmurou,
tão fraco e frágil quanto um dente-de-leão, e Ezra se permitiu
fechar os olhos para que as palavras pudessem machucar ainda
mais. Ele merecia a dor. — Eu sei que é importante e necessário,
e eu vou fazer, eu só... não queria.
— Não, não é tolice. Porque eu também não quero. Com todo o
meu coração, eu não quero. — ele murmurou de volta, no
mesmo tom de voz. — Tolice é apenas se nós acreditarmos que
existe algum outro jeito além desse.
A ruiva concordou com a cabeça, engolindo a seco, e o ruivo fez
o mesmo. Ambos permaneceram mais um pouco ali, junto e
calados, antes de Ezra lembrar de um último detalhe:
— Sabe onde está Edward?
Sua gêmea suspirou auditivamente, cansada e impaciente.
— Não sei, e não me importo. Ele não virá hoje, não adianta
fingirmos que vai. Ele já deixou claro o que pensa dessa família.
E Ezra concordou. A última coisa que ele queria era ser o único
homem entre eles hoje, mas imaginou que seria assim de todo
jeito – mesmo se por um milagre Edward comparecesse e, por
outro milagre, ele se comportasse, ele apenas nunca estaria
presente. Não de verdade, não de alma. Era apenas o jeito que o
garoto era: egoísta e inconsequente. Não podia esperar nada
além disso.
Por hora, iria se concentrar nas variantes que ele podia
controlar, nas variantes que podiam e iriam cooperar com o
plano – ele, Eileen e Eliza. Quando tudo estivesse certo com os
três, ou quando tudo estivesse incrivelmente errado, ele irá se
preocupar de fato com Edward; Edward, o segundo filho,
Edward, que também, em algum momento, precisava se casar.
Um problema de cada vez.
— Vamos. — mal percebeu quando sua irmã se levantou, a mão
ainda na sua, e começou a guia-lo para fora do escritório. Pouco
a pouco o atmosfera estava mudando, e Ezra não precisava de
muito para saber que, pouco a pouco, a tristeza e a derrota
estavam se esvaziando do corpo da garota, e ela estava voltando
ao temperamento ácido de sempre. — Essa é a primeira noite do
resto das nossas vidas, e não podemos nos atrasar.
E seguindo o pedido e os passos da irmã, Ezra foi logo atrás,
respirando fundo, esbofeteando-se disfarçadamente, tanto ser o
homem que precisava ser; ser o homem que seu pai lhe treinou
para ser. Quando encontrou a outra irmã e a mãe no salão,
beijou suavemente o rosto de ambas, e logo em seguida pediu
para que o mordomo ajudasse-as a subir na carruagem. O
cocheiro já sabia o caminho em direção ao baile.
Primeira noite do resto de suas vidas ou não, uma coisa era
certa: um dos três irmãos, se possível todos os três, teriam que
terminar essa temporada com uma aliança na dedo, e uma data
de casamento marcada.
Pelo bem da família Fraiser.

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