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TODO MUNDO

ODEIA
O CHRIS

episódios que
não foram ao ar

Ricardo Ryo Goto


ÍNDICE

Todo mundo odeia o Chris ?- pg 3,

Episódios que não foram ao ar

Todo mundo odeia o natal- pg 6

Todo mundo odeia previsão de ano novo- pg 12

Todo mundo odeia o Espiritismo - pg 14

Todo mundo odeia o desperdício – pg 19

Todo mundo odeia quarentena – pg 21

Todo mundo odeia anexim – pg 24

Todo mundo odeia matemática – pg 27

Todo mundo odeia figuras de linguagem - 30

Todo mundo odeia cartão postal- pg 33

Bônus- episódios que nunca irão ao ar

Todo mundo odeia o Chaves - pg 38

Todo mundo odeia a Grande Família – pg 40

Todo mundo odeia Escolinha do professor Raimundo – pg 47


TODO MUNDO ODEIA O CHRIS ?

Quem costuma acompanhar séries na TV tem a impressão de que os personagens


são apenas estereótipos que repetem à exaustão atitudes previamente definidas pelos
scripts que cristalizaram suas idiossincrasias. Assim, o personagem A é do tipo bonachão,
alegre, extrovertido, boa-praça. O personagem B é sisudo, meio carrancudo, altivo, por
vezes grosseiro. O personagem C é distraído, ingênuo, lento no raciocínio, e assim por
diante.
E com base nesses tipos que beiram a caricatura, são construídas as situações
que mudam de acordo com o local, a época ou estação do ano. Mas acabam sendo
previsíveis já que os personagens também são previsíveis.
Não é muito difícil que o espectador que tem essas impressões leve-as para sua
vida real, como se as pessoas de seu relacionamento e convívio fossem também apenas
personagens e não pessoas.
Digo personagens porque a “persona” representa esse papel que atribuímos às
pessoas em suas diversas situações de vida. Então o ser humano pode ser pai,
funcionário público, eventualmente aluno de uma faculdade, marido, irmão, tio, sobrinho,
mas antes de tudo e de qualquer papel por ele desempenhado, é um ser humano.
Ou seja, a personagem “está”, enquanto a pessoa “é”.
A percepção de que somos seres humanos é de vital importância para que
tenhamos clareza de algumas coisas: somos complexos, imperfeitos, mutáveis.
Complexos porque movidos tanto pela razão como pela emoção, imperfeitos
porque temos virtudes e defeitos, mutáveis porque podemos melhorar ou piorar.
Através do conhecimento de nós mesmos e de uma autoavaliação, construímos
aquilo a que chamamos de autoestima. E através dela nos relacionamos com o mundo de
maneira mais equilibrada ou não.
Não é verdade que “todo mundo odeia o Chris”. Esse título só foi dado à série para
induzir-nos a focar o lado negativo das soluções atrapalhadas e complicadas que o
protagonista adota para resolver problemas aparentemente simples trazendo mais
problemas. No final, é óbvio, as coisas se acertam. Lembram-se quando ele estava
indeciso entre ir ao cinema com a Tasha ou ao jogo de beisebol com o pai ? Sorte no
amor e azar no jogo ? Ou o contrário ? Desistindo de ir ao cinema, teve a surpresa de
constatar que os ingressos grátis do jogo estavam vencidos fazia um ano. Azar no jogo e
no amor também.
Claro que a complicação da solução faz parte da estratégia de humor, mas antes
de tudo mostra como somos seres humanos complexos.
O que falta (ou sobra) à srta. Morello para se referir ao personagem principal
sempre em tons racistas ? Uma projeção do seu complexo inconsciente “quem desdenha
quer comprar “ revelada nas cenas em que ela “arrasta a asa” para o juiz negro Watkins e
diz que adora homens negros de terno ?
Para compensar essa avalanche de tiradas preconceituosas, aparecem algumas
situações de conciliação entre as raças, como o episódio em que Chris tenta se relacionar
com o sr. Lavine ou aquela onde o Julius recebe a visita do pai do Greg para
esclarecerem um mal-entendido. Tentativa de mostrar que a série é politicamente
correta ?
O que Rochele projeta quando sente-se indignada e repete:“não preciso de tal
coisa porque meu marido tem 2 empregos” ou quando ameaça bater nos filhos até que
“fiquem brancos”? Reafirma apenas que é uma “pobre soberba”?
Reparemos no baixinho e gordinho Caruso, tipo ideal para se tornar alvo de
“bullying” dos colegas, mas que ao lado de uma pequena plateia de asseclas manda e
desmanda como um pequeno ditador, despejando agressões físicas de maneira gratuita
como se compensasse um possível complexo de inferioridade.
Complexo que o Chris manifesta sempre que tem dúvidas quanto a opções de
atividades a desempenhar na escola (participar de um time de basquete, um grupo de
teatro, de redação de notícias de um jornal) concluindo que não tem “vocação “ para
nada, reforçando então essa visão de que devemos sim, “odiá-lo’.
Quando o sr. Omar se compraz com a possibilidade de obter “clientes” para o seu
negócio funerário diante de situações trágicas, revela nosso senso de “humor negro” em
que, paradoxalmente, coisas ruins para uns são boas para outros.
Quanto ao Julius, notoriamente um “mão de vaca”, sabe quando fazer uma
extravagância financeira para agradar ou recompensar um familiar ou relevar um
desperdício em nome da harmonia entre as partes. Ou seja, nem sempre o cálculo da
relação custo-benefício é feito levando em conta apenas os números.
Já a Tônia não perde a oportunidade de chantagear os familiares para obter
ganhos que normalmente não obteria pelas vias normais. Seria um recurso para exercitar
a tentativa de controlar o lado imprevisível da vida ?
Quando o Drew repete incontáveis vezes o “não fui eu” dá-nos a impressão de que
ele também “não está aí” e “não está nem aí”.Como filho bem-sucedido que repassa suas
roupas usadas para o irmão mais velho, é popular com as garotas, aprende artes marciais
vendo filmes pela TV, não se envolve em encrencas, dificilmente é repreendido pelos pais,
parece mais um espectador que um participante da vida.
No meio de tantos estereótipos, nosso personagem principal desfila ao longo da
série os valores conflitantes que necessita para construir sua identidade, mostrando ser
bem mais complexo que os demais.
É por isso que, ao invés de todo mundo odiar o Chris, todo mundo ama o Chris.
Fazendo dele um personagem à procura de sua essência, de sua autoestima para
confrontar-se com um mundo que às vezes o acolhe e outras vezes o rejeita, o autor
chama a atenção para a pessoa que existe dentro do personagem, e que, portanto, é
maior do que este.
TODO MUNDO ODEIA O NATAL

De todas as festas do ano, acho que a pior delas é o Natal. Primeiro, porque é um
aniversário, e todos se esquecem do aniversariante. Segundo, todos querem ser
presenteados, tenham sido bons durante o ano ou não, merecendo ou não. Terceiro,
gastam mundos e fundos, entrando no ano seguinte endividados. Quarto, comem o que
podem e o que não podem, aproveitando a chegada no ano novo para prometerem que
vão mudar de vida e fazer regime para emagrecer. Tudo isso em nome de uma lembrança
que perdurará até o próximo natal, quando então faremos as mesmas loucuras e outras
mais.
Mas o pior deles, para mim, foi o último.
Pois além de todos os ingredientes acima, minha família resolveu acrescentar mais
um: o amigo secreto.
Sabem como é. Sorteamos os nomes, trocamos bilhetes, presenteamos o dito cujo
na noite festiva.
Mas o que eu não esperava era que os participantes revelassem quais os
presentes desejados.
-Julius, que tal colocarmos uma caixa de sapatos na sala, onde cada um põe seu
bilhete ?
-Isso mesmo, Rochele. Vamos nos comunicar por pequenas mensagens. Vamos
ver quem descobre quem é o amigo secreto de cada um.
-Mas não vale ficar mandando recados prá quem não é o seu amigo - disse a
Tônia, porque ela tava com medo de que eu ou o Drew nos aproveitássemos da situação
prá ficar gozando da cara dela.
-Tá legal, vamos sortear os nomes, disse minha mãe. Se pegar seu próprio nome,
devolve.
Meu pai foi o primeiro. Olhou o papelzinho, fez ar de suspense, uma careta e
depois sorriu satisfeito.
Minha mãe pegou o dela, abriu, leu, guardou no bolso da calça sem esboçar
reação.
Pela ordem cronológica, fui o próximo. Enquanto lia o nome, olhei disfarçadamente
para minha "vítima".
O Drew fez onda para tirar um dos dois últimos, cantou mamãe-mandou-pegar-
este-daqui. Abriu o seu, encenou um ataque de nervos.
A Tônia não tinha o que escolher, já tava escolhido. Abriu o papelzinho e fez ar de
dengo.
E assim estávamos nós, comprometidos, a 2 semanas do natal, a manifestarmos
nossos desejos natalinos e tentar satisfazer os de nossos amigos secretos.
Na manhã seguinte, antes de sair para a escola, fui mexer na "caixa de sugestões"
que meu pai armou na sala.
Quase tive um colapso !
O bilhete do Drew dizia: "Caro amigo: faz tempo que desejo um skate modelo
assim, com rodas de liga leve, madeira não sei de quê, com acabamento X, na cor Y. Se
desejar sugestões, pode encontrar o produto nas lojas A ou B."
Fiquei pasmo. Onde eu iria arranjar umas 100 pratas prá comprar um presente
desses ?E a duas semanas do natal ? Eu ia ter que trabalhar em 3 empregos como o meu
pai e recolher todas as caixinhas e gorjetas que os fregueses deixassem.
Corri prá escola, aproveitando a aula de matemática para tentar resolver esta
equação.
-Oi Chris, difíceis os exercícios de álgebra, não ? comentou o Greg durante o
intervalo.
-Difícil vai ser eu conseguir um bico que me pague mais de 5 dólares por dia
durante os próximos 13 dias trabalhando de tarde à noite.
-Mas prá que você precisa ganhar essa grana toda ?
Expliquei ao Greg a história do amigo secreto e o desejo do Drew.
-E você já colocou o seu bilhete pedindo o presente pro seu amigo ?
-Não, por que ?
-Porque você diz prá ele que quer um skate do mesmo jeito que o Drew pediu prá
você.
Aquela sugestão me tranquilizou
-Taí. Só preciso repassar o meu presente prá ele. Não vou gastar um tostão.
Mostrei o bilhete do Drew para o Greg e pedi a ele que me ditasse o texto,
enquanto eu escrevia num outro, que o meu desejo era ganhar o mesmo.
Quando cheguei em casa, sem que ninguém me visse, coloquei meu bilhete na
caixa de sapatos.
No dia seguinte, fui checar se havia alguma novidade.
Meu amigo secreto havia respondido o bilhete: "Chris, você não acha qye está um
pouco crescidinho para ficar andando num skate ? Além do mais, você nem sabe andar
nisso, correria um grande risco de ser atropelado na rua ou mesmo ser roubado pelas
gangs de nosso bairro. Pense melhor e peça algo mais adequado."
Deus do céu ! Pelo tom da conversa só podia ser papai ou mamãe. E do jeito que
eu os conheço, dificilmente mudariam de ideia.
Fui para a escola consultar o Greg.
-O meu amigo secreto não vai me dar o skate. Vou ter que arrumar um trabalho
para conseguir o dinheiro.
-Calma aí, Chris. Mande um bilhete pro Drew aconselhando ele a pedir outra coisa.
E lá fomos nós redigir um outro recado dizendo como era perigoso andar de skate
pelas ruas de nosso bairro, trocando as palavras e a pontuação, quase implorando ao
Drew escolher outro presente.
Cheguei em casa, fui logo colocando o papel na caixa.
Depois de almoçar, saí em busca de algum emprego. O bom dessa época é que há
um aumento nas ofertas de trabalho, mas como tem mais gente se dispondo a trabalhar, o
salário também é mais baixo.
Passei em todos os estabelecimentos comerciais que conheço, o máximo que
consegui foi no mercado do Doc, para receber e guardar mercadorias, limpar o ambiente,
fazer as entregas, ouvir as reclamações do público, tudo isso pela módica quantia de 5
dólares por dia.
-Tudo bem, Doc, mas posso ficar com as gorjetas ?
-Tá bem Chris. Mas não fique enrolando entre uma entrega e outra.
Depois de 6 entregas, que fazia com a bicicleta, consegui 3,25 dólares, mais os 5
da diária, somaram 8,25. Nada mau para meu primeiro dia.
-Onde esteve até esta hora, Chris ? perguntou mamãe.
-Fazendo um serviço extra.
-Não se esqueça dos estudos. Senão vai ficar como seu pai e eu, trabalhando em
mais de um emprego e juntando cupons de desconto.
Não, pensei comigo. É só o tempo de conseguir a verba do presente.
E fui dormir sem jantar, tão cansado estava.
De manhã, como sempre, fui abrir a "caixinha de surpresas".
Meu bilhete dizia: "Chris, você tem razão. Andar de skate não leva a nada. É
preferível uma coisa mais saudável, mais cultural. Gostaria de ganhar um walkman e a
coleção completa de CDs dos Beatles".
-Minha nossa -exclamou o Greg quando leu o bilhete.
-Agora eu tô ferrado. Se já estava difícil arrumar dinheiro pro skate, vai ser
impossível dar tudo isso a ele.
-Que tal tentarmos repassar o pedido para o seu amigo ?
-É, não custa tentar - disse já desanimado.
E antes de colocá-lo na caixa, invoquei os santos de minha devoção para me
ajudarem nessa tarefa.
Comi algo rapidamente e saí para o trabalho.
O bom da época de natal é que as pessoas que não costumam dar gorjeta acabam
oferecendo alguma coisa. Nozes, avelãs, uma garrafa de vinho ou champanhe.
O duro era convencer o Doc que aquilo era a minha "caixinha" e não um produto
surrupiado da prateleira do seu mercado.
Como eu estava ganhando mais em gorjetas do que em diárias, achei que ao final
de 2 semanas iria conseguir o dinheiro para comprar o presente do Drew.
-Papai, você acha que se o meu amigo secreto não receber o presente que ele
pediu ele vai ficar chateado ? - perguntou a Tônia.
-Não meu anjo -respondeu ele pegando-a no colo. O presente é só um símbolo de
nosso afeto pela pessoa a quem damos. Mas não é o tamanho ou o preço dele que
significam o quanto gostamos dela. O que vale é a intenção.
E a minha intenção com relação do Drew era dar-lhe um figo podre. Mas,pensando
bem, ele era meu irmão, achei que, ao menos uma vez na vida eu tinha que realizar um
desejo dele.
Na manhã seguinte, fui pegar minha correspondência.
"Chris, você precisa ter mais personalidade. Passar de um skate para um walkman
com os CDs dos Beatles é como mudar da água para o vinho. E você nem curte os
Beatles! Não quero que você se torne um desses consumistas que andam atrás do que é
moda. Seja razoável e peça algo útil para sua vida. Não se importe com o tamanho ou o
preço. O que vale é a intenção."
Caramba! A letra não era dele, mas o som de cada palavra era igualzinho ao da
voz do meu pai dizendo aquelas coisas para a Tônia.
-Greg, você sabe como é entrar num jogo sabendo que será derrotado ?
-Por que ?
-Meu pai vai ter todos os argumentos prá não me dar o que eu lhe pedir, e o Drew
vai sempre trocar o seu presente por algo mais caro.
-Então é melhor você pedir o livro "Como fazer amigos e influenciar pessoas" - riu-
se do meu desespero.
-O que você acha de eu pedir então um vale-compras? Faço as contas de quanto
vou receber no trabalho, junto com ele, dou ao Drew e ele terá o seu presente.
-Só que você vai ficar de mãos abanando.
-Que nada. Se eu conseguir me safar dessa história já vai ser um presentão.
E assim, solicitei ao amigo secreto um vale-compras para eu usá-lo de modo
adequado e útil para minha vida.
Os dias foram passando e esse estranho "espírito de natal" que afeta
positivamente as pessoas só me trouxe a sensação de ter de cumprir um penoso dever.
Enquanto as pessoas curtiam alegremente este clima, eu estava ficando neurótico.
-Chris, você decorou a fala do rei mago ?
-Sim srta. Morello.
-Você diz aos pais de Jesus quais os presentes trazidos do oriente.
-Certo: um skate, um walkman e os CDs dos Beatles.
-Não é nada disso!
E os atores todos riam-se da minha cara durante o ensaio.
Enquanto eu me dedicava a administrar esse projeto "amigo secreto", meu pai,
como sempre, se preocupava com as finanças do lar.
-Julius, o que você prefere para nossa ceia de natal ? Peru, carneiro ou leitão ?
-Amor , quanto é que juntamos em cupons de desconto ?
-Acho que temos um 25,30
-Bom, se esperarmos juntar mais uns 10,00, o peru sai quase de graça, mas a
gente corre o risco de ficar sem a mercadoria ou ela subir de preço por causa da procura.
Entre os 3, o preço por quilo mais barato é o do peru, mas o mínimo a comprar são 6 a 7
kg. Um leitão passa dos 10 kg. O carneiro é mais caro por kg mas podemos comprar uma
peça menor e a perda com osso é pequena. Como tem menos gordura, rende mais
depois de assado.
Puxa! Depois de ouvir aquilo eu entendi porque nossa família de 5 pessoas,
pagando um monte de contas, com 3 filhos estudando, um pai com 3 empregos e uma
mãe trabalhando eventualmente, conseguia sobreviver. Meu pai era um gênio das
finanças e da economia doméstica.
-Pai, não se preocupe com os panetones, vinho e champanhe, que eu ganhei na
caixinha desta semana - emendei na conversa dos dois.
Quando recolhi a resposta ao meu bilhete já nem me importava tanto. "Chris, achei
que você era um rapaz que sabe o que quer. Um vale-compras de $ 50,00 ?Se fosse para
presentearmos nosso amigo secreto com vale-compras, não precisaríamos trocar
presentes. Eu mesmo não gostaria de um vale-compras. Peça algo decente antes que eu
mesmo decida o que dar a você ".
O Greg riu muito e comentou:
-Por que você não pede um cupom de desconto? Seu pai é fâ deles.
-Não enche. Meu pai tá certo.
-É isso aí. Você tá tomando essa brincadeira a ferro e fogo. O Drew tá se
aproveitando prá levar vantagem, e o teu pai está vivendo o verdadeiro espírito de natal.
Pensei bem e concordei.
Fui trabalhar mais tranquilo, fiquei mais amistoso com o Doc, tratei melhor os
clientes, fiz as entregas com calma.
Numa delas, ao entrar com as compras na casa do morador, este me perguntou:
-E aí, cara, já mandou sua carta pro papai noel ?
-Já, mas acho que o produto tá em falta.
-Chega aqui.
E levou-me a um quarto cheio de mercadorias novas, jogos, brinquedos,
eletrodomésticos e eletrônicos.
-Puxa, o papai noel te alugou como fiel depositário ?
-É, papai noel, coelhinho da páscoa, fada dos dentes, cegonha, gnomos, etc.
-Tem walkman ?
Apontou uma prateleira com vários deles, várias marcas.
-Escolhe um.
Peguei logo o da marca pretendida pelo Drew. Abri a caixa, olhei estarrecido e
intrigado.
-Quanto custa ?
-Se ficar quieto é de graça.
Fiz rapidamente um cálculo, a relação custo-benefício.
Estiquei-lhe a mão.
-Obrigado. Feliz natal.
-Feliz natal, garoto.
Saí dali correndo, direto à loja de discos para comprar os CDs.
Depois das compras, verifiquei que me sobraram 15,00. Dava para juntar com os
cupons e comprar um peru para a ceia.
Voltei para casa, guardei cuidadosamente os presentes do Drew e pedi para minha
mãe os cupons.
No mercado do Doc tive que ouvir a ladainha por me demorar na entrega. Ouvi
aquilo tudo numa boa, e ele logo se acalmou quando lhe disse que ia comprar um peru,
pagando-lhe com cupons e mais algum dinheiro.
Já no final do dia, tive que sair para mais uma entrega. Era na casa da sra. Smith.
A compra era pequena, todos produtos simples e baratos.
Quando cheguei, perguntei:
-Já está tudo pronto para a ceia de natal?
-Que ceia, meu filho ?
-Ora, o de sempre. Peru, champanhe, farofa, nozes.
-Quem me dera, Chris. Há anos que não sei o que é isso. Quando algum filho se
lembra de me convidar, até que desfruto de bons momentos. Como vivo sozinha, não me
animo a festejar.
Aquilo me incomodou. Deixei as mercadorias sobre a mesa e finalizei:
-O Doc mandou este peru para a sra. É por ser uma cliente preferencial.
Quando ela me abraçou, em agradecimento, senti-lhe um tremor de emoção e um
alívio na minha alma.
Meu pai iria entender perfeitamente meu gesto.
Durante a apresentação da peça, onde participava apenas pela necessidade de
haver um rei mago negro, eu estava pronto para minha fala.
-Senhor, aqui estamos nós, vindos do oriente, seguindo a estrela guia para adorar
o rei-menino.
-Agradeço-vos a homenagem, ó digníssimos reis- respondeu Greg fazendo o papel
de José.
-Aqui tendes incenso, ouro e mirra.
-Quanta gentileza, majestade.
-A partir de hoje, em cada aniversário desta criança, todos os homens devem usar
o incenso para orar a Deus, agradecendo pela vida que têm, o ouro acumulado para
repartir entre os necessitados e a mirra para cuidar de si, equilibrando seu corpo e alma.
Que os natais sejam de prece, esmola e jejum.
O Greg arregalou os olhos porque aquilo não estava no script, a professora
sussurou de trás da cortina dizendo : "Chris, você é um imbecil", e os demais atores,
inclusive o Caruso, me olharam atônitos, mas a plateia, inclusive minha família, aplaudiu
de pé aquelas frases improvisadas saídas do fundo do coração.
Depois disso,foi moleza convencer meus pais que o peru de natal foi alegrar outra
família em vez da nossa.
Mas o "gran finale" estava por vir.
Reunidos em frente à árvore de natal, começamos a revelar nossos amigos
secretos.
Meu pai foi o primeiro. Pegou o pacote, anunciou que o amigo dele era mulher, mas
fez suspense dizendo que, quando era preciso, ela ajudava em casa (minha mãe
trabalhava quando precisava reforçar o orçamento doméstico e a Tônia ajudava quando
ele pedia). As duas ficaram em dúvida e ele acabou gritando:
-Rochele, meu amor !
Minha mãe se levantou da cadeira e abraçou efusivamente meu pai cobrindo-o de
beijos. Rasgou o papel que envolvia a caixa e seus olhos brilharam ao ver o lindo sapato
de salto alto que havia ganho. Agradeceu novamente, tirou de baixo da árvore seu
presente.
-O meu amigo precisa pensar mais nos estudos, mas como passou de ano está
tudo bem. Ele me pediu uma coisa meio extravante mas eu comprei algo mais útil.
Eu já ia me levantando da cadeira quando ela pronunciou:
-Tônia, minha querida !
A Tônia correu até minha mãe, abraçou-a e abriu o presente: um conjunto de calça,
camiseta e tênis com figuras de personagens infantis.
Fiquei surpreso. Se não era meu pai nem minha mãe meus amigos secretos, quem
seria ?
A Tônia pegou o presente debaixo da árvore e foi recitando:
“Para o meu pai do coração
Vai aqui uma lembrancinha
O que vale é a intenção
Neste natal, de sua menininha.”
Meu pai ficou extasiado, por ele valiam mais os versos que a mercadoria. Pegou a
Tônia nos braços e agradeceu com beijos.
O Drew e eu nos olhamos. Sabíamos perfeitamente o que nos aguardava.
Peguei o meu pacote debaixo da árvore e improvisei o discurso, lembrando-me dos
bilhetes que ele me enviara.
-Drew, feliz natal, espero que seja adequado e útil.
Quando desatou o nó da fita que amarrava o saco e viu o conteúdo, pulou de
alegria. Acho que por ter me passado a perna.
-Obrigado, Chris - estendeu-me o presente dele. Você vai "amar" este aqui.
Fomos então para nossos quartos para provarmos ou curtir nossos presentes.
Dali a uns cinco minutos, ouvi a voz de minha mãe, vindo do quarto do Drew.
-Chris, em que loja você comprou o walkman ? Não tá funcionando.
Abri o livro "Como fazer amigos e influenciar pessoas" que ganhara do Drew para
ver se achava, em alguma página, um modo de me explicar sem dizer uma só palavra.
TODO MUNDO ODEIA PREVISÃO DE ANO NOVO

Preocupada com o novo ano que se aproxima, minha mãe entrou numa fase de
consultar todo tipo de previsão para se certificar de que 1984 será um período favorável a
seus projetos e ambições.
Desde tarô a búzios, horóscopo zodiacal, mapas astrológicos, leitura de borra de
café e folhas de chá, ela procura todo dia um profeta diferente que lhe diga as coisas que
deseja ouvir: um ano melhor que o anterior, cheio de realizações e sucesso.
Bom, para ouvir isso, não precisa pagar nada. Basta falar com nossos vizinhos que
lhe diriam gratuitamente e de boa vontade: Feliz natal e próspero ano novo.
Como eu não acredito muito nessas coisas, pois acho que, como meu pai que tem
2 empregos, o destino a gente mesmo constrói, não dei muita bola para essa “moda”
toda.
Mas quando ela falou em horóscopo chinês, esse tema despertou minha
curiosidade e fui atrás para me inteirar melhor sobre ele.
Consultei enciclopédias, revistas especializadas, perguntei ao Greg e à srta.
Morello se sabiam algo a respeito, enfim, encontrei muita coisa , mas a explicação mais
interessante foi a seguinte:
“O horóscopo chinês é regido por ciclos lunares, de 12 anos. A cada ano desse
ciclo corresponde um animal, que confere um signo aos nascidos nesse período. Assim,
num ciclo de 12 anos, os animais que regem cada ano, são: rato, búfalo, tigre, gato,
dragão, serpente, cavalo, cabra, macaco, galo, cachorro e porco. A origem desse
horóscopo é um tanto controversa, mas a versão mais difundida seria a seguinte: Depois
de construída a arca, Noé teria chamado os animais para nela adentrarem. No entanto
apenas 12 obedeceram, nessa ordem. Os demais só o fizeram quando começou a
chover, o que confirmou o poder premonitório dos 12 primeiros. Muita água rolou (ou caiu)
até que um aventureiro de nome Marco Polo, em suas andanças pela China contou a
história ao imperador. Este, entretido num jogo de dados, notou que podia conferir, a cada
um dos valores obtidos, um animal. Foi aí que acabou inventando o primeiro jogo do
bicho, e é por isso que se diz, de um negócio rendoso, um negócio da China. A partir daí,
os futurólogos da corte começaram a realizar previsões anuais, tentando fazer com que o
imperador acertasse no jogo. Como não acertasse em dezena, centena ou milhar,
reduzido a dívidas, resolveu aumentar os impostos, o que causou descontentamento no
povo e provocou a 'revolução dos bichos'(1). O resto a gente já sabe, acabou dando nisso
que é '1984'(2)”
Quando mostrei à minha mãe esses dados ela foi logo me criticando:
-Ora Chris, não tá vendo que isso é uma enrolação, onde você achou isso ? Na
Mad (3) ?
Como o meu intuito era apenas o de acrescentar mais dados à “pesquisa” que ela
estava desenvolvendo, continuei:
“1984 pode ser o paraíso dos pessimistas ou o último reduto dos otimistas. Tudo
depende de se amaldiçoar a escuridão ou se acender uma lâmpada. Como os astros
andam brilhando pouco e as nossas estrelas, quando muito, são cadentes, vai ser preciso
um pouco de força para ver a luz no fim do túnel. No entanto, para consolo de todos, 1984
terá 365 dias, 12 meses, 52 semanas, começará em primeiro de janeiro e findará em 31
de dezembro (isso se o americanos e russos não resolverem fechar o expediente
antes).Nascerão muitas pessoas, que ninguém é de ferro, e em compensação morrerão
outras, que ninguém é de aço. Os ricos continuarão ricos e os pobres serão promovidos a
miseráveis, o que reduzirá o mundo a 2 classes: os homens de primeira e os de segunda
categoria. Como o rato rege esse ano, 1984 aumentará o número de roedores para cada
habitante, assim quem não tem gato, caça com rato. Na politica a situação continuará se
situando, a oposição se opondo e o governo em cima da carne seca. Como 84 é a dezena
do touro no jogo do bicho, pode jogar que vai dar na cabeça.”
-Chris, quanta besteira junto. Você acha que eu vou acreditar numa asneira
dessa ? E quem disse que aqui nós temos jogo do bicho ?
-Mas mãe, eu descobri que aqui em casa, a senhora e a Tonia são do signo de galo
,papai, eu e o Drew somos do signo de macaco.
-E daí ? Vai me dizer que quem manda aqui sou eu ?
-Escuta só :
“Para os nascidos sob o signo do macaco, 1984 vai continuar sendo um ano de
austeridade. Portanto, nada de macaquices ou micagens, que ninguém tá a fim de ver o
circo pegar fogo. Aproveite para fazer passeios, principalmente ao zoológico, mas evite
dar comida aos animais. No amor, não se meta com a mulher do próximo, cada macaco
no seu galho. Saúde: boa em geral. Cuidado com pulgas e piolhos.”
-E o galo ? O que tem prá ele ?
“Outro que deverá ter sucesso no campo material é o nativo deste signo, já que
Deus sempre ajuda quem cedo madruga. Os mais jovens devem ter cuidado ao tentar se
impor no terreiro. Pode haver muitas rinhas até que consigam cantar de galo. No amor,
terá muitas ocasiões para arrastar a asa para o ser amado. Saúde: seu espírito de
iniciativa pode fazer com que dê muitas cabeçadas. No máximo vai obter alguns galos na
cabeça.”
No fim, mostrei-lhe que tudo isso estava numa revista semanal de variedades que
ela mesma acompanhava para se manter atualizada. Mamãe abriu um sorriso e, vendo a
inconsistência e superficialidade de tudo aquilo, resolveu parar de buscar nos oráculos as
respostas a seus anseios existenciais, e, como bom galo que é, foi se preparar para
dormir e enfrentar, no dia seguinte, mais um “round” de sua luta em busca de uma vida
melhor.

(1) romance homônimo de George Orwell sobre a revolução de animais lutando contra as
condições de opressão impostas pelos humanos numa fazenda. Metáfora para as
revoluções socialistas,incluindo a chinesa.
(2) romance homônimo de George Orwell sobre uma sociedade totalitária e que se passa
em 1984
(3) Mad era uma revista de humor que ironizava a cultura norte-americana, lançada em
1952
TODO MUNDO ODEIA O ESPIRITISMO

O Drew sempre teve muita iniciativa quando se tratava de resolver suas dúvidas
escolares. Se um novo tema lhe colocava um empecilho ao perfeito entendimento da
matéria, ele perguntava, corria ao dicionário, às enciclopédias e à biblioteca municipal.
Isso tudo numa época em que estávamos longe de saber o que era a Internet e suas
facilidades de acesso à informação.
-Estou lendo o livro "O que é o Espiritismo", de Allan Kardec - revelou-nos à hora
do jantar.
-E por que é que você se interessou por este assunto ?- perguntou minha mãe.
-É que tivemos aula de Ciências com o professor Aldous, ele ensinou que as
espécies , inclusive a humana sobreviveram no mundo graças à evolução.
-É, os seres vivos se adaptam ao meio ambiente, enquanto os indivíduos menos
capazes são eliminados. Como os mais aptos deixam descendência fértil, as espécies
mais "resistentes" permanecem. - completei o raciocínio, pois eu já tinha passado pela
mesma matéria alguns anos atrás.
-Mas o que é que uma coisa tem a ver com outra ? - interveio meu pai que ainda
estava "boiando".
-Pai, a gente sempre ouviu falar que Deus criou o homem, após ter feito o mundo,
as plantas e os animais irracionais. Daí vem um tal de Charles Darwin dizendo que os
seres vivos descendem uns dos outros e que tudo isso ocorre por causa das mutações
genéticas que um padre chamado Gregor Mendel descobriu.
-E daí ? - retornou minha mãe com seu olhar pragmático.
-E daí que as duas coisas não estão casando bem na minha cabeça.
-E por que motivo você foi procurar ajuda no Espiritismo ?
-Tenho um colega que é adepto e disse que essa doutrina dá conta de explicar os
fatos sem desprezar nenhuma das teorias.
-E você já encontrou essa explicação ? - interessou-se meu pai.
-Ainda não mas aprendi muitas novidades.
-O que por exemplo ? - intrometeu-se a Tonya, duvidando que o Drew fosse capaz
de aprender alguma coisa útil.
-Bom - começou com ar professoral - O Espiritismo é uma ciência, uma doutrina e
uma religião.
-Como assim ? - perguntei confuso.
-É uma ciência porque prova a existência dos espíritos e a relação entre eles. É
uma doutrina filosófica porque estuda as consequências morais decorrentes dessa
relação e é uma religião porque prescreve a melhor conduta para nos relacionarmos com
Deus.
-Puxa, quer dizer que os espíritos existem mesmo ? - indagou a Tonya arregalando
os olhos de medo.
-Sim, Nós somos espíritos encarnados.
-E os fantasmas ?
-O que você chama de fantasmas são espíritos desencarnados, porque já
morreram. Os espíritos passam por várias encarnações.
-E por que ?
-Porque os espíritos são criados simples e ignorantes e as encarnações servem
para sua evolução intelectual e moral.
-Quer dizer que todos da nossa família passaram por outras vidas e vão passar por
mais algumas ?- arriscou meu pai.
-Hoje você é meu pai. Numa vida anterior pode ter sido o contrário. No futuro
podemos nascer em famílias diferentes, até mesmo de sexos opostos.
-E o que determina que tipo de relações vamos ter ? - perguntei meio aflito.
-A vida que cada um leva. Se você fizer o bem e coisas certas, pode pleitear uma
reencarnação junto a pessoas de sua estima. Se fizer o mal e muitos erros, pode ser
obrigado a voltar junto a desafetos para ressarcir-lhes as dívidas.
-É olho por olho e dente por dente ? - quis simplificar minha mãe.
-Não. A reencarnação é mais uma oportunidade do que um castigo. Às vezes o
próprio espírito solicita uma existência de dificuldades para vivê-la como uma prova. Por
outro lado volta com o objetivo de ajudar aqueles a quem prejudicou. Mas outros são
forçados a passar por situações específicas para resgatar grandes débitos contraídos.
-Por exemplo ?
-Os suicidas, por terem desistido de suas vidas anteriores, precisam voltar em
condições amargas para restabelecer o equilíbrio perdido.
Fiquei surpreso com a facilidade com que meu irmão havia assimilado os conceitos
de uma nova teoria. Por um momento achei que ele havia encarnado em nossa família
para abrir nossos olhos e enxergarmos a vida sob outro prisma.
No dia seguinte, perguntei ao Greg o que ele achava do meu relacionamento com o
Caruso.
-Que relacionamento ?
-O fato dele vir sempre com sete pedras na mão quando me vê.
-Bom, ele não morre de amores por você.
-Será que isso vem de outras encarnações ?
-Como é que é? Que papo é esse ?
-É que o Drew estava explicando que nós, enquanto espíritos, temos ou não
afinidades com os demais, e isso provém de outras vidas.
-Quer dizer que você e o Caruso já não se "bicavam" desde antes ?
-É isso aí. A gente deve ser inimigo desde outras eras.
-E o que você vai fazer ?
-Segundo o Espiritismo, enquanto não fizer as pazes com seu desafeto você vai
continuar se encontrando com ele pela vida afora, seja como colega, parente, marido ou
mulher.
-Puxa, que saco se você tiver que casar com o Caruso numa dessas voltas - riu-se
da minha cara.
-Pois é. Se esse fardo já é duro de carregar nessa existência, imagine pela
eternidade.
Enquanto eu me deparava com essas questões existenciais, minha mãe que gosta
de colocar tudo em pratos limpos, ouviu uma freguesa do salão de beleza dizer que
conhecia uma mãe-de-santo.
-E ela cobra muito caro ?
-Depende. Se ela for com a tua cara, pode até deixar de graça.
Assim que ela teve uma folga, foi conhecer a dita cuja.
Antes que minha mãe se apresentasse, a médium foi logo dizendo:
-Você veio aqui porque deseja conhecer o seu passado.
Apesar de se impressionar com a firmeza do comentário, minha mãe sabia que
todo mundo só vai a um desses lugares se quer saber sobre o passado ou o futuro. Ao
afirmar aquilo, havia 50% de chance de acerto.
-Eu vim aqui...
-Um minuto, Rochelle Rock.
Minha mãe averiguou se não estava usando o crachá, com seu nome, do salão de
beleza. A partir daí começou a botar fé na coisa.
-Zi fia tá "percurando" sabê porque tem perna-de-calça com 2 empregos, fio mais
véio que sempre arruma encrenca - a mulher jovem mudou o tom de voz e começou a
falar arrastado como se fosse muito velha e a pitar um cachimbo.
-Quem é a senhora ? - perguntou num sobressalto.
-Pode me chamá de mãe Maria, fia.
´ -Tá bom, mãe Maria. Porque a minha vida é tão difícil assim?
-Fia minha já foi muito bem de vida - soprando uma baforada na cara da minha
mãe Na outra encarnação era uma atriz famosa, marido também. Só que "perjudicou"
muitas pessoas, passou a perna nesse meu cavalinho e no marido dela. Ele hoje é esse
fio mais véio que sucê e seu perna-de-calça tem que sustentá, junto com 2 outros
calunguinhas que vão ajudá muito oceis. Ceis são de raça negra qui nem meu cavalinho
porque antigamente já foram fazendeiros ricos e tiveram muitos escravos que sofreram
nas suas mãos. O menino mais véio tem um colega branco que foi sócio dele num grande
negócio. Os 2 se desentenderam e seu fio armou um plano prá roubar o outro. Têm
paciência que tudo vai dar certo.
Minha mãe não sabia se acreditava ou não. A história poderia caber em qualquer
biografia de alguém que estivesse passando por dificuldades. Alguns poucos detalhes de
sua vida atual poderiam ter sido passados para a médium por algum conhecido em
comum.
Depois de algumas outras revelações, minha mãe concluiu:
-Mãe Maria, meu marido tem alguma amante ?
-Ih, minha fia. Cê acha que com 2 empregos e uma família de 5 pessoas prá cuidá
vai sobrar tempo e dinheiro pra isso ? - e riu-se da pergunta.
De noite, minha mãe foi intimada a contar os detalhes de sua "pesquisa".
-Mãe, você foi mesmo consultar uma médium ? - quis saber o Drew.
-Fui, o nome dela é Oda Mae Brown.
-E o que ela disse ?
-Quem disse foi o espírito que ela incorporou, a mãe Maria, uma preta velha.
-Ah é?
-Ela disse que eu fui uma artista, Tichina Arnold. E o seu pai também, Terry Crews.
Que nós havíamos passado a perna numa atriz chamada Whoopi Goldberg, que era a
encarnação da Oda Mae.
-E o que mais ? - perguntei.
Embora minha mãe tivesse duvidado das informações, não quis revelar que eu
tinha sido o marido da atriz e que estava na família para ser recompensado de alguma
forma pelos maus atos dos meus pais.
-E dai mais nada. Não fui com a cara dela. Quando perguntei se tinha outro horário
para me receber, falou que estava com um caso complicado. Um tal Sam Wheat havia
morrido e lhe aparecia constantemente pedindo sua ajuda para salvar sua ex-namorada,
a Molly Jensen.
-Engraçado. Parece o enredo daquele filme (1), como é mesmo o nome ?-
perguntou a Tonya
Aproveitando o gancho, o Drew comentou que, segundo o Espiritismo, o
esquecimento temporário das vidas passadas é benéfico para o espírito, uma vez que
lembrando-se de todas as situações anteriores pode-se ver constrangido na convivência
atual com aqueles que sabe ter sido seus desafetos e isso influenciar negativamente o
relacionamento.
Naquela noite, movidos por esse tipo de pensamento - o que teríamos feito uns
contra os outros - terminamos o jantar calados.
Dias depois.
-Greg, você acha que existe vida nos outros planetas ?
-A Nasa está pesquisando isso através dos foguetes e sondas espaciais.
-Tem alguns autores que afirmam que existe vida inteligente em Marte, Jupiter e
Saturno.
-Quem ?
-Alguns espíritos.
-Eles já estiveram lá ?
-Sim. E relatam isso através de médiuns.
-E o que tem isso?
-Ora, poderíamos dizer a esses espíritos que pedissem a esses ETs -
supostamente mais evoluídos que a espécie humana - para nos visitar.
-Cê tá maluco ? E se eles resolvem nos escravizar, uma vez que são mais
adiantados ?
-E o que tem isso ? Ouvi dizer que os habitantes de uma estrela de nome Capela
estiveram aqui na Terra no início da civilização para ensinar aos homens como viverem
em sociedade.
-Ah é ? E você viu no que deu ? - ironizou.
No fim das aulas fui falar com a srta. Morello.
-Professora, você acredita em reencarnação ?
Ela me olhou surpresa:
-Você está bem Chris ? Você bebeu o cheirou algo ?
Destesto a reação das pessoas me perguntando se está tudo bem comigo só
porque eu lhes falo sobre algum assunto pouco usual.
-Sim, tudo bem.
-Por que você está me perguntando isso ?
-É que estou lendo alguns textos sobre o Espiritismo, e a crença na reencarnação é
fundamental para essa doutrina.
-Ah, bom. Na verdade eu nunca pensei na questão. E você,o que acha ?
-Eu ainda não estou convencido, apesar das evidências apontadas nesses
documentos. O que me incomoda é não saber que postura adotar diante da vida atual.
-Como assim ?
-Veja só. Se não houver reencarnação, tanto faz eu ser honesto ou não, não terei
que dar conta das minhas ações na próxima vida. Se houver, e eu andar errado, então
vou me arrepender por isso.
-Você está querendo me dizer que precisa ter certeza sobre esse ponto para poder
agir certo ou errado ?
-Mais ou menos. O Malvo vive achacando os outros, furta, rouba e aplica golpes.
Ele não tá nem aí com essas coisas do espírito, ele só quer levar vantagem, viver no
bem-bom e desfrutar dos prazeres.
-Será que ele dorme em paz ?
-Não sei.
-Alguém que age errado não pode ter bons amigos, quando muito tem cúmplices.
Além do mais, fica sempre apreensivo com a possibilidade de ser preso.
-Quer dizer que fazer o mal nos priva de paz e de amigos ?
-Sim. Mesmo que você nunca tenha certeza de que existe ou não a reencarnação,
viver corretamente vai manter sua consciência tranquila. Quando muito pode se
arrepender de ter feito algo de bom para alguém e não encontrar retribuição. Mas você vai
se sentir melhor tendo ajudado do que prejudicado alguém.
-Srta. Morello...
-Sim ?
-Aquele dia em que a srta. colocou minha classe toda de castigo...
-Porque alguém havia colado as páginas do meu livro sobre a aula que ia dar, e eu
avisei que se o responsável não aparecesse iria manter todos vocês na sala até mais
tarde ?
-Sim, fui eu que colei as páginas.
-Tudo bem Chris, está desculpado.
Quando cheguei em casa, ouvi o Drew recitar uma prece:
"Santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador
Já que a ti me confiou a piedade divina
Sempre me rege, sempre me guarda, sempre me protege
Me ilumina sempre. Amém"
-Está rezando ?
-Sim. Para manter-me em sintonia com os bons espíritos. Se você tiver bons
pensamentos, atrai bons espíritos. Se tiver maus pensamentos, atrai os espíritos
inferiores, sujeitando-se a ser obsidiado por eles.
Puxa, pensei, será que se tiver pensamentos elevados eu consigo afastar o Caruso
?
Depois de tanto ler, conversar, comer e beber Espiritismo, o Drew achou a
explicação que faltava na sua cabeça.
-Segundo o Espiritismo, Deus, ao criar a matéria, colocou nela uma centelha divina,
ou seja, desde o mineral ao animal, todos possuem esse princípio. À medida que os seres
evoluem essa centelha progride até o estado de consciência. Os espíritos evoluem
ampliando seu nivel de consciência. Portanto, quando a Igreja católica fala que Deus criou
o homem depois do universo, dos minerais, vegetais e animais, está falando de maneira
simbólica, pois desde o início o ser humano já existia como essência dentro da centelha.
O Darwinismo explicou biologicamente como ocorreu essa evolução.
Definitivamente o Drew havia conseguido superar-se. O que uma matéria de classe
podia fazer a um espírito determinado e confiante ?
Para não ficar muito atrás, a Tonya também fez o seu comentário.
-Pai, tem um espírito que diz que não devemos mais comer carne, apenas
vegetais.
-Ah é? O que ele diz a esse respeito ?
-Que estamos cometendo violência contra os animais. Que, ao serem abatidos
sofrem muito e transmitem, através de substâncias nocivas à saúde humana, essa dor e
sofrimento por que passam.
Eu tenho certeza que ela se lembrou disso porque naquela semana o meu pai
havia comprado uma caixa de 20 kg de linguiça que estava em oferta e todos os dias a
gente tinha que comê-la, preparada de um jeito ou de outro.
Como ele não podia tomar as refeições sem um bom pedaço de carne, frango,
porco ou peixe no prato, e não enjoava de comer a mesma coisa todos os dias,
argumentou:
-Acho que, depois de todas essas lições que o Drew nos deu, eu tenho que me
considerar um espírito mediano, nem tão atrasado nem muito evoluído. No final das
contas, se eu tenho que manter 2 empregos prefiro acreditar que é mais porque estou
tentando me adaptar e sobreviver ao meio ambiente do que por ter sido um patrão branco
malvado que castigava seus escravos negros.
Mas meu irmão arrematou:
-Pai, não se preocupe com os motivos de você ter 2 empregos nesta vida. Sejam
quais forem, você está aproveitando uma única existência para saldar as dívidas de
outras duas.
Rimos da justificativa encontrada por meu pai - o Darwinismo social - e pelo
argumento levantado pelo Drew. Como eu não me decidira ainda pela crença no
Espiritismo, adotei a postura da tolerância e de não julgar as ações e convicções dos
outros, valores fundamentais pregados por essa doutrina. Afinal, naquela semana, entre
outras coisas, eu havia sido surpreendido pela Tonya quando agendava, por telefone,
uma reunião com meus amigos para uma sessão de "mesas girantes", fato que ela
deixaria de relatar a meus pais se eu lhe pagasse 5 dólares.

(1) Tônia se refere ao filme “Ghost”, com Demi Moore e Patrick Swayze
TODO MUNDO ODEIA O DESPERDÍCIO

Todos vocês se lembram quando meu pai, com a intenção de aproveitar uma
oferta, comprou uma caixa de linguiça que, apesar das variações culinárias feitas por
minha mãe, sendo comida no almoço e jantar, durou semanas, deixando-nos com séria
aversão a esse alimento (1).
A Tônia, coitada, ficou “traumatizada” com isso, acho que até hoje evita qualquer
prato que tenha esse ingrediente na sua composição.
Eu e o Drew, como nada tínhamos a perder, levamos a coisa numa boa,
resignadamente.
Este é apenas um exemplo da idiossincrasia paterna, seu hábito de economizar em
tudo.
Cupons de desconto usados no mercado, fechar a torneira enquanto se escova os
dentes ou ensaboa o corpo, desligar as lâmpadas de ambientes desocupados, pegar
apenas o necessário para comer e depois “raspar o prato”, pesquisar preços antes de
comprar, não adquirir por impulso, remendar as roupas e consertar os calçados, são
procedimentos comuns na nossa família, incentivados por meu pai e reforçados por minha
mãe.
Num mundo consumista como este, onde a tônica é comprar e descartar, estar na
moda, usar produtos de “marca”, gente como nós andava na contramão da história.
Para uma família de 5 pessoas, de classe média baixa, vivendo no Brooklin, era até
normal que meu pai tivesse 2 empregos, minha mãe trabalhasse de vez em quando e
nós, seus 3 filhos, procurassem seguir o provérbio “tostão poupado é tostão ganho”.
Afinal, nenhum de nós queria viver de esmolas, furtos, tráfico, contrabando ou
prostituição.
Por isso meus pais faziam questão de ganhar a vida honestamente e fazer render
ao máximo o fruto de seu trabalho.
Nem por isso nos faltou o essencial, sendo este encabeçado por Educação .
Claro, nenhum de nós estudou em escola particular, mas sempre fomos
incentivados e cobrados em relação a resultados como obter boas notas e passar de ano.
Mas confesso que algumas vezes sentia vergonha por andar com uma roupa
remendada (embora limpa e passada), ter que levar um lanche simples enquanto meus
colegas comiam pratos mais elaborados na cantina da escola e aproveitar os cadernos
com algumas folhas em branco do ano passado para as matérias desse ano.
-Chris, você quer ir ao cinema comigo na quarta-feira ?
-Xi, não vai dar, tenho que estudar para a prova de História – desculpava-me para
não ter que dizer que não tinha grana.
Mas afinal, o Greg era filho único e seu pai podia bancar os seus desejos.
Quando perguntei a srta. Morello o que achava de uma vida de sacrifícios, de
privação das vontades, de ”apertar o cinto” constantemente, ela percebeu a minha
angústia e respondeu:
-Chris, você como um afro-descendente é um imigrante num país de
oportunidades. Todos que chegam aqui nesta situação vêm em busca de fazer seu “pé-
de-meia”. É normal que tenham de se esforçar mais que os outros para realizar seus
sonhos.
O Doc pensava da mesma forma:
-Se eu não trabalhasse duro, economizando cada centavo, não teria meu próprio
negócio.
Até o Perigo, que não tinha um empreendimento tão honesto, se gabava de ter
lutado muito para chegar onde estava.
Mas o mais engraçado foi o comentário do sr. Omar:
-Olha aqui, eu que vivo da desgraça alheia – do falecimento dos outros – tenho que
batalhar ainda mais para atingir meus objetivos, afinal ninguém morre porque quer.
Acho que, do nosso círculo de relacionamento, apenas o tio Michael tinha opinião
contrária, achando que não deveria deixar para amanhã o que pudesse comer hoje, pois,
afinal de contas ele vivia sempre de favor, consumindo e usando os bens alheios.
-Chris, não existe refeição grátis. Se você não quer vender o seu almoço para
comprar o jantar, tem que trabalhar, produzir e economizar.
Foi dizendo coisas simples como estas que eu aprendi com meu pai a lição mais
importante de todas. A de não desperdiçar.
Seja o tempo, o bem material, o conselho, o talento , o dom que temos, enfim, as
oportunidades.
Meus pais não tiveram muitas chances, formação intelectual elevada e sofisticada,
ou herança de algum parente. Usaram as armas de que dispunham para enfrentar a vida ,
fizeram o melhor que podiam e transmitiram esses valores a seus descendentes.
Hoje, como profissional que alcançou algum sucesso, entendo perfeitamente bem
este legado, mesmo que, por algum momento, sinta a frustração de algum desejo não
realizado.
-Oi Chris, vamos ao cinema na quarta-feira ?
-Sim Greg, desde que seja para ver um dos meus filmes (2)

(1) Episódio da série “Todo mundo odeia o Chris” onde o pai, Julius, comprou uma caixa
de lingüiça e obrigou sua família a consumi-la até o fim.
(2) Chris Rock, personagem principal do seriado “Todo mundo odeia o Chris” é ator de
cinema
TODO MUNDO ODEIA QUARENTENA

“Seja a mudança que você quer ver no mundo”- Mahatma Gandhi

- Aiiii !
-Que foi, Chris ? - correu minha mãe para me ver estatelado no chão.
- Escorreguei e rolei escada abaixo.
- Machucou ?- ajudando a me levantar.
-Não sei, não consigo andar.
-Vou chamar seu pai para irmos ao médico.
Lembram-se daquele dia em que eu pedi a meu pai um par de meias e ele
emprestou sua meia da sorte ?
Usei-a por uns dias acreditando que realmente me dava sorte. Minha mãe colocou
para lavar, deixei de usá-la por um tempo e a maré de azar retornou. No fim, meu pai me
explicou que não deveria alimentar essa crença. Pelo sim ou pelo não, voltei a usar e,
quando subia a escada para o andar superior, só de meias, escorreguei.
-Vamos tirar uma chapa de raios X – disse o médico que me atendeu
-Espero que não seja grave – comentou meu pai, preocupado com possíveis
despesas adicionais.
-Estou com dor, mas acho que não quebrou nada.
Voltando com as chapas do pé direito, o doutor nos tranquilizou:
-Nada de mais, foi apenas uma luxação. Vamos ter que colocar uma tala para
imobilizar, tomar anti-inflamatórios, evitar colocar o pé no chão, deixando-o elevado e
evitar molhar. Volta daqui uma semana.
Para alguém que tinha uma rotina movimentada- ir à escola, trabalhar no Doc,
fazer tarefas domésticas, pajear de vez em quando meus irmãos, fazer algumas compras,
andar de bicicleta, ir ao cinema - ter que ficar em casa durante uma semana por causa da
restrição de movimentos ia ser um suplício.
-Chris, quer algo para comer ? - perguntava minha mãe enquanto eu descansava
deitado no quarto.
-Não mãe, vou esperar o jantar.
-Se quiser é só gritar.
Embora o doente, enfermo, inválido ou acidentado passe a ser alvo da atenção dos
familiares, ganhando um novo status (o “coitadinho”, “pobrezinho”) e com isso algumas
regalias (ser atendido em primeiro lugar, ter prioridade nas escolhas, receber favores que
antes lhe eram negados, ouvir palavras gentis e carinhosas, ter relevadas suas falhas e
equívocos) a situação lhe é desvantajosa em função das perdas impostas.
Quando meu pai chegou para jantar, mostrou-me, com um largo sorriso, um par de
muletas que havia tomado de empréstimo do sr. Omar, que, por sua vez, herdara de um
falecido que ele havia enterrado.
-Puxa, pai, agora posso me movimentar pela casa.
-Mas toma cuidado para não cair de novo. Vai devagar.
Fui logo me apropriando delas e ensaiando uns passos entre o quarto e a sala de
jantar.
-Chris, se quiser posso arrumar suas coisas no quarto – comentou o Drew.
-Posso recolher as roupas sujas e colocar na lavanderia – emendou aTônia.
Claro, eu tinha que aceitar o fato de que:
1-acidentes podem ocorrer com qualquer um, inclusive comigo.
2-gostando ou não, precisava de maior auxílio dos familiares e amigos
3-deveria demonstrar gratidão pela ajuda e favores recebidos, mesmo que
soassem um tanto quanto falsos
4-não deveria abusar da boa vontade alheia por conta da situação de
vulnerabilidade
-Puxa, obrigado pela consideração, quero sim.
-Se quiser mais um bife, pode falar, fiz pensando em você -sorriu minha mãe.
-Depois te ajudo no banho – completou meu pai.
Diante de toda esta nova situação, tendo menos estímulos externos, já que estava
confinado entre as 4 paredes de casa, sem poder olhar a cara da rua, pus-me a vasculhar
meu interior, como se fosse um condenado à morte, um doente terminal, um portador de
doença incurável, revisitando a memória, lembrando-me das coisas que fazia e que agora
estão interditadas (andar, correr, pular, dançar) sentidas com tristeza e nostalgia, como
se, de repente, eu tivesse sido excluído da festa da vida.
Para não perder o ano escolar, meus pais pediram ao Greg para que ele viesse até
minha casa após a aula para me repassar as lições do dia.
-Puxa, como eu gostaria de poder ficar uma semana inteira sem ver os professores
da Corleone, dormindo até mais tarde, comendo só porcaria , assistindo TV e jogando
videogame.
Como ele é filho único e vive com o pai, provavelmente, numa situação idêntica à
minha ele seria tratado como um rei.
-Olha, Greg, ficar quase o dia todo sozinho confinado em casa é muito monótono,
uma hora a gente cansa dos programas da TV, das revistas em quadrinhos, dos livros de
aventuras, e até das comidas gostosas feitas especialmente para nós. Dá também uma
sensação de inutilidade. Sinto falta de todas as coisas que fazia no dia-a-dia.
-Não seja por isso. Peço ao Caruso vir aqui diariamente te dar uma surra.
-É, não seria nada mal. Como está se virando sem a minha presença ?
-Bom, você não é insubstituível. Ele arrumou um porto-riquenho para servir de saco
de pancada.
Depois dessa conversa, recebi inúmeras visitas do pessoal daqui da Bed-Stuy.
-Oi carinha que mora logo ali, tem um dólar ?
-Ei Chris, você tem que arrumar um atestado médico para eu não descontar os dias
em que não está trabalhando na mercearia.
-Olha o catálogo de equipamentos ortopédicos que eu trouxe para você dar uma
olhada. Quer uma cadeira de rodas ? – ofereceu-me o Perigo.
Golpe Baixo achou uns jogos de montar e quebra-cabeças nas lixeiras e trouxe
para eu passar o tempo.
O sr. Fong veio com alguns biscoitos da sorte dizendo que era para eu comer
evitando novos acidentes. Sorte eu teria se não passasse mal com eles, pois estavam
todos vencidos.
O sr. Omar veio me consolar com sua frase predileta: “Não há bem que sempre
dure nem mal que nunca acabe”.
Tio Mike “juntou a fome com a vontade de comer” para descolar um jantar e me
desejar melhoras – Chris, há males que vem para bem. - Traduzindo: meu acidente fez
você ganhar uma boca livre.
O Malvo quis me ver também, mas meu pai impediu sua entrada, desconfiado de
que pudesse sumir com algum objeto de valor.
A Tasha ficou uns minutinhos me paparicando e dizendo como eu era um “tadinho”,
e, no fim, ao ouvir sua avó chamando do lado de fora, deu-me um beijo na bochecha.
A visita que mais me surpreendeu foi a da srta. Morello.
-Chris, ainda bem que foi só uma luxação no pé. Imagine você completamente
inválido, tendo que ser sustentado pelos seus pais que não conseguem parar no emprego
junto com 2 irmãos desajustados que ficam pulando de escola em escola.
Traduzindo: sare logo para não cair na rua da amargura.
Depois de ser agraciado com a atenção dos moradores do bairro, a semana de
convalescença passou mais tranquila, retornei ao médico que me livrou da tala e
recomendou cuidado nos próximos dias.
-Ei Mané, só vou poupar o seu pé direito porque ainda está se recuperando – deu-
me as boas vindas o Caruso depois de derrubar meus livros pelo chão.
Agradeci ao Greg por ter espalhado pra todo mundo que eu estava “de molho”,
fazendo com que me visitassem.
-Você tem razão em dizer que não sou insubstituível. Os outros é que se tornaram
imprescindíveis para mim durante minha “quarentena”. Aprendi que nem tudo que parece
ruim é de fato ruim. Depende da forma como vemos as coisas.
-Como você viu as coisas ?
-Bom, ninguém teve culpa por eu ter me acidentado, por isso ninguém tinha
obrigação de me beneficiar em nada. Todo mundo que me visitou foi bastante gentil, mas
ninguém deixou de ser como é, ou seja, todo mundo se mostrou como é em sua essência.
Por isso eu concluí que quando a gente se vê sozinho e em dificuldades, não pode exigir
que os demais sejam melhores conosco.
-Você descobriu sua essência ?
-Acho que sim. Não sou melhor nem pior que ninguém. Agradeço ter passado pelo
acidente, para me dar essa lição de humildade.
-Pois é, todo mundo odeia o Chris... à sua maneira.
TODO MUNDO ODEIA ANEXIM

As pessoas conhecem por diversos nomes: adágio, aforismo, provérbio, ditado,


máxima, anexim, chavão, bordão, clichê, lugar-comum, refrão, estereótipo, etc, etc, etc.
São aquelas frases feitas, consagradas pelo uso popular, usadas para explicar,
esclarecer e exemplificar uma ideia, fato ou conceito.
Por mais usadas, desgastadas e abusadas, continuamos empregando-as, seja em
seu verdadeiro contexto ou extrapolando-as para outros nem sempre condizentes com as
origens do dito cujo. O engraçado é que parece que ficam coerentes com a nova situação
em que são colocadas.
Quando Jesus afirmou a seus discípulos: “dai a César o que é de César e a Deus
o que é de Deus”, estava se referindo à questão do pagamento dos impostos,
considerando justo o fato de se pagar tributos ao governo e dar oferendas a Deus. Hoje
podemos parafraseá-la quando uma pessoa nos perguntar como devemos agir diante de
fulano e sicrano: “dai a Fulano o que é de Fulano e a Sicrano o que é de Sicrano”.
Toda vez que minha mãe termina uma reprimenda a um dos filhos, durante o
almoço ou jantar, diz algo como: “ é de menino que se torce o pepino”. Só passei a
entender a expressão depois dos 6 ou 7 anos. Antes, achava que ela ia me apertar o piu-
piu até eu aprender a lição.
Se meu pai acha que o conselho dado não foi muito apropriado para a nossa idade,
ele retruca: “quando o discípulo está pronto o mestre aparece”. Traduzindo: “não
gaste boa cera com mau defunto.”
A propensão a recorrer a frases feitas é tão grande que todo mundo que eu
conheço, por menos que fale acaba dizendo uma.
-Oi carinha que mora logo ali, me empresta um dólar.
-Oi Jerome, só tenho uma moeda.
-Não tem problema. “de grão em grão a galinha enche o papo”.
Tio Mike quando briga com minha avó e aparece em casa para se esconder ,
passa os dias dormindo e exercitando a máxima “não deixe para amanhã o que você
pode comer hoje”. Mas o ideal para ele é mesmo “quem come de tudo está sempre
mastigando”. Ele só não gosta daquele: “onde se ganha o pão, não se come a carne.”
O Doc às vezes me dá um ou outro produto vencido de sua loja.
-Mas esse atum tá vencido !
-Deixa disso, Chris, “o que não mata, engorda”, “a cavalo dado não se olha os
dentes.”
-Pois é, “quando a esmola é muita o santo desconfia.”
O Golpe Baixo tem sempre um bordão para começar seu dia de “trabalho”: “a
corda arrebenta do lado mais fraco”, “estou comendo o pão que o diabo
amassou”,“quem não tem cão, caça com gato”,“saco vazio não para em pé”, “quem
não chora não mama”, “quem pode pode, quem não pode se sacode”, “estou
matando cachorro a grito”, “Deus dá o frio conforme o cobertor”, “a esperança é a
última que morre”,e depois agradece os trocados recebidos dizendo: “é dando que se
recebe”,“quem dá aos pobres empresta a Deus”, “o pouco com Deus é muito, o
muito sem Deus é nada”,ou ”Deus te dê em dobro”. Mas quando meu pai, que tem 2
empregos, vê aquela cena repetidas vezes, comenta: “Deus ajuda quem cedo
madruga”, pois afinal de contas ele é “pau prá toda obra”.
A srta. Morello com suas observações preconceituosas sempre acha uns
eufemismos para me desqualificar:
-Chris, eu sei que você teve dificuldades em concluir seu trabalho de casa, afinal
seus pais são pouco escolarizados e “filho de peixe peixinho é.” Mas eu sei que um dia
você vai “virar esse jogo”, mesmo sendo difícil, pois “quem sai aos seus não se
degenera”. Por isso faço questão de ocupar você com essas tarefas, afinal de contas,
“mente vazia, oficina do diabo”.
-Traduzindo: “quem nasceu para vintém nunca chega a tostão.”
Até o Caruso que me agride sem ter nenhum motivo, mandou prá mim esta trova:
“Água mole em pedra dura/tanto bate até que fura/bato no Chris toda hora/para
ver se vai embora”.
Daí eu respondi:Caruso você é uma graça/Deus é meu protetor/”Um dia é da caça/
outro é do caçador.”
Se quisermos, podemos dialogar só com frases feitas, como nessa conversa com o
Greg.
-Chris, você “está arrastando a asa para a Garibalda” ?
-Não, “antes só do que mal acompanhado”.
-Quando te perguntei ontem você ficou quieto, “quem cala consente”.
-Olha aqui, “gato escaldado em água quente tem medo de água fria.”
-Cara, não tem nada a ver. “quem gosta do feio bonito lhe parece”.
-Que é isso ? Quer que eu “coma couve e arrote peru” ?
-Não, aproveita agora para “malhar o ferro enquanto está quente”.
-Por acaso você tá “jogando verde para colher maduro”?
-”Para bom entendedor, meia palavra basta.”
-Então fica com ela, mas você “vai ter que roer o osso depois de comer o filé”.
-“Se conselho fosse bom não se dava, se vendia”.
-Ok, “ri melhor quem ri por ultimo”
O Malvo vem me assaltar sempre que o Doc sai da loja.
-Rápido, me passa a grana do caixa.
-Malvo, você vive roubando o Doc. Por que não vai de vez em quando na loja do sr.
Fong ?
-A última vez que fui ele não tinha dinheiro algum, só cupons de desconto. “mais
vale um pássaro na mão do que 2 voando”, e eu aprendi que “nem tudo que reluz é
ouro”.
Os chavões são tão onipresentes e tão facilmente inteligíveis que até mesmo a
Tônia que é bem nova guardou os dela para usá-los quando precisa me chantagear.
-Quanto você me paga para eu não contar ao papai que você matou aula prá ir ao
cinema ?
-Te dou um dólar. “Roupa suja se lava em casa.”
-Me dá 5 e eu fico de bico calado. “quando a cabeça não pensa o corpo sofre”.
-Mas é muito mais do que eu gastei prá ir ao cinema. “O molho saiu mais caro
que o peixe”
-”Desgraça pouca é bobagem”,
-Isso é um roubo.”Devo, não nego, pagarei quando puder.”
-”Ladrão que rouba ladrão ganha cem anos de perdão”.
Quando ela quer algo de meu pai, vai se insinuando com frases de efeito:
-Papai, me dá um dólar ?
-Prá que você quer um dólar ?
-Prá guardar na poupança. “Tostão poupado é tostão ganho”.
-Essa é a minha filhinha do coração. Toma 2 dólares.
Agora, o Drew é bom em usar os clichês com psicologia. Quando quer persuadir
amigavelmente diz: “quem fala a verdade não merece castigo.” Se quer ameaçar, diz:
“mentira tem perna curta”. Para estimular alguém , fala: “devagar se vai ao longe.”
Quando é para puxar o freio, usa a versão:”não dê o passo maior que a perna”, ou o
genérico: “um grama de prevenção vale mais que um quilo de remédio”
Já o Monk é meio atrapalhado, não sei se por causa da experiência dele em
combates, se ficou com stress pós-traumático ou não, fala umas coisas meio
arrevesadas. “De médico e de louco todo mundo tem um pouco”
-Chris, acho que estou apaixonado pela Vanessa. Não posso olhar prá ela que me
dá um troço.
-Como assim?
-Tipo “onde tem fumaça tem fogo”.
-Que negócio é esse de fumaça ?
-Sabe aqueles aparelhos do salão de beleza onde ela trabalha, de vez em quando
sai uma fumacinha deles, aí eu penso que tão pegando fogo, eu quero logo pegar um
extintor para apagar, entende ?
-E o que tem a ver isso com a sua paixão pela Vanessa ?
-É que a paixão é como esse fogo, então eu acho que preciso tomar uma ducha
fria prá acalmá-la.
-Bom, melhor você deixar de vê-la por algum tempo, pois “o que os olhos não
vêem o coração não sente.”
O Perigo é craque em anexins, pois lida com todo tipo de gente.
-Ei, você tem uma revista Playboy ?
-Prá você ?
-Não, pro meu pai.
-Manda ele vir comprar. “Quem quer faz, quem não quer manda”.
-Poxa, ele não pode saber disso.
-”Cada um sabe onde o sapato aperta”.
-Faz isso por mim.
-“Amigos, amigos, negócios à parte”, “não coloco a mão no fogo” por
você.”Cada macaco no seu galho” porque o “seguro morreu de velho”.
O sr. Omar apela para um vasto repertório de chavões para consolar as viúvas que
atende enquanto providencia o enterro do ex-marido:”Deus escreve certo por linhas
tortas”, “ninguém morre de véspera”, “depois da tempestade vem a bonança”, “o
falecido descansou”,”o que não tem remédio, remediado está”, “fizeram todo o
possível para salvá-lo” , “ele estava no bico do corvo” e o infalível “não há bem que
sempre dure nem mal que nunca acabe” (cá pra nós o que ele mais gosta mas evita
dizer é: “morreu, antes ele do que eu”).
No final das contas, as frases feitas têm sua utilidade, ajudam a explicar as coisas,
economizando palavreado inútil, mostrando como nossa língua é de fato viva. Só me
resta fechar com uma delas:
“Quem conta um conto aumenta um ponto”, ou seria melhor: “quem quiser
que conte outra.” ?
TODO MUNDO ODEIA MATEMÁTICA

Quem frequentou a escola pelo menos durante os primeiros anos do ciclo básico,
teve a oportunidade de se familiarizar com aquela que é a disciplina mais universal e
talvez a mais temida nos bancos escolares: a Matemática.
Partindo de conceitos abstratos – o de número, conjunto, proporção, padrões,
modelos, combinações, etc – todos nos debatemos para entender como uma matéria tão
teórica tem aplicação em tantos setores de nossa vida.
Lembram-se de quando tive que pedir ajuda para entender melhor as lições de
Álgebra para que minha classe da Corleone ganhasse umas pizzas ? Minha mãe se
dispôs a me ajudar em casa, mas como ela tinha dificuldade em ensinar e eu em
aprender, fui buscar ajuda com minha avó.
Depois de tentar do modo tradicional, ela começou a me fazer perguntas com base
em situações relacionadas com o beisebol: Se fulano de tal fizer X pontos rebatendo as
bolas em Y tentativas, quantos por cento ele rebateu ? Dessa forma eu consegui entender
o que é uma regra de 3.
Não fosse este esforço em traduzir os cálculos para situações de nossa vida diária,
a Matemática seria um bicho-papão atemorizando a todos nós, reles mortais, e
compreensível apenas por gênios iluminados. Afinal de contas não é fácil entender
aquelas fórmulas da trigonometria- seno, cosseno, tangente- equações de primeiro e
segundo grau, as derivadas e integrais.
-Integral ? É algum tipo de bolacha ? - perguntou o Doc.
Ela é tão importante enquanto ciência a ter estimulado o seu estudo, que criaram
até mesmo uma competição chamada Olimpíada de Matemática, que premia os
melhores “atletas” do raciocínio lógico.
Antes mesmo de aprendermos a falar corretamente, se o pai nos oferece um
alimento de que gostamos muito (chocolate, por exemplo) exibindo 2 exemplares de
tamanhos diferentes, escolhemos o maior deles. Desde pequenos temos alguma noção
de proporção.
Como muitas unidades de medida derivaram de partes de nosso corpo físico, ainda
hoje usamos a polegada, pé, braça, jarda (distância entre o nariz e o polegar do rei
Henrique I da Inglaterra no século XII) seus múltiplos e submúltiplos. Isto sugere que a
Matemática tem algo de visceral conosco.
Caminhando para tomar as primeiras aulas dessa disciplina na escola primária,
levados pelas mãos de nossa mãe, logo entendemos o raciocínio feito por ela para saber
se podemos ou não atravessar as ruas por onde transitam os automóveis. Isto é,
mentalmente comparamos a velocidade desenvolvida por eles e a distância para nos
atingir contra a velocidade com que faremos a travessia e a distância a atravessar. Se o
tempo da nossa travessia for menor que o tempo do veículo em nos atingir, atravessamos
com segurança.
Para o Drew desenvolver o ritmo que tem para os diversos tipos de dança, precisou
observar a cadência daqueles dançarinos que via na TV e incorporá-la nas suas
passadas : 1-2-3-4, 1-2-3, 1-2, e assim por diante.
A Tônia, quando quer nos chantagear sabe perfeitamente que o valor a cobrar é
tanto maior quanto a gravidade da falta cometida por um de nós. Cabular aula para ir ao
cinema, 5 dólares, para ir numa festa, 10 paus e assim por diante.
O Jerome sempre deixa a extorsão por menos se o cara que ele aborda não tem o
dólar que ele pede. Afinal, ele é um desocupado que não tem patrão que exija resultados,
não tem que recolher impostos, não tem nem horário de entrar ou sair do serviço. Tudo o
que vier é lucro.
Tio Michael também não se importa de vir bater em nossa porta em qualquer dia ou
horário, pois ele está preocupado em se manter alimentado e sempre temos comida em
casa. O tempo que ele gasta vindo de sua casa até a nossa compensa o esforço.
Trabalhando ou não dentro da legalidade, o comerciante sabe a hora de lançar
uma promoção para fisgar o consumidor.
-O pacote de macarrão custa 1.50 e a lata de molho 0.60. Levando os 2 juntos
paga só 2,00 – apregoa o Doc.
Já o Perigo anuncia:
-Um video cassete sai por 30,00, o conjunto de 10 fitas virgens de vídeo é 12,00.
Tudo junto sai por 40,00.
Essa venda “casada” serve para o negociante desovar estoques de produtos
encalhados e para diluir seus custos fixos. Ela é tanto mais necessária quanto a urgência
em se livrar de itens com data de validade próxima ao vencimento.
Se muitas coisas da vida cotidiana são resolvidas ou amparadas por essa lógica
matemática quase instintiva e intuitiva, o que não dizer quando aprendemos formalmente
suas regras e propriedades ?
-Vou ter que dispor de 1:50h por dia para ler 10 páginas do livro de 250 páginas
para poder entregar a ficha de leitura daqui a 4 semanas – dizia o Greg.
-Ora, se vai lê-lo em 25 dias, vai poder entregar em menos de 4 semanas –
respondi.
-É que no sábado e domingo que antecedem os últimos dias vou aproveitar para
viajar e só depois vou preparar o material.
Quando estava prestes a completar meus 16 anos, idade em que podemos tirar
carta de motorista, comecei a fazer planos de juntar o dinheiro necessário para tomar as
aulas e realizar o exame.
-Pai, estou começando a guardar o dinheiro para tirar minha carta de motorista, o
senhor pode me ajudar a fazer com que ele renda o máximo possível ?
-Claro, vamos abrir uma caderneta de poupança, aí você mantém o dinheiro longe
de tentações de consumo e ele aumenta um pouco a cada mês.
Foi aí que eu entendi como os juros simples e os juros compostos funcionam na
prática.
Outra forma de usar a matemática a nosso favor é quantificar as coisas ora em
valores absolutos ou percentuais.
-Chris, depois do jantar, tira a mesa e lava a louça.
-Puxa, mãe, eu de novo ? Durante este mês já fiz isso 50%. (13 em 26 dias) Por
que não o Drew ? Ele só fez o serviço 13 vezes.
-Tá bom, Drew, tira a mesa e lava a louça.
Essa costuma ser a técnica para os políticos intensificarem ou amenizarem
situações que precisam apresentar para a opinião pública:
-Em função da recessão por que estamos passando, no último mês tivemos um
aumento de apenas 0,2% no desemprego.
A oposição retruca:
-Esse “apenas” representa 10.000 desempregados.
Não há dúvida de que o maior uso da matemática em nossas vidas é no cálculo da
relação custo-benefício : quanto devemos investir para obter determinado resultado.
E nessa técnica devo admitir que meu pai é um expert.
Lembram-se de quando ele fez as contas de quanto pagaria por um determinado
tipo de carne para comermos no natal e escolheu a melhor opção com base no preço por
quilo da mercadoria versus o aproveitamento líquido da mesma, depois de pronta ?
Quando meu pai tirou uma foto do interior da geladeira e disse para minha mãe
olhar para aquela foto antes de abri-la, ele sabia que o preço da foto era menor do que os
centavos na conta de luz resultantes do abrir-e-fechar do eletrodoméstico.
Quando meu pai comprou uma caixa de linguiça fresca e nos fez comê-la por
semanas, foi para aproveitar a promoção e compensar a redução orçamentária
decorrente da demissão de minha mãe no seu emprego.
Ele nunca se importou em comprar os alimentos de marcas baratas, pois, apesar
de ser um “bom garfo” sabia que o seu prazer de comer era bem mais efêmero que a dor
no bolso por consumir produtos de marca famosa.
Lembram-se de quando ele trocou os 2 empregos por um onde ganhava mais que
os outros juntos ? Pois é, teria ficado nele não fosse um trabalho com peixes, cujo cheiro
o acompanhava ao chegar em casa, empesteando todo o ambiente.
A partir do momento em que instituíram o chamado medicamento genérico e ele
ficou com uma doença crônica, dependente de remédios de uso contínuo, logicamente
passou a preferi-los aos medicamente de marca.
-Se o senhor levar 3 caixas, paga 2.
Ele pensa um pouco, resolve levar uma só.
-Como assim?
-Pode ser que eu não precise continuar tomando os remédios.
Traduzindo: Posso bater as botas antes de consumir todas as caixas.
A ideia de que nem sempre um custo baixo para obter um grande benefício deve
ser adotado (economizar nos prazeres agora para ter mais anos de vida à frente) me faz
pensar que a lógica matemática não passa disso: um cálculo frio, racional e objetivo.
Nem toda situação sujeita a avaliações de relação custo-benefício redunda em
levar em conta sempre o número mais expressivo.
Quando a audiência de um certo programa baixa a ponto de não compensar mais o
patrocínio dos seus anunciantes , é razoável que a emissora de TV abandone o projeto e
ele saia do ar.
Não obstante, quando a série granjeia adeptos e aficionados, por pior que seja esta
audiência, seu autor pode continuar criando episódios pelo simples gosto de inventar.
Se depender de mim, “Todo mundo odeia o Chris” continuará sendo renovado por
todos os tempos, seja para que canal da TV ele vá.
TODO MUNDO ODEIA FIGURAS DE LINGUAGEM

Problemas de relacionamento geralmente ocorrem em função das falhas na


comunicação entre as partes, ou seja, o que um fala e o que o outro entende. Algumas
lições aprendidas na disciplina de gramática e literatura me fizeram olhar para a
comunicação verbal de maneira a poder enxergar nas “entrelinhas” as disposições e
intenções de quem está falando, entendendo melhor o que querem dizer. Refiro-me aos
recursos de estilo ou figuras de linguagem.
-Olha aqui, moleque, se você fizer isso novamente vai apanhar até ficar branco.
-Hipérbole.
-O quê ? Tá me desafiando ?
-Não, mãe, a senhora tá dizendo uma coisa exagerada, impossível de acontecer.
Esse tipo de expressão se chama hipérbole na gramática.
-Ah, bom. É como eu dizer que posso ficar desempregada porque seu pai tem 2
empregos…
-Não, isso é uma antítese, o uso de 2 termos contrários, desemprego e emprego.
Mas não deixa de ser um exagero da senhora...
-Deixa pra lá; Pega suas coisas e vai pra escola. Cuidado ao embarcar no ônibus.
-Catacrese.(uso de termo inadequado)
-Cata o quê ?
Minha mãe exagerava tanto com essas ameaças quanto os alunos da Corleone
quando eu tive minha primeira briga com o Caruso e eles espalharam como eu tinha
arrancado os olhos dele, os dentes e o couro e também havia surrado a sua família.
Enquanto caminhava até o ponto do ônibus, o Jerome gritou:
-Oi carinha que mora logo ali, me arruma uma verdinha.
-Metonímia.
-O quê ? Tá tirando uma da minha cara ?
-Sinédoque.
-Como é que é, vai dar ou não ?
-Calma, só tava explicando que figura de linguagem você estava empregando.
-Olha aqui, eu não emprego ninguém, eu trabalho sozinho.
-Quando você falou em “verdinha”, estava se referindo a nota de um dólar que tem
essa cor. Isso é metonímia. Quando falou que eu estava tirando uma da sua “cara”,
estava se referindo a sua pessoa como um todo, isso é uma sinédoque.
-Tá bom, obrigado pela aula de História e vai me passando a grana.
Quando chego à escola, o Caruso vai me saudando:
-Oi feijão .
-Metáfora.
-Que foi asfalto ?
-Metáfora
-Isso é um novo tipo de xingamento ?
-Não. É a figura de linguagem que você está usando. Fala mais alguma coisa.
-Carvão, tição, chocolate, marron-glacê, jabuticaba, macaco, piche, fuligem, corvo,
urubu, café, nanquim, papel carbono.
-Ué, por que você tá pedindo prá ele te xingar de outros nomes ? Perguntou o
Greg.
-Prá aula de gramática. Vou montar um repertório de metáforas.
-Vai enriquecer o vocabulário depreciando sua pessoa ?
-Paradoxo (uso de temos contrários)
-Quer que eu te ajude auxiliando nesta tarefa ?
-Pleonasmo (uso de termos redundantes).
-Primeiro humilde, depois convencido, e finalmente arrogante.
-Gradação (sequência de ideias)
-Tá bom, chega de trocar figurinhas e vamos à aula.
A srta. Morello é craque num determinado tipo de figura de linguagem.
-Chris, eu sei que você tem dificuldades em acompanhar o ritmo das aulas e
realizar as tarefas de casa, uma vez que seu pai exerce atividades não remuneradas e
sua mãe é consumidora de substâncias químicas ilícitas enquanto você precisa pajear
seus irmãos que foram convidados a se retirar da escola por insuficiência moral. Vocês
praticam jejum alimentar, perderam a noção de higiene e passam a noite em claro.
Traduzindo: tenho raciocínio lento, meu pai é um vagabundo, minha mãe uma
viciada em drogas e meus irmãos foram expulsos da escola por comportamento imoral,
nós passamos fome, não tomamos banho e não dormimos adequadamente. Com um
eufemismo desses ela até consegue se safar de uma acusação formal de racismo.
O sr. Omar também é fã desse tipo de expressão.
-Quem morreu ? O Martin ?
-Pois é, abotoou o paletó de madeira. Subiu para o andar de cima. Foi morar com
Jesus.
Lembram-se do dia em que perguntei a meu pai se eu poderia dirigir o carro ?
-Claro, quando você completar 16 anos, quando você tirar carta de motorista,
quando você comprar o seu carro, quando você fizer o seguro, aí você poderá dirigir o
seu carro.
Se eu tivesse estudado as figuras de linguagem naquela época eu diria depois do
que ele falou: anáfora (repetição da mesma palavra na mesma frase).
Bom, de qualquer forma, ele sempre diz alguma coisa dessa categoria.gramatical.
-Se eu comer isso minha gota vai reclamar e minha pressão vai me incomodar.
-Personificação (atribuir característica humana a coisa ou animal)
Ou então :
-Quarenta e nove centavos jogados fora (referindo-se a algum alimento que se
estragou na geladeira)
-Metonímia.
Para suportar a Tônia me chantageando só apelando para a ironia.
-O que você não me pede chorando que eu não faço sorrindo ?
Ao que ela retruca na mesma moeda:
-É que você é meu irmãozinho do coração.
O Perigo vive dizendo antonomásias (expressão ou palavra que substitui outra,
como os apelidos)
-Olha este CD, do “rei do rock” (Elvis Presley) ou o DVD do “garanhão italiano”
(Rocky, o lutador), tem o vinil do “Satchmo” (Louis Armstrong).
Tio Michael é bom em sinestesia (combinar 2 ou mais sentidos)
-Rochele, esse guisado cheira tão bem que faz meus olhos brilharem.
O Drew adora uma elipse (ocultar palavra ou expressão que é subentendida)
-Não fui eu (que fiz)
Depois de tanto observar e analisar essas expressões durante a semana, tirei nota
azul na prova de gramática e a srta. Morello me elogiou:
-Parabéns, Chris, assim você um dia vai poder escrever roteiros de filmes para TV.
(me aguarda que quando isso acontecer vou bolar um script sem falas para você)
Tudo porque eu fiz o comentário abaixo:
“Dependendo do uso que fazemos dessas figuras, podemos tirar algumas
conclusões a respeito de como as pessoas se exprimem. As que usam hipérbole, gostam
evidentemente de exagerar, as que repetem a mesma palavra na frase querem dar ênfase
ao que falam , as que usam onomatopeia gostam de ilustrar o que falam, as que usam
eufemismo tentam minimizar um comentário que poderia parecer grosseria, as que usam
metáforas gostam de exemplificar a ideia de modo sucinto, curto e grosso.”
Finalmente, não poderia deixar de apontar o fato de que o nome do programa é
uma verdadeira ironia: Todo mundo ODEIA o Chris.
Ou será que é um hipérbato (inversão dos termos) – O Chris odeia todo mundo ?
TODO MUNDO ODEIA CARTÃO POSTAL

Na época em que era comum trocarmos correspondência pelo correio físico (hoje
com os recursos da informática mandamos o que quer que seja pelo computador ou pelo
celular) procurávamos durante as viagens a outras cidades e países, as lojas que
vendiam cartões postais do local. Escolhíamos sempre as fotos com os melhores pontos
turísticos, e as melhores paisagens, seja para enviarmos aos amigos ou levá-las como
recordação.
Esse mesmo tipo de foto é o que costuma aparecer nas propagandas de pacotes
de viagem, nas de lanches num fast-food, nas de carros nas revendedoras, nas de
qualquer eletrodoméstico em dia de promoção.
Explico: qualquer anúncio de produto veicula uma foto bem retocada da
mercadoria, no seu melhor ângulo, com as melhores cores, destacando aquilo que o
comprador potencial gostaria de ver. Este, embevecido , seduzido e “fisgado” pela
“amostra”, encontra o seu objeto de desejo, o seu carro/comida/roupa/viagem dos sonhos.
Ou seja, cartão postal foi feito para mostrar o lado bom, belo, agradável,gostoso,
paradisíaco dos locais fazendo-nos esquecer de tudo o que de ruim possa estar embutido
naquela imagem.
A ponte Rio-Niterói ? “Ponte que liga as cidades do Rio de Janeiro e Niterói,
inaugurada em março de 1974, com mais de 13 km de extensão, a maior da América
Latina, com fluxo médio de 150 mil veículos por dia.” Quem olha para a foto fica
deslumbrado, tem vontade de cruzar várias vezes a baía de Guanabara por ela. E por
olhar desse ângulo, não consegue perceber os buracos na pista , a falta de um ou outro
“guard rail”, as ferragens enferrujadas indicando manutenção precária.
Cataratas do Iguaçu ? “Maior conjunto de quedas d’água em extensão do mundo.
Entre a cidade de Foz do Iguaçu no Paraná e a de Puerto Iguazu na Argentina. Conta
com infraestrutura de passarelas, mirantes, lanchonetes, restaurantes e lojas.” Vai encarar
? Leva uma capa de chuva, agasalhos, guarda-chuvas, água, comida, o passaporte ou
RG atualizado para cruzar o lado estrangeiro. Cuidado com os animais silvestres,
incluindo cobras.
Pão de Açúcar ? “Com 395 m de altura, o Pão de Açúcar oferece uma visão de 360
graus da cidade do Rio de Janeiro. Tem anfiteatro, restaurantes, lojas e o Cocuruto, um
museu que conta a história do bondinho.” Se você sobreviver à ida, sem se perder por
uma das favelas e sem despencar do bondinho, faça bom proveito da vista panorâmica.
Parque do Ibirapuera ? “O mais importante parque urbano de São Paulo, com
quase 1,6 milhão de m2 de área verde,com espaços para caminhada, skate, bike, jogos
de futebol, reúne ainda museus, pavilhões, planetário.” Um olho no bolso e outro no
parque, cuidado para não ser atropelado enquanto corre pela calçada.
Foi após uma viagem “dos sonhos” que eu aprendi a me precaver contra pacotes
turísticos que escondem as mazelas do local, e que, uma vez omitidas pelo vendedor e
descobertas pelo comprador dão a impressão de que você foi vítima de uma propaganda
enganosa.
Meu pai teve uma rara situação em que a última semana de férias de um de seus
empregos coincidia com a primeira das férias do segundo emprego.
Quando ele se deu conta de que iria ter uma semana totalmente livre, propôs à
família uma viagem
-Vamos para o campo – sugeriu minha mãe.
-Quero conhecer o Rio de Janeiro – opinou o Drew.
-Vamos à Disney – emendou a Tônia.
-Que tal visitarmos o Grand Canyon ? - sugeri.
-Mas o que você quer fazer num buraco quente e seco, moleque ? - advertiu-me
ele.
-Bom , precisamos planejar bem para que as despesas não ultrapassem o que seu
pai recebeu de adiantamento de férias e sobre algum dinheiro para passarmos o
restante do mês sem apuros.
Como não tínhamos chegado a um consenso sobre o destino, ficamos de pensar
nos próximos dias sobre o assunto.
-Puxa, Chris, vocês vão sair de férias com seu pai ? Para que país ?
-Olha, Greg, a gente não está com essa bola toda. Vamos para algum lugar por
aqui mesmo.
-Nossa, por que não Washington ?
-E por que Washington ?
-Assim você visita os museus e aprende um pouco em cada um deles.
Traduzindo: já que vai faltar às aulas durante uma semana, passe esse tempo
estudando.
Por conta do linguarudo do Greg a escola toda estava sabendo da viagem.
-E aí, Pixaim ? Não esquece de passar num jardim zoológico para visitar seus
primos macacos – falou o Caruso.
-Chris, seria tão bom se vocês fossem para a África conhecer seus ancestrais –
recomendou a srta. Morello – o problema é vocês serem raptados por aquelas tribos de
selvagens separatistas e não poderem voltar mais para a América.
Enquanto eu fazia minhas pesquisas sobre que locais poderia visitar, minha mãe
conferia com o pessoal do salão de beleza quais as melhores opções.
-Olha, Rochele, se eu fosse você, iria para Hollywood ver aquelas celebridades do
cinema, fotografava as roupas e cortes de cabelo, traria os modelos para reproduzirmos
aqui. Seria o maior sucesso.
O Perigo deu uma boa ideia do ponto de vista financeiro ao meu pai.
-Olha, Julius, por que vocês não vão até o Paraguai ? Trazem umas mercadorias
até o limite de cada turista, vendem aqui a “muamba” e a viagem sai quase de graça. Eu
te ajudo a repassar os produtos.
Já o Doc que é meio saudosista, insistiu para irmos a Nova Orleans, que é uma
cidade com influência francesa , caribenha e negra, mesclada com ritmo de jazz.
Tio Michael que é fascinado por comida estrangeira sugeriu irmos ao Novo México
comer tacos, burritos, guacamole, quesadillas e margarita;
O sr. Omar, sempre cauteloso, aconselhou:
-Façam um seguro de viagem para os imprevistos, Nunca se sabe quando irão
precisar. Se possível um plano funeral. Querem preencher este formulário ?
A Tônia e o Drew ficavam atentos aos reclames da TV sempre que noticiavam
algum pacote de viagem.
No final das contas, meu pai, por meio de um colega de trabalho, contatou uma
agência que propôs uma semana numa praia não muito longe daqui.
-Veja só, amor, reservei 2 quartos num hotel 3 estrelas com direito a café da
manhã, com frigobar, TV, ar condicionado, perto do mar, por 30 dólares a diária.
-Que ´ótimo, Julius, vamos começar a arrumar as malas.
Depois de juntarmos a roupa necessária, mais os apetrechos (boia, óculos de
natação, balde, pás, bola, raquetes, peteca, bonés, chapéus, guarda-sol) colocamos a
tralha no carro e partimos para nossas tão merecidas férias.
Depois de 3 horas numa rodovia bem pavimentada, chegamos ao hotel, onde um
comitê de alegres funcionários nos recepcionava. Pegamos as malas e nos distribuímos
em 2 quartos vizinhos (meus pais num e nós os filhos noutro).Vi quando o camareiro
estendeu a mão para receber alguma gorjeta e meu pai sorriu para ele e depositou um
cupom fiscal de um café que tomamos na estrada.
Jogamos as malas sobre as camas nos aposentos, trocamos de roupa, colocando
nossos shorts e maiô para aproveitar a praia enquanto o sol ainda brilhava quente.
Enquanto o Drew e a Tônia brincavam de jogar peteca, meus pais e eu ficamos
sentados na areia olhando aquela imensidão de água salgada.
-Pai, trouxe o bronzeador ?
-Prá que você quer o bronzeador ? Quer ficar mais preto do que já é?
-Não, é pra usar como protetor solar.
-Olha, passa areia pelo corpo que ela te protege do sol.
Depois de algumas horas “empanado” com areia, fui dar uns mergulhos e jogar
bola com o Drew.
-Amor, você trouxe o picador de gelo ?
-Ora, pra que você quer um picador ?
-Prá furar seus olhos se você continuar olhando pra bunda daquela branquela.
-Que é isso, Rochele, só estou olhando as crianças brincando.
Na hora em que bateu a fome passamos pelos quiosques consultando os preços
-Pai, eu tô com fome – reclamou a Tônia.
-Calma querida, vamos só pesquisar um pouco mais.
No fim, paramos um carrinho de cachorro quente e comemos uns sanduíches com
refrigerante.
Depois de comer, voltamos aos folguedos na praia e, ao final do dia estávamos tão
exaustos que, retornando ao hotel, preferimos nos lavar e cair na cama em vez de
consultar o cardápio do jantar.
Meu pai orientou-nos a aproveitar ao máximo o café da manhã, que estava incluso
na diária, para diminuirmos os gastos com o almoço.
- Pai, não tem cereal ? Perguntou a Tônia.
- Não, mas tem pão, manteiga, queijo, maçã, banana, café, leite e chá.
- Puxa, que café da manhã chinfrim, eu queria um iogurte – emendou o Drew.
Nessa hora minha mãe olhou para meu pai com aqueles olhos de “santo que
desconfia quando a esmola é muita”.
- Crianças, parem de reclamar, comam o máximo que puderem para retardar a
fome e economizarmos nas próximas refeições - concluiu com seu jeito apaziguador e
tentando agradar meu pai.
Pegamos nossas coisas e rumamos para a praia
Fui logo bater uma bola com o Drew enquanto a Tônia procurava uma companheira
para jogar peteca.
Como a praia era frequentada tanto pelos turistas quanto pelos moradores da
cidade, havia também muitos cachorros. Embora não fossem bravos, vinham se meter
nas nossas brincadeiras, e numa dessas morderam nossa bola que era de plástico,
furando-a.
Os donos, que se faziam de desentendidos nessas ocasiões (e também quando se
tratava de recolher as fezes desses animais) sumiam do mapa, deixando-nos com nossos
prejuízos.
A Tônia, vendo nosso desespero, veio nos ameaçar de contar ao papai o acidente,
mas nesse meio tempo um outro cão acabou abocanhando sua peteca e levando-a
embora.
Mas esses foram apenas o início de uma série de problemas que tornaram nossas
férias frustrantes.
-Meninos, peguem suas coisas para irmos embora – ordenou minha mãe, vendo
que havíamos perdido nossos brinquedos.
Meu pai resolveu parar no único mercado no caminho entre a praia e o hotel para
comprar comida.
Como não aceitavam nossos tickets alimentação e os preços eram muito mais altos
do que na Bed Stuy, gastamos bem mais do que estava previsto com coisas simples do
tipo pão, frios, frutas, leite, bolachas e refrigerantes.
No hotel, depois de nos lavarmos e comermos uns lanches, fomos nos distrair
assistindo à TV.
Enquanto meus pais viam as reportagens num canal de noticias, eu, o Drew e a
Tônia discutíamos sobre qual emissora sintonizar em nossa TV.
-Eu quero ver o Pernalonga – opinou a Tônia.
-Não, vamos assistir o “Karatê Kid” – falou o Drew.
Como eu era o mais velho, quis impor minha autoridade:
-Vamos ver o jogo entre o Chicago Bulls e o Boston Celtics pelo campeonato da
NBA.
Depois de muito bate-boca, choramingo e ameaças mútuas, acabamos deixando
num programa de variedades que unia competição, divertimento e informação.
Como alegria de pobre dura pouco, assim que começou uma forte chuva, houve
um apagão que nos deixou às escuras por pelo menos uma hora, tempo suficiente para
nos deixar ansiosos e impacientes, uma vez que o ar condicionado desligou e ficamos
assando nos quartos.
Uma vez restabelecido o fornecimento de energia elétrica, voltamos ao programa
de TV, mas a imagem ficou péssima. Parecia chover mais dentro do aparelho do que fora
do hotel.
-Puxa, pai, não sabia que estávamos na época das chuvas – comentei.
-Não se preocupe Chris, logo vai passar e vamos poder sair.
Minha mãe voltou a olhar para ele com aqueles olhos de “santo que desconfia
quando a esmola é muita “.
Cansados de esperar por uma boa imagem na TV, sem poder sair e sem melhores
alternativas, fomos para cama, rezando para que o dia seguinte nos fosse mais
agradável.
De fato, a chuva passou, levantamos animados, quase não reparamos na
frugalidade do desjejum, cujos itens pareciam diminuir a cada dia.
-A padaria ainda não trouxe o pão e o leite azedou – desculpou-se o garçom.
Embora as nuvens tivessem se afastado do céu, fomos atacados por mais uma das
“7 pragas do Egito”.
-Pai, tem uns mosquitos me picando, você trouxe o repelente ?- Perguntou a Tônia.
-Acho que não são mosquitos, são borrachudos e muriçocas.
Até então eu nunca havia sido vítima de um ataque desses insetos. Sua picada é
tão poderosa que até mesmo vestidos nós a sentimos. Como não havia repelente algum,
tivemos que ficar todo o tempo submersos na água, afundando de vez em quando a
cabeça para que ela também ficasse fora de seu alcance.
Em vão aguardamos o fim do assédio dos borrachudos e muriçocas, saímos
correndo da praia para o hotel, nos lavamos e resolvemos pegar o carro para irmos até a
cidade e compensar nossa decepção enchendo o estômago.
-Dizem que há um lugar onde se come bem e se paga pouco – comentou meu pai.
Entramos num restaurante self-service à vontade com preço único e tiramos a forra
pelos dias em que nos enchemos de lanches.
Pela primeira vez na vida conheci uma variedade imensa de frutos do mar (ostra,
mexilhões, lula, polvo, caranguejo, fora os peixes que eu já tinha provado durante o tempo
em que meu pai trabalhou num frigorífico de pesca)
Mas pela primeira vez tive uma reação alérgica que me deixou com a pele irritada e
coçando.
-Isso aí é porque você ficou rolando na areia da praia – diagnosticou o Drew.
-Mãe, dá um xarope para o Chris – completou a Tônia.
Como era uma situação que o xarope de minha mãe não seria capaz de remediar,
corremos para o pronto-socorro mais próximo a fim de tomar um antialérgico, pois além
da coceira eu já estava ficando com um estreitamento na garganta.
Diante de todos os infortúnios sofridos, meus pais resolveram que seria melhor
reduzir as férias pela metade e voltarmos para casa.
Depois de fazermos as malas, fomos à recepção acertar as contas.
-Mas de acordo com o pacote, com a diária de 30 dólares vezes 3 dias são 90
dólares – protestou meu pai ao olhar o valor de 210,00 na nota fiscal.
-Se o senhor verificou com atenção, essa diária promocional vale para a semana
completa. Caso a estadia seja abreviada, será cobrada a diária de 70 dólares –
esclareceu-nos o gerente e apontando a referida cláusula.
Como a permanência na praia provavelmente nos traria mais dissabores que
prazeres, fomos unânimes em nos retirar o mais rápido possível a fim de voltar para
nossa zona de conforto.
Diferentemente da viagem de ida, a volta foi feita no maior silêncio possível.
Isso até chegarmos em casa, ao abrirmos a porta:
-Meu Deus, levaram a televisão !
-Minha poltrona favorita !
-A mesa de jantar !
-As cadeiras !
-O sofá !
Na cozinha faltavam também o fogão e a geladeira. Dos quartos só deixaram as
roupas, do banheiro levaram o chuveiro.
Meu pai correu até o andar de cima e perguntou ao sr. Omar se ele havia visto ou
ouvido algo suspeito.
-Pois é, sr. Julius, pelo visto em vez de fazer um seguro de viagem o sr, deveria ter
feito um seguro contra roubo.
Meu pai ficou quieto porque havia recusado uma proposta do tio Michael para este
vigiar a casa durante a nossa ausência em troca de toda comida que pudesse comer.
Ao retomar prematuramente às aulas, o Greg perguntou se eu tinha algumas fotos
para mostrar a ele.
-Mas esta foto é de uma página do cadastro de hóspedes do hotel, com nomes,
endereços e telefones. O que significa ?
-Significa que as férias foram uma sucessão de desastres e mal-entendidos.
-Mas não ficou nenhuma boa recordação ?
-Ficou esta lição. Antes de você ir passear nesse local, ligue para os hóspedes que
passaram por lá e pergunte a eles como foi a sua experiência. É melhor ouvir o
depoimento deles do que as promessas do agente de viagens.
TODO MUNDO ODEIA O CHAVES

“Para bom entendedor, meia palavra basta”- ditado popular

Antes mesmo que o presidente Donald Trump viesse com a ideia de construir um
muro entre as fronteiras do México e os Estados Unidos, muitos compatriotas já
exercitavam sua xenofobia contra esse povo destilando seu ódio e raiva sobre os
produtos importados desse país vizinho.
-Comida mexicana ? Não, é muito apimentada.
-Tequila ? Prefiro whisky.
- Mariachis ? Rock é melhor.
- Teothiuacán ? - Quero visitar o Grand Canyon.
- Anthony Quinn e Salma Hayek ? John Wayne e Marilyn Monroe são mais
talentosos.
Mas como não existe fronteira para o Capital e este vai para onde o lucro aponta,
algumas séries estrangeiras foram transmitidas por emissoras americanas e uma das que
alcançaram sucesso foi a do Chaves.
Quando crianças não nos importamos com a procedência da história, desde que
nos entretenha e nos alegre, é o que basta.
A prova de que o universo do humor transcende a lógica da vida real está por
exemplo no fato de que o protagonista, um órfão que não tem casa, mora num barril, vive
às custas de favores, paradoxalmente, em vez de despertar piedade suscita-nos raiva e
ódio.
Tudo porque, em meio à sua ingenuidade e malandragem provoca as maiores
confusões, desentendimentos e constrangimentos como no comentário abaixo:
-Sou órfão – diz para o prof. Girafales – mas para ter uma mãe eu até me
conformaria em ser filho da mãe do Quico.
Depois que começaram a transmitir a série, o Greg não perdia um único capítulo e
ficou tão entusiasmado que aproveitou um mês de férias para fazer um curso de
Palhaçaria Terapêutica pela escola Construindo seu Clown.
Depois de tomar várias aulas, teria que apresentar um roteiro de uma cena
humorística.
-Vou escrever sobre o Chaves – disse.
“Chaves no páteo, sentado com as pernas cruzadas, de olhos fechados e as mãos
com as palmas para cima, sobre os joelhos. Quico sai de sua casa, aproxima-se dele, fica
olhando surpreso.
-Será que a Bruxa do 71 jogou um feitiço nele ?
Passa a mão na frente dos olhos do amigo, estala os dedos, bate palmas, dá uns
pulos:
-Chaves, a Bruxa te hipnotizou ?
Chaves continua imóvel, como se não tivesse escutado nada.
-Chaves, o que aconteceu ? Chavinho, fala pra mim se você morreu. - implorando.
Sem abrir os olhos, responde:
-Estou meditando.
-Está ditando o quê ? Cadê o papel e o lápis para anotar ?
Estou MEDITANDO e não ME DITANDO, seu burro.
-Mas por quê ? Isso é algum castigo por não ter feito a lição de casa ?
-Isso é meditação transcendental, Quico.
-Ah, é porque você fez tranças com fio dental ?
Chaves abre os olhos: -você nunca ouviu falar de meditação ?
-Bom sempre que eu preciso ir ao médico, depois de me examinar ele diz que eu
vou ter que tomar uma medicação…
-Meditação é quando você fica parado, olhos fechados, procura não pensar em
nada, presta atenção na respiração, sente o coração bater...
-Ah, é como age o professor Girafales quando vem visitar minha mãe e fica
esperando ela dar um beijo nele ?
-Não Quico, o professor Girafales está com paixonite aguda. Meditação
transcendental é uma técnica para ficar mais concentrado, ter mais foco nas coisas…
-Mas o que o foco tem a ver com isso ? Ele se separou da foca ?
-Quico, você só não é mais burro porque é um só.
-Não adianta vir com elogios. Vê se me explica direito. Quem foi o idiota que te
ensinou essas coisas ?
-Foi sua mãe.
-Minha mãezinha querida ? Por que é que ela iria te ensinar isso ?
-Ela disse que eu deveria meditar sobre a minha vida, para não fazer tanta coisa
errada.
-E porque é que você continua fazendo coisa errada ?
A Chiquinha sai de casa e vê os 2 conversando:
-Oi Chaves, por que você está sentado com as pernas enroladas ?
-Essa é a postura de lótus.
-Você tem dinheiro para jogar na loto ? Posso te sugerir alguns números ?
-Não, estou praticando meditação.
-Ah bom, meu pai faz isso todo dia em casa.
-Ele usa algum mantra?
-Não, só se estiver muito frio, senão ele faz com a roupa do corpo mesmo.
-Eu perguntei se ele fala algumas palavras esotéricas durante a meditação.
-Ah sim ! Muitas palavras histéricas: Ui, ai, ufa, puxa, ainda bem, até que enfim,
caramba, que dor.
-Quando ele medita ?
-Todo dia de manhã quando vai fazer o número 2.
-Ele medita muito tempo ?
-Uns 10 a 15 minutos. Fica mais tempo quando come umas pimentas na véspera.
Aí ele medita mais vezes. Se come guacamole, passa o dia inteiro meditando.
Seo Madruga sai de casa.
-Oi Chaves, o que está fazendo ?
-Estou meditando. O senhor já meditou hoje ?
-Eu não
-O senhor não fez o número 2 hoje ?
-Sim, e daí ?
-A Chiquinha disse que o senhor medita enquanto faz o número 2.
-Chiquinha, que negócio é esse de ficar falando de minha privacidade para os
outros ? - repreende a filha.
-Ué, papaizinho, sempre que eu bato na porta do banheiro e pergunto se vai
demorar o senhor fala que está meditando…
-Então, seo Madruga, se o senhor usa a privada para meditar, não tem problema
nenhum falar da sua privacidade – emenda o Quico.
Seo Madruga dá um beliscão no braço da Chiquinha.
-Uá-uá-uá-uá.
-Seo Madruga, o senhor devia beliscar o Quico e não a Chiquinha...
-Foi sem querer querendo…
-Essa fala é minha…
-Desculpe, mudaram o roteirista hoje.”
O professor do curso, Rafael, gostou da história, levando em conta a pouca idade e
experiência do Greg nessa atividade, só não concordou com o título: “Everybody hates
keys(1)”

(1)keys- palavra inglesa que é o plural de chave


TODO MUNDO ODEIA A GRANDE FAMÍLIA

“Amigo é coisa para se guardar / debaixo de sete chaves, / dentro do coração” - Canção
da América – Milton Nascimento

CASA DO AGOSTINHO, SALA DE ESTAR

Bebel, preocupada.
-Tinho, você já viu as notas no boletim do Floriano ?
Agostinho, lendo o jornal, distraído.
-O que tem as notas do Floriano ? Tem alguma em vermelho ?
-Só tem nota vermelha !
Agostinho, surpreso.
-Como assim, Maria Isabel, o Floriano sempre foi bom aluno.
-De uma hora prá outra ele começou a relaxar – diz choramingando.
-Mas ele tem ido à escola todos os dias !
-Pois é, a professora me chamou e disse que ele não falta mas não presta atenção
nas aulas.
-Fica fazendo aviãozinho ? - diz com ironia.
-Não, fica quieto, pensamento distante, no mundo da lua.
-A professora conversou com ele ?
-Sim, ele disse que não era nada, mas ela acha que precisa de apoio psicológico.
Agostinho, querendo se safar.
-Olha Bebel, vai ver ele está com “encosto” de um espírito preguiçoso, vou falar
com o Pajé prá fazer um descarrego.
Bebel, indignada.
-Preguiçoso é você, Agostinho Carrara, que não quer se esforçar para dar um
futuro melhor para o seu filho. Fica sentado lendo o jornal em vez de correr com o táxi.
Vou já procurar um psicólogo para o Floriano – sai pisando duro.

NA OFICINA DO PAULÃO

Chega um carro de luxo, do ano, dirigido por uma senhora, acompanhada pelo
marido.
Paulão, todo educado, recebe a freguesa.
-Em que posso servi-la, minha senhora ?
A mulher, bem vestida, cabelo arrumado e maquiada.
-Sabe que é, moço, eu acabei de tirar minha carta de motorista, resolvi sair com
meu marido. Daí a gente entrou por umas “quebradas” , se perdeu, caímos num buraco.
Depois disso o carro começou a fazer um barulho estranho.
Paulão, querendo ser engraçado.
-Isso que dá entrar numas quebradas, acaba se quebrando todo. Madame, qual
sua graça ?
A senhora, com ar sério.
-Olhaqui, moço, tá achando que isso é uma piada ? Prá mim não tem graça
nenhuma.
-Num é nada disso, dona. Só perguntei qual é o seu nome.
Agora, sorridente.
-Ah bom, é Ofélia, muito prazer.
-O meu é Paulão. Paulão da Regulagem para os mais íntimos.
O marido intervém.
-Então seu Paulão da Traquinagem, pode verificar o problema ?
-É Paulão da Regulagem. Claro, vocês não querem esperar ali na pastelaria
enquanto eu faço um “check-up” no veículo ?
-Tudo bem seu Paulão, mas esse negócio de cheque é com o meu marido, ele que
paga as nossas contas.
O marido, disfarçando.
-Cala a boca, Ofélia, ele vai fazer um exame no carro.
-Que é isso, Fernandinho. Exame quem fez fui eu, na teoria e na prática, por isso
tenho minha carta de motorista. O carro não precisa de exame nenhum, só de um reparo.
-Carta que você deve ter tirado por correspondência.
-Pois fique sabendo que só não estou dirigindo bem como você porque me falta um
pouco de prática.
-Ah é ? Não sabia que não saber ler se chama falta de prática.
-O que ? Tá falando daquela rua cheia de buracos em que a gente se enfiou ?
-Claro, não viu que tinha uma placa escrita “EM OBRAS”?
-Fernandinho, você não me acuse de uma coisa dessas. Como é que eu ia saber
que a rua estava em reparos? Você não vê que por aí tem um monte de placas indicando
essas empresas brasileiras: PETROBRÁS, ELETROBRÁS, TELEBRÁS, NUCLEBRÁS ?
Então, eu achei que estava indicando acesso para uma empresa chamada EMOBRÁS.
Paulão arremata: -A sra. se parece com um amigo. Ele tem uma dificuldade imensa
em entender, quando entende acaba esquecendo e nesse meio tempo faz uma tremenda
confusão.

NA PASTELARIA DO BEIÇOLA

Agostinho, sentado, bebendo uma cerveja.


-Que cara é essa, Agostinho -pergunta Beiçola
-O Florianinho está mal na escola, a professora recomendou que ele fizesse uma
psicoterapia.
-No meu tempo, quem precisava de tratamento psicológico ou era louco ou boiola.
Agostinho, nervoso.
-Que foi,Beiçola ? Tá achando que meu filho é o quê ?
Beiçola, apaziguando.
-Eu não tô dizendo nada. Só falei que era um recurso extremo, empregado em
último caso. Normalmente os pais falavam com os filhos, se fosse preciso davam umas
palmadas. Ah, minha santa mãezinha, quanta saudade dela !
Agostinho, com ar professoral.
-Hoje em dia, Beiçola, não se usa mais de violência para educar os filhos. Tudo é
na base do diálogo, na psicologia. Os jovens podem ficar traumatizados, complexados,
viram uns marginais, uns assassinos – Agostinho imagina seu filho atirando nele com um
revólver.
-Bom, meus pais me educaram com severidade e nem por isso eu sou desonesto.
Até me formei advogado.
O Tuco estava acompanhando a conversa, fala de lado para o Agostinho com
intenção de fazer o Beiçola ouvir.
-Por isso ele só advoga em causa própria.
Beiçola prepara um revide mas vê o casal sentar-se numa das mesas.
-Ei moço pode atender a gente ? - diz a Ofélia.
Beiçola dirige-se todo sorridente.
-Pois não, madame, o que vão querer ?
-Prá mim pode ser uma tônica – pede o Fernandinho.
Ofélia sente-se constrangida.
-Que é isso, Fernandinho, aqui é um boteco, não uma loja de roupas.
-Como assim ?
-Ué, você pediu uma túnica. Além do mais você está com o guarda-roupa lotado,
não precisa de nada.
-Eu pedi uma água tônica, sua anta.
-Ah bom, mas não precisa exagerar.
-E a senhora, o que vai querer ?
-Prá mim uma coca.
-Da preta ou da branca ? - com ar malicioso.
-Como é ? Pode repetir ?
-Coca preta ou coca branca ?
O Fernandinho, num estalo.
-Há,há,há. Coca preta ou coca branca, essa é boa, há,há,há.
Agostinho e Tuco riem da piada.
Ofélia fica sem entender nada.
Fernandinho cai na real e fica sério.
-Olha aqui, seu...
-Beiçola.
-Pois olha aqui, seu Brizola. Minha mulher pode ser um pouco lenta no raciocínio
mas ela seria incapaz de fazer uso de uma coca que não fosse a preta. Ela foi educada
nos mais altos níveis de padrão moral, por isso é que eu a escolhi para ser mãe de meus
filhos – olha para o Tuco (1).
-Me desculpe, dona Cordélia, foi só uma brincadeira.
-É Ofélia. Não tem problema não. Isso de coca branca, preta, azul não interessa, o
que importa é o sabor. Pode ser coca da Pepsi mesmo.
Agostinho, interessado na conversa, intromete-se.
-Com licença, minha senhora. Não pude deixar de ouvir o comentário de seu
marido, e como estávamos falando justamente de educação dos filhos, gostaria se saber
como foi a sua.
A Ofélia, toda animada.
-Pois fique sabendo que venho de uma família humilde da zona rural, éramos doze
filhos, começamos a trabalhar desde pequenos. Na época de plantio e colheita faltávamos
na escola, por isso tivemos pouca instrução. Mais tarde arrumei emprego em casa de
família, aos domingos assistia a programas de auditório, onde conheci o Fernandinho que
era produtor da Escolinha do Professor Raimundo.
O Fernandinho todo envaidecido.
-Aí nos apaixonamos, casamos e tivemos quatro filhos maravilhosos.
O Tuco ficou entusiasmado.
-Caraca, será que eu poderia fazer um teste prá ator ?
-E você tem alguma experiência no ramo ? - pergunta o Fernandinho.
-Bom eu sei me fingir de morto, serve ?
Fernandinho ri da piada.
-Vocês não querem provar uns pastéis ?– incita o Beiçola.
-Traz um de frango - pede a Ofélia.
-Mas isso é canibalismo, dona – emenda o Tuco.
-Há,há,há, a Ofélia pediu um pastel de frango, se ela comer vai praticar
canibalismo, então ela é uma galinha...
Todos riem, até que o Fernandinho se levanta da cadeira e se exalta.
-Canibalismo é o que você vai praticar comendo um pastel de calabresa, seu
porco.
Ofélia intervém.
-Calma, Fernandinho, não tá vendo que ele só tá querendo demonstrar o talento
para o humanismo ? Porque você não marca um horário para ele fazer um teste ?
-É humorismo, Ofélia. Tudo bem, seu Cuco. Vou deixar meu cartão, o senhor me
liga para agendar.
-É Tuco, seu Fernandinho, de Artur. Artur Silva.
-Cuco, Tuco, é tudo a mesma coisa. Fica chamando a atenção de meia em meia
hora.
-Puxa, mas esse pastel está uma delícia. Me lembra o gosto das galinhas que a
gente tinha que roubar do vizinho quando a despensa estava vazia.
-Ué, mas o seu marido disse que a senhora foi criada com rigor – surpreende-se o
Beiçola.
-Mas é verdade. Depois que a gente roubava, meu pai mandava ajoelhar no milho,
dava uns “bolos” com a palmatória, puxava a orelha, dava cintadas e deixava de castigo
no quarto. Só que todo mundo comia a galinha, até ele.
-Mas a senhora não acha que os tempos mudaram, que a educação tem que ser
mais liberal ? - pergunta o Agostinho.
-Seu Julinho, palmada nunca matou ninguém. Pelo contrário, meus filhos sempre
levaram uns bons cascudos e estão firmes e fortes, formados, trabalhando honestamente.
-É Agostinho.
-Julinho, Agostinho, é tudo mês do ano , além do mais, estamos em julho –
arremata o Fernandinho.

DALI ALGUNS DIAS, NA CASO DO LINEU.

Floriano sentado à mesa, fazendo lição de casa.


-Oi Floriano – cumprimenta o Lineu.
-Oi Vô, tudo bem ?
-Tudo bom e a escola ?
-Mais ou menos. Minha mãe me arranjou uma psicóloga para ver se eu melhoro o
desempenho.
-E o que você acha ?
-Não sei. Continuo desanimado.
-Então o seu problema não é a escola .
-Como assim ?
-Os problemas na escola são o efeito de um outro problema. Pode ser que você
esteja desmotivado por outros fatores.
-Como os que eu tenho em casa ?
-Quais são eles ?
-As brigas entre os meus pais. A minha mãe falando com o Agostinho que ele não
trabalha o suficiente para sustentar a casa, e ele respondendo que ela não cuida do lar
como se deve.
-Sabe, Floriano, todos os casais tem suas divergências, inclusive sua vó e eu.
Dona Nenê escutando a conversa confirma.
-É isso mesmo, Floriano, a vida de um casal é feita de concessões de ambos os
lados, nada é perfeito.
-Então por que as pessoas se casam ?
-Porque faz parte de nossa espécie os homens se juntarem com as mulheres,
terem filhos e estes prosseguirem com esse costume. É o instinto de sobrevivência da
humanidade.
-Quer dizer que mesmo sabendo que vão ter atritos, discussões, brigas, as
pessoas vão continuar se casando ?
-Sim, é claro que o homem e a mulher vão buscar o parceiro mais adequado, pois
sabem que a vida conjugal é feita também de carinho, amizade, prazer e alegria.
-E os próprios filhos do casal também são motivo de alegria – emenda dona Nenê.
-Às vezes eu acho que meus pais estão brigando por minha causa.
-Não é bem assim. Muitas vezes os pais atribuem as causas dos seus problemas
aos filhos porque não querem se dar conta de sua responsabilidade no assunto, e aí o
filho sente-se culpado e fica se punindo .
-Então eu estou me castigando na escola, não prestando atenção às aulas e
tirando notas baixas ?
-Mais ou menos.
-A psicóloga disse que às vezes a gente quer fazer uma coisa mas acaba fazendo
outra, e isto se chama comportamento deslocado.
-Certo, como querer dar uns puxões de orelha nos pais e, como você se acha sem
autoridade para isso, acaba puxando sua própria orelha.
-Então quem precisa da terapia são eles, e não eu ! - descobre.
-Pode ser. Ou então apenas uma conversa franca e aberta, falando diretamente
sobre o problema real, sem rodeios, sem enrolação.
-Puxa, vô, o senhor entende mais de psicologia do que a terapeuta.
-Que nada, Floriano. O que eu sei é resultado da minha experiência de vida, na
escola, no trabalho, na família. Todo mundo, se quiser, se pensar bem, pode se tornar
uma pessoa mais consciente de si mesma.
-Então me ajuda no trabalho de escola ?
-Claro, que matéria você está vendo ?
-É História.
-E o que é a gravura neste livro ?
-São aquelas pinturas que os homens pré-históricos deixaram nas paredes das
cavernas.
-As pinturas rupestres ?
-Sim.
-Você sabe por que eles faziam esses desenhos ?
-A professora explicou que era para eles conseguirem obter sucesso nas caçadas,
por isso os homens aparecem armados de lanças abatendo os animais.
-Exatamente. Eles acreditavam que esta simulação daria poder para atingir seus
objetivos.
-Aqui no livro diz que esse ritual se chama magia simpática. Esta é a origem das
simpatias que fazemos para afastar o azar ?
-Sim, mas a grande magia disso está no fato de que esses desenhos deram origem
à escrita, que possibilitou a comunicação entre os homens e o trabalho em equipe.
-Então na verdade o que faz com que a gente consiga sucesso na vida é a união ?
-Sim, você conhece o ditado: “A união faz a força” ?
-Puxa, vô, obrigado pela explicação. Já sei como falar com meus pais.

NA OFICINA DO PAULÃO

Ofélia e Fernandinho chegam para pegar o carro que ficou para consertos.
-Seu Paulão, conseguiu resolver o problema ?
-Claro, seu Ferdinando, tá com Paulão, tá nas mãos de Deus.
-É Fernandinho, seu Paulão da Malandragem.
-É Paulão da Regulagem. Tudo bem, foi só a correia do alternador que tava
pegando na ventoinha do radiador, que com o aquecimento exagerado fazia estalar o
cabeçote dos pistões e balançar as juntas das velas.
-Não era só apertar a “rebimboca da parafuseta” ? - pergunta a Ofélia.
-Que é isso, dona Amélia. Isso é papo de mecânico que não sabe trabalhar.
-É Ofélia, seu Paulão.
-Certo, mas não se preocupem. Eu aproveitei para trocar os filtros de ar, de óleo,
de combustível. O carro tá novinho em folha.
-E aquilo ali, em cima da glândula ?
-Glândula ? Que glândula ?
-É gôndola, Ofélia – corrige o Fernandinho.
-Ah, é um sachê de perfume.
-Então coloca um desses no carro, porque ficou um cheiro de coisa estranha no ar.
Enquanto Fernandinho discute o preço do serviço com Paulão, Ofélia vai até a
pastelaria.
-Fernandinho, quanto deu o serviço ? - pergunta a esposa.
-São mil e duzentos reais.
-Seu Paulão da Sacanagem, a gente vai pagar setecentos e o resto o seu Beiçola
vai acertar mais tarde com o senhor. - diz a Ofélia.
-É Paulão da Regulagem, minha senhora.
Ofélia acena para o Beiçola.
-Seu Beiçola, os quinhentos que o senhor me deve, entrega aqui para o seu Paulão
mais tarde,viu ?
Beiçola responde da pastelaria.
-Pode deixar dona Ofélia, hoje mesmo eu acerto...
Ofélia e Fernandinho se despedem do Paulão, todo contente.

NA CASA DO AGOSTINHO

Agostinho, Bebel e Floriano à mesa da sala.


-Então, meu filho, como vai a psicoterapia ? - cutuca o Agostinho.
-Pai, acho que eu não preciso mais disso .
-Tá vendo, Maria Isabel, eu disse que era uma fase passageira, a gente gastou
dinheiro à toa.
Bebel se defende.
-Olhaqui, neguinho, depois de ver as notas vermelhas, ouvir a professora dizer que
ele andava disperso, você queria o quê ?
-A gente podia ter experimentado primeiro um passe no terreiro do Pajé.
Floriano intervém.
-Não é nada disso, Agostinho.
-Então fala, meu filho, o que é que tá acontecendo -pergunta a Bebel.
-A gente precisa se harmonizar mais.
-Como assim ?
-Vocês ficam brigando, não entram num acordo, eu me sinto um estorvo, acabo me
desestimulando e vou mal na escola.
-Quer dizer:”Casa onde falta o pão, todo mundo briga e ninguém tem razão” ? -
pergunta a Bebel
-É.
Agostinho e Bebel se olham, de maneira mais compreensiva.
-Você tá certo, filho. Teus pais é que precisam de conselhos. - conclui o Agostinho.
-Então, não é melhor fazer as pazes e nos unirmos ?
-Puxa, filho, falando desse jeito dá impressão que você é muito mais adulto do que
parece – elogia o Agostinho.
-O meu avô me deu uns toques e me emprestou uma fita de vídeo.
-Que fita ?
-De um seriado chamado “Todo mundo odeia o Chris”.
-E o que tem nesse seriado ?
-É a história de uma família de negros que mora nos Estados Unidos, um casal
com 3 filhos um deles chamado Chris.
-E o que tem de interessante ?
-Ele é um adolescente, o mais velho deles, que tem alguns problemas de
relacionamento dentro de casa, na escola e com garotas. Por conta disso se mete em
muitas confusões e trapalhadas, mas acaba resolvendo tudo.
-Como isso te ajudou ?
-Compreendi que toda família tem seus problemas, cada um tem suas
características próprias, nós precisamos aceitar a vida como é, tentando nos mudar para
melhorar os relacionamentos.
-E o que mais o Lineu disse ?
-Que hoje, 20 de julho é dia do amigo .
-Ah, é ? E porque ?
-Porque é o dia em que o homem colocou os pés na lua.
-Então a lua, que já era visitada pelos poetas e astrônomos passou a fazer parte da
família da Terra.
-Por isso, quando a gente fica “no mundo da lua”, mãe, é porque sonha com um
mundo melhor.
Todos se abraçam como amigos.

NA OFICINA DO PAULÃO

De tarde, o Beiçola trazendo uma caixa enorme.


-Mas o que é isso Beiçola ?
-Ué, a dona Ofélia encomendou 500 mini-pastéis e mandou entregar aqui.
-E o que eu vou fazer com eles ?
-Eu é que não sei. Ela falou que precisava deles para um quadro na televisão.
-Deixou pago ?
-Não, disse que acertava depois. Em que programa ela vai usar ?
-Deve ser “Os trapalhões”.
Agostinho aproveita para tripudiar.
-A mulher é ruim na Gramática mas boa na MATEMÁGICA.
Todos riem.

(1) O personagem Fernandinho é interpretado pelo ator Lúcio Mauro, pai do ator
Lúcio Mauro Filho que interpreta o Tuco.
TODO MUNDO ODEIA A ESCOLINHA DO PROFESSOR RAIMUNDO

“Um país se faz com homens e livros “- Monteiro Lobato

Quem acompanha série cômica de TV deve ter percebido a fórmula utilizada para
mantê-la no ar, sustentando-a temporada após temporada.
Os personagens possuem características bastante previsíveis, identificadas logo no
primeiro episódio, sendo colocados em roteiros e histórias que variam em termos de local
e época do ano.
Como é de se esperar, as situações e diálogos diferem mas a reação é sempre
parecida, ou seja, predispostos a rir das “gags”, pantomimas, do “nonsense”, trocadilhos,
e caricaturas, somos induzidos a afrouxar a guarda e repetidamente sorrimos amarelo ou
gargalhamos a bandeiras despregadas daquilo que estamos predispostos a ver e ouvir.
Eventualmente incluem um novo coadjuvante que traz uma situação inusitada.
Pensando nisso é que a emissora responsável pela produção do quadro “Escolinha
do professor Raimundo” me convidou para participar de um capítulo especial.
Claro, aceitei o convite imediatamente, pois só assim teria a chance de conhecer o
país do Carnaval e essa gente que se diz hospitaleira com o estrangeiro.
Fizemos os ensaios, mas como de costume tive a oportunidade de improvisar
algumas falas.
- Senhoras e senhores, tenho a honra de apresentar um ilustre convidado para
nossa aula de hoje, o famoso Chris, do seriado “todo mundo odeia o Chris”.
Todos me aplaudiram, menos um.
- Seo Nerso da Capetinga, o sr não conhece o seriado “todo mundo odeia o
Chris” ?- perguntou o mestre.
- Claro, sô. Se ele chama todo mundo odeia o Chris por que justo eu tenho que
puxar o saco dele ? Tô morrendo de ódio dele.
- Me desculpe, Chris, tem aluno que gosta de levar tudo ao pé da letra.
- Que pé da letra o quê ? Aqui a gente leva a coisa na ponta da bota.- revidou o
Nerso.
- Bom, vamos deixar de lado essas picuinhas e começar a aula.
- E quando é que começa a merenda ?
- Seo Boneco, o senhor só pensa em comer ?
- Claro, chefia, ainda mais que hoje tem um convidado especial, o rango deve ter
melhorado.
- É issoaí, cheeseburguer e coca-cola pra todo mundo – falou o Patropi.
- Puxa, eu que vim ao Brasil pensando em comer uma feijoada…
- Tudo bem, Chris, vamos encomendar uma feijoada completa. – consolou-me
Rolando Lero.
- Completa ?
- É, com ambulância na porta.
- Dona Capitu, uma pergunta sobre geografia.
- Presente, professor. Geografia é um lugar que eu costumo frequentar muito.
- Um compositor espanhol, Francisco Tárrega, compôs uma música chamada
Recuerdos de la Alhambra. Esta música se refere ao Palácio de Alhambra, que fica na
cidade de Granada. Em que região da Espanha fica esta cidade ?
- Puxa, eu nunca tive a chance de viajar no estrangeiro, mas o único palácio que eu
visitei, o palácio Tiradentes, fui com a minha sobrinha. Como estava para fechar ao
público eu, com pressa, falei para ela: - Anda Luzia, anda Luzia.
- Acertou, região da Andaluzia
- Ah, eu sabia que eu sabia.
- Dona Marina da Glória !
- Chamou, chamou ?
- Chamei, sim, uma pergunta de aritmética. O Chris foi ao mercado comprar um
pacote de bolachas. Levou 10 reais, o pacote custa 2,50. Quanto ele trouxe de volta?
- Posso pensar ?
- Claro, naturalmente, uma pergunta difícil como essa requer.
- Humm, ele voltou com 8,50.
- Perfeito, tá certo.
- Divirjo, mestre – replicou o Ptolomeu. - Se o Chris levou 10 reais e o pacote
custou 2,50, ele retornou com 7,50.
- Seo Ptolomeu – disse eu – o senhor é muito inteligente, mas de vez em quando
dá uns pitacos fora de hora. Levei 10 reais para comprar um pacote de 2,50, mas como
eu fui na loja do Doc eu usei um vale compras de 1,00.
- Seo Ptolomeu, o senhor precisa se inteirar mais dos episódios do seriado do
Chris- arrematou o professor.
- Dona Catifunda !
- Saravá.
- Dona Catifunda, fiquei sabendo que a sra está tomando aulas de direção, é
verdade ?
- É sim, prefessor.
- E como está indo ?
- De mal a pior.
- Como assim ?
- O sr sabe que nas aulas a gente treina baliza, garagem e percurso...
- Sim, baliza é quando a gente estaciona o carro no meio fio entre 2 outros,
garagem quando a gente estaciona o carro de frente encostando as rodas dianteiras no
meio fio, percurso é quando a gente anda pelas ruas fazendo todo tipo de manobra.
- Pois é, quando eu fiz a baliza eu acertei na mosca, quando fiz o percurso andei a
20 por hora sem cometer nenhuma infração, quando fiz a garagem…
- A senhora encostou errado as 2 rodas dianteiras na guia.
- Pior. Na mesma posição das marcas tinha de fato a garagem de uma residência.
- A senhora entrou na garagem. O que tem de errado ?
- O portão tava fechado quando o instrutor disse: embica na garagem.
- E alguém ficou ferido ?
- Só a autoestima, por não entender o comando do instrutor.
- Tudo bem, leva um 5 pela força de vontade em aprender.
- Seo Boneco, o senhor trouxe o trabalho que eu encomendei na última aula ?
- Sabe que é, chefia, eu fui pesquisar na internet sobre a tal guerra de canudos e
só me apareceu uma matéria que dizia que o governo tava proibindo os bares e
lanchonetes de servir bebidas acompanhadas de canudos plásticos descartáveis, porque
eles poluem os oceanos.
- Quer dizer que o senhor, em vez de pesquisar sobre o conflito armado entre o
exército brasileiro e o povoado de Canudos no final do século 19, resolveu me trazer uma
pesquisa sobre a proibição do uso de canudos de plástico?
- Bom, na verdade, como a matéria tava sugerindo a utilização de canudos feitos
de outros materiais que não o plástico, eu fiquei pensando de que forma eu poderia ajudar
a resolver o problema.
- E como o senhor pensa em resolver o problema ?
- Em vez de canudo plástico, podemos usar canudo de aço.
- Muito bem, e porque de aço ?
- Porque dá pra usar para beber ou para cheirar.
- Como assim beber ou cheirar ?
- Quando o senhor vai num barzinho e pede uma coca, o que o garçon pergunta ?
- Ora, com gelo ou sem gelo, com limão ou sem limão.
- Não, ele pergunta: da branca ou da preta ?
- Ah é, então o senhor vai cheirar um zero preto e branco.
- Seo Joselino Barbacena !
- Joselino Barbacena foi numa consulta médica. Larga d’eu carrapicho.
- Seo Joselino, Minas Gerais é considerada uma terra com uma culinária bastante
rica, variada e saborosa. Cite alguma preparação típica desse estado.
- Óia, quando eu era criança pequena em Barbacena minha mãe costumava fazer
café e quando chamava a família para tomar, perguntava pra cada um de nóis se queria
um café covarde ou um café corajoso.
- E como eram esses 2 cafés ? Tinham receitas diferentes ?
- Não,o café covarde era aquele que vinha acompanhado de alguma coisa, um pão
de queijo, uma bolacha de nata, um bolo de fubá. O corajoso vinha sozinho.
- Tá bom, o senhor ganhou um zero acompanhado, com louvor.
- Seo João Canabrava.
- Falô, pode perguntar qualquer coisa que hoje eu tô afiado.
- Então me diga. O senhor conhece música clássica…
- Claro, música clássica, sertaneja, caipira, rock, funk, samba, choro, com gelo,
sem gelo, com colarinho, sem colarinho…
- Cite pelo menos 3 compositores de música clássica.
- Olha, ontem estava na mesa do Bach tomei um Chopin e depois uma Brahms.
- Taí, gostei do trocadilho, bem original, nota 8 em tom maior.
- Só que eu fiquei Mahler e tive que Penderecki a conta na hora de Paganini.
- Seo Batista, por que o senhor está abraçado com um par de sapatos ?
- É que eu tô muito triste, prefessor…
- E por que está triste ?
- É que o senhor não responde as minhas mensagens.
- Bom, é que eu tenho estado ocupado.
- Mas foi o senhor mesmo que pediu para lembrar que hoje ia ter um aluno especial
na aula.
- Mas não precisava me lembrar de 5 em 5 minutos.
- Prefessor Raimundo, o senhor é muito ingrato, é por isso que no mês de
setembro eu vim para a aula sempre vestido de amarelo.
- Porque setembro é o mês amarelo, do cuidado com a depressão e o suicídio ?
- Exatamente.
- E o senhor está se tratando da depressão ?
- Bom, ainda não. Estou esperando o sapato fazer efeito .
- Ah é? E como o sapato vai te ajudar ?
- Sapato COM SOLA.
- Tá bom. Leva um par de zeros tamanho 39.
- Seo Armando Volta.
- Eis-me aqui, digníssimo.
- Seo Armando, uma pergunta sobre música popular brasileira…
- Sambarilove, se sei, digo que sei, se não sei, digo que não sei.
- Uma das bandas mais famosas da década de 1980, a Blitz, tinha um cantor e
compositor que também atuou como ator em diversas séries de TV…
- E por falar em banda, vinha eu para a escola quando me deparei com um sebo de
livros e discos usados, entrei para garimpar alguma raridade, achei um CD com músicas
do Chico Buarque, e perguntei, por que comprar, por que não comprar ? Comprei-o-o.
- E fico feliz pela escolha, tem vários sucessos dele, inclusive a “Banda”. Mas
vamos à pergunta: qual o nome desse cantor e compositor desse conjunto que atua
também como ator ?
- Digníssimo, o senhor me pegou desprevenido, como nas blitz policiais, tem
alguma dica, uma senha para me ajudar a lembrar ?
- Um dos personagens dele numa série de TV se chama Paulão da Regulagem.
- Taí, o cara é um mecânico por isso vive sendo parado nas blitz policiais…
- Não é nada disso. Preste atenção no que eu vou contar. Outro dia meu sobrinho
estava lendo um livro de história no capítulo sobre religiões, havia uma figura de uma
edificação ele me perguntou: tio, é uma igreja ? Eu respondi: não, Evandro, mesquita.
Mas do que é que nós estávamos falando mesmo ?
- Digníssimo, esse cantor/compositor/ator é Evandro, mesquita.
- Acertou, Evandro Mesquita. Nota dez.
- Seo Baltazar da Rocha .
- Presente.
- Seo Baltazar, as vitaminas são importantes nutrientes que compõem nossa
alimentação. A vitamina A é necessária para a boa saúde dos olhos e da pele. As
vitaminas do complexo B são importantes nas reações químicas , a vitamina C é
importante como antioxidante e na prevenção do escorbuto, a vitamina D é necessária
para a fixação do cálcio nos ossos. Cite algum alimento que tenha uma dessas vitaminas.
- Segundo a minha esposa, ela adora comer chuchu porque é rica fonte de 3
vitaminas.
- Quais são ?
- Vitamina A, B e C.
- Puxa, as 3 vitaminas juntas ?
- Sim, Água, Bagaço e Casca.
- Tá bom, leva um zero vitaminado pra temperar o chuchu.
- Seo Patropi…
- Fala meu.
- Construa uma frase com a palavra CONTUMAZ - escreve a palavra na lousa.
- Muito fácil. Contumaz eu estudo, mais eu aprendo.
- Contumaz significa obstinado, insistente. Pelo visto o senhor insiste em não
aprender a gramática. Persiste em levar zero.
- Pô, meu, parece que não sei. E o senhor insiste em ser curto e grosso.
- Seo Pedro Pedreira.
- Pedra noventa só enfrenta quem aguenta. Manda
- Seo Pedro Pedreira, em 1857 foi publicado o Livro dos Espíritos cujo autor adotou
o pseudônimo de Allan Kardec. O livro é uma coletânea de perguntas feitas pelo autor a
espíritos desencarnados que responderam a essas perguntas.
- Há controvérsia. Me mostra uma das cartas respondendo a alguma das
perguntas.
- Não tem carta nenhuma, os espíritos se manifestaram através de médiuns que
psicografaram as respostas.
- Então me mostra uma autorização desses espíritos para publicarem as respostas
abrindo mão dos direitos autorais.
- Não tem nenhuma autorização dos espíritos para abrir mão de direitos autorais.
Inclusive até hoje muitos médiuns que psicografam textos vindos do plano espiritual
adotam a atitude de repassar os direitos autorais para a editora que publica o livro.
- Então me mostra uma foto de uma sessão onde os médiuns incorporam esses
espíritos ditando as respostas.
- Também não tem foto nenhuma, porque as sessões se destinavam apenas a
obter comentários em cima de questões.
- Tá bom, me mostra pelo menos um exemplar autografado por um dos espíritos
que tenha ditado alguma resposta.
- Também não tem nenhum exemplar com autógrafo dos autores espirituais,
porque eles não compareceram no dia do lançamento.
- Então não me venha com chorumelas.
- Mas tem um espírito me intuindo para autografar sua caderneta com um zero.
- Dona Cacilda.
- Presente, fala bandeira de luto.
- Por que bandeira de luto ?
- Tá sempre hasteada a meio-pau.
- Dona Cacilda, fiquei sabendo que a senhora se propôs a ciceronear o Chris pela
nossa cidade maravilhosa.
- Ah, é verdade, ele tinha que conhecer os pontos turísticos do Rio de Janeiro,
afinal ele não tem pai, a mãe é uma viciada em drogas, os irmãos são trombadinhas…
- Isso tudo é intriga da oposição, só dizem isso dele para criar uma situação.
- Mas não tem problema não, Raimundinho, aqui a gente tem lugar de sobra pra
ele se sentir em casa.
- Afinal, onde é que a senhora o levou ?
- O de sempre: Corcovado, Pão de Açúcar, Maracanã, praia de Copacabana, mas o
que ele mais gostou foi do cafofo do Betão.
- Cafofo do Betão ? O que é isso ?
- Ah, é um boteco no morro do Alemão que organiza umas festinhas de fim-de-
semana regadas a bebida, música e outros bagulhos mais.
- Mas o Chris é menor de idade, ele não poderia frequentar esses ambientes…
- Ah, Mundinho, ele é menor nos “States”, aqui ele tá liberado.
- Ele se divertiu ?
- E como. Esqueceu das namoradinhas dele, a Keysha, a Tasha, das surras do
Caruso, das aulas da senhorita Morello , das broncas da Rochele e do Julius, das
ameaças da Tônia. Perguntou se podia vir morar aqui.
- E a senhora ?
- Eu disse que sim, desde que trouxesse os amigos dele.
- Que amigos ?
- Ora, o Perigo, o Jerome, o senhor Omar, Golpe Baixo, o Doc.
- Bom de qualquer forma ele vai ter que voltar para a casa dele e prosseguir a
carreira e os estudos.
- Dona Cândida.
- Oi professor, ótima manhã para aprender coisas novas.
- Que bom, dona Cândida a senhora e esse seu otimismo contagiam todos os
alunos da classe. Mas vamos falar de um assunto que agrada a todos nós. Suspense.
- Adoro suspense, professor
- Me fale de algum autor dessa modalidade nos Estados Unidos.
- Stephen King, escritor norte-americano, com mais de 400 milhões de livros
vendidos em mais de 40 países, entre ficção científica, terror, suspense tendo várias de
suas obras transformadas em filmes.
- Um autor inglês.
- Agatha Christie, escritora britânica, destacou-se no gênero policial, tendo criado o
famoso inspetor Hercule Poirot, escreveu cerca de 72 romances, vários deles vertidos
para o cinema.
- Um autor alemão.
- E.T.A. Hoffman, escreveu obras de literatura fantástica, tendo inspirado óperas e
balés.
- E um brasileiro ?
- O governo federal que há anos promete reformas sociais, fiscais, políticas com o
intuito de desburocratizar a máquina administrativa, diminuir a corrupção, aumentar os
investimentos, a oferta de empregos, mas que não sai desse chove-não-molha. Aaaah!!!
- Calma, dona Cândida, vai passar.
- Seo Rolando Lero
- Amado mestre, eis-me aqui, a beber da fonte inesgotável de sua inebriante
sapiência.
- Seo Rolando, fale-me algo sobre Fernão Dias Pais Leme, o “caçador de
esmeraldas”.
- Ah, o Fefê da vila Matilde.
- Que eu saiba ele nasceu em São Paulo numa época em que esse bairro nem
existia.
- É que na certidão de nascimento confundiram o nome da mãe com o nome do
bairro, então como ele era filho da dona Matilde, ficou com esse apelido. Mas que figura
esse Fefê ! Grande compositor de sambas e marchinhas de carnaval, descobridor de
talentos, daí a alcunha de “caçador de esmeraldas”, porque cada uma de suas
descobertas era uma joia preciosa a abrilhantar o carnaval de rua da cidade.
- Na época desse cidadão nem tinha carnaval de rua.
- Como não ? Ainda o ano passado ele compôs aquela marcha “Taís” em
homenagem a sua esposa: Tais, eu fiz tudo pra você gostar de mim...
- O senhor quer dizer “Taí”, composta por Joubert de Carvalho. No ano passado ele
não podia ter composto nada, pois faleceu em 1681.
- Não !! O Fefê morreu ?
- Morreu mas passa bem. Deixou um legado importante para nossa história. Eu não
devia mas vou lhe ajudar. Fernão Dias foi um ban…um ban...
- Captei vossa mensagem oh inexpugnável guru. Fernão Dias foi um bandido
especialista em assaltar joalherias na região dos Jardins.
- Seo Ptolomeu, me socorre.
- Fernão Dias Paes Leme foi um bandeirante que por muito tempo procurou pelas
esmeraldas em suas expedições de desbravamento. Fundou arraiais em diversas
localidades em que passou e em sua homenagem deram seu nome à rodovia que liga
São Paulo a Belo Horizonte.
- Nota dez seo Ptolomeu, e um zero esmeraldino para o senhor, seo Rolando.
- Seo Peru.
- Olá teacher. Peru com abobrinha, da Vila Nova Cachoeirinha.
- Seo Peru, hoje o senhor parece que veio fantasiado de super-herói.
- Pois é, teacher, como estamos na época do carnaval eu vim de super-heroína.
- Mas tá me parecendo que é a fantasia do Batman…
- É da Batma.
- Pelo que sei o Batman é homem.
- Isso prá aquele povo de Gotham City. Cá prá nós ele é a maior biba enrustida.
Afinal porque é que ele é conhecido como Cavaleiro das Trevas ? Prá poder sair de noite
e liberar a franga.
- Mas ele como Bruce Waine age com muita masculinidade, tem muitas
namoradas…
- Isso é só fachada, teacher, para despistar. O caso dele é com o Robin, aquele
garoto prodígio.
- Mas o Robin foi adotado por ele.
- Pois é, além de biba ele é papa-anjo.
- Tá bom seo Peru, um super zero para o senhor.
- Não tem importância, Mais um bofe para a nossa irmandade.
- Dona Bella.
- Presente, professor.
- A senhora já visitou uma dessas festas das nações ?
- Sim, professor, tem muita coisa interessante vinda dos outros países .
- A senhora por certo gosta de provar as comidas típicas.
- Sim, da última vez provei uns pastéis de nata feitos com a receita original de
Portugal.
- A senhora por certo já comeu um puchero…
- Ah! - cai no chão e se contorce.
- Seu velho tarado, sodomita, devasso, pornográfico, obsceno. Só pensa naquilo…
- Seo Ptolomeu, me acuda.
- Eu mesmo adoro preparar um puchero em casa quando posso.
- Não complica, explica.
- Puchero é um prato típico espanhol a base de grão de bico e embutidos.
- Cabra bom esse aí, queria ter um filho como ele. Nota dez.
- Seo Zé Bonitinho, isso são horas de chegar ?
- Perdão, teacher estava defendendo minha reputação nas redes sociais.
- Mas o que é que aconteceu nas suas redes sociais ?
- Fake news, teacher.
- Notícia falsa ? Estão dizendo alguma mentira a seu respeito ?
- Que eu sou o homem mais bonito e sexy do planeta.
- Bom, eu também acho que é uma fake news. É um exagero dizerem isso do
senhor.
- Óbvio, teacher, afinal Zé Bonitinho é o homem mais bonito e sexy do UNIVERSO.
- E como é que o senhor tem tanta certeza disso ? O senhor disputou um concurso
de beleza com os habitantes de outros planetas ?
- É só olhar as imagens dos seres extraterrestres que são exibidas na internet.
Rostos ovalados, carecas, olhos esbugalhados, pele esverdeada, um horror.
- Até onde eu sei, em cada planeta habitado existe um padrão específico de corpo
físico. A beleza é relativa a cada um deles.
- Pode até ser. Quem ama o feio, bonito lhe parece.
- E vou além. De acordo com certas crenças, o fato do ser humano nascer com
uma beleza incomum, extraordinária, como o senhor, pode ser uma prova pela qual ele
tenha que passar.
- É isso mesmo, teacher. Zé Bonitinho é a prova de que Deus estava inspiradíssimo
quando me criou e que depois de mim não tinha mais condições de fazer outro igual.
- Tá bom seo Zé Bonitinho, nota 10 para seu narcisismo.
- Seo Aldemar Vigário
- Presente.
- Seo Aldemar, uma das grandes criações feitas para o carnaval brasileiro foi o trio
elétrico. Aquele veículo equipado com equipamento de som, com um palco suspenso
onde os cantores se apresentam pelas ruas cantando suas músicas junto a multidões de
foliões. Me fale quem o inventou.
- Raimundo Nonato.
- Quem ? Eu ?
- Sim,
- Que eu saiba foram Dodô e Osmar, na Bahia. Primeiro criaram o pau elétrico , a
chamada guitarra baiana que eles ligavam na bateria do veículo onde quer que fossem,
pois geralmente não tinha fonte de eletricidade. Daí ficaram conhecidos como dupla
elétrica. Quando um terceiro componente se uniu ao grupo então ficou conhecido como
trio elétrico, isto no ano de 1950,
- Disse-o bem. Mas muitos anos antes, em Maranguape, Raimundo Nonato,
incentivador do carnaval de rua, criou com recursos próprios o primeiro trio elétrico do
país.
- E o senhor pode me dizer como era esse trio ?
- Carente de meios financeiros para ter sua própria banda, aproveitou uma bicicleta
elétrica e acoplou 3 eletrodomésticos que usava como fundo musical para seu jingle
comercial.
- Quais eram esses aparelhos ?
- Um liquidificador, uma batedeira e um aspirador de pó .
- E como era o jingle ?
- “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”.
- Mas este verso é parte da canção que o Caetano Veloso fez muitos anos depois.
- Que ele ouviu de um amigo dele que havia morado em Maranguape na época da
invenção do Raimundinho e plagiou o verso.
- E por que só não ia quem já tinha morrido ?
- Porque o Raimundinho Nonato, grande empreendedor teve a brilhante ideia de
sair pelas ruas oferecendo às donas de casa o aluguel dos eletrodomésticos caso alguma
delas necessitasse.
- Tá, e por causa disso as pessoas acharam que os eletrodomésticos também
podiam ser usados para acompanhamento de cantores.
- Claro, e por isso todo mundo dizia: lá vai o trio elétrico do Raimundinho.
- E o que tem a ver com o trio elétrico da Bahia ?
- Daí a ideia se espalhou pelos estados do nordeste e os baianos a copiaram
colocando os componentes da banda num carro
- Então o senhor fica com um trio de zeros, um para cada mentira deslavada que
inventou.
- Seo Eustáquio.
- Aqui. Quiqueres ?
- Seo Eustáquio, segundo a Física, a luz pode adotar 2 naturezas distintas: uma
delas é corpúsculo, qual é a outra ? Ninguém sopra.
- Onda, mas fala de outra forma – soprou dona Cândida.
- Marola.
- Um tsunami de zeros para o senhor.
- Seo Fininho.
- Fala, meu querido.
- Seo Fininho, ouvi dizer que o senhor abriu um negócio bastante promissor.
- Pois é, Raimundo, um sebo de livros usados.
- Não diga, que bom.
- E eu pensei justamente em te colocar para catalogar os exemplares.
- E como seria o trabalho ?
- A coisa funciona assim: meus rapazes coletam os livros, levam até a loja física,
classificamos as obras , arrumamos nas prateleiras e digitamos na estante virtual.
- Ah, um sebo virtual ? Como os seus rapazes coletam os livros ? Pedem
doações ?
- Não, é um processo mais seletivo, eles trazem das bibliotecas de suas escolas.
- Como assim ?
- Eles tomam emprestado mas esquecem de devolver.
- Mas isso é roubo !
- Meu considerado, não fala isso não. Tu não sabe como esses rapazes estão
ficando letrados com essa atividade. Já sabem o que é uma frase com objeto direto e
indireto.
- Bom, de qualquer jeito serei bem direto com o senhor. Vou ter que recusar a
oferta porque ando meio alérgico a poeira, e sabe como são esses livros usados...
- É sempre assim, eu dou oportunidade e ele não aproveita
- Mas fica com um 7 pela boa vontade em disseminar a cultura.
- Seo Nerso da Capetinga.
- Oi, sô eu. É eu mesmo.
- Seo Nerso, sua cidade natal, Capetinga é um pequeno município do estado de
Minas Gerais. Segundo a tradição, o nome surgiu da língua tupi e significa capim claro. O
senhor sabia disso ?
- Sabia não professor.
- O senhor imagina por que ela tem esse nome ?
- Óia professor, eu acho que é porque tem muito gado, daí foi preciso prantá muito
capim pra alimentá esse montão de boi e vaca.
- E o senhor tem algum parente que trabalha com criação de gado ?
- Óia, tem um tio meu que mexia com issoaí, passou umas cabeças pra mim e hoje
eu devogado pra ele.
- O senhor quer dizer advogado ? Então o senhor vendeu os animais, e com o
dinheiro estudou Direito para defender os interesses dele.
- Que nada sô. Eu num paguei nenhuma cabeça ainda, por isso eu DEVO GADO
prá ele.
- Mas o senhor entende alguma coisa de criação de gado ?
- Como não ? Claro que sei. Cê por acaso sabe o que é ruim de ser comido e bom
de cercá gado ?
- Que é isso, seo Nerso, não sei, o que é ?
- Arame farpado, bobão.
- Prá encerrar a aula, uma perguntinha simples para nosso convidado, fechando
com chave de ouro. Chris, o coletivo de abelha é enxame, o de lobo é alcateia, o de
ovelha é rebanho. Qual o coletivo de burro ?
- Escolinha do professor Raimundo ?
- E o salário ó...
Sobre o autor

Ricardo Ryo Goto nasceu em 1958 em Campinas (SP). É nutricionista, trabalha como
consultor em sistemas de gestão de alimentação. Ex- aluno do curso de Palhaçaria
Terapêutica da escola Construindo seu Clown.
Publicou em 2011 o livro de contos “Em busca do tempo primordial”.
Contatos: ricardoryogoto@gmail.com

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