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R854c
Rudnick, Elizabeth
Cruella : livro oficial do filme / Elizabeth
Rudnick ; tradução de Monique D’Orazio ;
roteiro de Dana Fox e Tony McNamara ;
história de Aline Brosh McKenna e Kelly
Marcel e Steve Zissis ; baseado nos
personagens criados por Dodie Smith ;
baseado em Cruella, da Disney. –– São
Paulo : Universo dos Livros, 2021.
232 p. : il., color.
E-ISBN 978-65-5609-098-6
Título original: Cruella live-action novelization
1. Literatura infantojuvenil 2. Disney,
Personagens de I. Título II. D’Orazio,
Monique
21-1253 CDD 028.5
Cruella De Vil não nasceu. Ela foi criada. Apesar disso, se formos
precisos, na verdade ela nasceu, como nasce qualquer ser vivo.
Seu nome era Estella. E há rumores de que, na noite de seu
nascimento, as estrelas não brilharam e a lua não ousou espreitar
por trás das nuvens tempestuosas. Alguns dizem que os lobos
uivaram, e outros, que os rios ao redor de sua casa correram
quentes. Mas as pessoas dizem muitas coisas.
E muitas vezes, essas coisas não são verdadeiras.
Pelo menos não todas elas.
Gaspar foi fiel à sua palavra – o que Estella achou um tanto irônico,
visto que ele era um ladrão, mas, como havia prometido, ele a
iniciou na atividade com “as coisas simples”.
Primeiro havia o Adam Tyler básico, como Gaspar chamava. Era
um movimento rápido de batedor de carteira; a parte mais difícil era
fazer com que todos – inclusive os cães – trabalhassem juntos.
Enquanto Horácio esbarrava em um transeunte, Estella punha a
mão no bolso e colocava o conteúdo na boca aberta de Buddy. Um
trote rápido até Gaspar encerrava com um truque de mãos. Antes
mesmo de o alvo virar a esquina, a carteira estava no chão, vazia, e
a gangue estava indo para o outro lado com os bolsos cheios.
Simples.
Mas as jogadas ficavam mais difíceis. Rápidas.
E Estella aprendeu todas elas – ainda mais rápido.
Ela aprendeu a bater carteira. Aprendeu a ser a distração.
Aprendeu a identificar um policial disfarçado e a escolher um alvo.
Dominou o Chororô – uma jogada que envolvia fazer um motorista
pensar erroneamente que tinha atropelado Buddy e sempre
terminava em lágrimas – e ela até conseguia criar algumas jogadas
por conta própria.
Para sua surpresa, Estella rapidamente se adaptou à vida nova.
Quando não estavam nas ruas sendo “empreendedores”, Estella se
dedicava a fazer sua nova casa parecer um pouco mais… bem,
acolhedora. Substituiu os colchões sujos por outros mais novos.
Vasculhando as latas de lixo nas partes chiques da cidade,
encontrou peças de arte e travesseiros, pratos e enfeites – todos
quase sem uso. Com a ajuda de Gaspar, ela os arrastava de volta
para o Covil e, em pouco tempo, as paredes não estavam mais
nuas. Algumas luzes deixaram o espaço mais claro, e Estella ainda
conseguiu encontrar divisórias para ter um canto só seu.
O Covil em ordem, Estella voltou sua atenção para os meninos.
Mesmo que eles estivessem ganhando uma quantidade até que
decente de dinheiro com seus furtos regulares, ela sabia que
podiam fazer mais. O único problema era que estavam limitados aos
lugares aonde poderiam ir. Tinham pouquíssimas roupas e maneiras
escassas de lavá-las. Na maioria das vezes, suas vestimentas
estavam manchadas, rasgadas ou remendadas. Se quisessem
roubar dos ricos, precisariam parecer, bem... mais ricos – ou pelo
menos parecer mais com as pessoas que trabalhavam para eles.
Com uma nova meta definida, Estella formulou rapidamente um
plano. Tinha o talento para fazer todos ficarem com uma aparência
melhor. O resto se encaixaria. Só precisava colocar as mãos em um
item especial…
Algumas noites depois, ela e os meninos estavam parados na
entrada dos fundos de uma alfaiataria. Eles trocavam o apoio do
corpo de um pé para o outro, ansiosos. A rua estava silenciosa
demais. Eles eram óbvios demais ali. Não se tratava de seu alvo
típico e eles não gostaram disso.
Mas, como Estella apontara antes, precisavam entrar e pegar o
que ela estava procurando.
– Poderíamos ser maiores, melhores… mais ricos – ela lhes
disse. – Vocês só têm que confiar em mim. Sei o que estou fazendo.
Ela havia convencido Horácio em “mais ricos”. Gaspar ainda
estava incerto, mas Estella sabia o que estava fazendo. Ficou na
ponta dos pés e escorou uma janelinha aberta acima da porta.
Horácio passou o chihuahua Wink pela janela, e eles o ouviram
pousar com leveza do outro lado. Um momento depois, houve uma
raspada na porta dos fundos e ela se abriu. Caminhando na ponta
dos pés enquanto os meninos vigiavam, Estella foi até a bancada do
alfaiate. Lá, brilhando mesmo na penumbra, havia uma máquina de
costura novinha em folha.
O coração de Estella se encheu ao vê-la. Ergueu-a em seus
braços, respirando fundo, satisfeita. Então, deu meia-volta e fugiu da
loja. Os meninos a seguiram de perto.
A partir daquele momento, era Estella quem arranjava suas
“missões”. Costurou figurinos de coroinha para os domingos, de
modo que Horácio e Gaspar pudessem fazer a coleta para os
“necessitados”. Criou uniformes de mordomo e mandou os meninos
servirem aos ricos e famosos e acessarem os bolsos deles à
vontade. Montou figurino após figurino com tecido roubado e
imaginação fértil, enquanto os meninos assistiam admirados.
Estella estava feliz. Não percebeu a princípio, mas embora ainda
pensasse em sua mãe a cada vez que abria os olhos, passava por
uma fonte ou via um lampejo de tecido brilhante, a dor se tornara
apenas algo amortecido. Tinha uma nova vida agora. Embora não
fosse algo que pudesse ter imaginado quando morava em sua
cabana, não era tão ruim assim. Podia costurar; tinha amigos; tinha
um teto sobre a cabeça (mesmo que tivesse goteiras). Sim, ela era
feliz.
E nesse estado de contentamento geral, os anos se passaram.
TREZE ANOS DEPOIS
Estella não estava pronta para voltar ao Covil, mas não queria mais
ficar no galpão. Ver o nome da Baronesa em cada peça de roupa,
cada desenho na parede, cada papel na lixeira simplesmente a
deixava doente.
Pegou suas coisas e saiu. Como se em meio a uma névoa,
caminhou pelas ruas, sem pensar na direção a que se movia.
Apenas deixou seus pés a carregarem enquanto sua mente a levava
para aquela noite escura, anos antes. Não pensava nisso havia
muito tempo, mas agora estava tão claro como se tivesse acabado
de acontecer.
Sua mãe e a Baronesa conversando. Os cachorros latindo. E
então sua mãe se foi. Perdida no penhasco para a água que havia
lá embaixo.
Durante anos, Estella convivera com as consequências, forçada a
encontrar um lar nas ruas. E durante esse mesmo tempo, a
Baronesa descansava em sua luxuosa mansão, ia às melhores
festas, criava peças fantásticas e tornava seu nome um sinônimo de
alta-costura.
Não era justo.
Suspirando, Estella ergueu os olhos e viu que havia entrado no
Regent’s Park. A fonte parecia cintilar com a luz forte do luar. Estella
caminhou até um banco próximo, afundou em sua superfície dura e
colocou a cabeça entre as mãos.
Sentindo olhos nela, Estella olhou para cima. Para sua surpresa,
deparou-se com Gaspar e Horácio parados na sua frente. Gaspar
parecia preocupado. Horácio parecia, bem... Horácio.
– Eu te disse – Horácio falou, presunçoso. – Ela sempre vem
aqui.
Estella deu de ombros. Ele não estava errado, mas por que
estavam procurando por ela? Olhou para o céu escuro e se
lembrou. Iam fazer um trabalho naquela noite no distrito dos teatros.
Não tinha percebido como já era tarde. De repente, seus olhos se
encheram de lágrimas e uma torrente de palavras saiu de sua boca.
– Ela chamou minha mãe de ladra – disse. – Falou que ela
fracassou como mãe.
Gaspar balançou a cabeça, tentando processar o que Estella
estava dizendo e de quem estava falando. Então seus olhos se
arregalaram quando ele percebeu.
– A Baronesa conhecia sua mãe?
Estella fez que sim. Levantou-se, esfregou as palmas na frente da
camisa e se recompôs.
– Acontece que foi na festa dela que a gente estava, todos
aqueles anos atrás – explicou. – Minha mãe chegou a trabalhar para
ela no passado. Deixei cair o colar enquanto fugia. A Baronesa deve
tê-lo encontrado. – Dizer as palavras em voz alta tornava a situação
ainda mais real e horrível, mas elas também deram a Estella uma
nova determinação em relação ao que sabia que seria seu próximo
passo inevitável, desde o momento em que vira o colar. Não tinha
outra escolha. – Vou pegá-lo de volta.
– Pegar? – Gaspar repetiu. – Pegar, tipo…?
– Roubando – finalizou Estella. Isso era exatamente o que faria. A
Baronesa não ficaria com o que restava de Catherine. – Eu poderia
pedir, mas ela é uma pessoa horrível, então provavelmente não me
devolveria. E roubar é muito mais divertido, de qualquer maneira. –
Ela sorriu enquanto Horácio acenava com a cabeça em
concordância óbvia.
– Finalmente! – disse ele alegre. – A jogada!
– Ela tem muitas joias – Estella disse a Horácio. – Você pode
levar tudo. Siga seus sonhos. Uma última missão.
Gaspar encolheu os ombros. Ele não queria uma última missão;
estava muito feliz com a vida que tinha.
– Mas muitas joias são sempre algo bom – concordou ele.
Horácio não hesitou.
– Parece algo sofisticado – continuou, estufando a barrigona –, e
esse sou euzinho.
Jogando os braços em volta daqueles homens que haviam se
tornado sua família improvisada, Estella deu-lhes um apertinho. É
verdade que não eram parentes biológicos, mas podia contar com
eles… sempre. E agora iriam ajudá-la a recuperar o que era seu por
direito.
Tudo o que precisavam era de um plano.
Estella sempre amara a parte de planejar os roubos do trio. Era
divertido, uma boa distração e uma maneira de sentir que tinha
algum controle sobre sua vida. Agora eram negócios. Ela queria
aquele colar de volta – e se a Baronesa sofresse um pouco no
processo, que assim fosse. Ela havia feito mal a Estella; agora
Estella daria o troco.
Felizmente, havia aprendido que a Baronesa era uma criatura de
hábitos e ue começava todas as manhãs com a mesma refeição.
Pedia almoço dos mesmos três lugares. Seu cochilo reparador de
nove minutos acontecia todos os dias exatamente treze minutos
depois de sua última garfada de almoço. Seus guarda-costas nunca
mudavam, porque, se mudassem, ela teria que treinar uma nova
dupla e isso custaria seu tempo, e tempo, como lembrava a todos,
era dinheiro.
Portanto, a vida para a Baronesa era rotina.
E isso era exatamente o que Estella queria.
O reconhecimento começou quase imediatamente. Quando
entrou no galpão na manhã seguinte, Estella sentiu como se o
estivesse vendo pela primeira vez. Ela não olhava mais para ele
como um lugar para criar moda, formar ideias. Em vez disso, era um
alvo.
Ficou de olho quando os guarda-costas chegaram. Notou o que
os distraía, se é que havia alguma coisa. Sentada no escritório da
Baronesa, observou que John, o criado, sempre mantinha a mão
perto do chaveiro grande que usava preso ao cinto.
– Sem chance de pegar o colar ali – Estella disse aos meninos
após seu primeiro dia de vigilância. – Precisamos ir para onde ela
menos espera: a casa dela.
Havia apenas um problema: a Mansão Ipswich era quase tão
fortificada quanto o galpão.
A Baronesa não se arriscava. Mantinha câmeras. Mantinha
guardas. Mantinha cães, mas Estella havia trabalhado como ladra
por tempo suficiente para saber que todas as câmeras tinham um
ponto cego. Todo guarda tinha uma fraqueza. E todo cão… bem,
cachorros podiam ser subornados… assim esperava.
– Você tem que nos conseguir o máximo de informações que
puder – Gaspar disse uma noite enquanto Estella conspirava e
fumegava de raiva. Quisera que fosse um trabalho rápido. Entrar,
sair. Pegar o colar e afastar-se da Baronesa, mas tudo aquilo estava
se provando ser muito mais complicado.
Ainda assim, sabia que Gaspar estava certo. Quanto mais
informações tivessem, mais bem preparados estariam. Então,
enquanto a Baronesa tirava uma soneca revigorante em seu quarto
uma tarde, Estella escapuliu e fez uma varredura nos corredores. Se
um guarda aleatório a visse, ela inventaria a desculpa de que
procurava o banheiro, enquanto ficava de olho no relógio. Nove
minutos não era muito tempo, mas depois de vários dias, achava
que tinha o suficiente.
Em frente a uma parede no Covil, Estella revisou as informações
reunidas. A parede havia se tornado o controle da missão: havia
listas de nomes, plantas da mansão, datas circuladas em vermelho,
fotos de todos os guardas e uma lista das guloseimas favoritas dos
cães. No meio de tudo isso, havia um convite, com pedaços de
barbante ligando-o a uma dúzia de outras informações.
– O Baile Preto e Branco – Estella disse, se virando para olhar os
meninos. – É nele que vamos agir.
Ela havia pensado com calma até tomar a decisão. A casa estaria
lotada. O colar estaria guardado no cofre onde a Baronesa guardava
todas as suas joias. Os seguranças estariam procurando intrusos,
sem pensar em se preocupar com o interior – e especialmente sem
pensar em procurar Estella. Afinal, ela já provara sua lealdade. Ou
assim eles pensavam.
– É a nossa maior missão de todos os tempos – Gaspar disse,
tirando o chapéu e segurando-o nervosamente contra o peito.
Estella fez que sim. Ele estava certo. E isso significava que o
planejamento tinha que ser meticuloso. Todos eles precisavam estar
exatamente em sincronia. Olhou para baixo, viu que Horácio estava
deitado em uma pilha de papéis e suspirou.
– Desativar o sistema de segurança – disse ela, pensando em voz
alta. – Evitar as câmeras. Abrir o cofre. Roubar o colar. – Parecia
bastante simples.
– Sair sem ser visto – Horácio apontou do chão.
Sim, isso também.
Mas era por isso que Estella tinha escolhido o baile. Ele criava
uma cobertura perfeita.
– Durante a maior festa da temporada? – disse ela, afastando a
preocupação dele. – Estará tão cheia que podemos nos perder no
mar de gente. E então, quando precisarmos, uma distração na qual
eu pego a chave do teclado de acesso e do cofre.
Parecia bastante simples para Estella, mas olhando para Gaspar,
notou que suas sobrancelhas estavam franzidas. Isso nunca era
bom. Significava que ele estava curioso – ou confuso – sobre
alguma coisa. E se ele estava pensando, provavelmente estava
encontrando falhas no plano.
Vermelho.
Desde que era uma menina e conhecera Gaspar e Horácio,
Estella pintava o cabelo do mesmo tom de vermelho. Para a maioria
das pessoas, teria sido uma escolha ousada de tonalidade. Mas,
dada a cor natural do seu cabelo, parecia seguro. Agora, porém,
essa cor tinha que ir embora.
Curvada sobre a pia, deixou a água correr até que estivesse
morna – o que era quase o máximo da temperatura que se
conseguia no Covil. Observando a água escorrer pelo ralo, Estella
respirou fundo. Estava prestes a mudar algo que a definia havia
anos. Quando pintou o cabelo pela primeira vez, Estella estava de
luto. Sua mãe não existia mais. Ela não tinha casa. Acabara de
conhecer Gaspar e Horácio. Esconder quem realmente era não
parecia errado. Pelo contrário, parecia necessário.
Mas, desde então, começara a amar o vermelho. Era quem ela
era agora; um rompimento com quem fora na época. Ainda assim,
se iria pôr em prática o plano de recuperar o colar e ter até mesmo
uma chance de fazê-lo sem ser reconhecida, se livrar do ruivo
parecia a melhor solução.
Mergulhando o cabelo embaixo do fluxo da torneira, observou a
tinta vermelha escorrer pelo ralo. A água gradualmente desbotou de
vermelho-vivo para rosa até se tornar transparente. Quando se
levantou, a mulher a encarando do outro lado do espelho era ao
mesmo tempo familiar e desconhecida.
Estella balançou a cabeça para seu reflexo em um sinal
afirmativo. Estava feito.
Agora era hora de agir.
A primeira parte do plano dependia de Horácio e de Gaspar. Isso
deixava Horácio bem satisfeito, mas, ele percebeu, deixava Estella
bastante nervosa.
Para ficar segura, ela repassara o plano com eles várias vezes.
Horácio sabia o que deveriam fazer. Seu cachorro, Wink, também
sabia qual era seu papel. A missão de Estella era recuperar aquele
colar, e se ela o queria, teria que confiar nele.
Gaspar parou a caminhonete da dedetizadora atrás de uma fila de
carros em frente à Mansão Ipswich. Sentado no banco do
passageiro, Horácio observava enquanto, um por um, convidados
vestidos com trajes caros recebiam ajuda para desembarcar dos
veículos e chegar até a porta da frente.
Cada convidado estava vestido de branco ou preto completos. Na
opinião de Horácio, isso fazia com que todos ficassem praticamente
iguais, o que parecia muito chato. Em seu colo, Wink ganiu. O
cachorro não gostava de ficar longe de Buddy, mas Estella insistira
em manter Buddy consigo no evento principal. Provavelmente era
melhor. Era mais fácil cuidar de um cachorro do que de dois.
Em meio ao mar de ostentação em preto e branco, a caminhonete
disfarçada de Gaspar e Horácio se destacava como se não
pertencesse àquele lugar.
Gaspar emparelhou o veículo na guia e parou longe da fileira de
carros e bem em cima de uma tampa de bueiro. Ele estacionou a
caminhonete. Enquanto Horácio saltava, Gaspar rastejou embaixo
da caminhonete e abriu o bueiro. Esperaria lá até que Horácio lhe
desse o sinal de que a barra estava limpa. Em seguida, iria para a
sala da segurança e começaria sua parte no plano.
Após dar um tapinha tranquilizador em Wink, Horácio observou o
cachorrinho correr à sua frente. Então respirou fundo e se dirigiu
para a entrada de serviço.
– Vim o mais rápido que pude – disse ele, parando em frente ao
segurança.
– Este é um evento privado – respondeu o guarda em voz
monótona.
– O tipo de praga com que eu lido não espera convite, cara. –
Abaixou a voz e se inclinou, como se estivesse revelando um
segredo. – Eles entram, mordem gente chique, que primeiro
espumam pela boca. Em seguida, os olhos reviram para trás e as
pessoas morrem. Então, o guarda que não tinha feito nada a
respeito… bem, fim de história para ele.
O segurança balançou a cabeça.
– É uma bela história, companheiro – disse ele sem sinceridade. –
Mas eu não acredito.
Era exatamente o que Horácio esperava que o homem dissesse;
criava a deixa perfeita para a parte seguinte do plano de uma forma
brilhante. Enquanto Horácio contava a sua “bela história”, Wink
passou pelos pés do segurança e se posicionou. Agora era a hora
de Horácio elevar o nível do drama. Seus olhos se arregalaram
quando ele olhou para “algo” atrás do guarda.
– Parado! – disse ele, baixando a voz para soar assustado. –
Faça o que fizer, não se vire…
Claro, o guarda imediatamente se virou. De uma prateleira do
outro lado da porta, Wink saltou e, rosnando, agarrou-se ao rosto do
guarda. O homenzarrão soltou um grito agudo no momento em que
Wink deu um último grunhido, e então correu para dentro de casa.
– Por que você está parado aí? – gritou o segurança, voltando-se
para Horácio. Ele não tinha dado uma boa olhada no cachorro,
então presumiu que a criaturinha era uma das pragas sobre as
quais Horácio o estava alertando. – Tire-o daqui!
Horácio assentiu. Enquanto o guarda olhava nervosamente para o
corredor, Horácio sinalizou para Gaspar, que escorregou para dentro
do bueiro. Então, voltando-se para o guarda, Horácio acrescentou:
– É melhor você lavar as mãos.
Com um aceno, entrou na casa, cheio de ginga. Ele sabia que em
algum lugar nos túneis abaixo, Gaspar estava a caminho do porão
para configurar seu computador. Em instantes, obteria acesso ao
circuito interno de TV e começaria a configurar as câmeras em
looping. Os seguranças encarregados das filmagens veriam
imagens antigas. Para todos os efeitos, estariam cegos.
A situação toda levou menos de três minutos. E agora Gaspar e
Horácio tinham acesso a toda a mansão. Tudo estava pronto para a
chegada de Estella.
Anita Darling estava furiosa com seu chefe. Implorara que ele não a
obrigasse a cobrir o Baile Preto e Branco da Baronesa. Ela não
podia se dar ao luxo disso – literal e figurativamente. Olhando para
seu vestido barato, uma imitação, reprimiu um gemido. Mesmo
barato, tinha lhe custado mais de uma semana de pagamento.
Aos 25 anos, Anita esperava já ter tido sua grande chance no
jornalismo. Tivera esperanças de estar escrevendo sobre questões
urgentes ou, pelo menos, recebendo matérias de primeira página,
mas ainda escrevia artigos de moda para o Tattletale. Eventos como
o baile daquela noite, que exigia que todos os participantes se
vestissem de branco ou preto – e apenas branco ou preto – eram o
que seus leitores devoravam, mas também devoravam a alma de
Anita pouco a pouco.
Ao sacar a câmera, apropriadamente coberta de branco para se
ajustar ao tema, Anita tirou algumas fotos da multidão e da
decoração. Eram, em sua opinião, exagerados e cafonas. Não
achava possível que os vanguardistas da moda cometessem erros,
mas, de alguma forma, simplesmente não conseguia assimilar a
visão da Baronesa. Era sem graça e parecia sem inspiração.
Quando se virou para capturar em imagem uma mulher vestindo o
que parecia ser uma pele branca de lagarto, Anita viu a Baronesa
descendo a escada para o salão principal. A estilista avistou Anita
ao mesmo tempo e seguiu caminho até ela.
– Srta. Anita Darling – disse ela, em uma voz que pingava
condescendência.
– Baronesa! – exclamou Anita, forçando um sorriso no rosto. –
Estou muito grata por ter dado exclusividade ao Tattletale esta noite.
A Baronesa mediu-a de cima a baixo. Anita corou sob o
escrutínio.
– Ao que parece – disse a Baronesa –, não agradecida o
suficiente para observar o código de vestimenta. – A Baronesa
arrancou a bolsa branca da mão de Anita e a ergueu. Anita fez uma
careta. Havia uma pequena mancha de tinta azul perto do fundo.
– Minha caneta deve ter vazado – explicou-se Anita, rindo com
nervosismo. – Ossos do ofício...
– Ninguém está interessado no que você escreve, minha querida
– disse a Baronesa. – Apenas no meu visual. – Com isso, se virou e
abriu caminho no meio da multidão que esperava ansiosamente
para adorá-la. Ao passar por um balde de gelo, a Baronesa largou a
bolsa ofensiva de Anita ali dentro.
Anita odiava que a mulher estivesse certa. Ninguém se importava
com o que ela escrevia, desde que houvesse uma foto da Baronesa
para acompanhar. Seria bom se alguém além dela recebesse
alguma atenção para variar, pensou enquanto puxava sua bolsa
para fora do gelo.
Mas era a festa da Baronesa. Como isso algum dia aconteceria?
Era mais fácil “interpretar” Estella do que pensava que seria. Com a
peruca vermelha na cabeça e os óculos no nariz, ninguém percebeu
quando ela entrou no galpão da Baronesa.
Ninguém, isto é, exceto Jeffrey. Localizando-a, ele gesticulou
desesperadamente.
– Ela quer você – disse ele quando Estella parou na frente dele. –
Depressa!
Estella foi até o escritório, mas parou do lado de fora da porta. Lá
dentro, viu a Baronesa, seu rosto vermelho de raiva. John estava de
canto e seu próprio rosto, como sempre, era ilegível. A Baronesa
gritou e jogou um exemplar do Tattletale no chão, que caiu entre
uma pilha de outros jornais. Diante de Estella, nas páginas via-se
imagens da Baronesa, convidados enlouquecidos e Cruella.
– Todo mundo está rindo de mim – esbravejou a Baronesa,
apontando para os jornais.
John balançou a cabeça, tentando acalmar a Baronesa
transtornada.
– Toda publicidade é boa, Baronesa – tentou ele, mas ganhou um
olhar penetrante. Ele recuou. – Embora tenham se concentrado
bastante nos ratos…
A Baronesa nem sequer considerou as pragas. Em vez disso,
perguntou:
– Você percebeu o cabelo dela?
Fora do escritório, Estella ficou intrigada com o que ouvira. Por
que a Baronesa se importava com o cabelo de Cruella? O criado
acenou para dispensar a preocupação da mulher.
– Coincidência – disse. – Parece que os jovens estão todos
fazendo isso hoje em dia.
Estão?, Estella pensou. Isso parecia um pouco forçado, mesmo
para John.
– Estão mesmo? – perguntou a Baronesa, ecoando o pensamento
de Estella. Como ela, a Baronesa não parecia convencida.
John concordou. Quando ele começou a dar suas justificativas,
Estella respirou fundo. Ela não iria simplesmente ficar ali. Quando
ela entrou na sala, a Baronesa ergueu os olhos, surpresa por ser
interrompida. Vendo que era apenas Estella, a mulher franziu a
testa.
– Ah, aqui está ela – disse a Baronesa. – Atrasada, mas
claramente feliz por ter seu salário reduzido em trinta por cento.
Estella não teve a oportunidade de responder enquanto a
Baronesa avançava.
– Pegue um bloco – ordenou, apontando para uma pilha em sua
mesa.
Estella pegou um bloco, um lápis e esperou.
A Baronesa caminhou até o outro lado do escritório e saiu para o
balcão. Olhou para o ateliê abaixo, batendo a mão na grade que
cercava o mezanino. Todos do andar ergueram os olhos.
Imediatamente, a sala ficou em silêncio.
– Minha coleção de primavera – declarou ela. – Preciso de doze
peças e já tenho… deixe-me contar. – Ela fez uma pausa e foi até
um quadro grande com meia dúzia de desenhos pregados nele. Um
por um, os arrancou e amassou em bolinhas. Atrás dela, Estella
estremeceu. Eram meses de trabalho dos estilistas, destruídos. –
Zero! Vão! Quero dez peças que funcionem, às três horas da
manhã! – gritou, voltando-se para Estella.
– Obrigada – respondeu esta.
– Gratidão é para perdedores – rebateu a Baronesa. Seu tom era
agressivo e frio.
Estella não pôde deixar de notar como ela falara diferente com
Cruella. Havia certo nível de respeito em sua conversa, mas não
para Estella. A raiva latente em seu coração esquentou. Ela a
abafou ligeiramente, mas cutucou o monstro um pouco mais.
– Bom conselho – elogiou. Então, muito intencionalmente,
acrescentou: – Obrigada.
– O que eu acabei de dizer?
– Não diga “obrigada” – respondeu de imediato, contendo a
sensação de alegria que sentia ao incitar a Baronesa. – Entendi.
Obrigada. – O deslize “acidental” rendeu-lhe outro olhar furioso.
Felizmente, naquele momento, o telefone na mesa tocou alto.
A Baronesa foi até lá com tudo e o arrancou do gancho. Sua
expressão furiosa se intensificou ainda mais quando a voz do outro
lado da linha murmurou algo.
– O que você quer dizer com “os cães sumiram”? – gritou quando
a outra voz parou. – Encontre-os!
Era a deixa de Estella. Ao sair pela porta, suprimiu um sorriso.
Sentia-se satisfeita de estar lá na sala da Baronesa quando a
ligação aconteceu. Ver a expressão zangada da mulher quase
compensou a agressão verbal que tinha recebido. Quase.
Mas não importava o que a Baronesa lhe dissesse ou fizesse.
Porque, Estella pensou ao entrar no ateliê, Cruella riria por último –
começando naquela noite, quando fizesse outra “aparição especial”
em um dos eventos da Baronesa.
Estella estava chegando perto. Não poderia sair do ateliê antes de a
Baronesa ir embora ou acabaria chamando atenção para si, mas a
Baronesa levou um tempo exasperantemente longo para tentar
escolher o look que usaria na soirée daquela noite, uma estreia no
tapete vermelho. Quando ela finalmente escolheu um vestido e
entrou na limusine, Estella não tinha nem uma hora para voltar para
o Covil, fazer a troca de Estella para Cruella, e ir para a estreia.
Escondida em um beco, Estella observou a longa fila de limusines
se aproximar do tapete vermelho, reduzir a velocidade até parar e
liberar seus ocupantes. Flashes disparavam, repórteres gritavam
perguntas e, dependendo da estrela, os gritos eram ainda mais
altos. A atmosfera fervilhava de animação, e a lista de convidados
contava com a nata do entretenimento e do mundo da moda. Estella
viu dois astros do rock, nada menos do que cinco estrelas de filmes
de primeira linha, além de meia dúzia de diretores, e isso foi só nos
quatro minutos em que esteve ali no beco.
Quando fizesse sua aparição, seria épico.
Esquadrinhando a fila de limusines, localizou o carro da
Baronesa. Ótimo. Tinha conseguido chegar a tempo. Ela semicerrou
os olhos para a multidão que se reunira atrás das grossas cordas de
veludo usadas para separar as estrelas da ralé. Acenou mais uma
vez com a cabeça. Gaspar e Horácio estavam em posição.
Chamando sua atenção, Gaspar inclinou o chapéu para ela. Ela
ergueu um dedo. Espere, moveu a boca sem fazer som.
Confiando que Gaspar e Horácio estariam prontos, Estella levou
um minuto para dar os toques finais no próprio visual. Tirou uma lata
de tinta em spray da bolsa e pôs as mãos na massa. A mão voou,
pulverizando a tinta. Ao acabar, olhou para baixo, para a sua obra
de arte. Perfeito, pensou ao sorrir.
Olhando mais uma vez pelo beco, ela constatou que o carro da
Baronesa tinha avançado. Agora estava a um carro de distância da
entrada. Gaspar e Horácio passaram por debaixo das cordas de
veludo. Enquanto o carro da Baronesa parava diante do tapete
vermelho, eles se posicionaram de cada lado dele e enfiaram uma
imensa tira de couro por cima e por baixo do carro, bem na frente da
porta da Baronesa. Ela estava presa lá dentro.
Estella respirou fundo. Em seguida, saiu correndo pela rua e foi
em direção ao carro. Lá dentro, a Baronesa batia na porta e gritava.
Do lado de fora, Estella saltou sobre o teto do veículo. Na mesma
hora, dúzias de câmeras se viraram na sua direção. Quando os
flashes começaram a lampejar, Estella rodopiou. Rápido e mais
rápido ela girou, o vestido rosa fluorescente flutuou para cima e para
trás até ela não passar de um borrão rosa. Ouviu os paparazzi
perguntarem o seu nome, o do estilista, mas Estella continuou
rodopiando. Ao girar, a saia se desfazia, camada por camada. A
cada uma, uma peça irregular da arte em spray era revelada.
Abaixo de onde estava, Estella ouvia os gritos coléricos da
Baronesa. Sabia que teria que encerrar logo. Se queria construir um
mistério, não podia acabar sendo pega. Com um último giro, a
última parte da saia se soltou do lugar em que estava presa ao redor
da cintura e caiu sobre o carro. Durante sua fuga em disparada, a
calça rosa néon brilhava, e ela ouvia os arquejos de espanto da
multidão.
Virando-se, permitiu-se um instante para apreciar a sua obra. O
carro da Baronesa estava agora coberto pela saia rosa. E escritas
em tinta spray vermelha com bagunçadas letras garrafais, que
tinham feito a coisa toda parecer um trabalho de arte moderna,
estavam as palavras O PASSADO.
Estella teve um vislumbre do rosto da Baronesa dentro do carro,
pressionado na janela, enquanto a mulher, desesperada, tentava ver
o que acontecia.
Estella riu. Tinha conseguido. Tinha feito a Baronesa de boba.
Estava um passo mais próxima de levar a cabo a sua vingança e
deixar o passado no passado.
A Baronesa estava furiosa. Fora alvo de uma humilhação e agora
estava descontando nos funcionários. Com a cabeça inclinada sobre
o jornal da manhã, arrematado com uma fotografia imensa do seu
carro coberto pelo vestido, ela andou para lá e para cá na frente dos
estilistas que estavam todos parados, tremendo em seus sapatos
desconfortáveis. No fim da fila, estava Estella, sentindo-se um
pouco culpada. Aquilo era, em parte, culpa sua, ou ao menos de
Cruella.
Sua façanha na estreia tinha valido a pena. A nata da sociedade,
e várias pessoas que não eram nem o leite, estavam falando daquilo
e se perguntando sobre a identidade verdadeira da misteriosa
fashionista de cabelo preto e branco que era conhecida como
Cruella. A maior parte das pessoas estava intrigada. A Baronesa só
estava furiosa.
– Não temos uma peça conceitual – vociferou a Baronesa, indo
feito um furacão até os nove croquis presos no quadro de cortiça.
No meio estava um enorme espaço no lugar em que um croqui
devia estar. – E essa tal de Cruella está em todos os lugares! Eu
quero ideias!
Atirando o jornal em Jeffrey, a Baronesa se virou e olhou para
Estella, que, nervosa, engoliu em seco. Não gostava nada do olhar
da Baronesa.
– Estella – chamou a estilista. Foi até ela e pegou o bloco de
desenho de suas mãos –, você é a minha última esperança. O que
você desenhou? – Ela folheou os croquis, parando em alguns,
fazendo cara feia para outros, ficando emburrada com outros mais.
Estella observou.
– Você parece chateada – comentou ela.
A cabeça da Baronesa se ergueu de supetão.
– Meus cachorros sumiram, meu colar foi roubado e essa tal de
Cruella é… – A voz dela esvaneceu, e Estella se sentiu inclinar para
a frente, curiosa para ouvir o que a Baronesa ia dizer, mas, em vez
de concluir a linha de pensamento, a Baronesa balançou a cabeça e
disse no lugar: – Esse desfile tem que ser o melhor!
Desempenhando o papel de assistente solícita, Estella assentiu
em solidariedade.
– Agora você parece um pouco fora de prumo – observou ela,
tentando não soar tão feliz quanto estava com a situação. – Aceita
um pouco de pepino? Fatiado fininho?
– Vá! – gritou a Baronesa, atirando-lhe o bloco de desenho ao
levantar a voz. – Vá e ponha esse seu cérebro murcho e ressequido
para trabalhar!
– Agora mesmo – respondeu Estella, engolindo o que realmente
queria dizer sobre quem era murcha e ressequida.
Virando-se para o restante dos estilistas, a Baronesa estendeu o
braço em direção às estações de trabalho.
– O resto de vocês – estalou –, de volta ao trabalho. – Sem dizer
mais uma palavra, ela se virou e saiu do ateliê, subindo as escadas
e dirigindo-se ao próprio escritório. Um instante depois, a porta
bateu.
Estella sabia que o que deveria fazer era trabalhar nos croquis
para a Baronesa, mas, depois dos últimos dias, estava inspirada a ir
além. E o intervalo para o almoço era, tecnicamente, um “intervalo”,
então, enquanto comia, podia muito bem usar o tempo em benefício
próprio. Pegou o almoço embalado e o próprio bloco de desenho e
saiu de fininho da mesa.
Percorreu com agilidade os corredores sinuosos que agora lhe
eram tão familiares quanto o Covil. Tinha passado muitas horas
naquele prédio. Suando e se preocupando, tudo por uma mulher
que não merecia nem os seus talentos nem o seu tempo. Se
pudesse, Estella desistiria de tudo para ter a mãe de volta, mas já
que aquela não era uma possibilidade, teria que se conformar com a
que mais se aproximava da melhor: certificar-se de que sua mãe
não tivesse morrido em vão. A Casa da Baronesa não seria o fim da
paixão de Estella pela criação. Não daria a ela a satisfação de lhe
tirar tudo. Extrairia proveito do que aprendera, e das portas que a
Baronesa lhe abrira sem perceber, para se tornar uma estilista como
Londres, e até mesmo o mundo, nunca tinha visto.
Mas primeiro precisava terminar de lidar com a Baronesa.
Chegando ao fim de um longo corredor, Estella empurrou a porta
de emergência. Sabia que o alarme não dispararia. Os rapazes da
entrega usavam a saída para escapar escondido e fazer uma pausa
sempre que podiam. O beco lá nos fundos era reservado e
silencioso. O lugar perfeito para Estella poder criar.
Acomodou-se num canto do beco. Pegou uma maçã na bolsa
térmica e mastigou, esperando que a inspiração surgisse. Não levou
muito tempo. Em poucos segundos, a mão já corria pela página e
um vestido ganhava vida no papel. Com a cabeça inclinada, ela não
notou que a porta para o beco tinha sido aberta e que dois
seguranças enormes apareceram. Foi só quando a sombra deles
caiu sobre o vestido que ela olhou para cima. Os olhos se
arregalaram.
Um dos seguranças estendeu a mão imensa e carnuda para
tomar o bloco de desenho de Estella. O outro a agarrou e a colocou
de pé. Sem dizer uma palavra, eles a levaram para o galpão, e
direto para o escritório da Baronesa.
– Isso é meu! – gritou Estella, impotente, enquanto eles a
arrastavam ainda mais para dentro do galpão.
Os homens a ignoraram. Ela lutou contra o aperto do segurança,
mas foi inútil. O pânico e o medo a inundaram. Se aquela mulher
visse o desenho… Estremeceu. Ele poderia delatá-la e arruinar seus
planos de vingança antes mesmo de ela conseguir colocá-los em
prática. Como a mulher ficara sabendo que deveria procurá-la no
beco? Foi então que percebeu. Câmeras. A Baronesa era muito
paranoica. É claro que tinha câmeras em todas as partes.
Antes que refletisse mais sobre a violação de confiança que
aquilo representava, eles chegaram ao escritório da chefe. Dois
guardas a empurraram sala adentro e largaram o bloco de desenho
na mesa, diante da Baronesa.
Mais tarde naquela noite, Estella estava curvada sobre sua área de
trabalho no Covil. Uma fila de vestidos, sua própria coleção, estava
pendurada em araras, esperando por Artie e as outras costureiras
que ele traria para ajudar a passá-los para o “desfile” final. Ao
desligar o vaporizador de roupas, Artie se espreguiçou, soltando um
bocejo. Estava tarde. Estella sabia que deveria seguir o exemplo de
Artie e ir descansar, mas tinha mais trabalho a fazer.
Do outro cômodo, ouviu o som da televisão enquanto Horácio
assistia a uma partida de futebol e falava com os dálmatas. Os
animais enormes tinham começado a gostar muito de Horácio e
passavam a maior parte do tempo colados nele. Antes de descobrir
a verdade sobre a Baronesa, Estella poderia muito bem ter se
juntado a Horácio. Teria vibrado ao lado dele enquanto o time para o
qual torciam jogava, talvez tivesse adormecido no sofá, mas as
circunstâncias eram diferentes agora. Ela era diferente. Tudo o que
importava era se vingar.
Ao ouvir passos, Estella não olhou para cima enquanto Gaspar
punha uma xícara de café quente diante dela.
– Boa noite – desejou ele, baixinho.
Ainda assim, ela não olhou para cima enquanto passava a agulha
pelo tecido em sua mão. Era o último ponto no último vestido. A
coleção em que tinha trabalhado a cada noite desde o “nascimento”
de Cruella estava quase completa. Precisava se concentrar, mas
podia sentir os olhos de Gaspar sobre si.
– O que foi? – inquiriu.
– Onde você está? – perguntou ele, parecendo preocupado.
Aquilo irritou Estella.
– Bem aqui – respondeu ela, mordaz. – Trabalhando para cumprir
um prazo.
Gaspar balançou a cabeça.
– Sinto saudade da Estella – confessou ele.
Na outra sala, Horácio gritou feliz quando seu time marcou um
gol. Os cães se juntaram a ele, latindo. Estella se virou, irritada com
o barulho. Encarou os três cachorros por um instante.
– Eles dariam um casaco excepcional – disse ela, por fim. Gaspar
pareceu horrorizado e ela riu. – Estou brincando! – Mas o sorriso
não alcançou os olhos e a expressão de Gaspar continuou a
mesma. Ele queria falar sobre as coisas das quais sentia falta?
Bem, Estella estava com saudade do Gaspar que tinha senso de
humor. Não faria mal a um cachorro só para fazer um casaco,
mesmo que ele tivesse pintas maravilhosas.
Gaspar suspirou e disse:
– Você sabe que coisas ruins aconteceram com todos nós.
Comigo. Com você. Sempre estivemos aqui para apoiar um ao
outro.
Estella ouvira o suficiente. Não precisava que Gaspar a fizesse se
sentir culpada naquela, dentre todas as noites. Ele estava certo.
Coisas ruins tinham acontecido com eles. Então por que ele não
deixava que ela encontrasse uma forma de consertar tudo?
– É tudo o que peço – rebateu ela. – É tão difícil assim me apoiar?
Me dar cobertura?
– Para ajudar Estella? Não – disse Gaspar. – Isso é fácil. Ajudar
Cruella? É um pesadelo.
– Você e essas suas sutilezas! – gritou Horácio da outra sala. – É
pior que isso.
Estella deu uma olhada feia para Horácio, que ele não conseguiu
ver. Então olhou para Gaspar.
– Cruella põe os planos em prática – explicou com naturalidade. –
Estella, não. E eu tenho coisas a fazer. – Voltou-se para o vestido
que tinha em mãos, esperando que Gaspar pegasse a deixa. Ele
não pegou. O rapaz continuou a encará-la, com uma expressão que
ela não conseguia definir, mas da qual, com certeza, ela não tinha
gostado. – Então, se já acabou o assunto…? – disse ela, direta. Ele
continuou sem se mover. Imitando a Baronesa, Estella adicionou: –
E quando eu disse se, eu quis dizer acabado.
Gaspar suspirou. Ele enfim entendera. Ao virar-se para sair, ele
parou, como se quisesse dizer mais alguma coisa, entretanto, com
uma sacudida de cabeça, foi em direção ao sofá. Ótimo, Estella
pensou ao se virar para o vestido. Enfim, paz. Um momento depois,
no entanto, um dos dálmatas entrou e se acomodou na almofada ao
seu lado.
Estella ergueu uma sobrancelha. Com certeza a criatura não tinha
ouvido a piada.
– E não é que você é corajoso? – perguntou. Então, com um
sorriso, voltou ao trabalho.
Que Gaspar ficasse chateado com ela. Que Horácio tivesse
medo. Não se importava. Não agora. Em breve eles veriam que ela
estivera certa o tempo todo, e que a vingança seria o melhor golpe
que já tinham posto em prática.
Era a noite perfeita. O ar normalmente úmido e frio de Londres dera
lugar a uma noite confortável e agradável. Até mesmo as estrelas
tinham aparecido, tanto as reais quanto as versões em
celebridades. Em frente ao galpão da Baronesa, uma multidão tinha
começado a se reunir, ansiosa para assistir à revelação da última
coleção da estilista. Os rumores estavam a toda: a coleção seria
magnífica, a melhor até então. A coleção seria terrível… obsoleta e
apressada, por causa de Cruella.
A Baronesa ignorou todos os boatos. Sabia que sua coleção era
estelar. E o vestido que seria o símbolo conceitual daquela coleção
iria surpreender a quem tinha dito o contrário. Agora só precisava
liberar a coleção para o mundo.
De pé no alto das escadas do escritório, a Baronesa observou
enquanto seus asseclas corriam para lá e para cá, à procura de
deixar tudo em ordem antes de permitirem a entrada dos
convidados. O cofre tinha sido levado para o andar principal do
galpão e naquele instante estava escondido atrás de uma cortina,
esperando o momento em que o seu precioso conteúdo seria
revelado. Por ordem sua, o ateliê dos estilistas fora transformado.
As mesas tinham sido removidas e os painéis, retirados. No lugar
deles, pendurou-se luzes; no lugar das mesas agora estavam as
cadeiras, que rodeavam a longa passarela. Parecia requintado e
industrial ao mesmo tempo. A Baronesa estava feliz, tão feliz quanto
se permitia ficar. Mesmo lá de dentro, sentiu que a multidão
aumentava e se agitava. Àquela altura, os convidados VIP já deviam
estar chegando. Ela os faria esperar. Um bom lembrete de que era
ela quem estava no controle.
Ao seu lado, os olhos de John esquadrinhavam a sala. O rosto do
criado estava, como sempre, inexpressivo. Para ele, cada
trabalhador lá embaixo era um risco potencial para a segurança ou
um indivíduo que talvez fosse aborrecer a patroa. Normalmente, a
Baronesa gostava da meticulosidade dele, mas naquele momento
não se importava com todos os funcionários. Importava-se só com
uma.
– Quando Estella chegar, escolte-a até o meu escritório e a
mantenha lá – deu a ordem. Ela o olhou com suspeita. – Posso
confiar em você desta vez?
Ele não se deu ao trabalho de responder à pergunta. Em vez
disso, repetiu para ela o que vinha afirmando o dia inteiro: Estella
não era Cruella. Não havia como ela ser capaz de realizar as
façanhas da outra.
– Você é pago para dar palpites ou para obedecer? – disse a
Baronesa, quando ele parou de falar.
John abriu a boca, e então pensou melhor. Ele fez que sim.
– Tomarei as providências – respondeu.
A Baronesa o observou descer as escadas. Como ele ousava
questioná-la? Fazia dias que estava encaixando as peças.
Combinando momentos e conectando evidências. Cruella não podia
ser ninguém menos que Estella. Fazia perfeito sentido. Ela tinha
estudado os vestidos de Cruella e visto o mesmo padrão em alguns
dos trabalhos de Estella. E nunca tinha pedido as referências de
Estella. Limitara-se a arrancá-la daquela vitrinezinha idiota e a jogar
o emprego dos sonhos em seu colo. Não tinha ideia de onde aquela
menina tinha vindo. Estella podia muito bem ter a mente perversa
necessária para bagunçar as coisas para ela daquele jeito. Que
John pensasse o que bem entendesse. Não importava, contanto
que o desfile trans-corresse sem problemas.
Ao ouvir o seu nome, ela viu Jeffrey fazendo sinal lá debaixo das
escadas. Suspirou. Será que aquelas pessoas podiam fazer algo
sozinhas? Abriu caminho até o assistente e parou diante dele. O
homem tremia a olhos vistos, e o rosto estava branco feito
fantasma.
– Desembuche! – ordenou.
Mas Jeffrey não era capaz de falar. Ele só tremia e apontava para
a cortina às próprias costas. Passando por ele, a Baronesa puxou o
tecido para o lado só o suficiente para passar. Não queria que o
público visse detalhe algum antes da hora. E quando viu o que
estava do outro lado, ficou feliz pela precaução. Havia um técnico
diante do cofre. Ele mexia no painel de controle, que exibia uns
sinais esquisitos.
Seguindo-a, Jeffrey finalmente encontrou a voz.
– Há algo errado com a fechadura, Vossa Senhoria – disse ele.
A Baronesa engoliu um grito de frustração. Não era idiota! Podia
ver que havia algo errado. O grande problema não era o que, mas
por quê? Por que não estava funcionando? Os convidados estavam
chegando, e o desfile começaria em menos de uma hora.
– Eu não me importo com o que precise ser feito, abra-o!
Mas, uma hora depois, o cofre ainda não tinha sido aberto, e a
multidão estava cada vez mais inquieta. A nata das pessoas mais
importantes da indústria da moda se remexia em suas cadeiras
desconfortáveis. Tinham ido para um desfile, mas, até então, tudo o
que viram era uma passarela vazia. Uns poucos repórteres mais
ousados anotavam suas observações e pediam declarações.
Espiando de trás da cortina, a Baronesa fez uma careta. Não
conhecia os repórteres nem tinha controle sobre o que as pessoas
estavam dizendo. Precisava começar o desfile, e naquele instante!
Virando-se para o técnico, o empurrou para o lado. O trabalho
sempre sobrava para ela. Abaixou-se e pegou o maçarico que
pedira para John arranjar. Entregando-o para o chefe da segurança,
ela acenou e o homem acendeu o fogo. Do outro lado da cortina, os
convidados arfaram ante o vislumbre de uma forte luz vermelha.
Pouco a pouco, a chama cortou as dobradiças. A Baronesa não
parou de olhar para a porta enquanto, centímetro a centímetro, a
chama fazia o seu trabalho. Finalmente, com um rangido alto, a
dobradiça se partiu e a porta caiu no chão. Tinham conseguido!
Ela suspirou de alívio ao parar na porta do cofre aberto, mas a
sensação só durou um instante. Ficou horrorizada quando viu que,
em vez de vestidos, uma nuvem de mariposas surgiu em um
tornado de asas. Enquanto as pessoas ao seu redor moviam as
mãos e gritavam, os olhos da Baronesa lançaram um fogo muito
mais quente que o de qualquer maçarico. Ignorando os funcionários
e as mariposas, olhou para o fundo do cofre.
Os vestidos, cada um deles, tinham sido destruídos. Buracos
tinham sido abertos em cada pedaço de tecido, cada manga, cada
corpete, cada cauda. Era um total e completo desastre. À medida
que sua fúria aumentava, a Baronesa olhou para o vestido
conceitual. Ali no meio dos outros, ele ainda era lindo, mas havia
algo diferente nele. Não parecia mais brilhar e resplandecer.
Observando, viu que uma das contas tinha começado a tremer. Um
momento depois, ela se partiu e uma mariposa rastejou de lá.
A Baronesa se encheu de fúria. As pedrarias não eram pedrarias,
afinal de contas! Eram casulos de mariposa, centenas e centenas
de casulos. Muito bem costurados no vestido por aquela desgraçada
da Estella, eram bombas-relógio. E agora tinham explodido e
causado destruição em massa.
Ao passo que as mariposas adentravam ainda mais o galpão, os
convidados começaram a gritar. Cadeiras rangiam enquanto as
pessoas fugiam da infestação. Em questão de instantes, o galpão
ficou vazio.
O desfile da Baronesa acabara antes mesmo de começar.
A mãe de Estella a leva para seu primeiro dia como aluna em uma
elegante escola particular.
A escola não é o que Estella pensou que seria, mas ela encontra em
um cachorrinho um novo amigo, chamando-o de Buddy.