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Copyright © 2022 Julia Brusco

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Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios.
Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou falecidas, é
coincidência e não é intencional por parte do autor. Nenhuma parte
deste livro pode ser reproduzida ou armazenada em um sistema de
recuperação, ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer
meio, eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou outro, sem a
permissão expressa por escrito da editora.

Créditos
Capa: Marianna Correia @todamarela
Edição de texto: Ana Maria Mendes
Projeto Gráfico: Julia Brusco
Fonte: Verve
Ilustração Miolo: Kezia Caetano

Julia Brusco @eraumavezju


Dedicatória
Nota da autora
Um
Dois
Três
Quatro
Epílogo
Agradecimentos
Sobre a autora
Para quem teve medo de continuar
e continuou mesmo assim

E para você, Amelie


Que me convidou para esse circo
e me mostrou do que era capaz,
Estou torcendo por você
Bem-vinde à última noite de sua vida.
Assim que virar a página, você entrará em um circo mágico e
sombrio. Em um mundo não muito diferente do nosso, mas com
jogos interesseiros e cartomantes misteriosas. Com jogadores
curiosos e mimados.
Se tiver coragem e quiser explorar mais sobre o jogo, aproveite a
música original criada para o conto e as artes oficiais no Instagram
@eraumavezju.
Atenção: Esta história contém violência explícita, morte, menção
a enforcamento e sangue. Por favor, leia com cuidado e respeite os
gatilhos.
Ah, não se esqueça:
Cuidado com as Estrelas e as histórias que contam. Elas são
ótimas mentirosas.
Gotas cristalinas pendiam de seu vestido, balançavam com o vento
noturno e piscavam com as velas arroxeadas do circo. Eram gotas
de diamantes, mas movimentavam-se como água. Elas dançavam
em meio à noite e batiam umas nas outras, o tilintar inundando seus
ouvidos.
Ela carregava um guarda-chuva transparente em suas mãos
enluvadas, com cartas de tarot coladas na superfície. Uma em
especial chamava sua atenção.
O Enforcado.
Era um homem alto e esguio, com cabelos que caíam em seus
ombros. Ele vestia um terno azul-marinho com o tom de um céu
noturno, acompanhado de Estrelas repletas de segundas intenções.
Sua pele amarelada cheia de sardas destacava-se no fundo escuro
da carta, rodeado de vigas entortadas e rosas cor de sangue. O
homem permanecia de ponta cabeça, pendurado pelos pés, e não
pelo pescoço.
Mas o que mais chamava a atenção da garota era seu sorriso
sereno.
Isso e o fato de ele piscar de vez em quando.
Alheio à menina e sua carta, o circo noturno ganhava vida. Os
portões iluminavam a noite escura junto das Estrelas, e as tendas
eram erguidas por mãos experientes. Azuis e roxas, com cordões
cheios de luzes entrelaçados ao tecido. Os portões se abriram e
uma multidão animada se perdeu entre as tendas convidativas.
Amelie torceu o nariz quando os passos atrevidos dos outros
lançaram terra em seus sapatos brancos. Ela não queria encontrar
guloseimas frescas ou mesmo ganhar pelúcias. Não se importava
em ser a primeira a alcançar os malabaristas ou a testar sua
habilidade em jogos de tiro ao alvo.
Não. Tinha outros jogos em mente.
Apertou o cabo do guarda-chuva com mais forçaquando avistou
a tenda que desejava. Ela caminhou por entre a multidão de
pessoas sem noção, com algodão doce nas mãos e rostos pintados
de forma casual. Deu seu melhor para não esbarrar em seus corpos
desinteressantes, contendo uma cara de desgosto.
Havia várias outras tendas espalhadas pelo campo que se
estendia até o horizonte – todas de um azul tão profundo que ela
mal conseguia distingui-las na noite. Eram as luzes roxas que
facilitavam o processo, piscando o caminho nos postes altos da rua.
Ela parou em frente à maior tenda. Era gigantesca, estendendo-
se por mais espaço do que suas vizinhas. Mas em vez de estar com
filas e mais filas em sua porta, não havia nenhuma mísera alma por
lá.
Amelie sorriu.
Pendurada na entrada, uma mão metálica segurava três Ás
diferentes.
Mas antes de entrar, Amelie explorou o céu. As constelações
indefinidas caminhavam pelo céu escurecido, e ela se perguntou
quais nomes receberiam – por mais efêmeras que fossem. Se
seriam como antigamente, ajudando navegadores a encontrarem
seus caminhos. Se seriam como as Estrelas que ela conhecia,
oportunistas com suas histórias mentirosas. Se seriam fixas,algum
dia.
Ela não encarou tempo o suficiente para ouvir a reprimenda dos
astros, que, assim como sua família, teriam comentários nada
agradáveis a respeito de sua escolha.
Amelie esperou até que algum dos trabalhadores do circo
levantasse a cortina para ela passar e tomou o maior cuidado dos
mundos para não encostar no tecido sujo. Não se abalou ao ver o
interior minúsculo, definitivamente menor do que aparentava por
fora. No centro, havia uma pequena mesa circular com cartas
espalhadas.
E uma mulher.
Uma mulher de pele negra como a noite, cabelos pretos e lisos
que caíam em suas costas, presos por duas presilhas em formatos
de chaves. Um único colar soturno pendia em seu pescoço. Ela
piscou na direção de Amelie – e enquanto seu olho direito era tão
preto como seu cabelo, o esquerdo era do mesmo tom de violeta
das luzes do circo.
— Mais uma vez? — a mulher perguntou, sua voz ecoando na
pequena tenda. Era uma voz melodiosa e manipuladora. — Vocês
não se cansam de tentar.
Amelie ergueu uma sobrancelha fina e curiosa.
— Vocês — ela repetiu, testando a palavra em sua voz suave. —
Por acaso me reconhece?
— Reconheço esses traços, garota, mas nunca os vi em você. —
A mulher batucou os dedos na mesa. — Qual é seu nome, garota
Étoile?
Amelie lambeu os lábios antes de respondê-la.
— Amelie Étoile.
— Uma garota que almeja e vai atrás do que realmente quer. As
Estrelas escolheram bem seu nome — a mulher sorriu. — E o que
você quer, exatamente? — Ela embaralhou as cartas com uma
calma preguiçosa.
Amelie empinou o queixo:
— Uma cartomante não deveria saber mais?
— Você não está aqui para ver uma simples cartomante.
Amelie fechou seu guarda-chuva, e as cartas nele presas
voaram em um círculo ao seu redor. O Enforcado caiu em suas
mãos, e ela o guardou no bolso. Amelie passou a mão por seu
vestido branco e macio em forma de nuvens, as gotas cristalinas
tilintando com o gesto, e repreendeu a vontade de traçar o dedo em
suas próprias costas.
Sua família havia dito que a mulher sabia de tudo. Que seria a
tarefa mais imprevisível de sua vida.
Amelie só não sabia que a mulher seria chata.
— E então por que estou aqui?
A mulher circulou sua mesa antes de estar cara a cara com
Amelie. Ela aparentava ter a mesma idade da Étoile, a idade de
começar a explorar o mundo sozinha. Mas sua família a havia
ensinado que a cartomante tinha séculos em seu bolso, mas não em
seu rosto.
A expressão de Amelie era a resposta de que precisava.
— Muitos de vocês já tentaram. Sua família não lhe falou? E
antes que negue, você é a imagem de suas primas.
As garotas Étoile tinham rostos em formatos de coração, com
traços delicados e olhos grandes. Amelie não era diferente,por mais
que seus olhos fossem menos brilhantes do que o restante de sua
família. Eles eram apagados, um verde morto que perdia a cor
dependendo da luz. Amelie o incendiava com sua curiosidade.
Ela tinha um pó dourado em seus lábios, traçando o contorno
avermelhado, e em seus cílios escuros. O mesmo pó brilhava em
suas bochechas claras e descia por seu pescoço. Sua franja presa
entre o louro e o castanho não tinha um mísero fio desnivelado e
emoldurava seus olhos inquisidores.
— Minhas primas eram fracas — ela respondeu com a verdade.
O resto das garotas não tinha estômago para fazer o que
precisava ser feito. Elas tinham compaixão, alegria e vida dentro
delas. Elas não foram forjadas da maneira necessária. Seus tios
haviam perdido a visão do futuro depois de gerações cheias de
erros. Eles eram fracos.
Os pais de Amelie, não. Eles sabiam o que era certo e errado e
sabiam que promessas não tinham data de validade. E como filha
única, a garota herdara as palavras que sua família prometeu.
Vislumbres de uma vida na mansão Étoile levaram Amelie a
apertar os dedos uns contra os outros.
— E o que te faz diferente? — a mulher perguntou com um
sorriso em seus lábios.
Amelie pensou no tesouro, na benção Estelar que ganhara.
Conseguia sentir o peso dos diamantes em suas costas e guardou
seu sorriso para depois de sua vitória.
— Essa pergunta responderei ao longo da noite. — Amelie
retirou suas luvas escuras e as jogou no chão, junto das cartas de
tarot. — Você não vai se livrar de mim tão cedo.
— Essa promessa é pior para você do que para mim. — A
mulher juntou as mãos em seu colo. — Sou Ariella.
Ariella se posicionou atrás da mesa novamente e juntou as
cartas de baralho. Debaixo de tais cartas, ela retirou um contrato.
Folhas pretas e tinta branca.
— Você sabe o que fazer.
Amelie pegou a caneta das mãos da mulher. Havia sido treinada
a ler contratos e a saber que os de Ariella – por mais que seu nome
mudasse ao longo dos anos – sempre tinham pactos sensíveis por
trás das entrelinhas da verdade.
Ela o leu com calma. Sabia tudo o que estava em jogo.
E sabia que se perdesse, seu ódio seria maior do que qualquer
contrato.
Você é um peão, e eu sou a dona do tabuleiro.
Ganhe, o tabuleiro é seu.
Perca, você é minha.
Em toda sua vida, Amelie nunca hesitara. Como a cartomante
havia dito, ela almejava e corria atrás do que desejava. Ela crescera
como uma verdadeira Étoile e havia, enfim, atingido a maturidade e
encontrado um desafio que poderia vencer. Vencer como todos
sabiam que faria.
Vencer como uma verdadeira Étoile.
Seu nome a cegou quando ela o escreveu no papel com belas
letras cursivas, vendendo sua vida. Amelie piscou algumas vezes
antes de perceber que a tenda inteira havia mudado.
Ela se transformara em um espaço frio, mas cheio de…
Chaves.
Chaves caíam do teto, de todos os tamanhos, cores e modelos.
Algumas estavam tão altas que Amelie precisaria subir em algo para
pegá-las, outras quase encostavam no chão. Não havia sinal da
mesa de baralho de antes, ou de Ariella. Ela esbarrou o braço em
um fio e todas as chaves se chocaram, o barulho dominando o
interior da tenda e incomodando os ouvidos da menina.
Apenas a voz poderosa de Ariella trazia Amelie à realidade.
— Escolha.
A garota se afastou das cartas e de seu guarda-chuva,
caminhando pela tenda escura. Ela estendia seus dedos claros e
tocava em todas as chaves, examinando seu peso, sua textura, sua
cor. Não sabia o que buscava, só que sempre acertaria.
No centro da tenda, a garota analisou duas chaves. A mais alta,
a mais baixa.
Mas se havia uma coisa certa sobre a garota Étoile é que ela
nunca se rebaixaria a ninguém. Com um pulo sofisticado, ela pegou
a chave mais alta.
Como uma malabarista, a garota equilibrou diferentes escolhas
em suas mãos e fez a sua.
Ela conseguia sentir o sorriso invisível de Ariella quando a tenda
se tornou infinitamente escura e a garota viu-se sozinha.
— Bem-vinda à última noite de sua vida, Amelie.
A chave que Amelie escolheu transformou a sala. Em vez da
pequena tenda com a mesa no centro ou do espaço cheio de
chaves, viu-se no início de uma ponte. Um abismo escuro e sem fim
a esperava embaixo, mas ela não tinha planos de cair. Um lustre
elaborado, com velas roxas acesas, pendia no centro. Ela mal
conseguia enxergar o topo.
Não havia nada nas laterais da tenda. Tudo que Amelie
conseguia sentir era o material firme abaixo de seus pés e sua
infinita extensão.
Sem vontade ou paciência para esperar as instruções de Ariella,
a garota caminhou pela ponte. Um pé de cada vez, já que mal havia
espaço para seus pés ficarem lado a lado. Ela se equilibrou sem
olhar para baixo, apenas para frente.
Depois de segundos que mais pareciam horas, o caminho
revelou uma porta coberta por panos, um arco tão escuro quanto o
abismo embaixo dela.
Retirou do bolso sua carta especial, e o homem nela piscou com
um sorriso.
Amelie estreitou os ombros e levantou a carta para que o homem
conseguisse enxergar seus olhos decididos.
— Aproveite o jogo — ela murmurou para O Enforcado,
colocando-o em seu decote. — Você tem os melhores ingressos.
Ela podia jurar que ele rira de sua piada sem graça.
Poucos passos e lá estava o arco. Ela não olhou para trás.
Amelie passou por ele e, mais uma vez, o mundo se
transformou.
Longe estavam seu vestido de nuvens e gotas de chuva e, em
seu lugar, um vestido branco ornamentava seu corpo, vestindo-a
como uma boneca. Uma saia arredondada, firme e densa. Em suas
mãos, estavam pérolas grudadas como luvas, que subiam por seus
braços e pescoço até encontrar seus cabelos.
Ela ainda sentia O Enforcado em seu decote.
A ponte não havia terminado, e nela, um dos trabalhadores do
circo a cumprimentou com uma placa. Daquela distância, ela não
conseguia enxergar exatamente o que as letras diziam, mas quanto
mais perto o homem chegava, mais claro estava. Era seu nome, a
assinatura que havia deixado no contrato.
Ele estendeu a mão e entregou-lhe um envelope aveludado.
Dentro, havia uma carta de tarot.
— A cartomante deseja-lhe má sorte.
A garota riu ao ver a que Ariella havia escolhido para ela.
O Diabo.
Sempre a controladora e pragmática Amelie.
Ela tomou sua carta e a colocou no decote do vestido, junto com
a que trouxera. Luzes fracas se acenderam, o homem passou por
ela sem dificuldade e Amelie analisou o ambiente onde estava. A
ponte da garota não era a única.
Havia outras três que se uniam no centro, em uma plataforma
circular. Nela, estava um grande barril, alto e largo a ponto de
guardar uma pessoa.
Amelie sorriu.
— Temos companhia — Ariella murmurou no ouvido da Étoile,
que mal havia sentido sua presença. Ela virou a cabeça, surpresa
pela revelação e pela proximidade da mulher.
Ariella estava enroscada em um pano vermelho, pendurada no
teto. Suas presilhas, antes em formatos de chaves, agora imitavam
espadas. Ela se aproximou do rosto de Amelie, e quando as
bochechas da garota quase ganharam uma vermelhidão incomum,
Ariella balançou para longe com uma risada.
Dos cantos, mais pessoas surgiram, cada uma em sua própria
ponte.
A primeira era uma garota baixa de cabelos curtos e rosados. Do
outro lado, um garoto com Estrelas brancas tatuadas em sua pele
marrom. E, na frente de Amelie, um senhor alto com uma máscara
de coelho.
Cada um recebeu sua placa e uma carta. Amelie não se
importava com nomes, e sim com os apelidos que a cartomante
escolhera para cada um. Ela duvidava que eles tivessem o
treinamento que ela tivera, que houvessem sido criados de maneira
brutal e focada para ganhar.
Eles gostavam da aventura, e não do fim.
Por isso morreriam antes que Amelie pudesse piscar.
Os quatro se encontraram no fim de suas respectivas pontes.
Ariella desceu em seu pano vermelho e rodopiou ao redor dos
jogadores.
— Vocês todos possuem uma carta escolhida por mim. Uma que
representa o que querem ganhar. Uma que revela quem realmente
são — a cartomante explicou. — Elas serão sua identidade durante
os jogos, até o momento em que perderem. Porque vocês vão
perder. De um jeito ou de outro.
Jogos.
De acordo com as poucas instruções de sua família, já que
informações sobre o circo eram sempre escassas, quatro era o
número de jogadores que disputavam o tão aguardado prêmio. Ele
mudava de tempos em tempos e nunca seguia uma estrutura rígida.
Todas as outras Étoile haviam perdido, falhado com a promessa de
seu Fundador.
Mas você será a primeira a ganhar, Amelie, seus pais lhe
disseram. Assim que estiver pronta.
Ganhar. Pronta.
Amelie cutucou suas unhas e os diamantes em suas costas
pesaram com expectativas.
— É uma questão de quantidade — Ariella disse, apontando
para a plataformacentral. — Quem conseguir colocar mais espadas
no barril em um minuto, vence. Se crianças conseguem, por que
vocês não conseguiriam?
Um jogo infantil.
Amelie estalou os dedos.
— Só isso? — Cabelo Rosa perguntou, braços cruzados e nariz
enrugado.
— Por que não vai primeiro para descobrir? — Ariella ofereceu,
guiando a menina até o centro, até o barril. Seus ajudantes
trouxeram espadas afiadas e as colocaram no chão ao lado de
Cabelo Rosa. Ela franziu o cenho.
Os outros dois jogadores se entreolharam, mas Amelie se
manteve firme. Um em especial se aproximou da garota Étoile.
— Boa noite, menina. Você…
Ela não gastou sua energia olhando na direção do Coelho.
— Não.
Conseguia sentir a confusãodo jogador, mas de nada importava.
Ela estava lá para ganhar, não para fazeramigos que morreriam
assim que perdessem. Assim que Amelie ganhasse.
Enquanto Coelho tentava entender a reação brusca da garota,
Amelie procurou por Ariella. A mulher continuava em seu pano,
sentada de maneira confortável. Ela piscou para a jogadora e
Amelie sentiu seu estômago remoer de ódio.
Essa é a mulher que matou dezenas de suas primas, ela
pensava. A mulher que guarda a saída que sua famíliaquer há
gerações.
Ariella era famosa nas lendas que compartilhavam com as
garotas Étoile.
Quando Amelie nasceu, as histórias que seus pais contavam
antes de dormir eram sobre uma figura mística de olhos coloridos.
Uma cartomante, a dona de um circo que vivia rodando o mundo
com a promessa de noites divertidas e prêmios melhores ainda.
Com consequências que poderiam afetara vida de qualquer um que
ousasse jogar.
A tenda era seletiva, e nem todos conseguiam entrar no jogo.
Era a dona que decidiria quem poderia participar – e ela só aceitava
quem tinha algo a perder. Quem tinha algo que ela pudesse ganhar.
O resto dos humanos vivia suas vidas sem acreditar em magia
ou seres místicos, mas as garotas Étoile haviam nascido da magia,
por mais má que fosse, e ela estava presa em seus corpos. As
lendas da dona do circo podiam ser intrigantes e famosas, mas as
que acompanhavam as garotas eram melhores ainda.
As Garotas Estrelas.
Havia um tempo em que as Étoile falavam a língua dos astros.
Olhar para as constelações e ouvir histórias era tão simples como
respirar – elas inspiravam a luz e expiravam palavras. De tempos
em tempos, as Estrelas dançavam pelo céu e escolhiam outros
astros para se juntarem. Criavam novas constelações.
E cabia às Étoile nomearem-nas.
Era um dos talentos das Garotas Estrelas.
Era, mas não mais.
Isso fora antes dos astros tornarem-se mentirosos e nem sempre
confiáveis. Nesse ponto, Amelie suspeitava que eram parecidos
com Ariella.
Cabelo Rosa abaixou-se para pegar a primeira espada, mas
Ariella estalou sua língua.
— Você não achou que era só isso, achou?
Com um estalo de dedos de Ariella, uma pessoa materializou-se
dentro do barril. Era uma garota parecida com a jogadora, seu
cabelo rosado e olhos assustados. Ela tinha uma faixacobrindo sua
boca e suor escorrendo de sua testa.
O suspiro assustado de Cabelo Rosa calou a tenda.
Que comecem os jogos.
— Sua carta? — Ariella perguntou.
A voz da menina saiu fraca:
— A Imperatriz.
— Lute por ela. — Ariella subiu mais acima do pano, sorrindo
com o desespero de Cabelo Rosa.
Com mãos trêmulas, a garota pegou a primeira espada. Ariella
começou a contar. Cabelo Rosa colocou a primeira espada no barril,
começando por baixo. Ela levava os ombros até as orelhas quando
enfiava a primeira metade, como se esperasse por um grito. E
quando ele não vinha, ela pausava um momento para respirar
aliviada.
A contagem de Ariella continuava.
Amelie assistia à cena sem muitas emoções, mais preocupada
com os números demorados da dona do circo do que com o drama
de Cabelo Rosa. Ela cutucou as pérolas grudadas em sua pele por
falta do que fazer. Estavam coladas à força, e a cada cutucão que
Amelie dava, sua pele ficava mais avermelhada.
Ela se divertiu com a própria dor.
A contagem da cartomante era lenta e previsível, e Amelie se
perguntava quando seria sua vez de jogar. Ela passara boa parte de
sua vida torcendo para que suas primas perdessem, para que
chegasse sua hora de...
Um grito chamou sua atenção.
A menina dentro do barril esperneava, como se tentasse
desprender seus membros e fugir para longe dali. Cabelo Rosa não
estava tão diferente:ela tentava retirar a espada que aparentemente
prendera no corpo da outra garota, mas estava fixa. Presa.
Um fio vermelho escorreu do terno branco que Cabelo Rosa
usava, caindo na mesma proporção que o sangue surgia embaixo
do barril.
— Ela… ela? — Cabelo Rosa engoliu em seco e limpou suas
lágrimas. — Foi apenas sua perna. Sua perna, certo?
Ariella, em seu pano vermelho, desceu até onde a jogadora se
encontrava:
— Temos um ponto sensível na perna. E seu tempo acabou.
— Ela morreria se eu colocasse mais alguma — Cabelo Rosa
sussurrou.
Ela morrerá mesmo assim, se você cortou sua perna em seu
ponto sensível, Amelie pensou.
— Oito espadas, Imperatriz. Impressionante ou decepcionante?
— Ariella perguntou e as bochechas da menina ganharam o tom de
seu cabelo.
Um dos assistentes puxou Cabelo Rosa para sua ponte
novamente, ela tremia ao olhar para baixo.
— Onde está o Louco? — Ariella perguntou com os olhos fixos
no Coelho.
Ele caminhou de sua ponte até o barril – misteriosamente limpo
e sem vestígios da menina anterior. Amelie lançou um olhar para a
outra jogadora, que parecia tão surpresa pelo sumiço de sua vítima
quanto os outros jogadores.
Outra vítima estava em seu lugar.
Se Coelho reconheceu ou não o homem preso no barril,
amarrado da mesma maneira, era impossível dizer. Ele não
arregalou os olhos ou prendeu a respiração, mas Amelie tinha a
impressão de que era apenas seu autocontrole louco que não o
deixava esboçar reações.
— Proteja sua carta — Ariella mandou.
Ele pegou espadas com mãos menos trêmulas e as enfiou no
barril sem olhar para o rosto de sua futura vítima. Ele começou pelo
chão e diminuiu seu ritmo ao subir pelo corpo do homem. Alguns
fios vermelhos grudaram em sua roupa conforme ele errava as
espadas, mas sua vítima não gritou. A cor jorrava de seu terno e do
barril.
Quando Ariella parou de contar, ele tinha treze espadas no alvo.
Coelho voltou para sua ponte olhando para baixo.
— É melhor torcer para que alguém seja pior do que você,
Imperatriz — Ariella falou ao descer ao lado do próximo jogador. —
E você, Eremita? O que pode fazer?
Pele de Estrelas chegou na plataforma com coluna ereta,
mantendo os olhos na vítima. Era uma garota menor que Amelie.
Ela também tinha Estrelas em sua pele.
— Pode começar — Ariella iniciou sua contagem.
O jogador começou, colocando espadas com uma precisão
impressionante até para Amelie. Ele rodou o barril e prendeu
espadas sem nem mesmo respirar alto. Seu corpo movia-se como o
vento, e ele segurava espadas como agulhas, prestes a bordar algo
bonito.
Quando a contagem do jogador terminou, ele tinha doze
espadas presas e nem um fio vermelho em sua roupa.
Pele de Estrelas voltou para sua ponte com a mesma postura.
O coração de Amelie tamborilou em um ritmo desconhecido para
a garota. Como se ele admirasse o feito do outro jogador e…
temesse não fazerigual. O que era ridículo. Amelie era aquela que
impunha e quebrava recordes, não a que se colocava abaixo deles.
— E você, Diabo? — Ariella sorriu à sua frente,colocando um fio
de cabelo de Amelie atrás de sua orelha. Dessa vez, ela estava
pendurada pelos pés de seu pano vermelho. De ponta cabeça,
assim como O Enforcado. Seu sorriso conseguia ser mais
contagiante visto ao contrário. — Vai me mostrar o quão diferente é?
Amelie juntou os lábios e caminhou até o barril no centro. Viu
quando uma garota um pouco mais velha do que ela apareceu
presa, com rosto em formato de coração e olhos assustados. Uma
garota que podia ser a imagem da própria Amelie.
— Proteja sua carta, Diabo — Ariella ordenou.
A primeira coisa que Amelie fezfoiutilizar a espada para cortar a
amarra na boca da menina.
— Camille — ela a cumprimentou.
Sua última prima enviada para ganhar o jogo de Ariella. Ela
havia saído da mansão há quase um ano, e todos tinham certeza de
que ela seria a vencedora. Mas aqui estava Amelie, e lá estava
Camille.
Amarrada.
Uma perdedora.
Uma peça do circo.
— Amelie — sua prima sussurrou. — Amelie, o que está fazendo
aqui? Era a Giselle quem…
— Preciso de uma dica — Amelie a interrompeu — Quais são os
próximos dois jogos, Camille? — ela perguntou, ainda segurando a
espada. Se sua prima fosse uma peça, ela saberia sobre os outros
jogos. Saberia como vencer.
— Amelie, não vale a pena. Você vai perder, como nós
perdemos.
— Preciso que me fale o que vou encontrar.
Os olhos de sua prima se arregalaram.
— Amelie, você não consegue ganhar. Nenhuma de nós
consegue. Você tem que fugir enquanto pode, Ariella só quer...
— Minha dica, Camille — ela perguntou mais uma vez.
— Amelie, você será tão cruel quanto ela se...
— E quem disse que não sou? — Amelie ergueu seus olhos e
fitousua prima fraca.— Eu vim para ganhar, Camille. E você vai me
ajudar. De um jeito ou de outro.
Sua prima estremeceu:
— Não…
— Seu tempo está acabando, garota Étoile — Ariella riu,
confortável em seu pano vermelho.
Amelie começou por baixo apenas porque imaginava que
precisaria de menos força.Ela colocou quatro espadas, ouvindo as
reclamações de Camille, e uma parte sua se repreendeu por ter
soltado sua voz. Cinco, seis. Ela colocou espadas na ordem que via
os espaços, ignorando os suspiros de Camille que logo tornavam-se
gritos.
Sete.
— Amelie!
A cada espada que enfiava no barril, fios vermelhos
desprendiam de seu vestido. Tais fios tão fortes quanto o sangue
que escorria no jogo. A contagem de Ariella ia chegando ao fim,
mas Amelie não havia terminado.
Se você não vai me ajudar com dicas, Amelie pensou, pode me
ajudar com isso.
Com toda sua força, ela pegou mais três espadas.
Não sou fraca como você, Camille.
E as colocou no meio do barril.
O grito de Camille inundou a tenda.
Ela desviou dos sentimentos, das regras e da surpresa como
uma acrobata flexível, sem se deixar prender. Seu peito subia e
descia, não pelo esforço, não pelo remorso.
Pela vitória.
Amelie juntou as mãos quando Ariella parou de contar. Ela
encarou sua prima, sua vitória, até a respiração de Camille sumir e o
vestido branco de Amelie encharcar-se de vermelho. As gotas
pingavam como linhas, como fios que a ligavam ao chão. Seria
bonito, caso não fedesse a sangue ruim.
— Catorze espadas — Ariella desceu de seu pano ao lado de
Amelie. A presença da cartomante paralisou o corpo da garota, por
mais que ela não quisesse admitir. Com toda a calma do mundo,
Ariella pegou as mãos de Amelie e as limpou em seu pano.
Estavam imundas.
Molhadas com o sangue de sua prima.
Ariella limpou dedo por dedo, sem deixar um resquício sequer
nem mesmo entre as dobras de sua mão. Quando terminou, fez
carícias na pele de Amelie e aproximou-se de seu ouvido:
— Parece que eu lhe dei a carta certa, não?
O Diabo.
A carta do impedimento. Como se houvesse algo na garota que
a impedisse de avançar.
Contraditório com seu nome e as antigas palavras de Ariella.
Uma garota que almeja e vai atrás do que realmente quer.
Os lábios entreabertos de Amelie não ofereceram comentários.
— Ela a matou! — Cabelo Rosa gritou, sem se mexer. — O que
vale a vida de sua família?
— É pela minha família — Amelie a contrariou. Ela pousou a
mão no decote de seu vestido, sentindo as duas cartas que
guardava. Conseguia imaginar a piscadela do Enforcado.
Um dia você ganhará, ela ouviu sua mãe dizer. E provará para o
resto da famíli a o motivo de ter sido a escolhida das Estrelas. De
carregar o tesouro em suas costas. Um dia.
Um dia. As palavras reverberavam nos pensamentos da garota.
Por que não aquele dia?
Por que tivera que esperar?
Ela não podia provar logo para todos os mundos que era
especial?
— Não me diga que você está aqui sem um objetivo — Amelie
falou,a voz grave. — Está dando sua vida pelo jogo, mas se recusa
a jogar?
— Me recuso a tirar vidas. A minha já basta — Cabelo Rosa
falou. — As regras...
— Não havia nada nas regras dizendo que precisava mantê-la
viva. — Amelie ergueu uma sobrancelha na direção da garota. — E
nada que me impede de matar você.
A diferença entre nós, Amelie falou silenciosamente, é que eu
sou o pior tipo de pessoa.
Amelie fora paparicada sua vida inteira. Crescera mimada e
preparada por pessoas que não estavam acostumadas a dizerem
não perto dela. Ela crescera rodeada de sim e favores e de
admiradores. Ela crescera como uma deusa, como uma Étoile
deveria crescer.
E Amelie acreditava.
Ouvira tanto que era especial, que o tesouro em suas costas era
uma benção… que ela acreditava. Como não acreditaria?
E talvez, apenas talvez, um pedaço da garota se agarrasse à
ideia de que era especial, porque se não fosse… quem seria
Amelie?
Mas ela não ouvia essa voz, baixa e rasa em seus pensamentos.
Não. Ela era especial.
Sua ambição crescera mais rápido que a própria garota, como
uma armadura que a protegeria de olhares mal-intencionados. Antes
que pudessem questioná-la, ela estaria entregando-lhes provas de
seu sucesso.
Amelie era inevitável.
— Não há necessidade — Ariella sorriu para Amelie como se a
entendesse. — Você é a vencedora, Diabo. E a Imperatriz perdeu.
A expressão assustada de Cabelo Rosa desapareceu em um
segundo.
Sua ponte desvaneceu e seu corpo caiu pelo abismo sem fim.
Cabelo Rosa gritou e perdeu o fôlego e pediu por ajuda e...
Amelie virou-se a tempo de ver sua prima morta. Deixou a
cabeça cair para o lado.
Ela morreu, ela pensou. Ela morreu e eu a matei.
Amelie sorriu.
E eu venci a primeira rodada.
O corpo de Cabelo Rosa finalmente se chocou com o chão da
tenda.
Pele de Estrelas e Coelho a olhavam como se ela fosse uma
ameaça. Ariella a olhava como se ela fosse a resposta de todos os
seus problemas. Amelie lambeu os lábios e fechou os olhos. E
estava certa, porque assim que o fez, sentiu o ambiente se
transformar.
Eram como linhas que a conectavam com a tenda, as mesmas
que a haviam conectado com o contrato que assinara anteriormente.
Elas rodopiavam ao seu redor e renovavam a lona do circo. Quando
finalmente se permitiu abrir os olhos, Amelie ergueu uma
sobrancelha. A sala era pequena, com as velas roxas emanando
luzes fracas.
Ela e os outros dois jogadores encontraram-se sentados em uma
mesa circular.
Mas o que fezseu corpo paralisar foram as correntes presas em
seus pés. Ela sabia que vendera sua vida para o jogo, sabia que
não passaria de um peão para Ariella. Mas Amelie imaginava que só
sentiria isso se perdesse – e ela nunca perdia.
O peso das correntes que a conectavam com o pé da mesa a
puxava para baixo, e ela teve de se esforçarpara manter a postura
ereta. Ao seu lado, Pele de Estrelas e Coelho pareciam igualmente
perturbados.
Eles estavam vestidos com ternos de baralho, com cartas de
diferentes naipes e cores espalhadas por seus corpos. Não
precisava abaixar seus olhos para ver que estava igual, conseguia
sentir a firmeza das cartas grudadas em sua pele. Amelie, no
entanto, fez questão de procurar pelas cartas de tarot presas em
seu decote.
Eles ainda estavam lá, O Enforcado e seu sorriso.
O Diabo e seus chifres.
— O Louco e o Eremita perderam para o Diabo — Ariella falou
ao sentar-se na cadeira restante. Suas mãos enluvadas pousaram
um baralho na mesa, e ela o embaralhou com calma e paciência. As
presilhas em seu cabelo haviam agora tomado forma de uma das
cartas. — Mas vocês ainda têm tempo de mudar o jogo.
Ela distribuiu as cartas do baralho para todos os jogadores, e a
surpresa de Amelie foi grande ao ver que a própria Ariella tinha
separado cartas para jogar.
Lembrou-se das recomendações de sua família, das únicas
informaçõesque tinham sobre o que se passava dentro da tenda de
jogos. Não sabiam das regras ou da natureza das brincadeiras de
Ariella. Sabiam que todo ano o jogo era diferente. Que todo ano
Ariella se deliciava com uma nova garota Étoile que não conseguia
ganhar.
Que quando a dona do circo entrava no jogo, não tinha dó ou
remorso. Que ela jogava de maneira cruel e afiada, pronta para
destruir seus peões.
Mas…
Que ela também apostava tudo.
Era a chance de Amelie, a chance de finalmente realizar a
promessa de sua família. De provar que o tesouro em suas costas
era digno. De vencer o prêmio mágico pelo qual as garotas Étoile
davam suas vidas.
Um favor de Ariella.
Qualquer favor.
— O jogo é simples. Todos temos o mesmo número de cartas
aleatórias. Quando sua vez chegar, quero que coloque uma carta no
centro, com sua face voltada para a mesa — Ariella começou. — A
carta, no entanto, deverá seguir a ordem crescente.
Amelie contraiu os dedos dos pés e sentiu o movimento das
correntes que a prendiam contra o chão.
— E se não tivermos a carta? — Coelho perguntou, estalando os
dedos.
— É aí que está a graça do jogo. Nem sempre você terá a carta
certa. Então… terá de mentir. Os outros jogadores esperarão
afiadamente por cada movimento errado, cada suspiro que indicará
suas verdadeiras intenções. Todos podem acusá-lo de uma mentira.
Mentir.
Amelie sabia mentir.
E conseguiria iludir os outros jogadores com cada movimento
planejado.
— E se formos descobertos? — Pele de Estrelas perguntou.
— Cada mentira fará o jogador recolher todas as cartas já
descartadas na mesa. E alguém consegue adivinhar por que isso é
ruim? — Ariella rodou os ombros.
— Porque quem tiver mais cartas perde. Não é mesmo? —
Amelie ofereceu sua resposta, certa de que entendera a manha do
jogo.
— Quem tiver mais cartas… se juntará à Imperatriz — Ariella
concordou. — Mas se um jogador for falsamente acusado, o
acusador é quem leva as cartas.
Amelie voltou sua atenção para as costas das cartas à sua
frente. Ela franziu o cenho.
— Não pode ser apenas isso — a Étoile falou. Parecia fácil
demais.
E foi então que Ariella abriu seu sorriso predador, prestes a
devorar os perdedores inexperientes.
— Está certa, Diabo. Não quero que joguem apenas cartas
impessoais. A cada rodada, o jogador me deve uma verdade. —
Ariella balançou uma mão no ar. — Aposte uma memória, um fato
sobre si; sejam criativos. Quero algo que valha o prêmio do jogo.
Algo que valha meu favor.
Quando Amelie pousou a mão em suas treze cartas, uma
sensação de vitória tomou conta de seu corpo. Ela não sabia dizer,
exatamente, o que gostaria de apostar. O que ela sabia era que
Ariella não demoraria a perguntar sobre suas costas – sua famíliajá
a havia alertado de que a dona do circo tinha maneiras de descobrir
coisas mais profundas que segredos.
Treze cartas a separavam do jogo final.
— Posso começar — Ariella murmurou, colocando uma carta
virada para baixo. — Dois. Já tive oito nomes, todos começando
com a letra A. Digamos que é uma letra especial — ela bateu os
cílios na direção de Amelie, que se recusou a mostrar o que
pensava. — Cada nome meu durou quarenta anos.
A garota não só poderia ganhar o jogo, como conheceria um
pouco mais dessa figura mística que era a dona do circo. Se
ganhasse – quando ganhasse – teria mais do que o prêmio em
mãos. Teria informações sobre quem sua família mais odiava nos
mundos.
Amelie encarou suas próprias cartas, deixando seu rosto em
branco. Ela tinha um dois, e não duvidava dos outros também terem
o resto. Poderia ser uma mentira. Ela sabia que a reputação de
Ariella não a impedia de mentir logo na primeira rodada. Antes que
pudesse pensar mais no assunto, Coelho colocou uma carta na
mesa.
— Três — sua máscara impedia Amelie de analisar seu rosto, de
procurar sinais de mentiras em sua boca. Seu corpo, por outro lado,
seria um baú de tesouros para a menina. — Você me entregou a
carta de Louco, e não acho que tem certeza sobre o quão certa
está. Fui expulso de minha antiga vila por conversar com quem já
não estava mais entre nós. É um talento, ver o véu entre mundos.
Amelie ordenou que seus olhos ficassem onde estavam e que
não se preocupassem com os fatos dos outros. Que não mostrasse
suas reações, para que não tivessem nenhum pingo de informação
sobre a garota quando fosse sua vez de jogar.
Pele de Estrelas a salvou ao apostar sua carta.
— Quatro. As tatuagens em minha pele foram feitas pela minha
filhaem homenagem às Estrelas — ele deixou seus olhos passarem
por Amelie, como se soubesse mais sobre a garota Étoile. — Cada
uma representa alguém que decepcionei.
Amelie julgou a quantidade de Estrelas na pele do homem.
E não demorou para que a atenção de Ariella caísse sobre a
menina. A cartomante ofereceu um sorriso privado para a Étoile.
Sem desviar o olhar, Amelie cerrou um punho embaixo da mesa
antes de jogar sua carta.
— Cinco — ela falou, testando as águas. — Minha família é tão
antiga quanto você.
O olho violeta de Ariella brilhou com ansiedade, e algo dentro de
Amelie se contraiu. Ela normalizou sua respiração. Em um instante,
a mulher arrastou sua cadeira para mais perto da garota com uma
tranquilidade orgulhosa.
Ariella passou o braço por trás da cadeira de Amelie, e as
correntes presas nos pés da Étoile a lembraram de que ela não
tinha para onde fugir. O tsc que saía da dona do circo era
decepcionado.
— Você já jogou Mentira, Amelie? — Os lábios de Ariella
aproximaram-se de seu ouvido. — É sobre distração.
— Distração. O fato ou a carta? — Ela virou-se para a mulher, e
seus rostos estavam tão próximos que ela conseguia sentir sua
respiração.
Ariella apenas sorriu.
— Não posso te dar todas as respostas, Amelie. Você quer
ganhar, não quer? Quer meu favor. — Ela bateu seus cílios. — Você
vai me decepcionar?
Amelie contraiu os dedos do pé. Seu coração latejava dentro de
seu peito e sua orelha queimava com a proximidade. Não
decepcionaria sua família. Não podia decepcioná-los, não quando
todas suas primas já o haviam feito nos anos anteriores. Não
quando saíra da mansão da Étoile nas circunstâncias menos que
ideais. Mas algo dentro de si, algo que ela se recusava a aceitar,
falava que ela também não queria decepcionar Ariella. Afinal, teria
de ser sua melhor jogadora para provar seu valor.
Ela contraiu a vontade de limpar a garganta.
— Cinco — Amelie repetiu. — As gotas de diamantes do meu
vestido eram lágrimas verdadeiras. São daqueles que matei.
O sorriso de Ariella brilhou na meia luz da sala:
— Aí está meu Diabo.
Amelie tentou não sorrir, satisfeita.
Ela agradeceu às Estrelas por ter uma carta número cinco para
jogar em sua primeira rodada, para entender como esse jogo
funcionava.Ela suspirou internamente. Não precisava se preocupar.
— Seis. — Ariella lambeu os lábios e Amelie a assistiu, vidrada.
— Duzentas e setenta e três pessoas trabalham nesse circo. Todas
são jogadores que deram suas vidas a mim e que perderam. Mas
não se preocupe — ela voltou a fitar Amelie —, apenas minhas
favoritas trabalham comigo.
Foi então que o coração da garota Étoile travou. Duzentas e
setenta e três pessoas. Sua família tentava há gerações, mas o
circo só aparecia de tempos em tempos. Ela suspeitava que vinte
garotas Étoile tentaram ganhar. O número de perdas era pequeno,
pensando assim.
Mas duzentas…
Seu lábio tremeu. Ela se xingou internamente.
— Sete — Coelho falou, sua voz mais energizante. — Minhas
máscaras são meus bens mais preciosos. Todas foram feitas de
animais que eu mesmo talhei depois de conquistar um território. São
prêmios de batalhas.
— Fato interessante — Ariella sorriu antes de semicerrar os
olhos. — Pena que está mentindo.
Amelie parou de respirar. Mentindo? Não, não havia nada de
errado em seu corpo. Ele não tinha pernas bambas ou mãos
suadas. E como ela não podia ver seu rosto, não havia...
Sua voz. Sua voz não era a mesma rouca e loucamente suave.
Ele falara de maneira diferente, chamando atenção para si. Uma
tentativa de blefe?
— Sua carta não é a sete, Louco. Mas agradeço por ter me
presenteado com uma verdade mesmo assim.
Ariella estalou os dedos. As velas arroxeadas do circo piscaram
por um momento. O silêncio que dominou a tenda não parecia
natural. Amelie trincou o maxilar.
A cartomante batucou os dedos em suas cartas e perguntou:
— Máscaras, Louco? Quantos territórios conquistou?
E então o rosto de Coelho mudou por completo. Sua máscara
desvaneceu, e por trás havia um rosto velho, arredondado e
avermelhado. Ele franziu as sobrancelhas.
— Do que está falando? — ele perguntou.
Ariella sorriu mais ainda.
— Eu te avisei sobre disfarçar bem, peço desculpas mesmo
assim por ter roubado sua verdade — Ariella sorriu como se não se
sentisse culpada. — Mas você ainda tem mais chances. Ninguém
está prestes a ganhar.
Amelie olhou para suas doze cartas restantes. Ela não
imaginava que Ariella roubaria as memórias – os fatos – daqueles
que estavam mentindo. E ela ainda queria fatos que valessem a
pena… Amelie não sabia até que ponto estava disposta a se
arriscar.
E se arriscasse sua missão e perdesse? Havia sorte envolvida
em seu jogo, sorte que forapredeterminada por Ariella enquanto ela
distribuía as cartas para todos os jogadores. Seu coração foi para
sua boca, prestes a pular para fora. Por algum motivo estúpido, ela
não conseguiu controlá-lo da maneira que precisava.
Quando chegou sua vez, ela não conseguiu fazer suas mãos
pararem de tremer nem mesmo quando disse a verdade. Seu fato
sobre suas primas serem jogadoras anteriores não foibem-visto por
Ariella, mas quando revelou que não sentia remorso por ter matado
Camille, ela ganhou um aceno de cabeça da mulher.
As rodadas continuaram, e todos apostavam suas cartas e seus
fatospessoais. À medida que as cartas se chocavam contra a mesa
e o jogo ganhava ritmo e intensidade, os fatos pioravam. Ariella
revelava coisas dos jogos anteriores que arrepiavam os pelos de
Amelie. Coelho falava sobre sua família e sempre parava para
pensar quando mencionava de que território vinha. Pele de Estrelas
era cauteloso, seguro, e sempre revelava algo relacionado à sua fé.
— Quatro. — Ariella jogou sua carta. — A magia do circo é tão
antiga quanto os deuses. Quando eles criaram o mundo, as Estrelas
abençoaram suas filhas e… outros me abençoaram. Para todo o
sempre.
Estrelas. Benção.
Duas palavras que também faziam parte da história de Amelie.
O jogo continuou. Coelho acusou todos, inclusive Ariella, pelo
menos duas vezes. As cartas do centro da mesa iam para ele, e por
mais que isso pudesse ajudá-lo a descobrir quem estava mentindo –
já que tinha todas as cartas usadas – isso o colocava numa
desvantagem. Ele perderia.
Amelie acusou Pele de Estrelas uma vez. Ela estava certa. Não
sentiu remorso ao vê-lo se esquecer de seu trabalho, mas sim uma
brisa gélida que a perguntava se valia mesmo apena jogar se ela se
esqueceria de quem é.
E quem é você?, ela sentia as palavras navegando pelo seu
corpo.
— Dez. — Amelie colocou sua penúltima carta de mãos suadas
e olhos levemente arregalados. Ela limpou o suor de sua testa que
grudava em sua franja. Além da carta que jogara, sobrara apenas
um valete. — O Fundador de minha família foi preso em uma carta.
E foi você quem o colocou lá.
E apenas você pode tirá-lo de lá.
Antes de O Enforcado ser uma carta, ele era um homem.
Benevolente, justo e estupidamente ingênuo.
Então quando os astros o abençoaram com o dom de localizar
tudo que um dia foraperdido, ele jurou ajudar o mundo. Era simples:
olhava para as posições das Estrelas, que viviam em constante
movimento, e decodificava o mistério das perdas.
O Fundador passou sua magia para seus descendentes e os
batizou com o nome das Estrelas.
Étoile.
O tempo passou e a ganância da família cresceu. Não
trabalhavam mais para o mundo, e sim para seus bolsos. Quando
tal ganância ultrapassou limites inadmissíveis, um Étoile cruzou com
a cartomante errada.
Ariella.
E ela puniu O Fundador em nome de todos. Para que seu dom
não caísse em mãos erradas, as Estrelas drenaram de seus
descendentes a magia que um dia haviam compartilhado. Todos os
Étoile que tentaram usar uma mísera gota de seus dons
encontraram erros. Lugares que não existiam, objetos em cantos
opostos dos mundos.
As Estrelas tornaram-se mentirosas.
Mas então Amelie nasceu, e trouxe consigo uma segunda
chance.
— Estava pensando quando você revelaria sua missão. Suas
primas foram mais descuidadas com o fato. Algumas até mesmo
largaram o jogo e se ajoelharam pedindo ajuda.
A imagem de garotas Étoile ajoelhadas para Ariella feza garota
ver vermelho.
Mas ela agradeceu mentalmente à sua inteligência por ser
esperta o bastante para dar um bom fato e distrair a dona de sua
mentira. Ela havia jogado um coringa.
Ela havia mentido.
E não fora descoberta.
É sobre distração.
Amelie respirou fundo e voltou sua atenção aos outros
jogadores.
Apenas ela e Ariella possuíam uma única carta.
Uma carta a separava da vitória.
Quando mais uma rodada chegou ao fim e Amelie precisava de
um Ás, ela mordeu o interior de sua bochecha e tentou não
arregalar os olhos. Se perdesse agora, não teria mais cartas que
Coelho, mas perderia sua liderança. Ela não duvidava de que todos
estavam mais afetadospelas consequências do que demonstrariam,
e jogadores medrosos eram jogadores descuidados.
Pense, Amelie.
Uma Étoile com a benção das Estrelas sempre tem uma carta na
manga.
Ela já havia usado seu fato como distração uma vez e duvidava
que tal estratégia fosse funcionar novamente. alvez...
T
Amelie tentou não arregalar os olhos.
Sim.
Havia uma coisa, uma única coisa que sua inteligência poderia
presenteá-la. Uma coisa benéfica para ela, por mais que houvesse
sua chance de perder.
Algo que não faria falta.
Algo que Ariella não só aceitasse, mas apreciasse.
Um risco, um que ninguém havia feito antes.
Óbvio – mas apenas para os loucos.
É pela sua família.
É para mostrar que estava pronta.
É para você, que é especial e tem a chance de provar.
Então ela deu tudo de si.
— Ás — Amelie mentiu. — E eu aposto meu medo.
Ninguém havia apostado algo tão abstrato quanto o medo, mas
pelo pouco tempo que passara com Ariella, a garota percebera que
a dona do circo gostava de riscos. Seu olho violeta piscou com
malícia.
Amelie não era medrosa. Não precisaria de algo tão trivial
quanto seu medo em um jogo.
Sem o medo de perder, ela poderia jogar livremente, sem se
descuidar como os outros jogadores.
Era o plano perfeito.
— Não sei se quero tirar seu medo de você, Amelie — Ariella
puxou a mão da menina e a apertou. — Gostaria que ficasse até a
próxima rodada.
Mas então Coelho, que tinha mais cartas e foi descoberto em
mais mentiras, abriu a boca quando a oportunidade chegou:
— Mentira! Você está mentindo. Tenho o último Ás que não foi
jogado.
O coração de Amelie pulou para fora de seu peito.
Mentira.
Mentira.
Mentira.
Era o plano perfeito.
Até não ser.
Fitando a garota Étoile com curiosidade, Ariella estalou os
dedos.
— O problema, minha querida Amelie, é que eu sempre tiro mais
do que você dá. — A voz da cartomante dançou em seu ouvido
enquanto o mundo girava e a mente de Amelie embaçava. — Você
é mais medrosa do que pensa, só teme pelas coisas erradas. Não
tem noção do que acaba de me entregar.
Amelie piscou.
Toda a tensão de seu corpo e mente se dissipou. Seus ombros
relaxaram e suas pálpebras caíram. O tremor a abandonou e nem
mesmo as correntes em seus pés a puxavam para baixo. A leveza
tomou conta de seu ser e ela poderia rir.
Baralho?
Ela amava baralho!
— Você não precisa se preocupar com mais nada, Amelie —
Ariella continuou sussurrando. — Apenas relaxe.
Amelie sorriu abertamente, sem entender por que antes suas
mãos estavam suadas ou por que seus ombros estavam quase
encostando em suas orelhas. Ela riu quando pegou todas as três
cartas que haviam sido jogadas naquela rodada.
As cores da tenda vibraram e ganharam vida, e ela podia jurar
que o mundo dançava ao ritmo de seu coração.
— É verdade. Era um valete!
Um dia você ganhará, ela ouviu alguém dizer. E provará para o
resto da famíli a o motivo de ter sido a escolhida das Estrelas. De
carregar o tesouro em suas costas. Um dia.
Mas em vez de sentir uma dor latejante em seu peito e contrair o
maxilar para não refutar, a garota chutou a lembrança para longe.
E daí?, ela queria perguntar. E se eu não precisasse provar? E
se eu só for, sem justificativas?
Amelie deu uma risadinha:
— Eu sou especial!
A mesma armadura de antes, moldada por sua ambição,
despedaçou-se com um suspiro. Não havia motivo para Amelie
temer suas falhas marcadas por seu perfeccionismo ou temer o
segundo lugar – não havia ninguém lá.
O mundo à sua volta girou mais uma vez e os pensamentos da
garota embaralharam.
Ela tinha cor em suas bochechas ao saber que estava sendo
assistida pela mulher de olhos coloridos, mas isso não importava.
Nada importava. Era um jogo!
E Amelie poderia jogar por si mesma.
— Curioso — Ariella murmurou. — Nunca tirei algo tão
fundamentalquanto o medo. Você ainda não voltou à realidade, não
é mesmo, garota Étoile?
Ela ficou presa em seus pensamentos e precisou de alguns
segundos para ouvir Ariella. E quando se virou para a cartomante,
não sabia por que algo dentro de si pedia que ela tomasse cuidado.
Era como se antes houvesse algo que a puxasse de seus próprios
desejos. Mas agora… ela estava livre.
Ariella era legal e inteligente e bonita e…
E estava jogando com ela!
Amelie jogou cartas para o ar e esperou que uma caísse em sua
mão. Reprimiu uma risada quando ninguém tentou ir contra ela por
quebrar as regras. Ela perdeu noção do tempo, apenas sentia seu
coração animado e suas bochechas coradas e o olhar de Ariella e…
— Seu último fato, Amelie?
— Dama! — Ela jogou sua carta escolhida e sua voz ganhou um
tom de cochicho. — Tenho um tesouro em meu corpo e sei que você
está atrás dele.
Quando Amelie nasceu, a surpresa de sua família foi maior do
que sua alegria. A pequena bebê nascera com uma constelação de
pintas em sua pele clara. O que parecia coincidência provou-se
destino. Ela tinha o talento e o dom de olhar para o céu e ouvir os
astros. Ela era mágica.
As Estrelas escolheram a garota Étoile e marcaram um mapa em
suas costas, um que levaria a família àquilo que tudo sonharam.
Diziam que era o tesouro do Fundador, o mesmo que Ariella havia
prendido em uma carta.
E encontrariam o tesouro se analisassem o mapa de Estrelas
nas costas da garota.
O Pintor. A Lira. O Lince. Três constelações antigas que se
esconderam ao longo dos anos.
Com Estrelas vivas em um céu que nunca era o mesmo, navegar
através de constelações seria quase impossível. Apenas uma Étoile
conhecedora dos céus conseguiria falar a língua das Estrelas e
encontrar suas constelações do passado. Apenas Amelie, que
finalmente restaurara um pouco da magia de sua família.
Para nunca perder o mapa, sua família costurou diamantes em
cada marca de pintas, assim nunca se distorceria ou clarearia.
Amelie não chorou com a dor.
— É o mapa que está em minhas costas, e só eu consigo
decifrá-lo!Minha famíliaqueria encontrar o tesouro antes que minha
vez de jogar chegasse, mas eles não sabem que eu vim esse ano!
Achavam que seria só ano que vem — ela riu com a loucura,
lágrimas escorrendo de seus olhos. — Eu fugi! Vim provar que
consigo! Que não fui escolhida por acaso. Que sou especial e que
vou ganhar e voltar com o mapa intacto. Mas eu… — ela piscou,
como se tivesse se esquecido do que falaria. — Eu acredito. Então
nada mais importa, não é?
Ela arfou quando terminou seu discurso.
Pele de Estrelas e Coelho não conseguiam encará-la nos olhos.
— Uma dama nunca exploraria seu tesouro sem pedir
permissão. — Ariella lambeu os lábios. — Obrigada por oferecê-loa
mim ao assinar seu nome no contrato.
— De nada!
Pele de Estrelas jogou sua última carta e Amelie não sabia por
que precisava se preocupar. O que aconteceria se ela perdesse?
Era apenas um jogo sem noção. E o cara ao seu lado parecia ser
legal o bastante para ganhar.
— Rei. As últimas palavras de minha filha foram “ajuda”. E eu
não pude ajudá-la. Quero que você a ressuscite.
Ninguém da mesa ousou contrariá-lo. Amelie fez um bico.
E então percebeu…
— Eremita é o vencedor — Ariella anunciou e a garota Étoile
bateu palmas. — Quantas cartas você tem, Louco? — ela perguntou
para o Coelho que, por algum motivo, não tinha mais máscara.
O que havia acontecido? Sua memória estava um pouco
embaçada e ela não sabia como limpá-la. Os detalhes dos jogos
misturavam-se uns aos outros.
Ele tinha tantas cartas que nem conseguia contar. Amelie tinha
três.
Coelho abriu a boca para falar.
— Louco, estou cansada de você — Ariella falou e estalou os
dedos.
Ele caiu morto na cadeira sem nem mesmo piscar.
Amelie arregalou os olhos e começou a rir.
Amelie tinha um sorriso digno de um bobo da corte estampado em
seu rosto. Ela deu uma risadinha baixa quando a sala se
transformou. Pele de Estrelas e Ariella a olharam com mais
estranheza do que curiosidade.
A tenda continuava escura, com as mesmas velas, e as pontes
estavam de volta. Apenas duas.
Em cada ponte, havia uma corda. Uma corda grande, dourada e
com um nó bem amarrado.
Os assistentes de Ariella levaram os dois jogadores até elas, e
não demoraram a enlaçar seus pescoços. A corda pinicava e ardia,
mas Amelie estava animada para ver até onde esse jogo a levaria.
A cartomante voltara para um pano vermelho, pendurado à
frente das duas pontes. Ela girou delicadamente de um lado para o
outro.
— Forca — Ariella anunciou. As presilhas de seu cabelo
ilustravam cordas. E não era apenas isso, as próprias roupas
haviam mudado. Todos estavam cobertos por uma tinta dourada que
escorria de seus corpos como sangue e vestidos com corseletes
dignos de realeza. Enquanto o Eremita possuía um capuz, Amelie
apalpou a tiara que ornamentava sua cabeça.
Chifres.
O Diabo.
As cores continuavam vibrantes e as palavras de todos ao seu
redor caminhavam com um eco bem-vindo. As bochechas de Amelie
queimavam cada vez mais e seus olhos tinham um brilho opaco que
a impedia de focar.
Você ainda não voltou à realidade, não é mesmo, garota Étoile?
O mundo girou mais uma vez e os pensamentos da garota
evaporaram.
Amelie deu uma risadinha boba.
— Quem acertar a palavra, ganha — Ariella explicou.
Uma brincadeira de criança. Amelie juntou seus lábios em um
bico desconcertado. Ela não conseguia se lembrar, exatamente,
mas achava que nunca tinha jogado tão livremente quanto agora.
Algo a controlava quando estava com sua família, como se seu
corpo fosse uma marionete e as cordas pertencessem aos outros
Étoile. Algo fazia seu coração tremer de agonia. Todos esperavam
algo dela. Queriam que ela ganhasse.
Então ela não tinha tempo para brincar tão livremente como uma
criança.
Algo aconteceria se ela perdesse, mas agora ela não tinha muita
vontade de pensar no quê.
A corda em seu pescoço coçou mais um pouco.
— O vencedor do jogo anterior começa.
Ao lado de Ariella, dez cubos apareceram. Eles eram escuros e
vazios, esperando para serem ocupados por letras.
Pele de Estrelas parecia mais incomodado do que Amelie com a
corda em seu pescoço. Ele começou pelas vogais, e Amelie bateu
palmas ao ver que ele acertou. O último cubo brilhou na mesma luz
roxa que as velas da tenda. A letra A piscou com drama e certeza.
— Pode continuar até errar, Eremita.
Amelie não deveria achar isso justo. Algo dentro dela mandou a
garota reclamar, mas ela não via motivo para fazê-lo. Era apenas
um jogo.
Ele continuou com as vogais, mas escolheu a letra errada.
— Sem E, Eremita. Diabo?
— I! — a garota gritou, tentando não dar pulinhos de animação e
falhando miseravelmente. A corda contraiu seu pescoço e ela tossiu,
ainda rindo. Três cubos brilharam da mesma maneira extravagante
de antes; o segundo, o sétimo e o nono. — O! — ela gritou
novamente e bateu palmas quando o quarto cubo piscou. — U! —
Ela jogou mais uma vez, sem pensar em conectar as letras e acertar
as palavras.
Nenhum cubo brilhou.
Outro bico preencheu os lábios da garota. Amelie bateu o pé,
mas voltou a rir logo em seguida.
— Eremita?
Ele respirou fundo, olhando de soslaio para Amelie, como se
ponderando todas as suas escolhas:
— H. — Sua voz estava destemida, mas ainda assim, calma.
O primeiro cubo brilhou.
A corda apertou ainda mais o pescoço de Amelie.
O rosto de Ariella se transformou. Ela tinha um sorriso peculiar
em seus lábios, e seu olho violeta escondia uma felicidade quase
intangível. Essa felicidade cresceu ao fitar Amelie.
— Você arrisca a palavra, Eremita? — Havia um brilho predador
no rosto de Ariella, na maneira como seu corpo se erguia e suas
mãos se uniam em frente ao seu corpo. Na maneira em que falava
com o homem, mas mantinha seus olhos na Étoile.
— Hipocrisia — Pele de Estrelas anunciou. Uma emoção inédita
abraçava seus olhos. Orgulho.
O mundo parou, por um momento.
Mesmo sob o véu fantasioso que cobria a garota, Amelie sentiu o
silêncio arrepiando seu corpo. Ela conseguia ouvi-lo. Esticou seus
dedos, como se pudesse entrelaçá-lo no vazio da tenda. Os lábios
da garota se entreabriram e ela pôde ver um suspiro saindo de si.
E então o brilho dos cubos ganhou tamanha intensidade que os
olhos de Amelie arderam e lacrimejaram.
Hipocrisia.
Pele de Estrelas soltou o ar e seus ombros caíram. Ele veria sua
filha e…
A ponte de Amelie virou pó.
Seus pés perderam o apoio.
Nenhum instinto controlou seu corpo desgovernado.
Amelie apenas caiu.
E continuou caindo.
E caindo.
A corda de seu pescoço a puxou para cima. Os fiapos
arranharam a área sensível. Uma vermelhidão constante crescia em
sua pele. Sua garganta fechava. Seus olhos encheram-se de água e
ela não sabia dizer por quê.
Amelie ficou pendurada, girando pelo abismo da tenda. Ela não
conseguia respirar, o que a impedia de rir. Seu pescoço doía, como
se não estivesse totalmente anexado ao resto de seu corpo. Sua
visão embaçava. Seu rosto inchava.
Algo estava acontecendo.
Ela suava.
Seu corpo pedia para que ela se debatesse, mas…
Por quê?
— Você nunca acertaria essa palavra, Diabo. Sabe disso, não
sabe? — Ela ouviu uma voz familiar, mas sua mente escurecia e ela
não conseguia identificá-la. — Ela foi feita para você, minha
preferida. É, francamente, a melhor Étoile que passou por aqui.
Amelie gostou do elogio.
— Você não precisa morrer como os outros, Amelie. É só pedir
por favor.
Ela mal percebeu como seu coração batia mais lentamente e
pensar tornava-se mais difícil.
— Achava que morreria se perdesse, não? E não precisaria lidar
com a desonra. Com a vergonha. Consigo mesma. — Ariella
acariciou a bochecha da menina e se aproximou. — Você é egoísta
a ponto de morrer para não me dar o que quero? Só quero o mapa
de suas costas. Quero que você o interprete para mim. — Ela juntou
suas testas. — Peça “por favor”, Amelie. Liberte-se. — Um sussurro.
Um mapa. Era isso que Ariella queria esse tempo todo?
Poderia ter dito antes.
— Você me disse que era diferente. Prove.
Amelie Étoile pensou um pouco antes de responder. Uma
barganha justa – ela precisaria ajudar Ariella a encontrar algo que
desejasse, e assim sairia desse abismo.
Então por que Ariella a olhava como se ela estivesse prestes a
cometer o maior erro de sua vida?
A corda apertou ainda mais seu pescoço e Amelie foi tomada
pela tontura.
— Por favor — ela sussurrou com a força que tinha.
O suspiro aliviado de Ariella contraiu o estômago da Étoile.
— Boa garota — a cartomante sorriu e afastou suas testas. —
Acho que está na hora de você receber seu medo de volta, não?
Ariella estalou os dedos.
O aperto de seu pescoço sumiu.
E o sorriso de Amelie também.
Ela arregalou os olhos ao sentir todos os seus membros
amarrados na mesma corda da forca, menos seu pescoço.
Continuava pendurada no abismo, com Ariella em sua frente. Ela
usou toda sua força para tentar se desprender do aperto, mas
quanto mais se debatia, mais forte as cordas a apertavam.
Não não não não...
— Eu quero o mapa de suas costas mais do que quero você —
Ariella murmurou, subitamente em seu mesmo pano vermelho de
sempre.
Onde estava Pele de Estrelas? Onde estava Amelie?
Ela deveria estar morta. Morta.
Onde havia falhado? Ela nunca fora medrosa e…
Ah.
Ah.
Amelie não saberia dizer, exatamente, quando seu medo se
transformara em ambição. Quando os dois entrelaçaram as mãos e
uniram-se como uma barreira que a protegeria de seu próprio
perfeccionismo. Só sabia que a barreira quebrara e que ela perdeu.
Perdeu.
Amelie perdeu.
— Minha família. Minha família virá atrás de você e...
— Igual vocês vieram atrás das outras garotas? Não, Amelie,
você está sozinha. Sempre esteve.
As mãos de Ariella juntaram os lábios de Amelie e eles colaram,
sem deixar com que as palavras saíssem de sua boca. Ela passou
seus dedos experientes pelo vestido de Amelie até encontrar o que
desejava em seu decote. Ariella deixou a carta do Diabo cair pelo
abismo.
O Fundador das Étoile estava inexpressivo quando Ariella tocou
em sua carta.
Ele não sorria. Não piscava.
Estava imóvel.
Como uma carta.
— Olá, meu amor — ela sorriu, traçando o contorno de seu rosto
bonito. O Fundador mal respirava. — Sua querida perdeu. E a
família fez questão de deixar o mapa com seu tesouro nas costas
dela.
Com sua boca presa, Amelie só pôde assistir.
Eu sou especial, ela quis retrucar.
Eu sou especial, ela quis justificar.
Eu sou especial, ela quis acreditar.
— Queria que você estivesse aqui para ver esse momento. Sua
garota me levará até seu tesouro. — Ariella soltou a carta e ela
flutuou no ar. Como se estivesse dividida em cinzas, a carta se
desprendeu em pequenas partículas. O Fundador piscou mais uma
vez. Estava… desapontado? Amelie engoliu em seco.
Ariella continuou:
— Mas você primeiro encontrará a próxima garota Étoile que
perderá. E assim será, até o fim dos tempos. A punição que você
merece.
A carta desapareceu.
Não.
Em que um vencedor se transforma depois de sua primeira
perda?
Talvez ela realmente fosse uma Étoile. Uma perdedora, como
todas as outras.
— Eu lhe dei o Diabo por um motivo, Amelie — Ariella
murmurou. — O impedimento que não a deixava voar… era você
mesma. Era seu medo mascarado de ambição. Mas agora, eu te
libertei.
Com um estalo de dedos, Ariella soltou os lábios da garota.
A Étoile cuspiu.
— Me libertou? — Amelie grunhiu. — Você tem a minha vida!
— E o que vale sua vida, Amelie? Uma vida triste de uma garota
mimada que morre de medo de não a acharem tão especial quanto
dizem. Porque é isso que teme, não? Um medo tão enraizado em
seu ser que mal sabia nomeá-lo.
Amelie não conseguiu responder.
— Um dia você me agradecerá por isso. Por ter te empurrado
das tradições conservativas dos Étoile. Por te dar um vislumbre do
que é viver sem medo de ser quem é, sem expectativas. Um dia.
Amelie se debateu e Ariella se aproximou mais uma vez,
acariciando sua bochecha. Uma garota Étoile com lágrimas nos
olhos, amarrada a uma tenda que ninguém nunca encontraria. Uma
perdedora. Uma mimada e egoísta garota que não sabia o que fazer
agora que não teria uma segunda chance.
Mas você tem uma segunda chance, uma voz dentro de si
ganhou vida. Ao lado dela.
Vingança.
Vingança.
— Fim dos tempos. — Ariella juntou suas testas e um brilho
malvado tomou seu rosto. — Acho que estaremos juntas até lá,
pequena Amelie.
Uma garota com rosto de coração e olhos grandes parou em frente
ao circo iluminado. Não havia nenhuma Estrela no céu, mas elas já
haviam fugido há muito tempo. Ela juntou os lábios.
Tinha borboletas presas em seus cabelos e em sua pele,
borboletas feitas de cartas. Havia uma especial, presa em seu
pescoço, que lhe chamava atenção.
Era um homem alto e esguio, com cabelos que caíam em seus
ombros. Ele vestia um terno azul-marinho com o tom de um céu
noturno, acompanhado de Estrelas repletas de segundas intenções.
Sua pele amarelada cheia de sardas destacava-se no fundo escuro
da carta, rodeado de vigas entortadas e rosas cor de sangue. O
homem permanecia de ponta cabeça, pendurado pelos pés, e não
pelo pescoço.
Mas o que mais chamava a atenção da garota era seu sorriso
decepcionado.
Isso e o fato dele piscar de vez em quando.
A próxima garota Étoile respirou fundoassim que o circo noturno
abriu suas portas para ela. Ela endireitou as costas, ergueu o
queixo, abriu um sorriso confiante.
E se preparou para ganhar.
Arque, eu nem sei por onde começar. Talvez tudo tenha começado
quando eu curti seu post – você sabe bem qual é. Ou quando você
me ajudou com Trocadas. Ou quando você me chamou pro
CallMeGringo e me ofereceu o mundo. Você continuou do meu lado
depois de todo esse tempo. E você acreditou em mim e na Amelie.
Um obrigada é muito pouco, mas pelo menos é um começo. Amo
você.
Pai, obrigada por escolher o pula-pirata e depois ficar surpreso
em como eu distorci sua ideia e fiz essa coisa macabra. Mãe,
obrigada por me lembrar de que eu tinha que sair para viver antes
de escrever. Stark, obrigada por ser meu cãopanheiro de escrita.
Leleco, obrigada por não me mandar ficar quieta quando eu pedi
ajuda para explorar os acontecimentos de cada jogo, mesmo que eu
tenha tido que me vender como sua massagista oficial em troca.
Ontem você me disse que ia aparecer nos agradecimentos de
qualquer jeito porque era meu irmão. E você tava certo, trouxa. Amo
vocês.
Aline, Carol e Biju – vocês estavam lá desde o início e eu não
posso deixar de agradecer.
Betas, vocês foram surreais! Apontaram coisas que eu nunca
perceberia e me ajudaram a polir essa ideia maluca. Obrigada por
serem honestos e me dar a força para continuar.
Meninas da antologia, obrigada por me guiarem até esse conto
antes mesmo de eu entender onde ele ia parar.
Bienal – você me presenteou com novas amizades e com uma
vida que eu nunca imaginei que fosse possível. Se não fosse pelas
conversas de última hora sobre esse conto, eu nunca teria tido a
coragem de realmente correr atrás da Amelie e ouvir o que ela tinha
para me contar. Obrigada, e obrigada a vocês que estavam lá e me
ouviram falarsobre esse conto por mil dias seguidos (principalmente
Mari, Ma, Diogo, Rafa, Arque e Cora).
E por último, mas nem de longe menos importante…
Amelie,
Eu sei que você não é a pessoa mais bondosa do universo. Sei
que você se esconde por trás da sua ambição e que quer sempre
estar um passo à frente de todo mundo. Sei que surgiu de uma
parte minha que eu não queria olhar, mas você cresceu assim que
coloquei seu nome na página. E por mais que tenha terminado do
jeito que terminou, eu ainda acredito em você.
Olha só tudo o que você me trouxe. Olha como esses
agradecimentos estão lotados de gente!
Você fez isso.
Então eu vou seguir em frente e procurar por novas Estrelas no
céu.
Espero que algum dia você também consiga.
Obrigada.
Julia Brusco escreve desde os 13 anos e passa dias intermináveis
colocando no papel diálogos que habitam em sua cabeça. Entre
sonhos e rabiscos, ela cursa Escrita Criativa na University of
Victoria, no Canadá. Autora de Pe(r)didos e Trocadas, As Cartas de
Amelie é sua estreia na fantasia. Atualmente mora em São Paulo e
passa seu tempo sonhando com desenhos de animação e criando
trilhas sonoras para seus personagens.
Acompanhe @eraumavezju para mais novidades.

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