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A Torre do Relógio
No alto de uma torre, mas parecendo uma sombra do que qualquer outra coisa, um homem encapuzado
admirava os telhados salpicados de neve das casinhas abaixo.
-Erthel, sabia que estaria aqui. - disse uma voz feminina, em tom baixo, quase como um sussurrar. A mulher
não fazia questão de se esconder em sombras, o luar iluminou parte do seu vestido comprido e vermelho.
-Você, mais do que ninguém, deveria saber que gosto desse lugar. Os problemas ficam pequenos e as
pessoas insignificantes.
-Então, cansou-se de toda essa gente? - ela baixou o capuz, deixando que o cabelo caísse em ondas pelas
costas. Erthel pegou-a pela mão, e lamentou que o couro da luva impedisse o verdadeiro contato entre eles.
-Não. Casei-me dessa situação. Do medo constante de perder mais alguém. Ou de perdê-la. Também não se
cansas Alice?
-Não tanto quanto você. Mas é preciso. - os olhos dela viraram para outra direção, tinha que continuar
mentindo. Ela amava a vida que tinha. Amava o perigo constante em que se metia. - E os outros? Será que
também se cansam?
Alice sentou-se na beirada da torre, houve um movimento das sombras onde Erthel escondeu-se melhor. O
barulho de passos apressados veio até eles.
-Sua mulher espera um filho, Erthel. - não era uma pergunta. A voz pertencia a um homem de ombros
largos, o rosto estava marcado por profundas e grossas cicatrizes. Ele vinha acompanhado por mais duas
pessoas, um homem e uma mulher. O s três estavam parados do outro lado do sino. - Minha mulher
também espera um criança, e a de Petride... - o homem apontou para seu companheiro sem conseguir
terminar a frase.
-Posso apostar que logo saberemos que Alice e Ofélia também esperam dessas graças...
-Se você precisa de uma certeza, posso lhe dar uma, Yurith. - interrompeu Alice sem tirar os olhos dos flocos
de neve, que caiam lentamente, rodopiando até o chão. -Se eu estiver esperando uma criança... a matarei
antes que nasça.
-Não sabe do que está falando. - Ofélia adiantou-se até a beirada da torre, tendo o cuidado de não
aproximar-se demais. -Só falta você a ser contemplada com esse presente divino, que os Deuses nos
permitem ter.
-Não diga asneiras, Ofélia. De divino este presente não tem nada.
Os cinco de silenciaram, Ofélia se distanciou de Alice com repulsa, fazendo os cabelos ruivos balançarem
com o vento. Ninguém ali tinha coragem de se encarar.
-O silêncio não resolve nada. Temos que discutir! - exclamou Petride. -Temos que falar sobre o assunto.
Alice? Por que não diz nada? Por que vocês não ficaram surpresos com as notícias? Apenas as receberam...
-Yurith e Petride, fico feliz e triste por você, assim como fico feliz e triste por mim e por Ofélia. Só nós
sabemos a dureza que teremos que enfrentar quando essas crianças crescerem. Alice tem sorte por não ter
essa preocupação em sua cabeça. - confessou Erthel com tristeza, desviando o assunto da pergunta de
Yurith.
-Não quero ser mãe de uma criança amaldiçoada. - foram palavras vagarosas que saíram entre os dentes de
Alice.
-Alice tem razão. - interrompeu Petride, virando as costas para seus irmãos de maldição. -Essas crianças
serão como nós. Suas vidas serão destruídas. A vida de suas famílias serão destruídas, assim como as nossas
também foram. Nossos pais jamais tiveram coragem de acabar com esse círculo vicioso.
Erthel saiu das sombras, deixando a mostra metade de um rosto destruído, onde um arranhão o distorcia da
orelha ao queixo. os lábios carnudos e repuxados ligeiramente para baixo estavam retorcidos pela amargura
eterna. Os olhos vermelhos passaram por cada rosto presente.
-Vamos virar as costas para essa Irmandade. -Alice suspirou com pesar. -É isso que Petride sugere. Que nos
acovardemos.
-Eu não me importaria de concretizar tal sugestão. Não somos os melhores amigos que deveríamos ser. - foi
apenas um pensamento vago que escapou entre os lábios finos de Ofélia, mas todos sentiram que tal fato
era uma verdade incontestável.
-Então, será assim? - Alice tentou não demonstrar fraqueza em se perder sem aquela Irmandade.
Ela fingia que os detestava. Fingia que todo o poder que herdara era uma herança que sobrava aos tontos.
Tudo aquilo, todo sentimento, todas as lutas, a faziam fascinar-se por seu dom a cada dia um pouco mais.
-Se todos estiverem de acordo, não passaremos esse carma aos nossos filhos. - decidiu Ofélia.
As cabeças balançaram lentamente, confirmando uma união que destruiria com os sonhos de Alice.
Ela colocou-se de pé e partiu sem dizer uma palavra ou sequer dar um último suspirar de desgosto.
-Você não a conhece tão bem assim. Ela é a melhor em tudo o que fazemos. Principalmente em mentir. -
falou Petride puxando o capuz da capa, deu um aceno com a cabeça rápido para os outros companheiros e
sumiu atrás das sombras de Alice.
-Não se preocupe. - Ofélia andou até Erthel, acariciou seu braço amigavelmente. - Ninguém nunca chegará a
conhecer Alice. Entre nós, ela é aquela que mais age como um Monstro. Os Deuses não existem dentro dela.
-Eles também não existem para ela. - completou Yurith.
-Alice! Alice! - Petride chamava enquanto a perseguia pelas ruelas cobertos de neve. Vislumbrou pelo canto
do olho os três vultos que os observavam do alto da torre de pedra. - Alice! - ele correu, parando em sua
frente.
-Todos me traíram! - exclamou ela. - Traição não é permitida em Arcarius. - a última frase soou como uma
repetição autoritária.
-Entramos em um acordo, onde foi à minoria. Admita Alice, você perdeu.
Ele segurou os ombros dela. A cabeça de Alice pendeu para frente num gesto derrotado. Não havia mais
nada a fazer, a votação tinha sido justa.
-É, eu perdi. Essa Irmandade não funciona com um membro só. Do que irá me servir tudo o que aprendi?
Contra quem irei lutar?
Petride puxou o queixo dela para cima, os olhos vermelhos estavam cobertos por uma camada de lágrimas.
-A pior luta de todas é aquela que travamos contra nós mesmos. Esta luta você nem sequer começou!
-exclamou Petride.
-Lutar conta mim mesma? - Alice ironizou, transformando toda a dor da derrota em raiva.
-É hora de deixar que esse monstro que existe dentro de você seja controlado.
-EU NÃO SOU UM MONSTRO! - Alice gritou jogando Petride longe. -Se existe algo de ruim em mim, culpe aos
Deuses!
-Alice! - ele chamou-a.
Os Deuses nada haviam de ter feito para torná-la daquela forma. Foram as pessoas que a deixaram assim. A
loucura que tanta responsabilidade incumbia. O medo de perder a própria vida enquanto precisava respirar
o cheiro dos cadáveres que se empilhavam nas trincheiras. Deuses nada tinham haver com aquela
insanidade. A culpa era dos homens que não resistiram aos pecados criados por criaturas tão malévolas e
traiçoeiras.
Alice correu até ele, comprimindo-o contra a parede de uma casa, a fina camada de cimento caiu por sob
suas cabeças.
-Torne a me procurar, e irei matá-lo. Já não fazemos parte de uma Irmandade.
O farfalhar das capaz foram abafadas pelo vento gelado da noite.
Alice seguiu seu rumo incerto.
E Petride seguiu o caminho tão conhecido para o lar. Seu esconderijo não-secreto.
Dias, semanas, meses se passaram, as crianças nasceram fortes e encantadoras. Berraram para vida com
vontade. E antes que pudessem ter noção do mundo a sua volta ou do que poderia ser a pequena marca que
carregavam, sumiram. Cercadas por misteriosas mortes e casas destruídas.
Numa noite estrelada, uma mulher encapuzada passou pelas ruas escuras e frias da cidadela, a neve
rodopiava em volta de seus calcanhares. O inverno era rigoroso à noite, e nenhuma pessoa esperta o
suficiente se arriscaria por aquela friagem; a não ser aquela mulher que trazia pendurado no braço um
grande cesto de vime.
Ela entrou por um beco e socou compulsivamente a terceira porta a direita na escuridão.
-Sim? - Petride abriu a porta, desconfiado, a mulher baixou o capuz, olhando temerosa para os lados. -Alice!
- surpreendeu-se ele. - O que foi que aconteceste?
Sem esperar por convite, Alice entrou no casebre, tendo o cuidado de colocar a cesta em cima da mesa. Ela
olhou em volta, as paredes falavam, sussurravam seu nome. Gritavam a sua traição.
“-Alice! Traidora! Traiçoeira! Alice! Mentirosa! Alice!...
“-Alice...
-Alice? - chamou Petride.
O ar gelado encheu-lhe os pulmões ao ser tragada para a realidade. Como podia estar tão frio? Ela havia se
acostumado com ventos gelados, mas aquele frio era insuportável. Os sussurros estavam enlouquecendo-a.
Ela queria que as vozes se calassem.
-Alice! - Petride a sacudiu.
-Já deve estar sabendo o que aconteceu com os outros. - ela recuperou o foco do que estava fazendo.
-Encontrei Erthel ontem...
-Como? - interrompeu Petride.
-Os olhos arregalados. Ele tinha olhos azuis... Azuis... E todos estavam mortos... Olhos azuis.
-E a criança?
-Desaparecida.
“-Vocês deviam protegê-las! Mentiram! Traíram!” - gritaram as vozes.
-Sim! Mentimos uns para os outros. Traímos-nos e por quê? Por um pecado tão doce quanto à vida. - gritou
Alice para as paredes.
Petride respirou fundo. As mortes, os desaparecimentos e até mesmo a loucura que Alice demonstrava já
lhe era conhecida. Ele se preparara para aquilo. Para próxima luta que travaria dentro dele.
A morte era o próximo passo a ser dado.
“-Mate a criança! Mate a criança!” - ordenaram as vozes para a Alice.
-Seu filho? – perguntou Alice esganiçada.
-Não podem achá-lo, se eu não estiver por perto.
-Querem que eu o mate. Que mate a todos.
-Quem quer, Alice?
-E a sua mulher?
-Está morta. A maldição a matou assim que nosso filho nasceu. - a mão de Petride desceu com violência
contra a mesa. Instantaneamente, um bebê começou a chorar dentro do cesto. -Alice?
Grosas lágrimas desceram pelo rosto dela.
“-Alice! Traidora! Mentirosa!”
-Eu menti. - confessou ela. -Queria proteger meu bebê.
“-Traidora!”
-Mas, Alice... O que você e Erthel fizeram... É pior do que traição. Você mentiu pra mim. Eu, a quem você
jurou lealdade e confiança. Você me traiu!
-Erthel... - sussurrou Alice. -Eu estou com medo.
“-Alice! Não se foge de uma maldição.
“-A morte é o que lhe resta.
“-Sua traidora! Suja! Imundícia da escória!
“-Indigna de confiança!”
Alice olhou desorientada para todos os lados, podia sentir mãos invisíveis a sufocando. Por que as vozes
gritavam? Ela recuou apavorada até a parede, tropeçou em direção à porta. As mãos eram fortes, estavam
puxando-a para longe. Os olhos dela continuaram abertos, lutando para ver o que seria sua última
lembrança da vida.
Os olhos levantaram-se na direção de Petride, ela não conseguia mais distinguir seus traços. Enxergava
apenas o borrão dos cabelos negros e dos olhos avermelhados.
-Não se foge de uma maldição. - sussurrou Alice deixando-se levar.
Petride correu para ampará-la, ao abraçá-la, sentiu que abraçava uma pessoa morta. Esforçou-se para não
pensar nela, as lágrimas lhe fugiram do rosto. O vermelho dos olhos, que a distinguiam como sua igual,
escorreram pela linda face delicada, revelando a verdadeira cor que os tinha.
-Nunca disse que seus olhos eram castanhos. - sussurrou ele para Alice fechando-os.
Ali, sentado no chão, abraçado em Alice, dando-lhe seu último momento de ternura, Petride rezou aos
Deuses por perdão, para que a perdoassem; era mais do que os outros da Irmandade tiveram, mais do que
até ele teria.
A criança espirrou de dentro do cesto.
Petride foi vê-la. Se fosse verdade o que Alice tinha dito, a criança tinha os olhos iguais aos de Erthel, mas os
cabelos... Os cabelos eram revoltados, volumosos e macios como os de Alice.
-O que vou fazer com você, sua pequena criatura?
Ele vestiu a capa e partiu carregando o cesto. Petride sabia o que as vozes diriam, e por mais que soubesse
que aquela criança era um desastre, ele não podia matá-la. Levo-a até uma casa conhecida do outro lado do
reino. Deu uma última olhada na criança que era amaldiçoada duas vezes.
Deviam ter escutado Alice.
Deviam ter continuado com a Irmandade.
A porta da casa se abriu, um homem o olhou assustado, Petride correu para a floresta, mas pode ouvir
quando o homem havia exclamado um audível “Generosidade dos Deuses!”.
O que faria o homem se soubesse que acolhia uma criança amaldiçoada?
Petride foi até o único lugar que ainda lhe restava para morrer em paz. Subiu até o alto da torre do relógio,
lembrando-se da última vez que estivera com a Irmandade ali. Ele leu seu diário com fervor, para aquietar as
vozes que se espreitavam pelas paredes.
Não queria morrer. Não queria partir e deixar seu filho para trás como uma página de um livro já lido.
“-Você a matou! Deixou que ela morresse para que pudesse ter um filho entre os braços. Traiu sua mulher
com o amor que sentia por aquela criança!”
A faixa alaranjada desenhou-se no horizonte, abrindo um leque de cores através do painel negro de pontos
brilhantes que era o céu à noite. Petride admirou o lento transformar dos flocos de neve em pó. Segurou o
punhal com força.
-Não se foge de uma maldição. - sussurrou ele e morreu.
"Espero que gostem do primeiro capítulo dessa aventura em outro mundo. Num lugar onde toda uma vida é
conduzida por Deuses, regras inquebráveis, traições... Com criaturas diferentes e personagens tão selvagens
quanto os animais."
2. De verde à vermelho
20 ANOS DEPOIS
-Como vamos encontrar alguém que nem temos certeza de que possa existir? - um jovem, de cabelos ruivos
e olhos vermelhos; armou o arco com a flecha, acertando o alvo de uma árvore distante.
-A Irmandade nunca se enganou. Irá achá-la, meu Senhor. E juntos, irão nos proteger. - encorajou um servo
de vestes negras.
-É a sua obrigação, Rafael!
Uma moça saiu das sombras, ela usava uma capa marrom com o capuz puxado por sob a cabeça. Ela
apontou uma arma para alvo, acertando os disparos cinco vezes seguidos.
-Leneonora, sempre um encanto tê-la por perto. Novo brinquedo do rei?
-A Irmandade precisa de seu talento para encontrar este membro perdido e você faz gracejo?
-A aldeia não é tão grande...
-E quem garante que esteja na Aldeia? Pode estar em qualquer lugar em Arcarius. - Leneonora andou de um
lado para o outro. -Somos amaldiçoados. Nosso propósito de nada serve senão estivermos todos reunidos.
-Senhor Rafael! Senhor Rafael! - outro servo apareceu por entre as árvores, ele arfava e apertava a mão
contra o peito.
-Sim?
-O conde Duvair deseja lhe ver. Convoca sua presença imediatamente.
-Por quanto tempo terei que aguentar convites desse velho? – a pergunta foi dirigida a Leneonora, cuja, os
olhos verdes faiscaram de raiva.
-Se tornar um monstro não é fácil...
-Não. – interrompeu Rafael. – Se tornar um monstro é muito fácil, você só precisa da motivação certa.
Ele atirou o arco e as flechas para um dos servos, antes que Leneonora o impedisse. Rafael desapareceu por
entre arbustos e folhas sem deixar um rastro. Os servos não se demoraram a segui-lo.
Um pássaro assobiou ao longe, mas seu canto foi encobrindo pelo alto ressonar do relógio da torre.
Leneonora correu pelo bosque, se arriscava demais indo tão longe da aldeia. O verão estava cada vez mais
sufocante ao meio-dia; ela correu até distinguir as primeiras casas. Misturando-se no meio de seu povo,
onde guardas não podiam vê-la.
Com os passos, secos e precisos; aproximou-se de seu destino. Um castelo recortou-se no céu azul. Era
magnífico, Leneonora não podia negar. As pedras rústicas e as altas torres lhe fascinavam desde criança.
Os grandes portões do castelo de ferro abriram-se para que ela passasse; uma criada correu em sua direção.
-Os guardas lhe procuraram por toda aldeia, Senhorita. Sua Alteza está em polvorosa agitação querendo lhe
falar. – noticiou a criada, apossando-se da capa de Leneonora.
Mal alcançara um corredor, quando outra criada surgiu, trazendo em uma almofada de veludo vermelho
uma bela coroa de cristal, que brilhava com todo o esplendor que continha.
-Sua coroa, Princesa. – a criada se curvou diante de Leneonora.
-Podem se retirar. – ela colocou a coroa na cabeça, ajeitando os cabelos loiros por baixo dela.
Guardas armados abriram as gigantes portas da realeza, que a permitiriam deslumbrar a silhueta de seu rei
sentado ao trono. Os cabelos estavam grisalhos, os olhos fundos e enrugados pela velhice.
-Mandou chamar-me, Alteza? – Leneonora curvou-se perante o velho.
-Levante-se, minha querida. Diga-me, onde estava hoje cedo que nenhum guarda deste castelo conseguiu
encontrá-la? – a voz era rude, mas o rei a pontuava com uma suave delicadeza, que muitos consideravam
desnecessária.
-Estava andando pelo jardim, Vossa Majestade. Seu jardim é tão grande que até mesmo eu, perco-me nele.
-Seria melhor que não fosse mais ao jardim. Para sua segurança, é claro! – exclamou a voz de um jovem, que
estava escondido atrás da poltrona do Rei. – Minha Alteza. – ele curvou-se e beijou a mão direita do velho.
O rapaz postou-se ao lado de Leneonora, era uma cópia fiel de Sua Majestade em juventude. O desprezo
estava visível entre aqueles dois jovens, que haviam sido obrigados a conviver em união como irmãos.
-Meus filhos, - saudou o Rei Henrique. – tenho boas notícias para lhes dar. Minha cara Leneonora, já está
uma linda moça, assim como você, meu jovem Phelipe. É chegada a hora de se unirem pelo casório.
O silêncio esfriou a sala.
-Casório?! Como assim, meu pai? Leneonora é minha irmã! – explodiu Phelipe.
-Todos, presentes nessa sala, sabem que isto não é inteiramente verdade.
-Fomos criados como irmãos, Majestade... – começou Leneonora em súplica.
-Chega! – gritou o Rei. – Ofereço-lhe a mão de Leneonora em casamento, filho. A moça mais bonita de toda
Arcarius. O casório poderá ser arrumado por dentro de alguns dias.
Aturdido, Phelipe revoltou-se contra seu rei, proferindo palavras de maldições contra as paredes vazias da
sala. Leneonora apenas esboçou um sorriso, que transformou-se numa sinistra gargalhada. A sala caiu em
escuridão repentina, um brilho sobrenatural vinha de Leneonora. As tochas da sala acenderam-se com uma
chama avermelhada.
-Infelizmente, Rei Henrique, eu não pertenço a sua coleção de bonecos. E não pretendo me casar com esse
medíocre espécime de nobreza. – ela deixou cair uma das uvas e couro de sua mão.
Phelipe acompanhou enquanto a pequena luva fazia seu tango com o vento até chegar ao duro chão de
pedra, onde foi ensopado por uma camada de gotas de sangue, e temeu que a marca de sua essência
houvesse chegado ao fim.
A mão de Leneonora chamou a atenção dos dois homens, o sangue que gotejara na luva vinha da mão a
recém cortada dela. O sangue escorria pelos dedos quase formando uma luva, até finalmente cessar e deixar
somente um círculo anelado no quarto dedo da mão direita. E os olhos, absurdamente verdes, trocaram de
cores, tornando-se de um vermelho vivo.
-Pelo direito dado a mim através da Irmandade dos Anéis de Sangue, possuo a autoridade de requisitar esse
trono quando achar necessário.
-O anel... – balbuciou o rei sem conseguir acreditar no que via. –Corra, meu filho! Fuja, Phelipe!
O eco do disparo chegou aos ouvidos de Phelipe antes do barulho do corpo que se espatifara no chão.
Leneonora significava perigo. Um belo perigo mortal, como ele podia comprovar através do corpo morto de
seu Rei, seu pai.
Em trôpegos ele distanciou-se dali, do castelo e de todo o medo que sentia. Fugiu para além dos muros e das
árvores.
-Covarde! – sussurrou Leneonora ajoelhando ao lado do corpo do rei.
Ela não conseguiu largar a arma que fora projetada para ela para momentos como aquele. Olhou para o
rosto do velho que a criara.
Ele não é seu pai., pensou Leneonora. Não o verdadeiro!
A essência da vida dele brilhava, cheia de aventura, ação e acima de tudo, incompaixão e brutalidade. As
memórias do Rei lhe pertenciam agora. Ela sentiu um arrepio cruzar sua espinha enquanto aspirava
lentamente à essência vital para dentro dela. Rafael contara-lhe que era como um beijo em que os lábios
não se tocavam, mas Leneonora mal sabia como era um beijo.
Seus olhos arregalaram-se para uma eletricidade estática que parecia correr pelo seu corpo. Porém, não
enxergava as paredes ou qualquer móvel que estivesse naquela sala. Sua mente viajava dentro da lembrança
que mais lhe agradaria.
O Rei estava no alto da torre do castelo. Ela estava. Leneonora tinha que se acostumar com a ideia de que
aquelas lembranças agora lhe pertenciam, que faziam parte dela. Do alto da torre viu um homem parrudo
distanciar-se do portão, o homem deu sua última olhada para o castelo. O rei o reconheceu, o nome surgiu
nos lábios de Leneonora.
"Deixem suas críticas, comentários e elogios, se tiverem algum, é claro. Fico feliz que existam pessoas que
leiam. Muito Obrigada."
-“A Irmandade dos Anéis de Sangue” é o jogo mais vendido em todas as lojas, segundo as melhores revistas
de Informática Digital. – Dan suspirou no final do seu comentário sobre o artigo, que ele tinha certeza que a
mãe não ouvira. –É isso, mãe! Já sei o que vou querer nesse Natal.
-O que foi que você disse? – perguntou ela parando na porta da cozinha. –Natal?! Que ideia maluca!
Estamos em março!
-Fiz seu café-da-manhã! – exclamou Dan pondo sua parte da louça na pia.
Ela olhou para cima da mesa com desgosto.
-Quem come ovos e bacon de manhã? Não somos uma família americana, então não gaste o dinheiro que
uso pra comprar essa comida à toa. Guarde isso e me prepare um café-da-manhã descente.
-Estou indo para a escola. – Dan saiu do apartamento. Parou um minuto atrás da porta, apenas para ouvir
sua mãe resmungar sozinha sobre a inutilidade que ele significava para ela.
As ruas da cidade estavam um inferno, pessoas iam e vinham numa velocidade descontrolável. Dan perdeu-
se entre a multidão. O barulho do trânsito o irritava. Ele atalhou por um beco, sabendo que andar por becos,
mesmo de dia, nunca era uma boa escolha.
O apavorante grito, que o sobressaltou, veio do nada, e para espanto de Dan, vinha do Céu, acompanhado
do que ele julgou ser, primeiramente, um pássaro grande. Ou melhor, gigante. A sombra aproximou-se,
caindo em cima dele com um baque surdo.
-Desculpe, meu Senhor. – era uma jovem, que para espanto de Dan, estava nua.
-Saia de cima de mim! – esbravejou ele. –O que você é? Louca?! Homicida?! Estava tentando se matar? – ele
esfregou as duas mãos no rosto com força. –Afinal, que loucura! Você está bem?
-Eu não sei...
-Provavelmente não. – ele olhou para o corpo dela sem se conter, mas foram os olhos que o atraíram. Olhos
vermelhos em um rosto pálido encaixotado por cabelos castanhos compridos e cacheado. –Por que está sem
roupa?
A jovem olhou para baixo, vendo sua nudez, mas não esboçou reação de pudor. A nudez não lhe parecia um
pecado.
-Eu me sinto bem. Mas não me lembro como vim parar aqui.
-Caindo... Direto em cima de mim! Foi assim que chegou aqui. Ei, espere!
Dan teve apenas alguns segundos para vislumbrar a altivez com que a jovem andava. Foi por um breve
relance que teve o vislumbre de uma tatuagem em forma de galhos, que ela tinha nas costas. Uma tatuagem
que terminava exatamente no meio do caminho.
-Sim? – ela olhou diretamente para os olhos dele, sem pestanejar.
-Você não pode sair pelas ruas dessa forma. Seria pressa por atentado ao pudor.
Ela curvou as sobrancelhas sem entender.
Dan tirou a camisa xadrez que vestia e deu para que ela vestisse.
-Eu sei que vai ficar grande em você, mas essa é a intenção. Vamos contatar a polícia para te ajudarem. Qual
é o seu nome?
Ela se esforçou para refletir.
-Eu não lembro. – arregalou os olhos em desespero.
-Do seu nome? Porque isso deve ser normal. Já que você... Como vamos dizer, “caiu” de uma altura enorme
sem sofrer um arranhão. Você será objeto de estudos para os cientistas mais afoitos.
-Não... Eu não me lembro de nada. Não lembro quem sou. Nem de onde vim. – a jovem desesperou-se mais
ainda.
-Fica calma! A polícia pode lhe ajudar.
Eles saíram do beco, misturando-se ao tráfego de pessoas que olhavam constrangidos para a jovem.
-Por que me olham tanto? Será que me conhecem? – questionou ela, e agarrando o braço de uma velha
senhora, que passava por perto, perguntou: -A senhora me conhece?
-Sua louca! Me solta antes que eu chame a polícia!
Dan puxou a garota para o outro lado da rua, um vendedor ambulante os abortou no mesmo instante.
-Hein, cara, por que não presenteia a sua namorada? – ele estendeu o braço mostrando uma adorável
coleção de correntes com os mais variados pingentes. A jovem ergueu o dedo para tocá-los. –É prata pura! –
vangloriou-se o vendedor.
Os olhos da garota endureceram.
-É proibido: comercializar, encostar, falar e até olhar para qualquer objeto prateado. Pelo Código de
Moralidade que rege a Irmandade dos Anéis de Sangue, ordeno que renuncie sua essência por bem, ou,
como Membro da Suprema Irmandade, serei obrigada a retirá-la a força.
-O que foi que você disse gracinha? – perguntou o vendedor confuso.
-Levarei isso como uma negação a minha ordem. – concluindo a frase a garota imobilizou o vendedor contra
a parede.
-O que está fazendo? – Dan puxou-a para que fugissem corrido do lugar. –Você está levando o jogo A
Irmandade dos Anéis de Sangue muito a sério. É só um jogo.
-Mas eu nem sei o que é essa Irmandade.
-Pelo menos isso explica porque você tem olhos vermelhos. Onde comprou as lentes de contato?
-Lentes de contato? – esganiçou-se a jovem.
Uma música estridente começou a tocar na mochila de Dan; ele segurou a garota com uma das mãos e
procurou o celular com a outra.
-Alô? Oi meu anjo... Não, não, não estou ocupado. Escola? Quem se importa com ela? – ele murmurou mais
algumas coisas. –Claro que eu quero te ver. No Fliperama Azul? – Dan estranhou enquanto a garota
assustava-se com o barulho do motor de um caminhão. –Sim, já estou indo pra lá! – ele desligou o celular. –
Qual o seu problema garota?
-Essas coisas... são muito estranhas.
Dan revirou os olhos.
-Vem! Você disse que está bem, não está? – a garota balançou a cabeça afirmativamente. – Não tenho
tempo para levá-la até um hospital. – Dan a conduziu para longe da multidão ferverosa, de volta para o
apartamento onde sua mãe, volátil e bipolar, não se encontrava.
A garota girou nos calcanhares no meio da sala. Fascinou-se com a televisão e os controles remotos.
-Vou pegar uma roupa pra você e um calçado. Deve ter alguma coisa no armário da minha mãe que sirva.
-Mãe? – perguntou a garota, estranhando a palavra.
-É... uma coisa complicada. – Dan foi até o quarto de sua mãe e pegou um vestido branco e um par de
sandálias velhas. – Tome! Acho que vai ficar bom em você. Vista logo, eu tenho que ir num lugar... para ver
uma pessoa.
-Certo! – ela jogou a camiseta para Dan, que tentou não prestar atenção no corpo dela.
-Já está lembrando de alguma coisa? Por que antes, com aquele cara, você pareceu saber as palavras de um
jogo...
-Isso não é uma coisa boa. – refletiu a garota, interrompendo-o.
-O que? – quis saber Dan. –Deixa pra lá. Vamos! A Luiza já está me esperando no Fliperama.
-Fliperama? – a garota repetiu a palavra bem devagar.
-Só me segue.
Dan puxou-a pelo cotovelo para fora do apartamento.
O Fliperama não ficava muito longe do edifício, mas ele precisou arrastar a garota pelas ruas; ela parecia
simplesmente fascinada com tudo o que via há sua volta.
Mesmo a luz do dia, a placa luminária do fliperama Azul brilhava em meio aos prédios escuros. Jovens de
todos os tipos divertiam-se na grande variedade de games espalhados pelo amplo espaço.
-Dan! Achei que não viria mais. – uma garota ruiva atirou-se nos braços dele. Levado por uma reação
surpresa, Dan acabou chocando uma garota contra a outra.
–Ai! – exclamaram as duas.
-Desculpa Luiza. – ele hesitou. – Está é a... minha prima.
Dan coçou o queixo, evitando olhar para Luiza, que aprumou o nariz arrebitado, torcendo o rosto num
sorriso de desgosto.
-Ela é tão estranha...
-É que ela é viciada naquele jogo “Irmandade dos Anéis de Sangue”, sabe? – interrompeu Dan.
-Que infantilidade!
-É... –concordou ele constrangido.
Dan ainda queria muito ter aquele jogo em mãos. Eles andaram entre máquinas que os convidavam a jogar
com suas luzes pulsantes e jogos violentos. O Fliperama parecia conter a coleção completa de qualquer tipo
de máquina. A que mais chamava a atenção era uma máquina simuladora de vôo de guerra, que fazia o
jogador virar até 360º em segundos. Luiza bufou para os brinquedos, a outra garota petrificou-se encantada
vendo um jovem parar de cabeça pra baixo.
-Quer experimentar? – perguntou Dan.
-Quero! – era uma súplica.
Ele pagou por uma ficha, esperava que o jogo a distraísse enquanto pudesse tirar algum proveito de Luiza
num canto distante de olhares indesejáveis.
-O que devo fazer? – perguntou ela ao afivelar o cinto da cadeira.
-Terá que descobrir sozinha.
-Mas eu não sei...
-Siga os seus instintos! – interrompeu Dan antes que Luiza de desesperasse por atenção.
A garota olhou para aqueles controles, que se estendiam em um emaranhado de botões a sua frente,
imitando com exatidão os controles de um helicóptero. A tela refletia-se nos olhos dela, aquilo com certeza
lhe trazia uma lembrança. Olhou para o painel e viu as sombras de duas mãos ensanguentadas mas era em
um painel diferente, com cores diferentes, porém, eram suas próprias mãos, em algo que ela já não
lembrava.
O “instinto” lhe disse que ela saberia lhe dar com aquela máquina, fora criada exatamente pra isso. Pra
guerra!
-Sua prima é muito esquisita. Você viu que anel mais brega que ela usava? Horroroso! Que nome você disse
que ela tinha? – a voz de Luiza estava esganiçada, qualquer pessoa daquele Fliperama podia ouvi-la. Dan
tentava fazer com que tudo que ela dissesse, entrasse por um ouvido e saísse pelo outro, mas a voz dela
ficava ressonando em sua cabeça.
-Eu não disse. – respondeu ele, que não conseguira pensar em um nome para dar a garota.
-Tudo bem. Não faz diferença.
Um atendente aproximou-se da mesa que eles estavam, Dan o olhou agradecido.
-Vão pedir alguma coisa? – perguntou.
-Dois refrigerantes...
-Eu não tomo refrigerante! – interrompeu Luiza ultrajada.
-Um suco de laranja e um refrigerante. – continuou Dan.
-Mas eu não gosto de suco de laranja!
-Você tem boca Luiza, use-a para pedir o que você quer beber a ele.
-Quer saber? Perdi a sede.
O atendente olhou confuso.
-Cancele o pedido, também não quero mais nada.
Luiza envolveu-o num monólogo sobre roupas, moda, sapatos... Naquele instante, Dan lamentou-se por ter
matado aula. O professor falando sobre qualquer assunto era melhor do que ouvir todo o blá, blá, blá dela.
Ele ficou devaneando sobre os detalhes que não havia percebido na garota desconhecida. Ele havia notado o
óbvio, o corpo esbelto, a tatuagem estranha e os olhos diferentes. O que mais importava, além disso?
-E... ei! – Luiza levantou a cabeça, olhando por cima da cabeça dos outros. –Que tumulto é aquele ali?
Dan seguiu o olhar dela; havia um tumulto em volta da máquina em que deixara a garota mais cedo.
Empurrando mesas e pessoas, ele correu até lá, temendo pelo que poderia ter acontecido.
Mas todos estavam excitados com o que viam. A garota era lançada pela máquina em todas as direções.
-Impressionante! Ela está jogando no nível expert. Quanto tempo ela não deve ter perdido jogando nessa
máquina? – exclamou um garoto de óculos com um sorriso de orelha a orelha.
A cadeira parou de girar, ninguém parecia ter entendido muito bem o que havia acontecido. O game over
piscava na tela, aturdindo as pessoas em volta.
-Eu perdi? Fracassei? – a garota começou a chorar, perdendo completamente o controle de si. –Não tenho
permissão de fracassar!
Dan se esgueirou para passar pelas últimas pessoas e chegar até ela. Olhou para o pessoal que estava em
volta, sinalizando para que eles se dispersassem.
- Calma! Você se saiu muito bem para a primeira vez!
-O fracasso pode custar uma vida! – ela gritou.
Não conseguindo refrear o impulso, Dan sacudiu-a com violência. A sacudela trouxe a ela outra lembrança,
alguém que também havia lhe balançado violentamente para trazê-la a si. E num fluxo lento as lembranças a
acudiram.
-Não! – a voz dela estava controlada, havia uma absurda razão em seus olhos; ela parecia ser alguém
completamente diferente. –Eu lembro de certas coisas agora, garoto. Seus serviços não são mais
necessários.
Ela andou confiante pelas pessoas do Fliperama. Não havia distrações em sua mente, somente o desejo de
uma atitude promissora.
-Ei! Onde você está indo? – perguntou Dan, puxando-a pelo braço.
-Vou voltar para casa.
-E onde você mora?
-Arcarius. – ela livrou-se com facilidade do aperto de aço de Dan.
-Vai começar com isso de novo? Garota! – ele tentou agarrar o braço dela novamente, que recuou prevendo
o movimento. –A Irmandade dos Anéis de Sangue não existe! É só um jogo! Talvez, você tenha batido a
cabeça com muita força...
-Para seu povo, o meu mundo é só um jogo. Acreditando ou não, Arcarius é uma Terra real, assim como a
Irmandade da qual faço parte.
-Agora você sabe quem você acha que é? – Dan ironizou.
-Arietta, membro da Suprema Irmandade dos Anéis de Sangue.
Arietta dobrou o braço, de modo que sua mão direita ficasse ao lado do seu rosto. O anel vermelho, do seu
dedo anelar, saltou aos olhos de Dan.
-Legal! Você comprou em algum evento ou encomendou pela internet? – ele segurou a mão dela para que
pudesse ver melhor.
-Como? – Arietta puxou a mão junto ao corpo. –Fala de coisas que não entendo.
-E como é que você vai voltar para esse mundo mágico imaginário? – Dan voltou ao tom de ironia.
-Preciso apenas morrer.
Ela virou as costas para Dan.
-Apenas morrer?! Como assim? – ele a seguia de perto. –Garota? Arietta?
Luiza amarrou a cara ao ver Dan correndo atrás de Arietta pela escada que dava acesso ao terraço do
Fliperama, como se fosse um imbecil.
-Eu sabia que eles não eram primos. – murmurou ela.
As palavras de Arietta repetiram-se em sua cabeça, Dan chegou à conclusão de que a garota era
mentalmente desequilibrada. Eles subiram correndo as escadas para o andar superior as pressas, tinham
apenas alguns metros que os separava.
Ela parou na beirada do alto do prédio, olhou em volta, para os edifícios que transformavam a cidade numa
grande massa sombria. A cidade que tão vivamente lhe era estranha. Olhou para baixo, a queda
provavelmente a mataria.
E sem pensar duas vezes, saltou do terraço.
Era isso que ela desejava.
Morrer.
-Não... Arietta!!!
Dan estava a dois passos de distância quando ela saltou, e num impulso que provavelmente o levaria até a
morte, ele se viu caindo desastrosamente do terraço. Os olhos de Arietta estavam fechados, e um leve
sorriso se esboçava em seu rosto. Dan pôde ver o quanto a calçada se aproximava e aquele seria o fim de
tudo. Estendeu os braços e alcançou os ombros de Arietta. Puxou-a pra si, abraçando-a com força.
O chão estava a menos de um metro, ele fechou os olhos e deu, no que julgou ser, seu último suspiro.
E tão rápido como caíram, e como o estrondo que seria de seus corpos chocarem com o duro cimento da
calçada, Dan sentiu uma mudança repentina no vento gelado, que antes os envolvia. Abriu os olhos e
percebeu que continuavam caindo dentro da penumbra. Era como se a calçada houvesse aberto um buraco
negro, os engolido e eles caíssem por um corredor escuro interminável. E caíam tão rápido que Dan sentia
como se todo seu corpo pegasse fogo.
Ele fechou os olhos com força querendo fazer aquela sensação parar.
Caíam cada vez mais rápido. Antes que pudesse pensar no que estava acontecendo, sentiu a dor terrível em
suas costas enquanto se estatelava no chão gramado.
-Abra os olhos garotão! Seja bem-vindo ao mundo imaginário que vivo. Tente não morrer!
5. Irmandade
-Não a achamos em lugar algum. – um punho desceu violentamente por sob uma mesa, formando uma
rachadura; Rafael estava frustrado e furioso.
-Acalme-se! – pediu Leneonora, aproximou-se dele. –Arietta é uma mulher esperta.
-Abandonamos ela para que sozinha pudesse lhe dar com aquela situação. – um outro homem bufou na
mesa, levando o cálice de vinho aos lábios com nervosismo.
-Clemério, está defendendo sua irmã bastarda agora? – riu-se um homem que havia acabado de chegar a
sala, onde a aflição penetrava pelas paredes.
-Não seja rude, Samar. – pediu Leneonora. –Todos nós estamos preocupados com Arietta. Não temos
notícias há dias.
-Lembre-se, Arietta sempre foi de desaparecer do alcance dos nossos olhos. – pontificou Samar, que
divertia-se com a situação.
-Nem eu consigo achá-la. – bufou Rafael.
Clemério soltou um murmúrio de desgosto, tornando a encher o cálice de vinho, esvaziando-o em segundos.
-Trago boas novas a vocês. – glorificou-se Samar.
A sala silenciou-se de expectativa. Samar andou como um nobre até a mesa, parando para mordiscar uma
fruta.
-Essas papoias estão ótimas para essa época, não acham? – todos o olharam, confusos. – Ouvi murmúrios de
que viram Arietta na última lua cheia perto do covil aqui no Reino.
-Isso faz sete dias! – esganiçou-se Rafael.
-Pelo menos é uma notícia! – gritou Samar.
-É mais informação do que tínhamos, Rafael. – Leneonora tentava ser justa. –O que ela queria no covil?
-Não no covil. Estava voltando para casa. – sussurrou Clemério, voltando ao seu tom normal continuou. –A
essa hora já deve estar morta. – ele escondeu o rosto atrás do cálice.
-Comemoravam meu desaparecimento? Odeiam-me tanto assim?
Clemério engasgou-se com o vinho ao ver quem surgira na sala.
Arietta estava deslumbrante, como sempre, e ao seu lado Dan, que parecia uma personagem fora de série.
-Querido, sujou-se com um pouco de vinho aqui. – ela puxou um lenço da manga da blusa e com falta
delicadeza, limpou o vinho do rosto de Clemério, deixando o lenço cair por sob o colo.
Rafael correu pra abraça-la, dando-lhe um tapa no rosto quando se afastaram.
-O que você estava pensando quando...? – Rafael se interrompeu. Olhou para Dan, o vendo pela primeira
vez. Fora seu instinto que o fizera para de falar. Instinto acionado quando Dan colocou a mão por sob a
espada.
-Quem é o seu amigo? – perguntou Samar.
-Está aumentando sua lista de conquistas, “irmãzinha”. Não lembrava que era tão insaciável. – exclamou
Clemério. Samar juntou-se a ele em gargalhadas.
-Sou Leneonora, filha de Yurith. – ela lhe alcançou um cálice. –E você? Apresente-se!
-Dan.
-Filho de estranhos. – completou Arietta.
Os membros da Irmandade trocaram olhares inexpressivos. Arietta afastou-se da mesa, o brilho da espada
chamou a atenção.
-Acabaste de cometer um ultraje contra Arcarius. Tire isto antes que alguém mais veja. – ordenou Clemério
bruscamente.
-Os humanos ainda devem ter fé nos Deuses. – Leneonora colocou a mão no ombro de Dan.
-Se estivesse usando a espada, não teria sumido.
-O que aconteceu? – perguntou Samar do outro lado da sala. –No que a espada lhe ajudaria?
-A manter as minhas memórias. Eu não lembro do que aconteceu. Minhas lembranças foram roubadas.
-E qual a última coisa da qual se lembra? – perguntou Rafael preocupado.
Arietta fechou os olhos, tendo vislumbres de cenas que não se encaixavam em sua cabeça.
-Lembro de nossa última conversa. – ela olhou para todos. –E depois, acordei na Floresta Zenus com três
arqueiros em meu encalço, e este desmaiado ao meu lado. – Arietta apontou para Dan.
-Ele veste nossas roupas e porta nossas armas como se fosse um de nós. – exasperou um Clemério irritado.
-Queria que viéssemos nus?
Leneonora soltou uma risada marota.
-Controle-se garota! – chiou Samar.
-Faz uma semana desde que lhe viram perto do Reino, quer que acredite que não se lembra o que aconteceu
nesse meio tempo? – explodiu Rafael.
-Não lembro de vir para o Reino. –Arietta virou, encarando a parede, tentando lembrar do que havia
acontecido. Por mais que se esforçasse, não conseguia lembrar.
A sala inteira chamava a atenção de Dan, os móveis rústicos, que pareciam ser de madeira queimada. As
frutas na mesa, o brilho dos cálices. E principalmente, as pessoas.
Eram normais, isso ele admitia.
Eram lendas.
Leneonora lhe parecia incrível, postura firme, cabelos loiros. Os homens eram todos musculosos e pareciam
incrivelmente ágeis com as armas, que suas mãos facilmente encontrariam.
Os olhos de Dan encontraram o olhar raivoso de Clemério. Que misturava-se com desprezo e superioridade.
Encolerizado, Dan atirou as armas no chão, começando a tirar a roupa.
-São essas roupas que lhe incomodam? Se for por isso, sem problema. – ele arrancou as peças, jogando-as
aos pés de Clemério. –Vê se assim, você consegue olhar para o outro lado, não sou nenhum animal de
zoológico pra ficarem me encarando.
Clemério levantou-se ultrajado, Samar conseguiu segurá-lo pelas vestes, impedindo-o de atacar Dan, que
recuou contra a parede.
Arietta mordeu o lábio para não rir.
-E não precisa dizer, eu sei onde fica a saída. – Dan juntou as armas, virando as costas para os membros da
Irmandade.
-Pelo amor dos meus Deuses! – apavorou-se Leneonora. –Ele não tem a marca! Não é uma essência do
nosso povo!
-Filho de Estranhos! – chamou Samar. – Diga, de onde veio?
Dan encarou cada um que o olhava. Ele viu rostos tão diferentes com os mesmos olhos vermelhos, faiscaram
por respostas.
O que dizer naquela hora?
Como agir?
-De onde eu venho, pessoas tem outras marcas de vida. E numa Irmandade, os membros tratam-se como
irmãos. Por isso o nome. – Dan deixou que os olhos recaíssem por sob Arietta. –Vou embora! Achar um jeito
de ir para casa.
-Você me servirá como ajudante. Não lhe dei autorização. – ela o segurou pelo braço.
-Está precisando de um ajudante para esquentar a sua cama? – debochou Clemério. –Sabe muito bem, que
Rafael esta aqui para isso.
-Clemério, filho de Petride, como ousa proferir tais ofensas contra sua irmã? – perguntou Rafael.
-Ela é apenas uma bastarda. Sua existência é a prova de uma traição!
-Vamos! - Arietta arrastou Dan para fora.
O denso clima da sala esfriou. Samar convidou Clemério a sentar-se novamente. Ninguém tocava naquele
assunto. A traição era imperdoável em Arcarius.
Leneonora reletiu em tudo o que havia acontecido desde que se responsabilizara pelo Reino do Rei
Henrique. Ele era um dos poucos nobres que restara em seu mundo. Ele era seu pai, e Leneonora o matara.
Não tivera escolha. Era sua obrigação.
-No que está pensando? – um homem aproximou-se de Leneonora, vindo de uma porta escondida atrás de
uma cortina.
-O que faz aqui, Ruly? – perguntou Samar. –Como vão as coisas no laboratório?
-Tenho a graça dos Deuses ao meu lado. Onde está Arietta? Mas ajudantes estão cuidando do Planador com
o qual ela veio.
-Não sabe das novas? – Clemério entregou um copo de vinho a Ruly, que apenas levantou uma sobrancelha,
curioso.
-Arietta trouxe um desconhecido para dentro do castelo. Alguém que não é de Arcarius. – concluiu Samar.
-Impossível! Só arcarianos entram nos Planadores. Ele é daqui, provavelmente de algum lugar desconhecido.
– interveio Ruly.
-Ela é poderosa. Pode ter confundido a máquina. Arietta entende como ninguém os poderes que os Anéis de
Sangue oferecem.
-Mas ela não quebraria um escudo que pode prejudicá-la também. A Irmandade é a vida dela. – acudiu
Rafael em defesa. – Vocês só não gostaram do rapaz. Ainda sente ciúmes dela, Clemério? Mesmo sabendo
que ela é a sua irmã?
-Responda-me você, Rafael, sei muito bem que quando ela passa, você fica entorpecido pelo cheiro das
pernas dela. – exclamou Clemério. – Arietta não passa de uma bastarda!
-Irá se arrepender de tudo o que disse. – Rafael amarrou a capa no pescoço e desapareceu pelos corredores
secretos do castelo.
Leneonora socou o peito de Clemério.
-Por que tem que agir dessa forma? Já perdemos tantos. Temos um à menos nessa Irmandade.
O cabelo loiro dela movimentou-se lentamente com o vento, Ruly posicionou-se atrás dela, como para
proteger-se. A mão dela passou por sob o vestido, que lhe trouxe os carmas de sua decisão. Ela morreria
sendo eternamente como uma rainha, cercada pelos muros que um dia ela amou.
-Há anos procuramos o filho de Alice. Ele sumiu sem deixar rastros. Nem sabemos se há mesmo uma criança
para procurar. No diário de Alice não há menções de criança ou de gravidez. Alice mal fala sobre os membros
da Irmandade. – o assunto deixava Clemério irritado.
-Ainda está a procura pelo diário de Petride? – questionou Ruly.
-Gasto cada segundo que tenho atrás desse maldito diário. – respondeu esse secamente.
-Deveria gastar mais seu tempo procurando uma esposa do que um diário perdido. Leneonora sorriu com
seu gracejo.
-Nem todos são como Rafael. Nem todos precisam de uma esposa para se preocupar. – Samar respondeu ao
auxílio do amigo.
-Rafael não é casado. – espantou-se Ruly.
-Ele quer desposar Arietta, mas precisa do consentimento de Clemério. – explicou Leneonora.
-Consentimento que nunca terá. – finalizou Clemério, pontificando cada palavra.
-O rancor não lhe cai bem, amigo. – Ruly colocou a mão no ombro dele.
Clemério afastou-se dos outros, admirando as belezas das arvores que preparavam-se para o inverno.
Pensou em Arietta e na dor que pensar nela provocava. Deixou que os olhos se fechassem. O inverno tinha
um cheiro bom.
-Dê atenção a sua esposa. Ela esta carente e precisa de você. – fechou a cortina e se afastou para outro
aposento.
Eles deixaram o planador no castelo, nas mãos dos ajudantes de Ruly e seguiram a pé pela floresta, onde
árvores, com seus galhos secos, mais pareciam mãos ossudas que tentavam escapar das profundezas de
toneladas de terras que as envolviam. Caminhavam em silêncio, parecia que faziam isso por horas, mas Dan
culpou a si mesma por essa impressão. Culpou-se pela cena barata que ele não conseguiu deixar de fazer. A
cada passo que davam a temperatura esfriava mais.
-Onde estamos indo? - perguntou Dan depois de algum tempo.
-Há um dos poucos lugares que Arietta confia. - eles olharam para trás. Rafael os havia seguido, montado
numa estranha criatura. -Vista!
Rafael atirou um conjunto de roupas azuis com um par de botas. Dan vestiu-se, percebendo que já não se
importava que o vissem nu.
-Você sabe que eu odeio quando me seguem! - bufou Arietta.
-Vim por ele. O inverno é rigoroso.
-Desde quando você se importa com os humanos?
-É um extra profissional no qual temos que lidar.
O vento soprou mais gelado, trazendo pequeno flocos de neve, que desciam rodopiantes até o chão. Arietta
pensou nos humanos, criaturas frágeis e indefesas, para qual arriscava a vida todos os dias. Era por eles que
vivia.
-Bóris sobreviveu. - maravilhou-se ela.
-O mantive em segurança dentro do castelo. - Rafael sorriu e desceu do animal. -Lamento por ter tido que
escutar tudo aquilo...
-O que é isso? - interrompeu Dan.
-Um filho da Terra. Os próprios servos de Tenários criaram. - respondeu Arietta.
-Salvei a vida desse "Tenaquas" quando ele era só uma pequena criatura. E para ser mais exato, Tenaquas
são filhos de Água e Terra. Infelizmente, eles só vivem em bandos, como selvagens pelas florestas. Este é um
raro exemplar que anda sozinho. - Rafael sorriu ao ver como Dan era jovem
-Por que veio atrás de mim? - Rafael foi puxado para longe dos ouvidos de Dan.
-Não sou como os outros. Sabe disso. - ele alisou o cabelo dela.
-Somos todos iguais. - Arietta deixou a mão dele afagar o ar. Afastou-se dois passos.
-Sou mais como você e menos como eles.
Ela olhou para os lados e puxou Rafael para mais longe de Dan.