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1906 L. M.

MONTGOMERY

A C E STA DE N ATA L DA

Tia CyrillaE O U TRO CONTO DE NATA L

TRA D U ÇÃO
D E K A R IN E
R IB EIRO 1
DAS

BY E D ITO R A WIS H

Tradução:
Karine Ribeiro

Preparação:
João Rodrigues
Revisão:
Karine Ribeiro e Bárbara Parente
Capa e projeto gráfico:
Marina Avila

Ilustração de capa:
Fernanda Fernandez

2022 ISBN 978-85-67566-51-1


Copyright 2022 Editora Wish. Este material possui direitos
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90
UMA RELÍQUIA DE

4
Especial
de Natal
Sinopse de A Cesta de Natal
da Tia Cyrilla

Lucy Rose detesta a cesta velha e


engraçada que a tia Cyrilla insiste
em levar por aí. Quando o trem
em que estão fica parado por
conta de uma forte nevasca, Lucy
Rose aprenderá uma importante
lição sobre compaixão e partilha.

5
Sinopse de O fim da rixa da
família Young

Uma família dividida por uma


rixa antiga se vê em uma situação
inesperada e descobrirá como
um equívoco pode acabar se
mostrando uma grata e muito
bem-vinda surpresa.

6
Em 2023, o
ano é delas!
100% das autoras da
Sociedade das Relíquias
Literárias serão
mulheres! Conheça
talentos esquecidos
pelo tempo e revisite as
escritoras clássicas neste
próximo ano!

7
A cesta de
Natal da tia
Cyrilla
L. M. Montgomery, 1903

Q uando Lucy Rose encontrou


tia Cyrilla descendo as es-
cadas, um pouco corada e
sem fôlego por ter subido ao sótão,
com uma cesta grande e coberta
pendurada no braço rechonchudo,
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ela soltou um breve suspiro de de-
sespero. Durante alguns anos, Lucy
Rose fizera seu melhor — na verdade,
desde que prendera o cabelo e alon-
gara as saias — para livrar tia Cyrilla
do hábito de levar aquela cesta con-
sigo sempre que ia a Pembroke; mas
tia Cyrilla ainda insistia em levá-
-la e apenas ria do que chamava de
“ideias melindrosas” de Lucy Rose.
A sobrinha tinha o pensamento
horrível e perturbador de que era
muito interiorano de sua tia sempre
levar a cesta grande, cheia de coisas
boas do campo, sempre que ia visi-
tar Edward e Geraldine. Afinal de
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contas, Geraldine era muito estilosa
e poderia achar esquisito; mas então
tia Cyrilla sempre a levava no braço
e distribuía biscoitos, maçãs e cara-
melos de melado para todas as crian-
ças que encontrava e, quase sempre,
também para os mais velhos. Lucy
Rose, quando foi à cidade com a tia
Cyrilla, sentiu-se desgostosa com
aquilo — tudo isso só serve para pro-
var que Lucy ainda era muito jovem
e que tinha muito a aprender neste
mundo.

Essa preocupação incômoda sobre


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o que Geraldine pensaria a encorajou
a fazer um protesto desta vez.
— Agora, tia Cyrilla — pediu ela
—, você certamente não vai levar
essa cesta velha e engraçada para
Pembroke, já que é Natal e tudo mais.
— Ah, mas pode apostar que vou
— devolveu a tia Cyrilla de pronto,
enquanto a colocava na mesa e co-
meçava a limpá-la. — Nunca fiz uma
visita a Edward e Geraldine, desde
que se casaram, sem levar uma cesta
recheada de coisas boas para eles, e
não vou parar agora. Quanto a ser
Natal, é só mais um motivo ainda.
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Edward sempre fica muito feliz de
receber produtos da velha casa de fa-
zenda. Ele diz que na cidade não há
nada disso.
— Mas é tão caipira — exasperou-
-se Lucy Rose, bufando.
— Bom, eu sou caipira — disse
a tia Cyrilla com firmeza. — E você
também. E tem mais, não vejo nada
de que se envergonhar. Você tem um
orgulho muito bobo, Lucy Rose. Com
o tempo, vai largar disso, mas agora
está te dando muitos problemas.
— A cesta causa muito problema
— retrucou Lucy Rose. — Você sempre
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a coloca no lugar errado ou teme que
vá colocar. E fica muito engraçado
andar pelas ruas com essa enorme e
protuberante cesta pendurada no seu
braço.
— Eu não me importo nem um
pouco com a aparência — devolveu
a tia, com calma. — E quanto a ser
problema, ora, talvez seja, mas é um
problema para mim, e outras pessoas
têm o prazer dela. Edward e Geraldine
não precisam dela, eu sei disso, mas
talvez existam aqueles que precisam.
E se te magoa caminhar ao lado de
uma velha caipira com uma cesta
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caipira, ora, então você pode só me
seguir de longe.
Tia Cyrilla assentiu e sorriu bem-
-humorada, e Lucy Rose, embora por
dentro tivesse sua própria opinião,
teve que sorrir também.
— Agora, deixe-me ver — conti-
nuou a tia, reflexiva, tocando a mesa
com seu indicador gordo, a qual es-
tava coberta de farinha da cozinha
—, o que devo levar? Aquele grande
bolo de frutas com certeza… Edward
gosta do meu bolo de frutas; e aquela
língua cozida a frio também. E essas
três tortas de carne também, afinal
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elas estragariam antes que voltásse-
mos ou seu tio ficaria doente depois
de comê-las… Torta de frango é a per-
dição dele. E aquela garrafinha de pe-
dra cheia de creme… Bem, Geraldine
pode até ter o estilo que for, mas eu
ainda não a vi fazer cara feia para um
bom e velho creme da roça, Lucy Rose;
e mais uma garrafa do meu vinho de
framboesa. Aquele prato de biscoitos
de gelatina e rosquinhas vai agradar
as crianças e preencher os espaços,
e você pode trazer pra mim aquela
caixa de doces gelados da despensa, e
aquele saco de palitos doces listrados
que seu tio trouxe para casa ontem à
15
noite. E maçãs, é claro… Três ou qua-
tro dúzias para aqueles bons de garfo.
E um potinho das minhas conservas
de rainha-cláudia, Edward vai gostar.
E alguns sanduíches e um bolo inglês
para o nosso lanche. Agora, acho que
basta de comida. Os presentes para
as crianças podem ir por cima. Tem
uma boneca para Daisy, um barqui-
nho que seu tio fez para Ray, um lenço
de renda para cada uma das gêmeas e
o gorro de crochê para o bebê. Agora,
isso é tudo?
— Há um assado frio de frango
na despensa — disse Lucy Rose, com
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perversidade — e o porco que o tio
Leo matou está pendurado na va-
randa. Não dá para levá-los também?
Tia Cyrilla abriu um sorrisão.
— Bem, acho que deixaremos o
porco em paz, mas, já que você me
lembrou, o frango pode entrar aqui,
sim. Eu arrumo espaço.
Lucy Rose, apesar de seus pre-
conceitos, ajudou com a arrumação
da cesta e, não tendo sido treinada
por tia Cyrilla à toa, também se saiu
muito bem, com muita economia de
espaço feita com inteligência. Mas,
quando tia Cyrilla tinha terminado
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de colocar um grande buquê de sem-
pre-vivas rosas e brancas por cima, e
amarrado a cobertura saliente com
uma mão firme, Lucy Rose ficou
perto da cesta e sussurrou, de forma
vingativa:
— Algum dia queimarei esta
cesta… quando eu tiver coragem o
suficiente. Será o fim de carregá-la
para todo o canto a que vamos, como
uma velha mercadora.
Tio Leopold entrou bem então,
balançando a cabeça duvidosamente.
Ele não ia passar o Natal com Edward
e Geraldine, e talvez a ideia de ter que
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cozinhar e comer seu jantar de Natal
sozinho o deixasse pessimista.
— Acredito que vocês não chega-
rão a Pembroke amanhã — disse ele.
— Vai cair o céu.
Tia Cyrilla não se preocupou com
aquilo. Ela acreditava que questões
assim eram pré-ordenadas, e dormiu
bem tranquila. Mas Lucy Rose se le-
vantou três vezes durante a noite
para ver se chovia, e quando de fato
dormiu teve pesadelos horríveis so-
bre enfrentar tempestades de neve
terríveis que arrastavam tanto a
cesta de Natal quanto a tia Cyrilla.
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Não estava nevando ao raiar do
dia, e o tio Leopold levou a tia Cyrilla,
Lucy Rose e a cesta à estação, que fi-
cava a pouco mais de seis quilôme-
tros de distância. Quando chegaram
lá, o ar estava grosso com os flocos de
neve voando. O chefe da estação ven-
deu os bilhetes com uma expressão
sombria no rosto.
— Se cair mais neve, os trens po-
dem ficar presos no Natal — comen-
tou ele. — Já nevou tanto e o caminho
está bloqueado metade do tempo, e
agora não há lugar para jogar a neve
que tirarem.
20
Tia Cyrilla disse que, se fosse para
o trem chegar a Prembroke a tempo
para o Natal, então chegaria, sim; e
depois abriu a cesta e deu ao chefe
da estação e a três menininhos uma
maçã para cada.
— Começou — resmungou Lucy
Rose consigo.
Quando o trem chegou, tia Cyrilla
se sentou num assento e colocou sua
cesta em outro, e olhou radiante ao
redor, para seus companheiros de
viagem.
E esses eram poucos — uma deli-
cada mulher no final do carro, com
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um bebê e outras quatro crianças;
uma jovem do outro lado do corre-
dor, com um rosto pálido e bonito;
um rapaz queimado de sol três as-
sentos à frente vestindo uniforme
militar; à frente dele, uma senhora
muito bonita e imponente, com um
casaco de pele de foca; e, do outro
lado, um jovem magro de óculos.
Um ministro, refletiu tia Cyrilla,
começando a classificar, que cuida
melhor da alma de outras pessoas do
que do próprio corpo; e aquela mulher
com o casaco de pele de foca está cha-
teada e descontente com alguma coisa
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— acordou cedo demais para pegar o
trem, talvez; e aquele jovem deve ser
um dos garotos que acabaram de sair
do hospital. Os filhos daquela mulher
parecem que não comeram uma refei-
ção completa desde que nasceram; e, se
aquela garota diante de mim tem mãe,
eu gostaria de saber as condições dessa
mulher, para deixar que a filha saia de
casa nesse clima vestindo roupas como
aquelas.
Lucy Rose limitou-se a imaginar,
um tanto desconfortável, o que os ou-
tros pensavam da cesta da tia Cyrilla.
Eles esperavam chegar a Pembroke
23
naquela noite, mas com o passar do
dia a tempestade piorou. Duas ve-
zes o trem teve que parar enquanto
os ajudantes desciam para escavar
a neve. Na terceira, não pôde conti-
nuar. Anoitecia quando o condutor
entrou no trem, respondendo brusca-
mente às perguntas dos passageiros
ansiosos.
— Uma boa paisagem para o
Natal… Não, impossível seguir em
frente ou voltar… Os trilhos estão
bloqueados por quilômetros… Como
é, madame? Não, não há estação por
perto… Árvores por quilômetros.
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Ficaremos aqui esta noite. Essas tem-
pestades recentes vêm atrapalhando
tudo.
— Ó céus — resmungou Lucy
Rose.
Tia Cyrilla olhou complacente-
mente para a cesta.
— Pelo menos não vamos passar
fome — disse ela.
A menina pálida e bonita parecia
indiferente. A senhora com a pele de
foca parecia mais zangada do que
nunca. O rapaz de uniforme disse:
“Que sorte a minha”, e duas das crian-
ças começaram a chorar. Tia Cyrilla
25
pegou algumas maçãs e doces listra-
dos da cesta e os levou para eles. Ela
ergueu o mais velho no colo e logo os
tinha ao seu redor, rindo e contentes.
O resto dos viajantes se arrastou
até o canto e começou a conversar. O
rapaz de uniforme disse que lhe era
difícil não chegar em casa a tempo
para o Natal.
— Eu fui ferido na África do Sul
três meses atrás, e fiquei no hospi-
tal em Netley desde então. Cheguei
a Halifax três dias atrás e telegrafei
aos meus pais dizendo que cearia no
Natal com eles, e que fizessem um
26
peru bem grande porque não comi
nenhum ano passado. Eles vão ficar
muito decepcionados.
Ele também parecia decepcio-
nado. Uma manga do uniforme ba-
lançava vazia na lateral do corpo dele.
Tia Cyrilla lhe entregou uma maçã.
— Estávamos indo à casa do vovô
para o Natal — contou o garoto mais
velho da mãezinha, tomado por tris-
teza. — Nunca fomos lá antes, e é uma
pena.
Ele parecia querer chorar, mas
pensou melhor e encheu a boca com
doce.
27
— Vai ter Papai Noel no trem? —
exigiu a irmãzinha dele, com lágri-
mas nos olhos. — Jack diz que não.
— Acho que vamos descobrir —
disse a tia Cyrilla, tranquilizando-a.
A garota pálida e bonita se aproxi-
mou e pegou o bebê da mãe cansada.
— Que gracinha — disse ela, bai-
xinho.
— Você também está indo para
casa para o Natal? — perguntou tia
Cyrilla.
A garota balançou a cabeça.
— Eu não tenho casa. Sou só uma
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vendedora desempregada no mo-
mento, e estou indo para Pembroke
procurar algum.
Tia Cyrilla foi até a cesta e pegou
sua caixa de doces de creme.
— Bem, acho que é melhor nos
divertirmos. Vamos comer e aprovei-
tar. Talvez cheguemos a Pembroke de
manhã.
O pequeno grupo ficou alegre en-
quanto mordiscava, e até a garota
pálida deu uma animada. A mãezi-
nha contou à tia Cyrilla sua histó-
ria. Estava havia muito afastada de
sua família, que desaprovava seu
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casamento. O marido havia morrido
no verão anterior, deixando-a em
péssimas circunstâncias.
— Meu pai me enviou uma carta
semana passada e me pediu para dei-
xar tudo de lado e ir para casa para
o Natal. Eu fiquei tão feliz. E os cora-
ções das crianças estavam nisso. Uma
pena que não conseguiremos chegar
lá. Preciso voltar para trabalhar na
manhã depois do Natal.
O rapaz de uniforme militar se
aproximou de novo e compartilhou
o doce. Então contou histórias diver-
tidas do período na África do Sul. O
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ministro também veio e escutou, e
até a senhora de casaco pele de foca
olhou por sobre o ombro.
Aos poucos, as crianças adorme-
ceram, uma no colo de tia Cyrilla
e outra no de Lucy Rose, e duas no
banco. Tia Cyrilla e a menina pálida
ajudaram a mãe a fazer caminhas
para as crianças. O ministro entre-
gou seu sobretudo e a senhora com a
pele de foca deu um xale.
— Isso vai servir para o bebê —
disse ela.
— Precisamos conseguir um Papai
Noel para as crianças — disse o rapaz
31
de uniforme militar. — Vamos pen-
durar as meias delas na parede e en-
chê-las o melhor que pudermos. Não
tenho nada comigo além de moedas
e um canivete. Darei a cada um vinte
e cinco centavos e o garoto pode ficar
com a faca.
— Também não tenho nada além
de dinheiro — disse a senhora do ca-
saco de pele, pesarosa.
Tia Cyrilla olhou para a mãezi-
nha. Ela havia adormecido com a ca-
beça contra o assento.
— Tenho uma cesta bem ali —
disse tia Cyrilla, com firmeza. — E
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tenho alguns presentes nela que eu
estava levando para os filhos do meu
sobrinho. Vou colocá-los nas meias.
Quanto ao dinheiro, penso que deve
ser dado para a mãe. Ela me contou
a história dela, e é uma muito triste.
Façamos uma vaquinha entre nós
como presente de Natal.
A ideia foi bem recebida. O rapaz
de uniforme militar passou o quepe
e todos contribuíram. A senhora de
casaco de pele de foca colocou uma
nota amassada. Quando a tia Cyrilla
a endireitou, viu que era de vinte dó-
lares.
33
Enquanto isso, Lucy Rose trouxe
a cesta. Ela sorriu para a tia Cyrilla
enquanto a arrastava pelo corredor
e a tia Cyrilla, por sua vez, sorriu de
volta. Lucy Rose nunca havia tocado
naquela cesta por vontade própria
antes.

O barco de Ray foi para Jacky e a


boneca de Daisy, para a irmã mais
velha dele. Os lenços de renda das
gêmeas foram para as duas meninas
menores e o gorro, para o bebê. Em
seguida, as meias foram preenchidas
com rosquinhas e biscoitos de geleia e
34
o dinheiro foi colocado num envelope
e preso na jaqueta da mãe.
— O bebê é tão bonzinho — disse
a senhora de casaco de pele. — Ele se
parece um pouco com o meu filho.
Faz dezoito natais que ele faleceu.
Tia Cyrilla pôs a mão sobre a luva
dela.
— O meu também — disse.
Então as duas mulheres sorri-
ram com ternura uma para a outra.
Depois descansaram e todos tiveram
o que tia Cyrilla chamava de “fazer
uma boquinha” com os sanduíches
e o bolo inglês. O rapaz de uniforme
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disse que não tinha provado nada
que chegasse perto daquilo desde que
saiu de casa.

— Nós não tínhamos bolo inglês


na África — disse ele.

Quando amanheceu, a tempes-


tade ainda caía forte. As crianças
acordaram e ficaram enlouquecidas
de alegria com suas meias. A mãezi-
nha encontrou seu envelope e tentou
agradecer, mas acabou caindo em
prantos; e ninguém sabia o que dizer
ou fazer, quando o condutor feliz-
mente entrou e os distraiu dizendo
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que eles deveriam se resignar a pas-
sar o Natal no trem.
— A coisa é séria quando se consi-
dera que não temos provisões — disse
o rapaz de uniforme. — Não se preo-
cupem comigo, estou acostumado
com meia refeição ou refeição ne-
nhuma. Mas essas crianças têm um
apetite imenso.
Então tia Cyrilla se mostrou à al-
tura da ocasião.
— Eu tenho algumas provisões
de emergência — anunciou. — Há o
suficiente para todos e teremos nosso
jantar de Natal, embora frio. Primeiro
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vamos tomar o café da manhã. Tem
um sanduíche para cada e devemos
comer o que sobrou dos biscoitos e
das rosquinhas, e guardar o resto
para uma fartura no jantar. A única
questão é, eu não tenho nenhum pão.
— Eu tenho uma caixa de biscoi-
tinhos — disse a mãe, com avidez.
Ninguém naquele vagão jamais
esquecerá aquele Natal. Para come-
çar, depois do café da manhã eles fi-
zeram um show. O rapaz de uniforme
recitou dois poemas, cantou três mú-
sicas e fez um solo assobiando. Lucy
Rose recitou três poemas e o ministro
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leu um quadrinho. A pálida vende-
dora cantou duas músicas. E, então,
concordou-se que o solo de assobio do
rapaz tinha sido a melhor apresenta-
ção e, como recompensa, a tia Cyrilla
deu a ele o buquê de flores.
Então o condutor entrou com a
alegre notícia de que a tempestade
estava quase acabando e ele achava
que a pista estaria liberada em pou-
cas horas.
— Se conseguirmos chegar à pró-
xima estação, ficaremos bem — disse
ele. — O trilho se junta à linha prin-
cipal, que estará sem obstrução.
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Ao meio-dia, cearam. Os traba-
lhadores do trem foram convidados
a compartilhar a refeição. O ministro
cortou o frango com o canivete do
guarda-freio e o rapaz de uniforme
cortou a torta, enquanto a senhora
de casaco de pele de foca misturava
o vinho de framboesa com a devida
proporção de água. Pedaços de papel
fizeram as vezes de pratos. O pessoal
do trem tinha um par de copos, e um
copo de lata foi encontrado e dado
às crianças; a tia Cyrilla, Lucy Rose
e a senhora de casaco beberam, re-
vezando, do copo desta última; já a
vendedora e a mãe compartilharam
40
de uma das garrafas vazias; e o rapaz
de uniforme, o ministro e os homens
do trem beberam da outra garrafa.
Todos declararam que nunca na
vida haviam desfrutado tanto de
uma refeição. Certamente era uma
refeição alegre, e a comida de tia
Cyrilla nunca foi tão apreciada; na
verdade, os ossos do frango e o pote
de conservas eram tudo o que restava.
Eles não podiam comer as conservas
porque não tinham colheres, então
tia Cyrilla as deu para a mãezinha.
Quando tudo acabou, um sincero
agradecimento foi passado para a
41
tia Cyrilla e sua cesta. A senhora do
casaco queria saber como ela fazia
o bolo inglês, e o rapaz de uniforme
pediu a receita dos biscoitos de geleia.
E, quando duas horas depois o con-
dutor entrou e disse que o trem logo
começaria a funcionar, todos se per-
guntaram se realmente poderia ter
se passado menos de 24 horas desde
que se conheceram.
— Me sinto como se estivesse
acampando com vocês a vida inteira
— disse o rapaz de uniforme.
Na estação seguinte, eles se des-
pediram. A mãe e as crianças tinham
42
que pegar o trem seguinte de volta
para casa. O ministro ficou ali, e o
rapaz de uniforme e a senhora do ca-
saco mudaram de trem. Esta última
apertou a mão da tia Cyrilla. Não pa-
recia mais chateada nem descontente
com alguma coisa.
— Esse foi o Natal mais agradá-
vel que tive — disse ela, com sinceri-
dade. — Jamais me esquecerei da sua
maravilhosa cesta. A vendedora virá
para casa comigo. Prometi para ela
um emprego na loja do meu marido.
Quando a tia Cyrilla e Lucy Rose
chegaram a Pembroke, não havia
43
ninguém para encontrá-las porque to-
dos haviam desistido de encontrá-las
lá. Não era longe da casa de Edward, e
tia Cyrilla escolheu caminhar.
— Eu carrego a cesta — disse Lucy
Rose.
Tia Cyrilla a entregou com um
sorriso. Lucy Rose também sorriu.
— É uma velha cesta abençoada
— disse a última. — E eu a amo. Por
favor, esqueça as coisas bobas que fa-
lei dela, tia Cyrilla.

FI M DO CO NTO #1

44
O fim da rixa
da família
Young
L. M. Montgomery, 1907

U
ma semana antes do
Natal, a tia Jean escre-
ve u u ma ca r t a pa ra
Elizabeth, convidando ela, Alberta
e eu para irmos jantar no Natal em
Monkshead. Aceitamos com alegria.
45
A tia Jean e o tio Norman eram pes-
soas maravilhosas, e sabíamos que ía-
mos nos divertir na casa deles. Além
disso, queríamos ver Monkshead,
onde nosso pai vivera na juventude, e
a velha propriedade onde ele nascera
e crescera e onde o tio William ainda
morava. Nosso pai nunca falava
muito a respeito de lá, mas sabíamos
que amava a propriedade, e sempre
tivemos um grande desejo de ter pelo
menos um vislumbre do que Alberta
gostava de chamar de “corredores dos
nossos ancestrais”.
Como Monkshead ficava a quase
46
cem quilômetros de distância, e o tio
William lá morava, como eu já disse,
uma questão pertinente pode ser a
que nos impedia de visitar a ela e a
propriedade, como por vezes dese-
jávamos. Ao que nós respondíamos
prontamente: a rixa familiar.
Nosso pai e o tio William mal se
falavam, ou, para ser mais precisa,
nem sequer se falavam, e tinham
estado assim desde que nos lem-
brávamos. Depois da morte do vovô
Young, houve uma disputa terrível
pela propriedade. Nosso pai sempre
disse que tinha tanta culpa quanto o
47
tio William, mas a tia-avó Emily nos
disse que o tio William tinha sido de
longe o mais culpado, e que ele havia
se comportado de forma vergonhosa
com nosso pai. Além disso, ela disse
que nosso pai tinha ido até ele quando
os ânimos se apaziguaram, se descul-
para pelo que dissera e perguntara ao
tio William se queria a amizade de
volta; e que William simplesmente
dera as costas e entrara na casa sem
dizer uma única palavra, mas, como
a tia-avó Emily disse, com o mau hu-
mor dos Young aparecendo por toda
dobra e curvatura de sua postura. A
tia-avó Emily é nossa tia por parte
48
de mãe, e não gosta de nenhum dos
Young, exceto do nosso pai e do tio
Norman.
É por isso que nós nunca visitamos
Monkshead. Nunca v imos o tio
William, e sempre pensamos nele
como um tipo de ogro; isso quando
pensávamos nele. Quando crianças,
nossa velha babá, Margaret Hannah,
costumava nos assustar para fazer
com que nos comportássemos ao di-
zer, sinistramente:
— Se vocês não se comportarem,
o tio William vai vir pegá-las.
O que ele faria conosco quando
49
nos “pegasse” nunca foi especificado,
provavelmente pensando que o des-
conhecido era sempre mais terrível
do que o conhecido. Minha opinião
naqueles dias era a de que ele nos fer-
veria em óleo e tiraria nossos ossos.

O tio Norman e a tia Jean viviam


no oeste há anos. Três meses antes
desse Natal, eles foram ao leste, com-
praram uma casa em Monkshead e
lá se instalaram. Eles tinham vindo
nos visitar, e nossos pais e os garotos
estavam acordados para vê-los, mas
nós, as três meninas, não estávamos;
50
e, por isso, estávamos animadas com
a ideia de passarmos o Natal lá.
A manhã de Natal estava boa,
branca como pérola e clara como
um diamante. Tivemos que pegar o
trem das sete horas, já que não havia
outro antes das onze, e chegamos a
Monkshead às oito e meia.
Quando saímos do trem, o chefe
da estação nos perguntou se éramos
as três senhoritas Young. Alberta ad-
mitiu a culpa, e ele disse:
— Bem, aqui está uma carta para
vocês, então.
Pegamos a carta e fomos para
51
a sala de espera com todo o tipo de
apreensões. O que acontecera? O
tio Norman e a tia Jean estavam de
quarentena com escarlatina, ou la-
drões haviam roubado a despensa e
levado os suprimentos para o Natal?
Elizabeth abriu e leu a carta em voz
alta. Era de tia Jean, e dizia:

Queridas meninas,
Sinto muito em decepcioná-las,
mas não tenho como controlar isso.
Chegaram notícias de Streatham di-
zendo que minha irmã sofreu um
grave acidente e está numa situação
52
muito crítica. Seu tio e eu devemos ir
a Streatham imediatamente, e esta-
mos partindo no expresso das oito ho-
ras. Sei que vocês embarcaram antes
disso, então não adianta telegrafar.
Queremos que vocês vão direto para
a casa e fiquem à vontade. Vocês en-
contrarão a chave sob a porta da co-
zinha e o jantar na despensa, pronto
para ser feito. Há duas tortas de carne
na terceira prateleira, e o pudim de
ameixa só precisa ser aquecido. Vocês
encontrarão presentes de Natal para
cada uma na mesa da sala de jantar.
Espero que fiquem o mais felizes que
53
puderem, e vamos convidá-las de
novo assim que voltarmos.

Sua apressada e carinhosa,


Tia Jean

Nos entreolhamos um tanto en-


tristecidas. Mas, como Alberta des-
tacou, era melhor aproveitarmos,
já que não havia jeito de chegar em
casa antes do trem das cinco horas.
Então fomos até o chefe da estação e
perguntamos a ele, um tanto hesitan-
tes, se podia nos dizer a direção para
a casa do sr. Norman Young.
54
Ele era um indivíduo bastante
rabugento, muito ocupado com lápis
e papel por conta de algum carrega-
mento; mas nos deu sua atenção por
tempo suficiente para apontar o lápis
e dizer com brusquidão:
— Young? Estão vendo aquela
casa vermelha na colina? É lá.
A casa vermelha ficava a cerca
de quatrocentos metros da estação,
e nós a víamos claramente. Assim,
para a casa vermelha fomos. Olhando
mais de perto, era um lugar bonito
e bem-cuidado, com belos jardins e
árvores antigas.
55
Encontramos a chave embaixo da
porta da cozinha e em seguida en-
tramos. O fogo estava apagado e, de
alguma forma, as coisas pareciam
mais tristes do que eu esperava en-
contrar. Devo admitir que, antes de
mais nada, marchamos para a sala
de jantar, para encontrar nossos pre-
sentes.
Havia três pacotes, dois muito
pequenos e um bem grande, sobre a
mesa, mas quando fomos procurar
os nomes não havia nenhum.
— É evidente que a tia Jean, em
sua emoção e pressa, se esqueceu
56
de nomeá-los — disse Elizabeth. —
Vamos abri-los. Podemos conseguir
adivinhar pelo conteúdo o que per-
tence a quem.
Devo dizer que nos surpreende-
mos ao abri-los. Sabíamos que os pre-
sentes da tia Jean seriam bons, mas
não esperávamos nada como aquilo.
Havia um magnífico colarinho de
pele de marta, um lindo reloginho de
ouro e pérola castelã, e um bracelete
de corrente dourada com turquesas.
— O colarinho deve ser para você,
Elizabeth, porque Mary e eu já te-
mos um, e tia Jean sabe disso — disse
57
Alberta. — O relógio deve ser para
você, Mary, porque eu tenho um; e,
por isso, o bracelete deve ser para
mim. Bem, todos são perfeitamente
agradáveis.
Elizabeth vestiu o colarinho e
desfilou em frente ao espelho do apa-
rador. Estava tão empoeirado que ela
precisou pegar o lenço e limpá-lo an-
tes que pudesse se ver direito. Tudo
na sala estava igualmente empoei-
rado. Quanto às cortinas de renda,
pareciam não ser lavadas há anos,
e uma delas tinha um buraco com-
prido e irregular. Não pude deixar
58
de me sentir secretamente surpresa,
pois a tia Jean tinha a reputação de
ser uma dona de casa perfeita. No
entanto, eu nada disse, nem as outras
garotas. Nossa mãe sempre dissera
que era o cúmulo da falta de educa-
ção criticar qualquer coisa de que
não gostássemos numa casa em que
éramos hóspedes.
— Bem, vamos preparar o jantar
— disse Alberta, prática, colocando
o bracelete no pulso e admirando-o.
Fomos pa ra a cozinha, onde
Elizabeth começou a acender o fogo,
sendo essa uma de suas especialidades,
59
enquanto Alberta e eu explorávamos
a despensa. Encontramos os supri-
mentos do jantar dispostos da forma
como a tia Jean havia explicado. Havia
um belo peru gordo, todo recheado, e
legumes em abundância. As tortas
de carne estavam em seu lugar, mas
eram quase as únicas coisas que se
podia dizer, pois a desordem daquela
despensa era suficiente para causar
pesadelos durante um mês a uma
pessoa asseada.

— Nu nca na m inha v ida eu


vi… — começou Alberta, e então se
60
interrompeu, sem dúvida se lem-
brando dos ensinamentos de nossa
mãe.
— Onde está o pudim de ameixas?
— perguntei, conduzindo a conversa
por caminhos mais seguros.
Não estava à vista, então concluí-
mos que devia estar no porão. Mas
encontramos a porta de lá fechada
com cadeado.
— Deixe pra lá — disse Elizabeth.
— Nenhuma de nós gosta de pudim
de ameixas mesmo. Só comemos
porque é a sobremesa tradicional
61
adequada. A torta de carne vai cair
bem melhor.

Então colocamos o peru no forno,


e logo tudo estava indo bem. Nos di-
vertimos muito preparando o jantar,
e nos sentimos bastante à vontade,
como a tia Jean tinha ordenado.
Acendemos a lareira na sala de jan-
tar e espanamos tudo à vista. Não
conseguimos encontrar nada re-
motamente parecido com um espa-
nador, então usamos nossos lenços.
Quando terminamos, a sala ficou em
ótimo estado, pois os móveis eram
62
realmente muito bonitos, mas os nos-
sos lenços… bem!
Sendo assim, arrumamos a mesa
com todos os pratos bonitos que en-
contramos. Havia apenas uma toa-
lha de mesa comprida na gaveta do
aparador, e havia três furos nela, mas
nós os cobrimos com pratos e coloca-
mos um vasinho de palmeira no meio
como centro de mesa. À uma hora o
jantar estava pronto. A mesa também
estava muito bonita quando nos sen-
tamos nela.
Assim que Alberta estava pres-
tes a espetar o peru com um garfo
63
e começar a cortar, sendo essa uma
das especialidades dela, a porta da
cozinha foi aberta e alguém entrou.
Antes que pudéssemos nos mexer,
um homem grande, bonito e de bi-
godes apareceu na porta da sala de
jantar.
Eu não estava com medo. Ele pa-
recia bastante respeitável, pensei, e
supus que fosse algum amigo íntimo
do tio Norman. Então, com educação,
me levantei e disse:
— Bom dia.
Nunca se viu uma expressão de
espanto quanto aquela no rosto do
64
pobre homem. Ele olhava de mim para
Alberta, de Alberta para Elizabeth e de
Elizabeth para mim outra vez, como
se duvidasse do que seus olhos viam.
— O sr. e a sra. Norma Young não
estão em casa — expliquei, com pena
dele. — Eles foram para Streatham
esta manhã porque a irmã da sra.
Young está muito doente.
— E o que significa tudo isto? —
disse o homem, brusco. — Esta não
é a casa de Norma Young. É minha.
E eu sou William Young. Quem são
vocês? E o que fazem aqui?
Eu me sentei na cadeira, sem
65
palavras. Meu primeiro impulso foi
cobrir o relógio de ouro com a mão.
Alberta, desesperada, havia largado
a faca e estava tentando retirar o
bracelete sob a mesa. Em um ins-
tante percebemos nosso erro e como
era terrível. Quanto a mim, eu es-
tava assustada; os antigos avisos de
Margaret Hannah haviam deixado
uma impressão indelével.

Elizabeth levantou-se de pronto.


Levantar-se de pronto é outra das es-
pecialidades dela. Além disso, ela não
estava prejudicada pela consciência
66
formigante de que usava um presente
que não tinha sido destinado a ela.
— Cometemos um erro, temo eu
— explicou ela, com uma dignidade
que apreciei mesmo em meio ao meu
pânico. — E sentimos muito. Fomos
convidadas a passar o Natal com o
sr. e a sra. Norman Young. Quando
descemos do trem, recebemos uma
carta deles afirmando que precisa-
ram se ausentar, mas dizendo que en-
trássemos na casa deles e ficássemos
à vontade. O chefe da estação disse
que esta era a casa deles, então vie-
mos até aqui. Nós nunca estivemos
67
em Monkshead, então não sabíamos
a diferença. Por favor, nos perdoe.
A essa altura, eu havia retirado
o relógio e o colocado sobre a mesa,
sem ser vista, como pensei. Alberta,
não tendo a chave da pulseira, não
conseguiu tirá-la, e ficou ali sentada,
vermelha de vergonha. Quanto ao tio
William, havia um brilho em seus
olhos. Ele não se parecia nem um
pouco com um ogro.
— Bem, pelo menos foi um erro
bem agradável para mim — disse ele.
— Vim para casa esperando encon-
trar uma sala fria e um jantar cru, e
68
encontrei isto. Eu agradeço muito a
vocês.
Alberta se levantou, foi até a la-
reira, pegou a chave do bracelete e o
destrancou. Então se virou para o tio
William.
— A sra. Young nos disse em sua
carta que encontraríamos nossos
presentes de Natal sobre a mesa, en-
tão tomamos como certo que essas
coisas pertenciam a nós — disse ela,
com desespero. — E agora, se você
gentilmente nos disser onde mora o
sr. Norman Young, não o incomoda-
remos mais. Venham, meninas.
69
Elizabeth e eu nos levantamos
com um suspiro. Não havia nada
mais a ser feito, claro, mas estávamos
muito famintas, e não estávamos
nada animadas com a ideia de ir à ou-
tra casa vazia e preparar outro jantar.

— Esperem um pouco — pediu o


tio William. — Acho que, como vocês
se deram ao trabalho de cozinhar o
jantar, é justo que fiquem e me aju-
dem a comer. Acidentes parecem
estar na moda agora. O filho da mi-
nha governanta quebrou a perna em
Weston, e eu tive que levá-la para lá
70
esta manhã. Vamos, apresentem-se.
A quem devo essa grata surpresa?
— Somos Elizabeth, Alberta e
Mary Young, de Green Village — res-
pondi, e olhei para ver se o lado ogro
apareceria.
Mas, num primeiro momento, o
tio William parecia apenas impres-
sionado, tonto no segundo e, no ter-
ceiro, voltara a ser ele mesmo.
— Filhas do Robert? — indagou ele,
como se fosse a coisa mais natural do
mundo as filhas de Robert estarem em
sua casa. — Então vocês são minhas
sobrinhas? Bem, estou muito feliz em
71
conhecê-las. Sentem-se e jantaremos
assim que eu conseguir tirar meu ca-
saco. Quero ver se vocês são tão boas
cozinheiras quanto a mãe de vocês
costumava ser muito tempo atrás.
Nós nos sentamos, e o tio William
fez o mesmo. Alberta teve sua chance
de mostrar o que sabia fazer para es-
culpir o peru, pois o tio William disse
que era algo que ele nunca fazia; pois
mantinha uma governanta só para
isso. No começo, nos sentimos um
pouco travadas e desajeitadas; mas
isso logo passou, pois o tio William
era cordial, espirituoso e divertido.
72
Logo, para a nossa surpresa, descobri-
mos que estávamos nos divertindo.
Tio William também parecia estar.
Quando terminamos, ele se recostou
e olhou para nós.
— Suponho que vocês ouviram
histórias terríveis sobre mim — disse,
de repente.
— Não por nossos pais — falei,
com franqueza. — Eles nunca fala-
ram mal de você. Mas a Margaret
Hannah, sim. Ela nos criou de forma
a temer você.
Tio William riu.
— Margaret Hannah é uma velha
73
e incansável inimiga minha — expli-
cou ele. — Bem, agi como um tolo…
e pior que isso. Desde então, me arre-
pendo. Eu estava errado. Eu não po-
deria ter dito isso para o pai de vocês,
mas não me importo em dizer a vo-
cês, e podem contar a ele se quiserem.
— Ele ficará feliz em saber que
você não está mais com raiva dele
— disse Alberta. — Ele sempre quis
retomar a amizade entre vocês, tio
William. Mas achava que você ainda
mantinha mágoa.
— Não, não, nada além do meu
orgulho teimoso — respondeu ele.
74
— Agora, meninas, já que são minhas
convidadas, devo tentar diverti-las.
Vamos pegar o trenó duplo e fazer um
passeio alegre esta tarde. E, quanto
àquelas bugigangas ali, elas são suas.
Eu as comprei para alguns jovens
amigos meus aqui, mas vou dar-lhes
outra coisa. Quero que fiquem com
os presentes. Aquele relógio ficou
muito bonito com sua blusa, Mary, e
a pulseira ficou muito bem no lindo
pulso de Alberta. Venham e deem um
abraço no seu velho tio mal-humo-
rado por eles.
O tio William recebeu seus abraços
75
calorosamente; então nós lavamos os
pratos e depois fomos para o nosso
passeio. Voltamos bem a tempo de
pegar o trem noturno para casa. O tio
William se despediu de nós na esta-
ção, com a promessa de voltarmos e fi-
carmos uma semana com ele quando
sua governanta chegasse em casa.
— Uma de vocês terá que vir e
morar comigo, em breve — disse
ele. — Diga ao pai de vocês que esteja
preparado para deixar uma de vocês
morar comigo como símbolo de seu
perdão. Em breve vou até lá conver-
sar com ele.
76
Quando chegamos em casa e con-
tamos nossa história, meu pai disse:
“Graças a Deus!”, bem baixinho. Havia
lágrimas em seus olhos. Ele não espe-
rou até que o tio William viesse, e foi
até Monkshead no dia seguinte.
Na primavera, Alberta vai morar
com o tio William. E por isso ela está
fazendo um estoque de espanadores.
E no Natal seguinte, nós teremos
uma grande reunião familiar na ve-
lha propriedade.
Nem sempre erros são ruins.

FI M DO CO NTO #2
77
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Cyrilla

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78
E X TR A: BIOGR AFIA

L. M. Montgomery
A história de Anne Shirley, uma jo-
vem menina ruiva de 11 anos que foi
enviada por engano por um orfanato
79
para a casa dos irmãos Cuthbert mar-
cou gerações de leitores e continua
sendo apresentada para novos pú-
blicos por meio de adaptações. Mas a
obra e o legado de L.M. Montgomery
não se resumem à querida Anne.
"Embora Lucy Maud Montgomery
seja unanimidade quando o assunto é
literatura canadense, e uma referên-
cia para escritoras aclamadas como
Alice Munro e Margaret Atwood,
durante anos ela permaneceu em
um injusto esquecimento", afirma
Mellory Ferraz no prefácio de O Lado
Mais Sombrio, coletânea de contos de
80
Montgomery publicada pela Editora
Wish.
Nascida em 1874 em P r ince
Edward Island, no Canadá, L. M.
Montgomery se tornou o retrato do
sucesso em uma época em que mui-
tas autoras não conseguiam viver
da escrita. Além disso, Montgomery
foi uma autora muito presente no
mercado editorial por meio de uma
carreira prolífica, tendo escrito diver-
sos gêneros literários, como diários,
ensaios, romances e centenas de poe-
mas e contos.
Infelizmente, como diversos
81
outros escritores, Montgomery per-
deu a mãe muito cedo e seu pai dei-
xou sua tutela nas mãos dos avós.
Tendo passado muito tempo sozinha,
a pequena Maud, como era chamada
pela família, mergulhou na escrita
muito cedo. Ela se tornou professora
e conciliou o tempo entre a escrita e
a docência.
À medida que foi crescendo, L.M.
Montgomery começou a entender as
demandas do público leitor da época
e passou a escrever aquilo que acre-
ditava que seria bem recebido. Isso
permitiu que ela deixasse a carreira
82
como professora e se dedicasse à es-
crita em tempo integral. Entretanto,
ela precisava atender à demanda por
um grande volume de publicações
para conseguir manter o sucesso po-
pular e financeiro.
S e g u n d o Hol ly E . P i k e e m
L. M. Montgomer y and Literar y
Professionalism. In: 100 Years of
Anne with an “e”: The Centennial
Study of Anne of Green Gables, "para
dar conta de escrever o enorme vo-
lume de textos encomendados pelos
editores, Montgomery chegou até
mesmo a reutilizar suas histórias,
83
reintroduzindo-as em contextos di-
ferentes, e a escrever para cerca de 70
periódicos e jornais; em 1906, publi-
cou 44 histórias em 27 revistas".

Montgomery tem o mérito de ter


conseguido analisar as tendências
do mercado, atender às demandas
dos leitores e se manter como um
nome sólido durante o período em
que escreveu. Sofreu críticas ao seu
trabalho como qualquer outro autor,
mas se manteve firme à sua paixão.
Ela não teve receio de trazer críticas
sociais em suas histórias e remar
84
contra a maré do que era esperado de
uma autora na época.
L.M. Montgomery morreu em 24
de abril de 1942, mas deixou uma
vasta contribuição literária para que
pudéssemos conhecê-la melhor. A au-
tora escreveu histórias longas como a
de Anne de Green Gables, contos ater-
rorizantes como os de O Lado Mais
Sombrio, e agora o leitor poderá co-
nhecer suas aventuras natalinas com
A Cesta de Natal da Tia Cyrilla e O Fim
da Rixa da Família Young. Um legado
de uma grande autora que continua
mostrando como suas histórias se
85
mantêm curiosamente atemporais e
deliciosamente universais.

86
Profissionais
que trabalharam
neste conto

Karine Ribeiro
TR A DUÇÃO

Escritora premiada, tradutora e revisora,


graduanda em Tradução pela UFMG. @
karineescreve

87
João Rodrigues
PRE PA R AÇÃO

Bacharel em Tradução
e especialista em
Produção e Revisão
Textual.
@jojsrodrigues

Bárbara
Parente
RE V ISÃO

Escritora e revisora
de textos licenciada
em Letras pela
Universidade do Estado
do Rio de Janeiro
@_barbara_parente

88
Fernanda
Fernandez
ILUSTR AÇÃO

Ilustradora freelancer
carioca. Crio
personagens mágicos em
um mix sutil de fantasia
e realismo de forma
digital. @mftfernandez

Marina Avila
PROJE TO G R Á FICO

Produtora editorial e
fundadora da Wish. Mãe
de gatos e de livros.
@casatipografica
e @marinalivros
Valquíria Vlad
COMUNICAÇÃO E
COMUNIDA DE

Escritora, pesquisadora
e publicitária formada
pela Universidade
Federal do Ceará (UFC).
@valquiriavlad

Laura Brand
ME DIAÇÃO E
PA R ATE X TOS

Editora, coordenadora
editorial, jornalista e
criadora de conteúdo.
Formada pela PUC-MG
e Columbia Journalism
School. @nostalgiacinza
90
Muito obrigada
por apoiar este
financiamento
coletivo!
Neste mês foi possível viabilizar a curadoria,
tradução, revisão e ilustração dos contos
Aunt Cyrilla's Christmas Basket e The End
Of The Young Family Feud! A cada mês de
assinatura, a Wish continuará resgatando
os tesouros do passado em novas edições
para os caçadores das Relíquias Literárias.

Vamos resgatar estes contos raros juntos?

Relíquia 033/Dez 2022

91
N O P R ÓX I M O M Ê S

Uma história
mágica para quem
adora gatinhos
Uma história de Edith Nesbit
para iniciar o nosso 2023
feminino!

92

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