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Cruella live-action novelization

Copyright © 2021 by Disney Enterprises, Inc.

© 2021 by Universo dos Livros


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19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por
escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam
quais forem os meios empregados: eletrônicos mecânicos,
fotográficos, gravação ou quaisquer outros.
Diretor editorial: Luis Matos
Gerente editorial: Marcia Batista
Assistentes editoriais: Letícia Nakamura e Raquel F. Abranches
Tradução: Monique D’Orazio
Preparação: Cristina Calderini Tognelli
Revisão: Marina Takeda e Juliana Gregolin
Arte: Renato Klisman
Diagramação: Carlos Roberto

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica


Ilacqua CRB-8/7057

R854c
Rudnick, Elizabeth
Cruella : livro oficial do filme / Elizabeth
Rudnick ; tradução de Monique D’Orazio ;
roteiro de Dana Fox e Tony McNamara ;
história de Aline Brosh McKenna e Kelly
Marcel e Steve Zissis ; baseado nos
personagens criados por Dodie Smith ;
baseado em Cruella, da Disney. –– São
Paulo : Universo dos Livros, 2021.
232 p. : il., color.
E-ISBN 978-65-5609-098-6
Título original: Cruella live-action novelization
1. Literatura infantojuvenil 2. Disney,
Personagens de I. Título II. D’Orazio,
Monique
21-1253 CDD 028.5

Universo dos Livros Editora Ltda.


Avenida Ordem e Progresso, 157 - 8o andar - Conj. 803
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Adaptado por Elizabeth Rudnick
Roteiro de Dana Fox e Tony McNamara
História de Aline Brosh McKenna
e Kelly Marcel e Steve Zissis
Baseado nos personagens criados por Dodie Smith
Baseado em Cruella, da Disney
À equipe e aos alunos do Centro Canadense de Estudos
Linguísticos e Culturais (CCLCS), que todos os dias ensinam e
aprendem a importância de serem verdadeiros consigo mesmos.

“O que diferencia você dos demais às vezes pode parecer um fardo,


mas não é. E, na maioria das vezes, é o que o torna grandioso.”
– Emma Stone
Prólogo

Cruella De Vil não nasceu. Ela foi criada. Apesar disso, se formos
precisos, na verdade ela nasceu, como nasce qualquer ser vivo.
Seu nome era Estella. E há rumores de que, na noite de seu
nascimento, as estrelas não brilharam e a lua não ousou espreitar
por trás das nuvens tempestuosas. Alguns dizem que os lobos
uivaram, e outros, que os rios ao redor de sua casa correram
quentes. Mas as pessoas dizem muitas coisas.
E muitas vezes, essas coisas não são verdadeiras.
Pelo menos não todas elas.

Estella veio ao mundo como qualquer outro bebê – esperneando e


gritando, mas desde o momento em que chegou, ficou claro que ela
não era como os demais bebês. Única, alguns a chamavam.
Especial, diziam outros. Algumas almas mais amáveis que a
encontraram em seu carrinho até podem ter ousado chamá-la de
fofa – até que o gorro de tricô caísse e revelasse seu cabelo.
Preto-azeviche de um lado, branco puro do outro. Era, desde o
momento em que ela nascera, cheio e diferente. E, quando as
pessoas o viam, geralmente paravam de pensar fofinha e
começavam a pensar bizarra.
Mas as mães são cegas pelo amor, e Catherine, a mãe de Estella,
não era exceção. Para Catherine, Estella era perfeita e brilhante
desde o momento em que veio ao mundo. Com o passar dos dias e
dos anos, Estella cresceu e passou de bebê curioso, que sorria fácil,
a criança precoce que insistia em fazer tudo sozinha. Começou a
andar antes das outras crianças da sua idade e, aos dois anos, tinha
conversas completas com sua mãe. Nunca parecia notar os olhares
esquisitos que as pessoas lhe lançavam e nunca parecia
incomodada que ninguém fosse visitar a cabana miserável, mas
aconchegante, onde ela e a mãe moravam.
Para Estella, sua casinha não era insípida ou triste. As roupas que
sua mãe costureira remendava iluminavam o pequeno espaço e se
tornaram seu mundo. Ela deslizava seda, chiffon e tafetá pelos
dedos, maravilhada com a suavidade. Comparava roupas e sonhava
com modelos. Conforme Estella crescia, outros talentos começaram
a aflorar. No colo da mãe, Estella aprendeu rápido a passar a linha
na agulha e logo estava cerzindo meias e fazendo a bainha em
saias. Quando os móveis escassos da casa ficavam com o tecido
puído demais, Estella criava remendos coloridos com sobras de
pano.
Embora costurar fosse natural para Estella, seguir as regras era
um pouco mais difícil. Em mais de uma ocasião, a mãe tivera que
lhe dar um lembrete gentil.
– Você deve seguir o padrão – ela disse à filha. – Existe uma
maneira de fazer as coisas.
– Está feio – disse Estella, segurando um modelo e comparando
suas linhas retas com as sinuosas que ela havia imaginado para o
vestido novo de sua boneca.
A mãe balançou a cabeça.
– Isso é cruel. Seu nome é Estella, não Cruella.
Cruella era o apelido que sua mãe lhe dera quando ela era menor
e estava no meio dos “terríveis dois anos”, que foram seguidos
pelos “três anos tirânicos”. O mau gênio de Estella, quando se
sobrepunha, podia deixá-la bastante irritada e às vezes até
maldosa. A mãe gostava de lembrá-la de manter “Cruella” sob
controle – embora em alguns momentos fosse mais fácil do que em
outros. Às vezes, com o lembrete, a jovem Estella meneava a
cabeça ou, se estivesse com um humor particularmente rabugento,
rasgava um molde ou batia os pés, mas sempre voltava para dar um
abraço na mãe e pedir desculpas. Não queria ser cruel. Só queria
costurar.
Aos doze anos, Estella era uma costureira talentosa. Embora
ainda não tivesse muitos amigos, sua mãe dizia todos os dias que
ela era especial.
– Você pode ser quem ou o que quiser, doce menina – dizia a
mãe. – Você não é apenas preto ou branco. Você é todas as cores
do arco-íris.
E Estella acreditava nela. Não precisava de amigos. Tinha sua
mãe e sua imaginação.
Então, na maior parte do tempo, Estella era feliz.
Mas tudo isso estava prestes a mudar…
Estella tinha doze anos quando, montada em sua bicicleta, olhava
para o enorme edifício de pedra à sua frente, que exalava riqueza e
privilégio. O dia que ela estava esperando, bem, desde sempre,
enfim tinha chegado.
Estava prestes a começar os estudos em uma escola particular
chique. Embora estivesse um pouco animada, também estava muito
apavorada. Olhou para o prédio, esfregando distraidamente o forro
do casaco, reconfortada pela sensação do tecido. Sorriu. Talvez a
escola fosse como seu casaco: parecia uma coisa por fora, mas era
algo totalmente diferente por dentro.
Suspirou.
E duvidou.
As crianças começaram a entrar no pátio, aparentemente vindas
de todas as direções, seus uniformes impecáveis e passados à
perfeição. Uma carreira de carros elegantes fazia fila, esperando
para deixar mais alunos. Ela ouviu gritos de riso quando as meninas
que não tinham se visto durante o feriado se reuniram, e as vozes
mais graves dos meninos ao fazerem suas próprias saudações mais
reservadas. Tudo parecia uma língua estrangeira para Estella.
Ela se virou e olhou para a mãe, que estava empoleirada em uma
bicicleta ao seu lado. O cabelo grisalho da mulher parecia estar
sempre tentando escapar do coque inclinado, e o avental sem graça
de costureira que ela vestia estava perpetuamente manchado. Ela
não se parecia em nada com as mulheres que acenavam para os
filhos da janela de seus carros. Cada fio de cabelo na cabeça
daquelas mulheres estava perfeitamente arrumado; a maquiagem
era impecável e não havia nenhum botão fora do lugar. Uma
sensação desconhecida tomou conta de Estella: olhando para a
mãe, ela quase sentiu vergonha.
– Lembre-se – disse a mãe, interrompendo seus pensamentos –,
este é o seu lugar tanto quanto é o de qualquer um aqui.
No mesmo instante, a vergonha tomou conta de Estella. Lá estava
ela, sentindo-se constrangida em relação à mãe quando tudo o que
ela fizera durante anos tinha sido economizar para que Estella
pudesse frequentar aquela escola idiota.
Respirando fundo, Estella afrouxou os dedos ao redor do guidão
da bicicleta. Ela podia não ter frequentado a escola com aquelas
crianças ali antes, mas não deixaria que a derrubassem – ou pelo
menos não deixaria sua mãe pensar que elas a afetavam de alguma
forma.
– Combinado – disse ela, seu tom confiante desmentindo a dúvida
que sentia.
A mãe fez um sinal afirmativo com a cabeça.
– E o que dirá para Cruella quando ela tentar dominar você?
Estella suspirou. Odiava que a mãe ainda usasse esse apelido
para seu lado ligeiramente “perverso”, mas Catherine não estava
errada em lembrá-la. Ela precisava controlar seu gênio.
– Obrigada por ter vindo, mas pode ir embora agora – recitou
Estella, obediente.
Satisfeita com a resposta, a mãe deu um pequeno sorriso. Então
alternou olhares entre o edifício grande e imponente e a filha, com
os olhos distantes. Estella se perguntava para onde tinham vagado
os pensamentos da mãe. Havia algo assombrado – e
profundamente triste – em sua expressão.
Estella se virou e olhou para um grupo de meninas em uniformes
iguais, com chapéus inclinados com graciosidade nas cabeças. Ela
vestia o mesmo conjunto simples e feio de blazer com saia que as
demais garotas – com alguns pequenos ajustes dos quais sua mãe
não sabia, é claro, mas não estava usando o chapéu. Nunca usaria.
Respirando fundo, Estella se despediu mais uma vez da mãe,
estacionou a bicicleta em uma das vagas e juntou-se ao fluxo de
alunos que entrava na escola. Quando alcançou o topo da escada,
virou-se. A mãe ainda estava lá, observando. Estella deu outro
aceno e então se virou e entrou no prédio.
Assim que saiu da vista de sua mãe, Estella tirou o blazer.
Virando-o do avesso, ela sorriu. O xadrez azul sem graça e que
pinicava foi substituído por seda que Estella tingira de amarelo-
vibrante. Era espalhafatoso e chocante.
Era perfeito.
Estella colocou o blazer de volta e passou a mão pelos cabelos.
Uma onda de confiança a percorreu. Ela sempre se sentia melhor
quando desfilava suas próprias criações.
Ignorando os olhares dos outros alunos, alguns dos quais haviam
parado e encaravam despudorados, boquiabertos, Estella começou
a abrir caminho pelo corredor. Mesmo naquela luz fraca, o blazer
reluzia. Estava orgulhosa de si mesma. Passara horas criando-o,
tarde da noite. Tinha se esforçado para misturar a tinta perfeita para
tingir e havia juntado a seda, pedacinho por pedacinho das costuras
da mãe, para que ela não percebesse. O resultado era algo único e
totalmente a cara dela. Claro, isso não significava que todos
entenderiam. Os outros alunos não estavam acostumados com
ninguém que saísse da linha. Devia-se vestir os uniformes e seguir
as regras, mas Estella nunca tinha sido particularmente boa em
seguir regras.
De repente, dois meninos se colocaram na frente dela. Estella
parou e olhou para eles, com uma expressão impassível. Um dos
meninos tinha um tufo de cabelo ruivo e uma expressão maldosa. O
outro tinha olhos cruéis para combinar com sua própria expressão
igualmente desagradável. A mãe de Estella a havia criado para ser
gentil – sempre. Então Estella fez o que imaginou que qualquer
pessoa gentil faria: apresentou-se.
– Oi – cumprimentou calorosamente. – Meu nome é Estella. Sou
aluna nova aqui e estou ansiosa para conhecer as pessoas.
Os meninos não disseram nada por um longo e tenso momento.
Então o menino ruivo falou:
– Olha. Tem um gambá solto no prédio.
Os olhos de Estella se estreitaram. Como ele ousava insultá--la?
Ele nem a conhecia. Ela sentiu uma pequena bola de raiva se
formar ao mesmo tempo que Cruella fazia pressão para se libertar.
– Ignore-os.
Virando-se, Estella viu uma garota mais ou menos da sua idade
parada por perto. Ela usava o mesmo uniforme, mas Estella não
pôde deixar de notar o brilho de cor sob a camisa social. Talvez
houvesse mais alguém naquele lugar com um pouco de senso de
moda. Estella abriu um sorriso agradecido.
– Claro – disse ela, virando as costas para os meninos. – Tenho
certeza de que vou conquistá-los. Eu sou Estella.
– Anita – respondeu a garota com um sorriso largo.
Bem nessa hora algo úmido e duro atingiu a bochecha de Estella.
Ao erguer a mão, ela encontrou uma bolinha de papel molhada de
cuspe grudada na lateral do rosto. Ela viu o menino ruivo e seu fiel
companheiro dando risada. Piscou com agilidade, esforçando-se
para segurar as lágrimas.
Tudo bem, então talvez demorasse um pouco mais para
conquistá-los.

Conforme o dia passava, parecia que não importava o quanto


Estella tentasse: as outras crianças estavam decididas a fazer de
seu primeiro dia de aula o último. No corredor, houve mais bolinhas
cuspidas. Quando abriu o armário, encontrou-o cheio de lixo. Não
importava aonde fosse, ela ouvia crianças rindo e sussurrando e,
inclusive, uma vez pegou um aluno apontando--lhe
descaradamente. Ela havia pensado que o blazer amarelo seria sua
armadura. Porém, em pouco tempo, ele só a tinha feito se destacar
– de um jeito ruim.
Depois do almoço, uma experiência totalmente terrível, Estella
sentou-se no fundo de uma sala de aula. Seus olhos estavam
grudados no relógio, na parede à sua frente, enquanto ele
tiquetaqueava com lentidão minuto a minuto. Ao seu redor, ela ouvia
risinhos. De repente, notou o garoto de antes – aquele com o cabelo
ruivo – entrando sorrateiro na sala de aula. Ele estava atrasado – o
que não era surpreendente, já que o Ruivinho Malvado parecia o
tipo de garoto que não se importava em chegar na aula
pontualmente. E ele exibia um olhar maligno. Isso também não era
surpreendente.
Ele passou de fininho atrás da professora, que fazia anotações no
quadro e não percebeu quando o menino, com cuidado, recuou em
alguns centímetros a cadeira dela. Não muito, mas apenas o
suficiente para que, quando a professora se virasse para se sentar,
provavelmente caísse.
Uma coisa era o menino mau implicar com ela, mas Estella não
podia permitir que ele também humilhasse uma professora. Estella
se levantou, caminhou pelo espaço entre as carteiras e estendeu a
mão para a cadeira.
Infelizmente, antes que ela pudesse mover a cadeira, a
professora se virou para sentar – e caiu de traseiro no chão. A sala
de aula mergulhou na gargalhada.
– Não é o que parece – defendeu-se Estella, erguendo as mãos
em uma demonstração de inocência.
Do chão, a professora olhou feio.
– Eu… eu… – Estella começou a protestar, mas não adiantou.
A professora apontou para a porta.
Estella saiu com a cabeça erguida, mas, assim que a porta da
sala de aula se fechou atrás de si, soltou um suspiro trêmulo.
Lágrimas brotaram de seus olhos. Era apenas seu primeiro dia e ela
estava a caminho da sala do diretor. Estava ali por caridade. Era
aluna bolsista.
Seu comportamento deve ser impecável, sua mãe a havia
lembrado ainda naquela manhã. Se houvesse advertências
suficientes em seu prontuário, ela poderia perder a vaga na escola.
E agora acabara de receber sua primeira marcação.
Era para ser um dia incrível, mas Estella só queria que ele
acabasse.
As coisas não melhoraram. Nas semanas seguintes, Estella se
preparou para a escola como se estivesse se preparando para a
batalha. Não queria dar a ninguém a satisfação de vê-la magoada,
então continuou a usar seu uniforme customizado tal qual uma
armadura. Porém, por dentro, ela sofria. Cada novo dia trazia mais
uma rodada de humilhação. Não importava em que classe ela
estivesse ou o que ela dissesse, era sempre um alvo. Na aula de
educação física, o jogo de queimada lhe rendeu uma visita à sala do
diretor por derrubar o Ruivinho Malvado no chão – embora ele
tivesse tentado machucar Anita primeiro. Na aula de artes, sua
interpretação do estilo abstrato não combinava com a do professor.
Mais uma vez, foi para a sala do diretor. Mesmo durante as fotos da
escola, Estella não conseguia fazer a coisa certa. Sua abordagem
chamativa ao uniforme da escola a havia tirado da foto antes que o
flash disparasse.
A cada demérito, a cada humilhação, Estella respondia com outro
pedaço de tecido de cores vivas ou uma pincelada mais vibrante.
Poderiam tentar, mas ela não permitiria que a derrubassem. Ela não
os deixaria ver Cruella. O único lugar em que se sentia um pouco
melhor era do lado de fora, livre do confinamento da escola abafada,
mas logo, até mesmo o pátio se tornou um campo de batalha.
Almoçando um dia, ao ar livre e sozinha, Estella ergueu os olhos
e se viu cercada pelo Ruivinho Malvado e seu grupo de amigos
igualmente desagradáveis. As bochechas do Ruivinho estavam tão
vermelhas quanto seu cabelo, e os olhos maldosos reluziam. Estella
esperava que talvez eles simplesmente fossem embora.
Não teve essa sorte.
Ignorando os protestos de Estella, o Ruivinho Malvado e seus
amigos a pegaram, carregaram-na até uma lixeira e a jogaram lá
dentro.
Papéis velhos, pratos sujos e comida velha cobriam Estella.
Escavando para sair do lixo, rosto enfurecido, ela viu as crianças
olhando-a com desprezo. A raiva foi crescendo dentro do seu peito.
Como se atreviam? Qual era o problema deles? O que é que ela já
tinha feito para eles?
– Por que vocês são tão malvados? – gritou para os estudantes
que iam se dispersando, mas então, com o canto do olho, viu o
brilho de algo prateado e cintilante na lixeira. Distraída por um
momento, começou a vasculhar o lixo. Ao agarrar um fragmento
prateado de tecido, Estella desalojou mais lixo.
Um pequeno gemido soou.
Estella congelou. Outro choramingo. Em frenesi, Estella tateou
pelo lixo. Havia algo vivo na lixeira com ela! Enfim, com um grito,
puxou uma caixa. Ali dentro havia um cachorrinho minúsculo. Ele
tremia e gania, mas, assim que Estella o puxou para seus braços, a
grata criaturinha cobriu seu rosto de beijos. Pelo menos alguém na
escola parecia gostar dela.

Estella se sentou no sofá puído em casa mais tarde, naquela noite,


mexendo em um cordão solto. Apesar do longo banho que havia
tomado, ainda cheirava a lixo. Cada respiração daquele odor
provocava uma nova onda de raiva que aos poucos a inundava.
No chão, o cachorrinho a quem Estella batizara de Buddy,
farejava os móveis, balançando o rabinho.
Pelo menos você está feliz, Estella pensou. Quem quer que o
tenha abandonado na lixeira é tão mau e desagradável quanto as
crianças da escola. Ela soubera que começar em uma nova escola
seria difícil, mas nunca tinha imaginado que seria tão difícil.
Perdida em pensamentos, Estella não ouviu a mãe entrar na sala.
Sua voz a assustou.
– Conheço esse olhar – disse ela, interpretando mal as coisas. –
Pensando em um modelo brilhante?
– Não – respondeu Estella. – Eu estava planejando derrubar
todos eles.
– Estella… – sua mãe começou a protestar.
Mas Estella balançou a cabeça.
– Não posso simplesmente deixá-los fazer isso comigo!
Sua mãe não disse nada por um momento. Sentou-se ao seu lado
e ajeitou os corpos para que ficassem aconchegadas. Era
reconfortante, e Estella se permitiu recostar-se no calor da mãe.
Gentilmente, a mãe passou a mão pelo cabelo de Estella. Primeiro o
lado escuro, depois o claro.
– Dê a outra face – sugeriu a mãe por fim. – Eles vão ceder. A
vingança não é a resposta.
Estella suspirou. Sua mãe estava certa. Ela sempre estava. Ainda
assim, o pensamento de deixar aquelas crianças saírem ilesas
depois de terem-na tratado mal a irritava.
Com um aceno, levantou-se e deu um beijo no topo da cabeça da
mãe.
– Mas eu tinha grandes planos de vingança – replicou. –
Realmente brilhantes.
– Guarde o brilhantismo para os seus modelos – disse a mãe.
Estella tentou. Realmente tentou, porém, depois de mais alguns
dias de intimidação e tormenta, decidiu que era hora de usar um
pouco de seu brilhantismo para vingança, afinal.
Embora tivesse achado engraçado quando o Ruivinho e seus
amigos abriram os armários e ficaram com o rosto coberto de tinta
verde, eles infelizmente não acharam.
E, ao que parecia, nem o diretor.
Tinha a sensação de que aquela poderia ter sido a gota d’água.
Estava certa.
– Acho que ficou claro o que está para acontecer – disse o diretor
depois que a mãe de Estella chegou. A mão dele pairava
ameaçadoramente sobre o livro de registro da menina, cheio de
advertências. – Estella, você está ex…
Antes que ele pudesse terminar a frase, a mãe de Estella se
levantou.
– Vou tirá-la da sua escola – afirmou ela.
A cabeça de Estella virava de um lado para o outro entre a mãe e
o diretor. A expressão de sua mãe era de determinação. O diretor
estava mais atônito – e ficando cada vez mais irritado. Ele balançou
a cabeça, abrindo e fechando a boca.
– Estou expulsando-a – disse ele, tentando retomar o controle.
– Tarde demais – disse a mãe de Estella, sem recuar. – Eu a tirei
primeiro. Então isso não pode estar no registro dela.
Os olhos de Estella se arregalaram ao perceber o que sua mãe
havia feito. Se o diretor tivesse terminado a frase, seu prontuário
estaria marcado para sempre com uma expulsão e ela teria
dificuldade de entrar em qualquer escola. Sua mãe a estava
salvando – de novo.
– Eu disse “expulsa” – protestou o diretor. – Eu já tinha anunciado.
– Não tinha – contrapôs Estella, quase alegre agora que sabia
que não teria de voltar para aquele lugar temido nem se sentar
naquela sala terrível (para não dizer terrivelmente decorada) nunca
mais.
– Não disse – repetiu a mãe, dando à filha um pequeno sorriso de
encorajamento. Voltando-se para o diretor, cujo rosto agora tinha um
tom gloriosamente vívido de vermelho, acrescentou: – E posso dizer
que sua escola tem crianças horríveis, sem criatividade ou
compaixão.
O diretor encarou Estella e sua mãe.
– Bem, a maioria deles vai trabalhar com finanças; ou seja,
estamos apenas fazendo nosso trabalho – explicou ele. Então,
quando percebeu que não precisava se explicar, seu rosto ficou
ainda mais vermelho, e ele apontou para a porta com um dedo
trêmulo. – Você está fora. Fora!
Estella não precisava ouvir duas vezes. Pegou seu livro de
registros, enfiou-o na bolsa e saiu da sala, seguida pela mãe.
Contudo, assim que atravessaram as portas e estavam do outro
lado da estrada, Estella passou de triunfante a preocupada. O que
havia feito? A educação fora sua única chance de sair daquela
cidade e tornar-se conhecida. Agora ficaria presa ali para sempre,
ajudando a mãe com a costura. O máximo de emoção que poderia
esperar seria costurar vestidos para os bailes formais de seus
antigos colegas de classe. Bateu o pé de leve em frustração. Tinha
que ser “única”. Por que não podia simplesmente ter ouvido a mãe?
Sentindo alguém pôr a mão em seu ombro, Estella virou a
cabeça. Sua mãe a observava, os olhos lacrimejantes. Isso só fez
Estella se sentir pior. O que fariam agora?
Estella estava certa na sua preocupação. Houve consequências.
Infelizmente, embora o Ruivinho fosse mau, ele também era bem de
vida. Era o filho mais novo de uma das famílias mais ricas da cidade
e, assim que ele voltou correndo para casa a fim de contar aos pais
o que havia acontecido, a mãe de Estella começou a receber
ligações. Seus serviços não eram mais necessários para as
pessoas ricas da cidade. No dia seguinte, a mãe de Estella estava
sem nenhuma costura para fazer, Estella estava sem escola e elas
precisavam de um novo plano – e de um novo lugar para chamar de
lar.
Havia apenas um lugar para ir quando se precisava de um
recomeço.
Londres.
Depois de colocarem rapidamente seus poucos pertences na
parte de trás do carro, Estella e sua mãe foram embora, deixando o
vilarejo para trás pelo espelho retrovisor.
Buddy ia sentado no colo de Estella enquanto ela olhava pela
janela. Uma parte sua se sentia mal por aquilo tudo. Ela era a causa
de terem de partir de repente, mas outra parte sua – uma parte
maior – sentia-se extasiada. Londres! Iam para Londres. Lar dos
designers mais badalados e das pessoas mais elegantes Com
certeza apreciariam seu estilo ali, e ela poderia encontrar emprego
em um ateliê de moda, e então… quem sabe!
Estella abriu seu guia de Londres e folheou as páginas. Imagem
após imagem de enormes edifícios e ruas movimentadas as
preenchiam. Ela parou em uma foto de uma fonte no centro de um
belo parque. Ao seu redor estavam jovens vestidos na última moda.
Todos sorriam.
– Londres, aqui vamos nós! – exclamou Estella, incapaz de conter
a empolgação.
A mãe olhou para ela incisivamente.
– Bem, nós não temos escolha, na verdade – lembrou à filha. –
Você não tem escola. A cidade inteira virou-se contra você, e eu
perdi algumas clientes. – Fez uma pausa. – Não há nada para
comemorar.
A empolgação de Estella diminuiu.
– Eu sei – respondeu, baixando os olhos e passando
distraidamente os dedos pela página do livro. – Sinto muito.
A expressão da mãe se suavizou.
– De qualquer maneira, você não pode ser estilista em uma
cidade pequena – completou ela.
Erguendo os olhos, Estella viu a mãe lhe dar um sorriso. Ela
sorriu de volta. Talvez fosse mesmo o que elas precisavam o tempo
todo: um chute no traseiro para fazê-las sair de um lugar que era
muito pequeno para os sonhos de Estella – e para seu cabelo.
Sentindo o entusiasmo retornar, Estella apontou para a foto do
parque.
– Podemos ir aqui? – ela perguntou.
A mãe olhou para a página.
– O Regent’s Park? – perguntou. Embora Estella nunca tivesse
deixado o vilarejo, Catherine havia passado anos em Londres
quando jovem. Ela assentiu e seu rosto se iluminou. – Quando
chegarmos à cidade, as primeiras atitudes que tomaremos serão: ir
até aquela fonte, tomar uma xícara de chá e começar os planos
sobre como vamos realizar os seus sonhos.
Os olhos de Estella se arregalaram. Sua mãe estava falando
sério? Ela sabia que precisaram se mudar porque era necessário
ganhar dinheiro, mas realmente não tinha passado pela sua cabeça
que a mãe estivesse pensando em seus sonhos.
Enquanto olhava para a mãe, Estella percebeu uma coisa.
– Por que você está usando seu melhor vestido? – perguntou. Ela
não tinha notado até então. O vestido, com seu corte bem
pronunciado e cores vívidas, nunca saía do armário da mãe. A única
vez que tinha ouvido a mãe gritar fora quando Estella resolvera
brincar de se vestir com aquela peça.
– Preciso dar uma parada no caminho até a cidade – respondeu
ela –, pedir uma ajudinha a uma amiga para que possamos nos
firmar neste início. – Suas mãos se apertaram e se afrouxaram com
nervosismo ao redor do volante enquanto ela falava.
Uma amiga? Estella nunca tinha conhecido nenhuma única amiga
de sua mãe. Na verdade, ela nem sequer sabia que sua mãe tinha
amigas até aquele momento. A amiga devia ser alguém importante,
no entanto, a contar pelo vestido bonito e pelo tom ansioso dela.
– Vou dar menos trabalho a partir de agora – disse Estella, em
uma tentativa de acalmar a preocupação da mãe. – Eu prometo.
Catherine abriu um pequeno sorriso, e o carro continuou ao longo
da estrada, o balanço suave criando um efeito calmante que a
ninava suavemente. Estella inclinou a cabeça para trás. A situação
iria melhorar. Sabia disso. Depois de tudo o que haviam passado, já
era hora de ela e sua mãe terem uma rodada de boa sorte.

Estela despertou assustada. Estava no meio de um pesadelo em


que o Ruivinho era tão alto quanto uma torre e corria atrás dela.
Recuperando o fôlego, ela se sentou e olhou pela janela. Sua mãe
havia saído da rodovia principal e agora desciam o que parecia ser
uma estradinha particular. Uma cerca alta estendia-se ao longo do
caminho.
De repente, do outro lado da cerca, uma enorme mansão se
ergueu. A casa parecia ter saído de um conto de fadas. Em cada
canto do edifício quadrado e imponente havia uma torre redonda.
Luz jorrava das janelas infinitas e, adiante, Estella vislumbrou uma
fila de carros à espera de desembarcar passageiros em frente à
ornamentada porta principal.
Um clarão de relâmpago iluminou o céu quando elas passaram
por um portão grande. A estrada sob os pneus do carro logo tornou-
se revestida de cascalho, e o som alto de pneus triturando as
pedrinhas fez Buddy acordar sobressaltado. O cachorrinho olhou
pela janela e rosnou. Estella se virou para ver o que estava
incomodando Buddy e então se encolheu. Lá, no portão, havia um
grande brasão de família exibindo um aterrorizante dálmata de três
cabeças. O relâmpago faiscou de novo e o nome da propriedade
iluminou-se: Mansão Hellman. Fazia sentido. Tinha um quê de
inferno.
Depois de parar o carro, a mãe de Estella passou nervosamente
as mãos sobre o vestido. Ela ajeitou o chapéu na cabeça e brincou
com o medalhão que usava no pescoço. Estella observou, confusa –
e curiosa. Nunca tinha visto a mãe daquele jeito. Ao se virar, olhou
para as pessoas que adentravam a propriedade elegante. Cada um
parecia ter saído direto de uma revista de moda. Bem, exceto
aquela ali, Estella pensou, ao notar uma convidada vestindo o que
era claramente o estilo do ano anterior. O criado na porta pareceu
pensar a mesma coisa e negou a entrada à convidada.
Aparentemente, apenas os que estavam nas últimas tendências
teriam permissão para entrar. Estella estava feliz por sua mãe ter
escolhido seu vestido mais chique.
Respirando fundo, a mãe abriu a porta do carro e começou a
desembarcar. Estella se preparou para segui-la. Buddy, abanando o
rabo, latiu com entusiasmo.
– Vocês dois, fiquem no carro – disse a mãe, resoluta. Mais uma
vez, a mão dela disparou para o pescoço e os dedos puxaram o
colar. Uma expressão de dor cruzou seu rosto e, então, ela tirou o
colar e o entregou a Estella.
Estella balançou a cabeça.
– Use – encorajou-a. – Ficou bom.
Mas sua mãe insistiu:
– Fica melhor sem, eu acho. – Então ela encolheu os ombros. –
Será seu um dia de qualquer maneira. Herança de família. Cuide
dele para mim.
Antes que Estella pudesse protestar mais, a mãe saiu do carro.
Mais uma vez, Estella tentou acompanhá-la.
– Estella. – Uh-oh. Estella conhecia aquele tom. Era a voz “séria”
de sua mãe. – Fique no carro. Não vou demorar.
Pela porta aberta, Estella viu pessoas interagindo, com taças de
cristal em mãos. O ar resplandecia com as pedras e joias cintilantes
que refletiam a luz do que pareciam mil velas. Nunca em sua vida
Estella quis tanto fazer algo quanto entrar naquela festa. Ela olhou
de volta para a mãe, os olhos esperançosos.
– Mãe – implorou.
Mas sua mãe balançou a cabeça em um sinal negativo.
– Você deve se lembrar de uma pequena promessa que fez há
pouco, não é? – perguntou ela.
Estella suspirou. Certo. Prometera ser uma menina melhor. Por
que tinha feito uma promessa tão tola?
A mãe deu um sorriso agradecido. Ela estendeu o braço para o
banco de trás, pegou um velho chapéu cinza e botou-o na cabeça
de Estella.
– Eu preciso que você fique discreta aí.
– Ficar discreta usando um chapéu? – Estella perguntou, confusa.
– Exatamente – respondeu a mãe. Então, dando um beijo em
Estella e outro em Buddy, ela fechou a porta. Endireitando os
ombros, Catherine ergueu a cabeça e subiu os degraus da frente da
casa.
Estella a observou partir, morrendo de vontade de ir atrás.
Quando sua mãe alcançou o topo da escada, o empregado na porta
empalideceu visivelmente. Estella inclinou a cabeça de lado. Parecia
que o homem tinha reconhecido Catherine. Será que ele era o
amigo de quem sua mãe falara?
Antes que Estella pudesse se perguntar mais, o carro estremeceu
com o estrondo de um trovão. Outro lampejo de relâmpago acendeu
o céu, iluminando a enorme mansão e fazendo-a brilhar
ameaçadoramente. Ao lado dela, Buddy gemia com nervosismo.
– Não se preocupe – tranquilizou o cachorro. – Ficará tudo bem. –
Estella percebeu que estava falando mais para si mesma do que
para Buddy. Havia algo no ar naquela noite que a deixava inquieta.
Naquele momento, uma mulher saiu de uma limusine, o que fez
Estella se distrair. A mulher usava o vestido mais lindo que Estella já
vira. Pressionando o rosto contra a janela, a menina observou as
linhas do vestido de alta-costura do século XIX.
– Isso é pele e chiffon? – ofegou. – Em um só vestido?
Seus dedos se curvaram em torno da maçaneta, coçando para
abrir a porta. Buddy soltou um rosnado de advertência. Estella
hesitou. Sabia que não deveria fazer isso. Mas…
– Só quero dar uma espiadinha de nada, Buddy – disse baixinho,
abrindo a porta e saindo totalmente do carro. Buddy saltou atrás.
Estella sorriu. Pelo menos teria companhia.
Ao avistar um criado empurrando um carrinho coberto por um
pano em direção a uma porta lateral, Estella foi até lá rapidamente
na ponta dos pés. Enquanto a atenção do homem estava focada em
outra tarefa, Estella deslizou para o carrinho e puxou o pano sobre
si e sobre Buddy, de modo que ficassem escondidos. Um momento
depois, o carrinho balançou ao entrar em movimento.
Ela iria entrar.
Estella mal conseguia se conter. Seus dedos se contraíram,
ansiosos para puxar o tecido e espiar todos os vestidos gloriosos,
mas se conteve até o carrinho parar.
Fechou os olhos e respirou fundo. Abriu-os em seguida e puxou a
pontinha do tecido. Teve que suprimir um suspiro de espanto e
deleite. Era mais incrível do que havia imaginado. O carrinho havia
parado no final de uma longa passarela montada no meio de um
enorme salão de baile.
Homens e mulheres conversavam e riam. Estavam todos vestidos
no estilo da corte de Maria Antonieta – cinturas altas, decotes
profundos, saias amplas e cores e estampas deslumbrantes. Na
passarela, modelos desfilavam, indo e voltando com trajes mais
modernos. O coração de Estella bateu forte e seus olhos se
arregalaram de alegria. Cada modelo usava algo mais elaborado e
deslumbrante do que o anterior. Eram peças de arte em movimento.
Este é o meu lugar, pensou Estella, quase gritando de felicidade.
Nessa hora, outra modelo entrou na passarela. Suas longas
pernas a levaram com agilidade pela passarela até que parou,
girando na frente de Estella. De perto, Estella viu que o vestido da
modelo tinha esquilos falsos costurados na parte inferior da saia,
formando uma bainha peluda. Conforme a modelo se movia, os
esquilos também balançavam. A seus pés, Estella sentiu o corpo de
Buddy enrijecer.
Ele também tinha visto os esquilos.
Antes que pudesse impedi-lo, o cachorro latiu e saltou do
carrinho.
– Buddy! – Estella gritou, saindo de seu esconderijo. – Volte aqui!
Mas o cachorrinho só tinha olhos para os esquilos. Saltando na
passarela, ele correu atrás da modelo; Estella correu atrás de
Buddy. Abaixou-se e esgueirou-se, usando as saias enormes como
camuflagem.
– Isso não é ficar discreta – Estella disse para si mesma. Como se
fosse uma deixa, um grande holofote se acendeu e varreu a
passarela. Por um momento, Estella foi iluminada. Seus olhos se
arregalaram e sua respiração ficou presa na garganta. Se sua mãe
estivesse em algum lugar por ali, Estella estaria totalmente
encrencada.
Felizmente, o holofote se desviou dela tão rápido quanto a havia
iluminado. Esticando o pescoço, Estella observou enquanto a luz
voava pela sala em direção à enorme escadaria que dominava a
parede dos fundos. Ali, pairando em um balanço acima da escada
dupla, estava uma mulher que ofuscava todas as demais ali
presentes.
Não porque era mais bonita, embora fosse realmente bela. Não
porque tinha mais joias, embora as tivesse. E não porque parecia
flutuar como mágica na frente de uma espessa faixa de cortinas.
Não. Era a maneira como se portava ali, cabeça erguida, ombros
para trás. Toda a sua presença era imponente, cheia de poder,
quase como se ela fosse uma líder militar se preparando para a
guerra. A mulher claramente demandava a atenção – todos olhavam
para ela daquele jeito o tempo todo, como naquele momento.
A mulher desceu balançando, e todos ali no salão foram
silenciados pela surpresa quando ela pousou no topo da escada.
Com os pés firmemente apoiados no chão, a mulher saiu do
balanço. Então, com um movimento amplo do braço, anunciou:
– Que comam o bolo.
Atrás dela, o tecido que Estella pensara serem cortinas caiu,
revelando-se uma cauda elaborada que se prendia ao vestido da
mulher. Enquanto ela avançava, a cauda caiu ainda mais para
revelar um bolo enorme. No topo, escritas em letras de néon
brilhante que teriam feito os olhos de Maria Antonieta saltarem das
órbitas, estavam as mesmas palavras que a mulher acabara de
dizer: Que comam o bolo.
Estella ofegou baixinho. O vestido era moderno e absolutamente
exagerado. Em outras palavras, era brilhante.
Enquanto o salão irrompia em ovações e palmas, os olhos de
Estella não deixavam a mulher. Com o queixo erguido e balançando
os quadris de um lado para o outro, a mulher desceu a escada
passo a passo. Ao seu lado havia um trio de enormes dálmatas. Os
cães brancos de manchas pretas usavam coleiras reluzentes, mas
exibiam expressões ferozes. Estella sabia, sem que precisassem lhe
informar, que eles não eram do tipo caloroso e fofinho. Os cães
protegeriam a dona a qualquer custo.
Enfim chegando à base da escada, a mulher passou os cachorros
para um criado que esperava ali e se virou para cumprimentar sua
multidão de admiradores. Estendeu a mão, mostrou uma face e
ofereceu sorrisos discretos aos convidados. Eles eram como
mariposas ao redor da chama de uma vela, todos atraídos na
direção da mulher e de sua luz única e dominante.
O mesmo criado que Estella vira conversando com sua mãe abriu
caminho no meio da multidão. Ao se levantar na ponta dos pés, ele
sussurrou algo no ouvido da mulher. O rosto dela pareceu se
iluminar em descrença. Então seus olhos escureceram. Virando-se,
saiu furiosa de sua própria festa e desapareceu por uma porta nos
fundos do salão de baile.
Mensagem entregue, o criado se virou para ir embora, mas, ao
fazê-lo, seu olhar pousou em Estella. Seus olhos se estreitaram.
Com a testa franzida, ele começou a caminhar na direção dela.
– Você! Venha aqui!
Chocada – e ainda um pouco atordoada depois de ter visto o
espetáculo da entrada da mulher –, Estella se pôs a correr, mas não
foi rápida o suficiente. A mão do criado fechou-se em torno de seu
chapéu e o puxou da cabeça. Em instantes, o cabelo preto e branco
estava à mostra.
O criado recuou como se tivesse levado um tiro.
– Meu Deus – ele ofegou. – Coloque o chapéu de volta antes que
alguém veja…
– Quem é você? Membro da patrulha do cabelo? – questionou
Estella, recolocando o chapéu na cabeça. Começou a abrir caminho
por entre a multidão e para fora do salão de baile. Então parou. Por
que estava correndo? Porque algum velho chato em um terno de
pinguim tinha alguma coisa contra o seu cabelo? Que piada!
Virando-se, viu a passarela e o bolo.
Começou a caminhar em direção a ele. Buddy, não mais distraído
por peles falsas, juntou-se a ela. À medida que se aproximava do
bolo, os detalhes ficaram mais claros. Como no vestido que a
anfitriã usava, nenhuma despesa havia sido poupada na sobremesa
luxuosa. Estella parou na frente do bolo.
– Eu esperava poder comer uma fatia – disse, um sorriso
repuxando seus lábios e, pelo canto dos olhos, ela viu uma mistura
de medo e raiva lampejar no rosto do criado.
– Não venha dar uma de atrevida para cima de mim – disse ele,
seu aviso tendo pouco peso à medida que sua expressão ficava
mais nervosa.
De jeito nenhum Estella sairia daquele lugar pela porta da frente,
mas talvez…
Ela ergueu a mão, então hesitou.
– Não se atreva – ameaçou o criado.
O sorriso de Estella se alargou e, logo em seguida, antes que ele
pudesse dizer mais alguma coisa, a garota deu o mínimo
empurrãozinho no bolo.
Foi o bastante. Já pesado com as camadas absurdas e com as
flores de pasta americana, o bolo imediatamente começou a tombar.
Enquanto os convidados gritavam, Estella correu para o fim da
passarela e saltou – para agarrar-se ao balanço em que a mulher
havia feito sua entrada. Abaixo dela, os dálmatas latiam loucamente,
mas Estella permanecia em segurança acima deles, balançando-se
sobre os animais e pousando no meio de um bando de convidados.
Usando-os como proteção, Estella saiu em disparada por um
corredor. Só hesitou quando ouviu o retinir de unhas no chão de
madeira. Temendo que fossem os dálmatas se aproximando dela,
suspirou de alívio quando viu que era apenas Buddy. Estella o
incitou a ir mais rápido e continuar correndo. Não parou até passar
correndo por uma porta aberta e bateu-a atrás de si e de Buddy.
Com a respiração ofegante, Estella olhou para cima e vislumbrou
uma enorme parede de janelas, que dava para o gramado e os
penhascos íngremes mais além. Um relâmpago brilhou e ela ouviu
os cães latirem em algum lugar perto da festa, mas não se importou.
Tinha conseguido. Por enquanto.
O alívio de Estella não durou muito. No relâmpago seguinte, viu
duas silhuetas em pé perto da beira do penhasco. Aproximou-se da
janela, pressionou o nariz no vidro, tentando enxergar melhor. Seus
olhos se arregalaram quando ela percebeu quem eram as pessoas
– sua mãe e uma mulher que ela não conseguiu distinguir.
O que mamãe está fazendo ali?, perguntou-se.
Atrás de si, Estella ouviu os latidos dos cachorros ficando mais e
mais altos. Ao seu lado, Buddy gania com nervosismo. Precisava
sair dali. E enquanto fazia isso, queria descobrir o que estava
acontecendo com sua mãe. Ergueu Buddy nos braços, abriu a porta
e saiu correndo para a noite escura.

O vento uivava e o céu rugia enquanto a água açoitava a base dos


penhascos lá embaixo. A Baronesa von Hellman, a anfitriã da noite
e a designer de moda número um do mundo, estava à beira do
penhasco, de frente para Catherine. A chegada surpresa da mulher
em sua festa definitivamente havia deixado a Baronesa de mau
humor. Não gostava quando seus planos cuidadosamente
orquestrados davam errado. E, de fato, detestava quando esses
planos eram arruinados por alguém como Catherine. E o que a
mulher estava fazendo ali? Seus caminhos haviam divergido havia
muito tempo, e a Baronesa deixara claro que nunca mais queria ver
Catherine – nunca mais. Havia concordado em falar com ela apenas
para tirá-la da festa e de perto dos outros convidados. Sua
reputação poderia ser arruinada se a imprensa soubesse que meros
mortais participavam de seus eventos.
Tendo-a conduzido até a beira do penhasco, agora esperava que
a outra mulher falasse.
– Só preciso de uma ajudinha para conseguirmos nos manter
sozinhas… – Catherine começou, puxando nervosamente o vestido.
– Minha garotinha é minha vida, mas temo que, se seu lado
espirituoso não for canalizado… – A voz de Catherine foi sumindo.
A Baronesa ouviu a dor na voz de Catherine, mas seu rosto era
uma máscara vazia por trás da maquiagem dramática. Suspirou e
olhou para trás, para a propriedade bem iluminada, como se a
conversa toda não fosse nada mais do que um inconveniente.
– Esta é uma história muito chata. – As palavras da Baronesa
ecoaram mesmo acima do som das ondas e do vento forte. – Você
tem a ousadia de voltar aqui. E usando essa monstruosidade sem
graça comprada direto de uma arara de loja popular.
Catherine mais uma vez puxou o vestido, olhando por cima do
ombro para onde a festa continuava. Parecia estar avaliando as
palavras que diria em seguida.
– Eu sei de algumas coisas – disse baixinho. – E o vestido não é
tão ruim assim.
A Baronesa não tinha certeza do que a ofendia mais: que
Catherine ousasse sugerir que poderia lhe fazer mal, ou que
acreditasse que o vestido não era tão ruim. Ambas as ideias
estavam terrivelmente erradas.
– Só preciso de uma ajudinha – continuou Catherine, sem
perceber a raiva que ia crescendo na Baronesa. – Vou ficar de boca
fechada e nunca mais volto aqui.
A Baronesa já ouvira o bastante. Catherine podia já ter sido sua
criada favorita, mas agora não era nada mais do que um risco. Se
saísse dali e continuasse a jorrar bobagens sobre “saber” de coisas,
isso poderia tornar sua vida desconfortável. E a Baronesa não lidava
com o desconfortável. Olhando para a mulher, seus pensamentos
ficaram sombrios e tempestuosos como o céu acima dela.
Catherine queria uma ajudinha? Bem, a Baronesa tinha um jeito
de ajudar as duas. Tirando um apito dos lábios, soprou uma nota
silenciosa no ar.
Era apenas uma questão de minutos até que tudo acabasse.

Estella correu pelo gramado e se escondeu atrás de uma fileira de


cercas-vivas perfeitamente aparadas. Agachou-se e estava tentando
dar uma olhada mais detalhada quando de repente tropeçou e caiu.
Ofegante, ergueu a cabeça e viu que sua mãe e a mulher haviam se
aproximado ainda mais da beira do penhasco.
– Mãe! – gritou, sem se importar mais se seria pega, mas sua voz
se perdeu em meio aos sons turbulentos das ondas e do vento.
Estella correu margeando as sebes. Conforme se aproximava, a voz
da mulher enfim foi se tornando cristalina.
– Terminamos aqui – disse ela.
– Mãe! – Estella chamou novamente do outro lado da cerca-viva.
As duas mulheres, ouvindo o barulho, se viraram para olhar, mas
Estella estava encoberta pelos arbustos altos.
De repente, um toque agudo soou em seus ouvidos. Um momento
depois, ouviu o som distinto do latido dos dálmatas. Virando-se
aterrorizada, ela os viu correndo – bem na sua direção!
Abaixando-se, Estella colocou a mão nas costas de Buddy,
buscando o conforto de sua pelagem, e fechou os olhos. Os latidos
se aproximavam cada vez mais; porém, no último momento, em vez
de atacá-la, os cães pularam por cima dela e da sebe e continuaram
correndo.
Enquanto Estella assistia com horror, as longas pernas dos
cachorros os conduziam pela grama.
E então, com um coro final de latidos, os cachorros atacaram sua
mãe.
Houve um lampejo de tecido quando Catherine perdeu o equilíbrio
na beira do penhasco. Suas mãos se agitaram no ar. Um grito curto
soou.
E então não havia nada.
O local onde sua mãe estava um minuto atrás ficara vazio.
Estella não conseguia se mover. Estava paralisada, olhando para
o local onde sua mãe estivera há tão poucos instantes e tentando
assimilar o acontecido. Os cães, ainda latindo, circulavam pelo
chão, farejando loucamente como se pudessem encontrar vestígios
dela, mas já haviam feito seu trabalho. Catherine não existia mais.
Seu corpo jazia no sopé do penhasco.
E Estella estava sozinha.
Ainda incapaz de se mover, Estella ouviu vozes vindo da direção
da casa. Mal teve tempo de se abaixar antes que o criado
aparecesse, com um sargento da polícia seguindo-o de perto. Um
grupo de convidados aguardava mais para trás, cochichando entre
si e apontando.
De repente, um homem grande abriu caminho no meio da
multidão. Ao contrário dos convidados, ele não estava todo bem-
vestido, mas sim de uniforme.
– Comissário de Polícia Weston. – A voz da mulher flutuou sobre
a multidão. – Houve um terrível acidente. Uma mulher… ela estava
exigindo dinheiro. Me ameaçando. Eu não fazia ideia de que os
cães estavam soltos. Acho que eles estavam… perseguindo
alguém.
Estella sentiu um puxão em seu suéter, mas não se mexeu. As
mentiras da mulher sobre o que a mãe de Estella estava fazendo
eram claras demais. O puxão veio novamente quando o comissário
se virou para seus homens e gritou:
– Vasculhem o terreno!
O puxão veio de novo. Mais insistente agora. Finalmente, Estella
saiu do estado de choque. Olhando para baixo, viu que Buddy
estava choramingando com nervosismo. Olhou para cima e viu os
guardas com suas lanternas levantadas ao vasculhar o terreno. O
restinho de seu choque desapareceu. Abaixou-se, agarrou Buddy e
o embalou em seus braços.
Em seguida, saiu correndo.
Estella não parou, mesmo quando o som dos latidos dos dálmatas
voltou a se elevar. Correu às cegas no escuro, para longe da beira
do penhasco e do horror que acabara de testemunhar. Estella subiu
em um muro de pedra ao seguir para a estrada. Fez uma pausa ao
notar a aproximação de uma caminhonete com a caçamba aberta.
Teve apenas um momento para tomar uma decisão que mudaria o
curso de sua vida. Ficar – e enfrentar a ira da mulher. Ou pular – e
talvez encontrar segurança.
Estella pulou.
Pousou com um baque na caçamba da caminhonete. Ficou ali,
tremendo, cercada por pedaços de móveis quebrados. Enquanto os
sons de latidos e gritos diminuíam, Buddy tirou a cabeça de dentro
da jaqueta dela e lhe deu uma lambida. O gesto, por mais simples
que fosse, destruiu as barreiras de Estella. Ela começou a chorar
inconsolavelmente enquanto sua nova realidade se manifestava: ela
estava sozinha.
– Mamãe se foi, Buddy – disse em meio às lágrimas. Levando a
mão ao pescoço, tateou para sentir o colar que sua mãe lhe dera.
Mas, assim como Catherine, ele também não estava mais ali.

Estella acordou assustada várias horas depois. Esticou os membros


rígidos e o pescoço, e sentiu uma dor de cabeça latejante atrás dos
olhos. Devia ter adormecido ao ritmo do sacolejo e do balanço da
caminhonete. Sentando-se, Estella espiou cuidadosamente por cima
da borda da caçamba. Seus olhos se arregalaram.
Não estava mais no campo. As cercas e as pastagens repletas de
ovelhas estavam distantes. Em seu lugar, havia edifícios enormes e
dezenas de carros estacionados em ruas estreitas.
Estavam em Londres!
De repente, a caminhonete parou quando o semáforo adiante
ficou vermelho. Estella ofegou em reconhecimento. Estavam bem ao
lado do Regent’s Park – o lugar a que ela e sua mãe planejavam ir
primeiro quando chegassem à cidade. Uma nova onda de pesar a
invadiu, seguida por uma saudade intensa. Estella sabia o que tinha
de fazer. Agarrando Buddy, saiu da traseira da caminhonete.
Enquanto o veículo se afastava ruidosamente, sem nunca ter se
dado conta de seus ocupantes temporários, Estella atravessou a rua
e entrou no parque.
Era lindo. A lua banhava tudo em um brilho branco e mágico.
Grama verde, perfeitamente cortada, cercava a fonte redonda
composta por três níveis em forma de tigela, cada uma maior do que
a anterior, todas com água caindo em cascata. Quando o luar
atingia as gotas que caíam, elas resplandeciam como diamantes.
A ideia de diamantes fez Estella pensar na mulher e, com isso,
seu estômago se contraiu. Caminhou até a fonte e sentou-se em um
banco. Estava úmido do sereno, mas ela mal percebeu.
– É tudo minha culpa, Buddy – Estella disse baixinho. As palavras
que havia pensado, mas não ousara dizer em voz alta até aquele
momento, despejaram-se livremente. – E agora… ela se foi. – A
exaustão tomou conta dela. Parecia quase impossível manter os
olhos abertos. Sem forças para lutar, ela permitiu que se fechassem.
Momentos depois, Estella estava dormindo.
Estella estava no meio do melhor sonho. Parada no final de uma
longa passarela, observava as modelos vestidas com suas criações
desfilando sob incríveis explosões de aplausos. Ao lado dela estava
sua mãe, com o rosto brilhando de orgulho. Sua mãe sorriu, virando-
se para ela.
– Estou tão orgulhosa de você, Estella – disse Catherine. – Você
fez o seu legado. Mesmo sem mim…
Estella acordou piscando os olhos, os últimos fragmentos de seu
sonho desaparecendo aos poucos. Ao se sentar, viu que a manhã
havia chegado.
Homens de terno caminhavam rapidamente ao lado da fonte,
imunes à sua beleza. As mulheres, muito bem-vestidas para o dia,
apesar de ser bem cedo, caminhavam mais vagarosamente
enquanto suas babás empurravam carrinhos de bebê.
De repente, Estella avistou um menino cruzando até a fonte –
mais ou menos da sua idade, embora estivesse com aparência
ainda mais desmazelada. Um pequeno chihuahua de um olho só
trotava logo atrás em seus calcanhares. A cabeça do menino girou
para a esquerda e para a direita e então ele puxou uma vara de
pescar improvisada e começou a pescar moedas da fonte. Então ele
as jogou, uma por uma, em um grande saco.
O que ele está fazendo?, perguntou-se Estella. Observou o
menino continuar a “pescar” por mais alguns minutos. Ninguém mais
pareceu notar, e Estella ponderou se aquilo talvez fosse normal em
Londres.
Seus olhos se desviaram da fonte e ela avistou outro menino, tão
sujo e espezinhado quanto o primeiro e mais ou menos da mesma
idade. Com o que parecia ser uma facilidade praticada, o menino
ficava “esbarrando” repetidamente nos transeuntes e, sob o olhar
atento de Estella, batendo carteiras e guardando o conteúdo dos
bolsos alheios nas próprias calças esfarrapadas. Estella continuou a
observá-lo, imobilizada pela casualidade e graça com que o menino
executava aquele pequeno furto.
De repente, ao sentir que era vigiado, o menino olhou para
Estella.
Ela ofegou e logo fechou os olhos, fingindo dormir.
O estratagema não funcionou.
– Bom dia – disse uma voz, provavelmente pertencente ao
batedor de carteira.
Estella manteve os olhos fechados.
– Então, o que ela é? – outra voz perguntou. O sotaque deste era
mais áspero, seu tom menos amigável e mais reservado.
Estella quase abriu os olhos para retrucar que não era um “o quê”,
mas pensou melhor.
Aparentemente, o menino não estava perguntando o que ela era,
mas sim o que ela estava fazendo ali.
– Nos observando – respondeu o primeiro garoto –, mas fingindo
dormir.
– Polícia disfarçada? – palpitou o segundo garoto.
– Nada disso; parece assustada demais para ser polícia – avaliou
o primeiro.
– Não estou com medo – manifestou-se Estella, mantendo os
olhos fechados, embora seu disfarce sem dúvida estivesse
destruído. Começava a se sentir um pouco tola, mas ela esperava
que, se não abrisse os olhos, talvez eles fossem embora.
Não teve essa sorte.
– Também parece ter uns doze anos – observou a voz mais gentil.
– Possivelmente nova demais…
Estella estava farta. Abriu os olhos e se levantou de um salto.
Para seu deleite, assustou os dois meninos, que se apressaram a
recuar alguns passos.
– Para trás! – ordenou ela, encorajada pela reação. Aos seus pés,
Buddy rosnou baixo.
O menino maior, o que estivera pescando, revirou os olhos.
– Vou só tirá-la daqui. – Ele era o que tinha a voz mais malvada.
Deu um passo à frente.
Mas antes que ele pudesse levantar a mão, Estella puxou a perna
para trás e chutou-o na barriga. Ele se dobrou, abraçando o corpo
na altura do estômago.
– Ai! – chiou.
Virando-se, Estella olhou para o outro garoto. Ele era mais magro
e suas bochechas rosadas davam-lhe uma aparência
enganosamente inocente, mas seus olhos eram duros e versados
na arte das ruas. A menina estava na frente dele, com os punhos
levantados. Também não permitiria que a derrubasse.
– Olha, queridinha – disse o menino, mantendo a voz calma e
constante, como se tentasse acalmar um animal selvagem. – A
polícia passa todos os dias às oito da manhã. Como um reloginho. –
Ele parou um pouco, como se não tivesse certeza de suas palavras
seguintes. Então, apressado, acrescentou: – Você deveria vir com a
gente.
Seu amigo ergueu os olhos e lançou um olhar furioso para o
garoto mais magro, balançando a cabeça com veemência.
– Nem pensar – protestou. – Melhor voltar para a sua família,
garotinha. – Era difícil ouvi-lo por cima da respiração ofegante
enquanto seu rosto assumia um adorável tom de roxo.
– Ela não tem família – disse o menino mais alto e magro quando
Estella não respondeu.
Ela virou a cabeça para encará-lo. Como ele sabia? Mal havia
trocado uma palavra com ele.
– Reconheço esse olhar – explicou o menino, respondendo à
pergunta silenciosa.
Lágrimas brotaram dos olhos de Estella, que as enxugou com
raiva. Ele não sabia de nada. Ainda assim… estava lhe oferecendo
uma maneira de não ficar sozinha. Era tentador. Mais ou menos,
mas antes que ela pudesse falar, Buddy soltou um latidinho alegre.
Olhando para baixo, Estella viu que ele e o chihuahua tinham
começado a brincar. Ela grunhiu.
Ao se virar novamente, encarou o menino.
– Eu nem te conheço – disse baixinho.
Pela primeira vez desde que haviam se encontrado, o menino
sorriu, revelando dentes desiguais e uma pequena covinha que
Estella poderia ter considerado charmosa em outro ambiente.
– Eu sou Gaspar. Prazer em conhecer você – disse ele
calorosamente. Apontou para o amigo, que ainda não conseguia
ficar de pé direito. – Aquele é Horácio. Diga “oi”, Horácio.
O outro garoto balançou a cabeça.
– Eu que não vou falar “oi”.
Gaspar abriu a boca para dizer algo, mas parou. Estella seguiu
seu olhar pelo parque até onde um policial tinha aparecido. Gaspar
puxou um relógio de bolso.
– Cinco para as oito. Isso não é justo. – Devolveu o relógio ao
bolso. – Todos nós precisamos correr. Agora!
Estella hesitou apenas tempo suficiente para observar o policial
pegar o apito e soprar. Não precisava de mais incentivos do que
aquele. Ela se virou e seguiu Gaspar e Horácio correndo para fora
do parque e para as ruas, com Buddy e o chihuahua em seus
calcanhares.
Ao que parecia, Estella tinha acabado de fazer novos amigos.

Gaspar corria, mas de vez em quando olhava para se certificar de


que a garota o estava seguindo. O que ele tinha certeza era que ela
nunca tinha corrido tão rápido ou por tanto tempo em sua vida. Mas,
devia admitir, a menina aguentou firme. Correram por ruas vicinais,
por cima de caixotes espalhados, por jardins nos fundos de
apartamentos; giravam e andavam em círculos, saindo da área
chique de Londres e entrando em seus bairros mais humildes. O
policial manteve o ritmo deles durante a maior parte da perseguição.
Por fim, Gaspar passou por um buraco em uma cerca e entrou no
pátio de uma fábrica abandonada. Continuou correndo em direção a
um buraco no revestimento de tijolos e se virou. Vendo a hesitação
da garota, ele gesticulou para que o seguisse. Ela não se moveu, os
olhos alertas e assustados refletiam sua agitação interna. Ele sabia
o que a menina estava pensando. Já tinha passado por isso antes.
Ela estava em um ponto decisivo. Se seguisse em frente, seu
mundo mudaria para sempre, mas, se ficasse, o policial com certeza
a encontraria, e então como seria sua vida? O cachorro ganiu a
seus pés. O barulho a impulsionou para a frente. Não era uma
grande escolha, mas era a única que tinha.
Gaspar os levou para dentro do prédio de tijolos e subiu um lance
de escadas para o segundo piso. A escada interna era tudo o que
sobrara. Não havia mais nada nesse andar. Eles continuaram em
frente, através de uma porta aberta, ao longo de um telhado, e
então Gaspar e Horácio pularam – desaparecendo por uma calha de
carvão no teto. Atrás deles, a garota respirou fundo e fez o mesmo.
Gaspar pousou com um baque em uma pilha de colchões e se
levantou.
Ao lado dele, Horácio murmurava algo para si mesmo sobre um
esconderijo secreto e não mostrá-lo para ela, mas era tarde demais.
A menina já tinha visto.
– Onde estamos? – perguntou a garota, levantando-se. Suas
roupas estavam cobertas por uma fina camada de fuligem negra.
– Lar, doce lar – Gaspar respondeu.
A menina olhou ao redor, sua expressão cética. O olhar do próprio
Gaspar acompanhou enquanto ele tentava enxergar o espaço
através dos olhos dela. Havia mais alguns colchões no chão e o que
antes devia ter sido um tapete, mas agora parecia mais um trapo.
Uma cadeira com apenas três pernas em boas condições balançava
precariamente em um canto, e a única luz entrava por uma grande
janela de vitral no final do espaço.
Lar? Talvez. Doce? Isso era questionável.
Ignorando o olhar cético da menina, Gaspar se sentou em um dos
colchões mais limpos.
– Então, qual é a sua história? – perguntou. Ela estava em seu
refúgio; eles podiam muito bem começar a fazer amizade.
Horácio, no entanto, não parecia se sentir obrigado pelos
costumes sociais.
– Onde estão seus pais? – perguntou bruscamente.
De imediato, os olhos da garota se encheram de lágrimas. Gaspar
se mexeu, pouco à vontade. Ele e Horácio trocaram olhares
impotentes, sem saber o que fazer a não ser esperar em silêncio as
lágrimas da garota secarem e ela se recompor.
– Minha mãe está morta – disse finalmente, respondendo às duas
perguntas. Seu tom forte contrastava com o rosto coberto de
lágrimas.
Gaspar acenou com a cabeça. Ele esperava essa resposta.
– Estou pensando que você deveria ficar aqui – sugeriu após um
momento. – Quer fazer parte de nossa gangue…? – Ele parou,
esperando que a menina mordesse a isca e dissesse como se
chamava.
– Estella – respondeu.
Gaspar sorriu, mas Horácio agora tinha a mesma expressão de
dor de quando Estella o chutara no estômago.
– Ela deveria o quê? – disse ele, exasperado. Balançou a cabeça.
– Isso não foi debatido.
– Poderíamos usar uma garota como distração, para nos ajudar a
parecer inocentes – Gaspar apontou.
Horácio inclinou a cabeça de lado.
– Ela parece muito triste, esquelética, patética e indefesa… – Ele
cessou os adjetivos quando Estella se aproximou e deu um soco no
braço dele. – Ei! Por que você fica me batendo?
– Só acontece quando você fala – Estella respondeu, ganhando
um sorriso de Gaspar e outra carranca de Horácio.
Ela parou um pouquinho.
– Vocês são criminosos – disse, a palavra soou mais dura quando
falou em voz alta.
Gaspar encolheu os ombros.
– Você diz “criminosos”. Eu digo “empresários”.
– Quero ser estilista, não ladra – ela confessou baixinho.
– Isso é engraçado – disse Horácio. – Você é uma criança.
Estella abriu a boca a fim de protestar, mas Gaspar a interrompeu.
– Ele tem razão – disse Gaspar. – Você não tem tantas opções
assim, Estella. Só a gente.
Estella afundou o corpo em um colchão próximo. As palavras
francas de Gaspar pareceram tirar seu ímpeto de brigar. Ela deixou
cair a cabeça entre as mãos.
– Ela está chorando de novo? – Horácio sussurrou alto.
– A mãe dela morreu – disse Gaspar. – Você se lembra de como é
isso.
Horácio ficou em silêncio por um momento.
– Sim, eu me lembro – disse ele por fim, seu tom um pouco mais
suave do que antes.
Com essas palavras, Estella ergueu os olhos. Ao fazer isso, seu
chapéu caiu da cabeça e revelou o cabelo. Horácio soltou um
gritinho. Constrangida, a garota ajeitou o cabelo para trás e pegou o
chapéu.
– Não posso ficar assim – disse ela.
Mas Gaspar a deteve.
– Gostei bastante – disse ele apenas, e ganhou um pequeno
sorriso.
Ainda assim, ela estava certa. Cabelo como o seu era muito fácil
de reconhecer. Se ia se tornar um deles, precisaria ser capaz de se
misturar, de se esconder, de ser imperceptível. Horácio parecia ter a
mesma opinião. Levantou-se, foi até uma caixa no chão e começou
a vasculhar ali. Um momento depois, se endireitou, com uma
garrafa em cada mão.
– Vermelho ou amarelo? –perguntou.
Deixando o chapéu no chão, Estella se levantou e foi até o único
banheiro do Covil. Fechou a porta atrás de si e, por um tempo, o
único som que se ouviu foi o de água corrente.
Quando Estella finalmente saiu de lá, o cabelo preto e branco
havia sumido. Agora era ruiva. Inclinou a cabeça de um lado para o
outro.
Nada mal, pensou Gaspar.
– Então – disse ela, ignorando os olhares curiosos –, como isso
funciona?
Gaspar sorriu.
– Não se preocupe – disse ele. – Vamos iniciá-la com as coisas
simples.
Era hora de ensinar Estella a ser uma ladra.

Gaspar foi fiel à sua palavra – o que Estella achou um tanto irônico,
visto que ele era um ladrão, mas, como havia prometido, ele a
iniciou na atividade com “as coisas simples”.
Primeiro havia o Adam Tyler básico, como Gaspar chamava. Era
um movimento rápido de batedor de carteira; a parte mais difícil era
fazer com que todos – inclusive os cães – trabalhassem juntos.
Enquanto Horácio esbarrava em um transeunte, Estella punha a
mão no bolso e colocava o conteúdo na boca aberta de Buddy. Um
trote rápido até Gaspar encerrava com um truque de mãos. Antes
mesmo de o alvo virar a esquina, a carteira estava no chão, vazia, e
a gangue estava indo para o outro lado com os bolsos cheios.
Simples.
Mas as jogadas ficavam mais difíceis. Rápidas.
E Estella aprendeu todas elas – ainda mais rápido.
Ela aprendeu a bater carteira. Aprendeu a ser a distração.
Aprendeu a identificar um policial disfarçado e a escolher um alvo.
Dominou o Chororô – uma jogada que envolvia fazer um motorista
pensar erroneamente que tinha atropelado Buddy e sempre
terminava em lágrimas – e ela até conseguia criar algumas jogadas
por conta própria.
Para sua surpresa, Estella rapidamente se adaptou à vida nova.
Quando não estavam nas ruas sendo “empreendedores”, Estella se
dedicava a fazer sua nova casa parecer um pouco mais… bem,
acolhedora. Substituiu os colchões sujos por outros mais novos.
Vasculhando as latas de lixo nas partes chiques da cidade,
encontrou peças de arte e travesseiros, pratos e enfeites – todos
quase sem uso. Com a ajuda de Gaspar, ela os arrastava de volta
para o Covil e, em pouco tempo, as paredes não estavam mais
nuas. Algumas luzes deixaram o espaço mais claro, e Estella ainda
conseguiu encontrar divisórias para ter um canto só seu.
O Covil em ordem, Estella voltou sua atenção para os meninos.
Mesmo que eles estivessem ganhando uma quantidade até que
decente de dinheiro com seus furtos regulares, ela sabia que
podiam fazer mais. O único problema era que estavam limitados aos
lugares aonde poderiam ir. Tinham pouquíssimas roupas e maneiras
escassas de lavá-las. Na maioria das vezes, suas vestimentas
estavam manchadas, rasgadas ou remendadas. Se quisessem
roubar dos ricos, precisariam parecer, bem... mais ricos – ou pelo
menos parecer mais com as pessoas que trabalhavam para eles.
Com uma nova meta definida, Estella formulou rapidamente um
plano. Tinha o talento para fazer todos ficarem com uma aparência
melhor. O resto se encaixaria. Só precisava colocar as mãos em um
item especial…
Algumas noites depois, ela e os meninos estavam parados na
entrada dos fundos de uma alfaiataria. Eles trocavam o apoio do
corpo de um pé para o outro, ansiosos. A rua estava silenciosa
demais. Eles eram óbvios demais ali. Não se tratava de seu alvo
típico e eles não gostaram disso.
Mas, como Estella apontara antes, precisavam entrar e pegar o
que ela estava procurando.
– Poderíamos ser maiores, melhores… mais ricos – ela lhes
disse. – Vocês só têm que confiar em mim. Sei o que estou fazendo.
Ela havia convencido Horácio em “mais ricos”. Gaspar ainda
estava incerto, mas Estella sabia o que estava fazendo. Ficou na
ponta dos pés e escorou uma janelinha aberta acima da porta.
Horácio passou o chihuahua Wink pela janela, e eles o ouviram
pousar com leveza do outro lado. Um momento depois, houve uma
raspada na porta dos fundos e ela se abriu. Caminhando na ponta
dos pés enquanto os meninos vigiavam, Estella foi até a bancada do
alfaiate. Lá, brilhando mesmo na penumbra, havia uma máquina de
costura novinha em folha.
O coração de Estella se encheu ao vê-la. Ergueu-a em seus
braços, respirando fundo, satisfeita. Então, deu meia-volta e fugiu da
loja. Os meninos a seguiram de perto.
A partir daquele momento, era Estella quem arranjava suas
“missões”. Costurou figurinos de coroinha para os domingos, de
modo que Horácio e Gaspar pudessem fazer a coleta para os
“necessitados”. Criou uniformes de mordomo e mandou os meninos
servirem aos ricos e famosos e acessarem os bolsos deles à
vontade. Montou figurino após figurino com tecido roubado e
imaginação fértil, enquanto os meninos assistiam admirados.
Estella estava feliz. Não percebeu a princípio, mas embora ainda
pensasse em sua mãe a cada vez que abria os olhos, passava por
uma fonte ou via um lampejo de tecido brilhante, a dor se tornara
apenas algo amortecido. Tinha uma nova vida agora. Embora não
fosse algo que pudesse ter imaginado quando morava em sua
cabana, não era tão ruim assim. Podia costurar; tinha amigos; tinha
um teto sobre a cabeça (mesmo que tivesse goteiras). Sim, ela era
feliz.
E nesse estado de contentamento geral, os anos se passaram.
TREZE ANOS DEPOIS

A pertando os olhos, com a língua para fora, concentrada, Estella


estava sentada diante da máquina de costura. O som constante da
máquina a acalmava e abafava os outros ruídos do Covil: o som de
Horácio gritando para a televisão, os latidos incessantes dos cães,
os passos altos de Gaspar andando estrondosamente no andar de
baixo. De vez em quando, ela se sentava e se espreguiçava para
aliviar os ombros tensos por causa de outra longa noite de costura.
Quando fazia isso, não podia deixar de sorrir.
Ao longo dos anos, sua parte do Covil se transformara
exatamente em um ateliê de estilista. Araras de roupas – de
uniformes vistosos de policial a elaborados trajes formais –
alinhavam-se no espaço, criando três paredes de figurinos ao seu
redor. Fotos de modelos com trajes para diversas ocasiões estavam
penduradas nas paredes de fato e espalhadas pelo chão. Esboços
de ideias para roupas – alguns completos, outros nos estágios
iniciais – empilhavam-se sobre uma mesa. Alguns manequins se
encontravam em ângulos aparentemente precários, usando
fragmentos de roupas ainda não completas.
Estella voltou-se para a máquina. Seu pé pressionava o pedal e a
agulha subia e descia. Sabia que não tinha muito tempo antes de
Horácio e Gaspar a interromperem, e estava desesperada para
terminar aquela peça.
– Estella!
A voz de Gaspar a assustou, e seu pé escorregou do pedal. Ao se
virar, ela o viu na outra extremidade do Covil. Com o passar dos
anos, o garoto havia ficado mais alto, mas não mais largo. Era uma
vareta com um chumaço de cabelo castanho que parecia nunca
ficar no lugar, a menos que fosse enfiado embaixo de um chapéu,
mas seus olhos eram os mesmos – gentis, bondosos e sábios.
No entanto, no momento havia um pouco de impaciência neles.
– Vamos nessa! – disse Gaspar.
Estella deu um pulo e passou roçando nas araras de roupas. No
caminho, escolheu três figurinos. No centro do Covil, Horácio estava
sentado no sofá, assistindo a uma partida de futebol em uma de
suas aquisições mais recentes – uma televisão. Ele vestia uma
camisa do time, e seu rosto estava mais animado do que nunca. A
camisa se esticava contra sua cintura enquanto ele torcia.
Ao avistar Estella e Gaspar, ele balançou a cabeça.
– Dois minutos? Por favor? – implorou. – O jogo está nos
acréscimos.
Gaspar balançou a cabeça.
– Agora – disse ele.
Estella suprimiu um sorriso quando Horácio gemeu e se levantou.
Ainda a divertia ver os meninos brincando, mesmo depois de todos
aqueles anos. Pareciam um casal de velhos. Se bem que, ela
pensava agora, será que isso fazia dela a irmã? Ou filha? Balançou
a cabeça. Não gostava de nenhuma das duas opções. Não, era
parceira deles – no crime, pelo menos.
Jogou as roupas da noite em Gaspar e Horácio, e todos eles
rapidamente saíram do Covil. Era hora de trabalhar.
A caminho do alvo – um restaurante chique no distrito dos teatros
– Gaspar e Estella se prepararam. Ao chegarem em frente ao
restaurante, estavam vestidos de forma imaculada. Estella usava
um vestido; Gaspar, um terno. Deslizaram para dentro e esperaram
na chapelaria por alguns instantes – apenas o tempo suficiente para
esvaziar os bolsos de alguns clientes antes de voltarem para fora,
onde Horácio estava estacionando um carro caro. Ele saltou para
fora e Estella assentiu satisfeita, aprovando seu trabalho manual. O
traje de manobrista era perfeito. Enquanto entravam no carro
“deles”, Horácio virou o paletó do avesso, revelando um smoking
normal por baixo. O verdadeiro manobrista não tinha se dado conta
de nada quando Horácio acenou com a cabeça e desceu a rua.
A missão um estava concluída.
Porém, naquele ramo, sempre havia outros trabalhos a fazer. No
dia seguinte, eles estavam no Distrito Financeiro, com Estella
embonecada em um vestido justo e salto alto, passando por uma
multidão de ricos empresários. Enquanto os homens olhavam à
vontade para as longas pernas de Estella, seus amigos batiam as
carteiras. Depois, naquela mesma tarde, em uma joalheria, Estella
examinou os balcões, um dedo enluvado nos lábios, enquanto
representava uma debutante rica em sua totalidade.
– Devo ter algo brilhante – ela disse por cima do ombro para
Gaspar, sua voz tão elegante e sofisticada quanto o vestido que
havia costurado. E simples assim, um conjunto de brincos de
diamante e um colar combinando apareceu – só para desaparecer
um momento depois, quando Buddy invadiu a loja e forneceu uma
distração perfeita.
Assim as coisas continuavam, dia após dia, trabalho após
trabalho. As roupas de Estella os faziam entrar, e a astúcia de todos
os tornara ricos – ou ricos o suficiente. Nunca parecia que
conseguiam manter a renda que obtinham. Portanto, o Covil
permanecia o lar deles. Estella não se importava. Sua participação
nos lucros sempre tinha sido destinada para a compra de mais
tecido, mais material para figurinos e os looks dos seus sonhos. Só
queria que houvesse algo mais à espera deles.
Será que havia até mesmo algo mais para ela…?

Estella olhava através de uma janela que ia do chão ao teto. Ela e


os meninos estavam no meio de algumas “tarefas domésticas”. Só
que, nesse caso, a casa era um quarto de hotel e a limpeza era
completa. Estella pegava objetos distraidamente, mas seus olhos
nunca deixavam a janela. Do outro lado da rua, havia um outdoor
gigante anunciando os designs mais recentes da Baronesa. Uma
linha de vestidos se espalhava pelo outdoor do tamanho de uma
casa, cada um mais ousado e mais brilhante do que o anterior.
– O que há de errado?
A voz de Gaspar a assustou. A contragosto, desviou o olhar dos
vestidos e viu Gaspar parado na porta. Estella reconheceu a
expressão peculiar no rosto dele. Significava que ele estava curioso
– ou confuso – sobre alguma coisa. Encolheu os ombros e passou
por ele até o corredor, entregando-lhe uma carteira ao passar.
– Só estou entediada – disse ela.
– Entediada? – Horácio saiu do quarto que estava “limpando” e se
juntou à dupla. – Está de brincadeira? Encontrei uma TV bem
pequenininha. Um japonês dormia na cama. Veja. – Ele acenou com
a cabeça por cima do ombro para algo atrás dele. Estella olhou para
dentro do quarto. Com certeza, havia um homem dormindo
profundamente. Ela riu. Era a cara de Horácio limpar em volta de
alguém.
De repente, a porta da escada se abriu no final do corredor. Todos
os três se viraram e viram o gerente do hotel aparecer. Ele os
avistou no mesmo instante.
– Quem são vocês três? – perguntou em voz alta.
– Corram – Gaspar sussurrou com o canto da boca. Era o plano
de fuga usual deles.
Mas Estella estava cansada de correr, assim como estava
cansada de fazer as mesmas tarefas dia após dia. Queria uma
mudança. Precisava fazer algo para não sentir que estava caindo
em uma rotina.
Era hora de se divertir um pouco.
Balançando a cabeça para Gaspar, ela se virou e caminhou em
direção ao gerente. Atrás, ouviu Gaspar tentar chamá-la para voltar.
Ignorou-o.
– Quem somos nós? – perguntou ela, assumindo um sotaque
típico londrino. – Eu vou lhe dizer quem “nós” somos. Somos do
Grupo de Consultores de Hotel e estamos disfarçados. Nós
reportamos aos chefões deste palácio seboso os padrões que
encontramos.
O queixo do gerente caiu. Ele ficou parado ali, gaguejando,
enquanto Estella prosseguia.
– E uma palavra me veio à mente. – Fitou, de nariz empinado, o
gerente. – Desleixado.
– Desleixado – Gaspar repetiu, juntando-se a ela. – Um relatório
incriminador está em andamento.
– No entanto, para sua sorte, Frederick – Estella continuou, lendo
o crachá com o nome no paletó do funcionário –, subgerente,
podemos destacá-lo como a estrela brilhante na escuridão do
desleixo.
Finalmente encontrando sua voz, Frederick assentiu.
– Obrigado, eu…
– Por um preço, claro – disse Estella, interrompendo-o. Ela
estendeu a mão.
Enquanto o gerente pegava a carteira, Estella lançou uma
piscadela para Gaspar. Estava entediada, talvez, mas isso não
significava que não amasse seu trabalho.

Mais tarde naquela noite, Estella estava deitada na cama, olhando


para as fotos de moda que havia colado no teto. Imagens do
outdoor da Baronesa, que vira mais cedo, flutuaram diante de si.
Fora divertido fazer algo diferente no hotel, mas, depois que o
barato passou, voltou a se sentir inquieta. Vinha fazendo furtos
havia muito tempo. E a cada trabalho, sentia um pouco de seu
sonho de infância esmaecer. O que sua mãe pensaria se pudesse
vê-la naquele momento? Deitada no Covil, sem nada para chamar
de seu, exceto dezenas de figurinos usados para roubar os
pertences das pessoas, Estella fez uma careta. Duvidava que fosse
algo bom.
Ao ouvir passos, Estella se virou e viu Gaspar e Horácio entrarem
em seu quarto. Um sorriso substituiu sua expressão triste quando
ela viu que estavam carregando um grande bolo iluminado pelas
chamas de mais de duas dúzias de velas.
Buddy e Wink vinham trotando aos pés deles, cada um usando
um chapéu de festa.
Seu aniversário. Havia esquecido completamente.
Radiante, levantou-se.
– Este é o melhor aniversário desde… – disse ela, depois de
soprar as velas – … desde que minha mãe estava por perto. – Seus
olhos começaram a lacrimejar. Enxugou-os. Não queria chorar. Não
naquela noite.
Gaspar assentiu, mas em vez de dizer alguma coisa,
simplesmente lhe entregou um envelope.
– O que é isto? – perguntou, confusa.
– Isso – Gaspar disse enquanto um sorriso começava a se
espalhar por seu rosto –, é uma oferta de emprego na Liberty of
London.
Horácio inclinou a cabeça de lado. Claramente, ele não sabia do
presente.
– É uma hamburgueria? Porque isso seria ótimo.
Estella não conseguia acreditar. Não era uma hamburgueria. Não
era isso nem de perto. A Liberty of London era a loja de
departamentos mais elegante da cidade.
– Como você… – Ela parou, chocada.
Gaspar encolheu os ombros. Não foi muito difícil, ele lhe disse.
Apenas um truque de mãos leves básico e um pouco de distração
para deixar uma ficha de candidatura à vaga – preenchido por ele,
com a foto de Estella – na bandeja “aceitos”. Bem, talvez tivesse
exigido um pouco de esforço, Gaspar acrescentou quando Estella
expressou descrença. Pode ter havido um momento de quase
perigo, enquanto ele se dependurava de uma claraboia sobre a
mesa da secretária, mas nada que uma manobra rápida não
pudesse resolver.
Mil emoções inundaram Estella. Alegria. Medo. Surpresa.
Admiração. Gaspar acabara de lhe oferecer o presente mais
maravilhoso que qualquer pessoa poderia dar. A chance de
trabalhar em uma loja de departamentos repleta de todas as últimas
tendências da moda? Estar rodeada todos os dias por todo aquele
tecido, toda aquela beleza? Era um sonho realizado.
– Eu amo a Liberty! – gritou ela, deixando a emoção borbulhar e
sair.
Gaspar deu um sorrisinho tímido.
– Eu sei – disse ele. – Notei como você olha quando passamos
por ela. Bom, eu devo ter floreado um pouco o seu currículo –
acrescentou. – Tipo, floreado completamente. Inventei algumas
referências. Se alguém perguntar como você conhece o príncipe
Charles, diga que é coisa do polo.
Alternando o olhar entre o papel em sua mão e Gaspar, Estella
abriu um sorriso enorme. Então estendeu a mão e jogou os braços
em volta do rapaz.
– Obrigada! – disse ela, abraçando-o com força.
Horácio parecia confuso.
– Então, qual é a jogada? – perguntou. Não era uma pergunta
estranha. Eles costumavam ter segundas intenções. Seria uma
maneira de fazer um trabalho interno? Prospectar um novo alvo?
Mas Gaspar balançou a cabeça.
– Não há jogada.
– Certo – disse Horácio. – Mas falando sério agora. Qual é?
– A jogada é que Estella deveria ter uma chance de ser grande no
mundo lá fora, porque é muito talentosa para ganhar dinheiro
escuso com gente da nossa laia – disse Gaspar. Suas palavras
surpreenderam Horácio a ponto de este ficar sem saber o que
responder. Ao se virar, ele sorriu para Estella.
Ela foi tomada por uma onda de calor e sentiu as bochechas
corarem. Balançou a cabeça e agradeceu novamente. Em seguida,
deu um soquinho no braço dele, porque era a isso que Estella tendia
a recorrer quando as palavras certas lhe escapavam. E também
porque eram amigos e era isso que amigos faziam.
Além disso, ao que parecia, amigos também ajudavam na
realização de sonhos.
Estella parou na frente da loja de departamentos Liberty. Suas mãos
puxavam nervosamente a barra da blusa enquanto ela olhava para
a imponente fachada em estilo Tudor. De cada lado dela, pessoas
passavam muito perto, esbarrando de leve, entrando pelas portas
giratórias e desaparecendo lá dentro. Por muito tempo, ela só pôde
sonhar em fazer parte de um lugar tão espetacular como a Liberty. E
agora isso estava prestes a se tornar realidade.
Antes de chegar para o primeiro dia de trabalho, Estella parou no
Regent’s Park.
Com o passar dos anos, havia estabelecido a tradição de ir até lá
com duas xícaras de chá e dar um “alô” para sua mãe. Atualizava
Catherine sobre a história de um furto espetacularmente bom ou lhe
mostrava o esboço de um vestido de que gostava em particular. Isso
ajudava Estella a se sentir próxima da mãe – embora Catherine não
estivesse mais lá.
Naquele dia, ela se sentara em um banco em frente à fonte, com
um segundo chá ao seu lado. Enquanto tomava um pequeno gole,
disse:
– Mãe, consegui a minha chance. Aquela que eu sempre quis. –
Sorriu, levou a mão ao cabelo ruivo e ficou imaginando o nariz de
sua mãe enrugando-se ao lembrá-la de ser uma menina gentil. –
Vou manter a cabeça baixa e fazer isso dar certo – acrescentou.
Então, com um rápido “boa sorte”, colocou as xícaras na bolsa,
levantou-se e foi para a Liberty. Naquele momento, diante da loja, só
o que precisava fazer era passar pelas portas.
Mas seus pés pareciam congelados no lugar. Aquilo era mais
assustador do que qualquer roubo com a gangue. Significava muito
mais.
Respirou fundo, alisou a camisa com as mãos e entrou.
Ofegou de espanto. Não conseguiu evitar. Estivera lá um punhado
de vezes ao longo dos anos – apenas para perambular pelos
corredores e fingir por um momento que aquela poderia ser sua vida
– e ainda assim, cada visita à loja literalmente tirava seu fôlego. O
teto se erguia bem alto, fundindo o estilo gótico com metal moderno
e vidro cintilante. Sacadas de madeira entalhada circundavam um
enorme átrio de vários andares, preenchidos com todos os tipos de
departamentos imagináveis.
Devagar, Estella avançou pela seção de cosméticos, passou pelo
balcão de joias e pelas araras de alta-costura. Perto dali, um grupo
de moças ansiosas estava pronto para ajudar os compradores,
atendendo todas as suas necessidades. Ela examinou a área, em
busca de alguém que pudesse ajudá-la, mas tudo o que via eram
compradores vestidos com esmero, com os braços cheios de
sacolas. Os clientes mais ricos nem se davam ao trabalho de
carregar suas próprias compras. Homens vestidos com uniformes
da Liberty os seguiam, empurrando carrinhos ou carregando
braçadas cheias de roupas.
– Estella?
Ao ouvir seu nome, Estella se virou. Um homem, com o rosto
contraído e muito franzido e uma prancheta na mão, olhava para
ela. Seu pé batia no chão com impaciência. Aquele, deduziu, era
seu chefe. Ela rapidamente se aproximou e passou a acompanhá-lo
de perto enquanto ele a levava mais fundo pelas entranhas da loja.
Enquanto caminhava, ele ia falando. O trabalho, ele a informou, não
era perambular entre os departamentos. Não era ajudar nos ajustes
ou oferecer conselhos sobre o design das vitrines. O trabalho, disse
ele, com imensa satisfação, era limpar a sujeira depois que os
clientes iam embora.
Estella tentou não deixar o rosto mostrar sua surpresa.
Simplesmente havia presumido que trabalharia no departamento de
moda.
Mas estava errada. Terrivelmente errada.
Estella ia trabalhar no departamento de zeladoria.
Abrindo com tudo a porta do banheiro dos funcionários, Estella
empurrou um balde cheio de água suja na frente dela, franzindo a
testa ao ver seu reflexo no espelho. O uniforme de faxineira era sem
graça demais e, Estella tinha certeza, não era lavado há uma
década. Seu cabelo escapava do coque perfeito e havia manchas
de sujeira em suas bochechas. Fitou as mãos. O esmalte que havia
passado naquele primeiro dia em que entrara na Liberty estava
lascado há muito tempo.
Fez uma careta. Aquele não era o emprego dos seus sonhos. Era
um pesadelo.
Todos os dias, desde que havia começado, tentava semear o
caminho para uma saída rápida da zeladoria e entrada no
departamento de moda. Cumprimentara as vendedoras com
sorrisos, oferecera sugestões às costureiras que trabalhavam no
porão e até tentara se insinuar com as perfumistas que só
precisavam ficar ali paradas borrifando fragrâncias. Contudo, não
importava o que fizesse ou com quem falasse, era recebida com os
mesmos olhares frios e condescendentes. Estava claro qual era o
lugar de Estella – bem no fundo.
Nesse momento, seu chefe, Gerald, o qual ela tinha quase
certeza de que estava à espera de flagrá-la fazendo alguma coisa
errada, passou por ela. Relanceou para ela, e então olhou para sua
prancheta e marcou alguma coisa. Exatamente como o diretor da
escola, Estella pensou. Me anotando em seu livro de registros.
– Por favor, senhor – disse ela, cumprimentando Gerald o mais
calorosamente que podia. Depois de colocar cuidadosamente no
chão os sacos de lixo que estava levando para a lixeira, aproximou-
se dele. – Senhor – continuou –, eu tenho uma ótima mão para a
agulha, talvez os ajustes pudessem ganhar…
– Por que você está falando e não limpando? – Gerald respondeu.
Estella suspirou enquanto ele se afastava.
– O senhor não se arrependeria… – concluiu esperançosa, mas o
homem estava longe demais para ouvir.
Estella então se virou, pegou os sacos e continuou até o beco. Ao
levar o lixo para a lixeira grande, fez um esforço enorme para erguer
o primeiro saco. Errou completamente a lixeira e o saco caiu do
outro lado. Estella grunhiu. Como se o dia não pudesse ficar pior.
– Então é glamoroso, não é?
Virando-se, deparou-se com Gaspar e Horácio parados no beco,
olhando-a com expressões divertidas.
– Você esqueceu seu almoço – Gaspar acrescentou, segurando
um saco de papel pardo. – Como está indo?
Estella endireitou os ombros. Poderia responder honestamente –
o dia tinha sido horrível até o momento e ela queria desistir. Ou
poderia fazer o que sua mãe sempre tinha ensinado: focar no lado
bom das coisas. Preferiu a segunda opção.
– É um mundo de oportunidades, como você disse. Vou subir de
cargo, acreditem em mim – disse ela, na esperança de se
convencer tanto quanto a eles. – Estou calma e paciente.
Os dois rapazes riram. Aquelas não eram palavras tipicamente
associadas a Estella.
– Sei que vai – Gaspar disse, endireitando o sorriso e acenando
com a cabeça.
Estella lançou-lhe um olhar agradecido e, ao fazê-lo, percebeu
que Horácio olhava para uma janela aberta acima da lixeira. Ela
balançou a cabeça.
– Não.
– Não o quê? – indagou Horácio, na tentativa malsucedida de agir
com inocência.
– Não, não vou deixar você entrar por aquela janela para tentar
arrombar o cofre – disse Estella.
Horácio balançou a cabeça.
– Essa não é a jogada?
– Não tem jogada nenhuma! – Estella e Gaspar gritaram juntos.
Rindo, Gaspar puxou a manga de Horácio, afastando-o dela. No
final do beco, ele se virou e ergueu a mão para Estella. Ela retribuiu
o gesto.
Suspirando, Estella voltou para sua tarefa e pegou o saco de lixo
seguinte, arremessando-o em direção à caçamba. Esse acertou o
alvo, mas também acertou um pedaço de metal solto que
despontava. Houve um som de rasgo e o saco se abriu, derramando
cascas de laranja, borra de café velha e outros restos em cima dela.
– É sério isso? – gritou para ninguém em particular.
Depois de jogar os sacos restantes na lixeira, Estella deu meia-
volta para retornar ao prédio da loja, coberta de lixo. Precisava
mudar de roupa. Naquele exato momento. Porém, quando girou a
maçaneta, esta não se moveu.
Ela estava trancada do lado de fora.
Estella gemeu alto. Encontrar o lado bom seria difícil.
Afastou-se da porta e caminhou pelo beco até a frente da Liberty.
Alguns transeuntes lançaram olhares curiosos, e ela encolheu os
ombros, como se isso pudesse obscurecer o uniforme de faxineira e
os pedaços de lixo grudados nela. Assim que alcançou as portas
principais, viu um movimento em uma das vitrines. Ergueu os olhos.
Uma mulher, não muito mais velha do que ela, tentava mover o
braço de um manequim e, em seguida, reorganizava um lenço para
que ficasse mais abaixo do lado esquerdo do que do direito. Estella
balançou a cabeça. A vitrine estava horrorosa. A roupa que a mulher
tinha escolhido era sem graça e sem inspiração nenhuma. Até os
móveis que a vitrinista havia escolhido para “criar o espaço” eram
monótonos. Nada combinava com nada. Não havia tema. Nenhuma
mensagem. Era como se os vitrinistas tivessem fechado os olhos,
apanhado um punhado de peças e simplesmente as jogado nos
manequins.
Antes que soubesse o que estava fazendo, Estella se viu batendo
na vitrine. A mulher ergueu os olhos e inclinou a cabeça, confusa.
– Fico triste por você achar que isso está bonito – opinou Estella.
– O quê? – perguntou a mulher da vitrine, do outro lado do vidro,
de modo que Estella apenas viu a boca dela se mexendo.
– Fico triste que… – Estella parou de gritar quando seu chefe
entrou na vitrine.
Ela paralisou. Seus olhos encontraram os dela e se estreitaram.
Ele gesticulou para que ela entrasse. Não precisava ouvi-lo para
saber que ele queria dizer imediatamente.
Lançando um último olhar de pena à terrível vitrine, Estella voltou
para a loja de departamentos. Em vez de manter a cabeça baixa e
contornar a lateral até a área dos fundos, como tinha certeza de que
seu chefe queria, Estella respirou fundo, ergueu bem a cabeça e
saiu desfilando pelo meio da loja. Era mais do que provável que
perderia o emprego. Então, por que não sair sendo fiel a quem era –
alguém que conhecia moda e não precisava daquele trabalho?
Ao passar por mulheres bem-vestidas, cumprimentava-as com a
cabeça.
– Boa tarde – disse a uma. – Linda echarpe – ela elogiou uma
cliente mais velha, que segurava duas echarpes por baixo do queixo
enrugado, tentando escolher. – Aquele que cobrir mais o seu
pescoço. – O comentário foi recebido com um olhar de choque da
cliente, mas fez Estella sorrir.
Por fim, alcançou o chefe. Parou e esperou pela inevitável
reprimenda.
– Você tem uma rodela de banana na bochecha. – Gerald
apontou com frieza.
Estella tirou a banana. Então, enquanto o chefe observava, ela a
colocou na boca. Tentou não rir abertamente do olhar de nojo que
ele fez. Não tinha sobrevivido nas ruas por tanto tempo sem criar
uma casca grossa claramente mais forte que a dele.
Como se pressentisse que algo havia mudado em Estella, Gerald
sinalizou para que ela o seguisse até o escritório.
– Termine seu turno – disse ele quando chegaram, depois de ter
fechado a porta atrás deles. Caminhando em direção à sua mesa,
ele lançou a Estella um olhar severo e disse: – Limpe meu escritório
de cima a baixo. Em seguida, devolva seu uniforme e pegue um
ônibus de volta para qualquer que tenha sido a vidinha patética de
onde você veio.
Estella levantou a cabeça bruscamente em surpresa.
– Que desnecessário – disse ela. Imaginando que não tinha mais
nada a perder, acrescentou: – Acho que debaixo desse terno
engomado apertado e dessa calça agarrada que está vestindo deve
se esconder um homem gentil que gostaria de dar uma chance a
uma jovem brilhante.
Contudo, não parecia haver um homem gentil à espreita em lugar
algum.
– Limpe! Agora!
Pouco depois, Estella inspecionou o escritório imaculado de Gerald.
Lá fora estava escurecendo. De repente, lembrou as palavras de
Horácio: Qual é a jogada? Bem, não havia nenhuma.
Não antes, mas talvez tivesse sido rápida demais em rejeitar a
ideia. Talvez houvesse uma jogada em que pudesse trabalhar,
afinal.
Estella suspirou de prazer enquanto tirava o avental e soltava o
cabelo do elástico. Era gostoso poder relaxar por um momento.
Pois bem, agora partiria ao verdadeiro trabalho.
Quando saiu do escritório, a lua estava no céu e a loja estava
vazia. Estella caminhou até a frente da loja, pulando de susto ao
ouvir sons do ambiente se acomodando em seu vazio após o
expediente. Ao avistar uma porta de acesso à vitrine, gritou. A
pobre, pobre vitrine! Poderia dar um jeito nela.
Entrando na vitrine, foi na ponta dos pés até o manequim que
havia chamado sua atenção naquele dia. Mesmo no escuro, o look
era atroz.
– Não posso te deixar assim – disse para a figura inanimada. –
Seria cruel.
Tirando o chapéu do manequim, Estella começou a trabalhar.

Estava no meio de um pesadelo terrível. Encontrava-se em uma


lixeira e alguém batia nas laterais da caçamba de metal. Bam. Bam.
Bam. Repetidas vezes. Por que não paravam? Em seu pesadelo, as
batidas ficaram mais altas e insistentes. Estella abriu a boca para
gritar – e então acordou.
Ao abrir os olhos, soltou uma exclamação de susto. As batidas
não tinham sido um pesadelo. Foram Gaspar e Horácio! Eles
estavam parados do lado de fora da vitrine, olhando para ela.
E estavam acompanhados por uma multidão de curiosos que ia
crescendo minuto a minuto.
Ah, não, ah, não, ah, não! Estella pensou enquanto se levantava.
Devia ter adormecido depois de terminar de brincar com a vitrine.
Virou-se e olhou para a disposição dos itens ali dentro. Apesar do
medo que a percorria, Estella não pôde deixar de sorrir. A vitrine
tinha ficado esplêndida. Havia encontrado uma lata de tinta spray e
grafitado a parede do fundo. Um dos vestidos sem graça dos
manequins tinha sido substituído por uma jaqueta de couro
combinada com calça social, enquanto o outro estava vestido em
néon. Até conseguiu dar vida aos móveis, acrescentando detalhes
de textura e cor que se chocavam e ainda assim combinavam entre
si. Era uma vitrine totalmente nova – colorida, ousada, confusa e
provocante.
Estella mordeu o lábio enquanto estudava seu trabalho. O estilo
de cores vivas, ousado, confuso e provocante não era exatamente o
estilo da Liberty, mas era a cara dela.
Não pôde deixar de sorrir de orgulho. Virando-se para os
manequins, deu uma piscadinha.
– Sério. Não ficou muito melhor? Vocês dois parecem mais
felizes.
Assim que ouviu uma batida na vitrine, ela ergueu a mão. Gaspar
e Horácio podiam esperar.
– Vou sair em um… – As batidas continuaram. Estella olhou por
cima do ombro e engoliu em seco. Não era Gaspar. Nem Horácio.
Era Gerald.
– Ai, meu Deus – exclamou ela.
O homem parecia indignado. Estella suspirou e saiu da vitrine
assim que as portas da frente da Liberty se abriram para iniciar o
expediente da loja. Enquanto uma multidão entrava, viu seu chefe
vir diretamente em sua direção.
– Você! – ele gritou. – Fique bem aí! Vou chamar a polícia!
Polícia? Parecia um pouco demais. Não tinha feito nada, exceto
consertar um crime de moda. Na verdade, a vitrinista é quem
deveria ser presa. Mas, aparentemente, seu chefe não entendia da
mesma forma. Ele continuou gritando e chamando a polícia. Estella
se virou. Os guardas na porta da frente a viram e se deslocavam em
sua direção. E havia mais guardas surgindo dos fundos da loja. Não
tinha para onde correr.
Ao avistar Horácio, notou que ele havia entrado e agora estava
ocupado demais batendo a carteira do chefe dela para poder ajudar.
E não conseguia distinguir Gaspar em meio ao fluxo matinal de
clientes. Frenética, tentou pensar em um plano, mas fugir sempre
tinha sido o estilo de Gaspar. Não o seu. Estava sem ideia
nenhuma.
De repente, um dos subalternos de seu chefe foi correndo até ele.
O sujeito tremia e sua respiração estava ofegante.
– Ela está vindo! A Baronesa!
Com essas palavras, o chefe empalideceu. Ele girou, batendo
palmas. O som ecoou pela loja e fez com que todos os funcionários
– e alguns clientes – parassem de chofre.
– Em seus lugares, todos! – Gerald ordenou.
Estella não ia perder a oportunidade de levantar voo. Então se
virou e correu. Em seguida, se abaixou para se esconder atrás de
um dos balcões de vidro lotados de produtos expostos.
De repente, com o canto do olho, finalmente avistou Gaspar. Ele
rastejou e se agachou ao lado dela.
– Existe uma saída nos fundos? – ele sussurrou.
Estella balançou a cabeça. Não queria encontrar uma saída.
Ainda não, pelo menos. Não até que visse… a mulher.
– Você ouviu isso? – perguntou ela, quase se esquecendo de
manter a voz baixa. – A Baronesa. Eu quero vê-la.
Gaspar a encarou como se Estella tivesse enlouquecido.
– Eles estão distraídos! – sibilou. – Vamos embora.
Mas Estella o ignorou, com olhos fixos na porta da frente. Um
momento depois, um guarda-costas grandão e dois seguranças
menores entraram.
A Baronesa veio em seguida.
A respiração de Estella enroscou na garganta quando ela viu a
estilista. Estava igualzinha às imagens que estampavam a primeira
página de qualquer jornal ou revista da sociedade. Estella não
conseguia desviar o olhar. A mulher praticamente gotejava
condescendência. Sua boca estava puxada para baixo em desdém
e seus olhos eram gélidos, mas Estella mal registrou tudo isso. Só o
que via era o quanto impossivelmente chique aquela mulher ficava
em suas peças assinadas.
– É ela – disse Estella.
Gaspar revirou os olhos. Abriu a boca para falar, mas foi
interrompido pelo som da voz da Baronesa atravessando o átrio.
– Lá fora – vociferou ela. – Aquela vitrine.
Nervoso, o chefe deu um passo à frente.
– Sinto muito – desculpou-se ele, com a voz trêmula. – Eu posso
explicar…
Sentindo um puxão na manga, Estella tirou os olhos da dupla.
Gaspar estava acenando desesperadamente em direção ao final do
balcão. Os seguranças os tinham avistado.
– Você tem razão – disse ela. – Hora de ir!
Estella tentou se levantar. Ao seu lado, Gaspar fez o mesmo.
Porém, nenhum dos dois foi rápido o suficiente. Gaspar foi o
primeiro a ser apanhado quando um segurança o agarrou e o
deteve. Outro segurança parou na frente de Estella antes que ela
passasse pelo balcão de vidro. O guarda colocou a mão sobre a
cabeça dela e empurrou-a para baixo, de forma que sua bochecha
ficasse pressionada na vitrine fria. Estella fez esforço para se
libertar, mas não havia como esca ar das arras dele.
– Desculpe, Baronesa – disse Gerald. – Esta é a vândala que
bagunçou toda a vitrine. Vamos dar um jeito nisso.
Houve um momento de silêncio. Estella desejou poder ver o rosto
da Baronesa, mas tudo o que conseguiu enxergar foram as joias no
balcão de vidro abaixo. Enfim, a mulher falou:
– Ela trabalha aqui?
– Ela foi demitida – Gerald logo informou. – Tentamos dar uma
chance a essas tranqueiras, mas… Berço…
Estella resmungou alguma coisa, fazendo com que o segurança
pressionasse seu rosto com mais força no implacável vidro da
vitrine.
– Então ela não trabalha aqui? – esclareceu a Baronesa.
– Eu… Eu… – gaguejou ele. Gerald claramente não tinha certeza
do que a Baronesa queria que ele dissesse.
A Baronesa balançou a cabeça e disse:
– Você está suando. – O comentário fez Estella sorrir, apesar de
sua situação. – E eu consigo sentir seu cheiro. Dê um passo para
trás.
– Claro. Absolutamente – ele se apressou em dizer, fazendo com
que o sorriso de Estella se alargasse. Era divertido testemunhar seu
chefe na berlinda para variar.
– Você, garota suja. – A voz da Baronesa havia se virado na sua
direção.
Inclinando a cabeça o melhor que pôde, Estella percebeu que a
Baronesa a fitava. A mulher mais velha gesticulou para um homem
franzino ao seu lado.
– Jeffrey – chamou –, cartão.
Com um aceno, Jeffrey correu em direção a Estella. Então, enfiou
a mão no bolso da frente do terno e tirou um cartão de visitas.
– Você está contratada – disse ele. – Esse endereço. Cinco da
manhã. Não se atrase. – Ele tentou entregar o cartão a ela, mas o
segurança não a soltava.
– Dentes – Estella disse, pois era a única maneira de conseguir
pegar o cartão.
Com cuidado, Jeffrey colocou o cartão na frente da boca de
Estella. Ela rapidamente o apanhou e então, mexendo os ombros,
se livrou das mãos do guarda. Ao mesmo tempo, Gaspar se livrou
de seu captor. Como se fosse uma deixa, Horácio reapareceu, com
sacolas de itens roubados suspensos em ambas as mãos.
Sem esperar para descobrir como o restante da situação se
desenrolaria, os três fugiram. Atrás deles, a Baronesa observava
tudo isso com uma espécie de curiosidade imparcial. Assim que
Estella alcançou a porta, ela a ouviu dizer a Gerald:
– Você é um idiota. Essa garota montou a melhor vitrine que eu vi
vocês fazerem em dez anos.
Quando o trio saiu da loja e foi para a calçada movimentada,
Estella não parava de sorrir. O cartão estava firme em sua mão. Era
real. A Baronesa tinha gostado da sua vitrine! E melhor ainda, tinha
um emprego novo. Um emprego com a Baronesa. Podia esquecer a
Liberty. Estava subindo na vida.
Eles pularam na parte de trás de um caminhão aberto e foram
para o Covil. Estella não conseguia parar de olhar para o cartão. Era
lindo, de papel espesso cor de creme. Parecia importante –
exatamente como a mulher que o dera a ela. Escritas no centro, em
letra cursiva, em negrito, destacavam-se as palavras Empresas
Baronesa; abaixo havia um endereço em fonte menor. Estella
passou a mão pelas letras em relevo, e sentiu um arrepio.
Quando o caminhão passou devagar pelo Covil, ela e os meninos
pularam. Mesmo assim, Estella não tirou os olhos do cartão. Uma
vez lá dentro, ela se jogou na cama e ergueu o retângulo de papel.
– Ela gostou da minha vitrine, Gaspar. – Sua voz era suave
quando encontrou o olhar do amigo. Ele esperava pacientemente
que ela falasse. – Ela gostou da minha vitrine!
Gaspar sorriu.
– Estou feliz por você – disse ele.
Ela retribuiu o sorriso.
– Tudo graças a você.
Horácio, que estava ocupado classificando o saque da loja, olhou
para cima.
– É esta a jogada? – perguntou.
Estella riu. Ele era incorrigível, mas ela não se importava. Não
havia nenhuma jogada. A partir da manhã seguinte, ela enfim
conquistaria o mundo da moda com tudo.

As cinco horas da manhã chegaram com rapidez. Estella havia


passado agitada a maior parte da noite, animada demais para
dormir e, quando finalmente dormiu, seus sonhos foram preenchidos
por cabeças de manequins e rolos de tecido. Quando o despertador
tocou, já estava vestida e pronta para sair fazia uma hora.
Agora via-se na frente de um enorme galpão. O sol ainda não
havia nascido, então a rua estava escura, exceto por uma lâmpada
ocasional que piscava. As portas grandes ainda não haviam sido
abertas e Estella se mexia com nervosismo. Olhou para o cartão,
firme em sua mão, para verificar o endereço mais uma vez.
A porta se escancarou de repente. Jeffrey, o assistente da
Baronesa, olhou para ela.
– Ah, você – disse ele como que surpreso ao vê-la, embora
tivesse sido ele quem lhe dissera onde e quando deveria
comparecer. – Entre.
Ela não hesitou. Enquanto Jeffrey a conduzia para o galpão, a
cabeça de Estella virava de um lado para o outro; estava
desesperada para absorver tudo o que via. Do lado de fora, o
galpão se parecia com outro qualquer, mas, por dentro, era
completamente inigualável. Luzes suaves iluminavam as paredes,
fazendo-as cintilar e revelando manequins adornados com alguns
dos modelos mais impressionantes da Baronesa. Estella percebeu,
feliz, que essas eram as peças conceituais da Baronesa. E estavam
bem ali – tão perto que dava para tocar.
Abrindo outra porta, Estella e Jeffrey entraram em uma grande
sala envolta em vidro – o ateliê. Estava repleto de atividade.
Costureiras cosiam. Estilistas desenhavam. Rolos de tecido eram
levados em carrinhos para dentro e para fora. Para onde quer que
olhasse, havia imagens de roupas em vários estágios de conclusão
– do simples esboço ao visual completo. Era o lugar mais
maravilhoso onde Estella já havia pisado.
Ela caminhava em meio a tudo aquilo atordoada. De repente, foi
acometida por uma sensação estranha, como se alguém a
observasse. Olhou em volta. Todos estavam focados em seus
trabalhos. Inclinou a cabeça e olhou para cima. Seus passos
hesitaram quando ela viu um escritório empoleirado acima deles.
Era cercado por uma varanda e parecia, de alguma forma, flutuar ali
no alto.
Parada ali na beirada do balcão, olhando para ela, estava a
Baronesa.

A Baronesa estava observando quando viu Estella notá-la primeiro e


depois Jeffrey. Não costumava se impressionar com ninguém – além
de si mesma –, mas havia algo… inspirador na vitrine de Estella.
Vendo aquilo, a Baronesa tomara a decisão precipitada de contratá-
la – principalmente para que pudesse ficar de olho na garota e
impedi-la de inspirar outros com seu próprio trabalho. A Baronesa
orgulhava-se de se manter à frente de quaisquer ameaças
potenciais. E embora Estella não fosse uma ameaça ainda, era
melhor mantê-la sob rédea curta. Com o rosto neutro, a Baronesa
observou, com uma mistura de alegria e orgulho, o pânico inundar
os rostos de seus empregados no andar de baixo. Ela esperou que
Jeffrey fizesse seu trabalho.
– Silêncio! – gritou ele.
No mesmo instante, toda a atividade no ateliê parou. Ninguém se
mexia. Ninguém respirava. Bem, ninguém exceto um homem atrás
de um carrinho de tecido, ofegando discretamente.
– Consigo ouvir uma respiração – disse a Baronesa.
– Eu tenho asma – o homem tentou explicar. – Eu…
A mulher apenas ergueu uma sobrancelha. Na mesma hora, o
funcionário prendeu a respiração. Enquanto o rosto dele ficava cada
vez mais vermelho, a Baronesa se virou e se dirigiu a todos os
outros.
– Meu último evento foi um triunfo. Devo ler o Tattletale? –Sem se
preocupar em esperar uma resposta, ergueu um jornal. Estella
reconheceu a seção de moda; devorava-o diariamente. – “Peças da
Baronesa impressionam com sua reinvenção dos modelos
acinturados, com um corte enviesado e uma linha mais alta na
cintura que remodela a silhu…” – No andar de baixo, o homem com
asma respirou alto e trêmulo.
A Baronesa fez uma pausa. Então, com uma pronunciada cara
fechada, continuou:
– “… silhueta de uma forma tão audaciosa que o público irrompeu
em aplausos extasiados à primeira vista. Ela realmente é um gênio.”
– Na última palavra, a Baronesa assentiu, claramente concordando.
– Devo ler a última parte de novo? “Ela realmente é um gênio.” –
Fechou o jornal. – Um triunfo. De novo. Aproveitem um momento
para se deleitar com isso.
Por um breve segundo, os funcionários pareceram relaxar.
Sorrisos começaram a puxar seus lábios. O asmático inspirou. A
Baronesa deixou-os aproveitar o momento. Isso só tornaria o
próximo mais agradável para ela. Quando teve certeza de que todos
os batimentos cardíacos haviam voltado ao normal, a Baronesa
jogou o jornal no chão e o instante acabou.
– Já chega – disse ela. – Novo desfile. Devemos ser perfeitos!
Agora vão! – Depois de despachar essas ordens, deu meia-volta e
retornou para sua sala.
Ser a chefe era muito divertido. Ser a chefe estilista mais
assustadora do mundo era ainda melhor. Quando a Baronesa se
acomodou atrás da mesa, se permitiu um sorriso. Ela realmente
amava sua vida.

Estella não sabia o que fazer. O ateliê estava novamente turbulento,


mas ela não tinha certeza sobre o que ela deveria se agitar.
Percebendo sua confusão, Jeffrey bateu palmas para chamar-lhe a
atenção.
– Você… garota da vitrine – disse ele –, pegue um manequim, um
tecido e crie alguma coisa. A Baronesa precisa de visuais novos. –
Com um breve aceno de cabeça, afastou-se.
Era isso? Simplesmente criar alguma coisa? Estella hesitou,
olhando para os outros estilistas, que trabalhavam com afinco.
Todos pareciam ter uma ideia em mente, mas quanto tempo fazia
que estavam trabalhando lá? Os modelos que eles criavam
poderiam levar semanas, anos até, para serem finalizados. Ela
deveria simplesmente produzir um naquele momento? Nem sabia
onde encontrar o tecido.
Estella respirou fundo e endireitou os ombros. Não tinha chegado
tão longe sem uma dose de agilidade. Se a Baronesa queria um
novo look, Estella providenciaria um. Avistou uma porta do outro
lado da sala e foi até lá. Tinha sido por ali que vira o tecido entrar;
talvez houvesse mais lá dentro.
Efetivamente, ao passar pela porta, viu-se em uma escada.
Prateleiras de tecidos ladeavam todo o espaço escuro. Mesmo na
penumbra, as cores eram vivas e ousadas. Estella sorriu. Com isso,
poderia trabalhar.
Começou a recolher material. Um metro ali, um metro aqui.
Chiffon, seda, jeans. Havia todo tipo de tecido imaginável. Logo
seus braços estavam ocupados e então voltou para o ateliê.
Durante a hora seguinte, Estella mergulhou no trabalho. Os sons
da sala desapareceram enquanto cortava e pregueava, juntava e
dobrava, costurava e alfinetava. Não tinha começado com um plano,
mas, como sempre acontecia, com o tecido em mãos, um visual
começava a se materializar. Por alguma razão, se sentira atraída
pelos tecidos cor-de-rosa na escada. Talvez fosse porque estava tão
acostumada a usar cores discretas para não se sobressair; talvez
fosse porque estava de bom humor. Qual fosse o motivo, pouco a
pouco, os tons de rosa foram se juntando, seus matizes ligeiramente
diferentes se fundindo em um vestido que era tanto recatado quanto
exigia atenção.
Levantando-se para se alongar, Estella percebeu que a sala havia
ficado silenciosa. Mesmo sendo funcionária nova, Estella sabia que
só poderia significar uma coisa: a Baronesa estava chegando. Os
estilistas estavam agora parados ao lado de seus manequins, as
mãos entrelaçadas na frente do corpo com nervosismo. Estella se
posicionou ao lado de seu manequim e esperou.
Como se aproveitando a deixa, a Baronesa entrou no ateliê. Sem
dizer uma palavra, foi percorrendo a fila de manequins, olhando-os e
avaliando-os instantaneamente.
– Tolo – observou para um. – Desequilibrado – disse para outro.
Ao parar na frente de uma criação particularmente estranha com
contas elaboradas e vários tecidos costurados um no outro: – Você
está demitida.
Por fim, chegou à criação de Estella. Mais uma vez, a Baronesa
parou. Estella prendeu a respiração. Sentiu os olhos dos outros
estilistas fixos nela enquanto os da Baronesa percorriam de cima a
baixo a linha simples do vestido, com a cabeça levantada. Houve
uma pausa que pareceu durar uma eternidade.
– Nada mal – disse a Baronesa.
A respiração de Estella estava quase saindo do corpo quando a
Baronesa puxou uma navalha e, em um movimento rápido, passou
cortando o excesso de tecido. Estella iria chegar a esse ponto;
apenas tinha ficado sem tempo. Embora tivesse que admitir, ao
olhar para o trabalho da Baronesa, ela mesma não teria feito um
trabalho tão incrível. Com movimentos rápidos da navalha, a
Baronesa transformou o vestido em um modelo mais justo e clean.
Mais um movimento rápido e a Baronesa terminou, mas Estella
estremeceu ao levar um pequeno corte no processo.
– Ai – disse baixinho, olhando para a mão. Um pequeno ponto
vermelho apareceu ali.
– Por que você está falando? – respondeu a Baronesa.
Estella ergueu a mão.
– Ah, desculpe – disse Estella. – Acho que você me cortou.
– Hmmm – murmurou a Baronesa, pegando a mão de Estella e
levando-a ao rosto. Ela examinou a gota de sangue de perto e gritou
por cima do ombro. – Tecido! Arranjem para mim um vermelho como
este! – Então, sem outra palavra, foi embora.
Estella a observou partir, sua mente com pensamentos agitados.
A Baronesa não tinha odiado seu modelo. Verdade, mas também
não dissera que tinha adorado. Pelo menos, não a havia despedido.
Então isso já era alguma coisa… não era?
À medida que a temporada de Estella na Casa da Baronesa
avançava, os dias começaram a cair em uma rotina confortável, ou
o mais confortável possível quando se trabalhava para uma
designer de moda implacável, propensa a explosões de raiva e que
se frustrava com facilidade. Estella acordava cedo e chegava ao
galpão antes dos outros. E daquele momento até o almoço, ela se
perdia em seu próprio mundo – criando, desenhando, costurando e
remendando. Cada dia trazia um novo rolo de tecido, uma nova
centelha de inspiração.
Então, quando o estômago de Estella começava a roncar, a
Baronesa aparecia no ateliê. O lado bom é que isso geralmente
afugentava a fome de Estella, já que os estilistas eram incentivados
a comer em seus próprios horários. Por outro lado, nunca se podia
adivinhar em que tipo de humor estaria a Baronesa. Em alguns dias,
era fria – o que era sua versão de agradável. Outros dias, era
gelada, e ainda em outros, completamente ártica. Mesmo assim,
enquanto a mulher continuasse a inspirá--la e lhe oferecer modos de
melhorar, Estella aceitaria de bom grado aqueles humores.
Assim os dias foram passando e, embora nunca estivesse menos
do que exausta quando voltava para o Covil todas as noites, Estella
nunca estivera mais feliz.
Certa manhã, Estella estava prestes a dar os últimos retoques em
um croqui que estava desenhando quando ouviu o clique
inconfundível dos saltos da Baronesa do lado de fora do ateliê.
Largando a caneta, ficou em estado de alerta. Ela olhou para o
relógio: eram 11h30. Sim, estava quase na hora de a Baronesa
mandar alguém lhe comprar almoço.
Um instante depois, a Baronesa apareceu. Como sempre, Jeffrey
estava ao lado dela. Seus olhos percorreram a sala e se detiveram
em Estella.
– Menina suja – disse ela. Estella olhou para suas roupas. A
Baronesa estava falando dela? Mas Estella tinha acabado de limpar
sua roupa na noite anterior. Embora suas mãos, percebeu,
estivessem manchadas de tinta. – Vá buscar o almoço para mim.
A Baronesa prosseguiu então com um pedido impossível até
mesmo para o mais experiente dos garçons. Estella ouviu com
atenção, tentando se lembrar de cada detalhe. Havia fatias de
pepino cortadas em certa largura. Um determinado número de
raminhos de salsa e a instrução expressa para que fossem “picados,
não rasgados”. Quando a Baronesa terminou, Estella assentiu e
saiu rapidamente. Precisava comprar a comida antes que se
esquecesse das instruções.
Felizmente, a Baronesa frequentava o restaurante, então eles
estavam acostumados com seu “estilo” particular de fazer pedidos e
nem piscaram quando Estella falou. Ela esperou, ficando cada vez
mais nervosa enquanto o tempo parecia se arrastar. A Baronesa
odiava ficar esperando. Quando a comida finalmente ficou pronta,
Estella correu de volta para o galpão e subiu apressada as escadas.
Parou em frente à porta do escritório. Estava aberto, mas havia
dois homens conversando com a Baronesa. O rosto da mulher era
uma máscara. Estella hesitou.
– Como representantes de lojas de departamentos que têm sua
linha em estoque – dizia um dos homens –, pensamos que talvez
pudéssemos dar algumas dicas.
O outro homem, vestindo um terno e usando uma expressão
idêntica à de seu companheiro, assentiu em concordância.
– Dar um feedback.
A Baronesa ergueu uma sobrancelha perfeitamente delineada.
– Ótimo – disse ela. Os dois homens começaram a relaxar, mas
continuou: – Vou começar. O meu feedback. Você é baixo, você é
gordo, você cheira a anchova, é daltônico e finge que não é. – O
mais baixo dos dois homens se mexeu com nervosismo na cadeira,
e Estella poderia jurar que ele tentou dar uma cheirada em si
mesmo.
A Baronesa voltou-se para o outro homem:
– A receita da sua rede caiu 12,5%, e o tráfego de clientes,15%. –
O homem pareceu surpreso ao ouvir os números. – Sim, eu faço
minhas próprias pesquisas. Sua loja não foi reformada desde os
bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial; as pessoas não
têm certeza se devem comprar, ou se abaixar e se proteger.
Estella ouvia com uma mistura de medo e fascinação. Ela nunca
tinha ouvido ninguém falar de forma tão ousada e confiante – muito
menos uma mulher. Era brilhante de assistir, embora Estella nunca
quisesse estar do outro lado para levar aquele sabão.
A Baronesa não tinha terminado.
– A maior parte do dinheiro destinado a renovações está sendo
desviado por você, que o guarda em um banco suíço. – Ela disse o
número exato da conta, vendo o rosto dos homens empalidecer. –
Ótimo. Pronto – concluiu, seu tom satisfeito, ao se recostar na
cadeira. – Sua vez. Sou toda ouvidos.
Rapidamente, os homens se levantaram.
– Tenha um bom dia – o mais alto conseguiu murmurar antes de
se virar e correr para fora do escritório. O outro foi logo atrás.
Quando passaram por Estella, esta teve quase certeza de ter ouvido
um deles fungando.
Nesse momento, a Baronesa ergueu os olhos.
– Almoço! – exclamou, todos os vestígios da interação anterior
aparentemente esquecidos. – Agora!
Estella correu e entregou a refeição à Baronesa. Ela só esperava
que não tivesse esfriado, ou que os sete ramos de salsa picada –
não rasgada – não tivessem murchado naquele meio--tempo.
Inclinando-se, a Baronesa examinou a comida com tanto
detalhamento quanto examinaria um croqui. Então assentiu.
– Enfim alguém competente.
Estella corou com o elogio e estava prestes a agradecer quando
ouviu um som vindo da porta. Ao se virar, observou um rapaz entrar
na sala. A Baronesa suspirou.
– E alguém que não é – acrescentou a mulher. Para a surpresa de
Estella, a Baronesa continuou a se dirigir a ela diretamente. – Este é
Roger, meu advogado. Embora ele passe a maior parte do tempo
tocando piano em um bar sujo.
– Oi – cumprimentou Roger, levantando a mão cheia de papéis
em saudação.
– Oi – respondeu Estella. Então, quando percebeu que deveria
dizer algo mais, acrescentou: – Piano é bom.
Ignorando ambos, a Baronesa pegou dois pepinos do almoço e,
deitada na chaise longue no canto de seu escritório, colocou--os
sobre os olhos.
– Está na hora do meu cochilo reparador de nove minutos – disse
ela. – Estella, guarde meu almoço.
Ela sabe meu nome!, Estella pensou e rapidamente obedeceu.
Não tinha ouvido a Baronesa chamar nenhuma das outras mulheres
ou homens no ateliê por seus nomes verdadeiros. O que isso
poderia significar? Será que algo tinha mudado?
Ao devolver o resto da comida à embalagem, Estella se virou para
a Baronesa.
– Certo – disse , ao mesmo tempo em que Roger dizia:
– Posso…
Mas nenhum deles obteve resposta. A Baronesa estava
inconsciente.
Trocando olhares, Estella e Roger saíram de fininho da sala.
Estella conhecia o ditado: “Nunca acorde um urso adormecido se
não quiser se arriscar com as garras”. Se tivesse acabado de ter o
que poderia ser considerado, bem, um momento com a Baronesa,
não arriscaria nadinha.

Estella estava nervosa. Embora a Baronesa continuasse a lhe


destinar migalhas de atenção, ela nunca tinha certeza de quando
essa atenção acabaria. Cada pedido, cada momento, cada esboço
era repleto de tensão. Naquela manhã não foi diferente.
Caminhando no balcão do lado de fora do escritório, pouco antes do
almoço, a Baronesa dissera, ou melhor, ordenara que Estella fosse
com ela. Momentos depois, Estella se viu sentada no banco de trás
do carro da Baronesa. Acenando com a cabeça para o bloco de
esboços que Estella sempre carregava consigo, a Baronesa a
mandou refazer um esboço mais antigo.
Após se recostar no couro macio do assento do lado oposto a
Estella, a Baronesa começou a almoçar enquanto ela trabalhava.
Enquanto percorriam as ruas da cidade, o carro balançou ao
passar por um buraco na via.
A Baronesa parecia pessoalmente ofendida com o estado das
ruas. Seu olhar pousou no bloco de desenho no colo de Estella.
– Talvez precise de um forro? – comentou.
Estella inclinou a cabeça de lado. Era uma ideia.
– Poderia usar um pouco de tule para deixar mais bufante –
sugeriu ela, partindo do pensamento da Baronesa. – Dar um pouco
de corpo.
A Baronesa confirmou com a cabeça, deu uma última garfada no
seu almoço e, em seguida, jogou o resto pela janela. Percebendo o
olhar surpreso de Estella, a Baronesa deu de ombros.
– Para as vizinhas – explicou. – Elas me odeiam. Mulheres que
trabalham. Novas-ricas. Então, se me odeiam de qualquer maneira,
vou lhes dar um motivo para isso. – Ao avistar os portões da
Mansão Ipswich, ela se endireitou no assento. – Ah, aqui estamos.
Quando o carro passou por um enorme conjunto de portões e
subiu para a mansão, os olhos de Estella se arregalaram. Em
ambos os lados havia um trabalho de paisagismo imaculado, sem
uma flor ou folha fora do lugar. Até mesmo o cascalho no caminho
parecia ter sido nivelado, para que nem mesmo um solavanco fosse
sentido, mas tudo isso não era nada em comparação com a enorme
mansão. Tinha dezenas de janelas e era um andar mais alta do que
qualquer uma das casas vizinhas. Uma fila de criados saía das
portas para recebê-las.
Quando o carro parou, a Baronesa rejeitou a oferta de ajuda de
seu motorista para desembarcar. Ela também ignorou os criados e
foi direto para a casa, largando as luvas e o chapéu no caminho. Os
dois guarda-costas, que nunca estavam longe, permaneceram
próximos enquanto um trio de dálmatas veio correndo até a
Baronesa, latindo ansiosamente por atenção. Ela os ignorou. Atrás
dela, Estella se esforçou para acompanhá-la, os olhos fixos nos
cachorros. Normalmente se considerava uma pessoa que gostava
de cães – mas os dálmatas não contavam. Não desde a noite em
que três deles haviam matado sua mãe. Olhando para os três que
estavam ao lado da Baronesa agora, Estella segurou uma onda de
náusea.
Continuaram a percorrer com agilidade a mansão, sem parar até
chegarem aos aposentos da Baronesa. O quarto era maior do que
todo o espaço de criação do galpão. O pé-direito tinha seis metros e
as paredes eram revestidas de um suntuoso papel. Sob seus pés, o
tapete era felpudo.
Parando diante de um espelho de corpo inteiro, a Baronesa
esperou que duas de suas criadas entrassem e começassem a
vesti-la. Ela parecia um manequim vivo, sua expressão era de tédio
enquanto a puxavam para lá e para cá e a colocavam dentro do
vestido.
Estella começou a desenhar em seu bloco, inspirando-se nos
arredores enquanto um novo vestido tomava forma na página.
– Estella! – A voz da Baronesa assustou-a, e ela voltou a página
para o desenho que estava fazendo no carro. – O corpete. Talvez
fino como lápis. Joias! – A Baronesa direcionou sua voz de
comando a John, seu criado, ordenando-lhe que buscasse seus
acessórios de valor inestimável.
O homem moveu-se em direção à parede oposta do cômodo.
Empurrou a parede e uma porta secreta se abriu, revelando outra
porta trancada atrás dela. O guarda puxou uma chave, destrancou a
porta, e então desapareceu lá dentro.
– Você fez fino como lápis? – perguntou a Baronesa, voltando sua
atenção para Estella.
Estella confirmou balançando a cabeça, mas não respondeu,
focada em refinar a criação. Um momento depois, o empregado
reapareceu da sala secreta com uma bandeja de joias cintilantes
nas mãos. A Baronesa desceu do pedestal em que estava e se
aproximou. Distraída, vasculhou entre os diamantes e safiras, rubis
e esmeraldas. Afastou algumas peças menores antes de finalmente
escolher um conjunto de diamantes que incluía um colar, brincos e
um anel enorme.
– Muito bem – disse ela, apresentando-se às pessoas no quarto.
– Como estou?
– Fabulosa – todos responderam sem hesitar.
A Baronesa mal pareceu registrar o elogio ensaiado.
– Estella – chamou. – Mostre-me.
Rapidamente, Estella se aproximou. Suspendeu o bloco e
mostrou o desenho que a mulher havia lhe ditado. A Baronesa
assentiu com um breve movimento.
– Como você o teria feito?
Estella hesitou sem saber o que dizer. A Baronesa queria mesmo
que ela contradissesse seu projeto ou era uma armadilha? Depois
de pensar por um momento, Estella se arriscou e fez algumas
alterações rápidas no desenho, entregando-o com a respiração em
suspenso.
A Baronesa perscrutou o papel por um longo momento.
– Eu acho que você é… alguma coisa – a Baronesa disse por fim.
Então, sem outra palavra, virou-se e saiu do quarto. Seus lacaios a
acompanharam.
Os olhos de Estella doíam. Estivera olhando para um esboço de
projeto pregado na parede do escritório da Baronesa por quase uma
hora, tentando “melhorá-lo”. Ao lado dela, a Baronesa estava
sentada em sua mesa, apontando falha após falha. A cada vez,
Estella esboçava algo melhor e o prendia na parede para
comparação. Não se importava com críticas. Isso só a tornava uma
designer melhor. Embora não gostasse muito da Baronesa,
definitivamente respeitava seu olhar. Por esse motivo, tolerava os
duros comentários e observações.
– Há algo me irritando nisso – disse a Baronesa naquele
momento, contemplando o desenho mais recente. – E eu sempre
confio nos meus instintos.
Estella rapidamente fez outro esboço e o prendeu na parede.
– Pensei em talvez apertar a silhueta? – sugeriu.
– Oh, você “pensou”, não é? – questionou a Baronesa.
Estella acenou com a cabeça em direção ao novo esboço. Estava
mais confiante em seu papel com a estilista, mas nunca tinha sido
ousada o suficiente para contradizê-la. Até aquele momento.
– Acho que está melhor – afirmou ela, mantendo-se firme nos
seus instintos.
Por um momento, o escritório se encheu de um silêncio tenso e
Estella mordeu o lábio, mas então, para sua surpresa – e deleite – a
Baronesa fez um sinal afirmativo com a cabeça.
– Na verdade, está – concordou ela. Enquanto falava, a Baronesa
girou em seu assento no momento em que um raio de luz passou
pela claraboia, iluminando o delicado colar que ela usava naquele
dia.
Estella soltou uma pequena exclamação.
Era o colar de sua mãe – o que ela perdera naquela noite horrível,
anos antes.
Até aquele momento, Estella não havia notado. Estava escondido
atrás de um lenço que envolvia elegantemente o pescoço da
Baronesa, mas agora estava lá, reluzindo na cara de Estella, o que
lhe provocou uma onda de náusea.
Por que, Estella se perguntou, tentando evitar que suas mãos
tremessem, o colar estava no pescoço da Baronesa?
– Seu colar – disse Estella, com a voz trêmula.
A Baronesa pegou uma fina fatia de pepino do prato à sua frente,
sem perceber a emoção no rosto de Estella ou a expressão de
descrença em seus olhos.
– Herança de família – disse com desdém. – História engraçada,
na verdade. Uma empregada o roubou.
– Não, não roubou! – As palavras saíram da boca de Estella antes
que pudesse se conter.
A Baronesa ergueu os olhos e lançou-lhe um olhar frio. Rejeitar os
desenhos era uma coisa, mas ninguém falava com ela daquela
maneira.
Recuperando-se, Estella deu à mulher um sorriso respeitoso,
embora sua mente estivesse zumbindo. Como não tinha pensado
naquilo antes?
A Baronesa. A mulher em cuja festa ela e sua mãe tinham se
infiltrado anos antes. A mulher que tinha três dálmatas grandes.
Eram a mesma pessoa.
Estella era criança, e a noite tinha sido sombreada por tamanha
tristeza que ela devia ter bloqueado na lembrança a aparência da
mulher, mas agora tudo voltava de uma vez. A mulher, parada no
topo da escada, vestida como Maria Antonieta, e depois observando
passivamente a queda de sua mãe. O som de cachorros latindo e o
grito silencioso de Estella.
Estella forçou sua mente a retornar ao presente.
– Desculpe. Leve problema na entonação. É uma pergunta, tipo:
“Não! Não! Roubou?!”. Ela trabalhava para você? – perguntou,
esperando que soasse crível.
Aparentemente, sim, pois a Baronesa confirmou balançando a
cabeça.
– Faz tempo – respondeu ela. – Anos atrás. Roubou isso de mim
e foi burra o suficiente para voltar. Então caiu de um penhasco e
morreu.
– Que terrível… – Estella disse com a voz fraca. A bile subiu em
sua garganta. Como a Baronesa podia se referir à morte de sua
mãe de forma tão casual?
– Foi durante meu baile de inverno, e a morte dela realmente
eclipsou tudo. – A Baronesa espreguiçou-se e bocejou. – Muito
bem, preciso do meu cochilo reparador de nove minutos. Me acorde
quando der o tempo.
Estella fez que sim.
– Acordo – disse ela, voz animada.
Olhou para a Baronesa. Foi necessário reunir todas as suas
forças para não ir até a mulher e acertá-la no meio da cara
convencida. A morte de sua mãe, que a deixara órfã, tinha sido um
inconveniente? Para a festa? Respirando fundo, concentrou sua
raiva. Ela não podia mudar o passado, mas poderia tentar obter
algumas respostas para as perguntas que tinha se feito inúmeras
vezes ao longo dos anos.
– Quem era a mulher para você? – Estella perguntou, mantendo o
tom deliberadamente casual.
– Não é exatamente o ponto principal da história – disse a
Baronesa, encaminhando-se para sua chaise. – Foi mais sobre
como eu tenho sorte. Ela tinha uma filha, a filha é um floco de neve,
especial, blá, blá, foi uma tentativa de extorsão básica.
Estella cerrou os dentes. Não era isso de forma alguma.
– Talvez ela simplesmente amasse a filha?
– Talvez ela só tivesse uma pessoa de quem cuidar e mesmo
assim tivesse fracassado pateticamente – retrucou a Baronesa.
Estella sentiu as palavras como um tapa. Sua mãe a amara e
sacrificara tudo por ela. E a Baronesa falava dela como se fosse um
lixo.
Sem saber do transtorno interno que Estella estava enfrentando, a
Baronesa deitou-se e colocou os pepinos sobre os olhos. Um
momento depois, estava roncando.
Estella a fitou, os olhos fixos no colar. Estava tão perto. Se ao
menos estendesse a mão…
De repente, no corredor, ouviu vozes se aproximando. Um
momento depois, Jeffrey e Roger entraram no escritório, seguidos
por dois assistentes atormentados carregando um lindo vestido.
Atrás deles vieram os guarda-costas. John segurava a caixa de
viagem com as joias da Baronesa. Ao avistar Estella, ele a encarou.
– Baronesa – Roger disse suavemente. – Temos aquela reunião
no Ritz…
Murmurando baixinho algumas palavras bem escolhidas, a
Baronesa se retirou da chaise. Seu cochilo de nove minutos acabou
durando menos de cinco. Ela ficaria mais mal-humorada do que o
normal. Em pé, a Baronesa permaneceu em silêncio enquanto duas
criadas nervosas a vestiam e mimavam. Por fim, com o vestido
fechado e o cabelo arrumado, a Baronesa gesticulou para a caixa
de joias.
Espiando ali dentro, escolheu um novo colar e removeu o que
estava em seu pescoço. Os olhos de Estella se mantiveram
grudados no colar de sua mãe quando ele foi colocado sem
cerimônia na caixa. John assistiu enquanto ela observava, seus
olhos se arregalando de leve, não tanto com suspeita, mas com algo
diferente – como compreensão. Então ele fechou a caixa.
Um instante depois, a Baronesa desfilou para fora do escritório,
acompanhada de sua comitiva.
Estella os observou partir. Seus pés estavam paralisados no lugar.
Havia passado tanto tempo tentando provar seu valor para a
Baronesa. Tinha depositado todas as esperanças e sonhos no
trabalho para aquela mulher.
E ela era um monstro.
Um monstro que não se importava com a morte da mãe de Estella
ou com o fato de uma menina ter ficado órfã. Um monstro que só se
importava consigo mesma e com sua festa estúpida.
O sonho destruído de Estella tinha gosto de cinzas na boca.
O que vou fazer agora?, ela se perguntou, o coração se partindo
mais uma vez.

Estella não estava pronta para voltar ao Covil, mas não queria mais
ficar no galpão. Ver o nome da Baronesa em cada peça de roupa,
cada desenho na parede, cada papel na lixeira simplesmente a
deixava doente.
Pegou suas coisas e saiu. Como se em meio a uma névoa,
caminhou pelas ruas, sem pensar na direção a que se movia.
Apenas deixou seus pés a carregarem enquanto sua mente a levava
para aquela noite escura, anos antes. Não pensava nisso havia
muito tempo, mas agora estava tão claro como se tivesse acabado
de acontecer.
Sua mãe e a Baronesa conversando. Os cachorros latindo. E
então sua mãe se foi. Perdida no penhasco para a água que havia
lá embaixo.
Durante anos, Estella convivera com as consequências, forçada a
encontrar um lar nas ruas. E durante esse mesmo tempo, a
Baronesa descansava em sua luxuosa mansão, ia às melhores
festas, criava peças fantásticas e tornava seu nome um sinônimo de
alta-costura.
Não era justo.
Suspirando, Estella ergueu os olhos e viu que havia entrado no
Regent’s Park. A fonte parecia cintilar com a luz forte do luar. Estella
caminhou até um banco próximo, afundou em sua superfície dura e
colocou a cabeça entre as mãos.
Sentindo olhos nela, Estella olhou para cima. Para sua surpresa,
deparou-se com Gaspar e Horácio parados na sua frente. Gaspar
parecia preocupado. Horácio parecia, bem... Horácio.
– Eu te disse – Horácio falou, presunçoso. – Ela sempre vem
aqui.
Estella deu de ombros. Ele não estava errado, mas por que
estavam procurando por ela? Olhou para o céu escuro e se
lembrou. Iam fazer um trabalho naquela noite no distrito dos teatros.
Não tinha percebido como já era tarde. De repente, seus olhos se
encheram de lágrimas e uma torrente de palavras saiu de sua boca.
– Ela chamou minha mãe de ladra – disse. – Falou que ela
fracassou como mãe.
Gaspar balançou a cabeça, tentando processar o que Estella
estava dizendo e de quem estava falando. Então seus olhos se
arregalaram quando ele percebeu.
– A Baronesa conhecia sua mãe?
Estella fez que sim. Levantou-se, esfregou as palmas na frente da
camisa e se recompôs.
– Acontece que foi na festa dela que a gente estava, todos
aqueles anos atrás – explicou. – Minha mãe chegou a trabalhar para
ela no passado. Deixei cair o colar enquanto fugia. A Baronesa deve
tê-lo encontrado. – Dizer as palavras em voz alta tornava a situação
ainda mais real e horrível, mas elas também deram a Estella uma
nova determinação em relação ao que sabia que seria seu próximo
passo inevitável, desde o momento em que vira o colar. Não tinha
outra escolha. – Vou pegá-lo de volta.
– Pegar? – Gaspar repetiu. – Pegar, tipo…?
– Roubando – finalizou Estella. Isso era exatamente o que faria. A
Baronesa não ficaria com o que restava de Catherine. – Eu poderia
pedir, mas ela é uma pessoa horrível, então provavelmente não me
devolveria. E roubar é muito mais divertido, de qualquer maneira. –
Ela sorriu enquanto Horácio acenava com a cabeça em
concordância óbvia.
– Finalmente! – disse ele alegre. – A jogada!
– Ela tem muitas joias – Estella disse a Horácio. – Você pode
levar tudo. Siga seus sonhos. Uma última missão.
Gaspar encolheu os ombros. Ele não queria uma última missão;
estava muito feliz com a vida que tinha.
– Mas muitas joias são sempre algo bom – concordou ele.
Horácio não hesitou.
– Parece algo sofisticado – continuou, estufando a barrigona –, e
esse sou euzinho.
Jogando os braços em volta daqueles homens que haviam se
tornado sua família improvisada, Estella deu-lhes um apertinho. É
verdade que não eram parentes biológicos, mas podia contar com
eles… sempre. E agora iriam ajudá-la a recuperar o que era seu por
direito.
Tudo o que precisavam era de um plano.
Estella sempre amara a parte de planejar os roubos do trio. Era
divertido, uma boa distração e uma maneira de sentir que tinha
algum controle sobre sua vida. Agora eram negócios. Ela queria
aquele colar de volta – e se a Baronesa sofresse um pouco no
processo, que assim fosse. Ela havia feito mal a Estella; agora
Estella daria o troco.
Felizmente, havia aprendido que a Baronesa era uma criatura de
hábitos e ue começava todas as manhãs com a mesma refeição.
Pedia almoço dos mesmos três lugares. Seu cochilo reparador de
nove minutos acontecia todos os dias exatamente treze minutos
depois de sua última garfada de almoço. Seus guarda-costas nunca
mudavam, porque, se mudassem, ela teria que treinar uma nova
dupla e isso custaria seu tempo, e tempo, como lembrava a todos,
era dinheiro.
Portanto, a vida para a Baronesa era rotina.
E isso era exatamente o que Estella queria.
O reconhecimento começou quase imediatamente. Quando
entrou no galpão na manhã seguinte, Estella sentiu como se o
estivesse vendo pela primeira vez. Ela não olhava mais para ele
como um lugar para criar moda, formar ideias. Em vez disso, era um
alvo.
Ficou de olho quando os guarda-costas chegaram. Notou o que
os distraía, se é que havia alguma coisa. Sentada no escritório da
Baronesa, observou que John, o criado, sempre mantinha a mão
perto do chaveiro grande que usava preso ao cinto.
– Sem chance de pegar o colar ali – Estella disse aos meninos
após seu primeiro dia de vigilância. – Precisamos ir para onde ela
menos espera: a casa dela.
Havia apenas um problema: a Mansão Ipswich era quase tão
fortificada quanto o galpão.
A Baronesa não se arriscava. Mantinha câmeras. Mantinha
guardas. Mantinha cães, mas Estella havia trabalhado como ladra
por tempo suficiente para saber que todas as câmeras tinham um
ponto cego. Todo guarda tinha uma fraqueza. E todo cão… bem,
cachorros podiam ser subornados… assim esperava.
– Você tem que nos conseguir o máximo de informações que
puder – Gaspar disse uma noite enquanto Estella conspirava e
fumegava de raiva. Quisera que fosse um trabalho rápido. Entrar,
sair. Pegar o colar e afastar-se da Baronesa, mas tudo aquilo estava
se provando ser muito mais complicado.
Ainda assim, sabia que Gaspar estava certo. Quanto mais
informações tivessem, mais bem preparados estariam. Então,
enquanto a Baronesa tirava uma soneca revigorante em seu quarto
uma tarde, Estella escapuliu e fez uma varredura nos corredores. Se
um guarda aleatório a visse, ela inventaria a desculpa de que
procurava o banheiro, enquanto ficava de olho no relógio. Nove
minutos não era muito tempo, mas depois de vários dias, achava
que tinha o suficiente.
Em frente a uma parede no Covil, Estella revisou as informações
reunidas. A parede havia se tornado o controle da missão: havia
listas de nomes, plantas da mansão, datas circuladas em vermelho,
fotos de todos os guardas e uma lista das guloseimas favoritas dos
cães. No meio de tudo isso, havia um convite, com pedaços de
barbante ligando-o a uma dúzia de outras informações.
– O Baile Preto e Branco – Estella disse, se virando para olhar os
meninos. – É nele que vamos agir.
Ela havia pensado com calma até tomar a decisão. A casa estaria
lotada. O colar estaria guardado no cofre onde a Baronesa guardava
todas as suas joias. Os seguranças estariam procurando intrusos,
sem pensar em se preocupar com o interior – e especialmente sem
pensar em procurar Estella. Afinal, ela já provara sua lealdade. Ou
assim eles pensavam.
– É a nossa maior missão de todos os tempos – Gaspar disse,
tirando o chapéu e segurando-o nervosamente contra o peito.
Estella fez que sim. Ele estava certo. E isso significava que o
planejamento tinha que ser meticuloso. Todos eles precisavam estar
exatamente em sincronia. Olhou para baixo, viu que Horácio estava
deitado em uma pilha de papéis e suspirou.
– Desativar o sistema de segurança – disse ela, pensando em voz
alta. – Evitar as câmeras. Abrir o cofre. Roubar o colar. – Parecia
bastante simples.
– Sair sem ser visto – Horácio apontou do chão.
Sim, isso também.
Mas era por isso que Estella tinha escolhido o baile. Ele criava
uma cobertura perfeita.
– Durante a maior festa da temporada? – disse ela, afastando a
preocupação dele. – Estará tão cheia que podemos nos perder no
mar de gente. E então, quando precisarmos, uma distração na qual
eu pego a chave do teclado de acesso e do cofre.
Parecia bastante simples para Estella, mas olhando para Gaspar,
notou que suas sobrancelhas estavam franzidas. Isso nunca era
bom. Significava que ele estava curioso – ou confuso – sobre
alguma coisa. E se ele estava pensando, provavelmente estava
encontrando falhas no plano.

Estella estava certa. Gaspar estivera pensando. E ouvindo. Estava


impressionado com a atenção de Estella aos detalhes e o plano que
havia tramado, mas também estava um pouco nervoso. Havia
muitas variáveis. E parte do sucesso deles vinha de manter as
missões possíveis e executáveis. Essa parecia enorme – e pessoal
demais.
Caminhando até a parede que se tornara o controle improvisado
da missão do trio, Gaspar olhou para seu conteúdo como se só
aqueles elementos pudessem lhe dar as respostas.
– Qual é a distração?
– Descobri que ela gosta de expulsar de suas festas mulheres
que ofendem as sensibilidades dela: as velhas, as tristes, as de
verde, as que carregam poodles – explicou Estella. – Mas, também,
mulheres lindamente vestidas que desviem o foco dela.
Gaspar acenou com a cabeça em sinal afirmativo. Então era
assim que Estella chegaria até a Baronesa – e ao colar.
– Ou seja, precisamos encontrar uma dessas – Horácio meditou,
compreendendo. Gaspar disparou um sorriso para ele. Mesmo que
seu amigo demorasse a entender, ele geralmente entendia…
apenas no seu próprio ritmo. – A velha parece mais fácil.
Para a surpresa de Gaspar, Estella revirou os olhos. Isso não era
típico dela. Mas, por outro lado, ela não era a mesma desde que
descobrira a verdade. Ele vinha tentando ser compreensivo, mas
havia momentos, como aquele, em que a atitude dela o deixava um
tanto desconfortável. Horácio era amigo dela. Era da família. Nem
sempre era rápido para entender, mas Gaspar sabia que Estella
poderia contar com Horácio para o que precisasse.
– Eu – declarou ela, se recompondo. – Eu vou ser a distração. –
Sorriu. – Pandemônio, destruição, morte… são minha especialidade.
Gaspar inclinou a cabeça e lançou a Estella um olhar engraçado.
Ela se mexeu no lugar ao receber o olhar, claramente constrangida.
Ele sabia que ela estava brincando, mas a parte da morte? Isso era
um pouco demais.
Por um momento, pensou em corrigi-la, mas apenas deu de
ombros.
– Aqui está o problema – disse ele em vez disso. – Ela não vai te
reconhecer?
Horácio fez um sinal afirmativo
– Isso é um problema.
Estella encolheu os ombros e acrescentou:
– Acho que sim.
– E você não vai perder o emprego quando isso acontecer? –
Gaspar observou. – Um trabalho que acho que você adora.
– Um emprego que ele conseguiu para você – Horácio
acrescentou, ganhando olhares tanto de Estella quanto de Gaspar.
Para alguém que parecia nunca estar acompanhando a conversa,
ele com frequência era certeiro.
Estella baixou os olhos, e Gaspar soube que Horácio tinha
atingido um ponto sensível. Não podia imaginar pelo que ela
passava ou o que sentia. Nenhum deles esteve lá naquela noite.
Não tinham visto a Baronesa virar as costas friamente para a mãe
de Estella. E não estiveram lá no escritório quando ela
simplesmente descartara o acontecido como um mero
inconveniente. Ele sabia que a missão significava mais do que o
colar, mas também sabia que Estella não confessaria isso. E mesmo
que Gaspar – e Horácio – estivessem certos, ela havia trabalhado
muito em todo o reconhecimento e planejamento para desistir agora.
Haveria apenas uma pequena janela de tempo em que o colar
estaria acessível no cofre.
Estella ergueu a cabeça e endureceu a expressão.
– Eu o quero de volta – afirmou.
Gaspar estremeceu com a dureza em sua voz.
– O que ela diz é o que vai ser – concluiu Horácio, encolhendo os
ombros.
Estella assentiu e então se virou para a parede. Gaspar estava
certo. Embora não lhe desse a satisfação de reconhecer o quanto
amava o emprego que estava prestes a perder, não podia negar que
a Baronesa a reconheceria. A menos que…
– Estella não pode ir ao baile – ponderou. – Mas eu conheço
alguém que pode.

As longas pernas de Estella a carregavam rapidamente por uma rua


de Londres. Sua cabeça se movia para a frente e para trás,
enquanto ela examinava as vitrines.
Os passos de Estella diminuíram quando ela passou por uma loja
de roupas de época. Na frente e no centro da vitrine estava um
manequim exibindo um vestido de noite deslumbrante, combinado
com uma jaqueta chamativa e pontos coloridos em néon. Era
incrivelmente divertido, vibrante e vivo – exatamente o estilo de
Estella.
Rapidamente, ela entrou na loja. Um sininho tocou quando a porta
abriu e fechou. O espaço minúsculo estava cheio de araras com
todos os tipos de roupas: blusas coloridas, calças floridas,
maxivestidos, vestidos curtos, botas de cano alto, salto alto, tiaras
de néon. Peças de cada estilo do que pareciam ser as últimas três
décadas estavam empilhadas, penduradas ou jogadas pelo espaço
da loja.
Estella adorou.
Um homem alto com cabelo perfeitamente penteado em um
topete estilo David Bowie estava empoleirado em uma cadeira,
batendo no ar-condicionado quebrado, mas parou o que estava
fazendo ao som dos sininhos e se virou para Estella. Seu rosto tinha
a pintura de um grande raio. Claramente, ele era um fã de todas as
coisas relacionadas a Ziggy Stardust, alter ego de Bowie.
– Bem-vindo ao Pela Segunda Vez. Eu sou Artie – disse ele
alegremente. – Ou Art. Como em uma obra de arte.
Estella assentiu.
– Sua aparência é incrível – elogiou ela. E era verdade. A
maquiagem estava perfeita: até a sombra sutil que fazia seus olhos
saltarem e o rubor nas bochechas que as fazia se destacar. Ele
havia tratado seu rosto como uma tela e o resultado era
impressionante.
– Ouço isso o dia todo – disse ele dando de ombros. – Então eu
acho que é verdade.
– Como esse look é recebido nas ruas? – perguntou, curiosa.
– Com algumas agressões e insultos, é claro – Artie respondeu
com naturalidade. – Mas eu gosto de dizer que o normal é o mais
cruel de todos os insultos, e pelo menos com isso eu nunca tenho
de lidar.
Estella sorriu. Havia claramente encontrado uma alma gêmea em
Artie. Da vitrine ao que Artie vestia, ele falava exatamente a mesma
linguagem de moda que Estella. A sensação era a de que eles iriam
se dar muito bem.
– Preciso de um vestido – disse ela, indo direto ao ponto. – Para
um baile. E precisa causar impacto.
Artie gesticulou para o espaço da loja ao redor deles.
– Bem, olhe em volta, Cinderela – disse ele alegremente. – Eu
tenho tudo que uma menina ou um menino poderia desejar. Se você
pode sonhar, eu posso vestir.
Estella começou a examinar as araras como uma criança em uma
loja de doces. Artie estava certo; tinha tudo que ela poderia desejar
ou sonhar. Dior 1956. Chanel 1932. Vestidos longos pretos, brancos,
de cores vivas. Era difícil escolher o que ela amava mais, mas seus
olhos continuavam voltando para o vestido vermelho na vitrine.
– Baronesa 1965 – disse Artie, percebendo o olhar. – Coleção de
inverno.
Estella fez que sim.
– Eu percebi – afirmou. – E chamo isso de destino.

Vermelho.
Desde que era uma menina e conhecera Gaspar e Horácio,
Estella pintava o cabelo do mesmo tom de vermelho. Para a maioria
das pessoas, teria sido uma escolha ousada de tonalidade. Mas,
dada a cor natural do seu cabelo, parecia seguro. Agora, porém,
essa cor tinha que ir embora.
Curvada sobre a pia, deixou a água correr até que estivesse
morna – o que era quase o máximo da temperatura que se
conseguia no Covil. Observando a água escorrer pelo ralo, Estella
respirou fundo. Estava prestes a mudar algo que a definia havia
anos. Quando pintou o cabelo pela primeira vez, Estella estava de
luto. Sua mãe não existia mais. Ela não tinha casa. Acabara de
conhecer Gaspar e Horácio. Esconder quem realmente era não
parecia errado. Pelo contrário, parecia necessário.
Mas, desde então, começara a amar o vermelho. Era quem ela
era agora; um rompimento com quem fora na época. Ainda assim,
se iria pôr em prática o plano de recuperar o colar e ter até mesmo
uma chance de fazê-lo sem ser reconhecida, se livrar do ruivo
parecia a melhor solução.
Mergulhando o cabelo embaixo do fluxo da torneira, observou a
tinta vermelha escorrer pelo ralo. A água gradualmente desbotou de
vermelho-vivo para rosa até se tornar transparente. Quando se
levantou, a mulher a encarando do outro lado do espelho era ao
mesmo tempo familiar e desconhecida.
Estella balançou a cabeça para seu reflexo em um sinal
afirmativo. Estava feito.
Agora era hora de agir.
A primeira parte do plano dependia de Horácio e de Gaspar. Isso
deixava Horácio bem satisfeito, mas, ele percebeu, deixava Estella
bastante nervosa.
Para ficar segura, ela repassara o plano com eles várias vezes.
Horácio sabia o que deveriam fazer. Seu cachorro, Wink, também
sabia qual era seu papel. A missão de Estella era recuperar aquele
colar, e se ela o queria, teria que confiar nele.
Gaspar parou a caminhonete da dedetizadora atrás de uma fila de
carros em frente à Mansão Ipswich. Sentado no banco do
passageiro, Horácio observava enquanto, um por um, convidados
vestidos com trajes caros recebiam ajuda para desembarcar dos
veículos e chegar até a porta da frente.
Cada convidado estava vestido de branco ou preto completos. Na
opinião de Horácio, isso fazia com que todos ficassem praticamente
iguais, o que parecia muito chato. Em seu colo, Wink ganiu. O
cachorro não gostava de ficar longe de Buddy, mas Estella insistira
em manter Buddy consigo no evento principal. Provavelmente era
melhor. Era mais fácil cuidar de um cachorro do que de dois.
Em meio ao mar de ostentação em preto e branco, a caminhonete
disfarçada de Gaspar e Horácio se destacava como se não
pertencesse àquele lugar.
Gaspar emparelhou o veículo na guia e parou longe da fileira de
carros e bem em cima de uma tampa de bueiro. Ele estacionou a
caminhonete. Enquanto Horácio saltava, Gaspar rastejou embaixo
da caminhonete e abriu o bueiro. Esperaria lá até que Horácio lhe
desse o sinal de que a barra estava limpa. Em seguida, iria para a
sala da segurança e começaria sua parte no plano.
Após dar um tapinha tranquilizador em Wink, Horácio observou o
cachorrinho correr à sua frente. Então respirou fundo e se dirigiu
para a entrada de serviço.
– Vim o mais rápido que pude – disse ele, parando em frente ao
segurança.
– Este é um evento privado – respondeu o guarda em voz
monótona.
– O tipo de praga com que eu lido não espera convite, cara. –
Abaixou a voz e se inclinou, como se estivesse revelando um
segredo. – Eles entram, mordem gente chique, que primeiro
espumam pela boca. Em seguida, os olhos reviram para trás e as
pessoas morrem. Então, o guarda que não tinha feito nada a
respeito… bem, fim de história para ele.
O segurança balançou a cabeça.
– É uma bela história, companheiro – disse ele sem sinceridade. –
Mas eu não acredito.
Era exatamente o que Horácio esperava que o homem dissesse;
criava a deixa perfeita para a parte seguinte do plano de uma forma
brilhante. Enquanto Horácio contava a sua “bela história”, Wink
passou pelos pés do segurança e se posicionou. Agora era a hora
de Horácio elevar o nível do drama. Seus olhos se arregalaram
quando ele olhou para “algo” atrás do guarda.
– Parado! – disse ele, baixando a voz para soar assustado. –
Faça o que fizer, não se vire…
Claro, o guarda imediatamente se virou. De uma prateleira do
outro lado da porta, Wink saltou e, rosnando, agarrou-se ao rosto do
guarda. O homenzarrão soltou um grito agudo no momento em que
Wink deu um último grunhido, e então correu para dentro de casa.
– Por que você está parado aí? – gritou o segurança, voltando-se
para Horácio. Ele não tinha dado uma boa olhada no cachorro,
então presumiu que a criaturinha era uma das pragas sobre as
quais Horácio o estava alertando. – Tire-o daqui!
Horácio assentiu. Enquanto o guarda olhava nervosamente para o
corredor, Horácio sinalizou para Gaspar, que escorregou para dentro
do bueiro. Então, voltando-se para o guarda, Horácio acrescentou:
– É melhor você lavar as mãos.
Com um aceno, entrou na casa, cheio de ginga. Ele sabia que em
algum lugar nos túneis abaixo, Gaspar estava a caminho do porão
para configurar seu computador. Em instantes, obteria acesso ao
circuito interno de TV e começaria a configurar as câmeras em
looping. Os seguranças encarregados das filmagens veriam
imagens antigas. Para todos os efeitos, estariam cegos.
A situação toda levou menos de três minutos. E agora Gaspar e
Horácio tinham acesso a toda a mansão. Tudo estava pronto para a
chegada de Estella.

Anita Darling estava furiosa com seu chefe. Implorara que ele não a
obrigasse a cobrir o Baile Preto e Branco da Baronesa. Ela não
podia se dar ao luxo disso – literal e figurativamente. Olhando para
seu vestido barato, uma imitação, reprimiu um gemido. Mesmo
barato, tinha lhe custado mais de uma semana de pagamento.
Aos 25 anos, Anita esperava já ter tido sua grande chance no
jornalismo. Tivera esperanças de estar escrevendo sobre questões
urgentes ou, pelo menos, recebendo matérias de primeira página,
mas ainda escrevia artigos de moda para o Tattletale. Eventos como
o baile daquela noite, que exigia que todos os participantes se
vestissem de branco ou preto – e apenas branco ou preto – eram o
que seus leitores devoravam, mas também devoravam a alma de
Anita pouco a pouco.
Ao sacar a câmera, apropriadamente coberta de branco para se
ajustar ao tema, Anita tirou algumas fotos da multidão e da
decoração. Eram, em sua opinião, exagerados e cafonas. Não
achava possível que os vanguardistas da moda cometessem erros,
mas, de alguma forma, simplesmente não conseguia assimilar a
visão da Baronesa. Era sem graça e parecia sem inspiração.
Quando se virou para capturar em imagem uma mulher vestindo o
que parecia ser uma pele branca de lagarto, Anita viu a Baronesa
descendo a escada para o salão principal. A estilista avistou Anita
ao mesmo tempo e seguiu caminho até ela.
– Srta. Anita Darling – disse ela, em uma voz que pingava
condescendência.
– Baronesa! – exclamou Anita, forçando um sorriso no rosto. –
Estou muito grata por ter dado exclusividade ao Tattletale esta noite.
A Baronesa mediu-a de cima a baixo. Anita corou sob o
escrutínio.
– Ao que parece – disse a Baronesa –, não agradecida o
suficiente para observar o código de vestimenta. – A Baronesa
arrancou a bolsa branca da mão de Anita e a ergueu. Anita fez uma
careta. Havia uma pequena mancha de tinta azul perto do fundo.
– Minha caneta deve ter vazado – explicou-se Anita, rindo com
nervosismo. – Ossos do ofício...
– Ninguém está interessado no que você escreve, minha querida
– disse a Baronesa. – Apenas no meu visual. – Com isso, se virou e
abriu caminho no meio da multidão que esperava ansiosamente
para adorá-la. Ao passar por um balde de gelo, a Baronesa largou a
bolsa ofensiva de Anita ali dentro.
Anita odiava que a mulher estivesse certa. Ninguém se importava
com o que ela escrevia, desde que houvesse uma foto da Baronesa
para acompanhar. Seria bom se alguém além dela recebesse
alguma atenção para variar, pensou enquanto puxava sua bolsa
para fora do gelo.
Mas era a festa da Baronesa. Como isso algum dia aconteceria?

Estella respirou fundo e se revestiu de coragem. Havia planejado


tudo aquilo. Tinha percorrido todos os caminhos possíveis,
visualizado todos os cenários. Os planos haviam sido verificados e
verificados novamente.
Então, por que, ela se perguntava, estava se sentindo tão
nervosa?
Verdade, se fosse pega, poderia ser presa. Se fosse reconhecida,
poderia perder o emprego. E se ambos acontecessem? Bem,
imaginava que seria presa e despedida. Tudo valeria a pena,
entretanto – se pudesse colocar as mãos naquele colar.
Com mais uma respiração profunda, acalmou o coração
acelerado e caminhou pela porta da frente rumo à multidão de
convidados. Seu casaco branco chegava até o chão e cobria o
vestido, enquanto o capuz cobria o cabelo. Curvada ao serpentear
entre os convidados, escondida à vista de todos, ela sorriu. Até aí,
tudo bem.
Debaixo do seu braço, protegido das vistas pelo casaco, Buddy se
contorcia. Ela lhe deu um apertinho e então o deslizou para o chão.
Ele logo desapareceu embaixo de uma mesa próxima. Quando teve
certeza de que ele estava seguro, Estella foi até outra mesa perto
do centro do salão. Sobre ela, havia uma torre de taças de
champanhe. Equilibrados cuidadosamente sobre as hastes finas, os
copos brilhavam e cintilavam com o ouro líquido que havia ali
dentro.
Estella observou um garçom vir e encher sua bandeja com taças.
Ele se virou e se moveu para distribuí-las entre os convidados
enquanto a Baronesa se dirigia para as escadas. Olhando adiante,
ela esperou que o salão ficasse em silêncio. Uma antecipação
silenciosa tomou a multidão. Estella deu um passo para mais perto
da torre de champanhe. Ela também aguardava.
A Baronesa estava claramente adorando o momento. Delongava
os minutos, deixando todos os olhos pousarem nela e em seu lindo
vestido. A estilista, envaidecida, girava e se mexia para que cada
ângulo de seu vestido pudesse ser capturado, cada elemento
sofisticado em destaque. Estella ouviu o som de uma câmera
clicando rapidamente e olhou na direção dela. Uma mulher da sua
idade tirava fotos o mais rápido que seu polegar permitia. Estella
conteve um gemido. Claro. A Baronesa não estava apenas agindo
como se estivesse em exibição, ela estava em exibição – ou estaria
quando a edição do dia seguinte do Tattletale fosse publicada.
Mas haverá mais nessa história, Estella pensou perversamente
enquanto se voltava para a escada.
– Um brinde a mim! – disse a Baronesa, finalmente erguendo a
taça no ar.
A multidão fez o mesmo. As taças foram levadas aos lábios.
Bocas se abriram. E então… crás!
O som de centenas de taças de champanhe caindo no chão
ecoou pelo enorme salão. No mesmo instante, todas as cabeças se
desviaram da Baronesa… e pousaram em Estella.
Ao lado da agora destruída torre de champanhe, Estella deu de
ombros, como se dissesse “ops!”.
Com todos olhando para ela, ninguém além de Estella notou
Horácio e Wink, agora vestido como um rato, entrarem no salão pela
porta de serviço. Muito bem, as coisas ainda estavam dentro do
cronograma. Lançando olhares para as damas e cavalheiros perto
dela, Estella acenou com a cabeça para um homem mais velho. Ele
parecia um pouco frágil e assustado e, por um momento, Estella se
sentiu mal pelo que estava por vir, mas então encolheu os ombros e
pensou em outra coisa.
– Você tem fogo? – perguntou com um olhar sedutor.
Ele confirmou com a cabeça e remexeu no bolso do paletó até
que tirou uma caixa de fósforos. Houve uma faísca quando o fósforo
acendeu. Ao entregá-lo para Estella, ele hesitou, incerto sobre por
que ela precisaria daquilo, já que não estava segurando um cigarro.
Estella pegou-o, sorriu e prontamente largou o fósforo – em seu
casaco.
Com um whoosh, o tecido branco do casaco e do capuz se
desintegrou em uma lâmina de chamas. O fogo desapareceu
rapidamente, revelando o vestido vermelho-sangue por baixo e o
cabelo preto e branco de Estella. Erguendo os olhos, ela encontrou
o olhar da Baronesa.
Xeque-mate, pensou. A Baronesa, tentando manter a calma,
lançou um olhar severo para seus dois seguranças.
– Eu quero aquela ali. – Estella ouviu-a sibilar.
– Viva? – perguntou o maior dos guardas.
A Baronesa assentiu.
– Por enquanto.
– Isso não precisa se tornar uma cena – ele avisou Estella quando
a alcançou.
Estella sorriu.
– Ah, mas precisa sim – disse ela. – Precisa muito, muito mesmo.
Insatisfeito com a resposta, o guarda fez menção de agarrar o
braço de Estella. Em um piscar de olhos, ela abaixou a bengala que
segurava na mão dele e, em seguida, erguendo a voz para que
todos pudessem ouvir, exclamou:
– Ai! Meu braço! Acho que quebrei! – Tal como previra, os
convidados começaram a murmurar nervosamente. Ela continuou: –
Eu acho que quebrei. Tem algum médico aqui? – Para aumentar o
efeito, deixou a mão cair mole ao lado do corpo.
Àquela altura, todos estavam olhando para Estella. Estavam
confusos – e com razão. Por que, eles se perguntavam, a Baronesa
estaria tão transtornada? A garota havia derrubado a torre de
champanhe. Era apenas um acidente…
Estella, porém, não esperara nada menos que aquilo. Sentia os
olhos frios da Baronesa sobre si, ao mesmo tempo que os guardas
se aproximavam. De repente, um se lançou sobre ela. Estella se
esquivou com rapidez do movimento, abaixando-se e depois
passando a bengala pelas pernas dele, de modo que ele tropeçou e
caiu no chão. Sem fôlego por um momento, ele passou por um
instante de dificuldade no chão. Essa era a chance de Estella.
Inclinando-se, ela murmurou um pedido de desculpas falso – mas
enfiou a mão no bolso dele. Levantando-se, sorriu para o público
fascinado no desenrolar da cena.
– Gostaria de salientar que estou fazendo tudo isso de salto –
comentou com leveza. Então levantou a bengala no ar e a rodopiou.
Ao fazê-lo, observou as chaves, que colocara suavemente na base
da bengala, voarem alto pelo ar. No balcão superior, Horácio
estendeu a mão e as agarrou, sem que ninguém se desse conta.
Estella encontrou os olhos dele quando a bengala voltou para sua
mão e assentiu. Bom, outra etapa executada tranquilamente, mas
então viu Horácio aproximar um walkie-talkie do ouvido. Uma
expressão nervosa cruzou seu rosto. Devia haver um problema com
o looping de vídeo que tinham configurado para evitar que olhos
curiosos vigiassem o cômodo do cofre. O plano deles dependia de
entrarem naquele lugar. Estella checara diversas vezes durante seu
reconhecimento: a Baronesa nunca deixava as joias para fora.
Sempre iam para o cofre. Não havia como a Baronesa usar o colar
barato de Catherine em um evento como o daquela noite. Ele tinha
que estar no cofre. Isso significava que a única razão para Gaspar
estar falando com Horácio seria se o looping da gravação tivesse
sido interrompido. Os seguranças seriam capazes de ver o que
estava acontecendo. Isso não era bom. Precisavam dos guardas
cegos.
Com toda certeza, um momento depois, Horácio gritou. Parecia
que estavam seguindo o plano B.
Enquanto Horácio freneticamente borrifava Wink com spray falso
para pragas, e Gaspar, às escondidas, fazia sua mágica
consertando as câmeras, Estella pensou às pressas. Precisava dar
a Horácio tempo para entrar na sala do cofre.
Voltando-se, viu que mais guardas haviam aparecido. Agora
estava cercada. Não havia para onde ir. Ou assim parecia.
– Então, obviamente – Estella disse, reunindo o máximo de
confiança que conseguiu, dadas as probabilidades –, vocês são
seis, então vão ganhar, mas os dois primeiros a chegar vão ficar
gravemente feridos. Portanto, decidam entre vocês quem será.
Houve uma pausa enquanto os homens pesavam suas palavras.
Logo, com um dar de ombros, um deles se aproximou dela por trás
e lhe agarrou o ombro. Em um piscar de olhos, Estella ergueu sua
bengala e o acertou no rosto. Enquanto aquele guarda gemia, outro
veio para cima. Mais uma vez, empunhando a bengala como uma
espada, acertou-o no peito e, com outro movimento do pulso,
golpeou-o no queixo.
– Foram dois? – perguntou ela, começando a se divertir. – Perdi a
conta.
Girando novamente, levantou a bengala para tirar o próximo
guarda do jogo. Os olhos do homem encontraram os dela quando
sua mão desceu. Com habilidade treinada, ele ergueu a própria mão
– e pegou a bengala no ar. Estella grunhiu quando ele a puxou para
si, capturando seus braços e prendendo-os ao lado do corpo.
Do outro lado do salão, a Baronesa assentiu.
– Traga-a para mim – ordenou.
Arrastando-a, o guarda empurrou Estella na frente da Baronesa.
Estella ficou paralisada. Tão de perto, tinha certeza de que a
Baronesa a reconheceria. Olhou para a mulher mais velha e então
viu o colar de sua mãe pendurado no pescoço dela. Ora, ora,
pensou enquanto a Baronesa dizia a todos para voltarem para a
festa, essa foi uma reviravolta pela qual eu não esperava.
–Quem é você? – a Baronesa perguntou a Estella enquanto
deslizava para longe da escada em dire ão a uma e uena alcova –
Você me arece va amente familiar.
– Eu pareço deslumbrante – disse Estella, aliviada. A Baronesa
não a tinha reconhecido… ainda. Rapidamente, entrou no papel de
fashionista misteriosa que havia aperfeiçoado durante as longas
horas de preparação. – Já quanto a familiar, não fa o ideia uerida
A Baronesa pareceu quase impressionada com a resposta.
Quase. Estreitando os olhos, fez um gesto para a cabeça de
Estella.
– Seu cabelo é real?
– Baile Preto e Branco – Estella respondeu, sem dar uma
resposta definitiva. – Gosto de causar impacto.
– Certo – disse a Baronesa, não convencida. – Qual era seu
nome mesmo?
Estella sentiu o coração bater mais forte. Não tinha pensado
nisso. Não podia simplesmente se revelar e dizer seu nome; por
outro lado, também não podia só ficar ali ofegando como um peixe
fora d’água. Seu cérebro zumbia enquanto tentava encontrar um
nome alternativo. Seus olhos permaneceram fixos nos olhos frios da
Baronesa. Havia algo muito maldoso e vingativo neles, o que a
lembrou do menino ruivo que tornara sua vida horrível na escola
primária. E assim, sabia exatamente o nome que daria à Baronesa.
– Cruella – respondeu com ousadia.
Pela primeira vez desde que Estella conheceu a Baronesa, viu o
que parecia ser um lampejo de aprovação cruzar o rosto da mulher.
– Isso é fabuloso – disse a Baronesa. – E você desenhou essa
peça? – Ela apontou para o vestido vermelho.
– Você desenhou. Na sua coleção de 1965 – Estella respondeu.
Fez uma pausa, deixando as palavras penetrarem. Então
acrescentou: – Eu o consertei.
A Baronesa encarou Estella. Por um longo momento, as duas
mulheres ficaram imersas em um confronto silencioso. Então, a
Baronesa assentiu.
– Não admira que eu o adore. É meu – comentou, ignorando o
comentário de Estella. – Não me lembro de tê-la convidado.
– Nem eu – disse Estella. A tensão anterior estava
desaparecendo conforme entrava mais e mais em seu novo papel. –
E ainda assim, cá estou.
A Baronesa se aproximou e se sentou na maior das duas cadeiras
grandes colocadas na alcova. Tinha um encosto alto e
acolchoamento rígido. Um trono, Estella pensou, para uma rainha
do gelo. Apontando para a cadeira menor ao seu lado, a Baronesa
pediu-lhe que se sentasse.
– Eu insisto – disse ela. – Estou intrigada e isso nunca acontece.
Enquanto Estella se movia em direção à cadeira, os três dálmatas
da Baronesa se aproximaram. Instantaneamente, o sangue de
Estella gelou. Os cães eram enormes, cada um maior que o anterior.
Tentou desacelerar a respiração ao se lembrar, em um lampejo
terrível, de um borrão preto e branco vindo em sua direção enquanto
ela se escondia atrás de uma cerca-viva. Não podiam ser os
mesmos cães que atacaram sua mãe, podiam?
Por acaso a Baronesa substituía um cachorro por outro, como se
fosse uma bolsa?
Confundindo o olhar de medo de Estella com admiração, a
Baronesa chamou um dos cães e pousou seus dedos longos e finos
sobre a cabeça dele.
– Eles não são lindos? – perguntou. – E cruéis. É minha
combinação favorita.
Engolindo em seco, Estella se aproximou um pouquinho dos
cachorros e deslizou para o assento. Ao fazer isso, os cães soltaram
rosnados baixos, quase em reconhecimento.
– Pois bem, o que você quer? – perguntou a Baronesa,
entregando a Estella uma taça de champanhe. Pegou uma para si e
sorveu as bolhas douradas, sem que seus olhos deixassem os de
Estella. – Você obviamente queria chamar minha atenção.
Estella tomou um gole de sua própria bebida. Ela esperara manter
distância da Baronesa.
– Acho que sim – respondeu, improvisando –, adoraria saber seu
segredo.
A Baronesa acenou com a cabeça, como se esperasse por isso.
– Duas horas de sono por noite – começou. – Governar pelo
medo, ser um gênio criativo, não deixar nada atrapalhar seu
caminho e destruir toda e qualquer competição…
Enquanto a Baronesa falava, Estella avistou Buddy. O cachorro
deslizara para a alcova despercebido e agora estava escondido sob
a mesa lateral entre as cadeiras. Estella lançou um olhar para os
dálmatas. Felizmente, eles não haviam sentido o cheiro de Buddy,
mas era apenas uma questão de tempo.
– O que me faz pensar – continuou a Baronesa –, que você quer
competir comigo, Cruella?
Estella levantou a cabeça bruscamente em surpresa.
– Pergunta capciosa – observou. – Se eu responder, posso me
destruir. Talvez eu seja uma nova amiga?
A Baronesa lhe deu um sorriso condescendente.
– Eu não tenho amigos, querida – disse simplesmente.
– Que solitário para você.
A Baronesa balançou a cabeça.
– Eu simplesmente não consigo encontrar alguém que alcance
meus padrões, então prefiro assim. – Ela fez uma pausa e tomou
um gole da bebida. – E você? O que quer?
A pergunta surpreendeu Estella, que hesitou, tentando pensar em
uma resposta. Enquanto refletia, olhou para cima. Ela conteve um
suspiro ao ver Horácio ser escoltado pelo balcão superior por dois
seguranças. Esperando que seu rosto não tivesse revelado nada,
Estella tomou um gole.
– Quero ser como você – afirmou. Conforme suspeitava, a
Baronesa assentiu, como se esperasse aquela resposta. – Você é
uma mulher muito poderosa.
– Deixe-me dar um conselho – disse a Baronesa. – Se você tem
que falar sobre poder, então você não o tem. – Seus olhos
percorreram o salão e a multidão reunida ali por um motivo… e
apenas um motivo: estar perto dela.
Estella seguiu seu olhar. Apesar do ódio que sentia pela mulher,
tinha de admitir, ela estava certa: era dona de um poder infinito – e o
empunhava como uma arma.
– Bem, eu não tenho poder. É por isso que tenho que falar sobre
ele; é por isso que estou aqui – disse Estella. Pender a balança para
o ego da Baronesa era o melhor curso de ação. – Eu preciso
explicar mais, ou você consegue acompanhar?
Por um momento, a Baronesa ficou em silêncio e Estella se
perguntou se tinha ido longe demais. Em seguida, um sorriso se
espalhou lentamente pelo rosto da mulher.
– Você é fabulosa – ela declarou por fim.
Estella soltou a respiração. Ao fazer isso, avistou Gaspar. Ele
vinha se esgueirando pela entrada dos criados vestido com o
uniforme de garçom que ela havia costurado. Isso era bom. Pelo
menos ele estava seguro. Mesmo assim, ainda não estavam fora de
perigo. Ela precisava de mais tempo para terminar o trabalho.
– Então, a sua coleção de 1968 – disse ela, baixando os olhos
para o colo do vestido. – Adorei o que você fez com o bordado.
Fale-me sobre isso.
– De onde você vem? – perguntou a Baronesa.
Tomando um gole de sua bebida, Estella encolheu os ombros.
– Do norte, mais ou menos, mas um pouquinho do sul do norte.
Então quase dá para dizer oeste.
Ao ouvir a resposta vaga e ridícula, a estilista recostou-se na
cadeira. As luzes de cima fizeram o colar cintilar, e Estella tentou
pensar em uma maneira de tirá-lo do pescoço da Baronesa e
colocá-lo em suas mãos. No balcão, os seguranças observavam
algo aos pés de Horácio. Wink, Estella apostava. O cachorro,
vestido de rato, provavelmente estava fazendo sua parte. Ao mesmo
tempo, viu Gaspar caminhando em sua direção. Precisava agir
rápido.
Todavia, antes que pudesse fazer qualquer coisa, a Baronesa
tomou um último gole do champanhe.
– Gostei do nosso tempo juntas – disse ela, colocando a taça
vazia na bandeja de um garçom que passava. – Mas acho que
agora vou prendê-la por invasão de propriedade.
Os olhos de Estella dispararam. Por essa, não esperava. Mas,
felizmente, tinha visto Gaspar, que parou na frente delas, segurando
uma bandeja sobre a qual havia um prato coberto. Ele deu uma
piscadinha para Estella. Então, com um floreio, puxou a tampa e
revelou três ratos de olhos redondos.
– Isso é um rato? – questionou Estella, levantando-se de um
salto.
A Baronesa olhou para ela e ergueu uma sobrancelha.
– É – respondeu, sua voz bem mais calma do que deveria. – São
três, na verdade.
Enquanto os convidados próximos notavam e gritavam, um dos
ratos pulou da bandeja e caiu no colo da Baronesa. Foi exatamente
a distração de que Estella precisava. Enquanto a mulher tentava se
libertar da praga, Estella deslizou para trás dela e desatou o colar
com destreza. Ele caiu em sua mão e, em seguida, na boca de
Buddy, que estava à espera. Ele saiu correndo com a peça,
esquivando-se, sem ser visto, entre os pés dos convidados em
pânico.
Nem bem um instante depois, a mão da Baronesa tocou o
pescoço. Procurando pela joia, soltou um grito.
– Alguém roubou meu colar!
No balcão acima, Horácio interpretou isso como sua deixa.
Libertou-se dos guardas, saltou sobre a grade e caiu na saliência
abaixo. Infelizmente, a saliência fina não era feita para seu tamanho
e ele escorregou. Ao cair, ele estendeu a mão e agarrou uma faixa
de tecido. Com um forte rasgo, ele caiu e ficou pendurado, cruzando
o salão até bater na parede oposta. O equipamento de dedetização
que ele usava como parte de seu “uniforme” quebrou. A fumaça se
espalhou por toda parte e, sem equilíbrio, Horácio tropeçou no
enorme bolo. Cobertura e bolo voaram quando a mesa quebrou e
caiu no chão sob o peso adicional de Horácio,
A festa estava um caos absoluto. De lado, a Baronesa olhou para
os convidados gritando. Alguns corriam. Outros pulavam em
qualquer superfície que pudessem encontrar e golpeavam ratos –
reais e imaginários. Outros ainda só gritavam. Absorvendo tudo
aquilo, a Baronesa sacudiu a cabeça.
– O que está acontecendo? – gritou para ninguém em particular.
Estella tentou não demonstrar a alegria que sentia no momento.
Tinha conseguido. Estavam basicamente livres agora, mas, assim
que o pensamento entrou em sua mente, viu os olhos da Baronesa
se estreitarem. Acompanhando seu olhar, Estella viu Buddy
correndo em direção à saída. Na boca dele o colar brilhava.
– Aquele cachorro! – gritou a Baronesa. – Parem aquele cachorro!
– Ela pegou um pequeno apito de um bolso escondido no vestido,
levou-o à boca e soprou. Um ruído agudo encheu o ar.
Instantaneamente, os dálmatas apareceram, dentes arreganhados,
rosnando, os pelos eriçados.
Mas não foi o som dos cachorros que assustou Estella.
Foi o barulho. Ele apunhalou seu coração como uma faca. Já
tinha ouvido aquele som antes – na noite em que sua mãe caíra do
penhasco. Como um filme que não conseguia parar, a cena se
desenrolou: a Baronesa dizendo algo para sua mãe e então, um
momento depois, puxando o apito – o mesmo – e soprando nele. Lá
atrás, Estella ouviu os passos e os rosnados dos cães. Eles
passaram correndo por ela, os olhos fixos em sua dona – cujo dedo
estava apontado diretamente para Catherine.
Como um raio, Estella viu a verdade. Sua mãe não caíra por
acidente. A Baronesa havia mandado os cães correrem para cima
dela. Haviam-na empurrado precipício abaixo.
A Baronesa havia matado sua mãe.
Latidos ecoaram pelo salão de baile da mansão. Gritos
ricocheteavam nas paredes e perfuravam o ar.
Mas Estella mal ouviu.
A cabeça e o coração estavam nublados de tristeza quando se
levantou, a compreensão da morte de sua mãe criando um fardo
sobre ela.
Enquanto Estella tentava acalmar o coração acelerado, os sons
do salão ao seu redor retornaram. Ela olhou em volta. O lugar
estava um pandemônio. Nada da elegância do evento permanecia.
No caos, os cabelos das mulheres haviam se soltado; os paletós
dos homens foram rasgados.
Pedaços de preto e branco se espalhavam pelo chão.
De repente, Estella sentiu a mão de alguém em seu braço. Virou-
se, pronta para se defender, mas relaxou quando percebeu que era
apenas Gaspar. Com um aceno de cabeça, ele gesticulou para que
ela o seguisse. A Baronesa não estava mais prestando atenção e
não percebeu quando Estella correu.
Seguindo logo atrás de Gaspar, Estella avistou Buddy mais
adiante, ainda segurando o colar na boca. Estella o encorajou
silenciosamente a continuar enquanto ele se aproximava cada vez
mais da porta, mas aproximando-se por trás vinham os três
dálmatas. Seus rosnados e mordidas tornaram-se mais furiosos à
medida que se aproximavam de sua presa. Estella conteve um grito
quando o segundo dos três cães se lançou sobre Buddy.
O cachorrinho desapareceu sob o pelo preto e branco. Estella
ouviu um ganido e então Buddy reapareceu. Ele ainda estava com o
colar, mas apenas por um momento. O cachorrão alcançou Buddy e
avançou sobre ele, pegando o colar com a boca. Assustado, o
dálmata o engoliu.
Os olhos de Estella se arregalaram. Gaspar e Horácio nunca
acreditariam nela. Terem passado por tudo aquilo, apenas para
perder o colar no estômago de um dálmata? Não era justo.
Empurrados porta afora pela onda de pessoas que tentavam
escapar do baile infestado de ratos, os três amigos se viram olhando
para um mar de carros parados. Os motoristas gritavam insultos uns
aos outros enquanto tentavam, sem sucesso, manobrar para saírem
da mansão. Os convidados colocavam a cabeça para fora das
janelas, lançando seus próprios insultos no meio da confusão.
Examinando a calçada lotada, Estella avistou sua van de fuga.
Ela grunhiu. Estava sendo guinchada.
– Bem, espero que tenhamos um plano C – disse Horácio.
Estella suspirou. Como tudo podia ter dado tão completamente
errado? Havia feito planos para cada cenário possível, colocado os
pingos nos “i” e cruzado os “t”. E ainda assim eles estavam presos.
Balançou a cabeça. Não. Não iria fracassar só porque a van tinha
sido guinchada. Enquanto Horácio e Gaspar murmuravam um para
o outro, Estella se esgueirou pelo caminho em direção a uma fileira
de carros cujos motores não estavam ligados. Na frente e no centro
estava o DeVille castanho e dourado da Baronesa.
Perfeito.
Estella abriu a porta e deslizou para o banco da frente.
Certificando-se de que ninguém estivesse olhando, abaixou-se e
rapidamente puxou a fiação. Em alguns movimentos rápidos e
experientes, ouviu o rugido do motor ganhar vida. Sorrindo, colocou-
o em movimento e pisou no acelerador. As pessoas se esquivavam
quando ela passou em alta velocidade e então parou cantando os
pneus na frente de Gaspar e Horácio.
– Entrem! – gritou.
Eles não hesitaram. Gaspar se jogou no banco da frente enquanto
Horácio e os dois cães subiam na parte de trás. Com um guinchado
de pneus e espirrar de cascalho, Estella saiu pela pista de acesso à
casa.
Estella não tirou o pé do acelerador até que a mansão fosse um
pontinho no espelho retrovisor e as luzes de Londres brilhassem à
sua frente.
Girando o volante para a direita, fez uma curva fechada em uma
velocidade alarmante. Ao seu lado, Gaspar agarrou-se às costas do
assento, tentando se equilibrar.
– Eu não sabia que você sabia dirigir – disse ele.
– Eu não sei – Estella respondeu. Seus olhos estavam cheios de
fúria, os nós dos dedos brancos agarrados ao volante. Ela sabia que
provavelmente parecia uma louca, mas não se importava.
Dando outra volta, ouviu vagamente Horácio e os cachorros
grunhindo ao serem jogados de um lado para o outro dentro do
veículo.
– Estella? – Horácio disse nervosamente do banco de trás.
Ela o ignorou.
– Estella? – Gaspar tentou novamente. – Você está bem?
Ela continuou sem responder. Em vez disso, empurrou o pedal
com mais força e acelerou a uma velocidade ainda mais perigosa.
Errando por pouco um pedestre que atravessava a rua, puxou o
volante novamente. Pneus guincharam e ela ouviu o som de
borracha queimando.
– Pare o carro!
As palavras de Gaspar assustaram-na. Quando ela pisou fundo
no freio, o carro derrapou até parar. Ofegante, Estella foi tateando
para tentar sair. Sentiu como se o mundo estivesse se fechando ao
seu redor. Enxugou com raiva as lágrimas que brotavam
incontroláveis em seus olhos e escorriam pelas bochechas. Atrás,
Estella ouviu Gaspar e Horácio saírem do carro, mas não se virou.
Em vez disso, olhou para o céu, onde as estrelas eram
obscurecidas pela poluição de Londres.
De repente, seus ombros se curvaram e ela soltou um soluço
trêmulo.
– A Baronesa matou minha mãe – disse ela. Dizer as palavras em
voz alta lhes deu peso e a fez se sentir ainda mais doente.
– Do que você está falando? – Gaspar perguntou, confuso.
– O apito – explicou Estella, ganhando olhares vazios dos
meninos. – Foi ela quem chamou os cachorros para cima da minha
mãe. Não fui eu que os atraí. Sempre pensei que se eu tivesse
ficado no carro… tudo teria sido diferente. Se eu fosse diferente…
Mas ela a matou, como se minha mãe não fosse nada.
– Caramba – Gaspar finalmente disse, não encontrando outras
palavras.
Mas ele não precisava. Algo havia mudado em Estella. Ao dizer
em voz alta o que tinha acontecido, recuperou um pouco do poder e
o devolveu a si mesma. Seu olhar recuperou o foco. Seus ombros
se endireitaram. Então, com um aceno de cabeça, ela girou nos
calcanhares e voltou para o banco do motorista.
– Vamos – disse aos meninos.
Tendo sofrido durante a última viagem, Gaspar e Horácio
trocaram olhares nervosos. Em seguida, eles entraram, certificando-
se de colocar os cintos de segurança desta vez. Antes mesmo de
terem sido afivelados, Estella pisou fundo no acelerador e o carro
disparou pela rua escura.
– O que você vai fazer? – Gaspar perguntou quando finalmente
recuperou o fôlego e se afastou do assento contra o qual havia sido
jogado.
Estella se virou. Um sorriso frio e perverso se espalhou por seu
rosto. Quando eles passavam por um poste de luz, seu cabelo
branco brilhou intensamente e seu cabelo preto permaneceu
encoberto pelas sombras. O efeito era assustador.
– Ela tirou tudo de mim e me fez acreditar que eu merecia – disse
Estella. – E agora? É a minha vez.
– Do que você está falando? – Gaspar perguntou, confuso.
– Vingança – Estella respondeu apenas.
Gaspar não aprovava nada daquilo.
– Você sabe o que dizem – acrescentou ele. – Se está em busca
de vingança, é melhor cavar duas covas.
Estella conduziu o carro por uma curva, girando o volante com
tudo.
– Achei que fosse “vingança é um prato que se come frio”?
– Acho que isso é pra tortas de porco – Horácio contribuiu do
banco de trás.
Estella olhou para ele pelo espelho retrovisor. Ele estava sentado
entre os dois cachorros, parecendo muito feliz.
– O quê? – ela perguntou. Às vezes ele era muito estranho.
– “Torta de porco é um prato que se come frio” é o ditado –
esclareceu.
– A questão é! – ignorou-o Estella, seu tom afiado. Isso
surpreendeu Gaspar e Horácio… especialmente Horácio. Ele estava
sempre dizendo coisas aleatórias e geralmente Estella não se
importava.
Ela estivera tentando manter a calma, mas havia um limite para
as coisas. Precisava de foco. Precisava que Gaspar e Horácio se
concentrassem.
– A questão é – repetiu –, a Baronesa destruiu minha vida. Por
isso, vou retribuir o favor.
Aproximando-se de um carro que vinha em sentido contrário, ela
deu uma risada sombria. Sim, retribuiria o favor – generosamente. A
Baronesa seria derrubada. E Estella assistiria a tudo de camarote.
Estella sabia que Gaspar e Horácio queriam ficar na moita por
algum tempo. Ela os ouviu de seu quarto enquanto conversavam,
depois de voltarem para o Covil. Gaspar estava especialmente
interessado em ficar fora de ação. Para ele, a festa da Baronesa
havia consumido ener ia e recursos demais e tinham esca ado or
muito ouco.
Mas Estella não ueria es erar
Ela queria sua vingança – imediatamente.
A noite tinha sido agitada. Se Estella fechasse os olhos, imagens
de cães, penhascos e o rosto cruel da Baronesa vinham como uma
enxurrada.
Se os abrisse, encontraria uma parede de croquis e esboços que
havia feito ou colecionado, tudo na esperança de cair nas boas
graças da Baronesa.
Quando o sol apareceu no horizonte, Estella já estava acordada
havia horas. E quando ouviu Gaspar e Horácio começarem a tomar
o café da manhã, estava vestida e preparada para a ação.
Subindo as escadas para o segundo piso do loft, Estella irrompeu
por uma porta para o espaço que eles haviam transformado em sua
“cozinha”.
Gaspar e Horácio estavam sentados atrás de uma mesa bamba,
comendo cereal.
Ao som de seus passos, eles levantaram a cabeça. Ambos
arregalaram o olhar. Às nove da manhã, Estella já estava montada
com um vestido elegante de noite – preto, as linhas severas e o
corte justo. Parecia pronta para uma luta. Quando relanceou para os
meninos, passou a mão pelo cabelo preto e branco, estreitando os
olhos delineados de preto.
– Bom dia, meninos – disse em uma voz melodiosa que não
combinava com sua atitude ou expressão. Chegou até eles e
passou a mão varrendo as tigelas da mesa sem a menor cerimônia.
Elas caíram no chão com um estrondo. No lugar delas, Estella jogou
um jornal e abriu na seção de moda. A manchete saltou. RATOS!,
dizia. E UMA MULHER MISTERIOSA! Uma foto grande mostrava
Estella – a mulher misteriosa – com sua capa em chamas, enquanto
várias fotos menores mostravam ratos correndo pelos pés dos
convidados.
– Então vamos começar, certo? – disse ela após Gaspar e
Horácio terem visto o artigo.
– Você não vai matá-la, vai? – Gaspar perguntou com
nervosismo.
Estella encolheu os ombros.
– Não faz parte do plano atual, mas talvez tenhamos que ser
flexíveis.
– Então isso é um “não”? – Gaspar questionou, esperançoso, mas
seu rosto ficara pálido.
– Se você ouviu um “não”, é – Estella respondeu vagamente. Isso
só fez com que o rosto de Gaspar ficasse mais fantasmagórico. –
Agora, o colar. Um dos dálmatas o comeu. Não sei qual deles foi,
então vocês terão que sequestrar todos eles.
Gaspar ficou de queixo caído.
– Espere, o quê?
Estella revirou os olhos. Ele estava sendo muito estúpido. Não era
como se esta fosse a primeira vez que eles faziam algo ilegal. Se
era para aquilo funcionar, ele precisava parar de ser… moral.
– Querido – disse ela, adotando o novo sotaque sofisticado que
havia usado na noite anterior –, se eu tiver que ficar me repetindo,
isto não vai funcionar. – Ignorando o olhar confuso de Gaspar,
Estella prosseguiu: – O colar entrou por uma extremidade. Vai sair
pela outra. É assim que funciona. – Dada a primeira ordem do dia,
ela se virou para o elevador decrépito e abandonado que eles
usavam para subir e descer.
Atrás dela, ouviu Horácio resmungar sobre seu café da manhã.
Pelo menos ele não ia revidar. Gaspar ia.
– Qual é o resto do plano? – ele exclamou atrás dela. – E aonde
você está indo?
Estella nem se preocupou em se virar. Ela fez um aceno para
dispensar as preocupações dele.
– Para um lugar do tipo que ninguém precisa saber – disse ela.
Então, sem outra palavra, entrou no elevador. Quando as portas se
fecharam, ouviu Gaspar suspirar.
– Não é assim que costumamos trabalhar – disse ele.
E estava certo, porém nada mais era normal. Tudo havia mudado.

Durante todo o caminho até a redação do Tattletale, Estella pensou


em suas interações com Gaspar e Horácio. Ela se sentiu mal. Mais
ou menos. Porém, tinham que entender aquilo pelo que ela estava
passando. O curativo sobre a morte de sua mãe havia sido
arrancado dolorosamente e parecia que seu coração estava
sangrando. Verdade, não deveria ter derrubado o cereal de Horácio
no chão. E provavelmente não deveria ter sido mal-humorada – nem
ter feito um sotaque diferente – com Gaspar; mas, em ambos os
casos, era uma questão de sobrevivência.
Sobrevivência e vingança.
Esses pensamentos ainda estavam em sua mente quando parou
em frente à redação do Tattletale. Esticou o pescoço para cima e
observou a fachada de pedra e a imponente placa dourada. Era
ousada e um pouco trash – o que resumia muito bem o jornal. Ela
abriu as portas e entrou no saguão.
Não teve que esperar muito depois de dar seu nome na recepção.
Em instantes, ouviu o click-clack dos saltos de Anita Darling vindo
até ela. Ao parar na frente de Estella, Anita sorriu hesitante.
– Anita Darling, minha querida! – disse Estella, abaixando--se e
dando beijinhos de ar no rosto da jornalista.
Anita gesticulou em direção aos elevadores. Juntas, as mulheres
entraram e foram até a mesa de Anita. Quando se sentaram, Anita
se recostou e ergueu uma sobrancelha.
Estella levantou a sua. Reconhecera Anita quase imediatamente
na festa. Era possível vestir bem uma garota e tirá-la de uma cidade
do interior, Estella pensou, mas não se conseguia tirar da garota a
atmosfera do interior. Anita era a mesma menina que havia
conhecido no primeiro dia de aula. A única que tinha sido legal com
ela – pelo menos no começo.
– Estella! – Anita começou, deixando claro que também tinha se
lembrado. – Quanto tempo! É tão bom ver você. Fiquei te olhando
na festa. E então me ocorreu. É a Estella.
Assentindo, Estella cruzou as longas pernas.
– Então você vai a festas, tira fotos, publica fofoca. Esse é o seu
trabalho?
Anita deu de ombros, parecendo envergonhada.
– Não é tão divertido quanto parece.
Verdade fosse dita, Estella não se importava se Anita gostava de
seu trabalho ou não. Não era por isso que caminhara até o Tattletale
nem se aproveitara da oportunidade de se re-conectar com uma
velha “amiga”.
– Parece útil – corrigiu ela.
Anita inclinou a cabeça, curiosa.
Bom, Estella pensou, vendo a expressão. Ela precisava que Anita
ficasse curiosa.
– Eu gostaria de dar início à minha própria grife – Estella
começou. – Por que não trabalhamos juntas e criamos um
burburinho para esse tabloide que você enche o tempo todo de
notícias daquela bruxoide?
Por um momento, Anita ficou em silêncio, olhando por cima da
mesa para Estella com uma expressão ilegível.
– Você tem aquele brilho nos olhos – disse Anita por fim.
– Que brilho?
– Estou começando a lembrar que você tem um lado extremo –
explicou Anita.
Estella sorriu. Alguns podiam chamá-lo de extremo; ela chamava
de sobrevivência.
– Então você também lembra o quanto isso é divertido. – Estella
se levantou e se inclinou, seus dedos espalmados sobre a última
edição do Tattletale. Intencionalmente, se certificou de bloquear as
imagens da Baronesa que enchiam a página. – Agora, quero que
me ajude a contar quem eu sou.
Os olhos das mulheres se encontraram. Então, juntas, elas
sorriram.
Estella estava satisfeita. Tinha um acordo com Anita. Já tinha
virado manchete com o “espetáculo” da noite anterior. Agora só
precisava aproveitar o momento – e esperar que Gaspar e Horácio
estivessem fazendo seu trabalho.

Naquele exato momento, Gaspar e Horácio estavam sentados em


uma van, olhando do outro lado da rua para um dos melhores
salões de beleza para cães de Londres. Estella deixara claro: eles
deveriam ficar onde estavam até avistar os dálmatas da Baronesa;
então iriam roubá-los.
– Não deve ser difícil – instruíra antes, sua voz soando mais
Cruella do que Estella.
Gaspar não gostou. Ele não gostava muito de nada do que vinha
acontecendo ultimamente. Tudo parecia fora de controle e as
exigências e expectativas de Estella estavam se tornando mais
irrealistas. Ele sentiu como se sua amiga estivesse se afastando, se
perdendo, ficando mais confortável no papel de Cruella. Pelo lado
positivo, o tempo de inatividade era bom. Ele e Horácio passaram a
maior parte da manhã apenas ouvindo uma partida de futebol no
rádio.
Ao perceber uma mulher pequena carregando um cachorrinho
minúsculo para dentro do pet shop, Horácio inclinou a cabeça.
– Você já percebeu como alguns donos se parecem muito com
seus cães? – perguntou a Gaspar. Enquanto falava, Horácio olhou
para Wink, que o fitou com uma expressão assustadoramente
semelhante.
Gaspar reprimiu um sorriso.
– Não – disse ele, tentando não rir enquanto Horácio e Wink
espirravam ao mesmo tempo. – Eu nunca percebi isso. – Horácio
poderia ser um bobo, mas Gaspar o amava como a um irmão.
Enquanto observava, Horácio colocou a mão sobre um olho e
voltou sua atenção para um novo cachorro e seu dono enquanto
eles passavam vagarosamente, como se isso pudesse lhe dar uma
nova perspectiva.
Balançando a cabeça, Gaspar respirou fundo. Era hora de
começar a trabalhar. Se não voltassem para o Covil com os
dálmatas – e o colar que estava no estômago de um deles –, Estella
ficaria furiosa. E ele não queria lidar com a fúria dela – de novo.
– Vamos nos concentrar um pouco. Temos um trabalho a fazer.
Horácio olhou para Wink novamente. O cachorro era uma parte
fundamental do plano que haviam elaborado para tirar os dálmatas
do salão do pet shop e colocá-los na van.
– Wink é um cachorro muito simpático – disse Horácio. – Não
tenho certeza se vai funcionar.
– Vai funcionar – Gaspar opinou. Ele contava que os dálmatas se
lembrassem de Wink da festa, ou pelo menos reconhecessem seu
cheiro.
Saindo da van, Gaspar agarrou Wink e atravessou a rua,
enquanto Horácio ia para a parte de trás e abria as portas. Pelas
vitrines do pet shop, Gaspar viu os dálmatas em vários estágios de
mimos, desde estarem cobertos de bolhas até terem sua pelagem
seca e as unhas aparadas. Todos estavam de frente para a porta.
Gaspar acenou com a cabeça. Isso era bom.
Quando empurrou a porta, os cães levantaram a cabeça. Wink
ficou parado, trêmulo ali na entrada, por apenas um instante, mas foi
o que bastou. Os cães rosnaram e começaram a latir. Então todos
eles pularam de suas mesas e começaram a persegui-los. Wink se
virou e correu de volta para o outro lado da rua enquanto os
dálmatas o seguiam. Horácio estava em posição e, quando Wink
saltou em seus braços, o ímpeto dos dálmatas os levou para a parte
de trás da van. Horácio bateu a porta e os prendeu lá dentro.
Momentos depois, Gaspar e Horácio estavam de volta em seus
lugares. Gaspar ligou o motor e dirigiu a van pelas ruas
movimentadas de Londres. Antes que os funcionários sequer
tivessem percebido o que acontecera, a van – carregando sua
preciosa carga – desaparecera de vista.
Gaspar se virou e deu um sorriso para Horácio.
– Você não precisa dizer que eu estava certo – comentou ele.
Horácio balançou a cabeça. Simplesmente não entendia. Como
alguém – ou qualquer cachorro – poderia querer machucar Wink?
Virando uma esquina, Gaspar se acomodou no assento. Tinham
pegado os cães. Agora apenas tinham que sentar e esperar até que
um deles “revelasse” o colar.

Estella olhou para o relógio. Se Gaspar e Horácio estivessem dentro


do cronograma, naquele exato momento estariam usando Wink para
atrair os dálmatas para fora do spa canino e para dentro de uma van
que os esperava. Não havia como saber se eles tinham obtido
sucesso até que voltasse para o Covil, mais tarde. Mas, por
enquanto, presumiria que os meninos tinham tudo sob controle.
Ela se concentrou e seguiu em direção à sua próxima parada: a
loja de roupas de época de Artie.
Ela não prestava atenção aos olhares dos pedestres enquanto
seguia pelas movimentadas ruas de Londres. Sabia que chamava
muito a atenção – vestido preto justo, cabelo preto e branco,
expressão séria, mas pela primeira vez não estava tentando se
esconder. Eles que olhassem. Eles que encarassem. Passara tempo
demais se escondendo atrás de cabelos falsos e vivendo uma
mentira. Estava pronta para que o mundo conhecesse Cruella.
Empurrando a porta da loja de Artie, ouviu o toque familiar do
sininho. Artie ergueu os olhos de sua cópia do Tattletale. Ao vê-la,
seus olhos voltaram para a página e então retornaram para ela.
– É você – disse ele, com admiração na voz.
Estella fez que sim e respondeu:
– Sim, sou eu.
– E você está na minha loja – acrescentou ele.
– Já estive aqui antes. – Ela apontou ao se aproximar. Artie olhou-
a, confuso. – Comprei meu vestido aqui. Sou eu, Estella.
A compreensão se fez no rosto dele. Correndo de trás do balcão,
ele avaliou o traje dela.
O vestido. O cabelo. A maquiagem. Então ele fez que sim,
impressionado.
– Você certamente causou um rebuliço. Parabéns.
Estella sorriu. A reação de Artie tinha sido exatamente o que ela
desejara. Como Anita, ele era vital para seu plano. Ela imaginara
que Anita estivesse ávida o suficiente para ajudá-la, mas não tinha
tanta certeza sobre Artie. Ao que parecia, porém, ele também tinha
interesse. Ela continuou:
– Preciso de ajuda. Eu quero fazer arte, Artie, e quero criar
problemas. Topa?
O rapaz não hesitou.
– Topo – respondeu, agarrando o casaco. – Eu adoro problemas.
As palavras eram música para os ouvidos dela. Pegando alguns
itens da prateleira mais próxima, Estella rapidamente deu a Artie
uma lista do que mais precisava. Enquanto ele apanhava a máquina
de costura e mais alguns vestidos, Estella se permitiu respirar.
Estava a todo o vapor desde a noite anterior. Queria relaxar um
pouco, mas sabia que não era a hora. Ciente de que tinham tudo de
que precisavam, Estella se virou e saiu da loja. Artie a seguiu. Ela
estava um passo mais perto da vingança. Mal podia esperar para
servi-la – quente ou fria.
Estella deslizou para dentro do Covil. Artie estava logo atrás, seus
passos eram um pouco mais lentos sob o peso da máquina de
costura e das roupas extras. Examinando o espaço, Estella viu um
dálmata rasgando um conjunto de livros antigos, enquanto outro se
lançou em direção a eles, derrubando um abajur no processo. O
terceiro encurralava Horácio em um canto.
– Ah, vocês os pegaram – afirmou ela.
Com nervosismo, Horácio fez um sinal afirmativo.
Os passos de Gaspar diminuíram o ritmo quando ele entrou no
cômodo e viu Estella – e Artie.
– Artie… meninos. Meninos… Artie – apresentou com um aceno.
O dálmata na frente de Horácio latiu alto, fazendo-o tremer.
– Eles são muito agressivos – disse ele. Aproveitando a deixa, os
outros cães se juntaram aos latidos, fazendo com que todo o espaço
parecesse um canil.
Estella encolheu os ombros.
– Você precisa caminhar com eles. Alimentá-los – declarou,
ignorando o medo no rosto de Horácio. – Precisamos pôr esse colar
para fora.
Gaspar olhou-a.
– De nada – anunciou ele, com um toque de amargura na voz. –
Você poderia ajudar.
Horácio fez que sim.
– Por que você também não pode caminhar com eles? –
perguntou. – Não existe “eu” numa equipe.
– Existe “eu” em “eubecil” – Estella disparou. – Vá! – Ela não tinha
tempo para isso. Precisava dos meninos trabalhando nos cachorros
enquanto cuidava de outras questões. Como é que eles não
entendiam? Por acaso não sabiam o quanto tudo aquilo significava
para ela?
Pelo visto, não. Gaspar balançou a cabeça.
– Você não pode falar assim com a gente – disse ele, com a voz
elevada. – Estamos ajudando você.
– Então não ajudem.
A sala ficou em silêncio. Até os cachorros pararam de latir. Estella
encarou Gaspar, sem desviar o olhar. Estava farta de bancar a
boazinha. Se lidar com a Baronesa tinha lhe ensinado alguma coisa,
era cuidar da prioridade número um: ela mesma.
A cabeça de Artie virava de um lado para o outro, alternando
entre Estella e Gaspar. Por fim, depois de erguer a máquina de
costura e apoiá-la no quadril, dirigiu-se para as escadas.
– Mamãe e papai estão brigando – disse ele, claramente tentando
trazer um pouco de leveza à situação. – Vou me instalar lá embaixo.
Enquanto Artie descia e Horácio saía com os cachorros, os olhos
de Estella não deixaram Gaspar. Nunca haviam brigado de verdade
antes, e isso a fez se sentir mal – mas também irritada. Sempre
pudera contar com Gaspar. E agora ele parecia estar atrapalhando o
seu caminho. Ele era incapaz de entender o que tudo aquilo
significava para ela? Não se tratava apenas de derrubar a
Baronesa. Bem, talvez se tratasse muito disso, mas havia mais.
Seus desenhos começavam a ser notados. Sua moda estava sendo
comentada. O sonho que não ousara sonhar – ter uma grife própria
– parecia próximo. E não queria perder isso – não quando já havia
perdido tanto.
– Você poderia ser mais educada – Gaspar disse por fim.
– Não tenho tempo – respondeu ela, ignorando o comentário. –
Tenho que ir trabalhar. Agora sou uma estilista.
Nesse momento, Gaspar ficou surpreso.
– Sério?
Ela confirmou.
– Mantenha seus inimigos por perto – disse ela. Em seguida, se
virou e caminhou até uma grande caixa de figurinos e perucas
aleatórios. Remexeu ali dentro até encontrar o que procurava.
Levantando-se, brandiu uma peruca vermelha no ar. – Voilà! – disse
alegremente. – Cruella ficou em uma caixa por muito tempo. Agora
Estella pode ser aquela que faz aparições especiais.

Era mais fácil “interpretar” Estella do que pensava que seria. Com a
peruca vermelha na cabeça e os óculos no nariz, ninguém percebeu
quando ela entrou no galpão da Baronesa.
Ninguém, isto é, exceto Jeffrey. Localizando-a, ele gesticulou
desesperadamente.
– Ela quer você – disse ele quando Estella parou na frente dele. –
Depressa!
Estella foi até o escritório, mas parou do lado de fora da porta. Lá
dentro, viu a Baronesa, seu rosto vermelho de raiva. John estava de
canto e seu próprio rosto, como sempre, era ilegível. A Baronesa
gritou e jogou um exemplar do Tattletale no chão, que caiu entre
uma pilha de outros jornais. Diante de Estella, nas páginas via-se
imagens da Baronesa, convidados enlouquecidos e Cruella.
– Todo mundo está rindo de mim – esbravejou a Baronesa,
apontando para os jornais.
John balançou a cabeça, tentando acalmar a Baronesa
transtornada.
– Toda publicidade é boa, Baronesa – tentou ele, mas ganhou um
olhar penetrante. Ele recuou. – Embora tenham se concentrado
bastante nos ratos…
A Baronesa nem sequer considerou as pragas. Em vez disso,
perguntou:
– Você percebeu o cabelo dela?
Fora do escritório, Estella ficou intrigada com o que ouvira. Por
que a Baronesa se importava com o cabelo de Cruella? O criado
acenou para dispensar a preocupação da mulher.
– Coincidência – disse. – Parece que os jovens estão todos
fazendo isso hoje em dia.
Estão?, Estella pensou. Isso parecia um pouco forçado, mesmo
para John.
– Estão mesmo? – perguntou a Baronesa, ecoando o pensamento
de Estella. Como ela, a Baronesa não parecia convencida.
John concordou. Quando ele começou a dar suas justificativas,
Estella respirou fundo. Ela não iria simplesmente ficar ali. Quando
ela entrou na sala, a Baronesa ergueu os olhos, surpresa por ser
interrompida. Vendo que era apenas Estella, a mulher franziu a
testa.
– Ah, aqui está ela – disse a Baronesa. – Atrasada, mas
claramente feliz por ter seu salário reduzido em trinta por cento.
Estella não teve a oportunidade de responder enquanto a
Baronesa avançava.
– Pegue um bloco – ordenou, apontando para uma pilha em sua
mesa.
Estella pegou um bloco, um lápis e esperou.
A Baronesa caminhou até o outro lado do escritório e saiu para o
balcão. Olhou para o ateliê abaixo, batendo a mão na grade que
cercava o mezanino. Todos do andar ergueram os olhos.
Imediatamente, a sala ficou em silêncio.
– Minha coleção de primavera – declarou ela. – Preciso de doze
peças e já tenho… deixe-me contar. – Ela fez uma pausa e foi até
um quadro grande com meia dúzia de desenhos pregados nele. Um
por um, os arrancou e amassou em bolinhas. Atrás dela, Estella
estremeceu. Eram meses de trabalho dos estilistas, destruídos. –
Zero! Vão! Quero dez peças que funcionem, às três horas da
manhã! – gritou, voltando-se para Estella.
– Obrigada – respondeu esta.
– Gratidão é para perdedores – rebateu a Baronesa. Seu tom era
agressivo e frio.
Estella não pôde deixar de notar como ela falara diferente com
Cruella. Havia certo nível de respeito em sua conversa, mas não
para Estella. A raiva latente em seu coração esquentou. Ela a
abafou ligeiramente, mas cutucou o monstro um pouco mais.
– Bom conselho – elogiou. Então, muito intencionalmente,
acrescentou: – Obrigada.
– O que eu acabei de dizer?
– Não diga “obrigada” – respondeu de imediato, contendo a
sensação de alegria que sentia ao incitar a Baronesa. – Entendi.
Obrigada. – O deslize “acidental” rendeu-lhe outro olhar furioso.
Felizmente, naquele momento, o telefone na mesa tocou alto.
A Baronesa foi até lá com tudo e o arrancou do gancho. Sua
expressão furiosa se intensificou ainda mais quando a voz do outro
lado da linha murmurou algo.
– O que você quer dizer com “os cães sumiram”? – gritou quando
a outra voz parou. – Encontre-os!
Era a deixa de Estella. Ao sair pela porta, suprimiu um sorriso.
Sentia-se satisfeita de estar lá na sala da Baronesa quando a
ligação aconteceu. Ver a expressão zangada da mulher quase
compensou a agressão verbal que tinha recebido. Quase.
Mas não importava o que a Baronesa lhe dissesse ou fizesse.
Porque, Estella pensou ao entrar no ateliê, Cruella riria por último –
começando naquela noite, quando fizesse outra “aparição especial”
em um dos eventos da Baronesa.
Estella estava chegando perto. Não poderia sair do ateliê antes de a
Baronesa ir embora ou acabaria chamando atenção para si, mas a
Baronesa levou um tempo exasperantemente longo para tentar
escolher o look que usaria na soirée daquela noite, uma estreia no
tapete vermelho. Quando ela finalmente escolheu um vestido e
entrou na limusine, Estella não tinha nem uma hora para voltar para
o Covil, fazer a troca de Estella para Cruella, e ir para a estreia.
Escondida em um beco, Estella observou a longa fila de limusines
se aproximar do tapete vermelho, reduzir a velocidade até parar e
liberar seus ocupantes. Flashes disparavam, repórteres gritavam
perguntas e, dependendo da estrela, os gritos eram ainda mais
altos. A atmosfera fervilhava de animação, e a lista de convidados
contava com a nata do entretenimento e do mundo da moda. Estella
viu dois astros do rock, nada menos do que cinco estrelas de filmes
de primeira linha, além de meia dúzia de diretores, e isso foi só nos
quatro minutos em que esteve ali no beco.
Quando fizesse sua aparição, seria épico.
Esquadrinhando a fila de limusines, localizou o carro da
Baronesa. Ótimo. Tinha conseguido chegar a tempo. Ela semicerrou
os olhos para a multidão que se reunira atrás das grossas cordas de
veludo usadas para separar as estrelas da ralé. Acenou mais uma
vez com a cabeça. Gaspar e Horácio estavam em posição.
Chamando sua atenção, Gaspar inclinou o chapéu para ela. Ela
ergueu um dedo. Espere, moveu a boca sem fazer som.
Confiando que Gaspar e Horácio estariam prontos, Estella levou
um minuto para dar os toques finais no próprio visual. Tirou uma lata
de tinta em spray da bolsa e pôs as mãos na massa. A mão voou,
pulverizando a tinta. Ao acabar, olhou para baixo, para a sua obra
de arte. Perfeito, pensou ao sorrir.
Olhando mais uma vez pelo beco, ela constatou que o carro da
Baronesa tinha avançado. Agora estava a um carro de distância da
entrada. Gaspar e Horácio passaram por debaixo das cordas de
veludo. Enquanto o carro da Baronesa parava diante do tapete
vermelho, eles se posicionaram de cada lado dele e enfiaram uma
imensa tira de couro por cima e por baixo do carro, bem na frente da
porta da Baronesa. Ela estava presa lá dentro.
Estella respirou fundo. Em seguida, saiu correndo pela rua e foi
em direção ao carro. Lá dentro, a Baronesa batia na porta e gritava.
Do lado de fora, Estella saltou sobre o teto do veículo. Na mesma
hora, dúzias de câmeras se viraram na sua direção. Quando os
flashes começaram a lampejar, Estella rodopiou. Rápido e mais
rápido ela girou, o vestido rosa fluorescente flutuou para cima e para
trás até ela não passar de um borrão rosa. Ouviu os paparazzi
perguntarem o seu nome, o do estilista, mas Estella continuou
rodopiando. Ao girar, a saia se desfazia, camada por camada. A
cada uma, uma peça irregular da arte em spray era revelada.
Abaixo de onde estava, Estella ouvia os gritos coléricos da
Baronesa. Sabia que teria que encerrar logo. Se queria construir um
mistério, não podia acabar sendo pega. Com um último giro, a
última parte da saia se soltou do lugar em que estava presa ao redor
da cintura e caiu sobre o carro. Durante sua fuga em disparada, a
calça rosa néon brilhava, e ela ouvia os arquejos de espanto da
multidão.
Virando-se, permitiu-se um instante para apreciar a sua obra. O
carro da Baronesa estava agora coberto pela saia rosa. E escritas
em tinta spray vermelha com bagunçadas letras garrafais, que
tinham feito a coisa toda parecer um trabalho de arte moderna,
estavam as palavras O PASSADO.
Estella teve um vislumbre do rosto da Baronesa dentro do carro,
pressionado na janela, enquanto a mulher, desesperada, tentava ver
o que acontecia.
Estella riu. Tinha conseguido. Tinha feito a Baronesa de boba.
Estava um passo mais próxima de levar a cabo a sua vingança e
deixar o passado no passado.
A Baronesa estava furiosa. Fora alvo de uma humilhação e agora
estava descontando nos funcionários. Com a cabeça inclinada sobre
o jornal da manhã, arrematado com uma fotografia imensa do seu
carro coberto pelo vestido, ela andou para lá e para cá na frente dos
estilistas que estavam todos parados, tremendo em seus sapatos
desconfortáveis. No fim da fila, estava Estella, sentindo-se um
pouco culpada. Aquilo era, em parte, culpa sua, ou ao menos de
Cruella.
Sua façanha na estreia tinha valido a pena. A nata da sociedade,
e várias pessoas que não eram nem o leite, estavam falando daquilo
e se perguntando sobre a identidade verdadeira da misteriosa
fashionista de cabelo preto e branco que era conhecida como
Cruella. A maior parte das pessoas estava intrigada. A Baronesa só
estava furiosa.
– Não temos uma peça conceitual – vociferou a Baronesa, indo
feito um furacão até os nove croquis presos no quadro de cortiça.
No meio estava um enorme espaço no lugar em que um croqui
devia estar. – E essa tal de Cruella está em todos os lugares! Eu
quero ideias!
Atirando o jornal em Jeffrey, a Baronesa se virou e olhou para
Estella, que, nervosa, engoliu em seco. Não gostava nada do olhar
da Baronesa.
– Estella – chamou a estilista. Foi até ela e pegou o bloco de
desenho de suas mãos –, você é a minha última esperança. O que
você desenhou? – Ela folheou os croquis, parando em alguns,
fazendo cara feia para outros, ficando emburrada com outros mais.
Estella observou.
– Você parece chateada – comentou ela.
A cabeça da Baronesa se ergueu de supetão.
– Meus cachorros sumiram, meu colar foi roubado e essa tal de
Cruella é… – A voz dela esvaneceu, e Estella se sentiu inclinar para
a frente, curiosa para ouvir o que a Baronesa ia dizer, mas, em vez
de concluir a linha de pensamento, a Baronesa balançou a cabeça e
disse no lugar: – Esse desfile tem que ser o melhor!
Desempenhando o papel de assistente solícita, Estella assentiu
em solidariedade.
– Agora você parece um pouco fora de prumo – observou ela,
tentando não soar tão feliz quanto estava com a situação. – Aceita
um pouco de pepino? Fatiado fininho?
– Vá! – gritou a Baronesa, atirando-lhe o bloco de desenho ao
levantar a voz. – Vá e ponha esse seu cérebro murcho e ressequido
para trabalhar!
– Agora mesmo – respondeu Estella, engolindo o que realmente
queria dizer sobre quem era murcha e ressequida.
Virando-se para o restante dos estilistas, a Baronesa estendeu o
braço em direção às estações de trabalho.
– O resto de vocês – estalou –, de volta ao trabalho. – Sem dizer
mais uma palavra, ela se virou e saiu do ateliê, subindo as escadas
e dirigindo-se ao próprio escritório. Um instante depois, a porta
bateu.
Estella sabia que o que deveria fazer era trabalhar nos croquis
para a Baronesa, mas, depois dos últimos dias, estava inspirada a ir
além. E o intervalo para o almoço era, tecnicamente, um “intervalo”,
então, enquanto comia, podia muito bem usar o tempo em benefício
próprio. Pegou o almoço embalado e o próprio bloco de desenho e
saiu de fininho da mesa.
Percorreu com agilidade os corredores sinuosos que agora lhe
eram tão familiares quanto o Covil. Tinha passado muitas horas
naquele prédio. Suando e se preocupando, tudo por uma mulher
que não merecia nem os seus talentos nem o seu tempo. Se
pudesse, Estella desistiria de tudo para ter a mãe de volta, mas já
que aquela não era uma possibilidade, teria que se conformar com a
que mais se aproximava da melhor: certificar-se de que sua mãe
não tivesse morrido em vão. A Casa da Baronesa não seria o fim da
paixão de Estella pela criação. Não daria a ela a satisfação de lhe
tirar tudo. Extrairia proveito do que aprendera, e das portas que a
Baronesa lhe abrira sem perceber, para se tornar uma estilista como
Londres, e até mesmo o mundo, nunca tinha visto.
Mas primeiro precisava terminar de lidar com a Baronesa.
Chegando ao fim de um longo corredor, Estella empurrou a porta
de emergência. Sabia que o alarme não dispararia. Os rapazes da
entrega usavam a saída para escapar escondido e fazer uma pausa
sempre que podiam. O beco lá nos fundos era reservado e
silencioso. O lugar perfeito para Estella poder criar.
Acomodou-se num canto do beco. Pegou uma maçã na bolsa
térmica e mastigou, esperando que a inspiração surgisse. Não levou
muito tempo. Em poucos segundos, a mão já corria pela página e
um vestido ganhava vida no papel. Com a cabeça inclinada, ela não
notou que a porta para o beco tinha sido aberta e que dois
seguranças enormes apareceram. Foi só quando a sombra deles
caiu sobre o vestido que ela olhou para cima. Os olhos se
arregalaram.
Um dos seguranças estendeu a mão imensa e carnuda para
tomar o bloco de desenho de Estella. O outro a agarrou e a colocou
de pé. Sem dizer uma palavra, eles a levaram para o galpão, e
direto para o escritório da Baronesa.
– Isso é meu! – gritou Estella, impotente, enquanto eles a
arrastavam ainda mais para dentro do galpão.
Os homens a ignoraram. Ela lutou contra o aperto do segurança,
mas foi inútil. O pânico e o medo a inundaram. Se aquela mulher
visse o desenho… Estremeceu. Ele poderia delatá-la e arruinar seus
planos de vingança antes mesmo de ela conseguir colocá-los em
prática. Como a mulher ficara sabendo que deveria procurá-la no
beco? Foi então que percebeu. Câmeras. A Baronesa era muito
paranoica. É claro que tinha câmeras em todas as partes.
Antes que refletisse mais sobre a violação de confiança que
aquilo representava, eles chegaram ao escritório da chefe. Dois
guardas a empurraram sala adentro e largaram o bloco de desenho
na mesa, diante da Baronesa.

Desinteressada, como se pessoas fossem arrastadas para a sua


presença todos os dias, a Baronesa se recostou na mesa. Pegou o
bloco e o folheou, parando no último croqui. Os olhos
esquadrinharam a página, o rosto sem exprimir qualquer emoção
senão o mais leve retorcer de lábios.
Estivera certa. Não era nenhuma surpresa; estava acostumada a
estar certa, mas se via estranhamente incomodada pelo fato
naquele momento. O comportamento de Estella parecera diferente.
E, no seu mundo, quando algo parecia diferente, era porque
estavam tentando lhe dar uma facada nas costas. Por isso, tinha
feito as câmeras seguirem Estella quando ela saíra para almoçar e
assistira enquanto ela criava o vestido fantástico que agora estava
em suas mãos.
– Estella – chamou, por fim, a Baronesa, alongando o nome dela
de maneira melodiosa. – Estou surpresa por você. Escondendo
coisas de mim.
– Mas eu estava no horário de almoço – protestou Estella, de
forma nada convincente. – Em um lugar público – adicionou.
– Eu sou dona do beco – respondeu a Baronesa com desdém.
As sobrancelhas de Estella se ergueram.
– Sério? Você pode ser dona de becos?
A Baronesa assentiu como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
– Becos, croquis, pessoas – proferiu, então fez uma pausa e logo
adicionou: – Suas almas. – Como para enfatizar, a Baronesa
arrancou o desenho do bloco de Estella. – Verifique o seu contrato
de trabalho.
A mulher foi até o enorme quadro de desenhos que ocupava toda
a parede oposta e prendeu o croqui no meio. Dando um passo para
trás, ela cruzou os braços sobre o peito e inclinou a cabeça.
– Creio que acabei de encontrar a minha peça conceitual – disse
ela. – O que você acha? – Virando-se, olhou feio para Estella,
desafiando-a a responder.
A Baronesa observou a miríade de emoções voarem pelo rosto de
Estella. Sabia o que a garota estava pensando. Ela estava
pensando que queria dizer à Baronesa exatamente o que pensava
sobre a ideia e onde deveria enfiá-la, mas também que, se dissesse
isso, perderia o emprego. E aquele emprego era tudo para a
maltrapilha. A julgar pelas roupas que vestia e a tintura horrível que
usava, estava claro que a menina precisava do dinheiro. Então
podia pensar o que quisesse. Nada mudaria o fato de que a
Baronesa usaria o desenho como se fosse dela mesma.
Acenando, dispensou Estella e pegou o telefone. Não a demitiria,
ainda. Tomar o vestido seria a punição dela, e, quem sabe, ela
aprenderia a lição. Ninguém se voltava contra a Baronesa, nunca.

Furiosa, Estella foi até a porta. A Baronesa era um monstro, um


monstro horrível que encontrava satisfação ao destruir os outros,
mas não por muito tempo. Estella, ou Cruella, iria derrubá-la de seu
pedestal. Ela que pensasse ter a vantagem. Em breve a mulher
descobriria o quanto estava errada, mas naquele momento, Estella
só queria dar o fora daquele escritório com o resto de seu bloco de
desenhos intacto. Se a Baronesa tivesse olhado além do croqui
mais recente, poderia ter notado alguns vestidos mais conhecidos,
como o vestido do Baile Preto e Branco ou o rosa da noite anterior.
Tinha sido por um fio.
Estella parou no limiar. Emoldurada pela porta, o rosto ficou
sombreado enquanto falava:
– Posso fazer algo mais por você hoje, Baronesa? – perguntou,
esperando que as sombras escondessem a raiva em seus olhos.
Ainda ao telefone, a Baronesa a despachou com um aceno de
mão, nem sequer olhando-a nos olhos. E, simples assim, Estella foi
dispensada pelo resto do dia.
E aquilo era perfeito, pois tinha que voltar para o Covil. A
Baronesa iria a um evento naquela noite, e depois do dia que tivera,
Estella estava pronta para deixar Cruella à solta para causar um
pequeno estrago na moda.
A Baronesa estava se cansando de Cruella.
A mulher misteriosa tinha arruinado outro evento. Enquanto a
Baronesa estava em outro tapete vermelho, posando para os
paparazzi e ignorando o resto da multidão, um enorme caminhão de
lixo tinha aparecido. Estampado na lateral do veículo estava o
logotipo da Baronesa. A estilista testemunhara, momentaneamente
sem palavras, o caminhão de lixo dar ré em direção ao tapete. A
imensa carroceria se erguera e logo se inclinara, espalhando
dezenas de vestidos, os vestidos da Baronesa, no chão como se
fossem, bem... lixo.
Enquanto os paparazzi se viravam para começar a fotografar o
lixo em vez da Baronesa, os vestidos começaram a se mover. Um
instante depois, Cruella emergiu da pilha de roupas. Em um vestido
estonteante, presumidamente feito por ela mesma, a mulher tinha
erguido os braços e acenado para a multidão. Um holofote apareceu
de algum lugar, iluminando-a e fazendo-a parecer um troféu sobre
uma pilha de lixo. Cruella saltou para o caminhão de lixo, deu um
último adeus ao descer pela rua, puxando os vestidos a reboque
como uma cauda.
A Baronesa assistiu, furiosa. Por que Cruella continuava roubando
seus holofotes?
Ainda estava possessa na manhã seguinte, quando seus dois
guarda-costas mais confiáveis apareceram no escritório. Afastando
o foco da pilha de jornais, atirou um olhar para os homens. Apontou
para os folhetins. Todos tinham fotografias de Cruella estampadas
na primeira página.
– Vocês a encontraram? – perguntou.
Os dois balançaram a cabeça.
– Ela é um fantasma – disse um deles.
Não era a resposta que a Baronesa queria. Estava prestes a
direcionar a fúria para eles quando a porta do escritório voltou a
abrir. Roger entrou aos tropeções. O advogado parecia cansado, as
roupas, amarrotadas e o cabelo, uma bagunça. Ele tinha, sob
ordens da Baronesa, passado a noite em claro tentando descobrir
alguma coisa sobre a misteriosa Cruella.
– Novidades? – perguntou a Baronesa. Não se importava se ele
estava cansado. Era o trabalho dele ficar cansado para que ela não
tivesse que ficar.
Assim como os seguranças, ele meneou a cabeça.
– Não descobri nada sobre ela – respondeu, nervoso.
A raiva inundou a Baronesa. Era possível que todos ao seu redor
fossem completamente incompetentes? Mandando que a dupla de
seguranças saísse, virou-se para fazer a mesma coisa com Roger,
mas, nesse momento, seu olhar pousou nos créditos do artigo mais
recente sobre Cruella no Tattletale. O nome de Anita Darling saltou
aos seus olhos.
A Baronesa fez uma pausa, refletindo. Ela sempre dizia que, se
você queria que algo fosse bem-feito, você mesmo tinha que fazer.
Levantando-se, fez sinal para que Roger a seguisse. Faria uma
visitinha a Anita Darling.
Talvez assim conseguisse algumas respostas.

Anita Darling estava cansada, mas feliz. Toda a cobertura de Cruella


tinha lhe dado uma vantagem com a chefia, e estava recebendo
mais e mais matérias. Inclinada sobre um espelhinho na mesa,
aplicou mais uma camada de rímel. Era para estar a caminho de um
evento no centro, e já estava atrasada.
Ao ouvir passos, olhou para cima e engoliu em seco. Era a
Baronesa.
Fazendo uma varredura ao entrar nos escritórios do Tattletale, foi
em direção à mesa de Anita. Atrás dela estavam dois armários
enormes que agiam como guarda-costas. Ao chegar à mesa de
Anita, sem qualquer cerimônia, a Baronesa atirou uma cópia do
Tattletale ali em cima. Então se afastou, cruzando os braços.
– Vai precisar de mais do que delineador, sua coisa sem graça –
apontou a Baronesa, sem qualquer traço de humor na voz. – Você
tem, no entanto, um bom olho para fotos. – Fez sinal para a de
Cruella encarando as duas.
Anita respirou fundo e tentou acalmar o coração acelerado.
– Baronesa – começou, esperando que sua voz soasse calma.
A mulher a ignorou e prosseguiu:
– De repente reparei que, em todas as aparições de Cruella, você
sempre tem a melhor foto. O melhor ângulo. – Ela fez uma pausa e
se inclinou para mais perto. – Como se você estivesse esperando…
Anita engoliu em seco.
– É só sorte, eu acho.
A Baronesa balançou a cabeça. Não acreditava naquela história.
– É como se você soubesse – prosseguiu. – Como se fizesse
parte de tudo. – Os olhos dela se estreitaram e os lábios se
curvaram para dentro. Anita não pôde deixar de pensar que a
mulher se parecia com uma cobra prestes a dar o bote enquanto
sibilava: – Quem é ela? E o mais importante: onde está?
– Eu não sei – respondeu Anita, tentando o seu melhor para soar
convincente. Não poderia pisar na bola com Estella, mas os olhos
da Baronesa a perfuraram, fazendo o seu sangue gelar nas veias e
as bochechas aquecerem. Sob o olhar da mulher, sentiu sua
determinação se esvaindo.
– Você acabou de mentir para mim? – rosnou a Baronesa.
A mulher era uma força da natureza. Poderia arruinar sua
carreira, sua vida.
– Eu… eu… – titubeou, tentando pensar em alguma coisa,
qualquer coisa, para dizer e se livrar daquela situação.
– Não chore – disse a Baronesa.
Anita inclinou a cabeça, confusa.
– Eu não estou chorando – rebateu.
Virando-se para ir embora, a Baronesa suspirou.
– Você vai – proferiu, deixando bem claro o que estava querendo
dizer.
Se Anita não confessasse e a ajudasse, ela se arrependeria.
Observando a mulher desfilar em direção aos elevadores, Anita
soltou a respiração em um silvo. Tinha conseguido manter a
identidade de Estella em segredo, por enquanto, mas não tinha
certeza de por quanto tempo poderia proteger a amiga. Quando a
Baronesa queria alguma coisa, ela conseguia… qualquer que fosse,
ou quem fosse, o custo.

Deslizando no banco traseiro do carro, a Baronesa rosnou para


Roger. Por ordem dela, o advogado a esperara enquanto ela falava
com Anita. Ele afastou os olhos da papelada e ficou pálido ao
detectar a fúria no rosto da Baronesa.
– Precisamos processá-la – vociferou. Começou a recitar uma
lista dos possíveis crimes que Anita tinha cometido. – Difamação.
Cárcere privado. Vandalismo. Qualquer coisa!
Desconfortável, Roger se remexeu no assento. A raiva da
Baronesa preenchia o espaço, e ele sentiu o sangue ser drenado de
seu rosto. A mulher o encarou, esperando.
– Bem, nós realmente não… – começou. A Baronesa lhe lançou
um olhar vazio, e ele se apressou: – Repassamos as leis e falamos
com a polícia, não tenho certeza de quais são as nossas vias
legais…
A Baronesa o interrompeu.
– Preciso que você pare de falar, Roger.
Ele pareceu surpreso.
– Precisa?
Ela fez que sim. Tinha lhe pedido para fazer uma única tarefa:
encontrar uma forma de livrá-la do estorvo conhecido como Cruella.
Ele falhara.
– Você está demitido – declarou simplesmente. O semblante de
Roger ficou abatido, mas a Baronesa não sentiu nada. Ele não era
nada para a mulher. Pouco se importava se o homem acabasse
tocando músicas tristes no piano para ganhar uns trocados.
Apontando para a porta, deixou claro que ele precisava sair.
Roger lutou contra a maçaneta, sua mão tremendo. A porta não
abria.
– Desculpe – disse ele. – Mas como se abre esta porta?
A Baronesa reprimiu um gemido. Será que o homem não
conseguia fazer nada? Puxando a maçaneta mais uma vez, Roger
por fim conseguiu abrir a porta e sair do carro. Virando-se, ele
começou a dizer alguma coisa, mas a Baronesa o deteve com um
olhar. Tinha afazeres a cumprir, pessoas a ver, e Roger não era
mais uma delas.
Batendo a porta na cara dele, fez sinal para o motorista arrancar.
Precisava voltar para o galpão e consertar a situação antes que ela
saísse ainda mais do controle.
Estella parou perto de sua estação de trabalho no galpão. Seus
olhos estavam colados no quadro do outro lado da sala. Preso bem
no meio estava o seu croqui. Nunca tivera a intenção de permitir que
a Baronesa visse aquele desenho. Era um dos seus, ou de Cruella.
Às vezes, Estella não sabia dizer quem ela mesma era quando
estava no meio do processo de criação. De qualquer modo, quando
a Baronesa o arrancara do bloco de desenho, ela o reivindicara para
si. Estella não sabia o que a irritava mais: o fato de a Baronesa ter,
tecnicamente, o direito de fazer aquilo, ou o fato de que tinha sido
tola o bastante para colocar o desenho numa posição tão
vulnerável, para início de conversa.
Ouvindo passos furiosos, Estella se virou para ver a Baronesa
entrar feito um furacão na área dos estilistas. Na mesma hora,
Estella fingiu contemplar, atenta, o pedaço de tecido que segurava.
– Onde está a pedraria para o vestido? – a Baronesa ladrou ao
passar por Estella.
– Encomendada – respondeu Estella. – Só esperando o imbecil
do entregador. – Assim que as palavras escapuliram de seus lábios,
Estella reprimiu uma exclamação. Sem querer, ela as tinha dito na
voz de Cruella. Os passos da Baronesa ficaram mais lentos.
Nervosa, Estella prendeu o fôlego, esperando para ver se a chefe
tinha notado. A mulher lhe lançou um olhar, mas então, com um dar
de ombros, seguiu em frente. Estella soltou o ar. Tinha sido por
pouco. Precisava ser mais cuidadosa. Um passo em falso e
acabaria revelando sua identidade e arruinaria o próprio futuro em
vez do da Baronesa.
Ela viu Horácio, vestido com um uniforme de entregador,
empurrando um carrinho em sua direção. Uma caixa estava no topo.
Ao vê-lo, Estella sorriu.
– A melhor das manhãs, moça – disse Horácio, cumprimentando-
a com um sotaque ridículo. Ele apontou para a caixa com a cabeça.
– Trouxe alguns itens de moda da mais alta moda.
– Obrigada, belo entregador – respondeu ela, ganhando um
sorriso de Horácio. Nunca o chamara de belo na vida.
Olhando ao redor para ter certeza de que ninguém ouvia, Horácio
se aproximou.
– Como você está?
– Não saia da personagem – ela sibilou de volta. Estella sabia que
a reação tinha sido brusca, mas ele tinha que saber o que estava
em risco. Eles estavam na toca da serpente. A Baronesa poderia
aparecer a qualquer momento.
Ele deu um passo para trás, surpreso pela peçonha do seu tom.
– Eu? Sair da personagem? – retrucou ele. – Você me chamou de
belo. – Dando de ombros, ele voltou para o tom normal de conversa
e apontou para a caixa. – Tudo certo, moça. Aqui está, dê uma
olhada. – Abrindo a tampa da caixa com um pé de cabra, ele
revelou o conteúdo.
Lá dentro, dúzias e mais dúzias de belas contas iridescentes
brilhavam e reluziam. Estella prendeu a respiração. Eram as coisas
mais lindas que já tinha visto. Melhor do que as imaginara quando
as encomendara.
As pedras fariam qualquer vestido brilhar, e uma criação dela?
Seria única. Erguendo os olhos, Estella notou que Horácio também
estava pasmo com a beleza delas. Estella sorriu, os dedos coçando
para tocá-las, mas, ao sentir os olhos de alguém sobre ela, Estella
olhou para cima. Viu que lá de dentro do escritório, a Baronesa a
encarava, o olhar frio e calculista.
Estella engoliu em seco.
Dispensando Horácio, voltou o foco para a pedraria. Era hora de
trabalhar. Puxando um manequim até a sua estação, Estella se
sentou e começou a costurar. Não demorou muito até que ela
entrasse no ritmo da criatividade. O som das máquinas de costura
se esvaneceu. A conversa virou um chiado de fundo. Não notou
que, um a um, os outros estilistas haviam juntado seus pertences e
ido para casa. Peça a peça, Estella pespontou e costurou, tecendo
uma conta iridescente atrás da outra no vestido que nascia.
O sol se pôs e as estrelas apareceram, e Estella ainda trabalhava.
Ignorou o pessoal da limpeza noturna, erguendo os pés enquanto
eles varriam os pedaços de tecido descartados abaixo dela. Sequer
deu atenção ao próprio estômago roncando ou à dor cada vez maior
entre as omoplatas quando se curvava. Foi engolida pela criação.
Estava produzindo algo brilhante; algo belo, algo único.
Finalmente, quando os primeiros pássaros gorjearam a canção da
manhã, Estella se recostou. Esticando os braços por sobre a
cabeça, encarou o vestido diante de si. Era a peça mais incrível que
já tinha criado. As linhas estavam firmes; os pontos, invisíveis.
Reluzia e brilhava sob a iluminação do galpão, quase parecendo
saltar à vida. Estella sorriu, inundada de orgulho.
E agora teria que entregá-lo à Baronesa.
Quando a mulher e o restante da equipe de estilistas por fim
chegaram, Estella praticamente dormia em pé. As horas insones se
faziam perceber, mas, ao ouvir a voz da chefe, o foco voltou num
estalo.
Entrando a passos lentos na área dos estilistas, a Baronesa abriu
caminho até Estella e o vestido. A mulher não abriu a boca ao
rodear o manequim. Por trás dela, Estella percebeu os outros
estilistas se aproximando. Ao ver a Baronesa e o vestido, eles
começaram a cochichar um com o outro, maravilhados.
Enfim, a Baronesa terminou a inspeção.
– Ora, eu consegui de novo – disse a mulher, lançando a Estella
um olhar que a desafiava a contradizer a declaração. – Vamos fazer
história. Meu melhor desfile de todos os tempos. Estella – adicionou,
fazendo sinal. – Venha comigo. Preciso de uma bebida.
Precisa?, Estella questionou, amarga. Eu que fiz todo o trabalho,
mas manteve os pensamentos para si e, em vez de dizer alguma
coisa, dando uma última olhada para o vestido, seguiu a mulher até
o carro.

Estella e a Baronesa se sentaram em uma mesa de canto nos


fundos de um dos restaurantes mais elegantes de Londres. Diante
delas, um garçom nervoso lutava com a garrafa de champanhe. Sob
o olhar gelado da Baronesa, a mão do atendente tremia enquanto
ele tentava puxar a rolha, mas ela não se movia. Cada vez mais
impaciente, a Baronesa se inclinou e agarrou a garrafa.
– Dê isso para mim – disse com rispidez. Com um movimento
suave e muito bem treinado, estourou a rolha, fazendo-a voar direto
para as costas do garçom, que se retirava. A Baronesa não
desperdiçou um segundo. Servindo-se de uma taça, ofereceu outra
a Estella.
– A mim – brindou a mulher, erguendo a taça.
Estella não conseguiu evitar. Riu.
A Baronesa lhe deu uma olhada.
– A quem mais eu beberia? – perguntou.
– A mim? – sugeriu, corajosa. – Por criar a peça conceitual?
A Baronesa dispensou a sugestão com um gesto de mão.
– Você me é útil, nada mais – pontuou ela. – Assim que não for
mais, virará poeira.
– Conversa inspiradora. Obrigada. – Estella não conseguiu se
segurar. A mulher era incorrigível.
O sarcasmo, no entanto, não foi captado pela Baronesa.
– Não podemos nos importar com qualquer outra pessoa, porque
todos são um obstáculo – observou ela. A chefe deu um gole no
champanhe e prosseguiu: – Ao nos importarmos com os
sentimentos e os desejos do obstáculo, estamos liquidados. Se eu
tivesse me importado com qualquer um ou com qualquer coisa,
talvez tivesse sido liquidada, como muitas outras mulheres
brilhantes com uma gaveta cheia de genialidades escondidas e um
coração cheio de amargura deprimente. – Estella ficou surpresa. A
Baronesa estava mesmo soando… humana. As palavras que se
seguiram a surpreenderam ainda mais. – Você tem talento para a
sua própria marca. A grande questão é se você tem instinto
assassino.
Ambas sabemos que você tem, pensou Estella, visualizando a
mãe. Mas, em voz alta, limitou-se a dizer a verdade.
– Espero que eu tenha.
A Baronesa assentiu rapidamente.
– Resposta correta. Muito bem – elogiou. – Só precisamos nos
livrar dessa tal de Cruella. Não acha?
– Acho que você odeia essa mulher – apontou Estella, esperando
que o rosto não tivesse corado com a menção do seu alter ego.
– Para ser sincera? Estou em conflito – respondeu a Baronesa
depois de um instante. – Ela é boa. Corajosa e brilhante, mas fez
com que isso se tornasse uma questão de escolher entre mim e ela,
então terei que destruí-la. – Levando a taça aos lábios, a Baronesa
nivelou o olhar com o dela.
Nervosa, Estella se remexeu no assento. Havia algo nos olhos da
Baronesa de que ela não gostava.
– Tim-tim – disse a Baronesa.
Tocando a taça na da mulher mais velha, Estella brindou também.
Sua mão estava firme, mas, por dentro, ela tremia. Será que a
Baronesa conhecia a sua verdadeira identidade? E se soubesse, o
que faria com aquela informação?
Ao menos daquela vez, Gaspar ficou feliz pelas nuvens que
pareciam estar sempre pairando no céu de Londres. Elas encobriam
a lua, deixando a noite ainda mais escura e mantendo Horário e ele
nas sombras ao esperarem na cobertura do galpão da Baronesa.
De acordo com as instruções de Estella, eles teriam que entrar e
fazer parecer que Cruella tinha invadido o lugar. Ao fitar Horácio,
Gaspar assentiu. Estava na hora. Puxando a corda presa ao redor
de sua cintura para verificar se estava firme, Gaspar respirou fundo
e saltou pela claraboia aberta. Horácio foi logo atrás, embora não
fosse tão gracioso quanto o amigo.
Aterrissando no meio do ateliê dos estilistas, ambos ficaram
parados por um instante, seus olhos esquadrinhando o local à
procura dos vigias. A única luz vinha da porta aberta da sala de
segurança. Através dela, Gaspar podia discernir um segurança de
cabeça abaixada.
– Dormindo em serviço – disse Gaspar, contente.
– Impossível conseguir um funcionário decente hoje em dia –
respondeu Horácio.
Gaspar fez que sim, concordando. Então, mantendo um olho no
vigia, pôs as mãos na massa: foi até um manequim e o derrubou.
Como o primeiro dominó em uma fileira, o manequim caiu e
derrubou o seguinte, que tombou sobre o seguinte, e com um
estrondo poderoso, meia dúzia de formas vestidas se espatifou no
chão.
A cabeça de Gaspar virou bruscamente em direção ao vigia. O
homem não se moveu.
Olhando ao redor da sala, Gaspar assentiu satisfeito para
Horácio. Os manequins caídos com certeza chamariam a atenção
da Baronesa. Tinham feito o trabalho. Agora tinham que dar o fora
dali. Agarrando as cordas, os rapazes escalaram para fora do
galpão. Era hora de ir para casa antes que corressem o risco de
serem pegos.

Na manhã seguinte, Estella ficou nervosa ao entrar no galpão. A


conversa com a Baronesa no restaurante havia se repetido
continuamente em sua cabeça a noite toda. Estava preocupada com
a possibilidade de a mulher estar atrás dela. Estella só precisava
que a identidade de Cruella permanecesse em segredo por um
pouco mais de tempo. E precisava das travessuras noturnas de
Gaspar e Horácio para ajudar com o subterfúgio. A Baronesa
acreditaria que Cruella tinha invadido o lugar? Ou pensaria que
Estella estava envolvida de alguma forma?
Conseguiria suas respostas em breve.
Ao subir as escadas até o escritório da chefe para fazer as
verificações matutinas, Estella encontrou a mulher de pé, com os
braços cruzados, enquanto os seguranças guardavam a nova
coleção de vestidos em um cofre portátil.
– O que está acontecendo? – perguntou Estella, esperando soar
curiosa, não preocupada.
A Baronesa sequer olhou para trás ao responder:
– Ela tentou invadir o galpão na noite passada.
Então os meninos tinham feito o trabalho. Aquilo era bom! Mas
Estella precisava saber mais.
– Quem? – perguntou. Por favor, diga “Cruella”, por favor, diga
“Cruella”, acrescentou silenciosamente.
– Cruella.
Estella tentou esconder o alívio do rosto. Sua identidade
permanecia em segredo.
– Faz sentido – prosseguiu a Baronesa, absorta demais em si
mesma para notar a reação de Estella. – É um vestido estonteante e
absurdamente caro. Cruella jamais poderia se dar ao luxo de fazer
uma peça assim, mas aquela mulher não tem um pingo de
vergonha. Ela que roube a minha criação… – A Baronesa parou e
então encontrou o olhar de Estella. Seus olhos eram frios e estavam
cheios de desafio. – Quer dizer, teria sido uma ótima ideia, não é?
Se você fosse ela?
Estella mordeu o interior da bochecha. Não deveria ter pensado
que estava fora de perigo. Era óbvio que a Baronesa estava
sondando, na tentativa de fazer Estella confessar, mas ela não abriu
a boca. Limitou-se a sorrir, à espera de que a reação tivesse sido
neutra o suficiente.
A Baronesa deu de ombros.
– Por sorte, eu tinha minha equipe de segurança de primeira e em
alerta máximo.
Pelo que Gaspar e Horácio tinham lhe contado sobre a curta
incursão até o galpão na noite anterior, a “equipe de segurança de
primeira” estava mais para “um único guarda cochilando”, mas
achou melhor não mencionar aquilo. Em vez disso, Estella elogiou:
– Você sempre está um passo à frente.
– Ela é jovem e muito esforçada – expressou a Baronesa. – Mas
encontrou uma rival à altura, e descobrirá o fato em breve.
Com um aceno, o último dos vestidos foi posto no cofre. A porta
enorme se fechou com um tinido, trancando todos eles em
segurança lá dentro, incluindo a obra de arte de Estella. Satisfeita, a
Baronesa se virou e saiu da sala. Os seguranças a seguiram.
Estella ficou para trás por um momento, os olhos colados no
cofre. Uma jovem costureira que ficara escondida no canto se
levantou ao comando da Baronesa e também deixou o ambiente.
Enquanto ela passava, Estella sorriu; e tirou um alfinete da
almofadinha presa no pulso da mulher.
Que a Baronesa pensasse que Cruella encontrara uma rival à
altura. Era mais fácil ganhar quando o oponente pensava ter a
vantagem. E Estella ia ganhar. Custasse o que custasse.

Mais tarde naquela noite, Estella estava curvada sobre sua área de
trabalho no Covil. Uma fila de vestidos, sua própria coleção, estava
pendurada em araras, esperando por Artie e as outras costureiras
que ele traria para ajudar a passá-los para o “desfile” final. Ao
desligar o vaporizador de roupas, Artie se espreguiçou, soltando um
bocejo. Estava tarde. Estella sabia que deveria seguir o exemplo de
Artie e ir descansar, mas tinha mais trabalho a fazer.
Do outro cômodo, ouviu o som da televisão enquanto Horácio
assistia a uma partida de futebol e falava com os dálmatas. Os
animais enormes tinham começado a gostar muito de Horácio e
passavam a maior parte do tempo colados nele. Antes de descobrir
a verdade sobre a Baronesa, Estella poderia muito bem ter se
juntado a Horácio. Teria vibrado ao lado dele enquanto o time para o
qual torciam jogava, talvez tivesse adormecido no sofá, mas as
circunstâncias eram diferentes agora. Ela era diferente. Tudo o que
importava era se vingar.
Ao ouvir passos, Estella não olhou para cima enquanto Gaspar
punha uma xícara de café quente diante dela.
– Boa noite – desejou ele, baixinho.
Ainda assim, ela não olhou para cima enquanto passava a agulha
pelo tecido em sua mão. Era o último ponto no último vestido. A
coleção em que tinha trabalhado a cada noite desde o “nascimento”
de Cruella estava quase completa. Precisava se concentrar, mas
podia sentir os olhos de Gaspar sobre si.
– O que foi? – inquiriu.
– Onde você está? – perguntou ele, parecendo preocupado.
Aquilo irritou Estella.
– Bem aqui – respondeu ela, mordaz. – Trabalhando para cumprir
um prazo.
Gaspar balançou a cabeça.
– Sinto saudade da Estella – confessou ele.
Na outra sala, Horácio gritou feliz quando seu time marcou um
gol. Os cães se juntaram a ele, latindo. Estella se virou, irritada com
o barulho. Encarou os três cachorros por um instante.
– Eles dariam um casaco excepcional – disse ela, por fim. Gaspar
pareceu horrorizado e ela riu. – Estou brincando! – Mas o sorriso
não alcançou os olhos e a expressão de Gaspar continuou a
mesma. Ele queria falar sobre as coisas das quais sentia falta?
Bem, Estella estava com saudade do Gaspar que tinha senso de
humor. Não faria mal a um cachorro só para fazer um casaco,
mesmo que ele tivesse pintas maravilhosas.
Gaspar suspirou e disse:
– Você sabe que coisas ruins aconteceram com todos nós.
Comigo. Com você. Sempre estivemos aqui para apoiar um ao
outro.
Estella ouvira o suficiente. Não precisava que Gaspar a fizesse se
sentir culpada naquela, dentre todas as noites. Ele estava certo.
Coisas ruins tinham acontecido com eles. Então por que ele não
deixava que ela encontrasse uma forma de consertar tudo?
– É tudo o que peço – rebateu ela. – É tão difícil assim me apoiar?
Me dar cobertura?
– Para ajudar Estella? Não – disse Gaspar. – Isso é fácil. Ajudar
Cruella? É um pesadelo.
– Você e essas suas sutilezas! – gritou Horácio da outra sala. – É
pior que isso.
Estella deu uma olhada feia para Horácio, que ele não conseguiu
ver. Então olhou para Gaspar.
– Cruella põe os planos em prática – explicou com naturalidade. –
Estella, não. E eu tenho coisas a fazer. – Voltou-se para o vestido
que tinha em mãos, esperando que Gaspar pegasse a deixa. Ele
não pegou. O rapaz continuou a encará-la, com uma expressão que
ela não conseguia definir, mas da qual, com certeza, ela não tinha
gostado. – Então, se já acabou o assunto…? – disse ela, direta. Ele
continuou sem se mover. Imitando a Baronesa, Estella adicionou: –
E quando eu disse se, eu quis dizer acabado.
Gaspar suspirou. Ele enfim entendera. Ao virar-se para sair, ele
parou, como se quisesse dizer mais alguma coisa, entretanto, com
uma sacudida de cabeça, foi em direção ao sofá. Ótimo, Estella
pensou ao se virar para o vestido. Enfim, paz. Um momento depois,
no entanto, um dos dálmatas entrou e se acomodou na almofada ao
seu lado.
Estella ergueu uma sobrancelha. Com certeza a criatura não tinha
ouvido a piada.
– E não é que você é corajoso? – perguntou. Então, com um
sorriso, voltou ao trabalho.
Que Gaspar ficasse chateado com ela. Que Horácio tivesse
medo. Não se importava. Não agora. Em breve eles veriam que ela
estivera certa o tempo todo, e que a vingança seria o melhor golpe
que já tinham posto em prática.
Era a noite perfeita. O ar normalmente úmido e frio de Londres dera
lugar a uma noite confortável e agradável. Até mesmo as estrelas
tinham aparecido, tanto as reais quanto as versões em
celebridades. Em frente ao galpão da Baronesa, uma multidão tinha
começado a se reunir, ansiosa para assistir à revelação da última
coleção da estilista. Os rumores estavam a toda: a coleção seria
magnífica, a melhor até então. A coleção seria terrível… obsoleta e
apressada, por causa de Cruella.
A Baronesa ignorou todos os boatos. Sabia que sua coleção era
estelar. E o vestido que seria o símbolo conceitual daquela coleção
iria surpreender a quem tinha dito o contrário. Agora só precisava
liberar a coleção para o mundo.
De pé no alto das escadas do escritório, a Baronesa observou
enquanto seus asseclas corriam para lá e para cá, à procura de
deixar tudo em ordem antes de permitirem a entrada dos
convidados. O cofre tinha sido levado para o andar principal do
galpão e naquele instante estava escondido atrás de uma cortina,
esperando o momento em que o seu precioso conteúdo seria
revelado. Por ordem sua, o ateliê dos estilistas fora transformado.
As mesas tinham sido removidas e os painéis, retirados. No lugar
deles, pendurou-se luzes; no lugar das mesas agora estavam as
cadeiras, que rodeavam a longa passarela. Parecia requintado e
industrial ao mesmo tempo. A Baronesa estava feliz, tão feliz quanto
se permitia ficar. Mesmo lá de dentro, sentiu que a multidão
aumentava e se agitava. Àquela altura, os convidados VIP já deviam
estar chegando. Ela os faria esperar. Um bom lembrete de que era
ela quem estava no controle.
Ao seu lado, os olhos de John esquadrinhavam a sala. O rosto do
criado estava, como sempre, inexpressivo. Para ele, cada
trabalhador lá embaixo era um risco potencial para a segurança ou
um indivíduo que talvez fosse aborrecer a patroa. Normalmente, a
Baronesa gostava da meticulosidade dele, mas naquele momento
não se importava com todos os funcionários. Importava-se só com
uma.
– Quando Estella chegar, escolte-a até o meu escritório e a
mantenha lá – deu a ordem. Ela o olhou com suspeita. – Posso
confiar em você desta vez?
Ele não se deu ao trabalho de responder à pergunta. Em vez
disso, repetiu para ela o que vinha afirmando o dia inteiro: Estella
não era Cruella. Não havia como ela ser capaz de realizar as
façanhas da outra.
– Você é pago para dar palpites ou para obedecer? – disse a
Baronesa, quando ele parou de falar.
John abriu a boca, e então pensou melhor. Ele fez que sim.
– Tomarei as providências – respondeu.
A Baronesa o observou descer as escadas. Como ele ousava
questioná-la? Fazia dias que estava encaixando as peças.
Combinando momentos e conectando evidências. Cruella não podia
ser ninguém menos que Estella. Fazia perfeito sentido. Ela tinha
estudado os vestidos de Cruella e visto o mesmo padrão em alguns
dos trabalhos de Estella. E nunca tinha pedido as referências de
Estella. Limitara-se a arrancá-la daquela vitrinezinha idiota e a jogar
o emprego dos sonhos em seu colo. Não tinha ideia de onde aquela
menina tinha vindo. Estella podia muito bem ter a mente perversa
necessária para bagunçar as coisas para ela daquele jeito. Que
John pensasse o que bem entendesse. Não importava, contanto
que o desfile trans-corresse sem problemas.
Ao ouvir o seu nome, ela viu Jeffrey fazendo sinal lá debaixo das
escadas. Suspirou. Será que aquelas pessoas podiam fazer algo
sozinhas? Abriu caminho até o assistente e parou diante dele. O
homem tremia a olhos vistos, e o rosto estava branco feito
fantasma.
– Desembuche! – ordenou.
Mas Jeffrey não era capaz de falar. Ele só tremia e apontava para
a cortina às próprias costas. Passando por ele, a Baronesa puxou o
tecido para o lado só o suficiente para passar. Não queria que o
público visse detalhe algum antes da hora. E quando viu o que
estava do outro lado, ficou feliz pela precaução. Havia um técnico
diante do cofre. Ele mexia no painel de controle, que exibia uns
sinais esquisitos.
Seguindo-a, Jeffrey finalmente encontrou a voz.
– Há algo errado com a fechadura, Vossa Senhoria – disse ele.
A Baronesa engoliu um grito de frustração. Não era idiota! Podia
ver que havia algo errado. O grande problema não era o que, mas
por quê? Por que não estava funcionando? Os convidados estavam
chegando, e o desfile começaria em menos de uma hora.
– Eu não me importo com o que precise ser feito, abra-o!
Mas, uma hora depois, o cofre ainda não tinha sido aberto, e a
multidão estava cada vez mais inquieta. A nata das pessoas mais
importantes da indústria da moda se remexia em suas cadeiras
desconfortáveis. Tinham ido para um desfile, mas, até então, tudo o
que viram era uma passarela vazia. Uns poucos repórteres mais
ousados anotavam suas observações e pediam declarações.
Espiando de trás da cortina, a Baronesa fez uma careta. Não
conhecia os repórteres nem tinha controle sobre o que as pessoas
estavam dizendo. Precisava começar o desfile, e naquele instante!
Virando-se para o técnico, o empurrou para o lado. O trabalho
sempre sobrava para ela. Abaixou-se e pegou o maçarico que
pedira para John arranjar. Entregando-o para o chefe da segurança,
ela acenou e o homem acendeu o fogo. Do outro lado da cortina, os
convidados arfaram ante o vislumbre de uma forte luz vermelha.
Pouco a pouco, a chama cortou as dobradiças. A Baronesa não
parou de olhar para a porta enquanto, centímetro a centímetro, a
chama fazia o seu trabalho. Finalmente, com um rangido alto, a
dobradiça se partiu e a porta caiu no chão. Tinham conseguido!
Ela suspirou de alívio ao parar na porta do cofre aberto, mas a
sensação só durou um instante. Ficou horrorizada quando viu que,
em vez de vestidos, uma nuvem de mariposas surgiu em um
tornado de asas. Enquanto as pessoas ao seu redor moviam as
mãos e gritavam, os olhos da Baronesa lançaram um fogo muito
mais quente que o de qualquer maçarico. Ignorando os funcionários
e as mariposas, olhou para o fundo do cofre.
Os vestidos, cada um deles, tinham sido destruídos. Buracos
tinham sido abertos em cada pedaço de tecido, cada manga, cada
corpete, cada cauda. Era um total e completo desastre. À medida
que sua fúria aumentava, a Baronesa olhou para o vestido
conceitual. Ali no meio dos outros, ele ainda era lindo, mas havia
algo diferente nele. Não parecia mais brilhar e resplandecer.
Observando, viu que uma das contas tinha começado a tremer. Um
momento depois, ela se partiu e uma mariposa rastejou de lá.
A Baronesa se encheu de fúria. As pedrarias não eram pedrarias,
afinal de contas! Eram casulos de mariposa, centenas e centenas
de casulos. Muito bem costurados no vestido por aquela desgraçada
da Estella, eram bombas-relógio. E agora tinham explodido e
causado destruição em massa.
Ao passo que as mariposas adentravam ainda mais o galpão, os
convidados começaram a gritar. Cadeiras rangiam enquanto as
pessoas fugiam da infestação. Em questão de instantes, o galpão
ficou vazio.
O desfile da Baronesa acabara antes mesmo de começar.

A Baronesa tinha certeza de que não podia ficar mais enfurecida.


Ver a coleção ser arruinada fez o seu sangue ferver.
E então ela pôs o pé para fora do galpão.
O sangue foi de fervente à total ebulição.
Ao abrir caminho até a rua, viu o último dos convidados fugindo
do seu evento. Como as mariposas das quais fugiam, eles pareciam
ser atraídos pelas luzes que pulsavam e brilhavam no Regent’s
Park. A Baronesa fechou a cara. O que estava acontecendo?
Subindo as escadas em direção à grande varanda do seu
escritório, a Baronesa observou o parque. Uma enorme multidão se
formara ao redor do chafariz. Todos os olhos estavam fixos no
espetáculo que acontecia diante deles: um fantástico, alto e
estridente, brilhante e ousado desfile de moda ao som de pop e
rock. Modelos desfilavam ao redor do chafariz, trajando roupas
descoladas – o exato oposto das peças clássicas de alta-costura da
coleção da Baronesa.
A multidão vibrava e ia ficando mais animada com a revelação de
cada modelo extravagante. Enquanto a Baronesa examinava o rosto
de cada um ali, sua fúria crescia. Aqueles eram os seus convidados,
a elite do mundo da moda, que deveria estar presente no seu
desfile. Em vez disso, estavam lá fora na noite gélida, assistindo
àquele pesadelo em néon, e gostando do que viam. Os olhos
continuaram a vagar, e ela identificou Anita Darling tirando fotos ao
lado de uma dupla de valentões.
Deviam ser moradores de rua, a Baronesa pensou com
indiferença.
– A batida é boa.
Ela chicoteou a cabeça para a direita. John tinha vindo e estava
de pé ao seu lado, seus olhos na multidão no parque. Ela lhe lançou
um olhar furioso. Consideraria seriamente a possibilidade de demiti-
lo. Ele deveria ter tido o bom senso de não dizer nada bom sobre o
fiasco que estava se desdobrando diante dela.
Assim que a Baronesa abriu a boca para falar com rispidez, uma
pessoa apareceu no início da passarela improvisada. Um feixe de
luz a iluminou enquanto caminhava pelo longo passadiço e, ao
chegar ao final, virou para a esquerda, depois para a direita. A luz
continuava a segui-la, perto o suficiente a ponto de oferecer
vislumbres de seu traje, mas não o suficiente para mostrar o rosto.
O indivíduo girou e se pavoneou para a multidão ávida e, enfim,
inclinou-se em uma reverência. Quando se levantou, a luz banhou o
seu rosto. A Baronesa arfou. Era Cruella! E usava um casaco de
pelo com pintinhas pretas e brancas, um casaco que parecia ter sido
feito de um dálmata! Quando a multidão começou a arfar e aplaudir,
Cruella ergueu o braço, imergindo-se nos louvores.
– Este é o futuro! – gritou ela. Enquanto as palavras ecoavam
pelo parque, à distância vinha o familiar lamento das sirenes da
polícia.
Na mesma hora, um dos rapazes com cara de morador de rua
apertou um botão e as luzes se apagaram. Um instante depois, a
música parou de tocar. As modelos, a multidão e Cruella se
espalharam, desaparecendo na escuridão. Os dois rapazes de rua
hesitaram, olhando ao redor como se tentassem se certificar de que
nada fora deixado para trás. A Baronesa observou a dupla de perto.
Talvez aqueles rapazes fossem mais importantes do que ela havia
pensado.
– Ela matou os meus cães… – sussurrou a Baronesa. Até mesmo
com as luzes apagadas, a imagem de Cruella trajando o casaco de
dálmata ficou gravada a fogo em seu cérebro. A dissidente tinha ido
longe demais. Uma coisa era mexer com ela, outra completamente
diferente era mexer com os seus cães.
A Baronesa tinha cansado das escaramuças. Cruella queria
briga? Pois ela teria uma guerra. Virando-se para John, deu a ordem
para que ele seguisse os meninos. Tinha a sensação de que, aonde
quer que eles fossem, Cruella talvez os seguisse.
Cruella estava nas nuvens. Seu espetáculo tinha saído às mil
maravilhas. Mesmo a polícia tendo escutado rumores, eles não
haviam chegado a tempo de arruinar sua aparição final. Ela sabia
que, de algum lugar, a Baronesa tinha assistido, o que fora o seu
plano o tempo todo, e só desejava ter podido ver o olhar no rosto da
mulher quando apareceu usando o casaco de dálmata.
Sabia que Gaspar e Horácio deviam estar bravos com ela por não
ter se juntado a eles e voltado para o Covil, mas já não dava a
mínima. Estava empolgada demais para dormir, feliz demais para
encarar os rostos azedos e as palavras de precaução. Sabia que
estava enfrentando um monstro e que deveria ser cuidadosa, mas
naquela noite só queria relaxar. O estômago roncou. E comer,
adicionou para si mesma. Queria relaxar e comer.
Olhando pela rua, viu um restaurante indiano com a placa de
aberto ainda acesa. Perfeito. Foi até lá e entrou na fila. Estava
surpreendentemente cheio para o meio da noite. Reparou na
televisão em um canto. O âncora do jornal estava dando as últimas
notícias do dia. Cruella acompanhou com interesse.
– No maior escândalo da moda desde que Yves Saint Laurent foi
declarado morto por engano – dizia o âncora –, a Baronesa von
Hellman cancelou o desfile depois que um enxame de mariposas
comeu toda a sua coleção.
Estella sorriu. Ainda estava satisfeita com aquela manobra.
Ninguém jamais teria esperado que ela conhecesse uma espécie de
mariposa que se enclausurava em um casulo de contas brilhantes.
Se pudesse, teria se dado um tapinha nas costas; mas, como
naquele momento suas mãos estavam cheias de comida indiana,
em vez disso, voltou a prestar atenção na TV.
– Talvez as mariposas soubessem de alguma coisa – a repórter
de moda disse –, porque não há dúvida de que a Casa da Baronesa
está velha e bolorenta em comparação à explosão do novo ícone da
alta-costura, Cruella, no que só pode ser descrito como o motim da
moda no Regent’s Park.
Estella não precisava ouvir mais nada. “Novo ícone da alta--
costura.” Brilhante. Era tudo com o que tinha sonhado e mais. Não
poderia ter dado mais certo. O pensamento a fez sentir
momentaneamente culpada. Não teria sido capaz de fazer aquilo
sem Gaspar, Horácio e Artie. Ao voltar para o balcão, pediu mais
comida. Eles poderiam estar bravos, mas quem poderia continuar
bravo quando ela levasse comida indiana para casa?
Flutuando para fora do restaurante e descendo a rua, voltou
rapidamente para o Covil. Mal podia esperar para ver os rapazes.
Queria saber de tudo. Quem eles tinham visto? Que novidades
tinham? Como conseguiram dar o fora de lá sem serem notados?
As sacolas de comida para viagem balançavam ao seu lado e ela
teve que se segurar para não dar pulinhos pelos degraus quando
chegou ao Covil.
Abriu a porta e ergueu os braços em triunfo.
– A rainha está morta! Vida longa à rainha… – Assim que
acendeu as luzes, sua voz esvaneceu.
Horácio e Gaspar estavam amarrados a cadeiras, com as mãos
atadas e amordaçados. A pele ao redor do olho de Horácio estava
ficando roxa e o sangue estava seco no canto de sua boca. Estava
óbvio que ele tinha sido espancado. Atrás deles estavam dois
homens grandes, com os punhos cerrados e a expressão
indiferente.
– Cruella.
Ao ouvir o seu nome, ou melhor, o seu outro nome, Estella se
virou devagar. A Baronesa estava atrás dela, flanqueada pelos
dálmatas. A luz que emanava da janela enorme lançara o rosto dela
nas sombras, mas Estella podia sentir o veneno jorrar. Na jaula que
tinham usado para transportar os dálmatas, Buddy e Wink agora
ganiam nervosos. Evidentemente, a mulher tinha somado dois e
dois e seguira Gaspar e Horácio até o Covil. Apesar de todo o
planejamento cuidadoso, eles tinham sido pegos.
– Uau – disse Estella quando se recompôs. Não havia mais razão
para ser boazinha e subserviente. – Você é mesmo psicótica.
– Ora, obrigada – agradeceu a Baronesa. – Bondade sua dizer.
Você demonstrou ser uma promessa. Assim como Estella. – Estella
viu que a Baronesa segurava a sua peruca ruiva.
Os olhos dela foram da Baronesa para os amigos. Eles estavam
observando, nervosos e um pouco assustados. Não os culpava.
Todos sabiam do que a Baronesa era capaz, mas ela não recuaria
sem lutar.
– Isso é entre nós – disse Estella. – Soltem Gaspar e Horácio,
energúmenos que são por permitirem que vocês os seguissem. –
Ouviu os amigos protestarem por trás das mordaças, mas os
ignorou. Eles tinham que saber que ela não estava brava de
verdade. Só estava com medo.
A Baronesa deu de ombros.
– Ah, eu vou soltar – disse a mulher. – Mas eles vão para a
cadeia.
– Sob qual acusação? Rapto de cães? Ou melhor, “cãoquestro”?
– Estella caiu na gargalhada.
O canto da boca da Baronesa se ergueu, e a alegria pareceu
preencher os seus olhos. A expressão deixou Estella nervosa, e
com razão.
– Seu assassinato – respondeu ela, corrigindo-a.
– Ninguém acreditará – rebateu Estella, embora soubesse que
não tinha soado convincente.
– Bem, teremos que adicionar o seu corpo carbonizado à mistura
para ajudar no fator credibilidade – disse a Baronesa ao dar de
ombros. Enquanto a mulher falava, um dos guarda--costas rodeou
Gaspar e Horácio por detrás e agarrou Cruella. Enquanto ela se
debatia, o outro arrastou Horácio e Gaspar para fora da sala. Estella
estava impotente para fazer qualquer coisa quando o capanga a
jogou na cadeira e a amarrou.
Com Estella e os rapazes presos, os seguranças pegaram
enormes galões de gasolina e espalharam o líquido pelo chão, pelos
móveis e pelas paredes do Covil. Só levaria alguns instantes para o
lugar pegar fogo assim que o fósforo fosse acesso.
– Você vai me matar só porque eu a ofusquei? – questionou
Estella, lutando contra as amarras.
– Hu-hum – respondeu a Baronesa.
Ao lado dela, os dálmatas avançavam em suas coleiras, tentando
chegar até Buddy e Wink. Foi de partir o coração e, por um
momento, Estella se sentiu mal pelas criaturas. Eles não eram
maus, a dona deles que era. Com um grito, a Baronesa os puxou
para trás e mandou que eles se sentassem.
Estella sacudiu a cabeça. Estava prestes a explodir em chamas.
Não havia razão para não colocar todas as cartas na mesa.
– Eu sei que você matou a minha mãe! – declarou. Aguardou,
esperando que o espanto cruzasse o rosto da Baronesa.
Em vez disso, a mulher lhe lançou um olhar vazio.
– Você terá que ser mais específica.
– O quê? – rebateu Estella, chocada. A mulher quis insinuar que
tinha matado outras pessoas?
Ao que parecia, sim.
– Quem exatamente? – perguntou a Baronesa. – Você terá que
reduzir as opções para mim.
– No penhasco – respondeu Estella. – Você deu a ordem para
que seus cães a atacassem.
A Baronesa assentiu ao fazer a conexão.
– Certo, estou acompanhando agora – disse a mulher. E logo deu
de ombros. – Então você ficou zangada com o acontecido. Daí o
espetáculo que armou?
Estella piscou rapidamente. Bem quando pensou que a Baronesa
não poderia piorar, ela piorava. A mulher era um ser humano
horrível. Um monstro. Um monstro sem consciência. Fúria e tristeza
se espalharam por Estella na mesma medida. O quanto sua vida
teria sido diferente se ela e a mãe nunca tivessem procurado a
Baronesa? A fúria tomou conta e Estella puxou as cordas que a
prendiam.
– Vou matar você! – gritou. – E os seus cães!
A Baronesa levou a mão ao bolso e puxou um isqueiro. Com um
gesto gracioso, fez um movimento com o dedo e a chama escapou
pelo topo.
– Estou esperando – provocou.
Uma sensação de calma preencheu Estella enquanto observava a
mulher segurar a chama. Era hipnotizante e poderoso saber que
não havia nada que pudesse fazer ou dizer naquele momento que
adiantasse alguma coisa. Sua vida seria consumida pelas chamas.
Então podia muito bem mexer com a Baronesa tanto quanto
pudesse até lá.
Ela olhou para os capangas.
– Será que os cavalheiros poderiam me soltar por um momento?
– perguntou. – Tenho certeza de que ela é uma chefe terrível.
Gostaria de oferecer aos dois um novo emprego. Assistência
médica. Quatro semanas de férias. – Nenhuma surpresa: os
homens começaram a pensar no assunto.
Vendo as expressões deles, a Baronesa gritou:
– Basta! – Voltou a encarar Estella. Os olhos se demorando nas
mechas pretas e brancas. – Só para ter certeza, essa é a cor natural
do seu cabelo?
– É – respondeu Estella. – Por quê?
– Por nenhuma razão – disse a Baronesa. Então, com um
movimento do punho, jogou o isqueiro no meio da gasolina. As
chamas se ergueram no mesmo instante. – Adeus, Cruella. – Ela se
virou para um dos capangas e mandou que ele avisasse à
imprensa. Então, enquanto as chamas subiam, acrescentou: – Eu
adoraria que eles soubessem que você partiu num momento de
glória. – Com um aceno da mão e um puxão na guia, a Baronesa
partiu, arrastando os dálmatas consigo e largando Estella para
morrer.
Estella tossiu e engasgou enquanto a fumaça preenchia o
ambiente. Uma coisa era bancar a corajosa destemida na frente da
Baronesa, mas outra muito diferente estando num incêndio. O Covil
virou um inferno. Através do negrume espesso, Estella observou
horrorizada o seu trabalho ser consumido pelas chamas. Os trajes
que fizera ao longo dos anos, os croquis com os quais sonhara
durante a noite, a mobília que ela e os rapazes tinham arrastado lá
para cima com cuidado para ajudar a transformar aquele lugar em
um lar. Estava tudo sendo destruído. E, em breve, Estella se juntaria
a eles. Pensou em Gaspar, Horácio, Wink e Buddy. Sua família. Eles
também seriam dizimados. Os rapazes iriam para a cadeia e os
cães morreriam.
Tudo por causa dela.
Tossindo, Estella lutou para manter a consciência, mas era difícil
demais. Os olhos começaram a fechar, a respiração ficou mais
superficial. Lutando para manter os olhos abertos, ela viu Buddy e
Wink, que através das grades da gaiola, tentavam ajudá-la,
mordendo e roendo as cordas que a prendiam. Então, viu algo nas
chamas, brilhando em uma pilha de cocô. Tentou sacudir a cabeça e
clarear a visão, mas o movimento foi demais para ela.
Escorregou para a inconsciência. Pouco antes de a escuridão a
reivindicar por completo, podia jurar ter sentido braços a envolvendo
pela cintura e a erguendo no ar. Tentou falar, mas as palavras não
saíam. Em vez disso, permitiu que a escuridão a envolvesse.

A garganta de Estella estava ferida. Os olhos ardiam. O corpo doía.


Os pulmões pareciam ter pegado fogo. E parecia que água suja
estava sendo espalhada pelo seu rosto.
Devagar e com cuidado, abriu os olhos. Buddy estava ao seu
lado, lambendo o seu rosto enquanto Wink estava sentado no sofá
onde ela estava deitada. Seu rostinho parecia preocupado e ele
choramingou ao vê-la. Estella se sentou, uma onda renovada de dor
se espalhando por seu corpo e pulmões ao inspirar com hesitação.
Onde estava?
Com certeza não era o Covil. Em um lampejo, lembrou-se do fogo
e da gargalhada maligna da Baronesa deixando-a lá para morrer.
Então, o que tinha acontecido? O cômodo em que estava era
quente e aconchegante, as cores sóbrias e definitivamente
masculinas.
Ao ouvir passos, Estella se empurrou nervosamente contra os
travesseiros. Estava fraca demais para resistir ou fugir. Um
momento depois, o criado da Baronesa, John, apareceu na porta da
sala com uma xícara na mão.
– Chá, srta. Cruella? – ofereceu ele ao ver que estava desperta.
Estella fez que não. Ainda estava inconsciente?
– Você? – Ela se sentou, pegando o casaco, que tinha sido posto
sobre ela como um cobertor, e o abraçou junto ao peito. – Por quê?
Por que estou viva?
– Porque eu a arrastei para fora das chamas e da fumaça antes
que elas a consumissem – declarou sem qualquer alarde. Como se
aquilo explicasse tudo, mas só serviu para encher Estella com mais
perguntas.
– Por quê? – voltou a perguntar. – Você trabalha para ela.
John suspirou e se sentou na poltrona de frente a ela. Recostou-
se e cruzou as pernas. Em seu apartamento aconchegante, ele
parecia diferente. Mais gentil, percebeu Estella, e não tão
assustador. Esperou que ele respondesse; sua mente estava
acelerada por causa da repentina mudança na dinâmica.
Por fim, ele falou:
– Conheci a sua mãe e… – A voz dele ficou tensa. Estella o
encarou. Ele conhecera Catherine? Mais uma vez, Estella tinha
perguntas, mas ele prosseguiu: – Eu não podia permitir que isso
acontecesse. Tenho algo para você. – Levando a mão ao bolso,
John pegou o colar da mãe dela, que resplandecia ao pender de
seus dedos, e o ofereceu.
– Você o encontrou! – Estella arfou, pegando-o com delicadeza.
Ele fez que sim.
– No incêndio. Eu lhe asseguro que ele foi desinfetado várias
vezes. – John sorriu para Estella. – Posso lhe mostrar uma coisa? –
Estendeu a mão.
Estella devolveu o colar para John. Com cuidado, ele começou a
desatarraxar a parte superior do medalhão. Um momento depois,
ouviu um clique e, de lá, ele tirou uma chavinha fina.
– Não sabia que havia uma chave nele – disse Estella, chocada. –
Para que serve?
John não respondeu de imediato. Em vez disso, pegou a chave e
foi até a lareira. Ali, pegou uma caixa antiga, levou-a até Estella e a
colocou sobre a mesinha de centro à frente dela. Em seguida,
entregou-lhe a chave.
– Para isso – respondeu ele.
Estella hesitou e então enfiou a chave na fechadura. Encaixou. Ao
virá-la, a fechadura se abriu num estalo. Estella ergueu a tampa e
viu uma certidão de nascimento. Examinou o papel e viu as palavras
menina e, ao lado de mãe, o nome Baronesa von Hellman.
– A Baronesa tem uma filha? – perguntou Estella, chocada.
John fez que sim.
– Tem – respondeu. – Você.
– Eu o quê? – perguntou Estella, usando as palavras para dar ao
seu cérebro tempo de alcançar a declaração de John. O homem
estava brincando com ela? Aquilo era parte do plano da Baronesa?
Deixá-la pensar que ia morrer e então fazer o seu lacaio lhe dizer
que toda a sua vida tinha sido uma mentira? Mas, ao olhar para
cima, viu que o rosto de John estava muito sério. Não era uma
piada. Ou, ao menos, não uma engraçada.
– Deixe-me contar tudo. – Fechando a tampa, John respirou
fundo. – A Baronesa nunca quis ter filhos – explicou. – Ela é uma
verdadeira narcisista; não consegue amar ninguém além de si
mesma. Mentiu e trapaceou para fazer o velho Barão se casar com
ela. – Naquela parte Estella podia acreditar. Imaginou a Baronesa,
jovem e bela, usando seu encanto para chegar ao coração, e à
fortuna, do Barão. John prosseguiu: – Então, quando descobriu que
estava grávida, ela não ficou nada feliz. O Barão ficou tão feliz com
o bebê que estava por vir que mudou todo o testamento, deixando
tudo para a criança.
Estella sabia que a Baronesa não teria aceitado isso. Não se
quisesse ficar com todo o dinheiro para si. Mas acreditar que era
filha do Barão e da Baronesa von Hellman? Não fazia sentido. Não
podia fazer.
John viu o olhar de dúvida em seus olhos.
– Você é filha dela – confirmou ele. – Eu estava lá quando você
nasceu.
Ele observara naquela noite escura e tempestuosa, enquanto
Estella vinha ao mundo chutando e gritando. O Barão tinha viajado a
negócios e a Baronesa usou aquilo a seu favor. Ela mal olhara para
a criança antes de dar a ordem para John “cuidar do assunto”.
E foi o que ele fez. Saiu com o bebê aos prantos do quarto e fez a
única coisa em que pôde pensar: entregou o bebê, Estella, para
uma das criadas, uma jovem chamada Catherine. Ao ouvir o nome
da mãe, os olhos de Estella se encheram de lágrimas. Na calada da
noite, John tinha dado a Catherine o pouco dinheiro que possuía, e
o colar, e disse para ela ir embora, construir uma vida para si e para
o bebê o mais longe possível da mansão.
Quando o Barão voltou, a Baronesa disse que a criança tinha
morrido.
– Era o que ela esperava que eu tivesse feito – John disse
baixinho, sua voz cheia de emoção. – Então a deixei acreditar que
era verdade. O velho Barão definhou. Alguns dizem que por causa
do luto.
O coração de Estella doeu. Tanta morte e tristeza tinham sido
causadas por sua causa. E nunca soubera de nada. Queria
estender a mão e pegar a de John, encontrar qualquer conexão
humana, mas o homem estava perdido em recordações e no próprio
luto.
– Depois que ele morreu, a Baronesa descobriu que ele não
mudara o testamento, porém, com todo mundo pensando que você
estava morta… Ela ficou com tudo. – Ele parou, a história quase
chegando ao fim. Ele olhou para cima e encontrou o olhar de
Estella. – O que estou tentando deixar claro é que você é a legítima
herdeira de toda a fortuna do Barão. Da mansão, do título… de tudo.
Por um bom tempo, Estella só encarou John. A mente estava
acelerada, o coração partido. Mas, aos poucos, a raiva substituiu a
tristeza.
– Aquela psicótica não pode ser a minha mãe! – gritou.
– Eu sei, é surpreendente – disse John, calmo em face à fúria que
ela sentia. Já estava acostumado, afinal de contas.
Estella ficou de pé, o casaco caiu no chão, e seus olhos estavam
em chamas. Não era surpreendente, era um pesadelo. Sentiu a
respiração saindo em lufadas. Precisava dar o fora dali e se afastar
da história que acabara de ouvir. Enquanto John lhe implorava para
parar e ficar, Estella saiu correndo pela porta, em direção à rua.
Não sabia para onde estava indo. Só precisava se afastar de John
tanto quanto pudesse. Não que fosse culpa dele. Não era. Ele só
tinha tentado ajudar, mas as palavras dele continuavam correndo
por sua mente, apunhalando o seu coração.
Só parou quando se viu mais uma vez no chafariz do Regent’s
Park. Exausta, despencou no mesmo banco em que dormira na sua
primeira noite ali em Londres. Àquela hora da manhã, o chafariz não
estava ligado, então Estella se limitou a encarar a água parada,
desejando que a própria vida fosse tão calma.
Sua nêmesis era a sua mãe verdadeira. E a mãe verdadeira tinha
matado sua outra mãe. Era tudo tão confuso. Não era de se admirar
que a mãe, a falsa, supunha, estava sempre dizendo para “diminuir
o tom” e “tentar se encaixar”. Devia estar o tempo todo com medo
de que Estella acabasse como a Baronesa: cruel e sem coração.
Estella lutou contra as lágrimas. Durante o tempo todo, a mãe
estivera tentando moldá-la com amor.
– E eu, com certeza, tentei ser assim – ela pôs para fora, a voz
suave ao falar com a memória da mãe. – Porque eu a amei, mas a
verdade é que eu não sou a doce Estella, por mais que eu tenha
tentado. Eu nunca fui. – Conforme prosseguia, a voz foi ficando
mais firme, mais forte, mais segura de si. – Eu sou Cruella. Nasci
brilhante, nasci má, e talvez um pouquinho louca. Essa sou eu, mas
não sou como ela. Sou melhor.
Ficando de pé, Estella respirou fundo. A verdade tinha vindo à
tona. Estava armada com a única informação que poderia derrubar
a Baronesa. Mesmo sabendo que a mulher que a amara e criara
não aprovaria, Estella cansou de tentar ser qualquer pessoa exceto
quem era.
Estella estava morta. Que todo mundo pensasse que sucumbira
às chamas, mas Cruella estava viva. E Cruella iria à desforra, se
vingaria, destruiria a Baronesa von Hellman. Por sua mãe, pelo
Barão, por John, por sua própria infância perdida e pela vida que
poderia ter tido.
Na delegacia, Gaspar estava deitado de costas num beliche sujo.
Do outro lado da cela, Horácio estava deitado no próprio beliche. A
Baronesa cumprira sua palavra e providenciara para que fossem
presos pelo assassinato de Estella. Com o Covil igual a um inferno e
as manchetes já anunciando a morte da garota, a polícia não fez
perguntas. Eles trancaram Gaspar e Horácio com apenas a vaga
promessa de um julgamento.
Assoando o nariz, Horácio se virou e olhou para Gaspar.
– Não posso acreditar que ela está morta – lamentou.
Gaspar também não podia. Imagens de Estella, a menina
divertida e enérgica que ele conhecera anos atrás, lampejaram em
sua mente.
– Vamos só nos lembrar de Estella – disse por fim –, e esquecer
Cruella.
Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, ele ouviu um
estrondo vindo lá de fora.
– Você ouviu isso? – perguntou. Ambos os rapazes se sentaram.
O barulho estava ficando mais alto.
No escritório, os policiais também notaram o som. Olhando pelas
portas da frente, um dos homens gritou bem quando um enorme
caminhão basculante acertou o prédio. Vidro e mobília voaram
enquanto os policiais se atiravam para fora do caminho.
Um momento depois, a porta do lado do motorista se abriu.
Cruella, vestida de lixeiro, arrematada com um bigode postiço,
inclinou-se para fora da cabine. Enquanto recuperavam a
compostura, os policiais se concentraram em Cruella. Eles não
viram Wink saltar da cabine e ir lá para dentro.
Acenando para os homens, Cruella voltou à cabine e engatou a
ré. Quando o caminhão se afastou, os policiais saltaram para as
viaturas e começaram a perseguição.
De pé na cela, com os dedos envolvendo as grades, Gaspar ouvia
o caos, incerto quanto ao evento em curso. Um momento depois,
gritou feliz quando viu Wink vir trotando. Horácio ficou de pé em um
salto e se juntou a Gaspar na porta da cela.
– Wink! – Horácio gritou feliz. – Você não virou churrasco!
Gaspar olhou para o cachorrinho. Não, com certeza ele não tinha
virado. E, melhor ainda, estava carregando as chaves para a fuga
deles. Amarrado às costas do cachorrinho estava um kit de gazuas.
Estendendo a mão para baixo, Gaspar pegou o kit e pôs as mãos na
massa enquanto Horácio enchia o cãozinho de carinho. Em
segundos, a porta se abriu e Gaspar e Horácio saíram.
No caos, nenhum dos policiais chegou a notar que dois
prisioneiros tinham saído para a rua. A noite tinha caído, o que
ajudou na fuga. Também ajudou o fato de a confusão reinar do lado
de fora da delegacia. Carros contornavam rua acima e abaixo. Uma
imensa pilha de lixo fedorento se espalhara em meio ao asfalto,
bloqueando a passagem de quaisquer pedestres.
Escapulindo para um beco, Gaspar, Horácio e Wink caminharam
depressa, colocando o máximo de distância que podiam entre eles e
a delegacia. Tinham acabado de entrar em outra rua escura quando
um caminhão de lixo se aproximou deles pelo lado. O automóvel
parou, e Cruella abaixou o vidro da janela.
– Querem uma carona? – perguntou, sorrindo.
Gaspar não retribuiu o sorriso. Ele tivera a sensação de que a
fuga era obra dela. Por um momento, tinha ficado feliz por sua
amiga ainda estar viva, mas agora que dera uma caminhada ao ar
livre e pôde pensar no assunto, ficou com raiva de novo. A única
razão para eles estarem naquele lugar, para começo de conversa,
era ela.
– Nós vamos andando – respondeu.
Horácio não estava tão chateado quanto ele.
– Você está viva! – disse, feliz, indo em direção ao caminhão.
Gaspar o deteve.
– Você quase nos matou – apontou, descarregando a raiva. – Nos
tratou como se fôssemos seus criados. – Ele fez um gesto de
cabeça para o amigo. – Continue andando, Horácio.
Felizmente, Horácio não o questionou. Continuaram descendo a
rua.
– Vocês serão capturados pelos policiais! – gritou Cruella.
– Estávamos indo bem antes de você aparecer – gritou Gaspar
por cima do ombro. – Vamos ficar bem sem você. – Sabia que as
palavras eram duras, mas não ligava mais.
Horácio, sempre leal, assentiu:
– Você me chamou de energúmeno – adicionou ele. – Não sei o
que isso quer dizer, mas tenho certeza de que não é nada bom.
– Não é terrível – respondeu Cruella, embora não tenha soado
convincente.
Gaspar a ignorou. Estava cansado e faminto. Queria algo para
comer, e depois encontrar um lugar para dormir. Foi em direção a
um café. Às suas costas, ouviu o motor do caminhão de lixo ligar e,
um momento depois, o veículo se aproximou deles.
Cruella os encarou, o rosto inundado de dor. Gaspar hesitou. Só a
vira chateada daquele jeito quando ela descobriu a verdade sobre a
morte da mãe. O que tinha acontecido agora? – Não há um jeito
fácil de dizer isso – começou ela, como se lesse sua pergunta
silenciosa. – A Baronesa é minha mãe biológica.
Gaspar e Horácio pararam de supetão, surpreendidos pela
revelação.
Um momento depois, Horácio falou:
– Eu tenho muitas outras perguntas.
Gaspar suspirou. Parece que iam aceitar a carona, afinal de
contas.

Gaspar e Horácio se sentaram no sofá da sala de John, um prato de


bolinhos intactos na frente deles. Bem, quase intactos. Horácio tinha
se servido de vários. Ouviram enquanto Estella os atualizava sobre
o que tinha descoberto: a verdade sobre o que a Baronesa fizera e
até onde fora para manter as mãos no dinheiro do Barão.
– No minuto em que ela souber que estou viva – concluiu Estella
–, vai tentar me matar. Estamos em uma situação de vida ou morte
aqui.
Gaspar sacudiu a cabeça. Sentia-se mal por Estella, mas ainda
estava magoado.
– Ela é uma maníaca homicida; você não – disse ele.
– Ainda não sabemos disso – respondeu Estella, tentando
amenizar a situação. – Ainda sou jovem.
– Engraçado – disse Gaspar sem alterar a voz. – Ou seria
engraçado se eu tivesse certeza de que você estava tentando fazer
graça.
Estella se aproximou, e Gaspar se afastou. Ela soltou um suspiro.
– Eu estou brincando – defendeu-se ela. – Mas precisamos detê-
la. Eu tenho um plano, mas não posso colocá-lo em prática sem
vocês, rapazes.
Horácio olhou para cima, com migalhas de bolinhos nas
bochechas.
– Finalmente! – disse ele. – Ela entendeu. Eu sou essencial para
qualquer plano.
Estella deu um sorriso cálido para ele.
– Saí um pouco do controle, e sinto muito – desculpou-se, a voz
rascante. Gaspar podia dizer que ela estava tentando manter a
compostura e começou a amolecer. – Vocês são minha família.
Tudo o que eu tenho… – prosseguiu ela.
O que restava da determinação de Gaspar desapareceu, e ele
suspirou.
– Tudo bem, tudo bem – disse ele. – Qual é o plano?
Estella não hesitou.
– O baile de caridade da Baronesa será esse fim de semana. –
Ela fez uma pausa para ver se Gaspar estava prestando atenção.
Ele estava, mesmo já não gostando nada de como aquilo soava. –
Precisaremos do endereço residencial e das medidas de todos os
convidados, da turma de costureiras do Artie, uma capa preta, latas
de tinta, vários espartilhos e…
A lista foi interrompida pela chegada de John. Gaspar enrijeceu.
– John – chamou Estella, nem um pouco surpresa pela aparição
dele. – Esta é a minha família. Eles ficarão por um tempo.
John fez que sim, enquanto Gaspar olhava para lá e para cá entre
ele e Estella. Só fazia uma noite desde o incêndio e, ainda assim,
tudo parecia ter mudado. Bem, quase tudo.
– Seus bolinhos acabaram – avisou Horácio, apontando para o
prato agora vazio.
Gaspar deu um sorriso irônico para o comentário do amigo. Nada
perturbava Horácio. Eles estavam naquilo até o pescoço e Gaspar
não gostava daquele plano, mas, ao menos por agora, ele teria que
seguir o fluxo.

Eles se lançaram ao trabalho. O apartamento de John se tornou a


base de operações. Em questão de horas, qualquer pedaço de lã de
tweed ou madeira foi substituído por tecidos coloridos e cada
superfície foi coberta por artigos de costura. O grupo de costureiras
felizes de Artie estava de pé na frente de manequins de costura,
cantarolando e conversando enquanto cortavam, rasgavam e
alfinetavam. Algumas pessoas anotavam enquanto Estella ladrava
ordens, a comandante do exército. De vez em quando, ela parava
para verificar um vestido ou ajudar a alfinetar. O objetivo final?
Embalar dúzias e mais dúzias de vestidos desenhados por ela, cada
um carregando a etiqueta da Casa da Baronesa.
Enquanto ela cuidava das roupas, John estava no escritório
roubando os arquivos dos clientes da Baronesa. Não levou muito
tempo para encontrá-los. A Baronesa acreditava que John agia
totalmente em seu benefício, então o deixava guardar a papelada.
Com os arquivos em mãos e os vestidos feitos e embalados, era
hora de Gaspar e Horácio fazerem a parte deles. Carregaram a van
com as caixas, que também tinham o logotipo da Baronesa, e
fizeram suas rotas, parando em propriedade após propriedade. A
cada vez, Horácio saía e entregava em mãos a caixa bonita. E toda
vez, a mulher que recebia o pacote gritava de deleite ao abrir a
caixa e encontrar um modelo exclusivo e um bilhete: Por favor, use-
o, com os meus cumprimentos. Em poucos dias, as entregas foram
feitas. A primeira parte do plano estava completa. Foi fácil, Gaspar
pensou enquanto ele e Horácio dirigiam de volta para o
apartamento. Tinha sido como roubar doce de uma criança.
E aquilo deixou Gaspar nervoso. Ou melhor, mais nervoso do que
o normal.
Enquanto o sol se punha na noite do baile de gala, Gaspar foi até
o quarto de Estella. A janela estava aberta, conduzindo até a
pequena saída de incêndio e às escadas que levavam ao telhado do
apartamento de John. Olhando para cima, Gaspar viu Estella
empoleirada na parede de tijolos, fitando o horizonte de Londres,
que cintilava em tons de vermelho e laranja e, para variar, parecia
pacífico. Lá do telhado, os sons movimentados da rua diminuíam, e
o ar tinha um cheiro mais fresco.
– Ei – ele gritou, subindo pela janela e se juntando a ela. – Noite
importante.
– Com certeza, é.
Gaspar a encarou por um momento, imaginando o que ela estava
pensando. Desde o incêndio e da descoberta da verdade sobre a
mãe dela, Estella estava diferente. Mais distante. Ele sabia que ela
havia consultado um advogado para saber sobre o testamento do
Barão, mas não tinha dito nada. A concentração de Estella estava
toda no baile de gala.
– Tem certeza disso? – perguntou ele.
Ela fez que sim.
– Você sabe que não pode matá-la, Estella – disse ele, dando voz
à preocupação que estava na sua cabeça.
Ela encolheu os ombros.
– Não posso ou não devo?
Aquela não era a resposta que ele queria. Frustrado, passou a
mão pelo cabelo e puxou o ar algumas vezes para se acalmar.
– Eu sei que você está sofrendo – continuou ele. – E ela é o
motivo, mas matá-la não vai fazer essa dor ir embora.
– Eu não vou – respondeu Estella, por um momento soando como
a sua velha amiga. Gaspar sentiu uma fagulha de esperança, mas
então ela prosseguiu: – A menos que eu realmente, realmente
precise.
Gaspar suspirou. Ele não podia dizer se Estella estava ou não
falando sério, mas sabia que suas palavras tinham caído em
ouvidos surdos.
Virando-se para Gaspar, ela encontrou o seu olhar e os olhos se
suavizaram.
– Obrigada por me ajudar – disse, baixinho.
– É difícil dizer “não” para você às vezes – confessou ele.
– É uma das coisas que eu amo em você – expressou ela.
Gaspar corou, sem saber como responder. Por sorte, ele foi salvo
pelo gongo… ou melhor, pela buzina. Olhando para o beco lá
embaixo, viu Horácio estacionar o carro que eles tinham roubado da
Baronesa meses antes. Horácio vinha mexendo no veículo, e agora
ele brilhava em preto e branco. Cada centímetro havia sido polido
até ganhar um brilho elegante.
Horácio saiu e acenou para eles.
– Quando eu o lavei, notei o nome – disse ele. – Sabe como esse
carro se chama? Devil, demônio em inglês.
Gaspar riu.
– É DeVille, camarada, é francês – disse ele, corrigindo Horácio.
Horácio deu de ombros, mas Estella sorriu.
– Gostei – falou ela, ficando de pé em um salto. Estava na hora.
Eles tinham o carro; eles tinham um plano. Estavam prontos.
– Vamos fazer isso?
Ficando de pé, Gaspar fez que sim. Como tinha dito, às vezes,
mesmo quando ele não gostava, simplesmente não podia dizer não
a ela.
A Mansão Hellman estava cheia. Cada criado e empregado corria
para lá e para cá, dando os toques finais na mansão para preparar o
baile. Era grande, arrojado e mais ousado do que qualquer coisa
que a Baronesa já tivesse feito. O tema de guerreiros vikings tinha
sido escolha dela, uma forma de mostrar força em tempos de
guerra. Da comida à decoração, a Mansão Hellman foi transformada
na residência de um guerreiro.
Lá em cima, em seu quarto, a Baronesa estava se vestindo e se
paramentando para a batalha. Enquanto John gritava com o
pessoal, a Baronesa era manobrada para entrar em um modelo
desenhado por ela mesma, um vestido de cota de malha de alta-
costura. Encarando o próprio reflexo, sorriu com satisfação. Estava
perfeita. E agora que tinha cuidado de Cruella, ninguém poderia
arruinar a sua noite.
Quando viu John pelo canto do olho, o sorriso desapareceu por
um instante, substituído por uma careta.
– Quando eu disse “cuide do assunto” todos aqueles anos atrás –
começou ela, olhando-o pelo reflexo no espelho –, o que você
achou que eu queria dizer?
John ficou impressionado por um momento, mas logo se
recompôs. Obviamente, não esperava que ela reconhecesse a
verdade que ambos sabiam: que Cruella era sua filha.
– Fiquei um pouco confuso – retorquiu ele. – Nem passou pela
minha cabeça que quisesse que eu matasse a sua única filha.
– E eu pensei que nós nos conhecíamos – disse ela, muito
decepcionada.
Fora informada de que Cruella não tinha morrido no incêndio, e
tinha certeza de que John tinha algo a ver com isso. Uma vez
salvador, sempre salvador, supôs, mas aquilo não era um problema.
Ela se livraria da garota de uma vez por todas naquela noite. Fez
sinal para o chefe da segurança, e o homenzarrão se aproximou.
– Ela estará aqui esta noite. Quero que seja capturada antes de
ser vista – a Baronesa deu a ordem. – Todo mundo pensa que ela
está morta; precisa estar assim antes de a noite acabar.
O homem fez que sim.
– Tenho algo especial preparado para ela – disse ele. O homem
ergueu a mão e puxou uma arma de choque do coldre. – Isso dará
um choque nela e a deixará incapacitada.
Como uma criança pegando um brinquedo, a Baronesa pegou a
arma de choque. Virou-a na mão, examinando-a. E então o atacou
com a arma. O homenzarrão gritou e caiu no chão. Ela repetiu,
dessa vez dando o choque em uma empregada que estava de
passagem.
– Eu poderia fazer isso o dia inteiro! – disse animada. Então o
sorriso desapareceu e era mais uma vez a guerreira viking séria. –
Vão e encontrem-na, seus idiotas! – disse aos seguranças que
ainda restavam, jogando a arma de choque para eles.
Afastando-se do espelho, a Baronesa foi até a cômoda e prendeu
o apito de cachorro no pulso esquerdo.
– Por que eu sou a única competente? – disse, enquanto John lhe
entregava as coleiras dos cães.
– Deve ser cansativo – sugeriu o criado. – Será uma noite
memorável, Baronesa – adicionou, prestes a deixar a sala.
A Baronesa lhe lançou uma olhada. De fato, com certeza seria.
Era hora de iniciar a batalha final.

Do lado de fora da Mansão Hellman, os convidados começavam a


chegar. Conforme solicitado, o enorme destacamento de segurança
contratado pela Baronesa estava de olho em qualquer um com
cabelo preto e branco que combinasse com a descrição de Cruella.
Mas havia um problema: toda mulher que saía de cada carro tinha
cabelo preto e branco. Primeiro uma, depois outra chegou, cada
uma usando um vestido diferente, mas sempre com uma peruca
preta e branca. Era impossível dizer quem era quem: todos
pareciam Cruella.
Na sala de segurança, os guardas observavam os monitores,
confusos ao localizarem Cruella no gramado leste, depois no salão
de baile, depois no jardim de rosas. Havia dezenas delas. A
segurança não sabia o que fazer.
Estacionando o DeVille, Gaspar parou nas portas da frente. Ele
olhou ao redor para a confusão que se desenrolava e teve que
sorrir. Cruella tinha se superado desta vez. A festa não tinha nem
começado ainda e a situação já tinha saído do controle. Virando-se,
olhou para Horácio lá no assento de trás.
Ele, como todos os outros convidados, estava vestido como
Cruella, usando uma peruca e uma estola de pelo falso. Aninhado
no agasalho vinha Wink; Buddy estava escondido aos seus pés.
Horácio saiu do carro de modo desajeitado, tropeçando um pouco
nos calcanhares, e seguiu para dentro, enquanto Gaspar
estacionava o carro. Momentos depois, Gaspar se juntou ao tropel
de seguranças que, frenéticos, tentavam localizar a “verdadeira”
Cruella. Tinha trocado o uniforme de manobrista pelo de segurança.
Enquanto ele abria caminho em meio à multidão, John apareceu e
lhe entregou um fone de ouvido.
– Todas as equipes, todas as equipes – disse para a peça. – A
Baronesa solicita a presença de todos na biblioteca… agora. Ela
está furiosa, rapazes.
Sorriu quando os guardas que ele podia ver ficaram
instantaneamente imóveis e com o rosto pálido. Então, todos saíram
correndo em direção à mansão e entraram. Gaspar assentiu,
satisfeito. Se as coisas estivessem transcorrendo bem lá dentro,
Horácio estaria à espera da entrada de todos os guardas na
biblioteca. Uma vez que todos estivessem contidos, ele fecharia a
porta e os trancaria lá dentro, deixando a mansão livre para Cruella.
Sabia que seu trabalho era ficar onde estava, mas uma parte sua
queria muito observar Horácio brigar com quem quer que se
atrevesse a desafiá-lo. Podia imaginá-los subestimando o pobre
Horácio, especialmente usando um vestido, mas o rapaz nunca
deixava de surpreendê-lo, e ele faria o mesmo com os guardas.
Àquela altura, Gaspar supunha que Horácio já os havia trancado lá
dentro, e agora ia se encontrar com Artie para executar a próxima
fase do plano.
Sim, tinha certeza disso. Agora era hora de ele assumir sua
posição.

Deslizando pelo longo corredor, a Baronesa foi em direção ao


grande salão de baile. Os dálmatas a seguiam.
– É hora de eu fazer a minha entrada, meus queridos – contou
aos cães. Eles ganiram em resposta. Localizando Jeffrey mais à
frente, ela deu o mais breve dos acenos de cabeça ao passar por
ele.
Jeffrey correu para alcançá-la. A respiração estava ofegante
enquanto ele lutava para encontrar as palavras.
– Baronesa – finalmente conseguiu dizer –, eu estava vindo
para…
Os passos da Baronesa diminuíram enquanto ela se virava para
olhar o homenzinho sorrateiro.
– Ela está aqui? – perguntou a mulher.
– Bem… – respondeu Jeffrey. Um olhar da Baronesa o fez
terminar rapidamente. – Há um problema…
A mulher não o esperou terminar. Empurrando-o para o lado,
correu em direção ao salão de baile. Chegando ao alto das escadas,
pegou uma taça de champanhe de uma bandeja e entrou em
posição, pronta para se apresentar aos devotados convidados, mas
quando olhou para a sala lá embaixo, arfou em horror. Estava
encarando um mar de Cruellas. Cada convidado, homem ou mulher,
usava uma peruca específica. Era o seu pior pesadelo ganhando
vida em preto e branco. Engolindo a bile que subiu por sua
garganta, ela ergueu a taça.
– Obrigada a todos por virem! – agradeceu, pensando rápido
sobre como poderia mudar a situação a seu favor. – Que grande
tributo para a nossa querida amiga – a voz assumiu um tom frágil –,
que nunca mais voltará. Infelizmente. – Ela ergueu a taça. – A
Cruella!
Lá embaixo, a multidão irrompeu em aplausos e ergueu a própria
taça. A Baronesa estava furiosa, mas manteve um sorriso colado no
rosto ao descer as escadas e abrir caminho entre a multidão. Os
olhos esquadrinharam cada convidado, perscrutando além da
peruca na tentativa de localizar o rosto da Cruella de verdade.
Embora não a tivesse encontrado, acabou vendo Anita Darling. A
jovem tinha uma expressão presunçosa, o que só a enfureceu ainda
mais. Ela sabia que Anita estava metida na confusão. Aquele olhar
só confirmou. A Baronesa avançou e parou a centímetros de Anita.
– Onde ela está? – sibilou.
Anita deu de ombros.
– Ela parece estar aqui – a jornalista apontou para um convidado
– e ali. Acho que está em toda parte.
Engolindo um grito, a Baronesa deu as costas para Anita.
Encontraria aquela garota. E então a faria pagar.
Da sacada, Estella olhou para baixo enquanto a Baronesa percorria
a multidão de convidados; sentia muito prazer ao testemunhar o
desgosto que ela não conseguia esconder do rosto. Aquilo a animou
até a alma. Depois de tudo o que aquela mulher tinha feito para
destruí-la, a Baronesa havia fracassado. E agora ela seria a pessoa
cuja noite, e vida, seriam arruinadas.
Estella escapuliu para o meio da multidão e se aproximou mais.
Ao andar, puxou do cabelo um grampinho de prata e o segurou. Os
outros tinham feito a parte deles. Agora era a sua vez. Foi mais
devagar quando viu a Baronesa abordar John. Chegou perto o
bastante, então ouviu:
– Não é bem um baile de gala viking – disse John, indicando os
convidados com a cabeça.
A Baronesa fitou-o com desdém.
– Ela está aqui.
– Parece que sim, Baronesa – respondeu John.
Aproximando-se por trás dela, Estella estendeu a mão e, em um
movimento rápido, picou o braço da Baronesa com o grampo. Antes
que a mulher sequer pudesse reagir, Estella já se embrenhara na
multidão, imperceptível em meio ao mar de sósias. Agora segurava
o apito de cachorro que furtara do outro pulso da Baronesa ao
distraí-la com a espetada. Afastando--se, ouviu a ex-chefe ordenar a
John que a encontrasse. Sorriu. A mulher poderia procurar o quanto
quisesse. Não encontraria Cruella.
Com o apito em mãos, Estella seguiu para os fundos da mansão.
Certificando-se de que ninguém estava olhando, entrou no banheiro.
Tirou o modelo de gala que usava e alisou o vestido desgrenhado
que estava por baixo. Então colocou a peruca ruiva na cabeça,
completando a transformação para voltar a ser Estella. Estava
pronta.
Agora só precisava que a Baronesa a visse. Apertou o apito de
cachorro na mão. Também tinha cuidado daquilo. Indo em direção
às portas do jardim, olhou para a imensa parede de vidro. Uma
lembrança daquela noite terrível anos antes cintilou na sua mente:
ela encarava o vidro enquanto uma tempestade rugia, e a mãe e a
Baronesa conversavam na beirada de um penhasco. A mesma
ansiedade que sentira naquela noite a preenchia agora, mas junto
dela havia fúria. E a fúria a empurrou porta afora e em direção ao
penhasco.
Quando chegou ao lugar, levou o apito aos lábios e soprou.
Não precisou esperar muito tempo. O assobio funcionou e, em
questão de minutos, ouviu os latidos que anunciavam a presença
dos dálmatas da Baronesa. Então eles apareceram, as coleiras se
arrastando por trás deles ao saírem correndo da mansão e
atravessarem o gramado em sua direção. Viu a silhueta da
Baronesa na luz da casa enquanto gritava para os cães “pegarem-
na”. Atrás dela estavam os guardas, que finalmente tinham
conseguido escapar da biblioteca. Estavam a postos, mas a
Baronesa ordenou que recuassem.
Estella não se moveu enquanto os cães corriam para ela.
Chegaram mais e mais perto, latindo descontrolados. E, então,
quando estavam a apenas um metro de distância, eles pararam.
Sentados, os animais balançaram o rabo com alegria. Cachorrinhos
bonzinhos, falou sem emitir som.
A Baronesa caminhou em direção a Estella, a cota de malha
tilintando enquanto se aproximava.
Estella não se mexeu. Esperara por aquele momento por tanto
tempo; o momento em que teria a vantagem. Não permitiria que a
Baronesa vislumbrasse o mínimo pingo de fraqueza de sua parte. A
mulher mais velha podia ser a que estava trajando uma armadura,
mas Estella passara muito tempo construindo seu próprio traje de
proteção.
Finalmente, a Baronesa estava na sua frente; parada, com as
mãos nos quadris.
– Olá, Cruella – cumprimentou-a.
– Olá, mamãe – respondeu Estella, feliz por ver a Baronesa
estremecer ligeiramente por ser chamada dessa forma.
– Pode tirar esse disfarce ridículo – apontou a Baronesa,
acenando para o look de “Estella”.
Estella olhou para o vestido e então tocou o cabelo ruivo. Depois
deu de ombros. Em vez de remover a própria peruca, olhou para a
casa.
– Odeio arruinar a sua festa – disse. – Mas eu vim para despejar
você. A propriedade é minha.
– Não seja ridícula – rebateu a Baronesa, embora sua voz
tremesse ligeiramente.
Estella sorriu. A Baronesa podia dizer o que quisesse, mas Estella
tinha feito a sua pesquisa. Conversara com os advogados. Sabia o
quanto a Baronesa estava errada, mas se refestelaria ao detalhar
tudo para ela, tintim por tintim. Tirou a chavinha do medalhão que
estava em seu bolso e a ergueu.
– Esta é a chave do medalhão que abre a caixa onde estava
minha certidão de nascimento – relatou. Falou devagar, para se
certificar de que a Baronesa ouvisse cada palavra. – E você só
achou que ele era bonito.
Por um momento, a Baronesa ficou em silêncio enquanto absorvia
tudo. Então, devagar, meneou a cabeça.
– Tudo faz sentido agora.
– O quê? – perguntou Estella. Olhando para além da Baronesa,
tentou ver o que se passava na mansão. Se o plano ainda corresse
conforme o esperado, naquele mesmo instante, John e Gaspar
estavam acompanhando os convidados lá para fora, rumo à
“apresentação especial” da noite. Sem ver qualquer movimento,
voltou-se para a Baronesa. Precisava arrastar aquela situação um
pouco mais.
– O fato de você ser tão extraordinária – respondeu. – É claro,
você é minha.
As palavras atordoaram Estella e, por um momento, ela não
soube o que dizer. Interpretando o seu silêncio como um gesto para
prosseguir, a Baronesa continuou. Acima, um trovão ribombou e, à
distância, um relâmpago cintilou.
– Ansiei por alguém na minha vida que fosse tão boa quanto eu –
declarou ela.
– E quanto a alguém melhor? – apontou Estella, reencontrando a
voz.
A Baronesa sorriu. Por um momento, Estella não o reconheceu, já
que o gesto era genuíno e tinha uma calidez verdadeira.
– Eu simplesmente adoro você. Não enxerga, ao ver tudo o que
você se tornou, que você é minha?
Os apelos de Gaspar para que ela não se tornasse a Baronesa
ecoaram nos ouvidos de Estella. Ele tinha dito o exato oposto: que
ela era melhor, mais forte e mais bondosa que a Baronesa. Estaria
ele errado?
– Você me deixou para morrer – acusou Estella, odiando a
emoção que escapuliu de sua voz.
– Um erro – confessou a Baronesa. – E um que podemos superar,
eu sei.
– Discordo – declarou Estella.
Mas a Baronesa não engoliu a resposta.
– Você não está aqui por vingança – argumentou. Estella
começou a protestar, mas a Baronesa a impediu. – Você está aqui
porque é uma estilista brilhante e um gênio do mal e, portanto,
precisa estar em meio à sua espécie. Perto de mim.
Estella deixou os ombros caírem levemente.
– Somos muito parecidas, suponho – admitiu.
– Exatamente – replicou a Baronesa, feliz por ter conseguido se
comunicar com ela. – Farinha do mesmo saco. Não há nada do que
se envergonhar, Cruella. É quem você é. Pessoas como nós
transformam um mundo monótono em excepcional. É por isso que
nos odeiam. – Estella fingiu amolecer e a Baronesa continuou: –
Então, quem mais entende você? Eu. Sua verdadeira mãe. Que
cometeu um erro e permitiu que algo extraordinário fosse embora. –
Fez uma pausa e adicionou baixinho: – Eu sinto muito.
Estella passara tanto tempo planejando aquele momento que não
tinha parado para avaliar como seria. E estar lá naquele momento,
na beira do penhasco onde tudo começara anos antes, vendo o que
parecia ser compaixão genuína no rosto da Baronesa, ela sentiu um
turbilhão de emoções. Tinha previsto que sentiria raiva. Não previra
a tristeza. Balançou a cabeça. Não se importava com o que a
Baronesa dizia. A mulher era uma profissional em armar um cenário
e uma passarela. Estella não permitiria que a Baronesa armasse
contra ela. Sabia muito bem que não deveria acreditar em nada do
que saísse da boca daquela mulher.
– Posso abraçar você? – perguntou a Baronesa, abrindo os
braços.
Estella fingiu hesitar. O pedido faria as coisas serem muito mais
fáceis.
– Você não vai me atirar no precipício, vai?
– Você é tão engraçada, minha querida – disse a Baronesa,
sorrindo com calidez. – Eu amo o seu humor. – Envolvendo-a com
os braços, apertou Estella com força. Então o aperto ficou
desconfortavelmente forte. Em seus braços, Estella lutou para
respirar. A Baronesa virou a cabeça e sussurrou em seu ouvido: –
Idiota – disse bem no momento em que a empurrou para trás.
Estella só teve tempo de soltar um grito de surpresa e ouvir o
estalo revelador do flash de uma câmera antes de desaparecer pela
lateral do penhasco e cair em direção à praia lá embaixo.
O tempo pareceu ficar mais lento enquanto Estella despencava no
ar enevoado. Imaginou, de forma vaga e com algum distanciamento,
se tinha sido assim que sua mãe se sentira quando caiu do mesmo
lugar, mas o pensamento foi fugaz.
Assim que desapareceu de vista, Estella ergueu os braços e a
capa se abriu com um estalo. O modelo de Estella era desalinhado
por um motivo: estava escondendo o espartilho e o tecido extra que
tinha costurado por dentro. Enquanto o ar zunia por seus ouvidos,
ela puxou uma cordinha. O tecido extra ondulou acima dela,
formando um paraquedas feito à mão. Com ele armado e
preenchido pelo ar, ela sofreu um solavanco quando o ímpeto da
queda diminuiu. Então, bem devagar, caiu na água, mal causando
um respingo.
Horácio remou até lá em um pequeno bote.
– Aí está ela – disse, feliz por ver a amiga.
Ela estendeu a mão ao trilhar pela água.
– Uma mãozinha?
Puxando-a pela lateral do barco, Horácio entregou a Estella uma
toalha. Ela se secou rapidamente, e, enquanto Horácio remava em
direção à praia, fez a última troca de figurino da noite.
Tinha pouco tempo para completar o plano. Assim que o barco
tocou a areia, ela e Horácio foram até o DeVille, que os aguardava.
Deu os toques finais na maquiagem enquanto ele conduzia pela
trilha estreita e estacionava a pouca distância de onde a Baronesa
ainda estava de pé.
Só que agora não estava sozinha, mas rodeada por convidados
curiosos, guarda-costas e um punhado de policiais. Ela apontava
freneticamente para o penhasco.
– Ela pulou! – Estella a ouviu dizer. – Ela queria me matar, e
tentou me levar junto… – A voz dela esvaneceu quando o
comissário de polícia apareceu segurando as algemas.
Escondida na escuridão, Estella presenciou, com um sorriso no
rosto, o comissário parar na frente da Baronesa. Ela começou a
repetir a declaração, mas o homem sacudiu a cabeça. Ele já tinha
estado lá. E embora na época ele fosse jovem e ingênuo e tivesse
ficado impressionado com a riqueza e o poder daBaronesa, desta
vez ele não era, nem ficou afetado por nada daquilo. Ele tinha
recebido um relatório sobre um roubo na Mansão Hellman e uma
pilha de evidências que mostrava o monte de maldades que a
Baronesa articulara ao longo dos anos.
O comissário de polícia torceu os braços da Baronesa para trás
das costas, fechou as algemas ao redor de seus pulsos e a
conduziu em direção ao camburão que os esperava. Os convidados
alinhados observaram boquiabertos enquanto Anita batia uma foto
atrás da outra. Era um desastre, e ninguém queria afastar o olhar.
– Vocês, idiotas, não podem ver que foi tudo um truque? – falava
a Baronesa, ainda se agarrando à tola esperança de que
conseguiria sair incólume da situação. – Aquela tal de Estella é a
Cruella!
Estella respirou fundo. Aquela era a sua deixa. De onde estava,
falou alto:
– Ah, Baronesa – disse, regozijando-se com a expressão de
temor no rosto da mulher ao ouvir o som da sua voz. Até mesmo no
escuro, podia ver que a mulher tinha ficado pálida. – É Cruella De
Vil.
Ao lado dela, Horácio não conseguiu se segurar:
– Se escreve como “devil”, mas a pronúncia é “De Vil”.
Sorrindo para o amigo, Estella saiu das sombras, o corpo
iluminado pelos faróis do carro, que Horácio acendera. Estava
vestida para matar, ou para ser morta. O vestido era glorioso, o
melhor que já tinha criado. Preto, branco e justo, parecia uma
predadora. E os olhos estavam colados em sua presa.
Indo adiante, ela inclinou o quadril e cruzou os braços. Olhou ao
redor da multidão, vendo os rostos chocados, como se tivessem
mesmo pensado que tinha se levantado do túmulo.
– E eu achando que chegaria elegantemente atrasada – Estella
prosseguiu, balançando a cabeça. – Agora, pelo que me culpará
desta vez, Baronesa? Espero que não por este traje. – Apontou para
a cota de malha que a mulher usava. Estava se divertindo ao fingir
que não estivera ali o tempo todo.
O policial olhou de uma para a outra. Então balançou a cabeça.
– Srta. De Vil – disse ele. – Pensamos que estivesse morta.
– Sim, eu notei – concordou ela, no forte sotaque de Cruella. –
Vou fazer compras em Paris, e volto para casa com todo mundo
pensando que eu estou morta. – Lançou um olhar para a Baronesa
ao acrescentar: – Sonhando acordada?
Ela ainda balançava a cabeça quando a Baronesa foi enfiada,
com certa rispidez, no camburão. Assim que as portas se fecharam,
a Baronesa soltou um grito furioso:
– Você me aguarde! – berrou. – Eu vou me vingar!
– Ohh! – Estella disse com zombeteira aflição. – Estou tremendo.
Mas não estava tremendo. Longe disso. Pela primeira vez em
muito tempo, Estella se sentiu firme. Olhou ao redor para os amigos
reunidos na frente da multidão de mulheres vestidas como ela.
Gaspar, Horácio, Artie, John, Anita, até mesmo os dálmatas,
estavam todos ali. Por ela. E sempre estiveram. Eram a sua família.
Deu um sorriso de gratidão ao se virar e começar a caminhar
entre a multidão, voltando para o palacete. Tinham conseguido.
Tinham vencido. A morte da mãe tinha sido vingada. Havia todo um
futuro totalmente novo adiante, cheio de possibilidades infinitas e
grande riqueza. Não sabia muito bem como seria esse futuro. Não
ainda, pelo menos, mas lidar com a Baronesa não só aprofundara
seu amor pela moda, mas lhe dera sede de poder.
E mal podia esperar para arrefecê-la.
Mas havia uma última coisa que teria que fazer antes que Cruella
assumisse sua posição na Mansão Hellman. Tinha um último adeus
a dar.

Estella parou diante de uma cova recente, encarando a terra recém-


mexida. Na lápide estava o nome de Estella, seguido por descanse
em paz. Em letras menores estavam as palavras estilista, filha e
morta.
Segurando o colar da mãe, Estella encarou as palavras,
deixando-as penetrar. Tinha sido todas aquelas coisas. Tinha sido
uma estilista, não só criando looks incríveis, mas moldando uma
nova vida para si mesma, desenhando o plano que a livrara da
Baronesa de uma vez por todas. E tinha sido uma filha, uma filha
verdadeira para Catherine, em quem sempre pensaria como sua
mãe de verdade, uma substituta para a mulher que era incapaz de
amar. Olhou para John. O rosto estava triste e composto ao encarar
o túmulo. De certa forma, percebeu, ainda era uma filha. E uma
irmã, uma amiga, acrescentou quando o olhar pousou em Horácio,
Gaspar e Anita.
Mas de todas as palavras, a única que era mais verdadeira agora
era morta. Pois Estella tinha morrido. Estivera morrendo havia anos.
Pouco a pouco. Primeiro pelo garoto ruivo que tomara algo dela;
depois pela morte da mãe e os anos que se seguiram vivendo na
rua. Teria sido fácil dizer que a Baronesa tinha sido a “assassina”,
mas Estella sabia a verdade. Havia sido destinada a desaparecer
havia muito tempo. Naquele mundo duro, não havia lugar para
gentilezas ou corações moles. A Baronesa lhe ensinara isso. Se
queria ser bem-sucedida, e ela queria muito ser bem-sucedida, teria
que enterrar aquela parte sua para sempre. Nunca mais deixaria
que alguém passasse por cima dela como a Baronesa passara, e
jamais deixaria que alguém visse as suas fraquezas.
Sacudiu a cabeça e respirou fundo. Era hora de acabar com
aquilo. Deixando o colar balançar entre os dedos, começou a
própria elegia:
– Uma boa menina, quieta, meiga… mas meio chatinha e um
pouquinho assustada. Presa pelo passado, incerta quanto ao futuro.
Tragicamente assassinada. – Fez uma pausa, esperando para ver
se os outros reclamariam. Quando nada disseram, prosseguiu: –
Houve apenas uma pessoa que a amou, e a amou tanto que agora
elas estão juntas. – Dessa vez, viu Gaspar se mexer e abrir a boca
para dizer alguma coisa, mas continuou, não permitindo que ele
falasse nada. Não queria ouvi-lo dizer que era amada. Não tinha
tempo para aquilo… não agora. – Adeus, Estella – disse ao jogar o
colar no túmulo. Então limpou as mãos. – Certo, deveríamos tocar
uma música ou fazer algo para aliviar o clima.
Do outro lado do túmulo, Horácio assoou o nariz ruidosamente.
– Ela não está morta de verdade, camarada – apontou Gaspar.
Horácio pareceu surpreso ao ouvir o tom indiferente do amigo.
– Você não ficou comovido nem nada disso? – perguntou. – Você
deve ser feito de pedra.
Gaspar deu de ombros e começou a se afastar da sepultura.
Estella, agora Cruella, observou-o se afastar, levando o que restava
da inocência dela consigo. Gaspar sempre tinha sido a sua voz da
razão, o seu guia, mas ela não era mais a mesma garota. Estava
seguindo para a próxima etapa da sua vida. De agora em diante,
Cruella seria a única voz na sua cabeça. Gaspar teria que ficar mais
casca grossa se fosse permanecer em sua vida.
Fitando o túmulo uma última vez, Cruella seguiu Gaspar para fora
do cemitério e foi em direção ao DeVille. A hora de despedidas e de
pensar no passado tinha acabado. Olhou adiante, sua atenção fixa
na estrada. Tinha coisas a fazer, uma marca para construir, uma
mansão para a qual se mudar.
Acelerando pelos portões da Mansão Hellman, ligou o rádio
enquanto os pneus cantavam, lançando cascalho para todos os
lados. De repente, pisou no freio. Saltou do carro, abriu o porta-
malas e pegou um pé de cabra. Enquanto o sol se punha, foi até a
placa presa nos portões. Mansão Hellman estava escrito em letras
ornamentadas que brilhavam sob a luz dourada. Balançou a cabeça.
A Mansão Hellman tinha sido o lar da Baronesa. Inclinou-se para a
frente, cravando o pé de cabra na segunda palavra. Às suas costas,
Horácio comemorou quando o man caiu da placa.
Cruella deu um passo para trás e olhou para o nome: Mansão
Hell. Isso, pensou, muito melhor. Entrou no carro e dirigiu pelo resto
do caminho, cantarolando uma canção para si mesma enquanto a
mansão, iluminada por dentro, ficava à vista.
Lá dentro, John estaria esperando com a lareira acesa, e os cães
estariam mastigando ossos. Que as pessoas pensassem que ela
era assustadora, que conseguira derrubar a Baronesa. Que a
vissem e ficassem apavoradas. A Baronesa uma vez tinha dito que,
para ganhar, era preciso ser o primeiro a lutar.
– E agora? – perguntou Gaspar enquanto eles atravessavam a
porta e entravam em seu novo lar.
Cruella parou, pegando um lápis e um bloquinho na mesa. Levou
o lápis aos lábios vermelhos e brilhantes, franziu-os e sorriu.
– Eu tenho algumas ideias – respondeu e, jogando o seu
característico cabelo para trás, saiu, desaparecendo na mansão.
Estava pronta para entrar na luta. Derrubar a Baronesa tinha sido
só início. Quando terminasse, a vila, toda a cidade, talvez até
mesmo o mundo, estariam enxergando em preto e branco.

A mãe de Estella a leva para seu primeiro dia como aluna em uma
elegante escola particular.
A escola não é o que Estella pensou que seria, mas ela encontra em
um cachorrinho um novo amigo, chamando-o de Buddy.

Anos depois, Gaspar e Horácio surpreendem Estella em seu


aniversário com um emprego na loja de departamentos Liberty of
London, para ajudá-la a realizar seu sonho de ser estilista.

Estella decide colocar o próprio estilo em uma vitrine da Liberty of


London.
A Baronesa von Hellman, criadora da grife Casa da Baronesa, vê o
trabalho de Estella na Liberty e lhe oferece um emprego como
estilista.

Estella começa a pensar em um complô para derrubar a Baronesa,


com a ajuda de Gaspar e Horácio.
Estella se disfarça como Cruella pela primeira vez no Baile Preto e
Branco da Baronesa.

Horácio e Wink entram disfarçados no baile.


Gaspar e Horácio “cãoquestram” o premiado trio de dálmatas da
Baronesa.

Cruella faz um estardalhaço e estraga a entrada grandiosa da


Baronesa em um evento de tapete vermelho.
Anita, amiga da infância de Estella e repórter do Tattletale, captura
todas as aparições de Cruella em fotos e a torna famosa.

Gaspar e Horácio ajudam Estella a destruir o desfile de moda da


Baronesa – e, no lugar, apresentam um desfile de Cruella.
Gaspar toca guitarra no desfile de moda repentino de Cruella.

Cruella prova que está ali para ficar.


Gaspar e Horácio se veem em apuros depois de ajudar Cruella com
seu desfile de moda.

Cruella arruína a Baronesa de uma vez por todas.

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