Você está na página 1de 14

Comunicação para a 20ª.

edição do cine em cena em 04/08/2022


Movimentador:
Mediador:
Filme em cartaz: o sentido da vida (2022)
Título original em inglês: the mistery of her (o mistério dela)
Gênero: Drama
Direção: Nicolas Di Bella
Pais de origem: E.U.A

O nome original do filme sugere um vazio. Algo também a ser

desvendado, ou simples falta de criatividade? Apostamos na

primeira opção.

Na história do filme um acidente de carro faz com que a jovem

Alison Spencer perca a memória. Não qualquer memória, mas

apenas a que diz respeito a fatos e pessoas antes do “acidente”.

As coisas ficam estranhas depois do “acidente”. Alison (Áli) diz

“eu posso executar qualquer tarefa com normalidade e eficiência,

mas me sinto extremamente limitada no conhecimento de uma

coisa. Eu”.

Um “acidente” sem cenas do ocorrido em flash back; sem

sangue, dor, sofrimento, arrependimentos pelo fato acontecido,


pessoas machucadas; ambulâncias zoadentas em disparada,

polícia, gritaria, leitos de hospitais, doutores prontos para

cirurgiar...Nada. Até parece que nada de relevante aconteceu.

A história começa a vida passando pela janela de um carro em

movimento. A vida que passa, simplesmente passa. Nada é

reconhecido, nada faz sentido para o olhar da protagonista.

A câmera fecha num plano que mostra os rostos de mae e filha

como figura e fundo respectivamente. Elas estão distantes e

próximas. Próximas por serem mãe e filha e estarem no mesmo

ambiente físico, e distantes porque não olham uma para outra.

“Ainda se sente confusa”? pergunta a mãe que conduz a filha.

“Na verdade, não”. A filha responde com alguma indiferença.

“Estamos quase lá”.

Chegam em casa, uma casa branca, bonita, grande. Quase saída

de um conto de fadas.

Áli parece não se sentir confortável no lugar. Não sabe o que

aquela casa significa para ela. Olha com estranhamento de visita

que chega assustada e pela primeira vez.


“Há quanto tempo moramos aqui?” pergunta para quem tem todas

as respostas.

“Há quase dez anos...vamos, querida seu quarto é por aqui”, a

mãe continua na direção, a mãe, a responsável pelo

comportamento, vontades e memórias de Áli. O pai parece uma

visita bem aparentada e quase sem palavras.

A protagonista do enredo para na porta do quarto como se não

quisesse voltar para esse espaço da casa, como quem diz “de

quem era esse quarto”? e continua. “É tão limpo”, como se fizesse

parte de um mundo destacado da realidade, um mundo até hostil

do qual também precisa se defender, cruzar os braços, proteger o

peito; proteger-se do que pode ser fatal, proteger-se de emoções

fortes que possam afundá-la ainda mais no labirinto do

esquecimento.

Em nosso imaginário e experiências sabemos como o quarto dos

adolescentes são bagunçados e por vezes sujos e até mal

cheirosos. Eles projetam no ambiente mais íntimo a confusão dos

pensamentos confusos e dos corpos assustados.


Áli se aborrece com a falta de senha no passado. Não consegue

lembrar de si. Não consegue dizer do que gosta. Sente-se

inadequada em tudo, em casa, na escola, com o namorado, com o

que diziam dela e sobre seu desempenho escolar e esportivo como

jogadora premiada de futebol.

Com o namorado (Ethan), quem causou o “acidente”, também se

sente desconfortável e sem conexão. “Parece que não faz meu

tipo”, diz sem ao menos se aproximar dele e logo nas primeiras

cenas da vida de desmemoriada.

Ter sido o namorado a causar o “acidente” parece bastante

sugestivo das dificuldades que a vida sexual apresenta aos que

nele se iniciam e mesmo para aqueles e aquelas que já tem o sexo

e a sexualidade como rotina das suas vidas.

Caminhando, tentando lembrar o caminho de casa, cruza com

Cameron, uma amigo improvável que as “amigas” (também

apresentadas pela mãe) dizem não ser boa companhia para ela,

pois além de estar pagando pena sócio-educativa por ter


transgredido a lei já sabe o que é perder. Perdeu a mãe, e está em

vias de perder o pai, homem atormentado pela perda da esposa.

Alison diz, nós nos conhecemos?

Cameron, dá uma resposta desconcertante... “então, é verdade”!

Podemos imaginar que “Então é verdade”, queira dizer, então, é

verdade, você não é mais a mesma!

Cameron mostra a Áli o caminho de volta pra casa, da casa que

ela procura não a que pensou que tinha.

Tenta organizar o caos que ficou após o “acidente”. “Estou

tentando descobrir tudo que sei e não sei”.

Inciando as mudanças

“Posso mudar as coisas no meu quarto”?

O quarto, o lugar do repouso, onde podemos ser quem somos sem

as regras da convivência social. Da formação da privacidade, da

intimidade, do prestar atenção aos prazeres; a mãe chama essas

mudanças de “decoração”.
Na mudança Áli descobre escondido em baixo do colchão um

caderno verde, na forma de um diário que ela mesma deu o nome

de “meus mistérios”, que ela prefere, como outrora, manter em

segredo por um tempo, mas que para poder se entender vai ter que

revelar seus mistérios a Cameron. Nesse ponto é interessante

prestar atenção à terceira pista que o “mapa do tesouro” vai

sugerir para Áli.

O “mapa do tesouro”, instrumento que enriquece quem o encontra

inicialmente é sentido como algo estranho, difícil de ser entendido

fora do mundo das objetividades da vida de Alison antes do

“acidente”.

Os amigos não dão importância e até fazem pouco da poesia de

Alison. “Já falei pra vocês sobre escrever algo”? Ao que o

namorado não conectado responde “o que”? Áli continua... “Tipo

poesia” ...Então, Ethan desdenha, “por que? Está querendo fazer

uma rimas ou coisa assim”?

É Cameron quem dá a primeira dica para Alison se

reencontrar...pra ela sair do caos, pra ela poder saber o que quer e
o que não quer... “Eu sei que esse lugar não costuma ser gentil

com quem está sozinho ou perdido. Fale comigo se você se sentir

assim”. Camerom se coloca no lugar de ouvinte e confidente.

“Sozinho ou perdido” podemos compreender como estar num

mundo que não se conhece, que não se reconhece e que vai buscar

nos amigos e no grupo de amigos a resposta para a pergunta às

avessar que Ali se faz para Camerom e com sofrimento… “eu não

sei quem eu sou”.

Primeira pista do mapa do tesouro.

O início da busca através da arte. A arte pode nos curar de nós

mesmos. Áli descobre em seus mistérios um ingresso para a

galeria de arte memorial, um apelo à associação livre como meio

para o autoconhecimento.

Na galeria tem acesso a um folheto que liga a um registro que ela

fez em seus mistérios: over blue (sempre triste). Inicialmente, ela

não sabe o que é “over blue”. Apenas tem a atenção voltada para

a frase.
“Over blue” é a tristeza premiada; uma tela destacada do

vencedor do prêmio on the verge (na beira, adolescente), Michael

Slattery, exposta no segundo andar da galeria. A imagem de um

rosto de uma garota em azul denotando um estado de tristeza e ao

mesmo tempo de desleixo e força; traços grosseiros que sugerem

uma afetação desmedida. Alison se depara com a vida da morte;

Alison se emociona e se depara com a dialética do “acidente”.

Sai da galeria e vai ao encontro de Camerom. “O que você me

disse sobre se sentir perdido!?

A tristeza ainda movimenta Áli. Ela sente-se fraca, precisando de

ajuda mas ainda está no começo de conquistar suas próprias

memórias. Até aqui todas as suas memórias são de inadequação e

fracasso. Mas, quer continuar, talvez por isso procure por

Cameron.

As associações livres continuam sendo o caminho para seu

reencontro consigo mesma. “E se eu não gostar de quem estiver

do outro lado”? Camerom, aquele que dizem não ser boa


companhia para ela, mantem os afetos equilibrados “seria uma

coisa bem normal”.

Segunda pista do mapa do tesouro

A pedra de Emily Harris. Alison e Emily foram rivais. Rivais no

futebol. Também é Camerom que a leva até a pedra. Então,

Alison fica sabendo que a rival e parceira de esportes suicidou-se

e que a morte faz parte do jogo da vida.

Alison lê para Cam os seus segredos. A sua poética. A sua

neurose agora transformada em drama. “Eu ouço a minha

respiração enquanto olho para a pedra. Estou tentando ver o rosto

dela, tentando encontra-la, mas ela se foi. Levada pelos ventos da

perfeição”, de ser cobrada e se cobrar por ser uma atleta perfeita,

sempre vencedora, sempre destacada sempre sem privacidade.

E conclue que Emily morreu, mas ela (Áli) está viva e livre e que

a vida a espera para vivê-la; e numa sensibilidade humana on the

verge se coloca “não sei se fiquei muito feliz”.

Camerom volta a manter o equilíbrio dos afetos: “Você ainda está

aqui e a vida ainda está te esperando”.


Terceira pista do mapa do tesouro-a pista edípica

O beco –a lei. Não ultrapasse. As transgressões.

O que fazer diante das exigências da cultura? O que fazer diante

das exigências da vida e da morte? Áli já se deparou com a vida

da morte e da morte da vida. E agora? De que você tem medo?

Como organizamos nosso desejo?

Um pouco de teoria não faz mal a ninguém. Então vamos lá.

Para James Strachey, tradutor das obras freudianas da ed. Imago,

diz que o tema principal de O mal estar na civilização é o

irremediável antagonismo entre as exigências dos instintos e as

restrições necessárias à civilização.

Para Freud, os instintos em que acreditamos se dividem em dois

grupos que são: o dos eróticos, que buscam aglomerar substancia

viva em unidades cada vez maiores, e dos instintos de morte, que

contrariam esse esforço e reconduzem o elemento vivo ao estado

inorgânico. Poderíamos dizer “sem memória?”

Da qualidade conjunta e oposta dos dois procedem os fenômenos

vitais (memoria?) que a morte põe um fim.


(Trechos do livro O mal estar na civilização da editora Cienbook,

traduzido por Saulo Krieger e prefácio de Guilherme Marconi

Germer, publicado em 2020).

Afinal de contas, do que somos capazes? O que fazer quando a

necessidade vai numa direção e a vontade em outra?

Temos medo de cair ...cair voando ...dentro do

desconhecido...medo de se descobrir? Essas questões fazem parte

dos mistérios de Alison.

Voar tanto pode sugerir liberdade como transgressão.

É Lacan quem diz (não sei exatamente onde) que no enunciado da

lei encontramos a transgressão; e Édipo mostra que transgredir faz

parte da vida. Experimentação é ousadia.

Também não podemos deixar de lembrar e citar o poeta Manoel

Bandeira e o seu “poema de beco... que importa a paisagem, a

Glória, a baía, a linha do horizonte? O que vejo é o beco”. O

poeta diante da impossibilidade transgride criando poemas,

fazendo arte que enche nossos olhos e corações, do mesmo jeito

que Ali encheu os olhos com água diante da tristeza eterna.


A lei é clara: não ultrapassar; e Camerom leva Áli ao beco pela

primeira vez; da segunda vez Áli vai sozinha e se dão mal.

O beco é o lugar esquecido e proibido pela cidade onde algumas

pessoas vão até lá (o arame que (im)pede a entrada já está

quebrado) para poderem se expressar livremente, para fazer arte,

fazer que a sua voz reverbere, ser escutado, se escutar. Se ouvir,

transitando pra se equilibrar dialeticamente entre a vida e a morte.

No beco, Alison sorri, grita, escuta sua própria voz. Dá vazão a

alegria de poder se escutar e ser escutada.

Depois do imbróglio com a segurança do parque, Áli discute pela

primeira vez com a mãe e consegue dizer o que sente; “novos

desejos estão começando a tomar conta de mim” ...e em outra

cena (em off) questiona a relação infantil da mãe; “será que ela

realmente me vê? Ou será que ela só vê o que quer enxergar”?

O olhar da filha não mais coincide com o da mãe...” Seus olhos

ansiosos sempre ansiosos para me encontrar, mas meus olhos

estão em outro lugar” ...” Eu consigo ver a vida se formando ...Eu


quero todas as coisas apaixonantes meu príncipe e em troca eu

vou te amar”.

Quarta pista do mapa do tesouro

Querido futuro, floresça.

Áli está em busca de uma versão dela mesma que ela mesma não

conhece e nessa busca reencontra com o centro de apoio juvenil.

Um lugar onde os jovens – os empreendedores dessa nova versão

de si mesmos - podem ser incentivados através da livre

expressão, do acolhimento e do amor pelos iguais.

Um dos lemas do centro é “todo dia é uma segunda chance”. A

chance que Áli precisa para sozinha encontrar suas próprias

memórias e ao mesmo tempo abrir mão das memórias infantis ou

das memórias implantadas (eu me chamo Ali Spencer, foi o que

disseram). O que não é uma tarefa nada fácil nem livre de

traumas.

Crescer é difícil como um acidente.

O filme começa a mãe reconduzindo a filha para casa depois do

acidente; e termina a filha dirigindo seu próprio veículo, em


direção não se sabe pra onde, mas seguindo em

frente ...assumindo o controle da própria vida, assumindo suas

incertezas e a condição de que será no amor onde irá se

reencontrar.

Você também pode gostar