Não importava quantas vezes ele tentasse, ou de quantas
maneiras ele tentasse, ou, até mesmo, a intensidade em que ele
tentasse; Ezra Mullighan Fraiser era incapaz de tirar aspecto molhado que suas mãos carregavam. O homem já havia tentado de tudo e nada parecia ter efeito. Lavava as mãos com a frequência diária de um parteiro recém- formado, assim como passava seu lenço de bolso nelas com a mesma avidez de uma donzela virgem tentando se amostrar a cavaleiros. Ele tentou até mesmo molhar, de fato, os dedos — tentar fazer com que a realidade mostrasse que aquela sensação era apenas uma alucinação, um sentimento engarrafado, uma impressão errada. Suas mãos não estavam realmente molhadas, não estavam realmente sujas. Não era real. Nada daquilo deveria ser real. Não funcionou. Quando acordava de madrugada suado em seus lençóis, acreditava cegamente de que suas articulações estavam cobertas em gosma escura, até que ascendesse a luminária e visse com os próprios olhos que não tinha nada ali. Dedos limpos, esguios e magros era tudo que encontrava, e ainda sim... ainda sim... As luvas ajudavam. Sua irmã não disse nada quando ele comprou o par mais vagabundo no píer quando saíram das Terras Altas, e sua mãe também fez vista grossa quando sua primeira compra em Londres foi uma encomenda sob medida de luvas grossas em material negro. Estava contente de nenhuma das mulheres ter lhe dito nada, porque ele certamente não precisava delas falando que aquilo não era uma boa ideia — Ezra sabia disso. A maior missão de todos ali era não chamar atenção de maneira negativa, e usar luvas de couro no verão certamente não ajudava. Mas Ezra passou anos sentado no fundo do escritório de seu pai observando o jeito como o patriarca lidava com a contabilidade da família, e ele podia dizer com certeza de que se havia algo que sabia fazer, era gerenciar riscos. Às vezes, era necessário vender três tubos de linho fino para receber a confiança de um possível vendedor de seda no futuro, e essa era a mesma situação de agora: ele precisava comparecer a bailes de gala, precisava ajudar no re-debute de suas irmãs, precisava ser o homem da casa e o novo patriarca da família. Ele precisava ser tudo isso, e ele não iria conseguir se não controlasse a vontade berrante e constante de lavar as próprias mãos. As luvas eram chamativas, mas ajudavam. Era um risco necessário, seu pai concordaria. Seu pai. Hm. Imaginava o que o grande Sr. Fraiser diria se soubesse que de agora em diante, todos os seus filhos seriam ingleses – ou ao menos, desesperadamente tentando se casar com algum. O homem provavelmente preferia morrer do que ver tamanho antipatriotíssimo. — Ezra? — a voz mais harmônica do mundo chamou atrás de si, distante, mas se aproximando. — Ezra, você está bem? Demorou alguns segundos e alguns passos afofados até que o mais velho sentisse a presença de alguém por perto, e quando virou-se, encontrou a imagem reluzida de sua irmã atrás de si, ostentando uma expressão de preocupação que estava quase se mesclando com seus traços faciais de tanto que a jovem a usava nos últimos tempos. — Estou bem. — respondeu, de maneira flutuante, juntando as próprias sobrancelhas em desentendimento. Não era do feitio de ninguém comparecer a seu quarto, por mais novo que este seja. — Estou bem, por que não estaria? Sua irmã mais nova abaixou o olhar de seu rosto até a altura de seu colo, e então para o rosto de novo, e o colo de novo, receosa. — Você disse para que nos arrumássemos rapidamente — a garota obviamente forçava a voz para deixa-la a mais suave possível, a mais calma possível, quase que para não assustar o outro. —, entretanto, subiu para o seu quarto e passou a última hora aqui em cima. Está doente, irmão? A nuvem sombria de seus próprios pensamentos se dissipou na mesma hora em sua mente, e de maneira sufocante, Ezra tomou conhecimento total do tempo e espaço. Abaixou o olhar para o mesmo ponto onde sua irmã estava encarando a poucos segundo atrás e notou ambas suas mãos ensaboadas, avermelhadas, pingando água no carpete abaixo de si. Notou também a pia do seu banheiro logo atrás de si, o enorme espelho que refletia sua própria imagem, e lembrou-se que estava em seu quarto, arrumado e bem vestido, esfregando as mãos com avidez. Lembrou-se também que dia era o de hoje, e desejou poder esquecer de novo. — Não. Não se preocupe, só me distrai um pouco. — murmurou, pegando a toalha branca que havia ao seu lado e esfregando seus dedos nela com uma rapidez impressionante. Quando terminou, havia resquícios de fios de algodão em sua pele e o atrito áspero da secura de sua pele; mas ele ainda a sentia profundamente encharcada. — Já estão todos prontos? Encontrou seu irmão? — Ezra. — a outra recitou mais uma vez, o tom lavado e calculado começando a irritar o mais velho. — Talvez... talvez nós não devêssemos ir hoje. A ideia demorou um pouco para ser absorvida por si, e quando o fez, foi tão absurda que se permitiu soltar uma risada – um único risinho frouxo, impressionado, antes de perceber que a garota não ria consigo, e voltou a seu semblante desconfiado. Em um estalo de segundo, seus olhos praticamente saíram de seu rosto. — O que Edward fez agora? — soltou a tolha na mesma hora, se aproximando da garota, as orelhas já zunindo. — Ele está preso de novo, não é? — O que? Não! Não, por Deus, eu... — Jogando? Apostando? Bebendo, certamente. — Ezra! — Se você disser que ele está com alguma prostituta no beco atrás da Allenwood de novo, Eliza, eu juro que eu... — Ezra Fraiser, controle-se! O primogênito parou no mesmo lugar onde estava, piscando demorada e fortemente, atordoado. Não era todos os dias que se era escoltado por sua irmã de dezenove anos – bem, no caso dele, de fato era todos os dias, bem rotineiro até, mas havia alguns bons meses que Eliza não agia de tal maneira. Fazia alguns meses que nenhum dos irmãos agia da maneira rotineira. Sentiu o rosto se esquentar com o calor de mil sois, e por tal engoliu a seco, abaixando a cabeça. Sabia que estava uma bagunça, uma confusão, um tornado de descontrole e pensamentos avoados; mas prometeu a si mesmo que não deixaria nenhum dos outros Fraisers sequer desconfiarem de tal. — Desculpe. Desculpe, Eliza, eu não quis assustá-la. — ambos sabiam que a garota precisaria de muito mais para se assustar, mas ela concordou com a cabeça de todo jeito. Ezra pigarreou. — Essa é uma noite importante, muito importante. Tudo precisa ser perfeito. Eu... talvez eu esteja um pouco afetado por conta de tudo isso. — E é exatamente por tal que, talvez, seja melhor se não comparecêssemos ao evento de hoje. — a garota retomou o assunto. — Apenas... é apenas um baile. Apenas isso. A temporada acabou de começar, e eu tenho certeza de que ela será repleta de inúmeros bailes. Podemos ir a qualquer outro, não há necessidade de irmos hoje. Um único dia não vai atrasar nossos planos. Ezra olhou para a irmã – finalmente olhou para ela. Por exemplo, essa era a primeira vez desde o início da conversa que ele notava o vestido de festa que a mesma usava. Era colado ao corpo, como todos sempre eram, com o colo desnudo por ser uma debutante, e todo trabalhado em uma tonalidade azulada que complementava lindamente os olhos de Eliza; olhos esses que não eram nem parecidos com os do pai, e nem com os da mãe. Os olhos da segunda filha do Sr. e da Sra. Fraiser eram um azul submergido, apagados, mais acinzentados do que tudo. Uma vez, Elijah disse que era como se tivessem pegado os olhos azuis do papai e passado uma camada dos marrons de mamãe por cima, misturando-os, e essa era uma ótima definição. Os cabelos, como os olhos, também eram uma mistura – nem o vermelho vivo do pai, nem o breu negro da mãe. Um castanho- avermelhado, ao tom do vinho tinto, vermelho unicamente quando posto ao sol, e agora o cabelo estava posto em um penteado erguido que segurava os cachos grossos, enfeitado graciosamente por fitas azuladas. Azul e vermelho sempre combinaram bem, e sempre foram as cores da família Fraiser. Eliza estava completamente deslumbrante. Era uma pena que, se continuasse com tamanhas baboseiras, ela iria ser deslumbrantemente trancada dentro do próprio quarto. — É o baile de Lady Heathcliff. É o primeiro baile da temporada, a apresentação de todas as debutantes da temporada. — agora era ele quem usava o tom calmo e calculado, como se explicasse para uma criança de seis anos uma regra que já havia sido repetida mil vezes. Era exatamente assim que se sentia. — É claro que nós iremos. — Não há necessidade alguma para irmos hoje, não quando os nervos de todos estão tão... — Você perdeu a cabeça? Estamos esperando esse baile a meses, estamos treinando e estudando a meses. Como pode achar que essa é o tipo de ocasião em que podemos simplesmente... — Ezra, a Eileen não está bem. O mais velho piscou uma vez. Uma única vez. No momento seguinte, antes mesmo que se desse conta, seus pés já estavam se movendo escadas abaixo. — Ezra! Ezra! Eliza berrava seu nome atrás de si, provavelmente o acompanhando nos passos também, mas o mais velho dos irmãos mal conseguia ouvir – passou por algumas centenas de arrumadeiras que preparavam os últimos ajustes da casa antes de se porem a dormir, assim como passou por Roosevelt, o novo mordomo da casa, descendo diretamente para o salão principal da casa. Quando abriu a porta, a sala principal de descanso estava vazia, o que era completamente raro de se acontecer em uma família de sete; completamente vazia, se não fosse pela visão da matriarca da família, a Sra. Daisy Fraiser, parada no meio da mesma, parecendo magnificamente preocupada. — Onde ela está? — a mãe não precisava de muito além para saber do que aquilo se tratava. — Ela está bem? Está se sentindo bem? Já chamaram um médio, um... — Meu querido, ela está bem. — a mais velha disse, usando uma única mão para apoiar delicadamente na bochecha do outro. — Shh, está bem, está tudo bem. A saúde dela está bem, está tudo certo. Ezra respirou com dificuldade, espreitando os olhos, sentindo as linhas de sua testa se apertarem. — Mas... Eliza disse que... — Eileen está nervosa. — corrigiu sua mãe, ainda com o mesmo olhar de preocupada. — Não é para menos, dado as circunstâncias, mas ainda sim. Honestamente meu filho, eu nunca vi sua irmã tão perto de um colapso mental. O mais velho conseguia ouvir o palpitar de seu próprio coração, assim como conseguia quase sentir as engrenagens de seu cérebro, desesperadamente trabalhando entre si. — Incluindo aquela vez no lago de Glenfinnan? Daisy concordou com a cabeça. — Incluindo aquela vez no lado de Glenfinnan. Ezra engoliu um xingamento que surgiu na ponta de sua língua. Ele já tinha se mostrado demais fora do controle na frente da família e, mesmo desconsiderando o monstro de vinte cabeças que aquela situação toda se tornou, ele nunca gostou de estar fora do controle. Por tal, ele fechou os olhos, e com toda a força do mundo que tinha, respirou fundo. O mais fundo que pode, fundo o suficiente para doer o peito quando ele, por fim, expirou. Sua mãe acompanhou todo o processo de olhos atentos e boca calada, como ela vinha fazendo nos últimos tempos. O mais velho era grato por tal. — Ela está nervosa. É claro. Todos nós estamos nervosos, eu também estou nervoso, é uma grande noite. — ele disse. — Mas não é motivo para faltarmos o baile de hoje. Foi a vez dela de juntar as sobrancelhas, do mesmo jeito que ele fez antes. — Quem disse que faltaremos o baile de hoje? O outro deu um passo para o lado e virou-se para trás, encontrando Eliza parada a pouco atrás de si, parecendo subitamente surpresa pela falta de apoio automático de sua mãe. — Eu não disse que não iremos! Eu só disse que, talvez, talvez, não fosse a melhor das ideias, dado em conta o estado que todos nos encontramos hoje. Mas foi só eu falar da Eileen que o Ezra já saiu correndo e... — E qual o estado em que nos encontramos hoje, Srta. Fraiser? — a matriarca respondeu, o rosto impassível e o subjetivo na frente do sobrenome da outra provocando arrepios até no mais velho. Ezra quase sorriu. — Oh, mamãe, por favor! Nós estamos uma bagunça! Ezra está nervoso, Eileen parece que vai matar alguém a cada respirada, a senhora vai fazer um buraco no carpete novo de tanto andar, e eu não vou nem começar a falar sobre Edward! — A única coisa que eu vejo, jovenzinha, é uma família recém chegada a Londres, e que ainda não foi apresentada a ninguém. O baile de Lady Heathcliff é o único baile sem convites da temporada, e o único no qual podemos entrar, visto que não conhecemos ninguém aqui. — Daisy retrucou. — É de súbita importância que comparecemos ao baile de hoje, para fazer conexões, para conhecer novas pessoas, e para sermos chamados aos próximos bailes. Como pretende ser convidada a futuros bailes se ninguém a conhece? — Oras, mamãe, a senhora sabe que... O primogênito aproveitou que sua progenitora e sua irmã estavam discutindo tão avidamente e rapidamente foi para o segundo salão da casa, a pequena e privada sala de leitura, tal qual de tomar chá. Não encontrou Eileen ali. Rodou pela biblioteca, também no andar de baixo, e igualmente, nada. Olhou até mesmo nos banheiros, e na bancada que levava ao jardim; e, mais uma vez, nada. Estava quase voltando para a confusão do salão principal para perguntar o paradeiro da outra a sua mãe, quando viu a porta do escritório lateral estando levemente aberta. Quando deu o primeiro passo dentro do cômodo, um par de olhos azuis lhe fuzilou o rosto. — Olá. A outra o encarou por alguns segundos, um livro grosso apoiado em seu colo, seus dedos longos agarrando-se na capa como se fosse um colete salva-vidas. Ezra não precisou de nenhuma informação além. — Olá. — ela murmurou. Olhar para Eileen era como ver o seu próprio reflexo costurado no rosto de um outro alguém – e isso estava fortemente ligado ao fato dos dois serem gêmeos. Gêmeos de sexo diferentes não costumavam ser muito idênticos, mas Ezra e Eileen não poderiam ser mais parecidos nem mesmo se quisessem. E se um era a imagem refletida do outro, ambos eram a imagem cuspida de seu pai. Era impossível negar a origem escocesa dos dois, não com ambos tendo cabelos cor de fogo e olhos cor de água. De todos os irmãos, os gêmeos eram os que tinham os atributos mais marcantes, os traços mais fortes: as sobrancelhas grossas, a mandíbula marcada, os olhos pequenos, os gigantescos cachos que Ezra tinha que aparar mais que mensalmente para manter em um tamanho respeitável. Se os cabelos de Eliza eram um castanho puxado ao vinho tinto, mal perceptíveis até mesmo sob o sol da tarde, os cabelos de Ezra e Eileen não eram nada menos do que ruivo. Não chegavam a ser laranja, mas era um acobreado vivo; cobre que refletia e brilhava tanto na luz do sol, quanto na luz da lua. Dos seis filhos de sua mãe, os gêmeos eram os que tinham os cabelos mais claros, as sardas no rosto mais visíveis, os olhos azuis mais pálido e clareados, o sotaque escocês mais forte e palpável. Os outros poderiam até fingir, praticar, moldar-se a novas maneiras, maneiras mais inglesas; mas Ezra e Eileen nunca poderiam fingir serem menos escoceses do que eram. Era inegável. Quando moravam em Inverness, aquilo não era nada além de o normal – era uma beleza comum, agradável, rotineira, onde o tom de ruivo escurecido e quase acastanhado dos filhos mais novos sempre se destacavam mais. Ali, na Inglaterra, esse tipo de tonalidade clara fazia com que nunca saíssem despercebidos de lugar nenhum. Ezra suspirou com o destino imutável, abaixando seu olhar para o vestido de festa que a irmã usava. Hoje em especial, Eileen usava de uma peça brilhante roxeada para ir ao baile, e apesar de incrivelmente bela, Ezra não pode deixar de pensar que aquela cor a fazia parecer um pouco mais velha. Mais do que seus já 24 anos. — Está pronta? — foi tudo que perguntou, porque não teve coragem de perguntar mais nada. Não podia perguntar sobre o nervosismo da outra, porque se o fizesse teria que reconhece-lo, e se o fizesse, teria que ser abertamente insensível e bruto ao ignorar tal sentimento. Sua irmã pareceu entender a deixa, porque rapidamente concordou com a cabeça. — Certamente. — respondeu, e nada mais foi dito. Eileen não se levantou da cadeira onde estava, e Ezra não saiu de perto da porta do escritório. Os dois mal respiravam. — Eu... — ele começou. — Acredito que... — ela disse ao mesmo tempo. Ambos se calaram de novo. Ezra percebeu que a infamiliar vergonha entre eles se pautava no quanto que um estava tentando fingir que estava tudo bem para o outro – o que era patético. Ezra fazia tudo com sua gêmea. Quando tinham catorze anos, eles fugiram de casa numa noite fria e pegaram hipotermia ao nadar no lago Gutthus. Quando tinham dezoito, Ezra pegou o charuto que ganhou do pai e partiu ao meio, dividindo-o com a irmã antes do baile de debutante da mesma (nenhum dos dois conseguiu tragar nada). Quando tinham vinte e três anos, Eileen permitiu que o irmão chorasse em seu colo quando o pai finalmente escolheu uma noiva para si. Mas isso fazia anos, e desde que se mudaram para Inglaterra, parecia ainda mais distante. Além disso tudo, nenhum deles era burro; eles sabiam o que tinham que fazer. Eles sabiam seus deveres como irmãos mais velhos, como o primeiro homem e a primeira mulher entre os filhos. Acima de tudo, eles sabiam o que tinham que fazer para que o plano desse certo. Eles não podiam sequer fingir que as coisas são ou poderiam ser diferentes, como Edward (e as vezes até Eliza) constantemente fazia. Eles tinham que enfrentar a realidade. Eles precisavam se casar bem, todos eles precisavam, e o mais rápido possível. E por que eles tinham que fazer tudo isso? — Eu fui no quarto checar como estava o sono de Erin. — Eileen falou, tão distante, mal parecendo ser direcionado para Ezra. Talvez sequer fosse. Os músculos da face do outro se relaxaram um pouco ao ouvir falar da caçula. Por isso. — E como ela está? — Dormindo como um anjo. — disse. — Bem, se anjos roncassem. E ela ronca, Ezra. Auditivamente. Como uma menina de seis anos pode roncar tão alto assim? — Oh, foi por isso que tiramos Eli da ala infantil, de fato. — respondeu. — Era castigo demais para os ouvidos do garoto dormir no quarto ao lado do dela. — Ele tem só onze anos, os ouvidos ainda estão em desenvolvimento. — Tal barulho pode gerar uma perda auditiva a longo prazo, sem sombra de dúvidas. Os olhos de Eileen se iluminaram por uma fracção de segundo, e Ezra quase se sentiu orgulhoso por tal. E então a faísca morreu, as luzes se apagaram – e seu olhar ficou mais sombrio do que em qualquer outro momento da conversa. — Ela ronca como o papai. — Eileen disse. — Eu entrei no quarto dela. Estava tudo escuro. Eu só conseguia ouvir o ronco dela, e por um segundo, por um segundo, eu pensei que ele estava ali. Ezra abaixou a cabeça, tocando os próprios pulsos atrás de equilíbrio, desejando estar com suas luvas, desejando ainda mais que a gêmea não tocasse nesse assunto. Ele definitivamente não tinha cabeça para isso agora. — Ela só tem seis anos, Z. — ela disse. — Tanta coisa aconteceu nos últimos meses. Ela agora está em um lugar novo, um país novo, com pessoas que ela não conhece, com hábitos que ela não entende, falando em um sotaque que não parece em nada com o nosso. Deve ser horrr... — quando seu sotaque escocês escapuliu na última palavra, ela parou, engolindo a seco, e se forçando a utilizar o sotaque mais moderado e suave que estavam praticando a meses, retomando: — Deve ser horrível. O mais velho concordou, não achando que cabia espaço para ele falar alguma coisa, porque não havia nada a se falar. É claro que era horrível, aquilo era horrível para todos eles; mas era diferente para eles, porque eles eram mais velhos. Ele e Eileen tinham 24, Edward tinha 20, Eliza tinha 19 e até mesmo o jovem Elijah já tinha 11 anos – era difícil, mas eles eram mais velhos. Eles tinham memorias na terra natal, memorias com sua família paterna, memorias com seu pai. Boas memorias. Enquanto Erin, a caçula dos seis irmãos... se fosse para ela ter como memoria os últimos acontecimentos que se desenrolaram na Escócia antes deles se mudarem, Ezra preferia que ela não tivesse memoria alguma. — Nós precisamos fazer certo. — os olhos de Eileen encontraram os de Ezra, e ele soube que ela entendia. — Por ela. Nós precisamos fazer certo por ela, para ela. Não importa o que aconteça, ela precisa estar protegida. Ela precisa ser de uma família rica, influente e conhecida quanto atingir a idade de fazer seu debute. Aos 18. Erin tinha que pertencer a uma família rica, influente e conhecia no meio londrino até seus 18 anos de idade – daqui a doze anos. Parecia ser muito tempo, mas considerando que eles precisavam criar um nome e uma reputação impecável para si nesse meio termo, com cinco casamentos e diversos herdeiros até lá, talvez não fosse tanto tempo assim. — Nós vamos fazer o certo, nosso plano vai dar certo. — ele lhe assegurou, porque era a única coisa que poderia fazer. Não podia lhe assegurar que não iriam naquele baile (o mesmo que nem ele queria ir), não podia assegurar que seria fácil, muito menos prazeroso; mas podia assegurar isso: — Erin vai estar bem quando fizer 18 anos. Ela vai ser rica, influente e relevante. Ela vai ser todas essas coisas, e ninguém nunca poderá dizer um “a” dela, e ela nunca precisará se casar, e ninguém nunca vai saber. Ninguém nunca vai saber. Eileen concordou veementemente com a cabeça, e em algum momento no meio daquela conversa, Ezra se aproximou e segurou a mão dela com a sua. O gesto mal foi notado pelos dois, mas de todo jeito, nenhum deles soltou. A garota estava sentada e ainda sim, o mais velho sentiu que ela poderia cair se ele não a segurasse. — É tolice eu dizer que não quero fazer isso? — ela murmurou, tão fraco e frágil quanto um dente-de-leão, e Ezra se permitiu fechar os olhos para que as palavras pudessem machucar ainda mais. Ele merecia a dor. — Eu sei que é importante e necessário, e eu vou fazer, eu só... não queria. — Não, não é tolice. Porque eu também não quero. Com todo o meu coração, eu não quero. — ele murmurou de volta, no mesmo tom de voz. — Tolice é apenas se nós acreditarmos que existe algum outro jeito além desse. A ruiva concordou com a cabeça, engolindo a seco, e o ruivo fez o mesmo. Ambos permaneceram mais um pouco ali, junto e calados, antes de Ezra lembrar de um último detalhe: — Sabe onde está Edward? Sua gêmea suspirou auditivamente, cansada e impaciente. — Não sei, e não me importo. Ele não virá hoje, não adianta fingirmos que vai. Ele já deixou claro o que pensa dessa família. E Ezra concordou. A última coisa que ele queria era ser o único homem entre eles hoje, mas imaginou que seria assim de todo jeito – mesmo se por um milagre Edward comparecesse e, por outro milagre, ele se comportasse, ele apenas nunca estaria presente. Não de verdade, não de alma. Era apenas o jeito que o garoto era: egoísta e inconsequente. Não podia esperar nada além disso. Por hora, iria se concentrar nas variantes que ele podia controlar, nas variantes que podiam e iriam cooperar com o plano – ele, Eileen e Eliza. Quando tudo estivesse certo com os três, ou quando tudo estivesse incrivelmente errado, ele irá se preocupar de fato com Edward; Edward, o segundo filho, Edward, que também, em algum momento, precisava se casar. Um problema de cada vez. — Vamos. — mal percebeu quando sua irmã se levantou, a mão ainda na sua, e começou a guia-lo para fora do escritório. Pouco a pouco o atmosfera estava mudando, e Ezra não precisava de muito para saber que, pouco a pouco, a tristeza e a derrota estavam se esvaziando do corpo da garota, e ela estava voltando ao temperamento ácido de sempre. — Essa é a primeira noite do resto das nossas vidas, e não podemos nos atrasar. E seguindo o pedido e os passos da irmã, Ezra foi logo atrás, respirando fundo, esbofeteando-se disfarçadamente, tanto ser o homem que precisava ser; ser o homem que seu pai lhe treinou para ser. Quando encontrou a outra irmã e a mãe no salão, beijou suavemente o rosto de ambas, e logo em seguida pediu para que o mordomo ajudasse-as a subir na carruagem. O cocheiro já sabia o caminho em direção ao baile. Primeira noite do resto de suas vidas ou não, uma coisa era certa: um dos três irmãos, se possível todos os três, teriam que terminar essa temporada com uma aliança na dedo, e uma data de casamento marcada. Pelo bem da família Fraiser.