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Direitos autorais do texto original copyright © 2023

O Beijo que Mudou tudo, Thay Garcia


Autora: Thay Garcia
Design de Capa Thay Garcia
Revisão ortográfica Amy

Todos os direitos reservados.


A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº9.610/98,
punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Este livro ou qualquer parte dele não pode ser reproduzido ou usado de
forma alguma sem autorização expressa, por escrito da autora, exceto pelo
uso de citações breves em uma resenha do livro.
Esta é uma obra de ficção imaginada, escrita e criada por esta autora.
Qualquer semelhança com nomes, pessoas, lugares, fatos ou situações da
vida real terá sido mera coincidência.
Sinopse
Nicole e Dakota, melhores amigas desde a pré-adolescência,
veem sua amizade transformada por um beijo revelador. Um mal-
entendido na noite desse acontecimento as afasta drasticamente, e
durante doze anos, a paixão é escondida, e o tempo as mantém
distantes. Agora, Nicole está noiva, porém, mesmo comprometida,
o destino a reúne com Dakota de maneira inesperada. À medida
que o passado se entrelaça com o presente, elas se deparam com a
desconcertante constatação de que nada é como antes. Em meio a
desentendimentos e descobertas, "O Beijo que Mudou Tudo" é uma
trama cativante que explora a complexidade do reencontro,
questionando se o amor juvenil pode resistir às mudanças do tempo
ou se o passado as separará para sempre.
Um beijo mudou tudo na primeira vez,
e na segunda mudo de novo.
NICOLE
Alguém jogou macarrão por cima de cinco mesas até cair nos
cabelos castanhos de uma menina que almoçava sozinha. Como estava de
costas, não foi possível ver o mandante do crime, mesmo assim, isso não a
impediu de bater o garfo contra o prato, subir na mesa pisando em mais
macarrão que ainda não havia comido, e com o pé todo sujo de molho,
berrou um bonito palavrão. O que fez capturar a atenção do restante dos
alunos que não tinham notado a brincadeira de mau gosto.
E essa foi a primeira vez que vi Dakota Ferrero. Mesmo que tal
atitude fosse reprovada em qualquer escola, o colégio religioso São Miguel
aceitou menos ainda. A diretora - de cabelos escorridos num tingido louro
que já mudava para um tom desidratado e amarelo ovo - veio marchando na
direção da garota dos cabelos sujos de massa e a arrancou da mesa pelo
pulso. A carranca envaideceu o rosto marcado pela idade, mesmo que todos
soubessem que ela não fosse tão velha; cuidar de um colégio religioso devia
ser estressante. A diretora levou Dakota para longe sem nem ao menos
querer saber seu lado da história. Dakota, por outro lado, passou por mim
dando uma piscadela enquanto o sorriso de molho de tomate pintava o rosto
oval de contornos delicados e definidos. Pisquei sentindo as bochechas
corarem. O menino, Juan, a quem eu pouco conhecia, com cabelos ruivos e
sardas salpicadas nas maçãs protuberantes, ria da situação; os caninos tortos
davam um ar ainda mais levado ao responsável pelo arremesso da comida.
Após alguns dias, praticamente toda a escola só falou naquela cena.
Mesmo que Juan houvesse causado o desperdício em uma colega na
sagrada hora da refeição, apenas Dakota pagou por isso com uma boa
suspensão e uma carta aos pais. Todo mundo imaginou que eles iriam
aparecer feito loucos ferozes para castigar a filha, ou algo parecido;
contudo, nenhum responsável surgiu. Boatos se infiltraram sobre a novata, e
foi como descobri seu nome, enquanto uma fofoca passava pela boca de
outro pré-adolescente pelos corredores apertados. E quanto a Juan, após
Dakota voltar da suspensão, o menino apareceu com um círculo roxo ao
redor do olho direito. Ninguém confirmou que havia sido obra de vingança,
o que foi suficiente para Dakota não sofrer bullying de outros moleques.
Mais tarde descobri o que realmente havia causado aquele olho machucado.
Após o incidente, as coisas ficaram normais, ou o mais próximo
disso, já que, parando para pensar, desde sua chegada ao colégio São
Miguel, nada nunca mais foi normal. Eu andava no mundo da lua. Com
frequência me pegava tendo pensamentos incomuns com outras colegas de
escola. Ideias que ninguém falava sobre no meio das conversas do intervalo.
Porém, um dia atrasada corria para uma das salas de aula temendo pela
bronca que tomaria, mas como a distração sempre me acompanhava, acabei
abrindo a porta errada e dando de cara com Dakota e outra menina no canto
da sala no meio de beijos, com direito a passadas de mão. Mesmo que seus
corpos estivessem escondidos entre a penumbra das cortinas fechadas,
ainda era possível ver a silhueta de ambas. Fiquei atônita com a cena; não
sei quem havia sido mais flagrada, elas ou eu. Já que as três ficamos nos
entreolhando em silêncio total. Dei as costas sem proferir sequer desculpas
e corri para o final do corredor, esquecendo completamente da aula de
filosofia.
Meu corpo reagiu à visão dos beijos. Fiquei quente por dentro e senti
o famoso frio na barriga ao mesmo tempo que me deixou sorridente e
vermelha. Sensação essa nunca sentida ao ver um casal de menina e
menino. Não que o colégio fosse um encontro de jovens cheios de
hormônios feito especialmente para se esfregarem por aí; entretanto, todos
tomavam cuidado entre uma escapada e outra. A diretora, obviamente, fazia
vista grossa.
Eu havia ficado interessada na cena, mesmo que uma parte de mim
quisesse estar no lugar da outra menina, sendo aquela beijada por Dakota. O
pensamento me perseguiu por dias e noites, mesmo distraída ainda tentando
entender meus sentimentos amorosos por garotas; a novata conseguia
arrancar timidez de mim toda vez que passava em meu campo de visão.
Em dado momento, durante uma aula em que o professor colocou
um filme sobre Moisés para assistirmos, tive minha primeira interação com
Dakota. Ela me cutucou enquanto minha cabeça projetava uma cena
aleatória sobre como seria um encontro de verdade com outra menina; só
então percebi que a novata havia sentado ao meu lado.
— Você tá entendendo alguma coisa desse filme? Porque eu não. —
perguntou. Por ser um filme tão velho, nem as cores tinham sido
implementadas em tela; era óbvio o tédio em praticamente noventa e oito
por cento dos alunos.
— Não tô nem prestando atenção. — confessei, olhando para a
televisão de tubo. — Que parte que tá?
— Acabei de falar que não tô entendendo nada e você quer saber que
parte tá?
Ela sorriu, dando tapinhas em meu braço, me obrigando a encará-la.
Murmurávamos nos fundos, longe de outros e do professor que mantinha a
atenção em um livro sem capa, enquanto suas pernas longas e magrelas se
aconchegavam acima da mesa de madeira. O mesmo também já não devia
aguentar mais repassar o mesmo filme tantas vezes.
— Se parasse de perguntar, talvez entendesse. — respondi ríspida.
Não queria ser grosseira, mas aquela menina causava sensações de
formigamento em meu corpo. Sua arrogância me causava incômodos no
estômago.
Ela colocou a mão no peito, enquanto atuava uma expressão de
quem havia tomado um tiro, e aproximou a boca do ouvido; arrepiei.
— Só quis puxar assunto, aii.
Ri do drama, causando sorrisos nela também.
— Me chamo Dakota. — disse estendendo a mão para mim; apertei
reciproca, respondendo com meu nome. — Prazer, Nics.
— Nics? — sussurrei erguendo uma sobrancelha.
— Se as moças não estão afim de ver o filme, me avisem que já dou
nota baixa pra vocês e assim podem sair da sala. — trovejou o professor
olhando por cima do livro; alguns alunos olharam para nós, me sentindo
incrivelmente envergonhada.
— Não, professor, foi mal. Estávamos apenas discutindo sobre o
tema super importante. Sempre adorei esse cara ai.
O professor fingiu acreditar em Dakota, continuando sua leitura mais
interessante que a televisão. Devia estar muito exausto das palhaçadas dos
alunos para causar uma discussão em sala. Encaramos uma a outra, tapando
a boca para nenhuma risada escapar.
Depois daquele dia, começamos a conversar com frequência.
Tínhamos apenas um ano de diferença em idade, eu com quatorze e ela
quinze. Dakota adorava falar o tempo todo, procurando um assunto
diferente. E não apenas isso, como procurar coisas novas para fazer. A
novidade a movimentava, claramente.
Em um desses momentos aleatórios de Dakota, a convidei para ficar
em casa após a aula; no início, ficou sem jeito com o chamado, mas foi
mesmo assim. A mochila quadriculada nas costas e cabeça erguida, ela
passou por mim quando abri a porta de casa. Fomos recebidas por minha
mãe, embrenhada em fios de lã pelos ombros e amarrados à cintura. O
sorriso brilhante e os olhos gentis de sempre atrás de grandes armações
grossas verdes fluorescentes. Havia fibras de algodão até por seus cabelos
loiros quase grisalhos.
— Tudo bem por aqui, mãe?
Mônica Capelo era uma mulher linda de personalidade forte e
sempre disposta a fazer amizades; era impossível não notar sua presença no
lugar que fosse.
— Perfeito, filha. Só estava com problemas com as linhas de crochê.
Fiquei bonita com elas, não acha? — perguntou, fazendo poses de fotos
deixando à mostra as linhas coloridas por sua roupa preta.
— A senhora está incrivelmente estilosa, como numa discoteca, eu
diria.
Minha mãe sorriu em agradecimento exagerado como se terminasse
uma peça de teatro, com a mão na barriga e referência curvando o tronco
para frente.
Apresentei minha amiga e minha mãe. Em poucos minutos, dona
Mônica já tivera atenção, começando uma amizade como sempre fazia. O
que era bom, significava que ela havia gostado de Dakota. Após algum
tempo da minha mãe mostrando seus bichinhos de crochê para Dakota,
subimos ao meu quarto para vermos filmes de terror batidos que ela falava
todo santo dia.
— E seu pai? — questionou Dakota, deixando a bolsa em cima da
cama de solteiro.
— Ele morreu há alguns anos, mas tudo bem. Morreu dormindo,
aneurisma. — Dakota ficou atônita, a apaziguei segurando em seu braço. —
Ei, relaxa, eu e minha mãe estamos bem. Aposto que meu velho tá bem
melhor onde está.
Charles era um homem brincalhão e paciente, contrastando com sua
profissão de policial que exigia seriedade robótica nas ruas. Por isso, em
casa, era tão diferente; sentia-se tranquilo, sabendo que não precisaria ter o
mesmo cuidado que tinha ao sair nas ruas. Em contraponto, Charles estava
sempre com um cachimbo nas mãos; nunca o vi acender, ele só o tinha.
Segurando e fingindo fumar, muitas vezes para fazer graça para mim.
Um dia, minha mãe comentou que era um hábito que meu velho
tinha quando parou de fumar os três maços de cigarro por dia. Ficar com
aquele cachimbo - que nunca soube de onde saiu - se transformou em mania
devido aos tempos como fumante. Após dar uma breve explicação sobre
como era meu pai quando Dakota pediu, deixamos o assunto de lado e
passamos a procurar o tal filme idiota que ela tanto queria ver. Ao final
daquela porcaria cinematográfica, resolvi mostrar um pouco de cultura. Do
meu guarda-roupa, resgatei um DVD velho embaixo das roupas e coloquei
no aparelho.
— Que filme é esse?
Dei de ombros à sua curiosidade com um sorriso jocoso. Na tela, o
menu surgiu obscuro, personagens em destaque com olheiras profundas e
vibe de época.
— Senta aí, vou te mostrar o que é um bom filme de terror.
Assim que terminamos "A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça", Dakota
não sabia o que fazer. Encantada com as cenas do começo ao fim. Descobri
depois que se tornara seu filme preferido de todos os tempos. Não deixei de
inflar o ego por saber que fui capaz de causar tamanho impacto em alguém.
Mesmo assim, nunca abandonamos as sessões de filmes após a aula; nem
sempre as fazíamos, na verdade, com o tempo, a atividade foi sendo
substituída por outras coisas.
Era comum que Dakota sumisse para ficar com alguém. No início,
não me importava, porém, algo mudou de verdade dentro de mim. Lembro
que estava indo encontrá-la embaixo de uma grande copa de árvore, longe
do prédio velho do colégio São Miguel, era mais uma tarde que voltaríamos
para casa juntas. No entanto, meu coração pareceu se partir em pedaços
quando percebi que Dakota beijava uma das colegas dela. Revivi o mesmo
momento do flagra quando éramos mais novas. Naquela época, gostei do
que vi, mas embaixo daquela árvore alguns meses depois, fiquei triste e
desamparada.
Dakota não tinha lá uma fama muito boa; normalmente, gostava de
ter seus romances e tudo mais, porém, sempre bem escondida. Portanto, eu
nunca a via beijar ninguém. O que eu sabia é que eu era a única amiga dela
que não foi fisgada pelo sorriso charmoso e o olhar quarenta e três. Uma
coisa dentro de mim sentia inveja das outras por causa disso.
Após ver Dakota praticamente em cima daquela outra, devo ter feito
algum ruído, pois o beijo cessou e minha amiga se virou para mim,
arregalada e rosto avermelhado. Nunca sabia distinguir suas emoções; ela
era boa em esconder em quase todo o tempo. Respirei forte e saí batendo a
perna.
— Ei, espera, Nics. Que foi? — disse vindo atrás de mim; continuei
andando pelo campo na direção da saída. — Devagar, me fala o que foi?
Aconteceu alguma coisa?
— Não. Só estou indo pra minha casa, pode voltar a transar com a
outra. — eu não entendia o motivo de estar agindo como estava; queria
chorar sem saber por que. Estava confusa e com os pensamentos agitados.
— Ahhh, que isso? Ciúmes de amiga agora, Nics?
Parei de andar abruptamente, respirando alto, enquanto Dakota
ofegava devido à corrida para me alcançar. Levantei o dedo pronta para
xingá-la, mas notei que não havia outra palavra para aquele momento. Não
podia dizer que meu ciúmes não era por amizade. E em toda aquela história,
não tínhamos nada romântico, não havia razão para agir daquele jeito. Por
isso, abaixei o dedo e forcei a olhar para um ponto qualquer; se encarasse o
fundo das íris chocolates de Dakota, não conseguiria mentir.
— É, ciúmes de amiga. Achei que íamos pra casa juntas como
sempre, temos piquenique noturno hoje, esqueceu?
O piquenique noturno foi algo que criamos todas as sextas-feiras.
Invadiamos o centro olímpico da cidade a partir das onze horas, quando o
véu da noite cobria os céus, atravessamos a pista de corrida e o campo de
futebol, até encontrar o lago de patos. Estendíamos uma toalha sobre a
grama recém-cortada e comíamos salgadinhos e refrigerantes, falando
amenidades e fofocando por horas. Porém, o piquenique era o menor dos
meus problemas, e aquilo me consumia quando parava para pensar. O que
estava se tornando nossa amizade? Ela seria a primeira garota a gostar?
Justo minha melhor amiga que nunca me viu de outra forma? Aquilo era
cruel.
— Desculpa. — pediu, o sarcasmo sumindo. A encarei novamente.
— Claro que não esqueci da nossa programação, acho que só tô estressada
com as coisas em casa, então, me deixei ir pela primeira distração que
apareceu.
Desde nosso primeiro ano de amizades, Dakota não era de se abrir
sobre sua vida, reservada tanto quanto era engraçada, o assunto família
sempre deixado de lado. Até que um dia entendi seus motivos. Os pais
estavam para se divorciar há meses, e mesmo assim nunca se largavam.
Ambos traíam um ao outro e descontavam seus infortúnios nos filhos.
Dakota era a caçula de três outros irmãos. Todos de maiores, tinham suas
vidas longe dos pais, exceto Dakota que, por ser menor, precisava morar
com os progenitores. Ela apanhava do pai quando o mesmo voltava com
cheiro de colônia barata, e ouvia os gritos da mãe ao também sentir o odor
de cigarro e álcool noite após noite. Portanto, devia ter sido uma manhã
difícil para ela.
Diferente da minha mãe que a amou no primeiro dia que a levei em
casa. Sendo filha única, dona Mônica sempre quis ter duas garotinhas. O
aparecimento de Dakota em nossas vidas a qual foi adotada
automaticamente. Era linda a relação das duas. Para ela, Dakota era sua
filha também.
Afrouxei os ombros ao perceber tencionados e me aproximei lhe
abraçando.
— Quer voltar lá? Tudo bem por mim, podemos sair amanhã.
Jamais iria querer deixá-la triste, afinal, era minha melhor amiga, e
vê-la feliz estava no topo da minha lista, antes de qualquer paixonite que
pudesse ter.
Dakota me abraçou de volta, embalando minha cintura enquanto
roçava o nariz no meio das minhas madeixas castanhas.
— Vamos ao piquenique. — falou ela por fim. Tinha que admitir,
fiquei satisfeita em ter sido escolhida.
Infelizmente, foi exatamente em um desses piqueniques noturnos
que as coisas desandaram de vez.
DAKOTA
Após sair de duas escolas naquele mesmo ano por mau
comportamento, meus pais, se é que poderia chamá-los assim, resolveram
me mudar para um colégio religioso. Achei uma ideia besta, afinal, eu daria
um jeito de sair de lá também. Já sabia o que me esperava, tudo óbvio e
tedioso. Porém, me enganei perdidamente. Havia quase duas semanas que
já estava por lá e não arrumei confusão até então, apenas queria que ela me
visse, que prestasse atenção em mim, que soubesse que eu estava lá.
Aquela garota de cabelos longos em cascata castanha, olhos
levemente puxados e um ar distraído havia me deixado completamente
boba. Mesmo que com meus treze anos, já tivesse uma ideia do que
gostava, não demorou para que eu descobrisse seu nome. Nicole. O som era
doce na minha boca e gostava de imaginar conversando com ela, ou sendo
vista por ela. O que nunca acontecia. A menina mesmo envolta de
amizades, se mostrava distante. A mente se encontrava em um canto
obscuro que eu ficava fascinada em observar a distância. Está bem que eu
parecia uma stalker, porém, por uma boa razão.
Um dia resolvi que daria um jeito em meu maior problema com
Nicole. Mesmo que fosse um tanto indiscreto e exagerado, eu teria o
resultado que ansiava. Combinei com um menino, o Juan, alguém que se
tornou meu colega rapidamente desde o dia que cheguei no colégio, pedi
que jogasse comida em mim no refeitório. De início ele recusou, sabia que
poderia levar bronca da diretora ou pior, no final, consegui assegurá-lo de
que não aconteceria.
Me sentei estrategicamente em uma mesa na mesma fileira da qual
Nicole estava, no celular, troquei mensagem com Juan para começar o
plano e quando aconteceu, sorri por dentro, gostava de bagunça e ferrava
com as regras, portanto, para cumprir meu lado do acordo, subi na mesa me
sujando ainda mais e gritei um lindo palavrão. A diretora surgiu das
sombras para me levar para conversar. E como idealizei, Nicole estava me
encarando assustada. Não pude evitar em piscar para ela, foi mais forte que
eu. Antes que desaparecesse do refeitório, vi suas bochechas corarem.
Ponto para mim.
No final, peguei uma suspensão, o que não fez diferença em minha
fama, já que meus pais não faziam questão de saber o que eu teria feito,
sequer surgiram na escola. Apenas me jogaram aos leões como sempre, se
não me expulsassem estava perfeito. Eles não podiam se dar ao luxo de me
deixar sem matrícula, ou o conselho tutelar cairia em cima deles. Às vezes
eu ouvia umas conversas sobre isso antes de dormir. O desgraçado do meu
pai cogitando de me deixar ser levada logo para não precisarem mais cuidar
de outro problema além do casamento deles.
Quanto a Juan, tive pena do garoto. Apareceu no dia seguinte com o
olho roxo, ele me disse que sua prima mais nova havia dado um soco nele
enquanto ele brincava com a pequena, mesmo que os outros do colégio
espalhassem a história de que eu teria batido nele, Juan não desmentiu os
boatos. Pelo visto, era melhor apanhar de uma menina da mesma idade do
que de uma menina de cinco anos.
Era comum, após a cena no refeitório, que encontrasse Nicole me
olhando entre os cílios; ela sempre disfarçava quando notava estar sendo
observada. Mesmo assim, eu ainda não tinha ideia do que ela gostava, se de
homem ou mulher, e seria estranho chegar e perguntar. Portanto, tentei me
informar pela escola; contudo, ninguém sabia me dizer. Ela nunca
demonstrou interesse em ninguém, normalmente com a mente longe em
qualquer canto mais interessante que os estudantes do Colégio São Miguel.
Acho que pensei tanto naquilo, que acabei atraindo, e o universo me deu o
que eu precisava para saber.
Sempre fui do tipo com facilidade para ficar com uma menina, e
naquela tarde não seria diferente. Como não tinha ideia de como me
aproximar de Nicole, aceitei ficar com uma garota que já há algum tempo
estava de olho em mim. Lembro que pensei na ironia. Fomos para uma sala
vazia e ficamos. De repente, ouvi o som da porta se abrir e o furacão Nicole
entrou carregando a mochila e tirando um caderno de dentro,
completamente ofegante; devia estar atrasada para variar, ela nos flagrou
imediatamente. Parei os beijos com a outra e fiquei encarando Nicole, tão
surpresa quanto ela estava. Meu coração acelerado, pernas bambas; era
estranho ficar daquele jeito por alguém. Nicole saiu em disparado da sala
me deixando ainda mais confusa. Não sabia o que ela gostava e não sabia o
que havia pensado quando viu a cena; era como se nunca tivesse visto duas
meninas se beijando. Fiquei curiosa com o pensamento.
Depois disso, acabamos conversando em uma aula onde o professor,
com aquele filme sobre Moisés, me ajudou a ter assunto para conversar com
ela. Rapidamente me surpreendi com a língua afiada e a gentileza
escapando dos seus olhos, tudo ao mesmo tempo. Estranhamente eu
conseguia ver uma profunda tristeza todas as vezes que nossos olhos se
cruzavam, mesmo que normalmente as emoções gritassem nas expressões
dela, algo em Nicole estava escondido. Sempre quis saber o segredo que
vinha dentro dela, e com o tempo nos tornando mais amigas, eu ainda me
esforçava em saber. O segredo parecia ficar ainda mais cavado dentro de
Nicole.
Gostávamos de criar mundos fictícios em desenhos; Nicole tinha
mão boa para tal habilidade, e ficávamos horas pensando em vidas
diferentes. Aquilo me divertia. Outras vezes, começávamos a fingir que
éramos adolescentes ricas que queriam comprar roupas com o dinheiro dos
pais abastados. As lojas sempre nos tratavam bem e com vontade em nos
tirar as dúvidas que precisávamos. Logicamente, algumas vezes não
funcionava, mas só o fato de tentar já tornava as coisas mais interessantes.
Acabamos parando de fazer isso quando, nas últimas vezes, fomos
nos trocar juntas no provador, e durante a troca, mal tive tempo de fingir
que não olhava para o corpo de Nicole. Sentia-me terrível com isso, por
isso, consegui convencê-la a parar.
Os meses passaram, e minhas esperanças em ficar com ela se
tornaram mais difíceis. Nossa amizade ficou forte, um laço profundo que eu
não trocaria por nada no mundo. Nunca conversamos sobre sua
sexualidade, nem a minha; na verdade, era algo tão comum que não era
pauta de conversas, assim como um heterossexual não fica perguntando
sobre a própria sexualidade. Às vezes, eu sentia um clima entre nós,
todavia, sempre era quebrado por algo, normalmente minhas inseguranças
sobre Nicole talvez ser até mesmo assexuada. Eu me contentava com sua
amizade.
Mas as coisas mudaram em nossa última noite juntas, uma daquelas
tranquilas noites de piqueniques nas sextas-feiras, ficou marcada em minha
pele para sempre. Jamais esperei que isso pudesse acontecer; nem em meus
maiores sonhos cogitei que pudesse surgir uma oportunidade como tal, e
mesmo que ansiasse ter um toque físico com Nicole, eu preferiria nunca ter
tido paixão por ela; era melhor, pois assim o que aconteceu em nossa última
noite juntas poderia ter sido diferente.
NICOLE
Eu já tinha quinze anos, ela um a mais que eu. Ficava combinado há
tempos que eu levava comida e bebida, e ela os lençóis ou cobertas, caso o
clima estivesse friorento. Normalmente levávamos salgados e refrigerante,
porém, decidi mudar o cardápio e levar algo mais forte, talvez para me dar
coragem. Coloquei na bolsa vodka de morango e vinho suave, que eu sabia
serem as bebidas preferidas de Dakota. Morávamos próximas ao centro
olímpico, umas quatro quadras de distância, o horário marcado às oito da
noite, onde os seguranças não se importavam em ficar fazendo ronda, até
porque se alguém tivesse ideias de furto, roubariam flores ou gansos.
Dakota me conhecia há anos, então sabia que algo estava errado
comigo. O nervosismo me comia viva, e minhas expressões eram óbvias
demais, difícil esconder alguma, era uma habilidade insistente para mim.
Um buraco havia sido feito pelo tempo enquanto corroía a cerca do lado
direito. Como Dakota era um pouco mais contra as leis do que eu, ela fez
questão de abrir mais com um alicate que roubou do pai. Atravessamos os
campos e demos a volta no lago para ficar o mais longe possível das luzes
dos postes da entrada do centro olímpico.
Durante aquela noite, tudo ocorreu super bem, mesmo que Dakota
tenha duvidado que eu conseguiria beber numa boa. Seguimos com as
conversas aleatórias e até fofocas do colégio, ao qual já estávamos no
último ano. Porém, em certo momento, minhas pernas bambearam e o
coração acelerou descompassado. Para falar ficava difícil, e sentia o gosto
forte do álcool no fundo da garganta. O mundo girou algumas vezes até que
meu olhar fixou firmemente nos lábios carnudos de minha amiga. Então,
me recordei exatamente do que vinha planejando fazer há muito tempo.
—Tudo bem aí? - me questionou, e só nesse instante notei que a
encarava tempo demais em silêncio. — Iiii, já ficou bêbada.
Sorri em resposta, por mais que soubesse que ela estava certa, não
daria o braço a torcer. Debrucei o corpo para poder pegar a vodka de
morango, mas ela a levou para longe em um ritmo muito mais rápido que o
meu.
—Ei. Me dá. — disse soluçando em seguida, para minha sorte,
Dakota não demonstrou notar.
— Coisa nenhuma, Nics. O negócio está na metade e você já está
mudando de planeta. Pode ficar paradinha aí, sabe que prometi pra sua mãe
que cuidaria de você.
—Que besteira, sou um ano mais nova, não tem que cuidar de coisa
nenhuma. — relutei em sorrir de volta, estava segurando com certeza, e
amanhã eu iria ouvir um monte de piadas sobre ser péssima para beber. —
Agora me dá.
—Não, Nics.
Novamente ela afastou a garrafa para trás de seu corpo, estávamos
dando risada, já que, mesmo eu sendo mais ágil, o álcool me tirou toda a
habilidade. Estava ridículo tentar agarrar um objeto ao qual sempre via
minha amiga bebendo tranquilamente feito água.
—Me beija ou me dá a droga da garrafa, Dakota. — Ao invés de
pensar, praticamente gritei, provocativa.
Em meio às nossas risadas, sua mão livre segurava minha cintura
para me manter fora do alcance da bebida, e quando minha frase saltou de
dentro de mim, o ar ficou estático. Hesitamos instantaneamente, meu desejo
escapou de mim sem que eu pudesse controlar. Por um momento, meu grau
de álcool havia me deixado. Dakota se recompôs fechando a garrafa sem
expressar reação alguma.
—Nossa, essa sua cara me irrita às vezes, cara. — comentei
revirando os olhos, sentindo meu corpo gelado após o toque.
—Que cara? Você que tá alterada e desconta em mim, fica falando
essas coisas. Acho melhor te levar pra casa, Nics.
Me senti indignada com ela, e sem que ela notasse, alcancei a garrafa
e pensei que aquilo podia ser bom. Totalmente dominada por uma coragem
que não me pertencia, engatinhei para trás com a vodka contra o peito,
enquanto ameaçava abrir novamente.
—Nic, para com isso. Você vai passar mal.
—Chega. Se não quer que eu beba então me beija. — outra
hesitação. Dakota estava neutra, e mesmo que seus olhos me encarassem
comumente, havia um brilho selvagem que nunca vi, pensei que poderia ser
alucinação devido ao álcool, porém, um instinto me confortava de que o
brilho era real.
—Nicole, me devolve a vodka. — uma sensação ruim se agitou,
nunca gostei quando ela me chamava pelo nome inteiro. —Não sabe do que
você está falando, você está bêbada, vai se arrepender amanhã.
A sentia reflexiva, e eu sei que deveria parar, que Dakota é minha
melhor amiga há anos e tudo isso poderia estragar nosso relacionamento,
mas, não suportava vê-la beijar outras mulheres e nunca poder experimentar
o gosto dos seus lábios. Estava no meu limite.
Girei a tampa ousando arrancar e beber tudo numa golada só. Ambas
sabíamos que com minha fraqueza, eu entraria em coma alcoólico, contudo,
quando eu queria ganhar um desafio, ignorava a alto sobrevivência.
Dakota fechou os olhos e ouvi sua respiração profunda. Quando
estava prestes a jogar a tampa fora, meu corpo foi arrebatado por suas mãos
ágeis, fui agarrada contra seu corpo, nossos batimentos cardíacos regulados,
igualmente descompassados. Hálitos impregnados de álcool e o odor
específico que escapava da pele lisa de minha amiga. Meu rosto próximo ao
dela, sentindo a respiração. Os olhos fechados, e quando ela os abriu
brevemente antes de fechar novamente, estávamos nos beijando. A garrafa
escapou do meu aperto, e apostava que ela estaria rolando até cair no lago à
nossa frente. As mãos abraçando minha cintura, Dakota segurava sua nuca
para me aproximar ainda mais, como se tivesse medo de que eu me
afastasse. Dakota me deitou carinhosamente sob o lençol que esticamos
para o piquenique. Minhas costas pressionadas graças ao corpo esguio de
Dakota sobre o meu. Ouvíamos os estalos dos beijos molhados. Meu sonho
estava se concretizando, tornando-se ainda melhor do que eu imaginava.
Era impossível dizer quanto tempo ficamos nos beijando; entretanto,
no instante em que ela afastou seu rosto do meu, senti sua falta. Ergui a
cabeça para me aproximar novamente e tê-la para mim, mas fui afastada.
Dakota levantou, jurava que vi seus olhos marejados.
— Que porcaria foi essa? — grunhiu minha amiga. Cocei a cabeça,
tentando compreender do que ela estava falando. — Vou te levar pra casa.
Coloquei a mão em seu ombro, já que ela estava de costas, e meu
toque foi repelido instantaneamente. Ofendida por sua atitude, levantei do
chão. Com dificuldade, alcancei a mochila que estava ao lado da dela.
— Esquece, eu mesma vou pra casa. Não preciso de você.
— É perigoso a essa hora, para de graça. Vou junto.
Levantei a mão quando ela se virou para mim. Lágrimas intrusas
caíam sem permissão, não queria que ela me visse chorar, mas estava muito
machucada para pensar de outra forma. Não conseguia ficar perto de
Dakota agora, e não pensava em ficar no dia seguinte também.
Ela se aproximou, e em uma das poucas vezes que tive vislumbres
de emoções escaparem da minha amiga, foi aquela. Tristeza profunda,
sobrancelhas caídas, boca em fina linha, como se estivesse forçando a não
dizer algo que poderia se arrepender, ou qualquer coisa do gênero. Estava
sem paciência para tentar entender o lado de alguém.
Recuei quando Dakota se levantou do chão para me ajudar a ficar de
pé, esquivei.
— Me deixa quieta, Dakota. Não vem atrás de mim. Quero ficar
sozinha. — estava dando as costas, mas concluí por cima dos ombros
enquanto colocava a mochila nas costas — Relaxa que não vai ter
problemas com a minha mãe, só fica longe.
Sem falar nada, enquanto me afastava, chorava sem parar. Em
determinados momentos, pensei que deixar Dakota sozinha era
irresponsável, ir embora sozinha também. No entanto, não tinha forças para
andar ao lado dela. Sentia-me humilhada, tendo meus sentimentos
invalidados e completamente ofendida pela reação da minha melhor amiga.
Talvez eu não devesse ter ultrapassado o limite. Talvez estivesse
errada em ter feito o que fiz, em ter provocado e causado um desafio que
claramente ela não queria. O fiz porque tinha conhecimento do quanto ela
não dispensava um desafio, e me aproveitei do momento. Misturado a uma
coragem resultante de desejos antigos que tinha por ela, aconteceu o que
aconteceu. Eu não deveria ter feito. Estava com vergonha. Não poderia
olhá-la novamente.
Quando cheguei em casa naquela noite, minha mãe percebeu o
inchaço nos olhos devido ao choro, no entanto, ignorei, e ela não perguntou.
Obviamente, não enfrentei perigo físico, apenas um desgaste emocional.
Fiquei tão chateada após aquela cena que insisti com minha mãe durante o
final de semana seguinte que queria mudar de escola. Não desejava mais
permanecer lá. Mesmo estando próxima de terminar o ano letivo, preferia
mil vezes concluir em outro lugar, começar de novo com pessoas novas,
sem olhares estranhos, sem nenhuma Dakota por perto. Demorou um
pouco, após uma longa conversa com dona Mônica sobre o assunto. No
entanto, estava tão chateada e quebrada que contei até mesmo sobre minha
sexualidade e o que havia acontecido com Dakota. Pedi que não se zangasse
com ela, e, como eu esperava, minha mãe não ficou contra Dakota, mas
também atendeu meu pedido e mudei minha matrícula para outro colégio.
Nunca fui tratada de maneira diferente dentro de casa depois de me
assumir, e fiquei mal por ter passado tanto tempo sem ter falado sobre isso.
Eu poderia ter evitado algumas situações. De fato, eu tinha sorte com minha
mãe. E pensar nisso me causou outra dor. Sabia que sem ela presente na
vida de Dakota, ela não teria outro refúgio além de sua casa, e me senti
péssima por isso, por minha mãe e por ela.
Após a mudança de ares, Dakota não foi atrás de mim, e fui grata por
isso. Ela também deve ter ficado envergonhada por ter feito o que fez.
Beijar-me apenas por um capricho de desafio. Ela nunca demonstrou que
gostava de mim da mesma forma que eu gostava dela. Obviamente,
ultrapassei os limites dela também. Contudo, nada foi tão difícil como nos
dias seguintes. Não havia perdido apenas a mulher de quem estava
apaixonada; havia perdido minha melhor amiga. Duas pessoas importantes,
afastadas de uma só vez.
DAKOTA
Quando era mais jovem e estava no meio das brigas dentro de casa,
entre gritos e palavrões, gostava de imaginar que tinha superpoderes.
Sonhava em voar para longe daquele inferno, ficar invisível para pegar os
salgadinhos nos armários sem que minha mãe percebesse, ou controlar a
mente das pessoas para ter tudo o que desejava. Contudo, na última noite do
piquenique com Nicole, o único poder que gostaria de ter tido era a
capacidade de prever o futuro, para me preparar para o que viria a acontecer
em seguida.
Percebi que ela não estava agindo normalmente, mas pensei que
fosse devido ao álcool em seu organismo. Ela sabia que eu não ficava
alterada com facilidade, então, praticamente, tentei beber mais que ela para
acompanhá-la em sua jornada rebelde. Infelizmente, não obtive sucesso,
pois ao perceber que Nicole via tudo girando, precisei parar e tentar
controlar a situação. Sua mãe era maravilhosa, mas se encontrasse a filha
vomitando no tapete da sala, me esfolaria viva. Portanto, tratei de cuidar
dela o máximo que pude.
Por outro lado, ela não colaborou. E tudo piorou ainda mais quando
aquela mulher embriagada pediu que eu a beijasse. Meu mundo travou
completamente, mal sentia o vento bater no rosto, e gelei dos pés à cabeça.
Tive a impressão de que Nicole também se assustou com o que havia dito, e
eu estava disposta a ignorar e fingir que não havia escutado seu pedido.
Entretanto, novamente, ela não ajudou. Me provocou querendo retomar a
beber e perguntando se eu a beijaria ou ela beberia tudo. Borbulhei por
dentro, tentei impedi-la de continuar com as gracinhas de amiga hetero, já
que até então ela nunca se mostrou diferente diante de mim ou de qualquer
outro. E mesmo assim, ela insistiu quando abriu a garrafa pronta para fazer
uma loucura que corria o risco de um coma alcoólico antes do terceiro gole
de vodka, fechei os olhos fortemente querendo evitar os movimentos que
fiz em seguida, mas tudo aconteceu tão rápido que simplesmente permiti
que meus desejos, há muito cultivados dentro de mim, tomassem conta,
agarrei Nicole e a tomei para mim. Porque era isso o que eu queria e foi o
que fiz.
Por algum tempo, me entreguei à enorme besteira na qual estava me
envolvendo. Perdi a cabeça quando ela retribuiu o beijo. Sentir sua boca e
finalmente realizar o que tinha em mente todas as vezes que a via se
aproximar tornou-se quase impossível de parar por ali. Eu queria que aquela
noite fosse nossa, fazer de Nicole minha de verdade e eu dela,
completamente dela. Porque quando estava em sua presença, não havia
outra, nunca havia. Nicole estava tatuada em todos os meus pensamentos e
desejos.
Entretanto, tudo estava errado. Percebi que estava apenas me
aproveitando da brincadeira e do desejo passageiro de uma amiga bêbada.
Tudo estava errado naquilo. Por isso, parei. Parei e briguei comigo mesma,
mas saiu alto demais. Ao invés de um sussurro interno, o despejei
grosseiramente, causando impacto na reação de Nicole. Após, tudo foi por
água abaixo. Ela não me queria por perto, e quis menos ainda quando me
afastei de seu toque, mas ela não entendia. Não entendia que, se a tocasse
novamente, perderia o controle, podendo perder seu respeito e amizade, e
perder sua amizade era um dos meus maiores medos.
Nunca fui o tipo de pessoa cercada por amigos leais. Normalmente,
eram colegas de escola ou da cidade, dependendo para onde eu fosse, nada
além disso. Nicole, por outro lado, tornou-se alguém a quem eu queria ficar
ao lado para sempre. Mesmo se a visse futuramente ter uma família feliz e
me olhar como sua melhor amiga, eu poderia ter sua amizade para sempre.
Em algum momento, poderia esquecer aquele sentimento forte e partiria
para outra, talvez me apaixonasse por uma mulher e tivesse uma vida,
sempre com Nicole e eu sendo amigas. Nos tendo como companhia em
nossos momentos mais obscuros, onde apenas uma entendia a outra.
Não pretendia que fosse diferente; entretanto, foi exatamente
diferente. Daí a necessidade do superpoder de prever o futuro. Eu poderia
ter evitado tudo o que rolou e todas as consequências seguintes. O
afastamento permanente de Nicole mexeu demais comigo. Nosso futuro
teria sido diferente, tenho certeza. E mesmo assim, permiti que meus
desejos profundos se atropelassem e estragassem nossa relação de amizade.
Perdi Nicole para sempre após a última noite do piquenique. Ou pelo menos
foi o que pensei. Anos mais tarde, o destino me deu uma nova chance.
A adorável mãe de Nicole manteve contato o máximo que podia, e
fiquei feliz por isso. Não vi a filha dela depois disso, segui minha vida,
dolorida. Faltavam poucos meses para completar a maioridade, e consegui,
após juntar algum dinheiro no trabalho como auxiliar de escritório durante
um estágio, um lugar só para mim. Ficava sozinha muitas vezes durante o
tempo. Era bom estar em uma casa onde não havia importunação e traumas
a serem cultivados, para variar. Meus pais não questionaram minha atitude
em sair, pouco se importaram. Era uma boca a menos para gastar. Ouvi
dizer que minha mãe engravidou novamente, contudo, com tanta bebida em
seu organismo, a criança não vingou. Se tivesse, com certeza eu a teria
levado para viver comigo, mesmo sendo difícil, pois não ganhava tão bem.
Não importava, não deixaria nenhuma criança com eles.
Após mais e mais tempo, encontrei outras formas de ganhar
dinheiro, terminei alguns cursos de moda, que eram minha paixão. Entrei na
faculdade e me formei, construindo uma base sólida para minha carreira.
Estava feliz com minha vida financeira, dando passos curtos, mas
progressivos. Meu trabalho em uma empresa de costura também contribuiu
para adquirir experiência na confecção de roupas. As coisas estavam indo
bem nessa parte da minha vida.
Até mesmo a esfera amorosa começava a se encaixar. Encontrava
algumas garotas de vez em quando para ficar em casa ou sair para dançar.
Embora não tivesse muitas amigas, afastava relacionamentos mais longos
de mim. Busquei a ajuda de terapeutas para resolver esse problema, e um
deles, o melhor que encontrei, me convenceu de que deveria aceitar que
ainda gostava de Nicole, minha melhor amiga. Aceitar isso tornaria as
situações mais fáceis, e, de fato, ele estava certo. Mesmo que tudo
parecesse nos trilhos, meu coração se acalmava quando olhava para um
lago e pensava nela. Como imaginei que seria, eu nunca a esqueci.
NICOLE
Mudei de cidade mais duas vezes após a “separação” com Dakota.
Terminei o ensino médio e fui atrás de cursinhos de diversos tipos, mas
nunca encontrava nada que me agradasse. Pedi conselho a minha mãe até
me concentrar em algo, que de fato, me tirava os pensamentos intrusivos,
pensamentos que quando mais evitava, mais os tinha. Por incrível que
pudesse parecer, foi na ilustração que me encontrei. Estudar desenho tirava
minha alma da terra. Flutuava longe de tudo aquilo que me causava crises
depressivas. E anos mais tarde, pagava meu aluguel e minhas contas
tranquilamente como ilustradora, no geral, gostava mais da criação de capas
de livros. E foi em meio a um trabalho aleatório como esse, que encontrei a
mulher que mais tarde veio a ser minha noiva.
Cléo Lobo, dona de uma editora, a Edit Linha Dourada, os estilos de
livros variaram de fantasia para suspense. Seus estilos prediletos de leitura.
Era uma editora de porte médio, com um bom retorno que se concentrava
em dar atenção a escritores iniciantes. Após a primeira capa que fiz para sua
editora, Cléo, quis me encontrar para um café. Foi a segunda vez que
sentamos para conversar. Primeiramente ela veio com uma proposta de
trabalho. Sua intenção era ajudar jovens autores a ingressarem no mercado,
e como bem sabia, muitos não tinha dinheiro para pagar um design de capas
e um revisor, então, ela ansiava criar parcerias para pagar metade a
profissionais de determinadas áreas, conseguindo assim ajudar os novos
autores a publicarem seus textos. Amei a ideia no primeiro momento e
percebi que gostei ainda mais da ideia de estar com ela tomando um café.
Cléo era uma mulher bonita, atraente em seu jeito despojado, porém
elegante, com cabelos compridos tingidos de castanho loiro, olhos
arredondados e grande que podiam dizer muito. Gostei dela de primeira e
foi interessante me deixar levar de verdade por alguém. Antes dela, tive
alguns namoros rápidos com mulheres de cursos que fazia, contudo, ao
fazer ilustração dei um tempo das paqueras, precisava me concentrar.
Portanto, me deixei ser paquerada por Cléo ao pescar no ar que suas
intenções vinham acompanhadas de algo além do profissional.
Obviamente, Cléo nunca me favoreceu no trabalho por estar
interessada em mim. Pelo contrário, sempre foi justa, e nenhum dos cerca
de dez funcionários da editora, sem contar a dona, jamais espalhou fofocas
sobre nosso relacionamento ser antiético. Gostava da maneira como Cléo se
portava no trabalho.
Dois anos de namoro se passaram até o dia em que ela me pediu em
casamento. Devo admitir que fiquei em choque. Fiquei ali, inerte no meio
do restaurante onde nos conhecemos, olhando para baixo, vendo Cléo de
joelhos com um sorriso tímido e um anel de ouro nas mãos. Prendi a
respiração, e o tempo passou lentamente, o suficiente para perceber os
diversos clientes que pararam de comer para ver a resposta da
desconhecida.
Disse sim, após pestanejar diversas vezes. Não senti segurança em
minha resposta. Foi estranho, me senti mal por aceitar. No mesmo instante
que o "sim" foi sussurrado da minha boca, o nome de Dakota atingiu meu
cérebro como um tiro. Me espantei com a insegurança que senti por não ter
certeza se queria passar o resto da minha vida ao lado de Cléo. Mas ali
estava eu, articulando positivamente uma emoção que não era real. Foi a
primeira vez que hesitei no que sentia por Cléo.
Minha mãe gostava dela, normalmente gostava de todo mundo.
Raramente me aconselhava a não fazer algo com alguém. Sempre a favor de
me deixar acertar e errar na vida. Queria ser assim quando chegasse a hora
de me tornar mãe. E pensar que Cléo poderia ser a pessoa que me
acompanharia na jornada me causava um vazio no estômago.
Quando contei a dona Mônica a novidade, ela se conteve.
— Ótima notícia, querida, vai finalmente aquietar. - sugeriu
terminando um bonequinho de crochê rosa, impossível de se reconhecer por
causa do processo em estágio inicial.
Ela mal me encarou. Sentia uma emoção escondida na frase.
— Mas?
— Não tem mas. — proferiu sem hesitar, ajeitando o boneco
estranho. Seu sorriso não alcançava a grossa armação verde fluorescente.
— Vai mentir pra mim, mãe? — pelejei sentando ao seu lado. A ouvi
bufar. Dona Mônica deixou as agulhas no colo e me encarou por cima dos
óculos, com sua rigidez comum me fazendo recuar. — Tá, tá, já entendi.
— E você, feliz com o pedido?
Hesitei perante a pergunta, que ecoava no meu cérebro como se
tivesse entrado em um túnel sem fim. Engoli seco, assentindo com um
manejar de cabeça. Dona Mônica também consentiu perante minha resposta
curta e se pôs a voltar com seu crochê. Não conversamos mais sobre meus
sentimentos em relação a Cléo por um bom tempo. Minha mãe sempre foi
boa em arrancar a verdade de mim. E eu tinha medo da verdade.
Já tínhamos três semanas desde o pedido oficial. Eu e Cléo
morávamos juntas há um mês e meio, e eu já me sentia estranhamente
pressionada com sua presença. Tentava ignorar na maior parte do tempo.
Certo dia, Cléo saiu do longo banho de quase trinta minutos para vir
com uma notícia, me tirando a concentração de uma ilustração que criava
sobre o livro de suspense de um autor novo de sua editora. Ela sabia que eu
não gostava que me atrapalhasse naqueles momentos, mas, em sua alegria
estampada, me impediu de reagir à intromissão. Minha noiva veio andando
enquanto secava os cabelos na altura do busto, o decote saltando da toalha
enrolada ao corpo.
— Encontrei uma boutique de vestidos de noivas para a gente dar
uma olhada hoje. Que tal? Já inclusive marquei com a dona de irmos à
tarde.
Cléo era esperta; se adiantou falando que tinha marcado, pois eu
nunca gostei de descumprir compromissos. Sorri em resposta, forçado, mas
sorri.
— Podemos ir, amor. Só vou salvar o arquivo e me arrumar.
Cléo depositou um beijo singelo nos meus lábios e concordou,
voltando ao quarto para se arrumar também.
Fiquei do lado do passageiro, já que somente minha noiva conhecia o
endereço. Tentei não expressar minha impaciência durante a viagem de
trinta e cinco minutos, quase quarenta, a qual eu poderia ter usado para
avançar no projeto da capa. Perguntei sobre onde ela arrumou o contato da
loja, não queria descontar qualquer problema que minha cabeça se
encarregou de ter em Cléo. Querendo ou não, ela era uma boa mulher,
meiga e sempre na ativa, diferente de mim, mais reservada e acometida.
—Uma amiga minha recomendou. Ela disse que a dona abriu a loja
na cidade há pouco tempo e que é uma filial, então já tem experiência. O
que é bom. Sabe como sou indecisa. Alguém mais experiente pode me
orientar a diminuir o tempo de quatro horas pra duas e meia na escolha de
um vestido.
Ela riu da própria piada e a acompanhei. Cléo me fazia rir,
normalmente, mas nessa tarde eu estava insuportavelmente perturbada. Já
era difícil entender a mim mesma, e frustrava como Cléo não demonstrava
reparar nos resquícios das minhas mudanças de humor.
Finalmente, os minutos terminaram e o Volvo prata da minha noiva
parou no estacionamento da boutique. Demorei até começar a olhar os
detalhes e informações da loja, e se eu tivesse parado para olhar o mínimo
que fosse, teria insistido e saído daquele lugar o mais rápido possível.
Descemos do carro e Cléo bateu palminhas exageradas de exaltação
enquanto olhava maravilhada para a fachada. O pé direito duplo consistia
em uma fachada em tons pretos e prata, com uma vidraça belíssima
escondida por uma cortina que formava uma cabana de seda por cima de
vestidos lindos que vestiam as manequins femininas. O telefone escrito em
fonte serifada sobre a porta de entrada de mogno fechada, e ao lado, na
mesma fonte em relevo e imponente, o nome da loja escrito no beiral
amplo; Charm Nic’s Noiva.
O título chamou atenção, e eu deveria ter percebido os sinais antes de
Cléo abrir a grande porta envernizada e me deixar entrar, recebidas pelo
som do par de saltos altos ecoando no mármore branco, em nossa direção.
A saia lápis vermelha elegante mantinha a silhueta sensual e sofisticada, a
camisa clara social solta nas mangas, enquanto as mãos se encontravam
unidas numa linguagem corporal receptiva. E acima, o rosto oval familiar
que acendeu uma luz no meu coração.
— Sejam muito bem vindas! Me chamo Dakota Ferrero, e vou
acompanhá-las nas escolhas dos vestidos.
DAKOTA
Aos poucos fui criando meu império. No total, demoraram cinco
anos e tantos meses até conseguir abrir a segunda filial, e dali em diante
mais quatro lojas se criaram em diferentes cidades. Porém, havia apenas
uma cidade em que eu ainda não tinha dado início ao meu trabalho. A
antiga, onde morei na infância e adolescência, onde conheci Nicole e sua
família. Ainda mantinha contato com dona Mônica, porém, com menos
frequência. Fui informada de que jamais se mudaram, exceto a filha.
Mesmo sabendo que meu coração se concentrava na filha dela, permiti-me
viver e seguir, exceto pelo nome da minha boutique, que não poderia ser
diferente.
Nicole era apaixonada por desenhos e os fazia incrivelmente bem.
Ela estava sempre criando objetos e roupas, e o que mais a interessava era
isso, mesmo que não quisesse trabalhar com tal. Eu tinha conhecimento de
que ela teria uma coleção de vestidos guardada em algum lugar. Como a
ideia havia vindo dela, e seu nome estava marcado dentro de mim, sua
presença foi parte essencial em minha vida. Sendo assim, não havia motivos
para não ter um pouco dela no meu negócio profissional. Assim, criei o
Charm Nic’s Noivas. No início, pensei que o nome soaria brega, contudo,
acabei gostando. Não era sempre que lia o título que sonhava acordada com
minha ex melhor amiga, normalmente era sozinha em casa antes de dormir
e quando levantava.
Decidida a criar uma loja em minha cidade natal, aluguei um
apartamento tranquilo em um bairro moderno para dar uma quinta filial ao
Charm Nic’s Noivas. Nesse meio tempo, entre conversas com a mãe de
Nicole, nunca perguntei sobre o que sua filha andava fazendo, mesmo que
coçasse a curiosidade em descobrir. Apenas queria saber se ela estava bem,
e sempre foi suficiente para mim. Poderia imaginar minha surpresa quando
soube de uma das únicas novidades da vida dela que eu menos queria saber:
seu relacionamento amoroso. Dona Mônica deixou escapar que sua filha
estaria noiva. No fundo, sabia que ela não deixou sem querer. Mas de
qualquer forma, aquilo não me destruiu; fiquei sentida por um tempo. Não
havia motivos para ficar brava ou magoada, fui eu quem destruiu tudo.
Então, a surpresa maior veio em seguida. Certo, em todos os doze
anos separadas, foi a primeira vez que ouvi sobre o assunto da sexualidade
de Nicole. E mesmo que suspeitasse um tanto, a confirmação veio direto no
meu peito. Ela estava noiva de uma mulher. Aquilo foi forte e, na minha
cabeça, um milhão de pensamentos de "e se" me atacaram de uma só vez.
Fiz força para arrancá-los. Não obtive sucesso, é lógico. Minha ansiedade
se alastrou como vírus, e demorei dias até entender o que havia descoberto
pela própria mãe de Nicole.
Quando dona Mônica contou, fiquei atônita e, pelo silêncio no
telefone, era óbvia minha surpresa.
— Ué, minha filha. Está em choque? Jura? — eu não conseguia
responder — Eu já sabia que ela era assim desde pequena, como só você
não notou? Não seja tão devagar, querida.
Dona Mônica caçoou de mim por uns minutos até perceber como eu
havia ficado, e quando o parou, começou a me aconselhar. Eu mal ouvi
metade do que disse, e quando desligamos o telefone, ainda não me
lembrava do que tanto queria me acalmar.
Mesmo assim, permiti que a ideia dormisse comigo por algumas
noites. E quando aceitei, uma intuição em mim me tirou o sono no final da
sexta-feira. Uma coisa estranha que perpetuou como uma cobra à espreita.
Por alguma razão desconhecida, eu sentia que Nicole estava por perto, a
primeira vez em doze anos. No final, tomei um remédio para dormir que me
derrubou, e só acordei ao meio-dia. Tive que correr para o trabalho, já que
havia marcado hora para uma visita com uma cliente, Cléo Lobo, o nome.
Precisava estar lá, deixar minha fama se alastrar pelas clientes da cidade,
sem gastar dinheiro com marketing na TV, pouco esforço. A melhor
propaganda era o boca a boca. Sempre foi assim.
Já na loja, pedi para minha assistente Roberta, uma garota mirradinha
com ótima oratória, que corresse para limpar o provador do mezanino, já
que eu, a própria dona, havia esquecido de fazer isso na manhã de sábado, a
qual estava desmaiada devido ao remédio forte. Roberta, mesmo que muito
pequena e magrela demais, praticamente escondida entre as madeixas
encaracoladas pretas ao redor do rosto achatado, essa mesma mulher,
quando começava a conversar, se tornava nítida seu futuro como palestrante
ou algo maior. Fiquei no andar de baixo terminando de ajeitar alguns
vestidos pendurados nas araras do lado direito, olhei no relógio e numa
pontualidade impecável ouvi o motor de um carro parando no
estacionamento da boutique. Tirei a poeira da saia e arrumei a postura ereta,
com um sorriso simpático de canto.
Normalmente, eu ficava nas filiais novas durante alguns meses até
achar quem pudesse trabalhar para mim enquanto eu estivesse fora
encontrando tecidos e pesquisando sobre o mercado de vestidos de noivas.
Então, seria meu primeiro mês e, por isso, acabava sempre ficando
levemente ansiosa. Contudo, nessa tarde, estava particularmente nervosa. E
quando vi a porta abrir, andei habitualmente até as clientes, numa fala
robótica, meu mundo girou violentamente e entendi o motivo do
nervosismo.
Senti meu sorriso vacilar, e mesmo que a surpresa pudesse me fazer
transmitir que tinha algo errado, vê-la novamente não me dava outra opção
que não fosse demonstrar a alegria no rosto. Primeiro, reparei nos detalhes
do rosto fino, os lábios arredondados e naturalmente rosados, olhos puxados
deixando-me sem jeito como sempre. Nicole estava mais sublime do que
nunca.
Mesmo que uma parte de mim soubesse que a mulher ao lado, a
cliente com quem falei ao telefone, fosse sua noiva, a felicidade de rever
minha antiga melhor amiga ganhou de qualquer ciúmes que viesse a ter.
Ajustei minha melhor feição profissional e continuei com o
atendimento. Visivelmente, Nicole sentia-se desesperada e com algum outro
sentimento desconhecido. Lógico que eu não a deixaria mal com a noiva.
— Com quem falei ao telefone? — fingi estar em dúvida. A noiva se
apresentou apontando para si mesma exibindo encanto.
— Comigo mesma. Me chamo Cléo, e esta é minha noiva, Nicole.
Estendi a mão para cumprimentar uma e depois outra. Assim que nos
tocamos, sempre ouvi gente dizendo de descargas elétricas, mas isso não
chegava nem perto do que passou pelo meu corpo ao finalmente tocar a pele
de Nic. Foi como se todo arrepio me deixasse em alerta, o gelo preencheu
meu estômago e a língua secou. Umideci os lábios tentando ignorar as
sensações, mal encarei seus olhos, preferia me manter afastada daquele tipo
de conexão, ou ela veria que a reconheci.
— Prazer. Bom, vamos começar? Me digam seus tipos de vestidos
preferidos, como funciona o gosto de vocês.
Comecei o atendimento automaticamente. Pescava as olhadelas de
Nicole, eu dava de ombros. Não podia me dar ao luxo dela perceber,
preferia deixar que ela continuasse achando que não me recordava. Mal
ouvia o que Cléo tinha a dizer sobre seus gostos de casamento, mesmo
assim forcei a ouvi-la. Ouvi passos rápidos de Roberta se aconchegar ao
meu lado. Apresentei minha assistente para as mulheres e me virei afim de
sussurrar para Roberta que enrolasse o máximo que pudesse com o vestido
da moça que falava comigo. Ela não compreendeu, mas assentiu do mesmo
jeito. Todas subimos ao mezanino do segundo andar. Cléo deu um beijo
sutil na testa de Nicole e se afastou dizendo que seria melhor se nenhuma
delas se vissem vestidas antes do casamento. Nicole tentou discordar,
puxando a mulher pela camisa como uma criança chamando a mãe, mas se
afastaram em seguida.
Continuei com o teatro me aproximando dela.
— E então, qual é o seu vestido dos sonhos?
NICOLE
Fiquei impaciente e transtornada por olhar nos olhos de Dakota e ver
que ela falava comigo normalmente, como sendo outra cliente qualquer.
Estremeci quando nos tocamos para nos cumprimentar, e depois disso, ela
mal me olhou para sequer explicar sobre os vestidos. Parecia que Cléo se
casaria sozinha. Visivelmente incomodada com a aproximação de ambas,
permaneci em silêncio. Ao invés de prestar atenção no rosto de Dakota, que
ficou ainda mais lindo e elegante com os anos, concentrei-me em vasculhar
a boutique com os olhos. Nada de diferente de uma boutique usual, o
interessante mesmo eram as próprias roupas. Mesmo que os detalhes
ficassem escondidos entre as araras, estava óbvio como tudo foi pensado
com esmero na hora da criação. O balcão do caixa, de madeira negra,
destacava-se das paredes em tom creme e bege, e mais detalhes desenhados
em abstrato nas paredes no tom escuro da madeira.
Fui puxada de volta à conversa avulsa quando alguém me chamou.
Dakota, fingiu minha presença na hora de subirmos ao mezanino, onde uma
escadaria dupla se erguia com as muretas de ferro prateado ladeando a
segurança das bordas. Ao chegarmos no alto, percebi que havia outra
mulher conosco. Uma garota baixa e fina de tão magra, com roupas sociais,
caindo perfeitamente ao corpo pequeno. Foi quando percebi que me
separaria de Cléo, e entrei em desespero. Pelo que ouvi, a funcionária,
chamada Roberta, guiaria minha noiva à última cabine do corredor para
provar alguns vestidos que Dakota havia informado que combinariam
melhor com Cléo. Quis pedir para que ficasse, na verdade queria outra loja.
Quando Roberta e minha noiva entraram no último cubículo à direita
do longo corredor, Dakota se virou para mim com as mãos juntas e um
sorriso simpático, o mesmo de sempre, aquele que eu conhecia tão bem
desde a infância.
— E então, qual é o seu vestido dos sonhos?
Demorei para conseguir formular uma resposta, por isso assenti com
a cabeça, deixando-a conduzir a conversa mesmo que não fizesse sentido
algum.
— Gosta de babados? Ou brilho? Prefere os mais minimalistas? —
continuei sem abrir a boca para desferir palavras. — Ok. Certo. Vamos para
a cabine, tem alguns vestidos por lá. Pode começar com algum, e então,
com base no que gostar primeiro, já terei uma noção do que gosta.
Aceitei novamente e a segui, olhando para o corredor e ouvindo
quando os murmúrios de Cléo e a funcionária cessaram durante a troca de
roupas; vestidos de noiva precisavam de ajuda para serem colocados.
Dakota me guiava para a primeira cabine, onde uma parede até o teto foi
erguida em vista de melhor privacidade. A portinhola feita com cortinas
grossas arrastando no chão em tom fosco preto. Ao entrar, ela foi por trás de
mim, trazendo a cortina para nos deixar vedadas. O rosto impassível me
irritava. E a lembrança da nossa última noite açoitava meus pensamentos.
Aquela feição neutra, aquela que eu nunca sabia como julgar. Dakota
sempre foi boa nisso.
Mesmo que o cubículo não fosse pequeno, de repente, me senti
ofegante. Diversos vestidos estavam dentro das capas escuras penduradas
em araras de metal nas quatro paredes que nos guardavam. Dakota saiu na
frente escolhendo uma das capas; quieta, abriu o zíper revelando uma manta
branca esvoaçante que sobrevoou rente aos meus olhos, a cauda era longa e
esparramou no chão de carpete, detalhes minúsculos em formato de rosas
compunham o busto generoso, mangas curtas e apertadas concluíam a
vestimenta, sem esquecer dos volumosos tecidos em degradê dando um
preenchimento digno de princesa da Disney.
Enquanto ela alisava o tecido fosco, não me encarou momento
algum. Fiquei parada com os braços cruzados enquanto arranhava a própria
pele diante do ar sufocante dentro do provador. Só eu e Dakota, sozinhas
em um cômodo, nem em meus sonhos eu imaginaria uma cena dessas.
Prendia o ar enquanto era ignorada com elegância.
— Não dá pra experimentar o vestido usando roupa. — instruiu-me
irônica, permanecendo com os olhos distantes.
Engoli seco sentindo a falta de saliva na garganta. Daria tudo por um
copo de água. Queria poder falar que não iria tirar a roupa, mas se Dakota
não se lembrava de mim, não havia motivos para temer ou me envergonhar,
não é?
A saia fina comprida caiu sob meus pés, assim como o cropped
cinza, ambos deixados repousando no pufe posto no canto do cômodo.
Respirava ofegante, não tinha como Dakota não estar ouvindo. Tentei cobrir
o corpo, falhando miseravelmente. O sutiã cobria meus seios pequenos; por
sorte, resolvi usá-los naquela tarde, normalmente era contra sutiãs. Enfim,
Dakota olhou para cima, impassível como sempre. Me ajudou a colocar o
vestido; não conseguia identificar uma espiada sequer. A mulher era
verdadeiramente profissional, isso eu tinha que admitir. Quando chegou na
cintura, ela parou. Tentei subir a roupa, porém, ela travou centímetros acima
do cós.
Como um toque macio de pluma, a ponta de seus dedos passaram na
pele das minhas costas, sufoquei um gemido pela mão abrupta. E mais
outro toque, delicado e quente, fechei os olhos aproveitando a sensação.
Demorei até perceber que não eram sem querer, queria dizer para ela parar,
mas não conseguia. As palavras não se formavam, queria mais dela, mais
do toque de Dakota, daquele toque que eu tanto ansiei. Ela continuou
subindo, olhei para frente assistindo nosso reflexo no espelho, o vestido
estava pela metade e meu busto era visto perfeitamente. Atrás de mim,
encontrei os olhos de Dakota vidrados nos meus pela primeira vez.
— Senti sua falta, Nic.
Me esgueirei longe, capturando o vestido cheio o trazendo para tapar
a pele desnuda.
— O que pensa que tá fazendo? Pensei… — hesitei.
— Pensou que não me lembrei de você? — dei de ombros
esbaforida. Ela mal me tocou e reagi com tamanho exagero. Corpo delator.
Corri para pegar minhas roupas com uma das mãos livres, pois a
outra segurava o vestido entre os seios. Dakota sorria se divertindo. Deu um
passo para frente balançando o tronco levemente mais perto de mim.
Recuei, batendo o calcanhar contra o espelho.
— Saí de perto, Dakota. Perdeu a noção? Minha noiva tá ali do lado.
— expliquei enquanto tropeçava nas palavras. Tentando manter o tom de
voz baixo como ela.
— Nunca esteve tão perfeita, Nic. Estou feliz de te ver depois desses
anos todos.
— Mas eu não. — vacilei. Meu rosto queimava em mentira.
Mais um passo.
— Precisamos conversar e sabe muito bem disso.
— Não é uma boa ideia.
— Se não aqui, outra hora, mas precisamos. — insistiu, já podia
sentir seu hálito contra o rosto. Minhas costas gelavam desnudas contra o
espelho imenso.
— Pode esquecer, Dakota. — minha entonação era pateticamente
frágil, não tinha como me levar a sério.
A dona da boutique apoiou as mãos no espelho me rodeando, nossos
corpos da mesma altura, mas o olhar que ela carregava me fazia sentir
menor. Mais do que nunca, me imaginava lhe beijando, jogando sua roupa
social para longe e transando com ela no chão do provador. Me irritei com
os desejos luxuriosos tomando conta de mim. Que ideia era essa? Estava
noiva.
— Já tentei, acredite. Mas você é impossível esquecer. — seus lábios
roçaram nos meus, automaticamente meu coração acelerou ainda mais, não
sabia que era possível. Respiramos em uníssono, e fechei os olhos
esperando. Poderia simplesmente me esquivar, deixar o vestido cair e
correr, mas não queria, e ela sabia disso. — Tá esperando alguma coisa,
Nic?
Trinquei o maxilar, franzi o cenho, o sangue borbulhava pela ousadia
de Dakota. Ergui o braço para bater em seu ombro e afastá-la de uma vez,
ela e sua prepotência ridícula. Assim que o vestido caiu sob meus pés ela
agarrou meu pulso.
— Imbecil…
As palavras morreram contra a boca de Dakota, que me enlaçou em
um beijo quente e desesperado. Agarrei sua cintura contra a minha, dessa
vez ambas sóbrias, queria aproveitar o beijo, mesmo que em minha mente
tudo dissesse não, que estava comprometida. O coração gritava ainda mais,
deixando a razão abafada, tudo parecia certo. O beijo encaixava melhor que
antes. O jeito com a qual ela me envolvia, me jogava em uma cama de
pensamentos maliciosos, queria sentir ainda mais. Comecei a erguer sua
camisa social presa por dentro da saia lápis, gememos entre os beijos, como
música para mim. Entrelacei os dedos nos cabelos lisos, e a puxei,
resgatando um gemido maior. Estava me deliciando em sua boca. Nós duas
sentíamos o desejo nos queimando a cada segundo.
Infelizmente, tivemos que nos soltar para conseguir respirar. Os
estalos de saliva cessaram, e procuramos oxigênio. Concentrada nas mãos
fortes de Dakota apertando minha cintura, nossos seios contra a outra, o
abraço perfeito, nos encaixávamos bem de pé, imaginei como seríamos
deitadas.
Afastei Dakota em um sobressalto de sanidade. Ela estava em êxtase
como eu. Limpei a boca exageradamente e tirei o vestido, começando a
vestir minhas próprias roupas, ela ameaçava retornar a me beijar, ergui a
mão em sinal de que parasse, fui respeitada.
— Isso nunca aconteceu. Vou pegar minha noiva e sair daqui.
— Não acabou, Nic. A gente precisa conversar em algum momento.
Não dá pra ficar fugindo pra sempre.
Dei de ombros e saí em disparada para o outro cubículo. Cléo estava
terminando de se vestir também. Já havia experimentado o vestido e se
mostrou satisfeita com a roupa, eu não podia simplesmente dizer que não
compraríamos ali. Pelo contrário, falei que não gostei dos modelos que a
dona possuía, mas que esperaria ela avisar quando novos chegassem. Cléo
engoliu a desculpa e antes de sairmos, Dakota surgiu como se nada
houvesse acontecido, eu mal conseguia encará-la nos olhos, a lembrança do
beijo permanecia quente e preferia ficar sem corar na frente da minha
companheira.
Cléo agradeceu por tudo e insistiu em deixar claro que queria levar o
vestido, sua animação que normalmente me alegrava, me fez sentir uma
culpa imensa. Saímos da loja satisfeitas, pelo menos minha noiva. A
ignorância é uma benção, foi o que pensei enquanto deixava uma lágrima
solitária rolar pelo rosto.
DAKOTA
Mal dormi na noite seguinte; revirei de um lado ao outro, revivendo
o beijo de Nicole. Sabia que o primeiro havia sido bom, mas éramos
adolescentes sem qualquer experiência. Era evidente que, com o passar dos
anos, as coisas seriam melhores, mas nunca me vi encaixar tão
perfeitamente em alguém como foi com ela. Ficava olhando o teto,
reflexiva, um sorriso bobo pintando o rosto, respirava calmamente, estava
nas nuvens, mas tinha medo de cair.
Nitidamente, ela estava certa, ou quase certa, de que não queria
conversar comigo, e não pude deixar transparecer em como aquilo
machucou. Mesmo assim, devíamos falar. Nicole sempre teve um gênio
forte, teimosa que só ela; quando uma ideia se colocava na cabeça,
dificilmente mudava. A maior prova foi ter se distanciado de mim por tanto
tempo.
Mas eu também era teimosa e defini que conseguiria uma mísera
conversa de dois minutos que fosse, mesmo que a última da nossa vida.
No final, consegui adormecer quase às quatro da madrugada; sonhei
com minha ex-melhor amiga, foi extremamente prazeroso, acordei
encharcada, nem o banho frio ajudou a diminuir a vontade que tinha em
estar com aquela mulher. Mesmo assim, segui com o fim de semana o mais
normal que conseguia. Trabalhei tranquilamente durante os dias seguintes,
concentrada por fora; por dentro, a ansiedade me atacava sem misericórdia.
Sempre que tinha tempo, parava para olhar a internet, procurar algo
sobre as noivas. Encontrei as redes sociais de Cléo e depois Nicole. Sua
noiva era dona de uma editora média no centro da cidade; entendi os
motivos de Nic gostar dela. A mulher era do tipo caridosa, sempre abrindo
projetos novos para os autores iniciantes terem chances no mercado.
Entretanto, não havia um escritor que de fato havia se destacado ainda, mas
muitos eram gratos pelas portas que Cléo e sua empresa haviam aberto para
eles. A editora Linha Dourada, como era chamada, tinha seus fãs leais, e
isso era o tipo de coisa que Nicole gostava.
Cléo não era do arquétipo reservada. No Instagram e Facebook,
havia postagens a rodo sobre sua vida, tanto profissional quanto pessoal.
Qualquer um conseguia estudar sobre a dona da editora. Muitas fotos de
fundo em uma boate que eu conhecia daqui da cidade; pelo que notei nas
datas, ela gostava de ir algumas vezes por mês, normalmente quando tocava
eletrônica. Nicole estava em todas as fotos, sempre com um sorriso
brilhante, mas que não chegava aos olhos. Sempre juntas. O pensamento era
amargo.
Enfim, cheguei nas redes sociais de Nic, sem Facebook, e com dois
Instagram, um de trabalho e um pessoal. Apenas o pessoal era privado;
portanto, eu não conseguia ver. Já a outra conta estava diversificada com
seus trabalhos de ilustradora. Foi impossível não sentir orgulho. A
criatividade era um trunfo em suas mãos. Me senti feliz por saber de seu
reconhecimento por fora. Ficava claro que seu nome crescia mais e mais.
Recebi uma notificação de festa eletrônica naquela balada em
questão. Estava animada para a noite de sábado seguinte. E como não
poderia aparecer simplesmente sozinha, chamei por uma amiga, Vivian
Ruth, para ir comigo. Já havíamos ficado no passado; entretanto, o beijo foi
tão desastroso que resolvemos permanecer na amizade. Vivian era uma bela
mulher com seus 1,80 de altura, pernas longas e torneadas, em recorrência
de esportes e barriga chapada de academia. Os cabelos cumpridos até a
bunda e o estilo jogadora de futebol lhe davam um ar agressivo, eu diria,
mas Vivi era uma das mulheres mais meigas e românticas que já havia
conhecido. Ter sua companhia na balada eletrônica seria perfeito.
Deixei o cabelo desgrenhado propositalmente, pouca maquiagem,
shorts preto fosco corino agarrado em cintura alta e uma camisa
transpassada vermelha; fiquei no salto comum e pronta. Gostei do que vi no
espelho. Vivi me buscou de carro já que iríamos juntas e seria mais fácil em
um único automóvel. Ao chegar lá, me deparei com uma fila única onde um
casal de seguranças revistava os homens e mulheres. A balada era tanto
para LGBT, quanto hetero, então se via todo tipo de gente. Vivi me
surpreendeu em dado momento enquanto estávamos próximas para a
vistoria.
— Qual o nome dela?
Não entendi até lembrar que ela me conhecia há dois anos, desde que
nos encontramos em um jogo de futebol a que fui levada a força por uma
antiga ficante. Vivian estava lá, nos interessamos e tentamos o terrível
beijo; foi descoberto como a gente tinha uma das piores químicas do
mundo. Após isso, a amizade veio com força, nos conhecemos em muitos
aspectos. Sendo assim, seria inútil mentir para ela. Fora que Vivi já tinha
certa noção do assunto; contei algumas coisas para ela com os meses.
Respondo o nome de Nicole por fim. Eu praticamente tinha que olhar para
cima para conseguir ver o rosto da minha amiga. Ela agarrou na manga da
minha camisa puxando para baixo, quase me fazendo ficar com o sutiã de
fora.
— Calma, vai me deixar pelada desse jeito.
— A Nicole? — assenti — pensei que nunca mais fossem se ver.
Como encontrou ela? E que cacete de amiga é você que não contou antes?
Falei por cima o que houve na semana passada, a história durou até
entrarmos na porta da balada, as luzes néon quase me cegaram, Vivian nem
ao menos piscou de tão interessada no assunto.
— Então, vê se controla essa empolgação e me ajuda a achar ela. —
repreendi subindo a manga da blusa pela sétima vez.
— Sim, senhora — bateu continência exageradamente.
Ela conhecia por cima o rosto de Nicole, eu ainda tinha uma foto
nossa de adolescência e mesmo que os anos nos tenham deixado
amadurecidas, Nicole permanecia com a mesma feição angelical de sempre.
A boate estava imersa em luzes piscantes, criando uma atmosfera agitada. A
música eletrônica, alta e constante, ecoava sem muita distinção. A pista de
dança lotada em um emaranhado de movimentos descoordenados. A cabine
do Dj, uma estrutura elevada, lançava batidas previsíveis. Para mim, a boate
assemelhava mais a um lugar barulhento e agitado do que um local
envolvente. O ambiente, longe de intrigante, era simplesmente mais um
ponto de encontro para pessoas em busca de diversão noturna.
Após algum tempo, estava no final da minha bebida quando senti um
toque animado no ombro. Estava ficando irritada por ainda não ter visto um
rosto familiar quando Vivi me iluminou. Apontou para o lado esquerdo na
direção de um mezanino baixo onde algumas mesas redondas se
encontravam, e lá estava ela. Nicole... e Cléo. Mesmo estando com a noiva,
o que já esperava, não poderia ignorar o sorriso ao encontrar com Nic
novamente; agradeci minha amiga ao lado por ignorar a cara de apaixonada
que fazia.
Nos aproximamos fingindo estar dançando. Vivian conhecia meus
métodos ao reconhecer o terreno, então me acompanhou sem perguntas.
Trocamos sorrisos e conversas aleatórias até estarmos de lado a poucos
passos da mesa do meu alvo. Não demorou muito até eu ouvir meu nome
ser chamado. Me redirecionei e atuei a melhor cara de surpresa da minha
vida.
NICOLE
Fiquei estranha a semana toda. Após o encontro com Dakota, meus
sentimentos se tornaram ainda mais conflituosos que antes; contudo, me
esforcei em tratar Cléo bem. Ela não merecia minhas dúvidas devido a
traumas passados. Não falei sobre a dona da boutique ser minha antiga
amiga; os motivos para revelar a situação eram nulos.
Chegou o final de semana, e eu sabia que a festa eletrônica me
esperava. Cléo ia sempre que surgia a notificação no Instagram; era algo
que ela não negociava, e eu acabava indo, mesmo que o estilo fosse
barulhento demais para mim, sem muito sentido de melodia e afins. Dessa
vez, fiquei feliz por irmos. Eu poderia mudar o rumo dos pensamentos para
variar, tentar modificar as coisas e quem sabe esquecer por uma noite de
Dakota. Era esse meu desejo.
Vesti um short de lantejoula brilhante e uma camisa larga branca,
com um colar pesado e cheio de prata para combinar; não pude deixar de
usar acessórios coloridos ao redor do pulso. Era o suficiente. O cabelo só
lavei e penteei; como estava curto acima das orelhas, não precisava prestar
muita atenção. Pronto. Cléo ficou no seu básico de fim de balada. Calça
cargo bege e camisa estampada de botões aberta, deixando o top aparecer.
Ela era fã do estilo, mas no trabalho ficava mais no casual.
Minha noiva resolveu que chamaria duas amigas, somente uma
surgiu. Suelen. Aquela ali gostava de beber até cair; sempre tínhamos que
cuidar da mulher no final da noite, e às vezes eu tinha que cuidar dela e
Cléo, que passava do ponto, sempre se tornava motivo de brigas quando
Cléo saía vomitando da balada. Um dos maiores motivos de brigas, quando
eu tentava lembrá-la que o vício em alcoolismo era de família, e isso
tornava as coisas difíceis de serem resolvidas. Cléo odiava quando eu
estava certa.
Suelen tinha uma aparência normal, sem muitos atrativos. Loira
encaracolada, olhos pequenos e separados demais, roupas curtas apertadas e
saltos plataforma para completar. Cléo a buscou em sua casa, mas a
intenção era de que eu virasse uber no fim. Chegamos na balada e
escolhemos a mesma mesa de sempre; eu preferia ficar mais na encolha,
porém, quando Cléo se juntava a uma amiga, eu ficava de lado.
As horas foram passando, olhava o relógio do celular algumas vezes,
um pouco mais calma deixando a música me levar para longe, bebericava
de um drink aleatório e participava da conversa entre as meninas de vez em
quando. Estava bem, juro que estava, até que senti um cheiro
excepcionalmente conhecido. A lembrança do odor me levou diretamente
ao cubículo da boutique, quando Dakota me beijou. E eu não podia estar
mais certa assim que avistei seu corpo esguio dançando tranquilamente há
uma curta distância de mim. O pior veio em seguida.
— Aquela não é a Dakota? — perguntou para Suelen mesmo que a
garota não soubesse quem fosse — Sim, onde eu e a Nicole fomos escolher
o vestido. — as duas comentaram algo que não ouvi — Espera aí que vou
chamar.
Arregalei os olhos, prestes a impedir. Cléo, mesmo bebendo mais,
foi ágil, e Dakota se virou para nós assim que escutou seu nome. Ela e uma
outra mulher extremamente alta se aproximaram de nós. Fiquei
desconfortável. Cléo e Suelen se esticaram para cumprimentar as mulheres,
na minha vez não me atrevi a mexer a perna. Primeiro veio a desconhecida;
ouvi Dakota lhe chamar de Vivian, em seguida a própria Dakota me
cumprimentou com um beijo no rosto.
— Que coincidência encontrar você aqui, mulher. Isso só pode ser o
destino. — disse minha noiva em sua inocência. — Com certeza foi o
destino. — respondeu Dakota, me vendo de soslaio. Mal sabia Cléo o
quanto ela levava a sério aquela história de destino e energia — Como sou
nova aqui, queria conhecer uma festa diferente e achei essa. Vivi me
mostrou, ela já veio antes.
Revirei os olhos perante o apelido. Bem coisa dela. Provavelmente
deviam estar juntas, ou já estiveram. Cruzei os braços assistindo Cléo as
convidar para sentar nas outras cadeiras disponíveis. Ela terminou de
apresentar Suelen e a conversa passou a fluir. Uma vez ou outra a tal da
Vivian franzia o cenho me observando, dava de ombros.
— O que as senhoritas estão bebendo? — indagou Cléo aumentando
o tom de voz para ser ouvida acima da música. Dakota avisou que sua
bebida havia acabado de terminar. Cléo respondeu algo, mas não ouvi,
fiquei prestando atenção nas roupas de Dakota. O que foi vergonhoso
quando minha noiva falou comigo e eu estava distraída olhando o decote da
dona da boutique. Pigarreei e perguntei o que havia falado, dando desculpa
da música alta.
— O que sugere para beber, amor? Pensei por um momento,
encontrando o olhar fervoroso de Dakota.
— Vodka de morango. A memória da bebida que tomamos na última
noite do piquenique também reacendeu em minha antiga amiga, seu sorriso
vacilou, fazendo-me arrepender de tê-la lembrado. Cléo gritou para o
garçom. As bebidas chegaram rápido. Brindamos pela coincidência, e senti
vontade de rir de nervoso, mas achei melhor ficar calada.
Incrivelmente, o tempo foi passando. E tudo quase se tornou um
encontro normal entre amigas, clima descontraído, conversas agradáveis e
engraçadas, sem indiretas ou situações vergonhosas. Foi um bom momento
breve que me mostrou como tudo poderia ter sido se eu não tivesse ido
embora. O pensamento pesava, olhei de canto para Dakota, que estava à
minha frente, ela ria com algo que Suelen contava. Mesmo com a bebida
alterando a percepção das mulheres da mesa, eu estava me entristecendo. A
situação retornou diretamente para mim, um tiro com uma arma poderosa
chegando a me deixar zonza. Pedi licença e me afastei da mesa em direção
ao banheiro, não queria que me vissem chorar, estragaria tudo que parecia
perfeito. Só parecia.
A música estava abafada dentro do banheiro. Umas meninas saíram
comentando alto sobre algum cara que deu em cima de não sei quem e
quase apanhou. Finalmente sozinha, encostei-me na pia, encarando o
reflexo no espelho grande. Minhas lágrimas caíam lentas; era bom estar
sozinha, tirar um pouco de toda a energia de cima de mim. Tentei secar as
lágrimas o máximo que pude; a ponta do meu nariz ficaria vermelha, e Cléo
perceberia que estava em prantos. Eu não estava afim de responder nada.
Entrei na cabine do banheiro e fechei a tampa da privada. Fiquei
sentada por um tempo. O álcool diminuía, algo que eu não queria. Por mim,
ficaria bêbada e esqueceria totalmente do passado. A melodia repetitiva
ecoou no banheiro, entre os ladrilhos, no instante que alguém entrou.
Sequei as lágrimas e saí da cabine; meu corpo bateu de frente com o de
outra mulher, e comecei a pedir desculpas antes mesmo de ver quem era.
— Tá chorando porque, Nic?
Dakota me abraçou quando as pernas enfraqueceram e perdi o
equilíbrio; afastei-me em tropeços. As lágrimas insistentes ardendo em
retornar. Sua feição soturna; ela me conhecia bem, mesmo com os anos, ela
me conhecia bem demais.
— Agora não, estava tudo tão bem na mesa. — pedi em súplica;
todavia, ela não aproximou. Ao contrário, recuou.
— Você sabe que precisamos conversar.
— De novo, não, Dakota. — tentei; ela interrompeu.
— Sim, Nicole. De novo, sim. Você me deve uma explicação. —
afirmou decisiva. Ela tinha razão, mas nunca gostei de acreditar que errei
feio em ter partido. Talvez minha reação tenha sido enérgica demais. Mas já
era tarde para pensar.
— Escuta, estou noiva, não posso ficar com você, não há o que falar.
Tudo passou e é isso. Precisa aceitar.
— Não houve despedidas, Nicole — falou por cima de minha
lamúria. Meu estômago embrulhou a contragosto; talvez fosse o álcool. —
Éramos melhores amigas; devíamos ter conversado ou pelo menos dito
adeus.
Refleti; ela sabia que iria ceder. Reconhecia sua linha de
pensamento. Estava mais que claro que ela tinha razão, e seria teimosia
demais da minha parte ignorar. Com certeza eu devia aquela conversa.
Suspirei cansada e ergui o celular em sua direção, já desbloqueado e
na lista de contatos.
— Passa seu número. Eu te ligo.
Dakota digitou seu número e se afastou do banheiro, sem gracinhas,
sem piadas, somente com uma esperança de algo que eu não poderia
prometer. A conversa sim, o resto, torcia para que não houvesse insistência.
Demorei mais alguns minutos no banheiro. Pela demora, imaginei
que Cléo poderia vir atrás de mim, mas não o fez; sempre assim. Com
bebida e amigas do lado, ela simplesmente esquecia o resto.
Ao voltar para a mesa, tanto Dakota quanto Vivian haviam ido
embora. Deram uma desculpa esfarrapada que minha noiva não entendeu.
Cléo disse que queria ficar mais para dançar, e eu apenas assenti. Ela e
Suelen se jogaram no centro da boate e dali só retornaram duas horas
depois. Fiquei pensativa durante todo aquele tempo, distraída em ideias que
borbulhavam como uma panela de água quente.
Quando a dupla estava de volta, a cara de enjoo de Suelen entregou o
motivo de quererem ir embora. Revirei os olhos aborrecida com a situação,
e partimos, comigo dirigindo, óbvio.
Deixamos a mulher em sua casa para ser cuidada pela tia com quem
morava, a qual não achou nenhuma graça de seu estado, fomos para casa
em seguida. Mal trocamos palavras, Cléo enjoada, colocando a mão no
estômago toda hora e correndo para o banheiro tentar vomitar; em momento
nenhum ouvi seus gemidos de dores, ela queria, mas não conseguia. Já
estava para amanhecer quando finalmente Cléo tomou um banho com a
minha ajuda e desmaiou na cama. Permaneci acordada até às oito da manhã
quando o sono, finalmente, me levou.
O domingo chegara rápido. Cléo demorou para se levantar, e quando
o fez a dor de cabeça estava insuportável. Lhe dei um remédio para ressaca
e café da manhã reforçado. Em certo momento, ela parou enquanto tentava
olhar para mim na direção da luz, perguntou se eu estava bem, e concordei
num sorriso amarelo; ela aceitou e bebericou do chá fervendo. Senti-me
extremamente solitária com uma simples pergunta, nenhuma preocupação a
mais, como de praxe, nada mais.
Respirei fundo e dei as costas indo até o banheiro. Deixei o celular
em cima da pia de mármore, passei a mão no cabelo, exasperada.
Embargada, joguei água no rosto, me encarando diante do espelho, via meu
rosto depressivo, uma sensação infinita de tristeza onde eu não sabia o que
fazer. Meus olhos caíram sobre o celular, pensei em Dakota. Contei até dez
de trás para frente. Ouvi Cléo andar pelo quarto; a porta fechada causou um
eco singelo no cômodo ao lado. Pensava sobre minhas próximas ações,
sabia o que ia fazer, só estava tentando aceitar a ideia.
DAKOTA
O pôr do sol se punha no horizonte entre os prédios residenciais da
cidade. Gostava daquele horário, sentia-me reflexiva, gostava de tomar uma
taça de vinho assistindo os raios pintarem os céus para um azul marinho
trazendo o anoitecer a distância. Normalmente, sentava na cadeira da sala
de jantar, frente às persianas abertas que tomavam conta de toda a parede,
onde a janela ocupava toda a extensão. Usava o tempo para refletir nos dias
anteriores. Funcionava como um tipo de meditação, acalmando
pensamentos e emoções.
Foi em um momento desses que o celular vibrou sobre a mesa de
vidro, arrancando-me da paisagem. O número desconhecido piscou
incessante, e abri a mensagem que me atormentava. Era Nicole perguntando
se poderíamos jantar na minha casa. Aceitei, deixando o endereço e o
horário para dali há duas horas. Estava marcado. De repente, toda a paz
dentro de mim se transformou em urgência.
Corri para fazer comida. Eu poderia pedir, mas adorava cozinhar,
então, com os ingredientes na geladeira, um ceviche peruano, o verdadeiro
ceviche, seria perfeito para a ocasião. Lembrei que ela gostava de peixe,
então uma boa impressão não seria de todo ruim. Como o prato era rápido
para fazer, decidi deixá-lo por último. Antes, daria uma rápida organização
na sala, como tirar as almofadas do chão e arrumar os tapetes revirados que
haviam ficado desarrumados enquanto estava dançando meia hora atrás. Fui
para o banheiro tomar um banho longo e gelado, tentando colocar a mente
no lugar, já que todas as emoções se atropelavam.
Fiquei tempo demais escolhendo a maldita roupa, até que chegou um
momento em que estava atrasada para o jantar. Contrariada, escolhi um
shorts fino claro e uma camisa larga transparente, deixando um top de renda
à mostra. Cabelos soltos desgrenhados deixando o look um pouco menos
capenga. Estava nervosa e temia que ela enxergasse isso.
Depois, fui à cozinha. Preparei o peixe e o restante dos ingredientes.
Sabia que ceviche era feito em muitos lugares e alguns gostavam de
acrescentar manga ou maçã. Conheci um amigo peruano que não tinha nada
contra os ingredientes a mais; contudo, estava evidente que o ceviche
original peruano era o único, e ninguém lhe tirava a ideia de que o do seu
país era único. Eu concordava com ele, ainda mais depois de experimentar
o que ele havia feito para mim. Portanto, para Nicole, só o melhor.
Tudo em perfeito estado, olhei o relógio do celular e ouvi o interfone
tocar. Bem na hora. Respirei algumas vezes, procurando oxigênio e
mantendo a ansiedade baixa da melhor forma possível. Deixei que o
porteiro permitisse a entrada de Nicole.
Segundos depois, o elevador abriu, revelando uma mulher
esplêndida. Vestido solto estampado abstrato em cores vermelhas, alças
finas nos ombros e um casaco por cima para esconder a pele desnuda do
vento fresco do lado de fora. Ela encarava os próprios pés quando percebeu
estarmos diante uma da outra. Engoli o elogio exagerado e lhe dei passagem
para entrar.
— Cheiro gostoso.
Uma pontada de orgulho preencheu o peito; o odor da comida e de
casa limpa preenchia o apartamento.
— Obrigada, Nic. É o ceviche que fiz pra gente.
Seus olhos brilharam de fome, cessou ao observar o apartamento
com pé direito alto para olhar para trás, encontrando meu rosto sorridente.
— Jura? Lembrou que amo peixe?
— E por que não? — dei de ombros — Achei que comendo algo que
gostasse, se sentiria mais à vontade.
Ela não respondeu, o sorriso despontado dos cantos dos lábios
rosados explicavam por si só. Pedi sua bolsa deixando sobre a mesa de
centro e a levei até a sala de jantar, dividida por um painel ripado de mogno
escuro. A mesa posta, deixei nossos pratos um de frente para o outro, de
modo que estivéssemos perto, porém não tanto.
— Só se servir, espero que goste, Nic.
— Foi você quem cozinhou? — pausou e assenti — Então eu vou
adorar.
E com isso, começamos o jantar. Demos início a alguns assuntos
amenos sobre nossa família. Ela me perguntou sobre como foi sair de casa;
expliquei que foi menos difícil do que imaginei e que meus pais estavam
dispostos até mesmo a me ajudar a sair se eu precisasse, tudo para ficarem
sozinhos com suas brigas e traições. Quanto aos meus irmãos, só tinha
contato com o mais novo, que estava com sua vida melhor encaminhada.
Depois, perguntei sobre sua mãe; fiquei em dúvida em dizer que mantive
contato com ela por tanto tempo, mas percebi que já sabia.
— Dona Mônica sentiu falta de você indo em casa, mas como você
sempre dava notícias, isso bastava um pouco. Sabe o quanto ela te ama.
— Sei. — não pude deixar de ficar triste. Ela cutucou minha mão
com a ponta do garfo chamando minha atenção — Você sabia que não era
difícil me encontrar, e mesmo assim, preferiu não falar comigo.
Nicole havia terminado a última garfada do prato, limpou a boca
com o pano branco ao lado da taça de vinho que bebíamos, demorando mais
do que o normal para responder. O assunto em questão havia surgido.
— Lógico que eu sabia que minha mãe mantinha contato. Eu não
sou burra, Dakota. Mas não estava pronta pra conversar. Achei melhor não
falar nada, e minha mãe respeitou minha decisão, nunca falou nada de você
pra mim.
— Ficou tão chateada comigo que nem queria saber se eu estava
viva? - afastei meu prato limpo percebendo minha voz aumentar tom a tom.
— Não é bem assim.
— Então como é? — não costumava falar alto com ninguém, muito
menos descontrolar com quem eu gostava, mas a situação havia se
mostrado pior do que imaginei.
— Não precisava perguntar pra ninguém se minha ex-melhor amiga
estava bem, porque eu sempre soube que estava. Mesmo que estivesse me
afastado de você, meu coração nunca foi embora.
— Como assim?
Nicole mal me encarava, olhos fechados, lembrando, distraída em
sua mente mais uma vez. Era lindo como ela ficava quando pensava
profundamente, contudo, eu só queria respostas e estava pronta para bater
na mesa exigindo isso.
— Sempre fui louca por você, Dakota. Eu não conseguia ficar bem
quando te via com outras, era difícil demais pra mim naquela época. —
pausou me analisando — Quando chegou aquela porcaria de piquenique,
arrumei coragem não sei da onde e te beijei.
— A coragem se chama vodka, Nic. — suavizei o tom novamente,
prendendo um sorriso bobo perante as palavras anteriores. — E se você
queria tanto fazer aquilo, por que fugiu?
— Fiquei com medo quando você parou, e a forma como reagiu.
Pensei que não queria. Que talvez o álcool tivesse te deixado daquele jeito,
no dia seguinte iria me olhar diferente, perderíamos a amizade, e eu não
queria perder.
A falta de diálogo era evidente e comicamente trágica se não tivesse
acontecido como foi. Uma questão de ambas conversarmos naquele mesmo
dia ou no seguinte, mas que não deixássemos de falar. Infelizmente tudo
saiu errado de como planejamos.
— Primeiro que aquele tanto de vodka não me deixaria impulsiva,
Nicole. — expliquei impaciente — Segundo, eu fiquei receosa de você estar
sendo impulsiva. Como uma amiga hetero que tá afim de experimentar o
beijo da outra amiga, algo assim. Eu percebi que era como se estivesse me
aproveitando de você bêbada. Aquilo me corroeu por dentro, dentre todas as
meninas do mundo, eu nunca poderia te tratar daquele jeito.
Os olhos dela marejaram. Alcancei sua mão e passei a fazer carinho
com a ponta dos dedos.
— Sempre quis você, Nicole. Mas eu não sabia da sua preferência
por mulheres e muito menos por mim. Me perdoa por ter sido insensível.
Fui a primeira que beijou, e devo ter causado uma péssima experiência.
Abaixei a cabeça, era minha vez de querer chorar.
— Te deixei sozinha, Dakota. Deixei você sozinha mesmo tendo
prometido que te levaria comigo pra onde fosse. Que nunca permitiria que
sofresse sozinha com sua família e a primeira coisa que fiz quando algo não
saiu como eu queria, foi fugir. Quem deve desculpas sou eu.
As lágrimas despontaram escorrendo pelas bochechas, saltei da
cadeira e a abracei, Nicole se levantou e nos abraçamos. Permiti que ela
usasse meu ombro para abandonar a dor. Após todos aqueles anos, ela se
sentia envergonhada, culpada por ter feito o que fez. Deve ter ficado horas e
horas imaginando que tudo poderia ter sido diferente se apenas tivéssemos
conversado por cinco minutos, não mais que isso. Talvez tudo tivesse sido
diferente.
Inalei o odor doce de seus cabelos curtos e me deixei derramar uma
ou duas lágrimas. Estar com Nicole em meus braços era um sonho que só
ficava na minha cabeça. Tinha medo de abrir os olhos e descobrir que
agarrava o travesseiro durante um sonho.
Acariciei suas costas, o casaco que ela levava estava posto no
encosto da cadeira, então as alças do vestido me davam passagem livre para
tocá-la. A ideia de poder estar perto, ouvindo sua respiração, causou outros
efeitos, a recíproca se mostrou quando ao parar de chorar, Nicole me
encarou com seu fogo natural e me puxou para seus lábios. O beijo lascivo
com um desejo antigo marinando por anos, um beijo carregado de
sentimentos e palavras perdidas no tempo. Qualquer beijo que tivemos no
passado não era comparado a tal.
Nicole mal me encarava, olhos fechados, lembrando, distraída em
sua mente mais uma vez. Era lindo como ela ficava quando pensava
profundamente, contudo, eu só queria respostas e estava pronta para bater
na mesa exigindo isso.
— Sempre fui louca por você, Dakota. Eu não conseguia ficar bem
quando te via com outras, era difícil demais pra mim naquela época. —
pausou me analisando — Quando chegou aquela porcaria de piquenique,
arrumei coragem não sei da onde e te beijei.
— A coragem se chama vodka, Nic. — suavizei o tom novamente,
prendendo um sorriso bobo perante as palavras anteriores. — E se você
queria tanto fazer aquilo, por que fugiu?
— Fiquei com medo quando você parou, e a forma como reagiu.
Pensei que não queria. Que talvez o álcool tivesse te deixado daquele jeito,
no dia seguinte iria me olhar diferente, perderíamos a amizade, e eu não
queria perder.
A falta de diálogo era evidente e comicamente trágica se não tivesse
acontecido como foi. Uma questão de ambas conversarmos naquele mesmo
dia ou no seguinte, mas que não deixássemos de falar. Infelizmente tudo
saiu errado de como planejamos.
— Primeiro que aquele tanto de vodka não me deixaria impulsiva,
Nicole. — expliquei impaciente — Segundo, eu fiquei receosa de você estar
sendo impulsiva. Como uma amiga hetero que tá afim de experimentar o
beijo da outra amiga, algo assim. Eu percebi que era como se estivesse me
aproveitando de você bêbada. Aquilo me corroeu por dentro, dentre todas as
meninas do mundo, eu nunca poderia te tratar daquele jeito.
Os olhos dela marejaram. Alcancei sua mão e passei a fazer carinho
com a ponta dos dedos.
— Sempre quis você, Nicole. Mas eu não sabia da sua preferência
por mulheres e muito menos por mim. Me perdoa por ter sido insensível.
Fui a primeira que beijou, e devo ter causado uma péssima experiência.
Abaixei a cabeça, era minha vez de querer chorar.
— Te deixei sozinha, Dakota. Deixei você sozinha mesmo tendo
prometido que te levaria comigo pra onde fosse. Que nunca permitiria que
sofresse sozinha com sua família e a primeira coisa que fiz quando algo não
saiu como eu queria, foi fugir. Quem deve desculpas sou eu.
As lágrimas despontaram escorrendo pelas bochechas, saltei da
cadeira e a abracei, Nicole se levantou e nos abraçamos. Permiti que ela
usasse meu ombro para abandonar a dor. Após todos aqueles anos, ela se
sentia envergonhada, culpada por ter feito o que fez. Deve ter ficado horas e
horas imaginando que tudo poderia ter sido diferente se apenas tivéssemos
conversado por cinco minutos, não mais que isso. Talvez tudo tivesse sido
diferente.
Inalei o odor doce de seus cabelos curtos e me deixei derramar uma
ou duas lágrimas. Estar com Nicole em meus braços era um sonho que só
ficava na minha cabeça. Tinha medo de abrir os olhos e descobrir que
agarrava o travesseiro durante um sonho.
Acariciei suas costas, o casaco que ela levava estava posto no
encosto da cadeira, então as alças do vestido me davam passagem livre para
tocá-la. A ideia de poder estar perto, ouvindo sua respiração, causou outros
efeitos, a recíproca se mostrou quando ao parar de chorar, Nicole me
encarou com seu fogo natural e me puxou para seus lábios. O beijo lascivo
com um desejo antigo marinando por anos, um beijo carregado de
sentimentos e palavras perdidas no tempo. Qualquer beijo que tivemos no
passado não era comparado a tal.
Minhas mãos deslizaram por seus ombros, porém, cessaram nas alças
finas. Ela deu passagem para que eu continuasse, deixei o vestido cair sob
seus pés. Ela estava sem sutiã, quando dei por mim, enchi minha mão em
seus seios, apertando e acariciando cada parte macia, tamanho perfeito.
Nicole gemia baixo entre um beijo e outro, o desejo nos esquentando a cada
segundo.
Ela desceu a mão em minha cintura, me apertando, passando as
unhas curtas na minha pele causando um rastro quente e ardido que me
enlouquecia. Logo, minha camisa estava no chão da sala, seu top de renda
também. Apenas de calcinhas, agarrava para ficar mais colada, nem toda
aproximação do mundo parecia suficiente.
Andamos para trás do painel ripado, devagar para não cairmos,
Nicole beijava meu pescoço e lambia enquanto me esforçava para enxergar
o sofá, grande suficiente para caber as duas. Assim que o localizei, a deitei
com cuidado, durante o processo ela não alternava o olhar. A conexão
imensa, atravessando meu corpo, não sei se ela tinha noção do quão sexy
podia ser.
Beijei seu pescoço, desci por seus seios ficando ali por mais algum
tempo, a ponta da língua acariciava sua barriga em seguida, ela mal
percebeu quando sua calcinha já estava jogada no chão distante de nós. Me
encaixei entre suas pernas e beijei entre elas. Sentia o quão molhada Nicole
estava, aquilo era uma perdição para mim. Ela se arqueava, a beijava com
vontade, segurando em suas coxas para abrir as pernas ainda mais me dando
passagem.
Nicole gemia e suspirava, pegando nos meus cabelos para impedir
que os fios me atrapalhassem ao mesmo tempo que empurrava minha
cabeça para baixo. Eu a tinha toda para mim, entregue. A melhor sensação
do mundo.
Parei antes que ela chegasse ao final, não poderia apenas continuar,
como estava encharcada, coloquei dois dedos dentro dela, mexendo lento e
conseguindo mais gemidos em resposta, às vezes altos, com meu nome no
meio.
Quando ela gozou nos meus dedos, subi novamente, Nicole abraçou
meu corpo com as pernas, mesmo que mexendo por causa do espasmos, ela
ainda tinha força. Apertou minha nuca para perto e me beijou, agora foi
mais gentil que antes, porém, o tesão ainda gritava entre nós.
—Você é linda demais, Nicole.
Ela sorriu em resposta, conseguindo uma brecha para nos trocar de
lugar. Logo ela estava em cima de mim, com facilidade enquanto me
beijava ela tirou minha roupa íntima, vi quando a peça voou para trás do
sofá, eu teria rido se ela não começasse a me acariciar por baixo,
despertando gemidos involuntários de mim. Nicole não ficou muito ali,
ouvíamos o som dos estalos molhados enquanto ela me tocava com
maestria, dessa vez eu estava entregue, a maneira intensa com a qual me
olhava nos olhos, procurando por respostas silenciosas entre suspiros.
Nicole ficou entre mim, se encaixando no meio das minhas pernas,
conseguia senti-la, ela rebolava, a sensação indescritível. Gemiamos juntas
sem pudor, acariciando suas costas e sua bunda maravilhosa. Nicole era
esculpida por deuses. O corpo curvilíneo e molhado de suor. Nos mexíamos
em sincronia, nos olhando, nos beijando. Chegamos ao clímax juntas, meu
nome era chamado diversas vezes, e Nicole não queria quebrar o contato
nem uma vez sequer, sempre exigindo que a olhasse de volta.
Ela ficou em cima de mim por um tempo, recuperando o fôlego
como eu. O tempo mal durou, fomos tomar banho, e lá transamos mais uma
vez, nos tocando ao mesmo tempo, sentindo-a se contrair em meus dedos e
vice-versa. Depois para minha cama, o quarto com o ar condicionado
impedia que o calor nos incomodasse. As horas iam se passando até que
finalmente ficamos simplesmente deitadas de conchinha, assistindo o azul
do anoitecer ser pincelado por uma aquarela amarelada distante.
NICOLE
Eu mal sabia dizer como me sentia. Dentro de mim, meu coração
palpitava cansado e feliz pela noite que passamos juntas. Vi a madrugada
caminhar diante de nossos olhos, deixando tudo ainda melhor. Meu corpo
colado no de Dakota, no escuro da madrugada, ouvindo sua respiração,
sozinhas sem o incômodo dos sons externos. Era o que precisava, o que
queria.
— Não queria que essa noite acabasse, Nic.
Foi como cair em uma banheira de gelo; meu corpo tremeu enquanto
engoli seco. Como um farol brilhando nos meus olhos, a responsabilidade
se mostrou luminosa.
Desvencilhei lentamente do aperto de Dakota, ainda nuas, admirei as
curvas de seu corpo, mas desprendi a ideia de continuar a tocá-la.
— Eu disse alguma coisa errada? — mesmo que fosse retórica,
ambas sabíamos. Entendíamos que o que Dakota dissera já tinha seu
significado nas entrelinhas. Uma simples frase que fez um sentimento
horrível de traição se apoderar do meu coração, antes acalentado por seu
calor, agora disparado em ansiedade.
— Melhor eu ir embora agora.
Disse-me envolvendo nos lençóis enquanto ia para a sala onde meu
vestido estava repousando no chão. Dakota veio atrás de mim, diferente da
vez do piquenique em que ela me impediu de ir, nesse momento, ficou
quieta, apenas me acompanhando. Quando percebi, ela estava com a camisa
transparente, deixando a visão de seu corpo turva devido ao tecido.
Dakota ficou em silêncio, e aquilo me despedaçava, mas eu não
tinha mais o motivo de chorar. Havia coisas demais para se pensar, e ela
sabia. Não era só sobre nós, não tínhamos mais dezesseis anos, não éramos
livres pelo mundo apenas esperando para nos escolhermos.
Responsabilidades existiam no tempo atual, havia alguém me esperando em
casa. Alguém a quem iria me casar.
Ela apertou um botão do painel prateado, chamando o elevador que
chegou rápido demais. Eu agarrava a jaqueta envolta dos ombros, deixando
os nós dos dedos brancos, mal podia encarar Dakota nos olhos, por outro
lado, sei que ela o fazia.
Entrei no elevador, esperei ir embora sem nada a dizer, mas fui
interrompida antes de apertar o botão para descer.
— Sempre fui apaixonada por você, Nic. Mas agora é diferente, você
sabe o que sinto. Me diz, se sente o mesmo. Se me disser que sim, eu posso
lutar pela gente.
Ergui o olhar, imaginei dizer que não a amava, que não eram
recíprocos os sentimentos, que mentir para ela poderia doer menos, que
assim seria mais fácil e ela apenas seguiria em frente. A noite foi uma
despedida, a verdadeira despedida. E mesmo que eu tivesse a chance de
mentir, fui covarde e fiquei em silêncio; novamente, estava indo embora
sem lhe dar o direito de uma resposta.
Quando o elevador fechou, lembrei das lágrimas de Dakota caindo, a
mágoa estampada, machucada, ferida mais uma vez. Mentir seria cruel, mas
eu deveria tê-lo feito. Partir sem dizer que compartilhava de seus
sentimentos foi a pior coisa que eu podia ter feito para ela. Mais uma vez.
A garagem de casa estava incrivelmente gelada quando cheguei.
Fiquei dentro do carro encarando meu reflexo no retrovisor, onde a culpa
me esmagava como um rolo compressor. Meus olhos inchados e vermelhos
denunciavam que eu chorei durante o trajeto para casa. Sem pensar, saí do
carro e entrei. Cléo estava no quarto ainda adormecida; não iria acordá-la e
muito menos deitar junto. Fui para a cozinha preparar o café da manhã. Ela
tinha trabalho cedo na editora e eu em casa, mesmo que atolada de
ilustrações para fazer, eu não dava a mínima.
Temperando a omelete, eu sequer prestava atenção; a mente
permanecia presa no apartamento de Dakota. Toda vez que a lembrança de
seus olhos surgia, eu marejava. Mal notei a presença da minha noiva
entrando na cozinha, se espreguiçando e bocejando pela noite bem dormida.
Ela sempre teve o sono pesado.
— Como foi na minha sogra? Perguntou vindo me dar um beijo de
bom dia. Hesitei; ela não notou, para variar, nem mesmo meu rosto
denunciando o choro passado ela prestou atenção. Agia como se tudo
estivesse na perfeita ordem.
— Tranquilo. Respondi. Eu sabia que não haveria brigas pelo meu
sumiço durante a noite; já havia deixado avisado que iria ver minha mãe, e
era comum que eu dormisse por lá sem avisar. O que piorava o
ressentimento. Eu não sentia culpa somente pela mentira ou por tê-la traído;
o que realmente me machucava era que em muitos momentos durante
minhas ações, eu pensei em abandonar tudo e ainda pensava. Mesmo
estando aqui, eu cogitava a ideia.
Durante a preparação do café, Cléo me abraçava, feliz e ignorante.
Meu sorriso amarelo presente, fingindo expressões do que não sentia.
Sempre fui terrível em esconder; a transparência me incriminava
facilmente, e mesmo sendo assim, Cléo tinha dificuldade em saber quando
algo estava errado comigo, e isso às vezes me tirava do sério.
Ela conversou sozinha durante o café da manhã. Enquanto sorria
sem vontade ouvindo ela contar sobre assuntos aleatórios que não me
interessavam, eu respondi uma pergunta retórica ou outra só para ela saber
que eu estava ali, mas a verdade é que eu não estava.
Os dias iam passando, não tive notícias de Dakota após nosso último
encontro, minha mãe estava levemente estranha comigo. Com Cléo, nossas
noites de amor se tornaram monótonas, eu não sentia seu toque como antes,
seus beijos eram tão comuns para mim quanto os de uma desconhecida. Ela
não merecia isso, contudo, tínhamos um compromisso, e ela gostava tanto
de mim que eu não poderia me prender ao passado. Havia seguido em
frente e escolhi Cléo. Esse era o pensamento que me forçava a ter todos os
dias, desde acordar até a hora de dormir. Em algum momento, eu esqueceria
Dakota.
Uma noite, Cléo demorou para chegar em casa. Ela estava atolada
em trabalhos na editora com os novos autores, entre reuniões e
planejamentos de marketing, portanto, fiquei sozinha. Uma crise de
ansiedade me arrebatou. Deviam ter duas semanas que não via Dakota, e
mesmo que houvesse passado doze anos sem vê-la, agora tudo era ainda
mais insuportável do que a última vez no maldito piquenique.
E foi durante a crise de ansiedade, quando as ideias de ilustrações
haviam desaparecido de mim, que fiz algo que não deveria. Acendi meu
celular e digitei o número dela. O toque durou alguns segundos até que do
outro lado alguém atendeu. Estava pronta para falar com ela, mas a voz do
correio eletrônico ecoou no aparelho, denotando que ela havia desligado,
deliberadamente me ignorando. Senti o soco direto no estômago, e o choro
veio involuntário. Tentei de novo, e a mesma resposta. Joguei o aparelho
longe. Por que Dakota tinha que ter reaparecido na minha vida? Eu estava
seguindo em frente.
Adormeci em cima do notebook até sentir um toque no ombro.
Acordei num salto pelo susto, me deparando com Cléo. Seus olhos estavam
diferentes, havia um brilho sucinto, algo peculiar que eu não compreendia.
Um arrepio passou pelo meu corpo, ignorei.
— Vamos para a cama, amor. Vai acordar com uma puta dor nas
costas amanhã.
Normalmente, eu não ouvia palavrões vindo de Cléo, o que me
deixou estranhamente em alerta. Contudo, a ouvi e levantei. Fomos para a
cama. Percebi que ela havia chegado pouco tempo em casa; o casaco tinha
pingos de chuva condizentes com a garoa, o que por um lado não fazia
sentido, pois nossa garagem era coberta, e na editora também, não sabia
como ela havia se molhado.
— Onde você estava? Cléo sorriu docemente, habitual.
— Na editora, mocinha. Onde mais?
Dei de ombros e depositei um beijo amargo em sua bochecha; caí na
cama exausta, o sono me engolfou imediatamente. Tive pesadelos naquela
noite, não me lembrava de nenhum deles, mas sei que me fizeram chorar
durante o sono. Quando acordei na manhã seguinte, Cléo já havia ido
trabalhar. Ela sempre me avisava quando saía, fazendo o contrário dessa
vez. Alguma coisa estava errada quando avistei meu celular em cima da
cama com a tela quebrada devido ao meu ataque, e nele o nome de Dakota
jazia piscando das minhas chamadas recusadas.
DAKOTA
Doía. Doía quando ela foi embora da primeira vez, e pensei que
jamais sentiria tamanha dor. Todavia, quando a reencontrei, meu coração
era como um desfibrilador que havia retomado as batidas do meu coração.
E quando ela foi embora pela segunda vez, sem responder, sem me olhar
nos olhos, percebi que a primeira dor havia sido apenas para me dar uma
amostra do que a verdadeira dor poderia causar.
Fiquei estática de pé na imensa sala. Sentindo-me zonza, com a vista
turva, o mundo girava. Não chorei quando fui para a cama, pelo menos, não
conseguia; uma coisa dentro de mim havia sido quebrada de tal forma que
não era possível externalizar. Qualquer terapeuta ficaria preocupado
comigo, mas eu não. Só queria não lembrar, deixar tudo aquilo para trás.
Havia entendido antes que não poderia esquecer Nicole, que aceitaria
conviver com o fato de que ela sempre teria um espaço no meu coração e
mente. Entretanto, após aquela dor asfixiante, não queria mais aceitar, iria
deixar tudo, esquecer aquela mulher, de um jeito ou de outro, eu tentaria
esquecê-la de verdade.
Eu merecia ser feliz também, estar com alguém que realmente me
quisesse, que tivesse coragem de dizer em voz alta o quanto gostava de
mim. Nicole não era essa pessoa, e eu entendi enfim que não podia ser
nunca.
Não fui trabalhar no dia seguinte, e Vivian, como de costume, me
ligou durante o almoço. Demorei a atender, mal queria comer, estava sem
fome. Fiquei na cama como uma derrotada por horas, me dei aquele dia de
descanso ao corpo.
Vivian surgiu no meu apartamento pouco depois de perceber que
havia algo errado na minha voz. Surgiu feito furacão; o porteiro já a
conhecia, tinha entrada livre. Ela voou até meu quarto e me abraçou com
força, aceitei o abraço de bom grado.
— O que ela fez com você? É bom me contar, ou encontro o
endereço dela e a mato.
Vivian sempre foi protetora, e mesmo que seu tom de voz denotasse
fúria, a preocupação estampada na face continha a doçura de uma irmã mais
velha.
— Eu que fiz, Vi, a deixei vir e acabar comigo. Mas não quero nada
de ruim pra ela, só quero esquecer.
Abracei o travesseiro quando ela me soltou. Seu toque sincero
acariciava meus cabelos.
— Eu sei que não quer. Você tem um coração lindo e se essa otária
não vê isso, é ela quem perde. — não sorri, me via sem forças — Você não
pode deixar seu trabalho, Dakota. Vou te dar esse dia pra colocar a mente no
lugar e voltar amanhã pra boutique, entendeu?
Charm Nic’s Noiva. Que ideia idiota.
— Eu não devia ter colocado o nome dela na empresa.
— O que? — eu estava olhando para o outro lado, avistando a
paisagem nebulosa do céu através da janela. Encarei minha amiga,
esperando que ela fosse entender. Quando arregalou os olhos, sabia que
havia entendido. — Não! Você não... Sua idiota. — disse pegando o
travesseiro que eu abraçava e batendo na minha cabeça — Nic é apelido
para Nicole. Por que fez isso? É como tatuar nome de ex, perdeu o juízo,
foi?
— Ai, para, tô com dor de cabeça já. — ela continuou um pouco
mais até finalmente cessar — Eu não sei por que fiz isso, ou talvez eu saiba,
sei lá.
— Dakota, sua idiota. — suspirou, jogando o travesseiro longe de
mim. Levantou e foi até a cabeceira, mexeu na primeira gaveta, saiu do
quarto e pouco depois retornou com copo de água e uma aspirina para dor.
— Vai fazer o que com esse negócio do nome?
Me sentei e tomei o remédio.
— Sinceramente, acho que vou deixar assim. Já é a marca da loja, e
é uma burocracia chata pra mudar o nome, logótipo, alterar tudo, você sabe.
— Te manteria distraída pelo menos.
— Pode ser. Penso nisso depois. Tenho outras coisas pra tratar de
qualquer jeito.
— E mesmo assim você tá aqui, cretina. Chorando por uma mulher
que não te escolheu no passado e nem agora. — Vivian fechou a boca
formando uma linha dura nos lábios após perceber o que disse.
Normalmente, ela era sempre dura nas palavras, mas aquela não era a
melhor hora para jogar fatos na minha cara. — Desculpa, eu não queria. Ah.
— hesitou coçando o topo da cabeça, sem graça — Odeio que fique assim.
Você é sempre tão forte quando se trata de mulher, e essa acaba com você.
Não quero piorar a situação, foi mal, Dakota.
Engoli a bola espinhosa presa na garganta, não queria chorar de
novo. Estava cansada, querendo ou não, Vivian estava certa. Alcancei sua
mão e a confortei.
— Relaxa, Vi. Você é insensível às vezes, mas ainda te amo.
Sorrimos. A verdade pairava sobre nós, porém, escolhemos deixar
aquela realidade amarga só na minha consciência.

— Mesmo sofrendo, tá tentando me confortar, cretina.


Suspirei sentindo as pontadas no topo da cabeça.
— Fica aqui hoje?
Aqui estão as correções, mantendo as regras que você estabeleceu:
Pedi, sabendo que ela estava de folga do teatro. Vivian era
dramaturga, uma das melhores da região. Eu sempre estava na primeira
fileira assistindo a uma de suas peças. Enfim, isso era uma das coisas que
faziam Vivian ser sempre tão dramática em diversos aspectos, desde suas
carrancas até atitudes.
Minha amiga fez cara de choro e me deu outro abraço, dessa vez
mais apertado e demorado. Após isso, ela preparou a sala com uma manta
felpuda, deixou a pipoca e o sorvete de chocolate sobre a mesa de centro e
ligou a TV em uma lista de filmes de terror. Passamos o dia desse jeito,
mesmo durante os sustos, eu ainda tinha a mente ocupada por Nicole;
contudo, a presença de Vivian foi extremamente bem-vinda.
Alguns dias mais tarde, eu já voltara à vida normal, ou o máximo
que podia. Minha criatividade na hora da criação de novos vestidos estava
escassa, o que me incomodava muitas vezes. Preparava café quente
adocicado para fazer as ideias voltarem; vez ou outra funcionava e quando
não, abaixava a cabeça sobre a mesa onde o papel em branco grudava na
testa.
Porém, uma coisa mudou de um dia para o outro. Mal sabia em que
parte da semana estávamos, a chuva estalava em trovões, fazendo-me saltar
da cadeira. O computador jazia esquecido com o aplicativo de desenho
ligado, eu o ignorava, sempre fui do tipo que preferia o jeito antigo, lápis e
papel. Permiti que apenas a luz do abajur sobre a mesa fizesse seu papel em
iluminar o quarto; os raios davam seu ar da graça muitas vezes, o que
acabava deixando o cômodo mais claro do que o normal.
E quando finalmente uma ideia de roupa surgiu, os traços iniciais já
estavam contornados, e o som do interfone desviou minha atenção.
Amaldiçoei em palavrões ecoando pelo apartamento e deixei o lápis na
mesa, indo até o telefone no corredor do quarto; havia mais de um
espalhado por aí.
Atendi o interfone e fui recebida com uma notícia incômoda. Pedi
que permitissem sua subida, joguei uma blusa por cima do top que usava e
caminhei para a sala à espera da convidada. Minutos depois, o elevador
abriu, revelando a presença de Cléo. Seu semblante possuía neutralidade,
sisuda.
— Como achou meu endereço? — questionei sem enrolação.
Cléo suspirou, cruzando os braços e dando de ombros a qualquer
contestação sobre sua presença.
— Só achei. Não precisa se preocupar com isso. Posso entrar?
Hesitei; claro que ela não podia entrar, mas algo em sua feição
insinuava uma tristeza sutil, à qual aceitei atender seu pedido. Saí da frente
do elevador, dando-lhe passagem. Três passos adentro, me posicionei mais
para frente e ofeguei, quieta, pois quem havia vindo até mim era ela. Cléo
tomou uma longa respiração antes de começar.
— Queria que me dissesse o que Nicole veio fazer no seu
apartamento.
Paralisei diante da acusação. Engoli seco, sentindo que deveria
tomar um copo d’água ou uma boa dose de vodka antes de prosseguir com
o assunto. Aquilo já não deveria ser problema meu; era Nicole a
comprometida, mas eu não era assim.
— Ela não veio.
Tentei, mas fui recebida com uma risada jocosa, o sorriso mal
chegando aos olhos; todo seu semblante era de decepção.
— Por favor, não insulte minha inteligência. — remexeu em sua
própria roupa como se o tecido estivesse lhe incomodando horrores, o que
não era; era a situação — Não me orgulho de seguir aquela noite, mas fiz
mesmo assim. Agora me diz o que aconteceu.
Exausta da cena, mas não o suficiente para ferrar ainda mais as
coisas na vida de Nicole, pensei em mentir abertamente. Queria, estava
planejando uma maneira de escapar da situação, mesmo que parecesse a
cuzona que queria estragar o relacionamento delas. Eu não sentia ânimo em
de fato acabar com alguma coisa. Afinal, Nicole havia feito sua escolha.
— Na verdade... — meu telefone vibrou sobre o rack da sala,
chamando a atenção de ambas. Revirei os olhos, impaciente com o maldito
nome de Nicole piscando na tela incessante e urgente.
Desliguei, procurando ignorar que qualquer coisa tenha acontecido,
temendo encarar os olhos acusatórios de Cléo. Iria falar alguma coisa para
poder desviar o foco, e novamente o nome de Nicole brilhando como uma
luz na escuridão. Desliguei o celular, tentando não soar apressada.
— O que ia dizer? — ela perguntou soltando uma longa respirada,
cansada.
— Hm — hesitei, mantendo o olhar fixo nela, sem desviar. — Na
verdade, ia dizer que é melhor vocês duas terem uma conversa. Eu não
tenho absolutamente nada a ver com isso, nem com a vida de vocês, e
gostaria de continuar assim. — Cléo não se abalou diante da resposta fuleira
- Nicole e eu somos... — ri com o pensamento atrasado — fomos melhores
amigas na adolescência, mas algumas coisas acabaram acontecendo e nos
afastamos. Ela se afastou, na realidade. Aí veio em casa pra me explicar
seus motivos, só isso.
Cléo fechou os olhos fortemente; a explicação era sincera, só omiti
alguns fatos que sucederam. Uma coisa dentro de mim agitou; meu coração
se apertou com a visão dela na minha frente. Percebi que não queria
machucá-la; ela nunca me causou problema algum. Infelizmente, toda
aquela situação nunca teve a ver com ela; era entre eu e Nicole. Sentia pena
de Cléo, e cogitei diversas vezes, enquanto conversávamos, que não deveria
ter ficado com Nicole enquanto estavam juntas. Fui egoísta e zero solidária
em como tudo isso poderia afetá-la.
— Você gosta dela?
A pergunta me pegou desprevenida; qualquer reação que usava para
esconder minhas emoções dos outros caía por terra. O questionamento foi
sincero, sem julgamentos. Ela só queria saber a verdade, porém, não era de
mim que deveria ir atrás.
— Não entendo porque isso seria relevante em dizer, sinceramente.
— Nunca foi relevante, mas se tornou. — ela alisou a roupa
amarrotada onde gotas de chuvas haviam molhado sua jaqueta branca. —
Sabe, Dakota, Nicole sempre foi terrível em esconder o que sentia.
— Nisso a gente concorda — afirmei, relembrando momentos em
que Nic era extremamente transparente lhe causando problemas inúmeras
vezes.
— E como ela é assim, fica sempre evidente quando tem algo errado
ou quando ela faz algo errado. — continuou ignorando minhas últimas
palavras — Já faz um tempo que a vejo diferente e isso não tem a ver com
você, acredite se quiser. Quando a pedi em casamento eu pensei... — sorriu
tristemente, mudando a direção do olhar — Enfim, só queria ouvir de você.
— Ouvir o que?
Alisou repetidamente suas roupas. Mesmo lidando com uma coisa
tão delicada, Cléo mantinha a coragem no brilho do olhar, a respeitei por
isso.
— O quanto ela também te magoou.
Silêncio.
— Eu não disse que ela me magoou. — argumentei, mas sem
acreditar, era difícil convencer qualquer um.
— Não sei o que rolou entre vocês, Dakota. Eu amo Nicole, mas tem
coisas no meu passado que me ensinaram a dizer adeus quando é preciso
dizer, e nesse contexto, é uma boa hora pra isso. — o discurso não era
ensaiado, apenas repetido, tristemente repetido — Se ela te magoou, é
porque tentou voltar pra mim, o que por si só eu deveria levar em
consideração. Mas como mencionei, ela já não era mais a mesma antes de
vocês se encontrarem, então...
A fala cessou, mesmo que sem um fim, no contexto, já estava
explícito. Cléo acenou com a cabeça, retornando ao elevador.
— Acho que não vai mais precisar criar um vestido de noiva pra
mim. — a piada não foi engraçada, mesmo que na expressão dolorida
houvesse humor — Não vou dizer que foi um prazer, mas tenha uma boa
vida, Dakota.
As portas se fecharam, e o elevador apitou, avisando que estava
descendo. Soltei a respiração quando finalmente percebi que havia parado
de oxigenar o corpo.
Não conhecia Cléo de verdade, e nunca iria, mas torcia para que ela
encontrasse alguém que a amasse tanto quanto o amor que ela tinha para
dar. Me senti terrivelmente mal por ela, todavia, era evidente a força que
carregava no coração.
Religuei o celular, mas não retornei as ligações de Nicole. Tinha
muito o que processar. Olhei no relógio e me adiantei em pedir desculpas
pelo horário, mas iria acordar Vivian.
NICOLE
— Mãe? — não sabia há quanto tempo queria ouvir a voz de dona
Mônica. Estava sem conversar com ela, sentia vergonha de enfrentar
possíveis julgamentos que poderia fazer caso soubesse de tudo o que eu
havia feito, mas já não tinha mais medo, só queria ouvir seus conselhos —
Preciso da sua ajuda.
Ela suspirou do outro lado do telefone; já imaginava que deveria
estar deixando a agulha do crochê de lado para poder ouvir a filha cabeça
dura. A essa hora da noite, ela já estava em seu momento especial de
crochê, coisa que nunca mudou em toda sua vida.
— Respira primeiro, já conversamos sobre isso. Não deixa sua
ansiedade falar mais alto. Respira.
Acatei imediatamente. Dona Mônica sempre foi uma mulher sábia,
porém rígida. Mantinha os conselhos brutais, constatando verdades que
normalmente não queríamos escutar. Sempre me disse que durante uma
crise de ansiedade ou qualquer crise que não me permitisse pensar com
clareza, eu devia parar e respirar, prestando atenção no ar entrando e saindo
dos pulmões, tendo a noção de que meu cérebro controlava isso, e não o
desespero desenfreado.
Após algum tempo respirando, minha mãe me acompanhava durante
o processo, a calmaria ia se instalando automaticamente.
— Estou melhor. — anunciei jogando a cabeça para trás no encosto
do sofá da sala, agarrada à almofada macia. — Fiz besteira, mãe.
— Ok, todo mundo comete erros, tô cansada de falar. — não estava
sendo sem paciência, apenas enfática.
— Sei disso, mas a besteira acabou machucando outra pessoa.
Silêncio. Dona Mônica sempre foi categórica com a
responsabilidade emocional de outros, e vivia me dizendo sobre ser adulta
com o que o próximo sentia, e estava falando com ela sobre ter sido relapsa
com as emoções de alguém. Minha mãe não era burra, entendia de quem se
tratava; achei que não precisava de nomes, por isso omiti sobre Cléo.
— Quando machucamos alguém, estamos machucando mais a nós
mesmos. — revirei os olhos, já reconhecendo a frase dita múltiplas vezes
— É cansativo ouvir; sua avó também era categórica em dizer a
mesmíssima coisa. Mas ela nunca mentiu, filha.
— Tá, mãe. Mas no que isso me ajuda? Eu tô perdida aqui, fiz uma
merda gigantesca e não sei o que fazer pra corrigir.
Outra profunda respiração. Dona Mônica devia estar remexendo os
fios de algodão.
— Quando entender que a pessoa que mais magoou foi você mesma,
vai saber como se desculpar com ela. — engoli seco, mesmo sem dar
nomes, minha mãe sabia de quem estávamos falando — Corrigir erros não é
consertá-los; não se trata de arrependimento, se trata de como vai reagir
daqui em diante sabendo que outra pessoa foi afetada, querida.
Refleti, parando de tirar as cutículas das unhas com os dentes. Ela
continuou, resgatando minha atenção.
— Não sei o que aprontou aí, Nicole, mas não pode continuar
mentindo para seu coração, entende?
Minha mãe sempre teve a mesma opinião em relação à minha vida
amorosa. Ela dizia que deixei muitas coisas para trás com medo do que
poderia causar aos outros e esquecia de mim. Quando encontrei Cléo, dona
Mônica deixou claro que gostava dela, porém, se preocupava com a
evolução de nosso relacionamento. Nunca compreendi aquela insegurança
que nem eu mesma enxergava, mas lá estava eu, perdida em sentimentos,
não confusa, mas com medo de seguir em frente. Minha mãe, sábia como só
ela, diferente das outras vezes, carregava nos conselhos ao telefone um tom
de voz ameno e confortante.
— Entendi, dona Mônica. — respondi após ela pigarrear, percebendo
que havia me perdido em devaneios — Desculpa por não ir aí com
frequência, aliás.
Ela riu do outro lado.
— Sei que tá colocando sua vida em ordem, filha. E isso acaba
levando tempo. Mas sempre estarei aqui. Não pensei que precisava dizer
isto.
Fingiu-se ofendida. Meu coração estava confortável após uma
conversa trivial depois dos conselhos que me deu. Minutos seguintes e
desligamos; deixei uma nota mental de visitar minha mãe no próximo final
de semana. Eu precisava.
O resto das horas passei entretida com minha própria imaginação,
realocando inúmeras conversas que deveria ter quando Cléo chegasse.
Encarei o número de chamadas perdidas que fiz a Dakota na noite anterior,
e de repente senti vergonha. Ela foi outra pessoa que magoei
profundamente. Escondi o rosto entre as mãos, exasperada. Eu era um
fracasso como ser humano às vezes. Minha falta de noção para com
sentimentos alheios era gritante e cruel.
Estava começando a me dar fome, sem vontade de cozinhar, pensei
em pedir comida quando ouvi os tilintares da chave do outro lado da porta
de entrada. Cléo adentrou segurando sua pasta marrom clássica e a
descansou ao lado da porta como de costume. Olhou por entre os cílios e
reagiu com um sorriso que mal chegava a abrir.
— Oi.
Saudei de volta, engolindo a saliva ruidosamente.
— Tá com fome? Ia pedir comida.
Ela negou em silêncio. O muro que separava o ambiente da sala com
a cozinha também nos separava, causando um silêncio lúgubre na casa,
deixando apenas o som das gotículas de chuva se chocando contra a
vidraça. Cléo encheu um copo com café gelado que eu havia esquecido de
esquentar, e o bebeu numa golada só. Normalmente, vemos alguém se
encher de álcool em uma situação difícil, mas Cléo não. Ela curtia beber
socialmente em festas de fim de semana e até extrapolava, mas nunca as
trazia para dentro de casa. Em sua família havia um caso sério de problemas
com álcool pelo pai e, portanto, já era esperado que Cléo se concentrasse
em outra coisa para tomar.
Pensar no sogro que não conheci, já que o mesmo morreu de cirrose
no início da adolescência de Cléo, me causou dor aguda na boca do
estômago. Era de meu conhecimento os anos de traição que a mãe de Cléo
sofreu após o pai falir e se enfiar no álcool.
— Podemos conversar agora? — hesitei quando ela me encarou —
Ou depois que tomar banho, você que sabe.
Cléo sorriu jocosa; a ironia não combinava com ela, mas
evidentemente não havia outra reação. Minha noiva deu a volta no balcão e
veio ao meu encontro, sentando-se no mesmo sofá que eu, a uma distância
segura. Seu distanciamento não me feria; apenas minha própria culpa.
Machucar alguém é machucar a si mesma ainda mais.
— Desculpa, é tudo muito difícil agora que estamos cara a cara.
Era complicado mesmo porque o fato se tornava mais complexo, já
que ambas tínhamos conhecimento do assunto em questão.
— Só fala, não se preocupe em pensar muito. — aconselhou Cléo.
— A gente sabe que as coisas não estão boas, não sabemos, Cléo? —
ela assentiu juntando as mãos em uma prece entre as pernas abertas, ombros
tensionados, visível a distância — Queria começar por Dakota, quem ela
realmente foi e o que é pra mim, mas me dei conta que tudo isso não
começou por ela. — refleti desviando meus pensamentos brevemente —
Quando me pediu em casamento fiquei tão confusa, me dei conta que não
queria isso, que estava cedo demais, mesmo depois de anos de relação. Eu
devia ter sido sincera desde aquele dia, mas só consegui pensar que devia
seguir em frente e deixar os fantasmas pra trás. Não consegui.
Cléo ergueu o dedo indicador pedindo para que eu parasse por um
momento, e o fiz. Recolhi minhas mãos no colo desejando ter uma
almofada para poder abraçar.
— Precisa saber que nunca conheci alguém tão transparente como
você, Nicole. — abaixou o dedo — É lógico que vi logo que você hesitou
no pedido e aceitou a contragosto. Eu sou teimosa, imaginei que você com
o tempo perceberia que fez a escolha certa. — balançou a cabeça com
algum pensamento interno — Fui ingênua, fazer o que. Estou pagando por
isso.
— Não fale assim. Não tem ingenuidade em acreditar que tudo pode
melhorar.
— Mesmo assim, eu devia ter reconhecido os sinais, aqueles sinais
quando é preciso parar e se afastar para deixar a outra pessoa saber o que
realmente quer e dali em diante decidir o que fazer. Eu só deixei tudo nas
suas mãos e permiti esse final.
Ela sorria, um gesto curto que mal chegava aos olhos embargados.
— Por favor, Cléo, não se culpe de nada disso.
— Acredite, não estou. — seu contraponto era firme e crível. Vi um
leve ar raivoso em seu tom de voz, não reagi. — Tem coisas que a gente
precisa saber quando parar, e eu devia ter parado isso no dia que te pedi em
noivado.
Pausou, pensativa, fitando meus olhos avelã.
— Acho que já estamos decididas então.
Vocalizei em um murmúrio que só ela poderia ouvir. Abaixei a
cabeça, envergonhada. Cléo se levantou e foi para o quarto sem mais nada a
falar.
Deve ter passado uma hora e meia, no máximo, quando Cléo abriu a
porta do quarto trazendo duas malas de rodinha rosa bebê com ela. Eu
estava de pé, encostada na mureta da cozinha, braços cruzados e os olhos
repletos de lágrimas.
Cléo parou, permitindo que as malas ficassem entre nós, fazendo
questão de deixar qualquer objeto possível no meio de nossos corpos.
— Não tenho raiva de você, Nicole. No tempo que passamos juntas,
sei que foi real, tanto pra mim quanto pra você. Mas se eu puder te pedir
algo pra pensar no futuro... — hesitou, piscando diversas vezes também
segurando um possível choro no fundo da garganta — Seja sincera o
máximo possível com as pessoas, elas merecem saber a verdade do que
você sente, ou vai acabar ficando sozinha no final.
Ela foi embora depois. Passei alguns dias na casa da minha mãe após
o término do noivado. Dona Mônica mostrou solidariedade em diversos
momentos, retornando a trazer meu café da manhã na cama quando
acordava após uma noite de pesadelos contínuos, ou me ajudando ao
crochê, a qual eu era uma negação. Era bom estar de volta, mas sentia falta
de coisas, coisas que não possuía mais há muitos anos e só recentemente
voltei a pensar.
Nas últimas noites retornei a procurar por filmes ruins de terror e
assistir antes de ser levada para uma golfada longa de sonolência. Não tinha
verdadeira graça como era com Dakota, quando ela não parava de falar
entre uma gracinha e outra, me fazendo ignorar as risadas internas que
dava, com a desculpa de que queria prestar atenção no filme péssimo na
televisão. Teve até mesmo uma noite que me peguei reassistindo "A lenda
do cavaleiro sem cabeça", o filme que mostrei a Dakota.
Em muitos momentos, durante um trabalho de ilustração ou outro,
minha mente vagava por momentos da nossa adolescência, coisa que não
fazia há anos. Gostava de relembrar nossas bobagens de atrizes mal pagas
nas lojas de grifes para podermos sermos melhores atendidas. Nas vezes
que íamos aos provadores e notava olhares com segundas intenções ao
corpo em desenvolvimento de minha melhor amiga.
Falando em ilustrações, Cléo e eu voltamos a nos falar apenas o
básico do trabalho. Ela havia me dito que não queria cortar laços
profissionais, já que tínhamos alguns acordos de capas a serem feitos para
semanas; contudo, quando os mesmos cessassem, ela desejava dar um
tempo de me passar os clientes. Aceitei, tudo o que queria era lhe dar
espaço. Fora isso, eu não sabia muito da vida dela. Cléo deixou suas redes
sociais privadas, coisa que nunca fazia, e logicamente, deixamos de nos
seguir. No começo, recebi mensagens de amigas de Cléo perguntando como
eu estava, porém, logo pararam e eu as ignorei igual. Foi quando me dei
conta de que todas as minhas amizades vinham de Cléo. Não permiti que
isso me abalasse, ser repleta de amigos nunca foi prioridade e muito menos
motivo de alegrias incessantes e únicas. Minha própria presença era
agradável, e minha solitude vantajosa em diversas questões.
Mas era a falta de Dakota que mais me dava um vazio por dentro. A
ausência de sua amizade ainda me causava dores angustiantes. E só as
relembrei quando a encontrei na balada, tendo a mesma camaradagem de
antes e um prelúdio do que poderíamos ter sido se não houvesse criado o
distanciamento artificial que eu mesma criei. Este era meu maior
arrependimento.
Obviamente, após nosso reencontro, a amizade quase não deu as
caras, já que estávamos concentradas nos sentimentos nunca dialogados
entre nós. Mesmo assim, a parceria estava sempre lá, me dando tchau e
batendo na minha cara gritando que a culpa era minha.
Minha mesa digitalizadora estava ligada, e o notebook de última
geração também. A tela em branco era meu carcereiro, que ria da minha
falta de imaginação. Deixei a caneta da mesa de lado e joguei os cabelos
curtos para trás, aborrecida. Bloqueio criativo me tirava do sério, a
paciência não era muita e se tornava minúscula quando o acontecimento
surgia efeito nos meus trabalhos.
A capa em questão deveria ser a de uma espada cuja ponta deveria
ser transparente, com uma fumaça esbranquiçada dando sinal de ser
possuída por uma entidade poderosa. Isso era a teoria, todavia, minhas
habilidades desapareciam quando o cliente insistiu que eu criasse outras
coisas para complementar a espada, obstinado em repetir que confiava em
minha imaginação e talento, mal sabia ele que eu mesma não confiava no
momento.
Minha mãe adentrou ao quarto depois de dar algumas batidas na
porta. A olhei, entre as mechas densas dos cabelos, se aproximando
segurando um objeto entre as mãos, com cuidado como se o mesmo fosse
um filhote de cachorro ferido. Dona Mônica colocou em cima da minha
escrivaninha outro de seus bichinhos feitos de crochê, esse era do tamanho
de sua palma, uma vela gordinha com olhos grandes e pretos, sorriso gentil
e pequeno, e a chama sob sua cabeça, tecnicamente, de cera.
— Pra que isso, mãe?
Ela sorriu calorosa, orgulhosa de mais um trabalho.
— É pra você, lógico.
— Não estou triste, a senhora não precisa fazer isso.
Insisti encarando o bichinho de longe; era fofo, com toda certeza,
ainda mais os olhinhos de gato pidão. Minha mãe passou a mão na minha
cabeça e continuou com o mesmo sorriso.
— Não disse que estava, mas é sempre bom uma luz pra iluminar as
ideias.
Dito isso, ela se afastou, mantendo a porta fechada atrás de si.
Encarei a vela de lã, bem feita com nós em perfeito alinhamento e sua cor
chapada em branco, preto para o rosto, e amarelo opaco na chama. Peguei o
objeto, apertando delicadamente, sentindo a textura macia e gorducha.
Fiquei ali, sonhando com diversas coisas sem entender nenhuma delas.
Me assustei quando a notificação chegou no meu aparelho telefônico
ainda com a tela quebrada. Primeiro, a mensagem de promoção do banco e,
em baixo, uma antiga que não havia visto chegar dias atrás. Trabalho para a
ilustração de um evento de moda na cidade. Abri a mensagem e li seu
conteúdo. O diretor do Hotel Belle clamava por meus talentos durante um
acontecimento que ocorreria em seu hotel na semana seguinte. Queria que
eu fizesse uma exposição de vestidos de noivas vintage para ser postado em
uma ala de fotos e ilustrações antigas do hotel, reservado para acontecer
antes do desfile dos vestidos em si. Abri o link que o dono havia me
mandado e chequei as informações e detalhes do acontecimento em
questão. Nada ali me chamava atenção, e estava para negar o trabalho
quando algo me fez parar para analisar melhor.
A lista de convidados mostrava diversos nomes de estilistas da nova
era que estariam presentes durante o desfile vintage. Dakota Ferrero estava
na lista. Encarei o objeto de lã que minha mãe fizera e respirei fundo, como
ela sempre aconselhava. Foi quando finalmente a ideia surgiu. Aquela vela,
de fato, iluminara os pensamentos.
DAKOTA
**“Eternamente Vintage: Um tributo aos vestidos de noivas de
outras épocas.”**
Em um local deslumbrante que respirava romance, o Hotel Belle
transformava-se em um refúgio de elegância e nostalgia para o evento
“Eternamente Vintage”. Este tributo aos vestidos de noiva de décadas
passadas prometia uma experiência única para aqueles que buscavam o
encanto intemporal na jornada para o altar.

Isto era o que estava escrito no verso do convite que recebi há duas
semanas atrás. Achei deveras interessante e fiquei ainda mais satisfeita
quando no canhoto avisava que poderia levar um acompanhante. Encarei a
escrita engarrafada mais uma vez enquanto esperava Vivian estacionar o
carro atrás do edifício de dez andares no centro. Minha amiga não escondeu
a felicidade ao ser chamada, assim era um motivo a mais para usar uma de
suas roupas de grife que ela ganhara da ex-namorada. Vivian sempre
reclamava que nunca podia estar elegante, já que suas roupas despojadas
não combinavam com tal ocasião.
—Eu devia ter me arrumado mais. — anunciou Vivi atrás de mim,
arrumando o tecido da saia sereia que lhe dava uma silhueta esguia e fina. O
corpete justo apresentava um decote em V profundo. Tudo em tons marrom
brilhante e preto. Divina.
—Jura? Pra mim, você será mais cobiçada que os vestidos. — sorri
brincalhona, mas havia verdade em minha voz. Nunca vi Vivian tão bonita
quanto hoje; a maquiagem nude realçava o rosto quadrado perfeitamente
simétrico. — Para de besteira, tá ótima. Queria um lugar pra usar essa
roupa? Conseguiu, agora aproveita.
—É, eu sei que eu queria, Dakota, não precisa jogar na minha cara.
Mas sei lá, não é bem o que eu imaginava. Me deixa desconfortável.
Dei risada assistindo a se manter de pé no salto agulha.
—Imagina as mulheres de outras épocas com espartilhos, ou saiotes
cheios pra caramba. Devia ser ainda pior. Você está no paraíso comparada a
elas.
Vivian deu de ombros, segurando em meu ombro e arrumando a tira
do salto, já que a ponta da fivela machucava sua pele. Assim que terminou,
ela me fitou de cima a baixo com um ar de admiração.
—Se acha que eu estou bonita, é porque não se viu no espelho,
cretina.
Meu vestido vermelho abraçava minhas curvas de maneira sutil. O
decote sem alça realçava meus ombros delicadamente, enquanto a saia caía
longa e reta até o chão, criando uma estética minimalista e moderna.
—Como se eu não tivesse olhado.
Rimos em uníssono enquanto ela me deu um soco de brincadeira no
ombro. Um casal passou rente a nós, encarando-nos com espanto e desgosto
por nossa atitude infantil. Ignoramos os olhares de desprezo e seguimos
porta adentro do evento assim que um segurança nos saudou com um
manejar de cabeça.
Aquele evento seria bom para me manter distraída dos pensamentos
incertos que se perpetuavam dentro de mim, todos envolvendo Nicole. O
que, aliás, Vivian me proibiu de tocar no nome por tempo indeterminado.
Ao entrarmos no Hotel Belle, escolhido para o evento, fiquei
boquiaberta por seu estilo, assim como Vivian. O espaço era encantador, um
salão de espelhos históricos refletindo a luz de lustres delicados de vidro, o
chão com piso de mármore polido revelava o reflexo de tais lustres. Mesas
redondas cobertas por toalhas de renda branca estavam estrategicamente
dispostas pelo salão, cada uma adornada com arranjos de flores vintage em
vasos de cristal. Cadeiras douradas e estofadas forneciam assentos
confortáveis, enquanto outros arranjos discretos de luzes destacavam as
mesas de exibição.
Mais à frente, uma passarela elegante forrada com pétalas de rosa e
uma sutil iluminação ambiental atravessava o salão, proporcionando um
cenário perfeito para um desfile de moda intimista.
Certamente, era um hotel belíssimo e fácil de se sentir deslocado.
Encarei minha convidada, assistindo seu sorriso de ansiedade, e me aliviei
por saber que ela não seria uma dessas pessoas.
Alguns estilistas que eu conhecia vinham ao nosso encontro para
conversas aleatórias das quais eu pouco tinha interesse, algumas cantadas
ruins de riquinhos metidos para cima de minha amiga, enquanto a mim,
olhares distantes de uma mulher ou outra cuja eu tinha informação de suas
sexualidades. Uma ou outra já havia existido química física entre nós.
Porém, nesse evento, apenas queria saber de me distanciar dos pensamentos
irritantes da semana passada.
Alcancei da bandeja de um garçom que passava uma taça de
champanhe branco. Beberiquei seu interior com avidez; o peito doía de
memórias insistentes, e temia que fosse estragar o lápis contornando os
olhos por causa de lágrimas idiotas. De repente, senti as mãos de Vivian
segurarem meu braço com força, quase causando um acidente com a bebida
no chão.

—Ai, Vi. Que foi?


Sem resposta, um homem de smoking preto tradicional se aproximou
de nós com um sorriso branquíssimo e barba precocemente grisalha. Nos
saudou como um cavalheiro antigo e ergueu a mão para a passagem entre os
convidados. Não entendi sua intenção, mas fiquei calada, olhando Vivian
tão confusa quanto eu.
—Boa noite, senhoritas, Dakota Ferraro e sua acompanhante Vivian
Salvador. Me chamo André e gostaria de guiá-las para uma ala específica
do evento à qual fui instruído em levá-las. Poderiam me acompanhar?
Relutei de início; Vivian cutucou minha cintura, incentivando-me a
ir com ele. Lembrei-me que no convite avisava sobre o guia do hotel.
Beberiquei o último gole do champanhe, desejando que fosse vodka pura, e
seguimos o tal André pelo salão.
Enquanto caminhávamos pelo corredor, atravessando o passadiço
onde ocorreria o desfile em poucos minutos, André, o guia, explicava.
—Senhoritas, esta aqui é uma ala de exibição de fotos antigas e
ilustrações da época em que os vestidos de noivas foram usados por
celebridades importantes e outros em destaque nos anos de glória. A
entrada sutilmente destacada por um arco decorado com trepadeiras de
glicínias brancas e uma cortina de pérolas delicadas. Uma placa discreta,
iluminada por uma luz suave, anunciava a chegada ao espaço exclusivo.
Ao passarmos por entre as cortinas, somos recebidos por um
ambiente sereno. A iluminação suave proveniente de lustres pequenos
adornados com flores secas cria uma atmosfera íntima e romântica. Paredes
em papel creme proporcionam uma tela neutra, destacando as histórias
pessoais e ilustrações, como André havia mencionado que seria o local. Eu
acharia tudo muito bonito, mas não me sentia especialmente inspirada para
tais observações.
Procurei por Vivian; todo aquele mistério me incomodava, deixando-
me levemente desconfiada. O rosto de minha amiga denotava tantos pontos
de interrogação quanto seria. Ficando sem paciência, André se organizou
para sair da minha frente, mostrando que a parede principal fora decorada
por uma fotografia holográfica sendo reproduzida pelo projetor acima da
mesa forrada com uma toalha branca. Na imagem, o sentimento foi
despertado instantaneamente.
Duas meninas adolescentes de cabelos compridos sem
personalidade, roupas casuais largas, mochilas jogadas pelo gramado
extenso onde um lago tranquilo se aninhava alheio às personagens durante
um anoitecer livre de nuvens, borrifado por estrelas brilhantes e distantes,
observadores da cena abaixo. As meninas estavam de frente uma para a
outra, pernas cruzadas e uma garrafa de vodka entre elas jazia cheia. Virei a
cabeça, reconhecendo imediatamente. Formulando uma cena completa com
começo, meio e fim.
Engoli o pranto preso à garganta, queixo caído e olhos arregalados.
Abraçei meus braços como se estivesse com frio.
—Que? — foi o que consegui dizer.
—Nessa ilustração, senhorita Dakota, o passado se reencontra com o
presente. Abaixo, o nome da autora da obra; pode estar dando uma olhada,
se quiser. — disse o guia, André, com o sorriso suave no rosto desbotado.
O nome dela foi desenhado por uma linha fina e elegante. “O
Passado Reencontrando o Presente”. Autora: Nicole Capelo. Ouvi um
clique distante e constatei André apertando um dos botões do projetor para
que outra imagem mudasse na parede, dando espaço para o mesmo lago
ilustrado, o anoitecer idêntico, porém, as meninas não estão mais lá; em seu
lugar, um pano esticado foi colocado no chão com um vestido de noiva
volumoso, a saia colocada estranhamente de pé, infringindo as leis da física,
e sobre o tecido, arrastando no chão, uma garrafa de vodka de morango. O
vestido também é rapidamente assemelhado, o mesmo que Nicole
experimentou no provador no dia que nos reencontramos na boutique. As
lembranças vinham como um meteoro. Momentos nossos da infância e
adolescência. Brincando e nos provocando até que a idade adulta trouxesse
consigo responsabilidades e sentimentos expostos após doze anos afastadas.
—O que significa tudo isso? — não perguntei destinado a alguém,
mas a voz de minha amiga surgiu durante minha voz embargada.
—Devia se encontrar com ela, Dakota.
—Como... Espera... Não estou entendendo o que tá rolando aqui. —
gaguejei, desprendendo a visão das ilustrações. — Você disse pra me afastar
dela.
—Sei muito bem o que eu disse, mas sinceramente — apontou,
surpresa para a imagem — depois disso tudo, acho que vale a pena saber o
que ela quer. Apesar que tá bem na cara, se for ver. Você não precisa ir, é
lógico, sabe melhor do que ninguém o quanto já foi machucada, mas se não
for agora, vai passar a vida se arrependendo pensando o que poderia ter
acontecido se tivesse ido. — pausou, analisando minhas emoções que
fortemente eram expressivas no rosto — Se for pra terminar algo, que seja
de uma vez. Deixar migalhas pelo caminho vai continuar fazendo o passado
te encontrar e nunca seguir em frente.
—Onde ouviu isso? É muito brega.
Constatei, limpando a lágrima, escapando do olho esquerdo.
—Com certeza é brega, só que não disse nada que não fosse verdade.
- ela segurou minha mão.
— Pode ter razão. Mas não me sinto bem agora. Acho melhor ir pra
casa. Pode ficar aí se quiser.
Vivian compreendia meus motivos, cansei de falar toda a história
para ela, e mesmo com seu ponto de vista realista sobre o quão tóxica
Nicole foi, no final, o romantismo de Vivian sempre ganhava.
Minha amiga disse que iria comigo, afinal, não havia nada para ela
lá. Agradeci ao guia do evento e pedi que se desculpasse com o dono do
Hotel Belle com o motivo de que eu estava passando mal, o que não era
exatamente uma mentira. Voltamos de carro e já perto de casa, decidi de
última hora que precisava me despedir do passado. Vivian estava certa no
final, mas eu não precisava ver Nicole para abandoná-lo. Portanto, pedi a
ela que me levasse a outro lugar. Vivian não contestou minha decisão, e as
rodas do carro deram a volta pelo quarteirão em direção ao centro olímpico.
Cerca de dez minutos depois, havíamos chegado. Pedi que Vivian
fosse embora; no entanto, ela não me deu ouvidos e entrou comigo. Insistiu,
dizendo que era estúpido entrar sozinha naquele lugar. A portinhola estava
fechada, como imaginei; mesmo assim, atravessamos o buraco que nunca
foi fechado na cerca ao lado do campo. A saudade pinicava no peito.
Passamos pelo campo de futebol desativado; tudo mantinha-se em seu
lugar, entretanto, o centro olímpico foi preservado em um estado mais
próximo ao natural, deixando de lado tanto a área de esportes quanto as
máquinas de exercícios que os idosos usavam no início da manhã.
Encontrado o lago, nos arrumamos sem jeito pelos vestidos
apertados, à beira do lago. Sentadas de pernas cruzadas, admirando a lua
crescente no alto, revestida em nuvens pinceladas como numa tela em
aquarela, consumidas por tons índigo, onde criava a transição de cores
escuras e cintilantes devido às bolas de fogos distantes espalhadas no
universo.
A água do lado tranquilo aninhava a sola dos pés; abandonei os
saltos de canto. Era bom pisar na grama e respirar o ar puro com odor de
mato molhado, sem a fumaça corriqueira poluente da cidade. Segurava as
mãos sobre meu colo, admirando a beleza do lago do centro olímpico e me
perguntando o motivo de nunca mais ter retornado a esse lugar esquecido
pelo tempo, mas intacto dos humanos em geral.
O som ofegante da respiração distante, passos pesados cortando
galhos e folhas secas no chão. Por cima do ombro, avistei a silhueta de uma
pessoa; era Nicole correndo feito louca na minha direção.
NICOLE
Nunca fui crente em destino, universo ou religião, assim como meus
pais nunca me incentivaram a desbravar esse assunto. Sempre foi um
mundo distante de mim, um ao qual só ouvia falar e que nunca me fez falta.
Eu não, mas era um dos assuntos que Dakota mais falava sobre na nossa
adolescência. Adorava repetir o fato de como o universo nos dava pistas de
qual caminho seguir para nosso destino finalmente concretizar. Era bom
ouvi-la falar sobre, mesmo que eu apenas sorrisse brincalhona sem entender
uma palavra do que sua mente sonhadora e imaginativa criava. Não que sua
família tivesse algo a ver com suas crenças; Dakota as teve sozinha. Através
de suas experiências pessoais com o sobrenatural, com energias e natureza e
por aí em diante.
Mesmo que meus pensamentos nunca houvessem sido voltados ao
tema, desde que o convite do Hotel Belle sobre os vestidos de noiva surgiu
para mim, com o nome de Dakota na lista de convidados, não pude ignorar
que algo estava a meu favor. Ao nosso. Logicamente, ela poderia me
ignorar e nunca mais falar comigo, porém, eu devia tentar. Afinal, ali estava
um sinal e tanto. Fiz minha parte do trabalho que a mensagem exigia.
Estava tão animada que terminei o que precisava em poucos dias; ainda
tinha uns quatro dias para fazer o que tinha em mente.
Na tela do computador, as imagens se formaram rapidamente.
Traços, cores, formas, conceito e principalmente ideia central. Orgulhosa do
meu trabalho, só precisava de uma forma de apresentá-lo dentro do evento.
Tive alguns minutos de prosa para conversar com o dono do evento, o qual
me deu liberdade para participar do evento se assim eu quisesse. Neguei de
prontidão. A conversa continuou até o momento de falarmos sobre o que eu
ganharia com as ilustrações. Meu preço? Diminui em cinquenta por cento;
ele adorou e não se importou com outra condição minha relacionada ao
preço final do meu trabalho. Ficou combinado que eu teria duas obras
minhas na ala de fotos e ilustrações do evento, e foi assim que obtive
passagem para deixar minha mensagem para Dakota.
Era a noite do evento e estava nervosa. Não conseguia ficar em casa.
Repensei diversas vezes se deveria ter ido ao evento e esperado a resposta
dela, mas minha covardia acabava falando mais alto e me detive a ficar em
casa. Foi quando meu celular vibrou no bolso da calça jeans. Uma
mensagem na rede social havia despertado meu interesse. O nick
@angelVi_vi era desconhecido, mas a foto de perfil logo retomou minhas
lembranças. Era a amiga de Dakota, a que conheci na boate eletrônica.
Vivian. A foto do perfil estava com seu rosto bem perto, tornando-se
impossível não identificar os traços. Abri a mensagem e me surpreendi com
o conteúdo.
Aqui está a revisão do trecho, seguindo as regras mencionadas:
“E aí? Não vou enrolar, não sou muito sua fã por saber algumas
merdas que já fez pra Dakota. Só que essa situação já foi longe demais. A
gente viu o que fez pra ela no evento, mas não sei o que isso vai mudar. De
qualquer forma, a gente tá no centro olímpico. Vem resolver isso de uma
vez. E presta atenção, se for querer ficar, para de fazer besteira.”
Não tive tempo de ficar atônita absorvendo o conteúdo da
mensagem; peguei minha jaqueta, esperando a brisa gelada do lado de fora
e me apressei em pegar o carro. Mesmo que o centro olímpico não fosse
longe da casa da minha mãe, eu só queria chegar o mais rápido que a física
me permitisse. Corria feito louca por dentro do centro olímpico, mal
reparando nas diferenças do ambiente. Era visível como o mato havia
tomado conta e o cheiro de ar puro era mais agradável. Tornava-se difícil
ignorar as lembranças. Pela luz da lua, avistei a silhueta de duas pessoas
sentadas de costas na beira do lago. Minha corrida chamou atenção de
ambas, que me olharam surpresas por cima dos ombros. Apenas Vivian
ficou de pé. Me surpreendi em como estava elegante. Sem jeito, ergui a mão
acenando hesitante e recuperando o fôlego.
—Oi.
—Mandou mensagem pra ela, né, sua idiota?
Perguntou Dakota constrangida, ignorando-me. Vivian apertou os
lábios numa linha fina e sacudiu os ombros concordando sem vergonha
alguma.
—Seguinte, se resolvam. To indo pro carro, se nada der certo, levo a
cretina comigo.
Não entendi de quem se tratava, por isso fiquei quieta, assistindo
Vivian se afastar de nós tentando se manter de pé nos saltos. Os grilos
distantes e o som suave do lago eram a única coisa que nos tirava da
mesmice silenciosa. Mesmo que o vestido fosse aparentemente
desconfortável naquela posição sentada, Dakota se mostrava à vontade.
Qualidade essa que sempre admirei. Na pior das situações, sua
tranquilidade falava mais alto, dando a entender que nada era tão difícil
assim. Como de costume, me distraí, encarando-a, refletindo nos detalhes
azulados que a luz do luar causava na pele bronzeada de Dakota, como as
cores do ambiente combinavam perfeitamente com todos os seus detalhes.
—Vai ficar sem falar nada? Senta pelo menos.
A voz de Dakota colidiu com os pensamentos, me tirando do transe
de sua beleza. Mordi a bochecha por dentro, me forçando a seguir seu
conselho. Sentei-me ao seu lado, no mesmo lugar que Vivian estava antes.
O lago à nossa frente, suave em sutis ondulações quando uma folha ou
outra tocava a margem, ou quando peixinhos moradores daquelas águas
surgiam abocanhando insetos minúsculos. Me perguntava os motivos que
me levaram a nunca mais vir aqui.
— Parece ainda mais bonito que antes. — falei sem pensar.
Ela pigarreou.
— Está mais triste que antes, parece abandonado, esquecido pelo
tempo e pelo homem.
— Discordo.
Dakota ainda não havia devolvido meu olhar, por isso a segui fitando
o horizonte diante de nós. Como ao longe era possível enxergar as luzes
tremeluzentes da cidade, ou a silhueta das copas de árvores e arbustos
contra as tais luzes. O farfalhar das folhas sob nossas cabeças.
— É mesmo? Por que discorda?
Dei um longo suspiro, o odor de mato molhado bem-vindo.
— Se não teve interferência do homem por tanto tempo, ele nunca
estará esquecido ou abandonado. Pelo contrário, está renovado, foi
retomado pela natureza de novo. Tudo o que tem aqui é simples e natural,
então, perfeito. Do jeito que a natureza queria que fosse.
— Desde quando se tornou tão filosófica? — questionou abaixando
a cabeça falhando em esconder o sorriso nos lábios carnudos.
— Se surpreenderia quando estou inspirada.
A olhei de soslaio buscando captar emoções, mas ainda nada. Dakota
conseguia manter a feição neutra de sempre. Sempre distante de mim,
nunca permitindo que alguém visse por de trás da máscara sólida.
— Por que não me deixa ver? — perguntei novamente sem pensar.
Estava totalmente aberta para ela.
Finalmente, Dakota me olhou, lágrimas presas, prontas para
derramarem em um pranto sofrido e dolorido, mas nada além disso que
denunciasse suas emoções.
— Ver o que, Nic?
— O que você sente. Deixar mostrar na sua expressão. Por que
sempre esconde?
Silêncio. Conseguia ver a batalha interna em suas pupilas. Dakota
trincou o maxilar.
— Não é como se eu tentasse não mostrar, só não mostro. Já devia
ter percebido isso. Achei que me conhecia.
Quebrei o contato visual. A atenção fingida nas águas escuras.
— É porque te conheço que sei que você esconde. Deliberadamente
você esconde. — pausei, mas ela deu de ombros, preferindo brincar com
uma folha que a desprendeu do chão - Conheço sua história, Dakota. Quer
dizer, antes de tudo mudar. Crescemos juntas, sei o que tem no seu passado,
seus traumas e todo o resto. Acha mesmo que não te conheço?
— Se sabia de tudo isso, por que preferiu me abandonar pra trás?
Sem nem ao menos me dar a chance de conversar? E por que fez isso de
novo anos depois? Me deixando sem resposta, só indo de vez, numa
despedida de única noite. Qual o seu problema, Nicole?
Finalmente obtive a atenção desejada. As lágrimas despontaram dos
olhos dela. O queixo tremia devido ao choro inevitável. Mágoa estampada
em linhas de expressão. Como a boca se movia enquanto falava, como a
sobrancelha gesticulava em acompanhamento aos olhos repletos de dor
antiga renovada por mim. Não queria permitir chorar com ela; novamente
me via numa situação em que chorar seria audácia.
— Sinceramente? Medo, medo de mim mesma, talvez. Na verdade,
planejei o que falar quando chegasse, mas esqueci tudo, porque quando tô
perto, não existe nada certo, exceto a vontade de estar com você. Não vejo
futuro com você, nunca vi, Dakota, só o presente. Estar do seu lado já é
viver pra mim. — hesitei limpando uma maldita lágrima — Não consigo
simplesmente planejar o que fazer quando se trata de você, tudo o que te
envolve é misterioso e assustador, mas excitante e tranquilo. É fácil estar
com você, não me esforço, não tento demais. Eu sou só eu, por que você
gosta do meu verdadeiro eu. E ninguém mais conhece, e é isso o que me
assusta. Você verdadeiramente me conhece.
Dakota não reagiu; o brilho dos teus olhos ainda não estavam lá. Isso
me cortava por dentro. A luz habitual que sempre manteve ardente nas íris
castanhas estava opaca. Apagada demais pelos sentimentos ruins que havia
lhe causado.
— O que quer que eu faça com essas informações, Nicole? — eu não
sabia responder; ela estava certa. O que eu queria que ela fizesse? — Como
ter certeza que amanhã você simplesmente não vai sumir? Por que não
mereço isso, sério, não mereço.
Abaixei a cabeça concentrando-me em impedir o choro. Mordi a
bochecha por dentro novamente, e o gosto de ferro invadiu a boca, me
ajudando a manter minhas emoções estáveis.
— Eu sei. E não existe resposta certa, Dakota, nunca vai existir. Fiz
besteira e queria consertar, mas não depende só do que eu queira. Sei que
uma relação não se constrói só com amor, então, eu quero construir tudo de
novo, do zero.
Dakota piscou como se tivesse algo incomodando os olhos. Seu
corpo virou totalmente para mim e mais lágrimas despontaram no rosto
dela.
— Amor?
Coloquei a mão na boca, assustada por minhas palavras anteriores.
Nunca havia pensado nisso antes, ou estava tentando esconder de mim
mesma. Entretanto, surgiu tão normal que mal tive tempo de assimilar.
Retirei a mão da boca lentamente, absorvendo o sentimento que se
apoderava do meu peito.
— S-sim. — gaguejei. Havia dito aquelas palavras para Cléo antes, e
para outras, todavia, nunca saíram tão verdadeiras como para ela — Sim,
Dakota. Eu te amo. Devia ter falado antes, mas eu era tão covarde...
A frase fugiu dos pensamentos no instante em que Dakota agarrou
minha nuca, puxando-me para sua boca, prendendo-me em um beijo forte e
suave ao mesmo tempo. Não sei como isso, mas foi exatamente como
descrevi. A beijei de volta na mesma intensidade. Abraçando-a contra mim,
tendo-a perto, sentindo o calor confortável que o corpo dela produzia, e
como o meu respondia. Meu coração acelerado, palpitando no mesmo ritmo
que o dela, já que estávamos grudadas.
O beijo cessou, meus olhos fechados maravilhados com o sabor
diferente que aquela ação provocava. Diferente de todas as outras.
— Nic, você é muito idiota, mas eu também te amo, droga.
Sorrimos juntas, colando a testa uma na outra. Dessa vez, deixei que
as gotas pesadas caíssem dos olhos, rolando por minha bochecha; em
contrapartida, sentia o carinho da mão de Dakota nos meus cabelos,
colocando uma mecha atrás da minha orelha, olhando-me delicadamente
com um leve brilho nos olhos que despontavam vagamente. Eu sabia que
tudo aquilo não era exatamente um "deu tudo certo, agora nossa vida vai
andar juntas", não. Porém, era um início. Um início de que as coisas
podiam começar de verdade.
O leve brilho nos olhos de Dakota que retornavam a cada beijo era o
lembrete de que eu precisava ser melhor a cada dia para combinar com a
mulher que estava em meus braços.
EPÍLOGO
Dakota ofegava pela correria na quadra de futebol dentro da escola
velha. Colocou as mãos no joelho, procurando a energia que havia
desprendido do corpo esbelto há alguns minutos atrás. Ela se endireitou
quando sentiu um tapa oco na bunda; não precisou olhar para trás para ver
de quem se tratava.
— Que vergonha, tá precisando entrar em forma, cretina. — ria
Vivian, tão suada quanto a amiga.
— Tranquilo, te venço em outros esportes.
Vivian riu alto, ecoando por toda a quadra, tirando algumas
jogadoras da atenção que davam ao jogo. Elas chamaram as meninas, mas
Dakota ergueu o braço em negação, mostrando o cansaço aparente. Vivian a
seguiu. As duas sentaram na escadaria ao lado, onde somente uma rede
verde mantinha a cara das jovens longe de possíveis boladas.
— Mas fala aí, como estão as coisas?
Dakota passou a toalha, que trouxe, no rosto, verificando que os
cabelos não tivessem se soltado no rabo de cavalo puxado demais, quase
arrancando as raízes da frente. Afrouxou o aperto.
— Ela tá vindo aqui me buscar. — anunciou rindo em seguida,
vendo sua amiga revirar os olhos — Pode parar, você até que tá gostando
dela agora.
Vivan ergueu a sobrancelha, ignorando as madeixas encaracoladas
que escapavam da presilha no topo da cabeça.
— Não sei do que está falando. Só porque ela fez questão de te levar
na marra pra uma apresentação minha no teatro? Talvez, a qual é, ninguém
é tão cabeça dura assim. — a alta bateu na cabeça de Dakota, fingindo
indiretas, atitude que a amiga sequer percebeu. — Ela não é tão ruim,
afinal. Ainda bem, né. Se não ia quebrar a sua cara pela falta de amor
próprio, cretina.
Mais risos. O jogo à frente estava tão morno que as mulheres mal
prestavam atenção.
Aqui estão as correções seguindo as suas instruções:
— Ainda fico com aquelas ideias, sabe. — começou Dakota sentindo
o ar voltar para os pulmões normalmente. — Pensando se algo vai dar
errado já que tá tudo bom demais.
Vivian a abraçou, seu corpo muito mais alto que ela, quase a engolia,
mesmo ambas sentadas.
— Isso se chama namoro, minha amiga. Um namoro que finalmente
rolou depois de sei lá quantas primaveras.
— Primaveras? — questionou Dakota sem entender.
— É melhor falar primaveras do que anos, não aguentava mais o
tanto que reforçava sobre o tempo que tiveram separadas. “Primaveras” fica
mais bonito, mais pomposo. Não acha? Posso fazer alguma dramaturgia
com a história de vocês.
Dramática como sempre. Dakota sorria pelo pensamento, assistindo
a viajar com os trejeitos de uma perfeita diretora de cinema, mexendo as
mãos no alto enquanto falava “primaveras”.
A buzina de longe ecoou no estádio. Quase todas as pessoas no local
olharam para ver de onde pertencia a origem do som. Dakota deixou
transparecer totalmente a alegria enquanto assistia Nicole sair do carro, com
seus óculos escuros e os cabelos esvoaçantes pelo vento, um sorriso sincero
no rosto a esperando para voltarem juntas.
— Cretina? — Dakota a encarou. — Limpa aqui a boca, a baba tá
caindo.
Ela a socou no ombro, soco forte o suficiente para fazer a amiga
mais alta quase cair de lado. Contudo, o fato era que Dakota realmente
admirava tanto aquela mulher a esperando de braços cruzados na porta do
passageiro, que mal conseguia descrever. Impossível não mostrar seus
sentimentos no rosto.
Vivian e Dakota se despediram.
— Vodka e salgadinho amanhã, ein. — gritou Nicole para Vivian
querendo dizer sobre a noite de filmes de terror na casa de uma delas.
Vivian acenou de volta mostrando o dedo do meio para Dakota. Ela
deixou claro o quanto odiava se assustar, mas aceitou mesmo assim. Havia
se tornado um programa entre amigas a cada duas vezes por mês.
Ao chegar no carro, Nicole depositou um doce beijo em Dakota. Já
haviam entrado no carro e o automóvel dado partida. Nicole deixou uma
música indie qualquer tocando. O sol do fim de tarde era favorável e
deixava o clima ameno e romântico. As luzes laranjas atravessaram o vidro
indo diretamente nos óculos de sol de Nicole, Dakota a assistia encantada.
— Sabe que dia é hoje? - questionou Nicole mordendo o lábio
timidamente.
— Noite, você quer dizer. — corrigiu-a.
— Exato, noite de piquenique. Reafirmou Nicole empolgada,
demonstrando tanto afeto quanto a outra. A parceria entre elas, a inspirava.
Nicole nunca teve tanta certeza que havia escolhido certo em voltar para
casa, os braços de Dakota eram sua casa. Ambas sabiam disso.
Nicole agarrou a mão de sua namorada e também melhor amiga, e a
levou aos lábios, lhe dando um beijo entre os dedos.
Agradecimento
Quero primeiramente agradecer a minha maravilhosa namorada, Mia,
ela foi a primeira pessoa a ler esta história que deveria ter somente
cinquenta páginas, chegando a me inspirar na criação dessas personagens
que fiquei tão apaixonada. Obrigada pelo seu apoio, meu amor.

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O Veneno de Ravenna.
Helena finalmente está feliz quando pede sua namorada em casamento,
porém, as coisas não saem como o planejado. Após um acontecimento
trágico, Helena se vê perdida sem o amor de sua vida.
Quando tudo perde o sentido, o destino tem mais uma reviravolta, e essa é
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aliada que carrega consigo a nova vida de Helena, juntamente à
oportunidade irresistível de trazer sua amada de volta.
Mas tudo tem consequências, e no percurso de controlar essa força da
natureza, as verdades aparecem, trazendo respostas amargas que farão
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Em meio a esse caos, tudo está fadado a um final ainda mais cruel, ela tem
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