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A angústia misturada com a culpa que sinto toda vez que olho Eros
vem me apavorando por estar escondendo um assunto importante para ele.
Mesmo depois de anos, o sentimento de perda e incapacidade me assombra,
me causando pânico às vezes.
Penso se será melhor ele saber, já faz tanto tempo, e não fará
diferença de qualquer forma. Contar a Eros que não foi só ele que me
destruiu naquela época que ele foi embora, ao ponto de eu sofrer e ir mal
em tudo ao meu redor pelo impacto que causou na minha vida.
Estou inquieta, porque eu sei que a qualquer momento ele vai entrar
pela minha porta, e me beijar, atrás de prazer.
Como posso estar me sujeitando a isso sabendo que depois de tudo
que eu sofri, eu ainda amo ele, e vou embora, e vai ficar para trás o que
estamos vivendo agora?
Eros tem se dado tão bem com meus pais, se abriu de uma maneira
com eles, que achei ser impossível. Nestes dois dias que se passaram, tive a
sensação de que nada tinha mudado, em momento algum ele foi embora da
minha vida, não houve distância, anos, nada que fizesse diferença.
A porta se abre, e levanto minha cabeça para olhar Eros entrando,
ele sempre espera meus pais irem dormir para se arrastar até meu quarto.
Quando Eros se vira para mim depois de ter trancado a porta, ele sabe que
aconteceu alguma coisa pela minha cara.
— Você está bem? — questiona, vindo sentar ao meu lado.
Diferente das outras noites, a luz do meu quarto está acesa, e Eros
consegue ver cada detalhe das paredes de uma sonhadora de moda, que
largou tudo para viver o desejo dela de se tornar uma estilista de sucesso e
orgulhar os pais que sempre apoiaram.
Meu corpo começa a tremer, e não consigo segurar o choro, ainda
mais pela forma que Eros me olha, seus olhos aflitos e preocupados.
Quando ele percebe que estou chorando, vulnerável, ele se aproxima de
mim e me puxa para os seus braços.
Enfiada no meio das suas pernas, abraço sua cintura, escondendo
meu rosto em seu peito, deixando o choro vir com tudo. Eros acaricia meu
braço, minhas costas, me consolando, e seu carinho me quebra ainda mais
quando ele deixa beijos nos meus cabelos, sussurrando palavras de que tudo
ficaria bem.
E eu já não tenho mais tanta certeza, mais uma vez estou expondo
meu coração a ele, ao homem que eu jurei odiar pelo resto da minha vida.
Me acalmo um pouco depois de alguns segundos, e não tenho
coragem de me afastar de Eros para contar tudo a ele, olhando no fundo dos
seus olhos.
— Tem uma coisa que você precisa saber — sussurro, sentindo seu
corpo tencionar, mas agradeço quando ele não me afasta. — Aconteceu
depois que você foi embora. Para ser sincera, eu não pretendia contar isso a
você nunca, não depois desses dias.
Eros fica em silêncio, mas não deixa de me acariciar, de mostrar que
está ali, e isso me deixa fraca, querendo fugir dele para bem longe.
— Umas semanas depois que você se foi, eu fiquei muito mal, em
um nível que eu não conseguia sair do quarto, a não ser para trabalhar, já
que estávamos de férias.
Eros nada diz, mas não precisa, eu consigo sentir tudo pelas reações
do seu corpo.
— Charlotte estava sempre cuidando de mim, a única que sabia o
quanto eu estava sofrendo com o nosso término. Enfim, você não precisa
saber dessa parte, é passado.
— Mas eu quero, se quiser me contar — escuto sua voz rouca no
meu ouvido.
Nego com a cabeça, Eros não merece saber como eu fiquei por
causa dele, me machuca reviver tudo, uma lembrança da minha vida que
achei que estava curada.
— Eu pedi demissão do meu estágio, e decide que o melhor seria
ficar com meus pais nas férias, talvez outros ares me ajudassem, mas tudo
pareceu ficar pior, porque o tempo todo ficam me perguntando se algo tinha
acontecido, eu não estava sendo a filha que eles conheciam, e jogaram a
culpa no cansaço da universidade, mas nem imaginavam que o problema
era outra coisa.
— Você não contou a eles? — pergunta, em um murmúrio quase
inaudível.
— Não, e foi melhor assim — digo sincera, aprovo minha escolha
de não ter contado aos meus pais sobre Eros, nem mesmo na época que
namorávamos. — Lembro que foi quando estava voltando para Bento
Gonçalves, que comecei a sentir dores fortes na região do abdômen, de
início, achei que pudesse ser pelo fato de que não estava me alimentando
direito.
Escuto sua respiração pesada, mas não chega perto do que estou
sentindo ao ter que lembrar do terror que vivi.
— Cheguei no edifício passando muito mal, sentindo calafrios no
corpo. E a única coisa que eu queria era ficar deitada, desejando que a dor
que eu estava sentindo, passasse logo. Charlotte quando chegou no nosso
quarto e me viu daquele jeito, ficou muito preocupada e achou melhor que
fosse para o hospital — digo, e meu corpo treme pelas próximas palavras
que preciso dizer a ele.
Eros nos embrulha com a coberta, ainda sendo possível, ela me
abraça ainda mais forte, e vejo isso com um ato de que ele quisesse tirar a
dor que estou sentindo agora.
— Concordei em ir ao hospital, ela me ajudou a entrar no banheiro
para tomar banho, e foi debaixo do chuveiro, com a água escorrendo pelo
meu corpo, que eu vi que estava sangrando — falo, e mordo o lábio, para
segurar o choro. — Fiquei tão desesperada na hora, assustada, e tendo
certeza naquele momento que estava tendo um aborto, eu estava perdendo
algo que eu nem sabia que tinha.
Eu volto a chorar, abraçando Eros, com ele me consolando, seus
músculos tensos, seu peito pesado, tentando respirar.
— Tive a confirmação no hospital. Charlotte foi a única que soube
que eu estava grávida e perdi o bebê. Aquilo me machucou tanto, mais do
que já estava por sua causa, me desestabilizou durante todo aquele semestre
— soluço ao contar, me sentindo devastada.
Eros nos deita na cama, ficando atrás de mim, me abraçando de
conchinha.
— Precisei fazer terapia para me ajudar a passar pelo processo mais
difícil de toda a minha vida, porque eu sentia o quanto fui incapaz de
segurar aquele bebê, quase entrando em depressão — declaro.
Foi o período mais sofrido da minha vida, e não sei como consegui
juntar as minhas forças e lutar para seguir em frente.
— Você não tinha como saber, não foi sua culpa — Eros diz, e sinto
mais uma vez ele deixando um beijo na minha cabeça.
Tantas vezes me peguei pensando em como seria se eu tivesse
conseguido segurar a gravidez, Eros teria voltado? Teríamos ficado juntos?
Ou ele seria egoísta ao ponto de não olhar para trás e seguir com a sua vida?
Essa última pergunta não faz o tipo dele, porque eu vi e sei como ele é com
seus sobrinhos, o amor que vi ele depositar em Ayla quando criança.
É uma resposta que eu nunca vou saber, e não faz mais sentido, tudo
já passou. Eu me acalmo, o choro cessando, e quando percebo, estou
pegando no sono, com Eros ainda ao meu lado, me abraçando como nunca.
Raquel
Sábado, 19 de fevereiro de 2028
Acordo sem a presença de Eros ao meu lado, e sinto uma sensação
de desespero me atingir, como todas as vezes depois do nosso término, que
eu não conseguia mais dormir sem ele, e na maioria das noites quando eu
acordava sem ter Eros ao meu lado, eu chorava, até que eu voltava a dormir.
Depois de me arrumar, e passar no banheiro, saio do meu quarto a
procura dele, e não o encontro no seu quarto, ou na sala, e muito menos na
cozinha. Meu coração se acelera, o medo e o mesmo sentimento de ser
deixada me atingindo com força, fazendo um bolo juntar na minha
garganta, me sufocando.
— Raquel? Está tudo bem? — escuto a voz da minha mãe ao meu
lado, e me viro, percebendo que estou parada no meio da sala, olhando para
a porta de saída.
— Estou, mãe. Cadê o Eros? Ele foi embora? — pergunto, tentando
encaixar na minha mente as falas, lembrando que minha mãe não sabe do
meu drama com Eros.
— Embora? Não, querida, ele está na oficina com seu pai, achei que
iriam embora juntos — o alívio toma meu corpo, depois de ouvir as
palavras dela. — Tem certeza de que está tudo bem?
Aquiesço.
— Vem tomar café comigo, e aproveita e me fala o que vocês dois
têm afinal, porque eu vi mais cedo ele saindo do seu quarto. — Dou risada
quando escuto minha mãe, lembrando de como ela é esperta e pega tudo no
ar.
Me sento com ela à mesa, e sou breve ao contar que Eros e eu
tivemos um momento na época da universidade, mas que não deu certo
porque ele foi embora para São Paulo depois que se formou, deixando de
fora o quão envolvidos estávamos, a parte do pedido de casamento e o
quanto ele me magoou.
— E não tem chance de voltar a acontecer? — pergunta, seu queixo
apoiado na mão, me observando a comer, enquanto conto a história mais
curta possível.
— Não, mãe, eu moro em outro país, temos vidas diferentes agora,
não daria certo e Eros não lida muito bem com a distância — digo, me
fazendo lembrar do seu trauma.
— Eu percebi que ele gostava de você quando te defendeu da
Vitoria, somando com o fato de que ele viajou horas só para te trazer aqui e
comemorar seu aniversário com a gente, ele tem um coração muito bom —
minha mãe elogia Eros, e vejo que ele está dentro do conceito dela.
— Sim, no fundo, aquele turrão tem um coração bom, uma maneira
de amar as pessoas ao redor dele com tanta fidelidade, as pessoas têm sorte
de ter Eros na vida delas — digo, evitando olhar em seus olhos, sentindo a
emoção me pegar de jeito de novo.
— Assim como as pessoas têm sorte de ter você na vida delas,
querida. Se for para ser, vai ser — ele diz, entendendo que eu tenho
sentimentos pelo Eros, o homem que me machucou tanto no passado, e ela
nem imagina isso.