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Ficha Técnica

Título original: Stranger in the Moonlight


Título: Estranhos ao Luar
Autor: Jude Deveraux
Tradução: Maria Ponce de Leão
Revisão: Domingas Cruz
Capa: Maria Manuel Lacerda/Oficina do Livro, Lda.
ISBN: 9789897413971
QUINTA ESSÊNCIA
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Esta edição segue a grafia do novo acordo ortográfico.


Jude Deveraux

ESTRANHOS AO LUAR

Tradução Maria Ponce de Leão


PRÓLOGO
Edilean, Virgínia

1993

Kim nunca se tinha sentido tão entediada nos seus oito anos de vida
como agora. Nem sequer sabia que tal tédio poderia existir. A mãe
disse-lhe que saísse um pouco para o grande jardim que rodeava a
velha mansão, Edilean Manor, mas como iria brincar sozinha?
Duas semanas antes, o pai tinha levado o irmão a qualquer estado
longínquo para irem pescar. «Elo masculino», chamou-lhe a mãe e
depois disse que não tencionava ficar sozinha em casa durante um
mês inteiro. Naquela noite, Kim despertou ao ouvir os pais a discutir.
Não se tratava de algo que costumassem fazer – pelo menos que
soubesse – e de repente ocorreu-lhe a palavra divórcio. Tinha pavor
de ficar sem os pais.
Mas na manhã seguinte viu-os aos beijos e tudo pareceu regressar
à normalidade. O pai insistia em afirmar que não havia coisa melhor
do que fazer as pazes, mas a mãe mandou-o calar.
Nessa mesma tarde, a mãe informou-a de que durante a ausência
do pai e do irmão ficariam num apartamento em Edilean Manor. Kim
não gostou da ideia porque detestava a velha mansão. Era
demasiado grande e ecoava a cada passo. Além disso, sempre que
visitava o local parecia haver menos móveis e o vazio fazia com que
parecesse ainda mais assustador.
O pai explicou que Mr. Bertrand, o velho que morava na casa,
tinha vendido os móveis da família para não se ver obrigado a
trabalhar.
– Ele venderia a casa se Miss Edi o permitisse.
Miss Edi era a irmã de Mr. Bertrand. Era mais velha do que ele e,
embora não vivesse na casa, era a dona. Kim ouvira dizer que
detestava tanto o irmão que recusava viver em Edilean.
Kim não compreendia que alguém pudesse detestar Edilean,
porque todos os seus conhecidos viviam na cidade. O pai era um
Aldredge e pertencia a uma das sete famílias que tinham fundado a
cidade. Kim sabia que era um motivo de orgulho. Apenas pensava
que se sentia feliz por não pertencer à família que tinha de viver na
grande e assustadora mansão.
Agora que ela e a mãe estavam a morar no apartamento há duas
semanas sentia-se terrivelmente aborrecida. Queria voltar para a sua
casa e para o seu quarto.
Quando estavam a fazer as malas para ir, a mãe dissera:
– Vamos por pouco tempo e como fica aqui ao lado não precisas
de levar isso.
Com «isso» referia-se a quase todos os pertences de Kim, como
livros, brinquedos, bonecas e kits de trabalhos manuais. A mãe
parecia considerá-los «desnecessários».
Mas, por fim, Kim agarrara com força o guiador da bicicleta que
tinha recebido como presente de aniversário e fitou a mãe com um
olhar decidido.
O pai riu.
– Ellen – disse à mulher. – Vi esse olhar no teu rosto centenas de
vezes e garanto-te que a tua filha não vai dar o braço a torcer. Sei
por experiência que, por muito que grites, a ameaces, lhe fales com
ternura, implores, supliques, ou chores, ela não cederá.
A mãe estreitou os olhos ao fitar o marido a rir.
O sorriso desapareceu-lhe dos lábios e disse:
– Reede, que achas se tu e eu formos…
– Onde, pai? – perguntou Reede. Aos dezassete anos dava grande
importância a poder ir embora sozinho com o pai. Sem a companhia
de mulheres. Só os dois.
– A qualquer lado – murmurou o pai.
Kim conseguiu levar a bicicleta para Edilean Manor, e durante os
três primeiros dias quase não desmontou, mas agora apetecia-lhe
fazer outra coisa. A sua prima Sara apareceu um dia, mas apenas
lhe interessava explorar a velha e decadente mansão. Sara adorava
edifícios antigos!
Mr. Bertrand tinha retirado um exemplar de Alice no País das
Maravilhas de uma pilha de livros no chão. A mãe comentou que ele
tinha vendido a estante à Fundação Colonial Williamsburg.
– Uma peça original do século dezoito e que estava há mais de
duzentos anos na família – comentara. – Que vergonha. Pobre Miss
Edi.
Kim passou dias a ler sobre Alice e a sua descida à toca do coelho.
Gostou tanto do livro que disse à mãe que queria o cabelo loiro e
um vestido azul com um avental branco. A mãe respondeu que, se o
pai voltasse a ausentar-se por quatro semanas, o seu próximo filho
podia ser loiro. Mr. Bertrand disse que gostaria de passar o dia
sentado num cogumelo, a fumar um cachimbo de água e a dar
sábios conselhos.
Os dois adultos desataram a rir – pareciam achar muita graça um
ao outro. Desgostosa, Kim saiu lá para fora e foi sentar-se na
forquilha da sua pereira favorita para ler mais sobre Alice. Releu as
passagens favoritas e depois a mãe chamou-a para o que Mr.
Bertrand designava como «o chá das cinco». Era um ancião
estranho, com um aspeto suave, e o seu pai dizia que Mr. Bertrand
podia chocar um ovo no sofá.
– Nunca se levanta.
Kim apercebera-se que, embora poucos homens da cidade
gostassem de Mr. Bertrand, todas as mulheres o adoravam. Havia
alguns dias em que apareciam seis mulheres com garrafas de vinho,
guisados e bolos, e todas pareciam muito divertidas. Ao repararem
em Kim, todas diziam: «Devia ter trazido… » e indicavam o nome
dos filhos.
Mas, em seguida, uma outra mulher comentava como era
maravilhoso ter um pouco de paz e de tranquilidade durante
algumas horas.
Na visita seguinte as mulheres voltaram a esquecer-se de levar os
filhos.
Kim, que se conservava lá fora e ouviu as mulheres a rir à
gargalhada, não achou que parecessem muito calmas ou tranquilas.
Foi só depois de estar com a mãe na mansão há duas longas
semanas que uma manhã esta pareceu muito excitada com qualquer
coisa, mas Kim desconhecia o motivo. Algo tinha acontecido durante
a noite, uma coisa de adultos. Kim estava mais preocupada em
encontrar o exemplar de Alice no País das Maravilhas que Mr.
Bertrand lhe tinha emprestado. Só tinha esse livro e agora
desaparecera. Perguntou à mãe por ele, pois sabia que o deixara em
cima da mesinha de café.
– Na noite passada levei-o para… – Deixou a frase a meio porque
o velho telefone de parede tocou, a mãe correu a atendê-lo e
começou imediatamente a rir.
Desgostosa, Kim saiu para o jardim. A sua vida parecia estar a
piorar.
Deu pontapés nas pedras, fitou os canteiros vazios de cenho
franzido e dirigiu-se à sua árvore. Tinha planeado trepar pelo tronco,
sentar-se no seu ramo favorito e pensar no que poderia fazer
durante as longas e aborrecidas semanas que faltavam até que o pai
voltasse a casa e a vida recomeçasse.
Quando chegou perto da árvore, viu algo que a fez estacar. Havia
um rapaz, mais novo do que o seu irmão, mas mais velho do que
ela. Vestia uma camisa limpa de colarinho e umas calças escuras,
como se estivesse prestes a ir à missa de domingo. O pior de tudo
era que estava sentado na sua árvore, a ler o seu livro.
Tinha cabelo escuro que lhe caía para a frente e estava tão
absorto na leitura que nem sequer ergueu os olhos quando Kim deu
um pontapé num torrão de terra.
«Quem era?», pensou. Com que direito se achava de poder
sentar-se na sua árvore?
Ignorava a resposta às duas perguntas, mas sabia que queria que
aquele estranho se fosse embora.
Agarrou num pedaço de terra e atirou-lho com todas as forças.
Fizera pontaria à cabeça dele, mas acertou-lhe no ombro. O torrão
desfez-se e caiu em cima do seu livro.
O rapaz fitou-a, um pouco surpreendido no princípio, mas depois o
rosto descontraiu-se e observou-a em silêncio. «Era um jovem
bonito», pensou Kim. Em nada semelhante ao seu primo Tristan. O
jovem parecia-se com uma boneca que ela tinha visto num catálogo,
com a pele rosada e olhos muito escuros.
– Esse livro é meu! – gritou-lhe. – E essa é a minha árvore. Não
tens direito a nenhum dos dois. – Agarrou noutro torrão de terra e
atirou-lho. Deveria tê-lo atingido na cara, mas o rapaz desviou-se a
tempo.
Kim tivera muita experiência com rapazes mais velhos e sabia que
eles se vingavam sempre. Eram fáceis de afastar, mas depois
passavam à perseguição, apanhavam as raparigas, torciam-lhes o
braço atrás das costas ou puxavam o cabelo até implorarem
misericórdia.
Ao ver que o rapaz fazia um movimento como se tencionasse
descer da árvore, Kim desatou a correr o mais rapidamente que as
pernas lhe permitiam. Talvez tivesse tempo de alcançar o que sabia
ser um ótimo esconderijo. Esgueirou o corpo delgado entre duas
pilhas de tijolos antigos, agachou-se e ficou a aguardar que o jovem
a perseguisse.
Depois do que lhe pareceu uma hora de espera, o rapaz não
apareceu e as pernas começaram a doer-lhe. Cautelosamente e sem
fazer ruído, Kim saiu do meio dos tijolos e olhou em volta. Estava
convencida de que ele apareceria de trás de um tronco de árvore e
gritaria: «Apanhei-te!» e a bombardearia com um pedaço de terra.
Mas enganou-se. No grande jardim reinava o silêncio e a
tranquilidade habituais e não havia vestígio do desconhecido.
Correu a esconder-se atrás de uma árvore, esperou e ficou à
escuta, mas não ouviu nem viu nada. Correu para outra árvore e
ficou à espera. Nada. Demorou muito tempo antes de voltar à «sua»
árvore e o que viu surpreendeu-a.
De pé, no chão, sob os ramos, estava o rapaz. Segurava o livro
debaixo do braço e parecia estar à espera.
Seria que se tratava de uma nova armadilha de rapazes que
desconhecia?, interrogou-se. Seria o que os jovens forasteiros – os
que não eram de Edilean – faziam às raparigas que lhes atiravam
terra? Caso se aproximasse dele, iria espancá-la?
Talvez tivesse feito algum som enquanto o observava, porque ele
virou-se e olhou-a.
Kim escondeu-se apressadamente atrás de uma árvore, pronta a
proteger-se de algo que voasse pelos ares, mas nada aconteceu.
Decorridos uns momentos, resolveu que não queria continuar a
parecer um gato assustado e saiu de trás do tronco.
O jovem encaminhou-se lentamente na sua direção e Kim
preparou-se para fugir. Sabia muito bem que não devia deixar que
os rapazes se aproximassem depois de lhes ter atirado coisas. Eles
orgulhavam-se e muito da rapidez dos seus braços.
Contudo, susteve a respiração quando ele se aproximou tanto que
sabia não poder fugir.
– Lamento ter pegado no teu livro – disse ele em voz baixa. –
Mister Bertrand emprestou-mo, portanto, não sabia que era de outra
pessoa. Também não sabia que a árvore era tua. Desculpa.
Kim ficou tão surpreendida que não conseguiu falar. A mãe dizia
que os homens desconheciam o significado da palavra desculpa. Mas
este jovem conhecia. Aceitou o livro que ele lhe devolvia e observou-
o a virar costas, afastando-se rumo à mansão.
Ele ia a meio caminho quando Kim conseguiu mexer-se.
– Espera! – gritou e ficou surpreendida quando ele parou.
Nenhum dos seus primos alguma vez lhe obedecia.
Aproximou-se dele com o livro firmemente apertado contra o
peito.
– Quem és tu? – perguntou.
Se ele respondesse que era um visitante de outro planeta, não
ficaria admirada.
– Travis… Merritt – disse. – A minha mãe e eu chegámos ontem à
noite, muito tarde. Quem és tu?
– Kimberly Aldredge. A minha mãe e eu hospedámo-nos ali –
disse, apontando o dedo –, enquanto o meu pai e o meu irmão
estão a pescar em Montana.
Travis assentiu com a cabeça, como se o que Kim acabara de dizer
fosse muito importante.
– A minha mãe e eu estamos alojados ali. – Apontou por sua vez
para o apartamento situado no outro lado da mansão. – O meu pai
está em Tóquio.
Kim nunca tinha ouvido falar desse lugar.
– Vives perto daqui?
– Não, não neste estado.
Kim olhava-o e pensava que ele era muito parecido com uma
boneca, pois não sorria nem tão-pouco se mexia muito.
– Gosto do livro – acrescentou. – Nunca tinha lido nada parecido.
Na sua experiência, Kim desconhecia que os rapazes lessem algo
que não tivessem de ler por obrigação. À exceção do seu primo Tris,
mas ele só lia sobre pessoas doentes, por isso não contava.
– O que lês? – quis saber.
– Livros didáticos.
Kim esperou que aumentasse a lista, mas Travis manteve-se em
silêncio.
– O que lês para te divertires?
Ele franziu levemente a testa.
– Gosto muito dos livros de ciência.
– Ah! – exclamou ela.
Nesse momento, Travis pareceu compreender que devia
acrescentar mais qualquer coisa.
– O meu pai diz que a minha educação é muito importante e o
meu tutor…
– O que é um tutor?
– O homem que me ensina.
– Ah! – repetiu Kim, que não fazia ideia do que Travis estava a
falar.
– Recebo aulas em casa – explicou ele. – A minha escola é a casa
do meu pai.
– Não parece muito divertido – comentou Kim.
Pela primeira vez, Travis esboçou um leve sorriso.
– Posso atestar que não é nada divertido.
Kim ignorava o significado de atestar, mas podia adivinhar.
– Sou boa a divertir-me – afirmou com a sua melhor voz de
adulta. – Queres que te mostre como?
– Gostaria muito – disse ele. – Por onde começamos?
Kim refletiu um instante.
– Nas traseiras há um monte de terra enorme. Vou ensinar-te a
subi-lo e a descê-lo com a minha bicicleta. Podes soltar os pés e as
mãos. Vamos! – gritou e desatou a correr.
Mas um momento depois olhou para trás e viu que Travis não a
seguia. Regressou até junto da árvore e ele estava exatamente onde
o deixara.
– Tens medo? – perguntou, trocista.
– Não me parece, mas nunca andei de bicicleta e creio que és
demasiado jovem para me ensinares.
Kim não gostava que lhe dissessem que era «demasiado jovem»
para fazer o que quer que fosse. Agora, ele estava a falar como
todos os rapazes.
– Ninguém te ensina a andar de bicicleta – respondeu, sabendo
que estava a mentir. O pai tinha passado dias a segurar-lhe a
bicicleta enquanto ela aprendia a equilibrar-se.
– Muito bem – anuiu ele com uma expressão séria. – Vou tentar.
A bicicleta era demasiado baixa para ele e na primeira vez que a
montou, caiu e aterrou com a cara no chão. Levantou-se a cuspir
sujidade e Kim observou-o. Seria um daqueles rapazes que iam a
correr ter com a mãe a chorar?
Em vez disso, limpou a boca com a manga da camisa e depois
esboçou um sorriso de orelha a orelha.
– Hurra! – gritou ao mesmo tempo que voltava a montar a
bicicleta.
À hora do almoço, Travis já descia a colina mais rapidamente do
que Kim alguma vez tinha ousado e levantava a roda da frente como
se fosse saltar um obstáculo.
– Que tal estou a portar-me? – perguntou a Kim depois da sua
descida mais rápida pelo montão de terra suja.
Não parecia o mesmo rapaz que Kim havia visto pela primeira vez,
sentado na árvore. Tinha a camisa rasgada no ombro e estava sujo
da cabeça aos pés. Um galo estava a crescer na cara no sítio onde
quase fora de encontro a uma árvore, mas guinara para a esquerda
e passara a rasar. Até os dentes estavam sujos.
Antes que Kim pudesse responder, olhou por cima do ombro e
ficou tenso, convertendo-se no jovem que vira pela primeira vez.
– Mãe… – disse.
Ao virar-se, Kim deparou com uma mulher baixa. Era bonita em
termos puramente maternais, mas faltavam-lhe as faces rosadas de
Travis. Parecia uma versão descorada e mais velha dele no feminino.
Sem dizer uma palavra, a recém-chegada colocou-se entre os dois
e examinou o filho de alto a baixo.
Kim susteve a respiração. Se a mulher dissesse à sua mãe que
Travis se sujara por sua culpa, Kim seria castigada.
– Ensinaste-o a andar de bicicleta? – perguntou-lhe Mrs. Merritt.
Travis colocou-se diante de Kim, como se quisesse protegê-la.
– Mãe, ela é apenas uma jovenzinha. Aprendi sozinho. Vou lavar-
me... – Deu um passo em direção à casa.
– Não! – exclamou Mrs. Merritt e ele virou-se para a olhar. A mãe
aproximou-se e abraçou-o. – Nunca te vi com melhor ar. – Beijou-lhe
a face e depois sorriu ao mesmo tempo que limpava a sujidade dos
lábios. Voltou-se para Kim. – Tu, jovenzinha… – começou, mas
deteve-se. Inclinando-se, abraçou Kim. – És uma menina
maravilhosa. Obrigada!
Kim fitou a mulher com uma expressão surpreendida.
– Continuem a brincar, miúdos. Que tal, se vos preparar um
piquenique para comerem aqui fora? Gostas de bolo de chocolate?
– Gosto – respondeu Kim.
Mrs. Merritt deu dois passos na direção da casa e Kim gritou:
– Ele precisa da sua própria bicicleta!
Mrs. Merritt olhou para trás e Kim engoliu em seco. Nunca tinha
dado uma ordem a um adulto.
– É que… – acrescentou num tom de voz mais baixo – … a minha
bicicleta é muito pequena para ele. Os pés arrastam no chão.
– De que mais precisa? – perguntou Mrs. Merritt.
– De uma bola de basebol e de um taco – disse Travis.
– De um pula-pula – acrescentou Kim. – E de… – Interrompeu-se
porque Mrs. Merritt levantou a mão.
– Os meus recursos são limitados, mas verei o que posso fazer.
Regressou a casa e uns minutos mais tarde apareceu com sandes
e limonada. À tarde voltou com duas enormes fatias de bolo de
chocolate acabado de fazer. Nessa altura, Travis já aprendera a fazer
cavalinhos e a mãe observou-o com um misto de espanto e de
terror.
– Quem iria pensar que és um atleta nato, Travis? – observou
admirada e depois regressou a casa.
No início da noite, chegou Benjamin, o tio de Kim e pai do seu
primo Ramsey.
– Ho, ho, ho! – gritou. – Quem pediu o Natal em julho?
– Nós pedimos! – entusiasmou-se Kim e Travis seguiu-a enquanto
ela corria para o jipe do tio.
O tio Ben retirou uma reluzente e nova bicicleta azul do porta-
bagagens.
– Disseram-me que a entregasse ao garoto mais sujo de Edilean.
– Olhou para Travis. – Creio que serás tu.
Travis esboçou um sorriso. Ainda tinha sujidade nos dentes e o
cabelo coberto de lama seca.
– É para mim?
– Da parte da tua mãe – explicou o tio Ben e acenou na direção
da porta da frente.
Mrs. Merritt encontrava-se na ombreira e Kim teve a sensação de
que estava a chorar. Mas isso não fazia sentido. Uma bicicleta fazia
uma pessoa rir e não chorar.
Travis correu para a mãe e rodeou-lhe a cintura com os braços.
Kim observou-o surpreendida. Nenhum dos rapazes de doze anos
que conhecia faria algo semelhante. Não era costume abraçar a mãe
diante de outras pessoas.
– Um bom menino – elogiou Ben e Kim virou-se para ele. – Não
contes à tua mãe, mas passei pela vossa casa e fiz algumas
limpezas. Reconheces alguma coisa?
Puxou uma caixa que também trouxera no porta-bagagens e
inclinou-a para que Kim visse o conteúdo. Continha cinco dos seus
livros favoritos, a sua segunda boneca predileta, um kit ainda
fechado para fazer enfeites e, no fundo, estava a sua corda de saltar.
– Desculpa não ter o pula-pula, mas trouxe alguns tacos antigos
do Ram e algumas bolas.
– Obrigada, tio Ben! – agradeceu e abraçou-o, seguindo o
exemplo de Travis.
– Se soubesse que ia receber um abraço, teria comprado um
pónei.
Kim arregalou os olhos.
– Não contes à tua mãe que te disse isso ou ela esfola-me vivo.
Travis tinha-se afastado da mãe e contemplava a sua nova
bicicleta em silêncio.
– Achas que sabes montá-la? – perguntou o tio Ben. – Ou só és
capaz de lidar com uma bicicleta de rapariga?
– Benjamin! – exclamou a mãe de Kim que tinha saído para ver o
que estava a acontecer.
Mr. Bertrand continuava no interior. Segundo constava, nunca saía
de casa. O pai de Kim dissera uma vez que era tão preguiçoso que
nem sequer rodava a maçaneta de uma porta.
Travis brindou o tio de Kim com uma expressão séria, tirou-lhe a
bicicleta das mãos e partiu a uma velocidade vertiginosa em torno
da casa. Quando ouviram o som inconfundível de um choque, o tio
Ben pousou a mão no braço de Mrs. Merritt para evitar que corresse
até junto do filho.
Ouviram o que lhes pareceu outra batida no outro lado da casa e,
por fim, Travis voltou a aparecer. Estava mais sujo, com a camisa
mais rasgada, e tinha um vestígio de sangue no lábio superior.
– Algum problema? – perguntou o tio Ben.
– Nenhum – respondeu Travis, fitando-o diretamente nos olhos.
– Este é o meu rapaz! – exclamou o tio Ben e deu-lhe uma forte
palmada no ombro. Depois, baixou a tampa do porta-bagagens. –
Tenho de voltar ao trabalho.
– Qual é o seu trabalho? – interessou-se Travis, expressando-se
com voz de adulto.
– Sou advogado.
– É uma boa profissão?
Os olhos do tio Ben adquiriram um brilho alegre, mas susteve o
riso.
– Serve para pagar as contas e tem coisas boas e outras más.
Estás a pensar tentar a advocacia?
– Admiro bastante Thomas Jefferson.
– Vieste para o lugar indicado – replicou o tio Ben, sorrindo ao
mesmo tempo que abria a porta do carro. – Fazemos uma
combinação, Travis. Quando saíres da faculdade de Direito, vem ter
comigo.
– Irei, sir, e obrigado – agradeceu Travis. Embora a voz parecesse
a de um adulto, a sujidade que tinha em cima, os galhos e as
contusões davam um toque engraçado às palavras.
Mas o tio Ben não riu. Em vez disso, olhou para Mrs. Merritt.
– É um bom miúdo. Parabéns.
Mrs. Merritt colocou o braço à volta dos ombros do filho, mas ele
afastou-se. Parecia não querer que o tio Ben o visse tão apegado a
uma mulher.
Todos observaram o tio Ben a ir embora e depois a mãe de Kim
disse:
– Meninos, vão brincar. Chamar-vos-emos a tempo do jantar e
depois podem ir apanhar pirilampos.
– Sim. Vão brincar – anuiu Mrs. Merritt. Parecia ter esperado
durante anos para dizer isso ao filho. – Mister Bertrand vai ensinar-
me a costurar.
– Lucy – interferiu a mãe de Kim –, penso que devia avisar-te de
que o Bertrand está a usar-te para trabalho não recompensado.
Quer arranjar os reposteiros e…
– Eu sei – interrompeu-a Lucy Merritt –, mas não tem importância.
Quero aprender a fazer algo criativo e isso pode ser a costura.
Parece-te que ele me venderia a sua máquina de costura?
– Creio mesmo que te venderia os pés, já que os usa tão pouco.
Lucy riu.
– Anda – disse a mãe de Kim. – Vou ensinar-te a trabalhares com
a máquina.
Durante duas semanas, Kim viveu no que lhe parecia um paraíso.
Travis e ela passavam o dia juntos, desde manhã até à noite.
Travis entregou-se à diversão de corpo e alma, como se tivesse
nascido para ela – o que a mãe de Kim afirmava que deveria ser
verdade.
Enquanto os jovens brincavam no jardim, as duas mulheres e Mr.
Bertrand conversavam e costuravam no interior da casa. Lucy Merritt
usou a velha máquina de costura Bernina para reparar todos os
cortinados da casa.
– Assim, poderá vendê-los por um preço mais elevado –
murmurou a mãe de Kim.
Lucy comprou tecido e fez cortinas novas para a casa de banho e
para a cozinha.
– Estás a pagar-lhe um aluguer – recordou a mãe de Kim. – Não
devias pagar o tecido do teu bolso.
– Que importância tem? De qualquer maneira, não posso pôr
dinheiro de lado. O Randall vai levar-me tudo o que não gastei.
Mrs. Aldredge sabia que Randall era o marido de Lucy, mas
desconhecia o resto.
– Gostava de saber o que isso significa – disse, mas Lucy replicou
que já falara de mais.
À noite, os jovens recolhiam com relutância aos seus
apartamentos separados. As mães obrigavam-nos a lavar-se, a
comer e a ir para a cama. Na manhã seguinte, voltavam a ir para o
jardim. Por muito cedo que Kim se levantasse, Travis estava sempre
à sua espera nas traseiras da casa.
Uma noite Travis disse:
– Voltarei.
Kim não percebeu o que isso significava.
– Depois de me ir embora, voltarei.
Kim não respondeu, porque não queria imaginar que ele partisse.
Trepavam juntos às árvores, escavavam a lama, montavam nas
bicicletas; ela atirava a bola e Travis lançava-a através do jardim.
Quando Kim trouxe para o exterior a sua segunda boneca favorita,
sentiu-se nervosa. Os rapazes não gostavam de bonecas. Mas Travis
disse que lhe construiria uma casa e cumpriu a promessa. Era feita
de folhas e de ramos e no interior havia uma cama que Kim cobriu
de musgo. Enquanto Travis construía o telhado, ela usou o seu kit de
enfeites para fazer dois colares com contas de plástico. Travis sorriu
quando ela lhe passou um pela cabeça, mas na manhã seguinte
apareceu com ele.
Quando a temperatura subiu a ponto de não lhes apetecer
mexerem-se, estendiam-se no chão fresco à sombra e revezavam-se
a ler em voz alta Alice e os outros livros. Kim não era tão boa leitora
como Travis, mas ele nunca se queixava. Quando Kim tropeçava
numa palavra, ajudava-a. Travis dissera-lhe que era um bom ouvinte
e não tinha mentido.
Kim sabia que, aos doze anos, ele era bastante mais velho do que
ela, mas não parecia. Quando se tratava de matéria escolar parecia
um adulto. Descreveu-lhe o ciclo completo de vida de um girino e
também lhe falou de casulos. Explicou-lhe por que motivo a Lua
tinha formas diferentes e o que causava o inverno e o verão.
Mas, apesar de todos os seus conhecimentos, nunca tinha atirado
uma pedra para um lago. Nunca tinha trepado a uma árvore antes
de vir para Edilean. Nem sequer raspara um cotovelo.
Então, aprenderam definitivamente um com o outro. Embora
Travis tivesse doze anos e ela apenas oito, às vezes era Kim a servir
de mestra, e gostava disso.
Tudo acabou exatamente duas semanas depois de ter começado.
Como sempre, mal a luz surgiu no exterior, Kim, com os olhos
inchados pelo sono, saiu a correr pela porta das traseiras, e passou
junto à parte posterior da enorme mansão, onde se encontrava a ala
em que se alojavam Travis e a sua mãe.
Mas, nessa manhã, quando Travis não se encontrava já lá fora à
sua espera, percebeu imediatamente que algo se tinha passado.
Começou a bater na porta, chamando-o aos gritos. Pouco lhe
importava que despertasse a casa inteira.
A mãe apareceu à porta a correr, de roupão e chinelos.
– Kimberly! Porque estás aos gritos?
– Onde está o Travis? – exigiu saber, esforçando-se por não
chorar.
– E se te acalmasses? Provavelmente adormeceram.
– Não! Passou-se alguma coisa.
A mãe hesitou e, em seguida, experimentou a maçaneta. A porta
abriu-se. O interior estava vazio e não havia indício de que tivesse
estado habitado.
– Fica aqui – ordenou a mãe. – Vou saber o que se passa.
Regressou a toda a pressa à frente da casa, mas o carro de Mrs.
Merritt não estava lá. Era demasiado cedo para incomodar Bertrand,
mas sentia-se demasiado preocupada com Lucy e o filho para que
deixasse de entrar.
Bertrand estava a dormir no sofá, o que demonstrou o que toda a
gente suspeitava: que não subia as escadas para ir para a cama.
Despertou de imediato, sempre pronto para escutar uma boa
coscuvilhice.
– Querida – disse ele. – Saíram os dois disparados de manhã.
Estava profundamente adormecido quando a Lucy me despertou.
Queria saber se lhe vendia a velha máquina de costura.
– Espero que lha tivesse dado.
– Quase. Só lhe cobrei cinquenta dólares.
Mrs. Aldredge fez uma careta.
– Para onde foram? Porque se foram embora a meio da noite?
– Lucy disse-me apenas que alguém lhe ligou a avisá-la de que o
marido ia regressar e ela devia partir. Disse-me que tinha de chegar
lá antes dele.
– Mas onde? Quero ligar-lhe para saber se está bem.
– Pediu-me que, por favor, não tentássemos contactá-la. – Baixou
a voz. – Disse que ninguém devia saber que ela e o Travis estiveram
aqui.
– Isso soa-me muito mal! – Mrs. Aldredge sentou-se no sofá e
depois levantou-se de um salto. – Santo Deus! A Kim vai ficar
destroçada. Nem sei como dizer-lhe. Ficará devastada. Ela adora
esse rapaz.
– Era um jovem fantástico – concordou Bertrand. – Com uma pele
de porcelana. Espero que a conserve e não permita que o sol a
estrague. Julgo que a minha boa compleição provém de toda uma
vida a coberto do sol.
Mrs. Aldredge regressou de testa franzida até junto de Kim para
lhe comunicar que o seu amigo se fora embora e era provável que
nunca mais voltasse a vê-lo.
Kim reagiu melhor do que a mãe esperava. Não houve birras nem
lágrimas, pelo menos que alguém visse. Mas passaram semanas
antes que Kim voltasse a ser a mesma.
A mãe levou-a a Williamsburg para comprar uma moldura cara
onde Kim colocasse a única fotografia que tinha de Travis. Os dois
estavam de pé junto às suas bicicletas, sujos e muito sorridentes.
Pouco antes de Mrs. Aldredge carregar no obturador, Travis rodeou
os ombros de Kim com o braço e ela apertou-lhe a cintura. Era um
doce retrato da infância e ficava muito bem na moldura que Kim
escolheu. Colocou-a na mesa de cabeceira para que pudesse vê-la
antes de adormecer e quando acordasse todas as manhãs.
Só um mês depois de Travis e a mãe partirem Kim explodiu. A
família tinha acabado de se sentar para jantar quando Reede, o seu
irmão mais velho, lhe perguntou o que ia fazer com a bicicleta que
Travis deixara ficar.
– Nada – respondeu Kim. – Não posso fazer nada por causa do
cabrão do pai do Travis.
Toda a gente parou boquiaberta.
– O que disseste? – sussurrou Mrs. Aldredge incrédula.
– O ca…
– Eu ouvi-te – interrompeu a mãe. – Não permitirei que uma
criança de oito anos use esse tipo de linguagem na minha casa. Vai
já para o teu quarto!
– Mas, mãe – protestou Kim surpreendida e à beira das lágrimas
–, é o que estás sempre a chamar-lhe.
A mãe não pronunciou nem mais uma palavra. Limitou-se a
apontar com um dedo e Kim levantou-se. Ainda mal fechara a porta
do quarto quando ouviu os pais desatarem a rir à gargalhada.
Kim pegou na fotografia de Travis e fitou-a.
– Se estivesses aqui, ensinava-te um palavrão.
Suspirou e estendeu-se sobre a cama à espera de que o pai
subisse para «conversar» com ela… e levar-lhe às escondidas algo
de comer. Ele era brando e a mãe impunha a disciplina. Kim pensava
que era muito injusto castigarem-na por repetir algo que tinha
ouvido dizer à mãe várias vezes.
– Que cabrões são os pais! – murmurou Kim ao mesmo tempo
que estreitava a fotografia de Travis contra o peito.
Nunca o esqueceria e jamais deixaria de procurá-lo.
UM
Nova Iorque

2011

O enorme escritório ocupava uma esquina do sexagésimo primeiro


andar. Amplas janelas de dois dos lados proporcionavam vistas
deslumbrantes dos arranha-céus de Nova Iorque. As outras duas
paredes estavam decoradas com quadros de bom gosto escolhidos
por uma decoradora, mas não davam qualquer pista sobre o
ocupante. No centro encontrava-se uma secretária de pau-rosa e
sentado numa cadeira de aço inoxidável e cabedal estava Travis
Maxwell. Alto, de ombros largos, moreno e extremamente bonito,
debruçava-se sobre uns documentos, de sobrolho franzido.
«Outra maldita fusão», pensou Travis. Mais uma empresa que o
pai ia comprar. Acaso o seu desejo de possuir, de controlar, não tinha
limites? Quando Travis ouviu a porta do seu gabinete a abrir-se não
levantou o rosto.
– Sim? O que há?
Barbara Pendergast – Penny para ele, Mrs. Pendergast para toda a
gente – olhou-o e ficou à espera. Não tolerava maus modos de
ninguém.
Travis ergueu os olhos quando o silêncio prosseguiu e viu-a. Penny
tinha o dobro da sua idade e metade da sua altura, mas intimidava
todos menos ele.
– Desculpa, Penny, o que querias?
A mulher tinha trabalhado para o pai até poucos anos antes.
Ambos haviam passado de não ter nada até Randall Maxwell se
transformar num dos homens mais ricos do mundo. Quando Travis
se juntou ao negócio, Penny decidiu dar-lhe a mão. Constava que os
protestos de Randall Maxwell se podiam ouvir a seis quarteirões de
distância.
Penny aguardou um momento antes de largar a bomba.
– A tua mãe ligou-me.
– O quê? – Travis esqueceu-se da fusão, recostou-se na cadeira e
respirou fundo algumas vezes. – Ela está bem?
– Diria que está melhor que bem. Quer divorciar-se do teu pai
porque deseja casar-se com outro homem.
Travis limitou-se a fixá-la. Penny vestia o seu invariável e
enfadonho fato de boa qualidade. Tinha o cabelo apanhado atrás e
observava-o por cima dos óculos de ler.
– A minha mãe devia estar escondida e a tentar passar
despercebida. Como posso protegê-la se andar em público e estiver
a sair com alguém?
– Penso que devias ver isso – disse Penny ao mesmo tempo que
lhe entregava a fotocópia de um artigo de jornal.
Era de um jornal de Richmond e descrevia um desfile de moda
para crianças que se tinha realizado em Edilean, Virgínia, onde a
mãe se encontrava, ou mais precisamente, estava escondida. Travis
examinou o artigo. Alguma ricaça havia organizado uma faustosa
festa de aniversário para a filha e havia roupa desenhada por uma
tal Jecca Layton e… Ergueu o rosto para Penny.
– Confecionada por Mistress Lucy Cooper. – Pousou a fotocópia. –
Não é tão mau como julguei. Cooper é um nome falso e não há
fotografia.
– Não é mau a menos que o teu pai decida ir novamente à
procura – replicou Penny. – A paixão dela pela costura denuncia-a
sempre.
– Que mais te disse a minha mãe?
– Nada – respondeu Penny. – Só isso. – Baixou os olhos para o
seu bloco de apontamentos. – Citando-a textualmente: «Diga ao
Travis que preciso do divórcio porque quero casar-me.» Em seguida,
desligou. Sabes que ela crê que tu, o seu maravilhoso filho, és capaz
de fazer com que o mundo gire ao contrário.
– O meu único amor incondicional – replicou Travis com um leve
sorriso. – Ela disse com quem quer casar-se?
Penny brindou-o com um olhar eloquente. Travis sabia que a mãe
sempre havia sentido uma grande animosidade para com Mrs.
Pendergast. Durante muitos anos, Randall deixava a mulher e o filho
em casa, mas nunca ia onde quer que fosse sem Penny.
– É óbvio que não me disse – respondeu Penny. – Mas, antes que
perguntes, não acredito que tenha sido tão estú…imprudente a
ponto de revelar a esse desconhecido com quem está casada
atualmente. Portanto não, não me parece que esse homem ande
atrás do seu dinheiro.
– Referes-te ao dinheiro que ela roubou ao meu pai ou ao dinheiro
que poderia receber por um acordo de divórcio?
– Como não acredito em contos de fadas, diria que se trata dos
três milhões e duzentos que ela roubou.
– Controlo as suas contas com muito cuidado e não tem havido
gastos estranhos. Na verdade, há anos que se mantém com o seu
próprio dinheiro – acrescentou com orgulho.
– Referes-te ao modo de ganhar a vida que encontrou graças aos
cem mil dólares em equipamento e acessórios que comprou com o
dinheiro desviado?
Travis fitou-a, deixando claro que já ouvira o suficiente.
– Encarrego-me do assunto.
Mesmo enquanto o dizia, estava consciente do receio que o
assaltava sobre o futuro. O pai converteria o divórcio numa guerra.
Não interessaria que a mulher abdicasse de qualquer compensação
e devolvesse o dinheiro com que havia fugido – uma ninharia para
ele, sem ter em conta que metade era legalmente dela – pois usaria
todos os meios ao seu alcance para tornar a vida da mulher num
inferno. O contrato que Travis fizera com o pai quatro anos antes era
que trabalharia para ele se o pai deixasse Lucy em paz. Não iria
mover céus e terra para encontrá-la e, se isso acontecesse, não a
atormentaria. Fora um simples acordo. Travis apenas tivera de
vender a alma ao diabo – ou seja, o pai – para consegui-lo.
– Mais alguma coisa? – perguntou a Penny.
– Mister Shepard pediu para jantar contigo hoje à noite.
Travis resmungou entre dentes. Estava a redigir os documentos
legais necessários para comprar a empresa de Mr. Shepard que se
encontrava na falência. Uma vez que o indivíduo fundara a empresa
há trinta anos, não seria um jantar agradável.
– Ajudar o meu pai a destruir uma empresa será um piquenique
depois de um dia como o de hoje.
– O que queres que faça? – perguntou Penny com um tom de
pena.
– Nada. Não! Espera. Não tenho um encontro hoje à noite?
– Com Leslie. Será a terceira vez seguida que o cancelas.
– Telefona…
– Já sei. Para a Tiffany’s.
Apesar de todas as queixas, quando Travis olhou para o artigo de
jornal pousado na secretária, não conseguiu reprimir um sorriso.
Edilean, Virgínia, fora o lugar que marcara as recordações mais
felizes da sua vida… motivo por que quando a mãe fugira se
refugiou lá.
«Kimberly», pensou e foi incapaz de manter à distância a
sensação de paz que o invadiu. Ele tinha doze anos e ela apenas
oito, mas ensinara-lhe tudo. Na altura não sabia, mas era um miúdo
a viver numa prisão. Não lhe permitiam relacionar-se com outras
crianças, nunca tinha visto televisão, nem lido uma obra de ficção.
Era como se vivesse numa cave… ou num século passado. «Até ter
conhecido Kim», pensou. Kim com o seu amor pela vida. Em cima da
secretária havia uma pequena placa em bronze, o único objeto
pessoal no gabinete. Lia-se: «SOU BOA A DIVERTIR-ME. QUERES QUE TE
MOSTRE COMO?» Eram as palavras que Kim lhe dirigira. As palavras
que tinham mudado tudo.
Penny estava a observá-lo. Era a única pessoa a quem havia
confiado a verdade sobre a sua vida.
– Queres que reserve uma passagem de avião ou preferes
conduzir? – perguntou em voz baixa.
– Conduzir para onde? – Ao ver que Penny não respondia, fitou-a.
– Eu… – Não sabia o que dizer.
– O que achas se, enquanto estiveres a jantar esta noite, te
comprar um carro normal, algo que se possa conduzir sem
problemas, e depois preparas um saco com roupa normal? Amanhã,
poderás ir ver a tua mãe.
Travis continuava sem saber o que dizer.
– Leslie…
– Não te preocupes. Vou mandar-lhe diamantes suficientes para
que não faça perguntas. – Penny não gostava de Leslie, mas
também não gostava de nenhuma das jovens com quem Travis saía.
«Se consegues comprá-la, não é amor», dissera-lhe várias vezes.
Penny queria que ele fizesse o mesmo que o pai e encontrasse uma
mulher que amasse mais a família do que o conteúdo de qualquer
loja.
– Muito bem – anuiu Travis. – Põe o Forester a tratar dessa fusão.
– Mas ele não pode…
– Fazê-lo? – completou Travis. – Eu sei, mas ele não sabe. Talvez
falhe e o pai despeça esse crápula ambicioso.
– Ou talvez seja bem-sucedido e o teu pai lhe dê o teu lugar.
– E acabas de dizer que não acreditas em contos de fadas –
replicou Travis com um sorriso. – Muito bem. Onde é essa reunião?
Penny indicou-lhe a hora e a morada.
Travis levantou-se, olhou para a secretária, mas apenas conseguia
pensar em voltar a ver a mãe. Tinha passado demasiado tempo.
Movido por um impulso, agarrou na pequena placa de bronze com
as palavras de Kim e meteu-a no bolso. Virou-se para Penny.
– Então, a que chamas um carro «normal»?
Ao sair, brindou-o com um dos seus raros sorrisos e as palavras:
– Espera e verás.
Nessa noite uma limusina com motorista aguardava Travis. Parou
diante do seu prédio, o porteiro abriu a porta e abriu a porta do
elevador. Não falou com ninguém.
O seu apartamento situava-se no último andar e tinha vista
panorâmica. A mesma decoradora que se encarregara do seu
gabinete tinha mobilado o apartamento com bom gosto. Havia uma
enorme estátua de um Buda num nicho e os sofás eram de cabedal
preto. Dado que Travis passava o mínimo de tempo possível em
casa, a decoração nunca lhe interessara.
Havia uma única divisão que continha objetos pessoais e foi aí que
se dirigiu. Fora originalmente um closet, mas Travis exigira que
colocassem prateleiras de vidro. Era nessa pequena divisão – que
mantinha sempre fechada à chave – que guardava os seus troféus,
prémios, certificados, os símbolos do que Kim lhe tinha ensinado
sobre «diversão».
Foram essas duas semanas em Edilean, passadas na companhia
da alegre e pequena Kim, que lhe deram coragem para enfrentar o
pai. A mãe tinha tentado, mas a sua doce personalidade não era
uma rival à altura de um homem como o marido.
Mas Travis descobrira que era capaz de manter a sua posição. Na
primeira vez que viu o pai depois de ter conhecido Kim, disse-lhe
que queria educação física além da académica. Randall Maxwell
tinha olhado para o filho com uma expressão pensativa e deu-se
conta de que o jovem não ia ceder. Contratou um instrutor.
Tal como Lucy previra, o filho era um atleta nato. Para Travis, a
atividade extenuante constituía uma libertação do esgotante
trabalho académico que lhe cumpria fazer, e quando aprendia o que
os instrutores tinham para ensinar, eles eram substituídos por
outros. Quando Travis atingiu a idade de frequentar a universidade,
fora treinado em várias artes marciais. Tinha partido o nariz duas
vezes, uma durante um combate de boxe, e outra quando o pé de
um instrutor o atingiu em pleno rosto.
O pai queria que continuasse a receber aulas de preparação para
a faculdade, mas Travis afirmou que, quando chegasse à
maioridade, se iria embora para não voltar. Nessa altura, a mãe
ainda continuava a viver em casa. Levava uma existência tão isolada
como a de Travis, mas nunca fora uma mulher muito sociável.
Travis foi para Stanford, depois para a faculdade de Direito de
Harvard e, enquanto esteve afastado da prisão que era o único lar
conhecido, descobriu a vida. Os desportos, sobretudo os radicais,
atraíram-no. Saltar de paraquedas, ser deixado por um helicóptero
numa montanha coberta de neve, mergulho do alto de rochedos, fez
tudo.
Passou no exame que lhe permitia exercer como advogado, mas
não tinha qualquer interesse em passar a vida metido num
escritório. Embora o pai exigisse que o filho trabalhasse para ele,
Travis recusou. Furioso, o pai cancelou o seu fundo fiduciário e
Travis conseguiu emprego como duplo de Hollywood. Era o indivíduo
a quem deitavam fogo.
Quando o pai se deu conta de que o seu estratagema não
resultava, que não tinha conseguido que o filho se dobrasse,
concentrou a atenção na mulher e tornou-lhe a vida impossível. Uma
tarde, Lucy descobriu acidentalmente uma maneira de intercetar
uma transação financeira do marido. Hesitando apenas um
momento, transferiu três milhões e duzentos mil dólares para a sua
própria conta. Depois, passou uns dez minutos a fazer a mala,
meteu-se num dos carros do marido e fugiu.
Randall prometeu ao filho que não perseguiria Lucy se ele
deixasse de tentar matar-se e trabalhasse para ele.
Travis teria feito qualquer coisa pela mãe, por isso abandonou Los
Angeles, regressou a Nova Iorque e começou a trabalhar para o pai.
Sempre que possível, Travis aliviava o stresse participando em
qualquer desporto violento que encontrasse.
Nesse momento, vagueou o olhar pelos troféus, as medalhas, as
recordações. Na parede atrás das prateleiras havia muitas
fotografias emolduradas. As corridas de Monte Carlo. Tinha o rosto
sujo e o champanhe que espalhara depois da vitória fizera marcas,
mas estava feliz.
Havia fotos de algumas das cenas mais arriscadas que rodara em
Hollywood com incêndios, explosões e saltos de edifícios. No meio
das fotos desportivas havia outras com mulheres. Estrelas de
cinema, socialites, empregadas de mesa. Travis não havia
discriminado. Agradavam-lhe mulheres bonitas, independentemente
da sua posição social ou do que faziam.
Fechou a porta, encostou-se um momento contra ela e olhou em
volta. Faria trinta nesse ano e estava cansado de tudo isso. Farto de
se encontrar sob o domínio do pai, farto de ganhar dinheiro para um
homem que o tinha em demasia.
A mãe tivera razão em fugir e esconder-se, mas ele sabia como se
sentia culpada por Travis estar a protegê-la. Mas, tal como o filho via
a situação, ela passara a vida a protegê-lo, portanto devia-lhe isso.
Nesse preciso momento, a preocupação de Travis era que a mãe
fosse casar com alguém só para o libertar do pai. O seu receio era
que o sentimento de culpa a dominasse e fosse iniciar o processo de
divórcio apenas para que o filho ficasse livre.
Mas Travis sabia que a mãe não fazia ideia daquilo em que iria
meter-se se pedisse o divórcio a Randall Maxwell. Impiedoso era
uma palavra demasiado branda para esse homem.
Por outro lado, não havia palavras que descrevessem como Travis
se sentiria feliz por recuperar a sua vida. Embora os últimos quatro
anos o tivessem esgotado, antes de se libertar, queria ter a certeza
de que a mãe não se meteria em algo tão mau como fora o seu
primeiro casamento.
Travis saiu da divisão dos troféus e fechou-a à chave. Só ele sabia
a combinação da fechadura e nenhuma das suas namoradas estivera
lá dentro.
Dirigiu-se ao quarto, um lugar estéril sem personalidade, e entrou
no closet. Num dos lados estava a sua roupa de desporto e, no
outro, os fatos de trabalho. Ao fundo do roupeiro encontrava-se o
que Penny designaria de roupa «normal»: calças de ganga, T-shirts
e um blusão de cabedal. Demorou apenas uns minutos a metê-la
numa mochila.
Despiu-se até ficar só em cuecas e contemplou-se ao espelho. O
corpo não tinha um grama de gordura e esforçava-se por manter os
músculos em forma. Mas a pele apresentava marcas de
queimaduras, punções e suturações. Perdera a conta às vezes em
que quebrara as costelas e no couro cabeludo tinha uma cicatriz
muito profunda, resultante de uma bala mal disparada que quase o
matara.
Minutos depois, Travis estava vestido e preparado para ir jantar
com um homem necessitado de que lhe garantissem que o negócio
que começara do zero iria continuar. Travis sabia que o que o
homem realmente necessitava era um ombro para chorar. Suspirou e
saiu do apartamento.

Eram oito da noite e há horas que Travis conduzia na direção de


Edilean. O carro que Penny lhe tinha comprado era um velho BMW.
O motor parecia em bom estado, mas dificilmente conseguia
ultrapassar os oitenta quilómetros. Tratava-se de um plano de Penny
para que ele não excedesse o limite de velocidade. Ao ver que ela
deixara algumas notas de cem no porta-luvas, viu-se obrigado a
sorrir. Se Travis usasse o cartão de crédito, o pai saberia onde ele
estava. Sabia muito bem que o pai o vigiava de perto. Uma coisa era
encontrar multas em Paris e outra encontrar o nome de Edilean, a
pequena comunidade de Virgínia.
– Só até a mãe estar a salvo – disse em voz alta, enquanto
reduzia a velocidade. Ao menos Penny não o insultara, adquirindo
um carro com mudanças automáticas. Permitira-lhe um pouco de
diversão.
Ao surgir-lhe a palavra, Travis pensou na noite anterior. Tentar
consolar um homem perto dos setenta anos não tinha sido fácil. Mas
Travis sabia que se não o tentasse, ninguém mais o faria. O pai
comentava frequentemente num tom desdenhoso que Travis não
tinha o coração de um tubarão. Dizia-o como um insulto mas Travis
encarava-o como um elogio.
Conseguira escapar-se do jantar às onze. Queria dormir porque
planeava partir cedo para Edilean.
Mas, na manhã seguinte, quando estava pronto para sair, tocou o
telemóvel. Era o pai. Às sete da manhã de um sábado o pai estava a
trabalhar.
– Onde estás? – perguntou Randall Maxwell.
– Prestes a sair da cidade – respondeu Travis com a mesma frieza
do pai.
– Forester não pode ficar com este negócio em mãos.
– Foste tu que o contrataste.
– É um bom contabilista e dá graxa a todos os clientes. Gostam
dele.
– Nesse caso, quando lhes disser que ficaram sem emprego, pode
agarrar-lhes na mão – replicou Travis. – Tenho de ir.
– Onde, desta vez? – murmurou Randall.
– Consulta as páginas de desporto.
– Se te matares… – começou Randall.
– O que farás, pai? Não irás ao meu funeral?
– Irei dizer olá à tua mãe.
Durante um momento, Travis ficou paralisado. Porque a
mencionava agora? Teria sabido de algo? O facto de Lucy Cooper
haver sido mencionada num jornal de Richmond bastara para o pôr
de sobreaviso?
Travis decidiu enfrentá-lo.
– Vejo que esta manhã recorres à artilharia pesada. Presumo que
estás empenhado em conseguir algo.
– Preciso que sejas tu a encarregar-te desse negócio. Há qualquer
coisa errada nesse contrato, mas não consigo descobrir o que é.
De uma coisa Travis não duvidava a respeito do pai: ele tinha um
instinto infalível. Se pensava que alguma coisa estava errada, então
estava mesmo. Nos últimos quatro anos, tinham-se verificado
centenas de ocasiões em que Travis sentira vontade de dizer que
não havia nada de errado, que ninguém estava a tentar enganá-lo.
Travis não conseguia afastar a ideia de que, caso fizesse asneira, o
pai o libertaria desse contrato infernal. Mas sabia que isso nunca
aconteceria.
Randall sentia quando estava a pressionar demasiado o filho.
– Se vieres esta manhã, dispenso-te umas semanas.
Travis ficou silencioso, consciente de que o pai o conhecia bem de
mais. Por outro lado, Randall tinha uma excelente capacidade para
avaliar os outros. Muitos anos antes chegara acertadamente à
conclusão de que Miss Lucy Jane Travis o temia demasiado para
deixar de fazer o que quer que lhe ordenasse.
– Tira três semanas – insistiu Randall. – É o tempo que vai
demorar este negócio. Basta que descubras como estão a tentar
enganar-me neste contrato e ficas liberto.
A última coisa que Travis desejava era enfurecer ou levantar
suspeitas no pai. A raiva chegaria mais tarde quando Travis ajudasse
a mãe a conseguir o divórcio.
– Envia-me o contrato.
– Neste momento, há um homem à tua espera do lado de fora da
porta – disse Randall.
Travis não podia ver o sorriso de triunfo do pai, mas adivinhou-o.
A única coisa que realmente interessava a este homem era ganhar.
Passava das duas da tarde quando Travis conseguiu libertar-se.
Queria ligar à mãe para avisá-la da sua chegada, mas não tinha um
telefone descartável e não se atreveu a usar o seu telemóvel.
Saiu assim que acabou de examinar o contrato e ligou ao pai do
carro.
– O velho é tão trapaceiro como tu – acusou Travis. – Na página
duzentos e doze, último parágrafo, diz-se que, se não concordares
com as suas condições, ficarás em incumprimento do contrato e a
empresa voltará para ele.
– Condições? – gritou Randall. – Que condições? A que se refere?
– Não faço ideia. Vais ter de perguntar ao velho Hardranger.
– Tens de…
– Não, eu não – interrompeu-o Travis. – Manda o Forester
descobrir o que quer o velho. Ou então a Penny. Todos menos eu.
Até daqui a três semanas – disse e em seguida desligou o telemóvel.
– Ou não – acrescentou.
Tornava-se difícil para Travis imaginar a possibilidade de que
talvez estivesse prestes a escapar das garras do pai. Se a mãe
tivesse conseguido ao longo do tempo reunir coragem suficiente
para suportar um divórcio, Travis ficaria livre.
Esse pensamento fê-lo sorrir durante a maior parte do trajeto até
Edilean.
Eram oito horas de um sábado à noite e, pelo que via, a povoação
estava deserta. As lojas estavam fechadas, não havia uma farmácia
de serviço nem se via ninguém a passear o cão. Pensou que a
cidadezinha com os seus edifícios antigos era um pouco estranha,
como que tirada de um filme de ficção científica de série B em que
todos os habitantes tinham sido sequestrados por extraterrestres.
Não foi fácil encontrar Aldredge Road, mas, ao avistar a placa
identificativa, esboçou um sorriso mais amplo. Sabia que Kim não
vivia nessa rua, mas os seus familiares sim e a antiga mansão
Aldredge House ainda se conservava.
Mas não era à Aldredge House que se dirigia. A mãe tinha alugado
um apartamento na casa de Mrs. Olivia Wingate, que se encontrava
mesmo atrás da casa onde vivia o primo de Kim. O plano original de
Travis era chegar à tarde e ir ver a mãe. Dado que não queria que
ninguém descobrisse a identidade da mãe nem a sua, decidiu
estacionar na rua principal e ligar-lhe do telemóvel que Penny lhe
enviara nessa manhã. Depois de a ter visto e assegurar-se de que
estava bem, iria à procura de um hotel.
Não tinha mudado de plano, mas estava a anoitecer e não lhe
agradava a ideia de que ela andasse sozinha na rua. Teria de se
encontrar com a mãe mais perto de casa.
Travis refletia sobre o assunto enquanto conduzia pela rua ladeada
de árvores quando, do meio dos arbustos, saiu um adolescente
enorme, vestido com um colete refletor amarelo e com uma lanterna
na mão, e se pôs à sua frente. Ao pisar o travão a fundo, deu graças
pelos anos que passara a conduzir carros de corridas e pelos seus
reflexos rápidos.
Alguém bateu na janela e outro miúdo fez-lhe sinal para que
baixasse o vidro.
– Devia ir mais devagar, sir – disse o rapaz. – Há crianças por aqui
e gente a ir embora. Estacione junto à carrinha Ford.
– Estacionar? – questionou Travis. – Mas não estava a pensar ir…
– Deixou a frase a meio, pois não queria falar a ninguém dos seus
planos.
Ouvia música e avistou luzes por entre as árvores à sua esquerda.
Parecia haver uma festa. Travis pensou em dar meia volta e afastar-
se, mas tinha um carro atrás. Se o fizesse, chamaria demasiado as
atenções.
– Se demorar mais tempo, encontrará o lugar vazio. Já perdeu o
bolo de casamento – avisou o miúdo.
– Sim, claro! – respondeu Travis e estacionou ao lado da carrinha.
«Casamento?», interrogou-se e não conseguiu reprimir um
sorriso. «Kim ter-se-ia casado?» Afinal, a festa realizava-se na
Aldredge House e era bem possível.
Ao sair, ergueu a mão para proteger os olhos dos faróis de outro
carro e também para tapar a cara.
Um homem muito corpulento encontrava-se de pé junto a uma
carrinha que Travis apostaria em como a tinham modificado para
perseguir participantes em corridas de rua ilegais. O homem
examinou-o como que a tentar averiguar de quem se tratava.
– Conhece a noiva? – perguntou ao abrir a porta para ajudar a
sair a sua mulher, que estava grávida.
– Colin! – ralhou a mulher. – Não estás de serviço, portanto deixa
de interrogar as pessoas. – Olhou para Travis. – Bem-vindo a
Edilean! – disse. – Entre, por favor. Esperemos que ainda haja
champanhe. Não que eu possa bebê-lo.
– Obrigado – agradeceu Travis.
Enquanto o casal se encaminhava para a casa, o homem
corpulento examinou Travis de alto a baixo.
– Genial – murmurou. Aparentemente, levantara as suspeitas de
um polícia fora de serviço.
Mais pessoas passaram junto deles, quase todas na direção
contrária e olharam para Travis. Nesse momento, deu-se conta de
que todas essas pessoas estavam vestidas com os seus melhores
trajes. Ele levava uma camisa cinzenta e umas calças de ganga.
Refletiu um momento no que havia de fazer. Ir embora? Ver a mãe
no dia seguinte?
Por outro lado, pensou que talvez a mãe se encontrasse no
casamento. Não acreditava muito, pois fora sempre uma mulher
muito tímida e reservada, mas era possível. Era, inclusivamente,
possível que o homem com quem pensava casar também estivesse
presente.
Imaginou os dois sentados num canto, de mãos dadas, trocando
palavras ternas em voz baixa. Seria uma imagem bonita.
Talvez Kim também se encontrasse ali – isto é, caso não fosse ela
a noiva. Tão-pouco poderia dizer-lhe quem era. Vira-a como adulta,
mas passara muito tempo. Kim era uma menina muito bonita e
tornara-se uma mulher ainda mais bonita. A sua imagem enquanto
descia de bicicleta o monte de terra, com o cabelo ruivo esvoaçando
ao vento, acompanhá-lo-ia para sempre.
Talvez pudesse vestir uma roupa mais apropriada e ver os recém-
casados, embora sem ficar para o banquete. Daria uma espreitadela
e iria embora.
Abriu o porta-bagagens do carro.
DOIS
– Então, como te dás com o teu novo namorado? Chama-se Dave,
não é? – perguntou Sara Newland enquanto se sentava na frente de
Kim.
Cada mesa tinha uma toalha de uma cor diferente, que a noiva
designava como «cores de Páscoa». A orquestra tinha feito um
intervalo e a enorme pista de dança estava vazia. Sobre as suas
cabeças, a tenda estava decorada com luzinhas prateadas que
lançavam bonitas sombras por todos os sítios.
Os gémeos de Sara tinham agora um ano e estavam em casa com
uma baby-sitter. O casamento era uma saída invulgar para ela e o
seu marido, Mike.
– Damo-nos muito bem – respondeu Kim, que usava o vestido
azul-púrpura de dama de honor. Tinha um decote quadrado e saia
floral. Jecca, que era a noiva e a melhor amiga de Kim, tinha-o
desenhado e fora Lucy Cooper a confecioná-lo.
– Acreditas que é para durar? – quis saber Sara.
– Ainda é cedo para dizer, mas espero que sim. Como te dás com
o Mike?
– Perfeitamente, mas não estou a conseguir que se adapte à vida
de casa. Queria que me ajudasse com o jardim e sabes o que fez?
– Tratando-se do Mike, tudo é possível.
– Despediu o homem que maneja a retroescavadora, aprendeu a
usar esse monstro de máquina e limpou uma faixa de terreno de
cerca de dois hectares para colocar a vedação nova. Devias tê-lo
ouvido a discutir aos gritos com o dono da retroescavadora.
Kim sorriu.
– Gostava de ter assistido. Passo a maior parte da vida com
vendedores. De cada vez que falam, acabo por comprar o que me
oferecem.
Sara inclinou-se para a frente e baixou a voz:
– Que tal se portou Lucy Cooper com o teu vestido?
– Nunca a vi – respondeu Kim. – Foi Jecca que se encarregou da
única prova que me fizeram.
– Mas viste-a a dançar com o pai de Jecca há uns minutos, não
viste?
Sara e Kim eram primas, tinham a mesma idade e brincavam
juntas desde crianças. Nos últimos quatro anos haviam comentado
como era estranho que Lucy Cooper, uma mulher mais velha que
morava na casa de Mrs. Wingate, se esquivasse sempre que Kim
aparecia. Outras pessoas viam-na no supermercado, na farmácia,
até mesmo na loja de Mrs. Wingate, situada no centro da cidade,
mas, quando Kim aparecia, Lucy escondia-se. Um dos seus primos
conseguira tirar-lhe uma fotografia para que Kim a visse, mas a sua
cara não lhe pareceu conhecida. Não sabia dizer o que levava a
mulher a evitá-la.
– Não poderia perder um acontecimento desses, não achas? –
replicou Kim. – Vi-os muito desinibidos. Bastante ousados, digamos.
Um pouco embaraçoso na idade deles.
– Mas viste o rosto de Lucy?
– Sim e não. Ela enterrou-o no ombro do pai da Jecca e apenas vi
um olho e uma orelha. Teria de contactar um desses artistas que
fazem retratos robôs para a polícia para ver se conseguia que me
desenhasse a cara toda.
Sara riu.
– A mim pareceu-me a mulher mais feliz do mundo.
– Não. Essa é a Jecca.
– Foi um casamento lindo. O vestido era divino! Tris e ela fazem
um casal deslumbrante, certo?
– Sim – respondeu Kim orgulhosa.
Jecca e ela tinham sido companheiras de quarto durante todo o
tempo de faculdade e a sua amizade perdurava desde então,
embora Jecca vivesse em Nova Iorque e Kim em Edilean. Uns meses
antes, Jecca tinha vindo a Edilean para passar o verão a pintar,
conhecera o médico local, que era Tristan, um primo de Kim,
apaixonara-se e acabara de casar com ele.
– Como está o Reede? – perguntou Sara, referindo-se ao irmão de
Kim.
Reede oferecera-se para ajudar Tris, enquanto ele recuperava de
uma fratura num braço, mas parecia que assumiria a
responsabilidade da clínica de Tris durante os próximos três anos.
– Reede não é propriamente a alegria personalizada – respondeu
Kim. – Nunca conheci ninguém que se queixasse tanto como ele.
Está sempre a ameaçar meter-se num cargueiro e sair daqui.
– Mas não pode fazer isso! Precisamos de um médico de plantão
em Edilean.
– Não creio que o faça – tranquilizou-a Kim. – Reede é demasiado
responsável para levar a cabo essa ameaça. Mas seria simpático que
não encarasse a sua permanência aqui como uma pena de prisão de
três anos.
– Creio que todos ficarão contentes quando Tris regressar e volte
a ser o nosso médico.
– Sobretudo as mulheres – completou Kim e as duas riram. O Dr.
Tristan Aldredge era um homem lindíssimo, dotado de uma enorme
simpatia e que se preocupava genuinamente com as pessoas.
– Quem é esse homem que não te larga com os olhos? –
perguntou Sara, referindo-se a alguém que se encontrava atrás de
Kim.
Ela virou-se mas apenas viu gente conhecida.
– Foi-se embora no preciso momento em que te voltaste.
– Como era?
– O típico moreno, alto e elegante – esclareceu Sara com um
sorriso. – Dá a sensação de que partiu o nariz algumas vezes, mas
talvez veja isso em todos os homens desde que conheci o Mike. – O
marido era um mestre em várias categorias de artes marciais.
– Suponho tratar-se de um admirador secreto – disse Kim,
levantando-se.
– O Dave veio esta noite?
– Não. Contrataram-no para um serviço de catering de um
casamento em Williamsburg.
– Deve ser difícil para ti – comentou Sara. – Passa todos os fins de
semana fora.
– Mas está em casa o resto da semana – contrapôs Kim. – Na
casa dele, não na minha.
– Falando nisso, como está a tua casa nova? – perguntou Sara
que também se levantou. Embora não tivesse sido fácil, já perdera
os quilos adquiridos durante a gravidez e recuperara a sua figura
elegante.
– Uma maravilha – respondeu Kim com os olhos brilhantes. –
Transformei a antiga garagem num ateliê e Jecca ajudou-me a
decorar o interior. Tudo com muita cor.
– O Dave gosta?
– Gosta da minha cozinha – respondeu Kim. – Quando acabar de
me instalar, convido-te e aos teus três filhos. Mas diz ao Mike que
não pode trazer o seu novo brinquedo, a retroescavadora.
– Não me esquecerei. – Sara despediu-se com um sorriso e foi-se
embora. A orquestra tinha regressado e ela preferia estar num
espaço onde pudesse conversar.
Kim manteve-se ali um instante, a observar os amigos e familiares
que a rodeavam. Também havia alguns forasteiros entre os
convidados, ou seja pessoas que não descendiam das sete famílias
fundadoras e que tinham vindo assistir ao casamento do Dr. Tris. Era
adorado por todos e Kim interrogou-se sobre quantos dos presentes
tinham aparecido sem convite, só porque queriam ver Tristan
novamente. O médico salvara muitas vidas na pequena povoação.
Kim tinha tido a esperança de que Jecca se casasse com o seu
irmão, Reede, mas ela apaixonara-se por Tris praticamente no dia
em que o conheceu. Devido a mudanças de emprego, o sonho de
Kim quanto a ter a sua melhor amiga a viver em Edilean fora adiado
por mais uns anos.
Não pôde deixar de pensar que nessa altura teria quase trinta.
«Farei parte das estatísticas», pensara mais do que uma vez,
embora não tivesse dito a ninguém. O seu negócio ia de vento em
popa, mas o mesmo não podia afirmar-se quanto à sua vida pessoal.
Os noivos haviam partido há algum tempo – Kim não tinha
apanhado o buquê da noiva – mas alguns convidados ainda
continuariam a dançar enquanto a orquestra tocasse.
Ao caminhar na direção de um dos lados da tenda, pensou
novamente em como desejava ter alguém ao seu lado nessa noite.
Tinha conhecido Dave seis meses antes, quando fora a Williamsburg
para falar com uma noiva nervosa sobre as alianças que ela e o
noivo pretendiam. A jovem mostrara-se extremamente indecisa e o
noivo era ainda pior. A determinada altura, Kim desejou começar a
dar-lhes ordens, mas apenas podia vincar algumas sugestões.
Uma hora depois, e sem que tivessem chegado a uma decisão,
apareceu o pai da noiva, que avaliou de imediato a situação e
indicou à filha as alianças que deveria escolher. Kim fitara-o,
agradecida.
Quando voltou até junto do seu carro, verificou que tinha a saída
bloqueada por uma grande carrinha branca com o letreiro «BORMAN
CATERING» num dos lados. Um homem novo e bem-parecido
aproximou-se a correr.
– Desculpe – disse enquanto tirava as chaves do bolso, mas nesse
momento verificou que o pai da noiva o tinha bloqueado.
Após verificar que o pai da noiva se encontrava fechado no seu
escritório, ocupado com uma chamada de negócios, Kim e o
indivíduo tinham-se apresentado. Nos primeiros minutos trocaram
queixas sobre a incapacidade da noiva de tomar decisões.
– A mãe é igual – acrescentou Dave. Chamava-se David Borman e
era o dono de uma elegante mas modesta empresa de catering.
Quando por fim o pai largou o telefone e se dirigiu ao seu carro,
ela e Dave tinham marcado um encontro. Desde então, viam-se
duas vezes por semana e tudo se encaminhava de uma forma
bastante agradável. O sexo era bom, nada do outro mundo, mas
pleno de ternura. Dave mostrava-se sempre respeitoso com ela,
sempre delicado.
– Então onde se encontram os bad boys quando são necessários?
– murmurou Kim entre dentes enquanto tirava uma taça de
champanhe de uma bandeja e ia lá para fora.
Conhecia a casa e o jardim de Tristan como se lhe pertencessem e
dirigiu-se ao caminho que levava a casa de Mrs. Wingate. À
esquerda situava-se a antiga casa de brincar. Tinha passado muito
tempo lá quando era pequena. A sua mãe e a de Tris eram boas
amigas e, de cada vez que se encontravam, Kim ia para aquela
casinha. Agora estava em mau estado, mas Jecca pensava restaurá-
la.
Kim sentou-se num banco no outro extremo do caminho. A Lua
brilhava no céu, as luzes da tenda cintilavam à distância e o ar
estava húmido e quente. Fechou os olhos e deixou-se envolver pelo
que a rodeava. Haveria uma forma de desenhar uma joia que se
parecesse com o reflexo do luar na pele?, interrogou-se.
– Ainda ensinas as pessoas a divertir-se? – perguntou uma voz
masculina.
Kim abriu bruscamente os olhos. Um indivíduo alto encontrava-se
na sua frente, pairando sobre ela. Não lhe via o rosto, porque a Lua
formava um círculo atrás da sua cabeça. A pergunta tinha sido
formulada num tom tão sugestivo e provocante que não conseguiu
evitar a sensação de desconforto. Não havia mais ninguém por
perto, apenas esse desconhecido e a sua pergunta arrepiante.
– Acho que tenho de ir embora – replicou ela enquanto se
levantava para se dirigir à tenda, com as suas luzes e as pessoas.
– Quanto tempo durou a casa que construí para a tua boneca?
Kim deteve-se e em seguida virou-se lentamente para ele.
Estava mais alto e, pelo pouco que conseguia ver do seu rosto
àquela escassa luz, já não parecia um querubim, como quando tinha
doze anos. Havia pequenas rugas em torno dos olhos e, como Sara
dissera, parecia ter partido o nariz algumas vezes. Mas era muito
bonito, com olhos negros tão intensos como a noite em torno deles.
– Travis – sussurrou.
– Disse-te que voltaria e aqui estou.
Tinha uma voz forte e grave que agradou a Kim. Enquanto
avançava uns passos para ele, sentiu-se como se estivesse a ver um
fantasma.
– Ocorreu-me que talvez não te recordasses de mim – admitiu
baixinho. – Eras muito pequena nessa altura.
Kim recusou dizer-lhe a verdade. Não queria contar-lhe o terrível
desespero que sentiu depois de ele se ir embora. Durante muitas
noites chorara até adormecer. A fotografia dos dois ainda era o seu
objeto mais precioso, o único que salvaria se a casa pegasse fogo de
repente.
«Não», decidiu. «Era preferível manter um tom despreocupado.»
– Claro que me recordo de ti – garantiu-lhe. – Foste um grande
amigo. Apareceste quando julgava que ia enlouquecer de tédio, mas
salvaste-me.
– Salvei-te sendo alguém que não sabia nada. Foste uma boa
professora.
– Tu naquela bicicleta! – exclamou. – Nunca conheci ninguém que
aprendesse tão rapidamente como tu.
Travis pensou em todas as coisas que tinha feito com uma
bicicleta desde essa altura: saltos, cambalhotas e voltas no ar.
Interrogou-se se Kim estaria consciente da sua beleza. O luar a
incidir-lhe no cabelo, que mantinha um tom arruivado, e a cor do
vestido sob aquele esplendor de prata formavam uma imagem
maravilhosa. Se ela fosse qualquer outra mulher, começaria a
namoriscar de imediato. Nunca se importara que as mulheres
fossem casadas ou empregadas de mesa. Caso se sentisse atraído,
dava a entender.
Mas Kim levara a vida numa cidadezinha onde todos a conheciam.
Não era o tipo de mulher a quem pudesse atirar-se cinco minutos
depois de a ver.
Durante o silêncio constrangedor entre eles, Kim pensou que
Travis não tinha mudado. Aos doze anos não era muito falador,
limitava-se a observar, ouvir e aprender.
– Queres voltar para o casamento? – perguntou. Ainda conservava
a taça de champanhe na mão. – Apetece-te uma bebida?
– Eu… – começou Travis, e depois ouviu-se a dizer: – Preciso de
ajuda. – Duvidava que tivesse pronunciado aquelas palavras. A sua
vida transformara-o numa pessoa ferozmente independente.
Kim aproximou-se dele imediatamente.
– Estás ferido? Queres que chame um médico? O meu irmão,
Reede, está aqui e…
– Não – interrompeu-a com um sorriso. Kim era ainda mais bonita
de perto. – Não estou ferido. Vim a Edilean por um motivo, para
fazer uma coisa. Mas, agora que estou aqui, não sei como fazê-lo.
Kim estendeu um braço e agarrou-lhe na mão. Era uma mão
grande e sentiu calos. Aparentemente, trabalhava em algo que
requeria esforço físico. Conduziu-o até um banco e incitou-o a
sentar-se ao lado dela. A luz da festa do casamento encontrava-se
atrás dela, permitindo vê-lo melhor. Vestia um fato escuro que
parecia ter sido feito por medida. As maçãs do rosto refletiam o luar
e apercebeu-se da testa franzida. Parecia preocupado. Inclinou-se
para ele, solícita.
Ao inclinar-se, proporcionou acidentalmente a Travis uma visão do
decote. Kim dissera a Jecca que era demasiado grande, mas a amiga
rira. – Esse par de seios merece ser mostrado. – Com um elogio
daqueles não se atreveu a pedir-lhe que pusesse mais tecido.
Travis ficou tão distraído com aquela visão que por um momento
foi incapaz de falar.
– Podes contar-me tudo – disse Kim. – Sei que há muito que não
nos vemos, mas a amizade é eterna e tu e eu somos amigos.
Lembras-te?
– Sim – concordou ele, engolindo em seco.
Teve de soltar a mão ou não resistiria a atraí-la de encontro ao
corpo. Porque não aproveitara a viagem para pensar no que diria a
Kim se voltasse a vê-la? Em vez disso, gastara a maior parte do
tempo ao telefone a planear a escalada da montanha que pensava
fazer dali a seis semanas. Tinha de comprar todo o equipamento e
necessitava preparar-se fisicamente. Interrogou-se se haveria
alguma montanha em Edilean que pudesse escalar. E também se
haveria um ginásio naquela cidadezinha remota. Não queria que os
músculos amolecessem enquanto tentava resolver os problemas da
mãe.
Apercebeu-se que Kim continuava à espera da sua resposta. Não
tinha planeado pedir ajuda, nem sequer voltar a vê-la, mas, ao
avistá-la na tenda, com aquele vestido cingido, sentira uma tentação
incontrolável. Ao observar que ela saía e desaparecia na floresta,
seguiu-a.
Agora não podia manter-se ali sentado em silêncio. Kim iria tomá-
lo por um imbecil.
– Trata-se da minha mãe – começou. – Está a viver aqui, em
Edilean. – Voltou a calar-se, sem saber muito bem o que havia de
dizer ou de ocultar. Não queria de modo nenhum afugentar Kim.
– O que há com ela? – perguntou Kim, enquanto tentava recordar-
se do que sabia sobre a sua mãe. Quando tudo acontecera, ela era
demasiado pequena para compreender o que se passava, mas ao
longo dos anos tinha descoberto algumas coisas. Lucy Merritt estava
a esconder-se de um marido violento.
Ao recordar o nome, Kim engasgou-se.
– Lucy! A tua mãe chamava-se Lucy. Ela é Lucy Cooper, a mulher
que foge de mim sempre que me aproximo? Há quatro anos que
vive em Edilean, mas acabo de vê-la pela primeira vez esta noite, e
apenas de perfil.
Travis estava verdadeiramente surpreendido. Perguntara várias
vezes por Kim à mãe, mas ela respondia sempre que se
movimentavam em círculos diferentes e depois mudava
invariavelmente de assunto.
– Não sabia que se escondia de ti, mas estou certo de que se o
fez é porque achou conveniente. Quando estivemos aqui há muitos
anos não nos relacionámos com muitas pessoas, apenas com aquele
senhor de idade e a tua mãe. E contigo.
– Mister Bertrand morreu no ano seguinte e a minha mãe nunca
contaria a ninguém que Lucy estava aqui.
– E tu? – perguntou Travis. – Se a tivesses reconhecido, dirias a
alguém?
– Eu… – Kim interrompeu-se. Se tivesse visto a mãe de Travis em
Edilean, telefonaria a Jecca dois minutos depois. Teria dito à sua
prima Sara e talvez à sua nova parente por casamento, Jocelyn, e
talvez, quem sabe, à mulher do seu primo Colin. Gemma, de quem
gostava muito. Também se teria sentido na obrigação de contar a
Tris, já que era amigo de Mrs. Wingate.
– Talvez – admitiu finalmente num tom de voz que fez com que
Travis sorrisse.
– Se esta casa é do teu primo e a minha mãe vivia ao lado, deve
ter tido dificuldade em esconder-se de ti.
– Mas conseguiu – reconheceu Kim, porém não entrou em
pormenores sobre todas as vezes em que Lucy Cooper fugira dela.
Jecca tinha vivido algum tempo na casa de Mrs. Wingate e, sempre
que Kim a visitava, Lucy desaparecia como por magia. Agora Kim
interrogava-se se a pobre mulher se vira forçada a esconder-se
nalgum armário de arrumação das vassouras. Fosse como fosse, de
uma coisa tinha a certeza: a sua mãe dissera a Lucy para que se
escondesse dela.
Kim não queria prosseguir com aquele tema de conversa.
– A tua mãe está aqui por causa do teu pai?
– Sim – confirmou Travis, recostando-se no banco. Ficou em
silêncio por um momento e depois fitou-a com um sorriso. – Estou a
roubar-te à companhia dos teus amigos e… da tua família. A minha
mãe diz que em Edilean são todos da família.
– Não é bem assim, mas quase – concordou Kim.
– Estás assim vestida por… fazeres parte da cerimónia? –
perguntou com um aceno da mão.
– Sim, fui a dama de honor.
– Ah! – exclamou Travis. – Isso significa que não és casada.
– Não, não sou casada. E tu?
– Nunca me casei. Trabalho para o meu pai – acrescentou Travis.
– O acordo é o seguinte: se trabalhar para ele, deixará a minha mãe
em paz. – Estava a contar-lhe coisas de que nunca falava a menos
que fosse necessário, mas as palavras brotavam involuntariamente.
– Não parece muito agradável – comentou Kim que esteve quase
a agarrar-lhe novamente a mão, mas conteve-se. Não imaginava o
que seria encontrar-se numa situação semelhante, mas considerava
a atitude de Travis muito nobre, heroica mesmo, pois tinha-se
sacrificado pela mãe. Quem fazia isso hoje em dia?
– Agora parece que a minha mãe quer casar-se, mas ainda está
legalmente casada com o meu pai.
Kim não entendia qual era o problema.
– Pode divorciar-se, certo?
– Sim, mas, caso peça o divórcio, o meu pai descobrirá onde ela
se encontra e não se poupará a esforços para lhe infernizar a vida.
– Há leis…
– Eu sei – interrompeu-a Travis. – Não é o divórcio que me
preocupa, mas o que pode passar-se a seguir.
– Não te entendo – admitiu Kim. A orquestra estava a tocar a
última música e ouvia as pessoas a rir. Interrogou-se se Travis
saberia dançar.
Travis virou-se para ela.
– Posso confiar em ti? Quer dizer, confiar mesmo? Não estou
habituado a confiar nas pessoas. – Cada palavra pronunciada saía-
lhe do coração. Tratava-se de Kim, a versão adulta da menina que
tinha mudado a sua vida.
– Sim – respondeu ela com sinceridade.
– O meu pai é…
– Violento – completou Kim, determinada.
– Para quem é mais fraco do que ele e a minha mãe é uma
mulher frágil.
– Jecca adora-a.
– A minha mãe falou-me dela. É a jovem que vivia no
apartamento contíguo ao seu.
– Acaba de casar-se esta noite. Presumo que sabes que Jecca e a
tua mãe se tornaram grandes amigas. Trabalhavam juntas,
costuravam juntas. A dado momento senti muitos ciúmes.
Travis fitava-a surpreendido. Falava com a mãe uma vez por
semana – mesmo quando estava no estrangeiro –, mas não sabia
nada disso. Tinha lido o artigo onde se noticiava que fazia roupa
para uma estilista, mas pensara que a mãe se limitava a costurar
tranquilamente em casa.
– Jecca é a filha de Joe Layton – explicou Kim ao ver que Travis se
mantinha em silêncio.
– Joe Layton?
– Suponho que é o homem com quem se quer casar, não é? Esta
noite vi-os dançar juntos como se estivessem prestes a despir-se um
ao outro. Jecca sempre afirmou que Lucy era muito flexível, mas não
fazia ideia de que conseguia dobrar as costas assim. Espero que
quando tiver a idade dela… – Interrompeu-se ao ver o olhar de
Travis. – Oh! Certo! É tua mãe. Tenho a certeza de que o homem
com quer casar-se é Joe Layton.
– Que tipo de pessoa é ele? O que faz?
– É dono de uma loja de ferragens em Nova Jérsia. Um negócio
familiar que existe há várias gerações. Mas vai deixá-la ao filho e
abrir uma loja aqui em Edilean.
– Há gente suficiente nesta cidadezinha para que um negócio
desses seja rentável?
– Estamos perto de algumas grandes cidades – replicou Kim
friamente.
– Não pretendia insultar Edilean. Estava a pensar em termos de
dinheiro. A minha mãe conseguirá uma bela quantia com o divórcio.
– Conheço a Jecca há muitos anos – afirmou Kim num tom seco –
e posso garantir-te que o pai dela não anda atrás do dinheiro da tua
mãe. – As insinuações de Travis não lhe agradavam minimamente.
Levantou-se. – Acho que vou regressar à tenda.
Travis manteve-se em silêncio. Sabia que estragara tudo com Kim.
Armava sempre confusão quando se tratava de jovens decentes. Não
lhes telefonava quando devia, esquecia-se dos aniversários, não
enviava os presentes que elas esperavam. Tudo o que fazia parecia
sair errado e por isso acabara por procurar mulheres como Leslie.
Qualquer coisa brilhante tornava-a feliz.
Kim tinha chegado ao extremo do caminho quando a assaltou
uma inacreditável sensação de déjà vu. Tinha oito anos, deixou-se
levar pela fúria e atirou um torrão de terra a um rapaz. Depois fugiu
e escondeu-se, à espera que ele a perseguisse. Mas o rapaz não o
fizera. Viu-se obrigada a ir procurá-lo. Nas semanas que se seguiram
a esse momento descobriu que o rapaz não sabia fazer muita coisa.
Não sabia lançar pedras, nem andar de bicicleta. Sabia muitas coisas
sobre ciência, mas não como colocar um pedaço de relva entre os
dedos e fazer um apito. Desconhecia todas as coisas importantes da
vida.
Voltou para junto de Travis. Tal como acontecera dez anos antes,
encontrava-se sentado onde o tinha deixado, sem se mexer. Kim
ignorava o que estava a passar-lhe pela cabeça – provavelmente
algo que aprendera num livro –, mas era óbvio que continuava a ter
problemas em relacionar-se com as pessoas.
Aproximou-se lentamente do banco e sentou-se ao seu lado,
olhando em frente.
– Desculpa – disse. – Às vezes o meu temperamento leva a
melhor.
– Então não mudaste.
– Continuaste aí sentado, portanto também não mudaste.
– Talvez a infância seja o reflexo da nossa personalidade em
estado puro.
– No nosso caso, assim parece – concordou e respirou fundo. –
Joe Layton não anda atrás do dinheiro da tua mãe. Tanto quanto sei,
ninguém está a par de que Lucy tenha dinheiro ou vá receber
algum. Não pretendo revelar uma confidência, mas Jecca disse-me
que o pai sabe pouco sobre Lucy, nem mesmo se tem filhos ou não.
Sempre que lhe faz perguntas sobre a sua vida pessoal, Lucy
começa a beijá-lo e… Enfim, suponho que não queiras ouvir o resto.
– Preferia que as tuas descrições fossem menos gráficas.
Kim sorriu ao escutá-lo. A sua ampla educação era visível em cada
sílaba.
– Entendo. Creio que podes estar tranquilo, porque estão juntos
por amor e não por dinheiro.
Ao ver que ele se mantinha em silêncio, Kim pousou uma das
mãos no seu braço e ele cobriu-a com a sua. Quase se tinha
esquecido de como ela era carinhosa. Quando eram pequenos, Kim
ficava estarrecida com todas as coisas que ele desconhecia. Parecia
ter uma lista com tudo o que qualquer criança do mundo devia
saber e empenhou-se a ensiná-lo.
Nesse momento, havia algumas coisas que Travis gostaria de lhe
ensinar. Kim estava tão bonita com aquele vestido à luz da Lua que
tinha dificuldade em não lhe tocar. Mas Kim fitava-o como se ele
fosse um cãozinho abandonado que ela precisava resgatar. Teve de
esforçar-se para afastar o desejo do olhar, mas ela parecia mais
interessada em fazer-lhe um curativo.
Sabia que deveria largá-la, mas os seus dedos compridos eram…
Ergueu-lhe a mão.
– Isso é uma cicatriz?
Kim libertou-se.
– Muito pouco feminina, eu sei. Mas são os riscos do meu
trabalho.
– Do teu trabalho? – Graças à internet, estava ao corrente do seu
negócio de joalharia.
Travis seguira o seu trajeto durante a fase universitária e depois
quando regressou a Edilean, onde abriu o seu próprio negócio. Kim
nunca soube, mas Travis fora ver todas as exposições que ela
realizara enquanto estava na universidade. Numa ocasião escapou
por pouco de ser apanhado. Kim aparecera com duas amigas, uma
morena, magra e alta, e uma loira baixa com formas que deixaram
boquiabertos todos os homens presentes.
Porém, Travis só tinha olhos para Kim. Tornara-se uma adulta tão
bonita como era em criança. Gostou do seu riso e da forma como
espalhava felicidade. Travis não se lembrava de alguma vez se ter
sentido tão feliz – pelo menos, desde que deixara Edilean e Kim há
muitos anos.
– Sou desenhadora de joias – disse ela.
Travis virou-se no banco e fitou-a.
– O kit de enfeites!
Kim sorriu.
– Lembras-te disso?
– Pediste-me que o abrisse. Recebeste-o…
– Os meus tios tinham-mo dado no Natal, mas como não me
interessou, nem sequer o abri. Era muito mal-agradecida em
pequena! Estava no caixote de brinquedos que o tio Ben nos levou.
– Com a minha bicicleta – acrescentou Travis, num tom suavizado
pela recordação. – Eras muito criativa com todos os acessórios do
kit. Ficava maravilhado.
– E tu eras um modelo excelente – replicou ela. – Nenhum dos
rapazes que conhecia teria permitido que lhe pusesse um colar de
contas. – Não lhe contou que a felicidade daquelas duas semanas e
o kit de enfeites estavam ligados. Travis, o desenho de joias e a
felicidade eram sinónimos para ela.
– Ainda tenho esse colar – confessou ele.
– A sério?
– Sim. Kim, foram as duas melhores semanas da minha infância.
Ela ia a dizer o mesmo, mas conteve-se.
– Quais são os teus planos em relação à tua mãe?
– Realmente não tenho um plano. Só ouvi falar de tudo isto
ontem. Ela ligou para… – Interrompeu-se por não considerar
oportuno dizer «a minha secretária». – Ligou para o meu escritório e
deixou uma mensagem a dizer que queria casar-se e necessitava do
divórcio. Não referiu mais nada. Fiquei em estado de choque. Julguei
que estava a viver num apartamento em casa de uma viúva
respeitável e que costuravam roupa para crianças. E acabo de
descobrir que a minha mãe anda a dobrar as costas diante de toda a
gente.
Olhou para Kim.
– Portanto, não vim com um plano traçado. Basicamente, o que
quero é…
– O quê?
– Quero saber se esse tal Joe Layton é bom para a minha mãe.
Pondo de lado o amor, já que ela pensou que estava apaixonada
pelo meu pai. Quero saber se é boa pessoa e assegurar-me de que
não vai intimidar a minha mãe.
Kim susteve a respiração. A mãe de Jecca tinha morrido quando
ela era pequena e ela fora criada pelo pai. Joe Layton era um
homem muito determinado e gostava de fazer as coisas à sua
maneira. Durante os anos em que haviam frequentado juntas a
universidade, Jecca abrira-se muitas vezes com ela por causa da
frustração que lhe causavam certos comentários ou atitudes do pai.
Embora pudesse ser um homem muito terno, também possuía uma
faceta insuportável. Era além disso muito possessivo! Quando Jecca
se apaixonara por um homem em Edilean, Virgínia, Joe Layton
mudara-se para ficar ao lado dela – e essa acrobacia quase
terminara a relação entre Jecca e Tris.
– O que se passa? – quis saber Travis.
– Eu, bem… – Kim não sabia o que responder. Foi salva pelo som
de vozes que pareciam aproximar-se.
A expressão de Travis deu-lhe a entender que não queria que o
vissem. Pelo menos ainda não, antes de ver a mãe.
– Segue-me – disse, pondo-se de pé e erguendo a comprida saia
do vestido ao mesmo tempo que começava a correr por um caminho
estreito através da floresta.
– De bom grado – murmurou Travis e seguiu-a sem hesitar.
No meio das árvores reinava a escuridão, mas o luar permitia-lhe
ver a pele branca de Kim e o azul-prateado do vestido. Adorava vê-la
correr. Estava tão concentrado nela que quase embateu no que
parecia uma antiga casa de brincar. Um torreão alto que ocultava o
luar tornava-a semelhante à habitação da bruxa má de um conto de
fadas.
– Aqui – indicou, abrindo a porta e fechando-a atrás deles.
Travis começou à procura de um interruptor, mas Kim agarrou-lhe
no pulso e levou o dedo aos lábios para lhe indicar que se calasse.
Fez-lhe sinal para que saísse da frente da janela.
Ele encostou-se à porta, perto de Kim.
Lá fora escutaram vozes que lhes pareceram de dois adolescentes.
– Anda. Estou aqui – dizia um rapaz.
– Vão apanhar-nos – respondeu uma rapariga.
– Quem? O doutor Tris? Já está em lua de mel. – O silêncio
indicou que se beijavam. – Aposto que está a fazer o que queremos
fazer.
– Trocaria de lugar com ela – desejou a rapariga num tom
sonhador.
Kim olhou para Travis e ambos esboçaram um sorriso. A jovem
fizera o comentário errado.
– Isso significa que não sou suficientemente bom para ti? –
perguntou o rapaz.
– Só quis dizer que… – começou ela. – Oh, deixa lá! Voltemos
para a tenda. A minha mãe deve andar a procurar-me.
Ouviu-se o som de alguém que tentava rodar a maçaneta da
porta.
– De qualquer maneira, esta maldita porta está fechada! –
verificou o rapaz.
– Vamos! – decidiu a jovem e começou a correr pelo caminho
arborizado.
Quando o silêncio voltou a reinar, Kim respirou fundo, olhou para
Travis e ambos desataram a rir.
– Amanhã toda a população adolescente de Edilean andará a
interrogar-se sobre o par que chegou em primeiro lugar à casa de
brincar.
– Afinal, éramos apenas nós, os velhos – replicou Travis.
– Fala por ti que estás quase a chegar aos trinta. Ainda tenho
muitos anos pela frente. – Kim moveu-se para a direita. – Vem por
aqui, mas baixa a cabeça. A ombreira da porta é baixa.
Travis seguiu-a para uma segunda divisão muito pequena que
tinha um pequeno divã embutido na parede.
Kim apontou para a cama.
– Estás a contemplar a capital do amor de Edilean. A interior,
claro.
– Se tiverem dois numa cidade tão pequena, Edilean merece que
a elejam a capital do amor mundial.
– Tem de se fazer alguma coisa de interessante numa cidade que
nem sequer dispõe de um centro comercial.
Travis riu enquanto Kim se sentava num dos extremos do divã e
lhe indicava com um gesto que se sentasse no outro. Ele teve
dificuldade em acomodar as pernas compridas num espaço tão
pequeno.
– Assim. Vês? Estica-te. Vês como nos encaixamos bem com as
pernas em paralelo?
– Sempre nos encaixámos muito bem – comentou Travis.
Kim ficou satisfeita por a escuridão lhe ocultar a expressão do
rosto. «Somos amigos», recordou-se.
– Bem, fala-me então de Joe Layton – pediu Travis num tom de
voz sério.
– Não o conheço muito bem, mas quando andávamos na
universidade mostrava-se muito autoritário com Jecca. No entanto,
para ser justa, todos os nossos pais o eram. A minha mãe nunca me
deixava à vontade. Queria saber com quem saía, a que horas
chegava e se já andava à procura de emprego.
– Ao que parece preocupava-se contigo. Como é agora?
– Exige saber com quem saio, a que horas chego e quanto faturo
semanalmente na loja.
Travis riu.
– E o teu pai?
– O meu pai é um torrão de açúcar. É o homem mais carinhoso do
mundo. Os meus pais e a minha irmã mais nova, Anna, estão num
cruzeiro e só voltam no outono.
– Então, estás sozinha na cidade?
– O meu irmão Reede está cá e tenho alguns parentes. – Teve a
sensação de que Travis estava a ser educado ao fazer-lhe tantas
perguntas sobre ela quando, na realidade, queria saber mais a
respeito do homem com quem a mãe queria casar-se. – Julgo que
Mister Layton é um bom homem, mas quem deve decidir é a tua
mãe, não? Pelo que contaste, não parece saber defender-se muito
bem.
Travis demorou algum tempo a responder.
– Quando eu era pequeno, a minha mãe era uma mulher muito
reservada. Julgo que aprendera que enfrentar o meu pai só servia
para piorar a situação. Se permanecesse em segundo plano, dava-
lhe a impressão de que dominava tudo e não veria necessidade em
reafirmar a sua autoridade.
– E quanto a ti? – interessou-se Kim. – Como era a tua vida?
Travis tentou mexer-se no pequeno divã, mas não havia espaço.
– Estou quase a cair desta coisa. Os teus pés… Importas-te? –
perguntou, ao mesmo tempo que lhe levantava os pés e os pousava
sobre a sua coxa.
«Antes morrer do que protestar pelo que ele acaba de fazer»,
pensou Kim.
– Ai! Desculpa, mas os saltos dos teus sapatos são muito afiados
e…
Kim nem um segundo levou a libertar-se das bonitas sandálias de
salto alto e a colocar novamente os pés sobre a coxa dele. Travis
começou a massajá-los como se fosse a coisa mais natural do
mundo. Nesse momento, Kim agradeceu ao Espírito dos Spas por ter
tratado das mãos e dos pés no dia anterior. Os calcanhares estavam
lisos e macios.
– Onde íamos? – perguntou Travis.
– Mmmm… – Kim não se recordava. Nunca recebera uma
massagem aos pés feita por um homem.
– Ah, sim. Questionaste-me sobre a minha vida. A verdade é que
tu mudaste tudo.
– Eu?
– A minha infância não foi como a das outras crianças. Vivíamos
numa mansão rodeada por um terreno enorme, a norte de Nova
Iorque. Foi construída por um empresário muito influente na
viragem do século passado e era o testemunho da sua ganância.
Tetos altíssimos e paredes forradas de painéis escuros por todos os
lados. Adequava-se perfeitamente ao meu pai. A minha mãe e eu
vivemos lá com inúmeros criados que se converteram na nossa
verdadeira família. Raras vezes víamos o meu pai, mas a sua
presença era uma constante.
Travis acariciava-lhe a planta do pé esquerdo com os polegares.
Kim tinha dificuldade em seguir a conversa.
– Até àquele verão em que o meu pai foi para Tóquio e a minha
mãe nos levou de carro para Edilean, ignorava que a minha vida não
era como a das outras pessoas. Ensinaste-me como viviam as outras
crianças, pelo que sempre me sentirei em dívida para contigo.
– Julgo que estás a saldar essa dívida neste momento. Travis,
onde aprendeste a fazer isso?
– Na Tailândia, parece-me – respondeu. – Ou talvez na Índia.
Algures. Agrada-te?
– Se desmaiar de prazer, não ligues.
– Não podemos ter isso, pois não? – disse, ao mesmo tempo que
lhe soltava o pé. – Fala-me mais de Joe Layton.
Kim suspirou, desiludida por ele ter parado de lhe massajar os
pés, mas endireitou-se.
– Não tenho mais respostas. Jecca queixava-se muito do pai, mas
também é doida por ele. Sei que é a menina dos seus olhos. Quando
era mais jovem, queria que estivesse sempre ao lado dele. Nas
primeiras férias de verão da universidade teve de suplicar-lhe quase
de joelhos que a deixasse vir visitar-me durante duas semanas.
Mister Layton examinava à lupa todos os homens para quem Jecca
se limitasse a olhar. Disse-me que Tristan, o homem com quem se
casou, deu um prédio ao pai como dote.
– Para abrir a sua loja de ferragens?
– Sim – anuiu Kim.
– A loja já está aberta?
– Não. Era necessária uma série de remodelações e reconstruções.
Mister Layton mandou vir uns amigos de Nova Jérsia para se
encarregarem de tudo. Teve uma grande discussão com Jecca, pois
ela dizia que havia bons empreiteiros em Virgínia, mas o pai não lhe
deu ouvidos.
– Parece ser um homem que gosta de levar a sua avante –
observou Travis, franzindo a testa. – O meu pai é assim. Tem de
dominar todas as situações.
– Crês que a tua mãe disse sim a Mister Layton porque…porque a
personalidade dele lhe é familiar?
– É isso que temo. Gostava de vê-los juntos, mas só se ele
desconhecesse a minha identidade.
– Bem pensado – aprovou Kim. – Se fores apresentado como o
filho de Lucy, Mister Layton dará o seu melhor. Nunca saberias se
era verdade ou não. – Levantou a cabeça. – A tua mãe concordaria
em…
– Não lhe dizer quem sou? – completou Travis. – É o que gostaria
de saber, mas não estou muito seguro. Considero as mulheres
extremamente imprevisíveis. A minha mãe tanto podia rir e aceder,
como irritar-se e questionar como me atrevo a pensar que conheço
melhor as pessoas que ela.
Kim desatou a rir.
– Falas como Mister Spock.
– É um habitante de Edilean?
– Não – respondeu ela. – É uma personagem de uma série de
televisão. Nunca pensas que há coisas que desconheces pela
educação que tiveste?
– Centenas de vezes – respondeu com sinceridade. – As pessoas
fazem referência a coisas de que nunca ouvi falar. Tenho de estar
atento à reação dos outros para saber se devo ou não rir-me. Mas
aprendi a nunca perguntar de que diabo estão a falar. Só assim
consigo que não me considerem um extraterrestre.
Kim riu ainda mais porque era exatamente o que ela fizera.
– Podes perguntar-me o que quiseres e tentarei informar-te.
– Vou ter isso em conta. – Travis fez uma pausa. – Portanto, diz-
me: o doutor Spock e Mister Spock são a mesma pessoa?
– Longe disso! O meu pai tem DVDs de episódios de O Caminho
das Estrelas e vou emprestar-tos.
– Gostaria muito – agradeceu Travis e reprimiu um bocejo. –
Desculpa, mas foi um dia muito comprido. Era minha intenção
chegar a meio da tarde para poder falar logo com a minha mãe. Mas
o meu pai quis que me encarregasse de um assunto e por isso
atrasei-me.
Kim virou-se e pousou os pés descalços no chão.
– Já comeste? Onde vais ficar?
– A menos que Edilean tenha um hotel e um restaurante abertos…
que horas são? Nove e meia?... terei de ir para Williamsburg.
Kim decidiu não pensar muito antes de continuar a falar.
– Tenho uma casa de hóspedes e um frigorífico a abarrotar de
comida. Na verdade, é a casa da piscina mas os antigos donos
prepararam-na para o filho, quando os visitava. Quando comprei a
casa, o meu irmão, Reede, garantiu-me que se instalaria lá, mas é
pequena de mais para ele. Alugou o antigo apartamento de Colin, o
xerife, mas também o odeia. Refiro-me a Reede não a Colin, embora
Colin também detestasse o apartamento.
Parou antes que fizesse mais figura de parva.
– Será uma honra – aceitou Travis em voz baixa. – Quanto ao
jantar, levar-te-ia a comer fora, mas…
– O velho cliché: aqui fecha tudo às nove. Até os passeios.
– Desde quando há passeios nas ruas de Edilean?
– Sinto-me ofendida! – reagiu Kim. – Há três anos que temos
passeios e no próximo ano vão instalar candeeiros elétricos.
– Aposto que o acendedor das luzes da rua já está a chorar por ir
ficar desempregado – disse Travis.
– É muito feliz desde que se casou com a filha do sapateiro
remendão.
Ambos desataram a rir.
TRÊS
Enquanto regressava a casa, Kim não deixava de pensar no regresso
de Travis. Olhava repetidamente pelo retrovisor para se certificar de
que a seguia. Ele conduzia um velho BMW que nem sequer tinha
transmissão automática. Talvez pudesse ensinar-lhe que a caixa de
mudanças era desnecessária.
Estava a morrer de ansiedade por lhe dirigir um milhão de
perguntas sobre o que fizera nos últimos anos, mas pensou que
seria melhor que ele lhe contasse na devida altura. Sabia que
trabalhava para o cabrão do pai – sorriu ao recordar o palavrão – e
que o pai tinha dinheiro. Mas, a julgar pelo carro, parecia que não o
partilhava com o filho.
Kim pensou no horror que devia ser a vida de Travis nesse
momento… e no motivo por que o fazia. Renunciar à própria vida
para proteger a mãe! Isso sim, era um ato de heroísmo!
Ao subir o caminho de acesso à casa, lembrou-se de que Travis
lhe tinha pedido ajuda e que prometera dar-lha.
Travis estacionou ao lado dela e saiu do carro.
– Não usas a garagem?
– Transformei-a num ateliê – respondeu, enquanto procurava a
chave de casa no porta-chaves.
– Então quando neva, chove, ou faz muito calor, o teu carro fica
cá fora? – Tirou-lhe as chaves da mão e abriu a porta.
– Sim – respondeu ao entrar em casa.
Acendeu os candeeiros junto ao sofá que ela e Jecca haviam
escolhido. A divisão estava decorada em tons de azul e branco.
Numa parede havia estantes e um televisor, com uma lareira por
baixo. O teto era alto e as grandes vigas brancas do telhado ficavam
à vista.
– Que bonito! – elogiou Travis. – É acolhedor. – Interrogou-se por
que razão a sua dispendiosa decoradora não podia ter feito algo do
género. Mas também não a ajudara, não lhe dissera do que gostava.
– Obrigada – agradeceu Kim, virando-se para que não a visse
sorrir. – A cozinha é por aqui.
– Kim, não precisas de dar-me de comer – disse. – Basta que me
deixes dormir aqui. Posso… – Interrompeu-se ao ver a cozinha. Abria
para a casa de jantar e era uma zona quente e acolhedora. Havia
uma enorme ilha de mármore rosa e caçarolas de cobre penduradas
numa parede. A mesa de jantar era grande e antiga, com marcas de
cortes de centenas de refeições.
– Gosto mesmo – comentou. – Vives aqui há muito tempo? –
Sabia a resposta porque tinha seguido a venda ao milímetro.
Dissera, inclusivamente, a Penny que fizesse uns telefonemas para o
banco onde Kim estava a solicitar a hipoteca. Queria certificar-se de
que tudo corria sobre rodas.
– Menos de um ano – respondeu ela.
– E conseguiste dar-lhe esta aparência em tão pouco tempo?
– Jecca e eu fizemos tudo. Nós… – Encolheu os ombros.
– Vocês as duas são artistas, portanto sabiam o que faziam. Em
que posso ajudar-te com o jantar?
– Em nada – respondeu Kim, mas interrogou-se sobre como ele
sabia que Jecca era artista. Tinha-lhe dito? – Senta-te enquanto te
preparo algo para comeres.
Travis sentou-se num banco no extremo mais afastado do balcão e
observou-a.
Kim sentia os seus olhos cravados nela quando começou a
procurar no frigorífico. A culpa invadiu-a porque toda a comida tinha
sido feita por Dave e pela sua equipa de catering, mas não havia
necessidade de contar a Travis. Dizer que tinha um namorado mais
ou menos fixo seria assumir que podia passar-se alguma coisa entre
ela e Travis. À exceção da massagem nos pés, não parecia
interessado em nada além da amizade. Olhava-a como se ela ainda
tivesse oito anos.
Colocou um individual no balcão, diante dele, e também um prato
juntamente com a faca e o garfo. A mãe tentara que Kim
economizasse dinheiro usando o serviço da avó, mas Kim tinha
recusado. «Só queres ver-te livre das velharias», dissera e o pai
contivera o riso. Por fim, a mãe oferecera o serviço a Colin e Gemma
Frazier como presente de casamento e eles tinham adorado.
– Porquê essa cara? – perguntou Travis e Kim contou-lhe.
– Gemma é historiadora e conhecia a história da empresa que
fabricou o serviço. Tratou os pratos como se fossem um tesouro.
– Mas tu não? – quis saber Travis.
– Gosto de coisas novas. O que te apetece comer?
– Qualquer coisa – respondeu ele. – Sou um omnívoro puro.
Colocou colheres em cada um dos cerca de doze recipientes de
plástico que retirara do frigorífico e deixou que ele escolhesse. Não
conseguiu resistir a sentar-se no banco ao lado dele e a vê-lo comer.
Travis fazia-o segundo o estilo europeu com o garfo virado na mão
esquerda e a faca na direita. Tinha modos de príncipe.
Sem o contraste entre sombras e as luzes a incidirem sobre ele,
Kim conseguiu detetar um pouco do ar angelical que tinha quando
era um rapazinho. Em adulto, o cabelo era negro-azeviche, os olhos
tão negros como a obsidiana, as maçãs do rosto angulares e o
queixo determinado. Aparentemente, não se barbeava há um ou
dois dias e a barba dava-lhe um toque mais perigoso. Na verdade,
pensava que nunca tinha visto um homem tão bonito.
Travis apercebeu-se de que ela o observava, apoiada num
cotovelo. Se não a distraísse, acabaria por lhe colocar a mão na nuca
e beijá-la.
– Não receias andar com um vestido desses?
– O quê? Ah, sim, claro. – Saiu do transe em que mergulhara
enquanto o observava. – Suponho que devia pôr algo mais
confortável.
Travis tossiu, como se quase se tivesse engasgado com a comida.
– Estás bem?
– Sim – respondeu. – Vou só acabar enquanto tu…
Kim levantou-se do banco com relutância.
– Claro, claro. – Percorreu rapidamente o corredor até ao quarto e
fechou a porta. – Estou a fazer figura de idiota – murmurou.
Tinha dificuldade em chegar ao fecho de correr das costas e por
um momento pensou em pedir a Travis que o desapertasse. O
pensamento causou-lhe uma risada tonta… que abominou.
– És uma criança de oito anos – disse em voz alta e começou a
despir-se.
Na cozinha, Travis suspirou de alívio. Ver Kim, tão bonita com
aquele vestido decotado e sentada a observá-lo de tão perto, fora
demasiado. Caso se encontrasse em circunstâncias normais, tê-la-ia
olhado de uma forma eloquente, dando-lhe a entender o seu
interesse. Sabia por experiência que mulheres que o olhavam como
Kim o fazia eram uma presa fácil.
«Mas o que aconteceria depois?», interrogou-se. «Começaria a
falar em casar?»
Honestamente, não lhe parecia que se importasse muito. Até
então, tudo o que o rodeava fazia com que se sentisse em casa. Ela,
a sua casa, inclusive os amigos que conhecera, davam-lhe uma
sensação agradável e acolhedora.
Mas o que se passaria quando ela descobrisse mais sobre ele,
sobre o seu passado, sobre a identidade do seu pai? Veria as
estrelas desaparecerem-lhe do olhar… e não o suportaria. Não, era
melhor deixá-la pensar que era um homem íntegro, que só praticara
boas ações na vida. Era melhor que nunca descobrisse a verdade.
Tinha acabado de comer quando Kim regressou vestida com
calças de ganga e uma T-shirt velha. Infelizmente, Travis achou que
ainda parecia mais bonita do que antes. Ocorreu-lhe que cometera
um erro ao aceitar o convite para ficar em casa dela. Levantou-se.
– Pronto para ires para a cama? – perguntou Kim.
Travis não respondeu. Limitou-se a assentir com a cabeça, mas,
quando Kim começou a andar na direção da porta das traseiras,
deteve-se paralisado. Não ia estar no mesmo quarto com ela e uma
cama.
– Porque não me dás a chave e me indicas o caminho?
– Mas preciso mostrar-te onde estão as coisas.
– Tenho a certeza de que encontrarei tudo. – Sorriu-lhe de uma
maneira que deixava claro que não aceitaria uma recusa.
Kim entregou-lhe o porta-chaves.
Seguiu-se um momento incómodo junto à porta das traseiras
quando se despediram. Kim inclinou-se, como se fosse beijá-lo na
face, mas ele esquivou-se. Por um momento, pensou que ia apertar-
lhe a mão, mas Travis deu-lhe uma palmada amigável no ombro
antes de sair da casa.
Enquanto guardava as sobras, Kim não conseguiu reprimir um
sorriso. Fora a primeira a vincar que eram amigos, portanto, não
podia queixar-se que Travis se cingisse às suas palavras.
Na manhã seguinte, acordou com o cheiro a comida acabada de
fazer e o seu pensamento foi: Travis! Vestiu-se apressadamente, pôs
um pouco de maquilhagem nos olhos, mas as sobrancelhas e as
pestanas sempre haviam sido demasiado claras. Censurou-se
mentalmente por não as ter pintado antes da boda. Mas depois
ocorreu-lhe a suspeita de que Travis gostava de mulheres com uma
maquilhagem natural. Precisou de aplicar três camadas de castanho
para conseguir esse olhar.
Vestiu umas calças pretas e uma camisa branca e dirigiu-se à
cozinha. Parou na ombreira e avistou Travis de costas para ela, a
cozinhar algo no seu fogão novo. Vestia calças de ganga e uma
camisa também de ganga. Não sabia ao certo, mas parecia ter um
corpo magnífico por baixo da roupa.
– Bom dia – disse.
Travis virou-se com a frigideira na mão e sorriu-lhe. Kim sentiu um
repentino desejo de lhe rodear a cintura com os braços. Por um
momento, teve a sensação de que não se importaria, mas depois ele
desviou o olhar.
– É a minha vez de te alimentar – disse, ao mesmo tempo que
acenava com a cabeça para a zona da cozinha onde havia posto um
lugar.
– Não comes?
– Levantei-me há umas horas e comi nessa altura. Espero que não
te importes que tenha dado umas voltas na piscina.
Kim lamentou profundamente não o ter visto em calções de
banho.
– Fico feliz por alguém a usar. A piscina foi a minha única dúvida
quando comprei a casa. Gostei da disposição e adorei a garagem
com estacionamento para três carros e que podia servir para o meu
trabalho, mas não sei como cuidar de uma piscina.
Travis deslizou uma omeleta para o seu prato.
– Foi o que me pareceu e por isso limpei-a um pouco e verifiquei o
pH. Havia alguns produtos químicos no armário e servi-me deles.
Espero não ter abusado.
– Fica à vontade – reagiu Kim com os olhos cravados no prato.
Travis preparara-lhe uma omeleta com pimento e cebola e duas
fatias de pão de trigo integral. – A comer desta maneira vou
engordar – acrescentou e esperou que ele fizesse qualquer
comentário simpático.
Mas Travis não pensava comentar o corpo de Kim. Estava
fantástica! Crescera mais do que ele esperara e tinha a altura
perfeita. A camisa branca ajustava-se ao corpo e as calças pretas
delineavam o traseiro.
O silêncio dele ante o incentivo fez com que Kim pensasse que
não sabia agir com uma mulher.
– O que vais fazer hoje? – perguntou.
Nessa manhã, o primeiro pensamento de Travis fora ligar à mãe e
dizer-lhe que estava em Edilean. Combinaria encontrar-se com ela
em qualquer lugar privado para falarem do divórcio, do homem com
quem queria casar-se e do que planeava fazer com a sua vida.
Depois passaria as três semanas seguintes a preparar-se para o
processo de divórcio que indubitavelmente seria primeira página em
todos os jornais.
Porém, ao olhar para Kim, tentou encontrar um motivo para
retardar todo o mal que aí vinha.
– E tu? O que tinhas planeado?
– Queria ir à igreja se me levantasse a horas.
Kim consultou o relógio. Ainda tinha tempo para se arranjar e ir à
missa, mas isso significaria afastar-se de Travis. Pensou que era
muito possível que, quando voltasse, ele já tivesse ido embora.
Provavelmente, falaria com a mãe, ficaria tranquilo ao saber que Joe
Layton era bom homem e depois regressaria a…onde quer que
vivesse. Para junto de com quem vivia, mas que não considerava o
seu lar.
Rebuscou na mente uma razão para fazê-lo ficar – e para estar
com ele.
– Tenho a certeza de que queres ver a tua mãe, mas talvez
devesses dar uma vista de olhos à nova loja de ferragens de Mister
Layton antes disso.
Travis sorriu como se ela tivesse dito algo brilhante.
– Parece-me uma ótima ideia. Pode saber-se muitas coisas sobre
um homem ao ver o local onde trabalha. – Motivo pelo qual no seu
gabinete não havia objetos pessoais, pensou, mas não o disse em
voz alta. – Importas-te de me acompanhar? Se estás demasiado
ocupada, podias fazer-me um desenho. Podias…
– Gostaria muito! – exclamou. – Iremos no meu carro. Podes
aguardar-me um momento? Preciso de fazer uma chamada primeiro,
mas depois estarei pronta.
Mal fechou a porta do quarto, Kim telefonou a Carla, a sua
assistente.
– Está? – atendeu Carla, obviamente ainda meio adormecida.
– Sou eu – sussurrou Kim, sem se atrever a levantar a voz. –
Preciso que termines as alianças do casamento dos Johnson hoje.
– O quê? Não estou a ouvir-te.
Kim entrou no closet e fechou a porta.
– Carla, por favor, acorda. Preciso que termines um par de
alianças por mim.
– É domingo, Kim. Estive no casamento até depois da meia-noite.
Bebi de mais.
– Também eu – replicou Kim –, mas as alianças têm de ficar
prontas hoje. O casamento é amanhã.
– Mas eras tu que ias fazê-las e…
– Eu sei – interrompeu-a. – Sou uma patroa do pior e preguiçosa,
mas surgiu algo. Uma emergência. Preciso que venhas até cá e as
termines no meu lugar. Já estão moldadas; só tens de as limar e
polir.
Carla gemeu.
– São horas de trabalho e é domingo.
– Dou-te um dia e meio de folga.
Carla manteve-se em silêncio.
– Okay. Dois dias – emendou Kim. – Mas preciso delas para hoje.
De acordo?
– De acordo – disse Carla. – Mas quero a sexta dezoito de folga e
mais dois dias pelo de hoje.
Kim fulminou o auscultador com o olhar. Oh, como sonhara em ser
a patroa, fixar o seu próprio horário e obrigar os funcionários a
cumprir as suas ordens!
– Muito bem – acedeu Kim. – Sabes onde está a chave da
garagem, por isso vem até cá e deita mãos à obra.
– Tens algum encontro escaldante? – quis saber Carla. – Dave vai
pedir-te em casamento? Vais desenhar a tua própria aliança?
Kim não pensava falar a Carla sobre Travis.
– Tenho de desligar. Amanhã recorda-me para encomendar mais
vermelho.
– Para a tua cara ou para as joias?
Kim fez uma careta. O sentido de humor de Carla deixava
frequentemente as pessoas de cara à banda.
– Vemo-nos amanhã – disse e desligou.
Uns minutos depois estava no salão. Travis sentara-se na grande
poltrona azul-escura junto à otomana a condizer e lia o jornal de
domingo. Fora Jecca quem tinha escolhido aquela poltrona.
«É para o homem da tua vida», decidira a amiga.
«Qual deles?», replicara num tom sarcástico.
«Para o que vai surgir e enlouquecer-te.»
«Como te aconteceu com o Tris na festa de boas-vindas a
Reede?»
«Isso mesmo», respondera Jecca com um suspiro sonhador e Kim
percebeu que conseguira desviar-lhe a atenção.
Kim sentou-se tranquilamente no sofá e pegou na revista de
domingo.
Minutos depois, Travis perguntou sem erguer os olhos:
– Pronta?
– Quando quiseres – respondeu, mas sem pressa de se levantar.
Por norma, aos domingos de manhã, costumava arranjar-se
rapidamente para ir à igreja, atendia os telefonemas da mãe e
pensava no trabalho que precisava de fazer na semana seguinte. As
tardes de domingo eram mais tranquilas. Os ex-namorados, os que
tinham profissões normais, faziam-lhe por vezes uma visita, mas
Dave estava sempre ocupado nos fins de semana. Desde que o
conhecera que passava os fins de semana sozinha.
– Pareces estar a quilómetros de distância – observou Travis.
Kim sorriu.
– Estava a pensar que costumo trabalhar aos domingos.
– Não parece muito divertido – disse ele.
Estava a repetir as palavras que ela há muito tempo lhe dirigira.
– Posso atestar que não é nada divertido – replicou, citando a
resposta dele e ambos riram.
– Vamos ver no que se está a meter a minha mãe?
– Dado que não queres ser visto, que tal se formos por um
acesso? Há um velho caminho pela floresta, mas ignoro se está
transitável. Vou tentar que não fiquemos atolados.
Travis conservava o porta-chaves dela.
– Nesse caso, que tal se for eu a conduzir? Levaremos o meu
carro velho para não estragar o teu tão bonito e novo.
– Muito bem – acedeu, embora hesitante.
A zona que rodeava Edilean era agreste. Tratava-se de uma
reserva natural, conservada pelo estado de Virgínia, mas sabia que
os seus primos se encarregavam de cuidar dos trilhos. A questão
residia em saber se alguém se debruçara sobre esse caminho em
particular nos últimos anos.
Minutos depois, Travis e ela encontravam-se no seu velho BMW,
parados no início de um trilho que parecia intransitável há anos.
Havia buracos, sulcos, pedaços de rochas e um tronco que ocupava
metade do caminho.
– Creio que devíamos dar a volta e seguir pela estrada principal –
disse Kim. – Vou informar o Colin e ele manda arranjá-lo.
– Colin?
– O xerife. É possível que o tenhas visto no casamento. É um
homem muito alto de cabelo preto.
– A mulher está grávida?
– É ele. Conheceram-se?
– Mais ou menos – respondeu Travis, pensando no risco que as
palavras de Kim implicavam. O xerife perguntaria porque queria que
limpassem o acesso e porque tinha descoberto que estava
intransitável. Mas, se não tomassem esse caminho, haveria outras
complicações. Se Kim atravessasse a cidade sentada ao lado de um
desconhecido ia suscitar a curiosidade de todos… e nem pensar em
esconder-se no porta-bagagens!
– Podíamos ir a pé – sugeriu Kim. – São apenas uns três
quilómetros até ao edifício.
– Tens calçadas umas sandálias lindíssimas – elogiou Travis.
– Obrigada. Acabo de comprá-las. São Born e adoro as solas.
São… – Interrompeu-se. – Ah, já percebi. Ficariam estragadas se
fôssemos por esse caminho.
– Kim… – começou lentamente, fitando-a nos olhos.
Quase podia ler-lhe a mente. Travis queria aventurar-se por
aquele velho caminho. Se seguissem devagar e com cuidado, talvez
conseguissem. Se a condução se tornasse demasiado perigosa para
ele, podiam continuar a pé… e talvez Travis acedesse a levá-la às
cavalitas. Verificou se o cinto de segurança estava bem colocado.
– Depois de arrancar, não posso parar – avisou-a. – Este carro não
tem tração às quatro rodas e se abrandar ficaremos presos.
– Então terias de chamar um dos Frazier para o desempanar.
– Um Frazier?
– Um parente do xerife. Eles percebem de carros.
– A sério? – Do ponto de vista de Travis, o caminho não oferecia
problemas. Poderia danificar a parte inferior da carroçaria, mas
talvez conseguisse evitar isso. A questão era se uma mulher como
Kim aguentaria ou não. – O xerife conduziria por um caminho assim?
– O Colin? Estás a brincar? Até subiria a montanha. Ele é quase
sempre o primeiro a chegar ao local quando alguém necessita de
ajuda. Não me canso de dizer-lhe que grande equipa faria com o
Reede. O meu irmão desce por cabos de helicóptero para salvar
pessoas. Ele…
Travis fitou-a de uma forma tão estranha que Kim se interrompeu
a meio da frase.
– É como andar de bicicleta, certo? Há que fazê-lo mesmo que se
bata com a cara no chão.
Travis sorriu-lhe porque a entendeu completamente. Por outro
lado, a conversa dela sobre o que outros homens eram capazes de
fazer feriu-lhe o ego.
– Entro em jogo, se entrares.
– Se o fizermos, tens de confiar em mim – replicou Travis num
tom sério.
– Não me montei no teu guiador enquanto subias o monte de
terra?
Travis brindou-a com um sorriso que levou Kim a desejar beijá-lo.
Havia um misto de gratidão e de prazer no seu olhar.
– Muito bem – concordou, enquanto observava o caminho através
do para-brisas, com a mão na alavanca das mudanças. – Pousa uma
mão no descanso do braço, outra aqui e agarra-te bem. Não grites.
Os gritos desconcentram-me.
Ao ouvir o último comentário, Kim arregalou os olhos e uma parte
dela queria dizer: «Deixa-me sair!» Mas não o fez. Colocou as mãos
onde ele havia indicado, firmou os pés no chão e em seguida
assentiu com a cabeça. Estava pronta.
Com um sorriso, Travis meteu a primeira e arrancou. Kim verificou
surpreendida que começou a acelerar e não abrandou em nenhum
momento. Com uns reflexos rapidíssimos, rodeou buracos ou
passou-lhes por cima com mestria. Quando um tronco lhes bloqueou
o caminho, Travis saiu do trilho. O carro inclinou-se para a esquerda
uns quarenta e cinco graus, na opinião de Kim, enquanto avançavam
direitos a um carvalho gigantesco. Kim sentiu um desejo enorme de
gritar. Queria avisá-lo de que estavam prestes a bater, mas susteve a
respiração – e manteve os olhos abertos.
Travis guinou para a esquerda no último momento e passou a
rasar a árvore, a um escasso centímetro. Estava tão perto que o
suspiro de Kim soou a um guincho de um rato.
Travis continuou a acelerar enquanto carregava na embraiagem e
metia outra mudança. Quando bateu num montículo resultante de
anos de ervas daninhas acumuladas e do tronco apodrecido de uma
árvore, as quatro rodas ergueram-se do chão.
Enquanto voavam pelo ar, Kim pensou que a sua vida acabaria ali.
Olhou para Travis, a última pessoa que veria.
Ele virou um pouco a cabeça com um brilho de euforia nos olhos
negros e… brindou-a com uma piscadela.
Se não estivesse tão aterrorizada, Kim teria rido.
Quando o carro aterrou no solo, todo o seu corpo abanou, mas ele
continuou ao que lhe parecia a velocidade da luz.
Travis voltou a sair da estrada, seguindo pela borda, em seguida
guinando para a esquerda e depois para a direita sem parar.
Por fim, surgiu diante deles a parte de trás da antiga fábrica de
tijolos. Mas Travis não abrandou. Rodeou-a e passou por cima de
mais três buracos.
A parede sólida do edifício de tijolo encontrava-se mesmo em
frente e Travis voava na sua direção.
Ao avistar outro monte de detritos no caminho, Kim teve de se
esforçar novamente para não gritar.
– Aguenta-te, miúda – disse Travis e bateu no obstáculo a toda a
velocidade. Voaram mais uma vez e aterraram do outro lado, mas
continuavam a avançar direitos ao edifício.
Travis virou o volante com tanta força para a esquerda que ela
teve a sensação de que desconjuntaria os ombros. O carro derrapou
até parar tão perto do edifício que Kim poderia tocar-lhe, se baixasse
o vidro da janela. Mas não se moveu. Estava pregada ao assento.
Tinha o corpo totalmente rígido devido ao que acabara de
experimentar.
– Não foi assim tão mau – concluiu Travis e desligou o motor. –
Nem sequer metade do que pensei que seria. – Fitou-a. – Kim, estás
bem?
Ela permaneceu onde estava, olhando em frente e as mãos
brancas de agarrarem as pegas. Duvidava que as pernas voltassem
a funcionar.
Travis saiu do carro e deu a volta para abrir a porta do lugar do
pendura. O edifício estava tão perto que a beira da porta quase lhe
roçou. Quase. Ainda havia cerca de um centímetro de distância.
Havia realizado uma paragem milimétrica.
Quando Travis abriu a porta, Kim não soltou a mão e tinha o braço
tão rígido que ele não conseguiu abrir totalmente a porta. Apartou-
lhe os dedos devagar e um por um.
Quando por fim abriu a porta, inclinou-se sobre ela, soltou-lhe a
outra mão e em seguida desapertou o cinto de segurança. Mas ela
continuava rígida, no banco.
Inclinou-se mais, passou um dos braços por trás dos seus ombros,
o outro por baixo dos joelhos, e tirou-a para fora do carro.
Transportou-a até à sombra de uma árvore, sentou-a num banco de
madeira vazio e manteve-a ao colo.
– Não queria assustar-te – disse, ao mesmo tempo que encostava
a cabeça de Kim no seu ombro. – Pensei que… – Nesse momento
não sabia no que estava a pensar. Relacionara-se com demasiadas
mulheres que apenas desejavam emoções. Mais uma vez, tinha feito
asneira.
Kim começou a sair do estado de choque. Mas o seu primeiro
pensamento foi que não desejava que Travis a soltasse. Queria
manter-se no seu colo o tempo necessário para que a beijasse.
– Queres que te leve ao teu irmão? – perguntou em voz baixa.
Kim ignorava a razão da pergunta até se recordar de que Reede
era médico.
– Estou bem – garantiu.
– Não me parece. – Afastou-lhe a cabeça do ombro e fitou-a.
Estava pálida e mantinha os olhos muito abertos. Parecia aturdida,
mas, ao mesmo tempo, viu algo mais nos seus olhos.
Afastou-se um pouco e observou-a.
– Divertiste-te, não foi?
– Nunca tinha feito algo do género – respondeu. – Foi…
Não precisou de completar a frase. Travis leu-lhe tudo no rosto. O
trajeto por aquele velho caminho fizera com que se sentisse viva.
Era como ele se sentira naquele primeiro dia em que montara na
bicicleta de Kim.
Com um sorriso, Travis pousou-a no chão.
– Bem. Então como vamos entrar aqui? – perguntou, ao mesmo
tempo que se punha em marcha.
Kim seguiu-o ainda um pouco zonza. Sentia as pernas fracas e a
cabeça cheia de imagens do que acontecera no carro. Via a árvore
ao encontro deles e a guinada brusca antes de chocarem. Por duas
vezes, Travis pusera o carro a voar, levantando as quatro rodas do
chão.
– Há um sistema de alarme?
Teve de pestanejar para vê-lo bem.
– O quê?
– Sabes se há um sistema de alarme no edifício?
– Não faço ideia. – Enquanto se aproximava dele, esteve quase a
cair quando as pernas cederam, mas conseguiu equilibrar-se.
– Vou dar uma espreitadela – disse ele com um brilho travesso no
olhar, como se soubesse algo que ela desconhecia. – Fica aqui. Não
demoro nada.
– Okay – anuiu Kim. – Mas, se precisares de ajuda, conta comigo.
– Não me esquecerei.
Sorrindo, Travis rodeou o edifício. Dera-se conta de que a tinha
assustado imenso no caminho. Era o tipo de coisa que fizera
centenas de vezes no seu trabalho como duplo em Hollywood e que
consistia em levar o público a acreditar que o protagonista era capaz
de fazer mesmo tudo. Mas Kim não tinha gritado, embora se tivesse
apercebido de que por vezes estava aterrorizada. Caso em algum
momento sentisse que perdera o controlo teria parado, mas isso não
aconteceu. Agradava-lhe que Kim se houvesse mostrado tão valente
e agradava-lhe sobretudo a confiança que demonstrara nele.
Kim regressou até ao enorme banco de madeira e sentou-se.
– Parece que aprendeu um monte de coisas desde que montou a
minha bicicleta – disse em voz alta.
Continuava sentada de olhos fixos no velho BMW, surpreendida
por o carro não se ter incendiado de protesto, quando viu abrir-se
uma porta do edifício. Esperava ver Mr. Layton, mas foi Travis que
apareceu.
– Não há alarme – anunciou. – Vem.
– Como entraste? – perguntou, enquanto se aproximava.
– Deixou uma janela aberta e trepei. Precisa de um sistema de
segurança melhor.
Kim só tinha estado no velho edifício uma vez e fora antes do
início dos trabalhos de reconstrução. Jecca dissera-lhe que o pai
tinha organizado os trabalhadores de Nova Jérsia em turnos
permanentes de vinte e quatro horas. O que quer que tivesse feito,
a transformação era impressionante.
Encontravam-se numa ampla divisão com tetos altos e caixotes a
toda a volta. A julgar pelo que estava escrito no cartão, deviam estar
cheios de equipamento e de ferramentas.
– Parece que manteve ocupadas algumas empresas de transporte
– constatou Travis de sobrolho franzido.
– Porquê essa cara?
Travis hesitou.
– Somos amigos, lembras-te? Partilhamos segredos.
Fitou-a com um sorriso.
– Não me é fácil lembrar, mas tentarei. A minha mãe…Bom,
quando fugiu do meu pai, levou com ela algum dinheiro.
– Seis ou sete números.
– Múltiplo de sete.
– Uau! – exclamou Kim que percebeu subitamente porque Travis
franzira o sobrolho. – Pensas que talvez Mister Layton tenha usado o
dinheiro da tua mãe para… para comprar tudo isto? – sugeriu,
abrangendo tudo com um gesto da mão.
– Conheces algum dono de uma loja de ferragens que pudesse
dar-se ao luxo de adquirir tudo isto?
– Não – respondeu, mas na verdade sabia bem quanto custava
montar um negócio.
O seu pequeno ateliê de joalharia tinha um quarto do tamanho
daquela divisão e para consegui-lo necessitara de pedir um
empréstimo a um banco, pedir dinheiro emprestado ao pai e esgotar
o limite dos seus cartões de crédito. Só conseguira pagar tudo há
um ano. Tinha celebrado voltando a endividar-se ao comprar uma
casa um pouco além das suas posses. No início, o banco recusara
conceder-lhe a hipoteca, mas depois o presidente do banco tinha-lhe
telefonado pessoalmente e comunicara que teriam muito prazer em
financiá-la. Nunca obtivera confirmação, mas tinha a certeza de que
fora o pai a conseguir tudo.
Mas Kim não contou nada disso. Jecca era a sua melhor amiga e
estavam a falar do pai dela.
Kim percorreu a ampla divisão com o olhar e reparou que, no alto,
por cima das vigas e aço expostas, havia uma janela aberta. Tudo o
resto parecia hermeticamente fechado.
– Entraste por aquela janela?
Travis não ergueu os olhos.
– Sim.
Continuou a ler as etiquetas das caixas. Serras, ferramentas
básicas, geradores, utensílios de jardim. Mesmo a preços de saldo,
aquilo custara uma fortuna. A mãe teria falado a esse tal Layton do
dinheiro que havia escondido? A mãe sabia que Travis controlava a
sua conta, portanto, talvez o tivesse usado como garantia para
comprar as ferramentas do homem.
– Travis? – chamou Kim. – Essa janela está pelo menos a seis
metros de altura. Como conseguiste chegar-lhe do lado de fora e
descer para o interior?
– Trepei – respondeu ele, distraído. – Vou dar uma vista de olhos.
Kim seguiu-o até uma divisão mais pequena que tinha duas casas
de banho bastante espaçosas. Travis passou junto delas, mas Kim
parou. Sabia que Jecca tinha enviado ao pai projetos que deviam ser
executados pelos operários de Nova Jérsia.
Para conservar o estilo de Edilean, e tendo em conta que o edifício
fora uma fábrica de tijolos, Jecca usara uma paleta de cores em que
predominavam o creme e o azul-acinzentado. Deixara os tijolos
expostos onde era possível e decorara-os com aquele azul-claro que
tanto agradara aos colonos. Kim não tinha a certeza, mas apostaria
que tinha sido Lucy Cooper a confecionar as cortinas.
Com um sorriso, Kim foi ver onde Travis se tinha metido.
Encontrou-o na divisão a seguir que continha três gabinetes com
janelas para a sala principal. Tentou abrir as portas, mas estavam
fechadas à chave.
– Gostava de entrar no computador dele e ver de onde saiu
dinheiro para tudo isto – expressou, fitando Kim com um olhar
interrogativo.
– Não sei como piratear um computador.
– Nem eu – replicou como se pensasse que a sua educação era
defeituosa.
– Fico feliz por saber que há alguma coisa que não sabes fazer –
murmurou Kim. Até então, Travis tinha-lhe limpado a piscina,
preparado o pequeno-almoço, conduzido como se tivesse saído de
um filme de ação e escalado uma parede de tijolos.
Correu atrás dele. Travis estava de pé numa comprida sala estreita
com janelas que davam para a frente. Tinha uma expressão
imperscrutável. Não havia nada nessa sala, nem caixas, nem
secretárias, apenas paredes nos três lados e janelas no outro.
Kim aguardou, mas ele continuava a observar, sem pronunciar
uma palavra.
– Queres ver a sala que Mister Layton planeara para uso da Jecca?
Ela gosta de pintar e tem qualidade no que faz, portanto ia preparar-
lhe um estúdio. Mas Jecca disse que nunca conseguiria pintar se
estivesse tão perto do pai. Disse que a obrigaria a trabalhar para ele
porque, estás a ver, a Jecca sabe como desmontar motosserras.
Também consegue montá-las.
Travis examinava a divisão como se estivesse em transe e Kim
achava que não tinha ouvido uma única palavra do que havia dito.
– Mas Jecca preferia criar unicórnios rosa e não aceitou a oferta
do pai.
– Onde conseguiu arranjar um casal para procriar?
– O quê?
– De unicórnios rosa? – replicou Travis.
– Julguei que não estavas a prestar atenção.
– Não te disse que sou um bom ouvinte?
Ambos sorriram. Tinham sido crianças e somente passado duas
semanas juntos, mas os dois recordavam cada minuto daquela fase
da sua vida.
– Sabes que destino Layton planeia dar a esta sala? – perguntou
ele.
– Não faço ideia. Porquê?
Travis dirigiu-se às janelas viradas para o enorme parque de
estacionamento.
– Onde se compra aqui equipamento para o ar livre?
– Referes-te a canas de pesca?
Travis sorriu.
– Estava mais virado para equipamento de escalada e canoas.
Onde conseguem os guias locais o seu equipamento?
Kim pestanejou.
– Guias? – articulou finalmente.
– Edilean está rodeada de florestas incríveis. Vi online um local
chamado Stirling Point.
– É onde os casais se encontram ao ar livre – disse Kim, mas
Travis limitou-se a fitá-la. – A casinha de brincar é o ponto de
encontro com teto e…
– Entendo – interrompeu-a com uma expressão séria. – Segundo
vi na net, podem fazer-se caminhadas, passeios de barco, pesca e
alguma escalada na reserva. Onde compram as pessoas o
equipamento?
– Não sei – disse Kim uma vez mais em resposta às suas
perguntas. – Em Virginia City, Norfolk, ou talvez em Richmond. Em
Williamsburg decerto vendem-se essas coisas.
– Mas não há nada em Edilean?
– Nem uma loja de canoas.
Travis não sorriu.
– Interessante. Bem, onde fica o estúdio de unicórnios da tua
amiga?
Kim abriu a porta de comunicação para uma sala ampla e arejada,
com janelas viradas para a parte traseira do edifício e com vista para
os bosques. Tal como a outra, estava vazia. Tinha sido restaurada e
o chão renovado. Todas as janelas eram novas, algumas ainda com
os plásticos de proteção.
– Genial – comentou Travis em voz baixa. – Mesmo genial.
Kim pôs-se diante dele.
– Quero saber o que estás a pensar.
Travis virou costas por um momento.
– Quanto mais ouço sobre Layton, mais preocupado fico. Disseste
que é capaz de pressionar até levar a sua avante. Ele…
– Não – interrompeu-o Kim. – Disse que pressionava a Jecca. É o
que fazem os pais. Dizem que é para nosso bem. A minha mãe
pressiona-me. O teu pai não usa tudo o que tem ao alcance para
que faças o que ele quer?
– A toda a hora – respondeu Travis. – Mas isso não vem ao caso.
Não sei se vou conseguir que a minha mãe aceda, mas talvez possa
alugar estas duas salas para abrir uma loja de desporto. «E arranjar
alguém que as dirija», pensou.
Kim sentiu que o coração lhe subia à boca. Isso significava que ele
ficaria em Edilean. Mas depressa lhe passou o entusiasmo.
– Ah! – exclamou. – Será uma montagem. Convencerás a tua mãe
a emprestar-te o dinheiro para fingires que vais abrir uma loja para
estares próximo de Mister Layton.
Travis ficou perplexo ao ouvi-la, sobretudo relativamente ao
dinheiro, mas depois recordou-se do carro que Penny lhe tinha
comprado. Contar a Kim a verdade seria falar-lhe do seu pai. Não
queria fazê-lo e assistir à sua mudança de expressão.
– Mais ou menos – concordou.
Ouviram a porta de um carro a fechar-se.
– Fica aqui – disse Travis e dirigiu-se à sala contígua para
espreitar pelas janelas da frente. Regressou segundos depois.
– É um homem. Parece um bloco de granito com uma pedra em
cima.
– É Mister Layton – garantiu Kim.
– Um homem desse tamanho com a minha mãe tão pequena… –
Abanando a cabeça, deu um passo em frente, mas parou e virou a
cabeça. – Vamos – disse, pegou-lhe na mão e correram para a porta
das traseiras.

– Ele não é real – disse Kim em voz alta para si mesma, enquanto
limpava o balcão da cozinha. – Não é real e não vai ficar –
acrescentou para ter a certeza de que ouvia a sua própria voz.
Umas horas antes, Travis e ela tinham saído a correr pelas
traseiras do que viria a ser a Bricolagem Layton para se refugiarem
no bosque.
– Ele vai ver o teu carro – avisou Kim ofegante, enquanto se
apoiava ao tronco de uma árvore e o fitava.
Travis era tão alto e tão viril! Ainda não conseguia acreditar que o
jovem em que tinha pensado ao longo dos anos se convertera
naquele magnífico espécime de virilidade. A camisa colara-se ao
tronco, permitindo adivinhar os músculos. «O que faria para ter uma
musculatura daquelas?», interrogou-se. «Passava seis horas por dia
num ginásio?»
Quando Travis olhou para ela, desviou o rosto. Não queria
observar novamente aquela sua expressão indicativa de que a via
como uma menina.
– Só se sair pelas traseiras! – replicou Travis com um sorriso. –
Espera aí!
Puseram-se à escuta e ouviram o som da relva a ser pisada.
– Vai-se embora! – disse Travis. – Voltamos?
Kim percorreu os olhos pelo bosque. O que lhe apetecia era
caminhar com ele por entre as árvores e…
– Kim?
– Já vou – respondeu e percorreu atrás dele os escassos metros
que os separavam das traseiras do grande edifício de tijolo.
Travis abriu-lhe a porta do carro, antes de se pôr atrás do volante.
– Regressamos pelo mesmo caminho, certo? – perguntou ele.
– Mas agora é a minha vez de conduzir.
Travis soltou uma gargalhada.
– Então é melhor irmos pela estrada principal.
– Cobarde! – acusou-o e riu também.
Travis levou-a de regresso a casa, acompanhou-a até à porta,
destrancou-a, mas não entrou.
– Preciso de ir ver a minha mãe – explicou. – Temos de falar sobre
algumas coisas.
– Claro – anuiu Kim e entrou em casa. Não duvidava de que,
quando voltasse, Travis lhe diria que ia deixar a cidade e que gostara
de voltar a vê-la.
O seu telemóvel tocou assim que fechou a porta.
– Tiveste saudades minhas? – perguntou Dave.
Passara-se tanta coisa no último dia e meio que quase não lhe
reconheceu a voz.
– Claro que sim – afirmou. – E tu?
– Ainda mais quando não respondeste às minhas mensagens.
Kim afastou o telemóvel do ouvido e carregou numa tecla. Tinha
quatro mensagens de voz.
– Desculpa – pediu. – Tenho estado tão ocupada que nem fui ver
a caixa de mensagens.
– Eu sei. Com o casamento dos Johnson, não é?
«Oh, não!», pensou Kim. «As alianças. Por favor, por favor, que
Carla se tenha lembrado de fazê-las», implorou. Encaminhou-se para
a porta da garagem.
– Sim, o casamento – confirmou. Acendeu a luz. Em cima da
bancada de trabalho estavam duas alianças em ouro, com as
intrincadas superfícies polidas na perfeição. – Graças a Deus! –
murmurou entre dentes ao sair do ateliê. – E tu, que contas? Estás
muito ocupado?
– Se tivesses ouvido as minhas mensagens, embora não esteja a
queixar-me, saberias que me encontro atolado de trabalho. Mas
estou a fazer o possível para me escapar no fim de semana.
Apagou a luz e fechou a porta.
– Oh?
– Kim! – exclamou Dave. – Até parece que te esqueceste. O fim
de semana?
– Ah, sim, claro – respondeu. Tinha-se esquecido por completo.
Mas a ideia da viagem não partira de si, mas dos seus amigos e
familiares.
– Fizeste as reservas, não?
Deu uns passos na direção da secretária colocada num canto da
cozinha e examinou a reserva impressa. Um quarto duplo no B&B
Sweet River, em Janes Creek, Maryland, para as noites de sexta,
sábado e domingo no fim de semana seguinte. Carla tinha-lhe dito
que pensava que Dave tencionava pedi-la em casamento enquanto
estivessem lá. Era verdade que praticamente se convidara para a
acompanhar.
«Só o conheço há seis meses», contestara Kim, de cenho franzido.
«Pediu-me para ir comigo porque quer afastar-se uns dias da
empresa de catering.»
«Claro, claro», reagira Carla. «Esqueces-te que conheço a sua
última namorada. Nunca lhe dedicou um fim de semana e estiveram
juntos mais de dois anos.»
Kim dissera que precisava de… Como não lhe ocorrera uma
desculpa, limitara-se a sair da sala.
– Kim? – perguntou Dave. – Continuas aí?
– Sim. Só que um amigo de infância apareceu inesperadamente e
está hospedado na casinha da piscina.
– Deve ter sido uma surpresa muito agradável – reagiu Dave –,
mas, Kim, nada de amigos este fim de semana. Quero-te só para
mim.
– Combinado – anuiu e, depois de mais algumas frases, Dave
disse que tinha de desligar, pois acabavam de fazer uma entrega de
mais de dez quilos de camarão.
Meteu o telemóvel no bolso e pôs-se a limpar a cozinha, sem
deixar de olhar para o relógio. Não fazia sentido que estivesse
nervosa quanto ao tempo que Travis passaria com a mãe, mas assim
era.
Passou uma hora, depois duas. No começo da terceira hora,
convenceu-se de que não voltaria a vê-lo. Quando Travis bateu na
porta de vidro das traseiras, sobressaltou-se e depois presenteou-o
com o seu melhor sorriso.
Travis não parecia estar de bom humor, uma suspeita que se
confirmou quando se sentou num dos bancos do bar e perguntou:
– Tens uísque?
Serviu-lhe um copo de McTarvit, o uísque de malte que tinha
sempre para os primos.
Travis bebeu-o de um trago.
– Queres falar sobre isso? – perguntou em voz baixa. Quando a
fitou, Kim viu a dor refletida nos seus olhos.
– Alguma vez tiveste a sensação de que a coisa que mais temes
na vida está a tornar-se realidade?
Queria responder que temia ser uma empresária cinquentona sem
vida pessoal e, de momento, era esse o caminho que levava.
– Já – respondeu. – É o que pensas que está a acontecer-te?
– É o que parece pensar a minha mãe.
Esperou que adiantasse conversa, mas ele manteve-se em
silêncio. Quando eram pequenos, Travis dizia sempre o mínimo
possível e era a Kim que coubera arrancar-lhe informação.
– Então o que estás a planear fazer amanhã?
Travis fitou-a por um momento e sorriu.
– Não o que gostaria de fazer, mas estou aberto a sugestões.
– O que significa isso de não poderes fazer o que gostarias?
– Nada – respondeu. – O que vais fazer amanhã?
Kim sentiu-se aliviada da pressão no peito. Até esse momento
tinha receado que, depois de ter falado com a mãe, Travis
anunciasse que se ia embora.
– Trabalhar – disse. – A minha rotina diária. És tu o único com
planos em aberto. A tua mãe disse-te que deixasses a cidade?
– Bem pelo contrário. Há alguma coisa que se coma? Estou com
as reservas em baixo depois da conversa materna.
Kim sentira-se tão preocupada com a possibilidade de Travis se ir
embora que nem reparara que ele tinha a camisa rasgada e suja e
uma folha no cabelo. Exatamente como quando eram pequenos.
– O que andaste a fazer? – perguntou enquanto abria o frigorífico.
– Um pouco de escalada. Têm um belo penhasco em Stirling
Point.
– E como te sujaste tanto a subir esse trilho?
– Não subi pelo trilho – respondeu, dirigindo-se ao armário de
onde tirou dois pratos.
Kim deteve-se com uma tigela nas mãos.
– Mas é uma parede vertical.
Travis encolheu os ombros.
Kim não achou graça.
– Não tinhas cordas e estavas sozinho. Foi arriscado. Não voltes a
fazê-lo – disse num tom firme.
– Ou desmembras-me? – replicou e algo na palavra levou-o a
fazer uma careta. Colocou salada de batata nos pratos. – Então e o
que fizeste na minha ausência?
– Tentei moldar cera em forma de luar
Travis brindou-a com um olhar curioso.
– O que significa isso?
– Ontem à noite, no casamento, o luar pareceu-me tão belo que
me interroguei se poderia transformá-lo numa joia.
– O que tem isso a ver com a cera? – perguntou, enquanto
começava a comer.
Kim sentou-se ao lado dele e pegou no prato que ele lhe tinha
servido. Ocorreu-lhe que a sala fora preparada por Dave e que tinha
de falar dele a Travis, mas não o fez.
– Fabrico joalharia industrial, soldando em pequena escala ou
mediante o processo de cera perdida.
– Cera perdida? Lembro-me de ter visto qualquer coisa na
televisão. Era um método misterioso que foi desaparecendo ao longo
dos anos.
Kim soltou um suspiro desdenhoso.
– Idiotas! Chama-se «cera perdida» não por o processo se ter
perdido, mas porque a cera se funde e escorre para fora. A cera
perde-se durante o processo.
– Tens de mostrar-me. Talvez pudesses…
– Travis! – exclamou Kim. – Quero saber o que se passa. Disseste
que necessitavas da minha ajuda e não me parece que seja dar-te
um curso sobre joalharia.
Ele hesitou antes de dizer:
– Tenho três semanas.
– Três semanas até o quê?
– Até ter de enfrentar o meu pai com a notícia de que a mulher
quer o divórcio.
– O que acontecerá depois?
– Batalha em tribunal – esclareceu. – O meu pai vai lutar e lutarei
contra ele. Será uma guerra.
– Mas, quando terminar, ficarás livre? – quis saber.
– Sim – respondeu. – Não sei o que essa liberdade significará,
mas deixarei de ter obrigações em relação a qualquer dos meus
pais. Exceto por motivos éticos e morais, por afeto e…
– Mas que planos tens agora? Para estas três semanas? –
interrompeu-o Kim.
– Talvez capture um pouco de luar para que possas colocá-lo em
cera e perdê-lo.
Kim sorriu.
– Seria ótimo. Necessito de ideias novas. As formas orgânicas
sempre me inspiraram e pode dizer-se que esgotei todas as que
conheço.
– Que me dizes das flores que costumavas atar?
– Crescem do trevo e são consideradas ervas daninhas.
– Agradavam-me – confessou ele baixinho e por um segundo os
olhares cruzaram-se. Mas depois Travis virou as costas, agarrou nos
pratos vazios e colocou-os na máquina de lavar louça.
– Se vais ficar aqui durante três semanas, teremos de dizer às
pessoas quem és.
– Às pessoas? – surpreendeu-se. – A quem te referes?
– Travis, estamos numa cidade pequena. Tenho a certeza que
toda a gente fala que a Kim engatou um moreno desconhecido e o
levou para casa.
– A tua mãe já te ligou? – perguntou com um sorriso.
– Da última vez que soube dela estava na Nova Zelândia,
portanto, as novidades demoraram, espero, mais vinte e quatro
horas a chegar. Mas está cá o meu irmão, bem como o meu primo
Colin.
– O médico da cidade e o xerife. És uma mulher jovem e bem
relacionada.
– O que vais dizer-lhes? Que Lucy Cooper é tua mãe?
– Pediu-me uma semana para contar a Layton que é casada e que
tem um filho.
– Se lhe disser dessa maneira, ele pensará que tem um filho de
nove anos.
– Quantos anos julga a tua mãe que tens? – perguntou Travis.
– Cinco – respondeu Kim e riram os dois. – O que te parece se
contarmos a verdade, mas deixarmos de lado que a senhora que
costura, Lucy Cooper, é Mistress Merritt? Visitaste este local em
criança, conhecemo-nos, cresceste e agora voltaste a Edilean para
passar três semanas de férias.
Os olhos de Travis iluminaram-se.
– Se conseguir que a minha mãe adie o momento de contar a
verdade a Layton, podia conhecê-lo antes de ela lhe dizer quem sou.
– Creio que temos um plano – disse Kim e trocaram sorrisos.
QUATRO
Joe Layton destrancou a porta do seu escritório e fez uma careta ao
deparar com os papéis que se amontoavam na sua secretária. Voltou
a interrogar-se sobre que diabo lhe passara pela cabeça para
recomeçar na sua idade. Assaltou-o o velho ressentimento. Sempre
pensara que passaria a vida em Nova Jérsia a gerir a loja de
ferragens que o avô tinha fundado. Nunca considerara o negócio
como demasiado ambicioso nem tão-pouco havia imaginado que
alguém pudesse cobiçá-lo. Mas, depois de o seu filho Joey se casar e
ter filhos, a sua mulher encarara a Bricolagem Layton como uma
mina de ouro, deixando bem claro que estaria disposta a matar para
a conseguir.
Se ela não a ambicionasse para bem dos seus netos, Joe enfrentá-
la-ia com todas as suas forças. Mas nem sequer o tentou. Na
verdade, agradava-lhe que a nora demonstrasse essa ambição para
garantir o futuro dos filhos.
Quando a sua filha, Jecca, decidiu casar-se com um homem que
vivia na cidadezinha de Edilean, Virgínia, Joe encarou a situação
como uma forma de se livrar de toda aquela trapalhada. Na altura,
parecia simples. Tinha certificados de aforro no banco e pensou usá-
los para abrir uma loja em Virgínia. Sheila, a sua nora, reclamara aos
gritos que Joe «não tinha o direito» de levar o que ganhara ao longo
dos anos e que deveria «deixá-lo» para eles. Afirmara-o como se a
morte de Joe estivesse iminente. Foi a gota de água que serviu para
terminar com a generosidade de Joe. Sabia que a nora queria
comprar uma dessas mansões em algo chamado um «condomínio
fechado».
«Um condomínio fechado?», repetira com um esgar ao ouvir o
termo pela primeira vez.
«Isso mesmo!», vincara Sheila com a sua habitual hostilidade. A
menos que estivesse a tentar vender alguma coisa a alguém,
deixava claro que estava pronta para lutar. «Com um segurança na
entrada. Como proteção.»
«Contra quê?», perguntara Joe no mesmo tom. «Dos fotógrafos
que te perseguem? Querem uma foto da nora de Joe Layton?»
Sempre que Sheila e o pai se embrenhavam numa discussão, Joey
deixava-os sós. Negava-se a que o arrastassem para a troca de
argumentos. Mas Joe sabia que o filho queria montar o seu próprio
negócio. Às vezes, Joe interrogava-se se o filho tinha casado com
Sheila por saber que ela faria frente ao pai. Ia mesmo ao ponto de
pensar que talvez o filho tivesse instigado a mulher para se apoderar
da loja. Deus sabia que Sheila carecia de inteligência bastante para
planear qual era a melhor maneira de levar o sogro a deixar-lhes o
negócio.
Uma tarde, quando Sheila o martirizava com a ideia de vender
umas malditas cortinas na sua loja de ferragens, recebeu um SMS de
um homem que desconhecia por completo. O indivíduo garantia
estar apaixonado por Jecca e afirmava que queria casar com ela,
pelo que lhe perguntava a forma de a conquistar.
O amor era a última coisa que ocupava a mente de Joe. Entre os
gritos de Sheila, o amuo de Joey, que os tinha deixado sozinhos, e
inteirar-se por aquele meio de que um indivíduo qualquer queria
casar com a filha, os nervos de Joe cederam. Levado por um impulso
– o que era impensável nele –, respondeu ao homem e perguntou-
lhe se na sua cidade havia uma loja de ferragens. Se a sua preciosa
e querida filha tencionava mudar-se para essa localidade, iria
também. Preparava-se para carregar na tecla de «enviar» quando
acrescentou que queria mais fotografias dessa bonita mulher, Lucy
Cooper, de quem Jecca lhe mandara algumas, e de quem falava
maravilhas.
Na altura, Joe só pensava que essa mulher se convertera na mãe
que Jecca nunca tinha tido. A mulher de Joe, o amor da sua vida,
tinha morrido quando Jecca era praticamente um bebé. Depois
estivera demasiado ocupado a ganhar a vida e a criar dois filhos
para pensar em procurar outra companhia. Havia saído
ocasionalmente com algumas mulheres, inclusive tivera uma relação
séria, mas encontrava sempre um defeito em todas elas. Jecca dizia
que ele procurava um clone da mãe, não uma pessoa real, e Joe
sabia que a filha tinha razão.
Na verdade, Jecca tinha quase sempre razão. Era o que Joe
pensava, mas preferia morrer a dizer-lho.
Quando descobriu que a filha ia casar-se com um médico, ficou
com a certeza de que ela ia cometer um grande erro. Jecca tinha
nascido no seio de uma família de gente trabalhadora. Como iria
lidar com um médico pretensioso? Mas o Dr. Tris – como era
conhecido – revelara ser um indivíduo às direitas. Estava louco por
Jecca e renunciou a uma infinidade de coisas para estar com ela.
Graças a Tristan, Joe ia conseguir abrir a sua loja de bricolagem
em Edilean. Tris deu-lhe praticamente o velho edifício. O facto de
necessitar de uma remodelação total era o menos.
Ao longo dos anos, Joe tinha ajudado muitas pessoas em Nova
Jérsia. Quando estavam desempregadas, arranjava-lhes emprego.
Quando precisavam de ferramentas para qualquer trabalho,
concedia-lhes crédito. Se não lhe pagavam, Joe alargava os prazos o
tempo que fosse necessário.
Toda essa gente compensava-o com lealdade, indo à loja dele em
vez de comprarem nas grandes superfícies, mas mesmo assim o
negócio de Joe estava a ressentir-se. Embora preferisse morrer a ter
de admiti-lo, a ideia de Sheila de abrir uma loja de decoração podia
ter sido uma boa solução.
Também seria incapaz de admitir que tinha menos dinheiro do que
apregoava. Não chegava a mentir, mas manipulava os números.
Jecca e ele tiveram uma das suas habituais discussões quando Joe
a informou de que pensava contratar os serviços de uns pedreiros de
Nova Jérsia para realizarem as remodelações do edifício. Afirmou
que o fazia porque confiava neles. Mas, na verdade, pretendia
cobrar uma série de favores. Recorreu a homens com quem não
falava há dez anos. Salvo poucas exceções, todos apareceram na
cidadezinha e trabalharam uns dias gratuitamente. Alguns
negociavam há tantos anos com Joe que lhe enviaram os netos – ou
as filhas, o que em nada incomodava Joe. A sua própria filha sempre
trabalhara para ele.
Quase todos trabalharam de graça. Joe pagou a alguns dos mais
jovens, mas os seus velhos amigos recusaram qualquer pagamento.
«Estás a ver essa serra?», perguntou um deles. «Faz dezassete
anos em junho que ma vendeste. Os teus dois filhos repararam-na
tantas vezes que já perdi a conta. Suponho que te devo o dinheiro
que poupei por não ter comprado uma nova de cada vez que esta se
avariava.»
Joe tinha assumido o papel de empreiteiro e limitou-se a
supervisionar os homens que trabalhavam a qualquer hora do dia ou
da noite. Alguns não necessitavam de indicações, mas outros eram
tão inexperientes que teve de ensinar-lhes como se agarrava numa
pistola de pregos.
Só teve de pagar o material. As vigas para o teto e a grua para a
sua instalação quase o depenaram.
Pensou muitas vezes em desistir e voltar a casa para lutar com
Sheila pelo que lhe pertencia. Mas isso significava enfrentar o filho e
os netos. O que podia fazer? Aparecer em Nova Jérsia e destruir o
mostruário de cortinas de Sheila? Tentar que o negócio recuperasse
as mesmas vendas de quando os filhos eram pequenos?
Era uma ideia absurda, mas tê-la-ia levado a cabo se não
houvesse um travão: Lucy.
«Lucy», pensou nesse momento enquanto fixava os documentos
em cima da secretária. Toda a sua vida acabara por girar em torno
dela.
Jecca tinha-a conhecido quando alugara um apartamento em casa
de Mrs. Wingate. As três mulheres começaram a dar-se tão bem que
todos os e-mails que Jecca lhe enviava falavam dessas duas
mulheres. Mais tarde, descobriu que a filha tentava encobrir que
conhecera um homem. Sabia que o pai lhe faria uma infinidade de
perguntas e portanto não o tinha mencionado nas mensagens.
Jecca não sabia que as suas mensagens, e as fotos de Lucy, ou
melhor Lucy, tinham despertado a curiosidade do pai. Lucy Cooper
levara-o a recordar tudo o que não vivera. Agora que tinha perdido o
filho e estava prestes a perder a filha e o seu negócio. Lucy Cooper
preenchia esse vazio.
Quando Joe se deslocou a Edilean para ver o edifício que o Dr. Tris
lhe oferecia, recordou-se de que Miss Cooper não sabia nada a seu
respeito. Não podia cumprimentá-la como se a conhecesse graças às
centenas de fotos que vira dela e de tudo o que incitara Jecca a
contar-lhe. Devia mostrar-se distante e reservado. «Imita James
Bond», disse para si mesmo, «e não faças o papel do indivíduo de
Nova Jérsia tão antiquado que se recusa a usar uma broca elétrica
para fixar pregos.»
Quando Joe apareceu em Edilean, Jecca e Tris tiveram uma
discussão enorme. Ela fugira para Nova Iorque e o Dr. Tris ficara
doido com a ideia de perdê-la.
Joe apercebeu-se imediatamente de que toda a gente simpatizava
com o médico quando o que ele precisava era de «uns bons copos».
Joe encarregou-se disso. Ficou surpreendido com os palavrões que
saíram da boca do indivíduo. Por esse motivo deixou de pensar que
um médico era demasiado afetado para a sua Jecca. Passou uma
longa noite a conviver e a dar-lhe conselhos sobre Jecca.
Tris demorou três dias a superar a ressaca, enquanto Joe se
levantou às nove em ponto da manhã seguinte, e começou a fazer o
que lhe haviam indicado para recuperar Jecca.
Após ter resolvido a situação com Tristan, Joe localizou a loja de
Mrs. Wingate em Edilean e pediu-lhe para alugar um quarto na sua
casa. Tratava-se de uma senhora alta e elegante – de forma alguma
o seu tipo – que o examinou de alto a baixo e declarou que não
tinha vagas.
Quando se apresentou como o pai de Jecca, ela ficou mais calma.
Tinha alguns clientes e ele pediu-lhe se poderia ver a casa. A mulher
hesitou.
– Constou-me que precisa de algumas reparações – disse ele. –
Talvez possa dar-lhes uma vista de olhos.
As palavras convenceram-na e deu-lhe as indicações necessárias.
– Vou telefonar à Lucy e avisá-la da sua chegada – decidiu Mrs.
Wingate, voltando a examiná-lo de alto a baixo.
Joe conhecia bem esse género de olhar. Senhoras como ela não
queriam encontrar-se com um homem como ele sem prévio aviso.
Tinha levado tempo a percorrer de carro a distância que o
separava de Aldredge Road até à grande e antiga casa de Mrs.
Wingate. A ideia de conhecer Lucy aterrava-o. Tinha o
pressentimento de que gostaria dela. Mas se tivesse interpretado
erradamente o que ouvira a seu respeito e fosse tão arrogante como
Mrs. Wingate? A mulher tinha-o olhado como se ele fosse um
comerciante que se enganara na porta de entrada. Caso Lucy o
olhasse da mesma forma…
– Irei para um motel – decidiu.
A casa era grande, tal como Jecca indicara, e estava rodeada de
um belo jardim. O edifício precisava de algumas reparações, mas
nada de importante.
Tirou a velha mala de viagem da carrinha, respirou fundo e
dirigiu-se à casa. O interior era tão feminino que teve a sensação de
estar a entrar num harém – e de certeza que não era o sheik.
Deteve-se um instante ao fundo das escadas e aguçou o ouvido.
Tal como Jecca o informara, ouviu o barulho de uma máquina de
costura. Era um som maravilhoso para um homem que passara a
vida entre ferramentas.
Subiu a escada lentamente e, quando chegou ao cimo, deparou
com uma mulher muito bonita com os braços cheios do que parecia
roupa para bebé. O embate foi forte e se não a tivesse agarrado por
um braço, ela teria caído e aterrado no chão. Agradou-lhe ter
comprovado que era forte, tinha bons reflexos e uma grande
flexibilidade. Levantou-se tão rapidamente que, de repente, Joe a
sentiu encostada ao seu peito.
O tempo pareceu parar um momento. Olharam-se e souberam.
Simplesmente souberam.
– Suponho que sejas o Joe e preciso de ajuda – disse Lucy ao
afastar-se dele. – A máquina não funciona, uma das pernas da mesa
abana e preciso de ajuda para a cortar. Deixa a mala aí e segue-me.
Dobrou-se para apanhar os vestidinhos brancos e Joe admirou-lhe
a figura firme e esbelta. Parou junto à ombreira.
– Vamos. Não temos o dia todo – disse e desapareceu na sala.
Joe deteve-se um instante, assaltado pelo pensamento repentino
de que ele e o filho talvez fossem mais parecidos do que julgava.
– Adoro mulheres mandonas – disse em voz alta e depois seguiu
Lucy até à sala de costura.
CINCO
Kim estava na sua loja a mostrar a um jovem casal de recém-
casados alguns anéis que desenhara na estação anterior. Só ficariam
na cidadezinha um dia e não paravam de dizer como Edilean era
«típica.» A palavra arrancava sempre um sorriso a Kim. A mulher do
primo, Tess, opinava que deviam colocar uma tabuleta na rua
principal a dizer: NÃO SOMOS TÍPICOS.
Kim tentou concentrar-se novamente no casal, embora estivesse
convencida de que iam comprar-lhe uma peça de baixo custo.
– De qual gosta mais? – perguntou a jovem mulher a Kim,
enquanto olhava para o expositor com seis anéis.
Kim queria dizer-lhe a verdade, que gostava de todos, pois
desenhara tudo o que havia na loja.
– Tudo depende do seu gosto, mas creio que…
Alguém abriu a porta e ouviu Carla a respirar fundo. Era o som de
«homem à vista» para a sua assistente que estava sempre atenta.
Kim ergueu os olhos e avistou Travis na ombreira da porta. Vestira
uma camisa verde-floresta e calças de ganga; o cabelo e os olhos
negros emprestavam-lhe o ar mais viril do mundo. Era como se
irradiasse masculinidade, como se uma aura especial o rodeasse.
– Estou apaixonada – murmurou Carla entre dentes e aproximou-
se de Kim. Dado que Travis só tinha olhos para Kim, Carla
acrescentou: – Por favor, diz-me que é teu parente e que está livre
para o resto das mulheres.
Em vez de responder-lhe, Kim voltou a concentrar-se no casal,
mas a rapariga não tirava os olhos de Travis e o marido franziu o
sobrolho. «Adeus clientes», pensou Kim.
Travis avançou e parou junto da jovem mulher. Quando ela lhe
sorriu, ele correspondeu.
– Acho que devemos ir embora – disse o marido, mas ela não fez
caso.
– Vejo-a com a água-marinha – observou Travis num tom de voz
que Kim nunca lhe tinha ouvido. Era rouca, suave, aveludada.
– A sério? – replicou a jovem mulher que subitamente parecia
uma adolescente.
– Com esses olhos que outra cor poderia usar?
A jovem mulher não era especialmente bonita e os olhos eram de
um castanho muito vulgar. Por outro lado, o anel que Travis indicava
com a cabeça era uma das peças mais caras da joalharia.
– Nunca pensaria em usar água-marinha. – Virou-se para o
marido com um bater de pestanas coquete. – O que te parece,
querido?
Antes que o marido pudesse responder, Travis inclinou-se sobre o
expositor de modo a que o tronco ficasse na frente da jovem mulher.
– Mas, se quiser algo mais barato, esses anéis de âmbar ficariam
bem. Não brilham da mesma forma, mas pesam menos no cartão de
crédito.
Ela não desviava os olhos do pescoço de Travis, onde o cabelo se
enrolava junto à pele bronzeada. Parecia estar hipnotizada. Quando
ergueu a mão, como se fosse tocar-lhe no cabelo, o marido colocou-
se diante dela. Travis recuou um passo.
– Vamos levar esse anel e os brincos também – decidiu o marido,
apontando para as águas-marinhas.
– Boa escolha – aprovou Travis e virou-se para Kim com um
sorriso.
Uma parte dela queria agradecer, mas outra parte, muito maior,
desaprovava o que ele acabara de fazer.
– Estás pronta para almoçar? – perguntou a Kim.
Ela fez um sinal de cabeça a Carla para que se encarregasse do
talão de venda e dirigiu-se ao balcão mais afastado, seguida de
Travis.
– Às dez da manhã não são horas de comer – respondeu num tom
cortante.
– Estás zangada comigo?
– Claro que não! – ripostou, ao mesmo tempo que tirava para fora
uma bandeja com pulseiras e começava a organizá-las.
Travis pegou numa delas e examinou-a à luz.
– É bonita.
A pulseira era a mais pequena de todas, mas a mais elaborada, e
as pedras de melhor qualidade que as outras. Era também a peça
mais cara que tinha à venda.
– Parece que aprendeste alguma coisa sobre joalharia.
– Tenho muita experiência – admitiu, inclinando-se sobre ela. – Há
coisas que quero contar-te e portanto vamos dar um passeio e
almoçar.
– Dirijo um negócio, Travis. Não posso entrar e sair quando e
como me apetece.
Travis fitou Carla que ainda não tinha tirado os olhos dele e
brindou-a com um sorriso.
– Ela parece à altura de se ocupar de tudo.
Kim baixou a voz.
– Deixa de namoriscar com as mulheres da minha loja.
– Então vem sair comigo.
– Onde foste esta manhã?
Travis fez uma expressão séria.
– Levantei-me às cinco e fui correr um pouco pela floresta.
Quando regressei, já tinhas saído. É simpática essa tua preocupação.
– Não estou preocupada – garantiu-lhe ao mesmo tempo que
fechava o expositor. Travis sorria-lhe. – Pronto! Estava preocupada.
Com a tua maneira de conduzires, podias ter-te despenhado de uma
montanha e ninguém saberia onde estavas.
– Desculpa – pediu com um ar constrangido. – Não estou
habituado a dizer a ninguém onde vou nem quando regressarei. –
Hesitou. – Também não estou habituado a que alguém se importe.
Agora, podes vir comigo? Por favor?
Os olhos escuros imploravam e seduziam mesmo. Kim cedeu.
Aproximou-se de Carla e perguntou-lhe se podia tomar conta da loja
durante um bocado.
Carla baixou-se atrás de um balcão e fez um gesto a Kim para que
a imitasse.
– Quem é ele? Onde o conheceste? É ele a emergência que tiveste
no domingo? O Dave está a par?
Kim endireitou-se.
– Ele sabe da existência de Dave? – inquiriu Carla sem se erguer.
Kim revirou os olhos, agarrou na mala e saiu da loja com Travis.
Diante deles estendia-se a cidade de Edilean, o que se resumia a
duas praças, uma delas com um carvalho gigantesco no meio.
– Vamos sentar-nos ali? – sugeriu Travis, indicando com um aceno
de cabeça os bancos por baixo da árvore. Deixara de lado a atitude
de conquistador e voltara a ser o Travis que ela conhecia.
Não havia muito tráfego na cidadezinha quando atravessaram a
rua. Educadamente, Travis aguardou que ela se sentasse antes de se
sentar ao seu lado.
– A tua loja é bonita. Talvez um dia destes, quando não houver
clientes, possas mostrar-ma.
– Irias apreciá-la sem clientes?
– Prometo que não voltarei a namoriscar com nenhuma mulher na
tua loja. Embora o casal tenha comprado umas peças bonitas. Gosto
muito mais das tuas joias do que algumas que vi em joalharias de
Nova Iorque.
Kim sabia que estava a lisonjeá-la, mas parecia tão preocupado
com a hipótese de não ser perdoado que ela fê-lo. Sorriu-lhe.
– Então, o que querias dizer-me? – Ao ver que ele não lhe
respondia, acrescentou: – Que tal correu a conversa com a tua mãe
ontem à noite?
Durante um segundo, Travis olhou em frente sem responder e Kim
ficou com a sensação de que algo o preocupava.
– Lembras-te de te ter dito que podia encarar a situação de duas
formas distintas: ficar feliz ou irritada?
– Sei que disseste que as mulheres são imprevisíveis.
– E prometeste-me os DVDs de A Guerra das Estrelas.
– Os de O Caminho das Estrelas que não é o mesmo. Como reagiu
a tua mãe?
– Irritou-se.
Kim fitou-o com uma expressão compreensiva e concluiu que a
mãe lhe dissera algo mais do que não se metesse nos seus
assuntos.
– Foi assim tão mau?
Travis ficou uns instantes em silêncio.
– O meu pai passa o tempo a gritar. Tem um feitio dos diabos e
serve-se dele para assustar as pessoas.
– Tens medo dele?
– Nem pensar – replicou Travis com um leve sorriso. – Na
verdade, até gosto de fazer coisas que o irritem.
– Mas se ele te despedisse…
Travis soltou uma gargalhada.
– Pensas que não desejo que o faça? Ele sabe isso perfeitamente.
De qualquer maneira, o meu pai diz-me coisas que deviam humilhar-
me e rio-me na cara dele. Mas a minha mãe que é muito frágil… –
Acenou com a mão.
– Entendo-te – disse Kim. – A minha mãe grita comigo até ficar
vermelha de raiva, mas não lhe dou atenção. Mas uma vez, quando
andava no secundário, o meu pai disse-me: «Estou desiludido
contigo, Kim.» Fiquei tão perturbada que a minha mãe o obrigou a
pedir-me desculpa.
Travis fitou-a e abanou a cabeça.
– A tua família parece muito normal. Não imagino a minha mãe a
«obrigar» o meu pai a fazer o que quer que fosse. Ela desmorona-se
na frente dele.
Kim era de opinião que Lucy devia ter enfrentado o marido
quando Travis era pequeno, mas não considerou que aquele fosse o
momento indicado para o dizer.
– Se a tua mãe pensa que não deves meter-te nos assuntos dela,
porque te ligou a dizer que queria divorciar-se?
– Perguntei-lhe isso mesmo. Infelizmente, foi depois de ter feito
alguns comentários desagradáveis sobre o homem com quem
pretende casar-se.
– Não acredito!
– Mas foi o que aconteceu. Depois de ter visto todo o
equipamento que comprou para essa loja nova e o tamanho desse
homem, tirei algumas conclusões precipitadas. Talvez tivesse
exagerado um pouco nas minhas opiniões.
– Disse-te que Joe Layton é um bom homem.
Travis agarrou-lhe no braço e beijou-lhe as costas da mão.
– É verdade. Oxalá te tivesse dado ouvidos.
Kim fitou-o de olhos arregalados. Travis não lhe soltou a mão e
começou a massajá-la, com uma expressão distante. Não parecia
concentrado no que estava a fazer.
– O que te disse ela exatamente?
– Disse-me que não me metesse, que arranjaria um advogado e
enfrentaria o meu pai sozinha. – Respirou fundo. – Acrescentou que
podia deixar de trabalhar para ele, porque já não necessitava da
minha proteção.
– Oh! – exclamou Kim, fitando-o de perfil. Travis tinha o sobrolho
franzido. – Vais fazê-lo?
– Claro que não! – reagiu, voltando a pôr-lhe a mão no colo.
Diante deles estava uma mãe com dois filhos pequenos, um
menino e uma menina, provavelmente gémeos. Kim não conhecia a
família. As crianças seguravam balões presos em fios e olhavam-nos
fascinados.
Ao ver que Travis não adiantava nada mais, olhou-o.
– Tens algum plano?
– De momento, nenhum.
Um grito agudo levou Kim a olhar para as crianças. O balão do
menino tinha-lhe escapado da mão e flutuava por entre os ramos da
árvore.
Segundos depois, Travis levantou-se e ergueu os olhos para a
árvore, como se estivesse a examiná-la. Para surpresa de Kim,
agarrou num ramo e içou-se. De pé num dos ramos, olhou para
baixo.
– Falei com a minha mãe esta manhã e disse-lhe que queria
conhecer esse indivíduo e ela deu-me uma semana antes de… –
Caminhou sobre o ramo e depois tomou balanço para subir para
outro mais alto – … antes de lhe dizer que estou aqui – concluiu.
Nessa altura, o menino tinha deixado de gritar e observava o
homem em cima da árvore, tal como o faziam alguns adolescentes.
Kim estava sem palavras e levantou-se.
– Pensas que consegues arranjar-me um encontro com Mister… –
Travis deteve-se e fitou as pessoas que a rodeavam. Não queria
dizer o nome dele em público. – Com ele? – Tinha subido bastante e
nesse momento arrastou-se ao longo de um ramo que não parecia
com largura suficiente para lhe aguentar o peso.
Kim susteve a respiração e assentiu com a cabeça como resposta
à pergunta.
– Tenho de decidir sobre… – Travis continuou a avançar pelo ramo
de aspeto bastante frágil, mantendo o braço estendido para o balão
amarelo.
Kim levou a mão à boca e mordeu os nós dos dedos.
– Quem é esse, pode saber-se? – perguntou-lhe uma voz ao
ouvido.
Ao virar-se, deparou com o tronco largo e robusto do seu primo
Colin, o xerife de Edilean.
Kim fixou novamente o olhar em Travis. Era incapaz de articular
palavra.
Colin manteve-se junto dela, observando como Travis continuou a
avançar até alcançar o fio do balão e agarrá-lo.
– As férias. – Travis baixou de novo os olhos para Kim. – Bom dia,
xerife – saudou, precisamente antes de o ramo se quebrar.
Uma menina gritou e todos contiveram a respiração.
Enquanto caía, Travis agarrou um ramo com a mão direita e
segurou o balão com a esquerda. Enrolou o fio à volta dos dedos e
passou as pernas sobre o ramo. Içou-se, cavalgou o ramo, pôs-se de
pé, caminhou de volta até ao tronco da árvore e desceu.
Aterrou com os dois pés no solo, avançou até junto do menino
para lhe devolver o balão e sacudiu o pó da roupa enquanto
regressava para junto de Kim.
– O que achas?
Kim limitou-se a fitá-lo boquiaberta.
– Está a perguntar-te a tua opinião sobre o que deveria fazer
durante as férias em Edilean – comentou Colin, parecendo muito
divertido com o que acabava de presenciar.
– Travis! – conseguiu exclamar Kim.
Colin riu-se.
– Muito bem – disse ele, dirigindo-se a Travis. Ao ver que Kim se
preparava para falar, interrompeu-a. – Costuma fazer esse género de
coisas frequentemente?
– Costumava – admitiu Travis. – Trabalhei como duplo em Los
Angeles durante alguns anos.
Colin examinou-o de alto a baixo.
– Ainda se mantém em forma?
– Tento. Em que está a pensar?
– Às vezes os turistas ficam presos na reserva e temos de resgatá-
los. Estou mais próximo e costumo ser o primeiro a chegar. Às vezes
necessito de ajuda.
Travis sorriu ao lembrar-se que Kim se tinha referido àquele
homem e ao seu irmão como super-heróis que resgatavam pessoas.
Travis nem de longe tencionava recusar a oportunidade de ajudar… e
talvez de impressionar Kim.
– Tem o telemóvel à mão? Vou dar-lhe o meu número.
Colin entregou-lhe o telemóvel. Travis deu um toque para o dele e
colocou o nome junto ao número, antes de lho devolver.
– A qualquer hora do dia ou da noite estarei disponível para
ajudar. Tenho experiência com cordas e escalada, mas nunca
resgatei ninguém. Pelo menos, a sério.
Colin sorriu.
– Bem-vindo a Edilean. – Olhou para Kim. – Fico feliz por ver que
desta vez arranjaste alguém útil – murmurou e pôs-se a caminho do
seu gabinete.
– Dá saudades à Gemma da minha parte – gritou Kim, antes de
fitar novamente Travis.
– Tenho três semanas de férias. – Ainda parecia estar a aguardar
uma resposta.
– O meu filho quer agradecer-lhe – interrompeu nesse momento a
mãe do menino e Travis ajoelhou-se ao pé dele.
– Obrigado – disse o menino e abraçou Travis. A menina, para não
ficar de lado, abraçou-o também.
A mãe sorriu a Travis e fitou-o um pouco mais demoradamente do
que seria normal.
– Talvez possamos convidá-lo para jantar uma destas noites.
Os olhos escuros de Travis adquiriram uma vez mais aquele brilho
sedutor.
– Isso seria…
– Ele está ocupado – interferiu Kim, despachando a mulher com o
olhar.
Sem deixar de sorrir, ela agarrou nos filhos e afastou-se.
– Consegues um encontro? – insistiu.
– O que acabas de fazer é muito perigoso, Travis – censurou Kim.
– Podias ter-te magoado com gravidade. Podias…
Travis inclinou-se e beijou-a na face.
– Descobri que gosto que alguém se preocupe comigo.
– Isso significa que vais fazer mais idiotices como essa? Não faz
sentido arriscares a vida por um balão.
– A minha vida não correu qualquer perigo e o balão não me
interessava minimamente. Foi o olhar do menino que fez com que
tudo valesse a pena.
Kim não tinha resposta já que a razão estava do lado dele.
– Bem e o que me dizes do encontro com o homem com quem a
minha mãe quer casar-se?
– Estamos em Edilean. Não precisas de marcar encontro. Mister
Layton está provavelmente na sua loja agora. Podemos ir até lá para
falares com ele.
– Que desculpa lhe daremos?
– Dizemos que passámos para o cumprimentar – respondeu Kim,
frustrada e um pouco aborrecida com tanta formalidade… e pela
maneira como ele tinha namoriscado com a bonita e jovem mãe dos
miúdos. – Pergunto-lhe como está a Jecca ou algo do género. Era o
que faltava, agora!
– O que se passa? – perguntou ele.
– Vem aí o meu irmão. Aposto que Colin lhe ligou. O bufo! Agora
vais ser espremido até ao infinito. Não será agradável.
Travis não conseguiu reprimir um sorriso ante as suas palavras. Os
advogados mais famosos do mundo tinham-no interrogado, tanto
nos tribunais nacionais como em alguns internacionais. Não tinha a
menor dúvida de que poderia fazer frente ao irmão médico de Kim.
Mas, ao ver o homem que se aproximava deles, Travis
empalideceu. Já tinha visto Reede Aldredge antes e não
propriamente nas melhores circunstâncias.
Travis e o seu mecânico tinham participado numa corrida de
automóveis em Marrocos. Ao fazerem uma curva nos arredores de
uma aldeia remota, apareceu-lhes pela frente um homem que
puxava as rédeas de um burro carregado até acima.
Travis conseguiu não atropelar o homem e virara o volante com
tanta força que o carro descrevera um pião. Fora difícil controlá-lo
para não capotar, mas saíra-se bem.
Por azar, com a iminência do acidente, as caixas que o burro
transportava caíram no chão. Quando Travis conseguiu endireitar
novamente o carro, viu que escorria líquido do interior das caixas e
que o homem os ameaçava com o punho. A sua expressão furiosa
ficara gravada na memória de Travis.
Enquanto se afastavam, disse ao mecânico que ligasse a Penny
para descobrir a identidade do homem e substituir o que se perdera.
Dias mais tarde, Penny tinha mencionado que o homem era um
médico americano e que lhe enviara a reposição da carga. Também
fizera uma doação à clínica. Não indicara a Travis o nome do médico
e ele também não tinha perguntado.
Esse homem, o médico que lhe havia gritado obscenidades em
Marrocos, caminhava agora na sua direção.
– Posso contar-lhe a verdade sobre ti? – sussurrou Kim.
Por um momento, pensou que ela se referia à corrida, mas ela
referia-se à infância deles.
– Claro, mas não lhe digas que Lucy Cooper é minha mãe.
– Nunca me passaria pela cabeça – murmurou enquanto sorria ao
irmão.
– Kimberly – disse Reede num tom bastante ríspido. – Constou-me
que provocaste uma pequena confusão esta manhã.
– O Travis resgatou o balão de um miúdo – explicou, ao mesmo
tempo que olhava para Travis que tapava a cara com uma das mãos.
– Apresento-te a…
– Não me digas que é o Travis – interrompeu-a Reede. – O rapaz
com que criaste fantasias desde criança?
– Reede! – protestou Kim, sentindo-se corar. – Isso é mentira!
– É um prazer conhecer-te finalmente! – exclamou Reede,
estendendo-lhe a mão.
Travis apertou-a, mas conservou a mão esquerda a tapar-lhe os
olhos.
– Já te vi em qualquer lado! – referiu Reede. – Viajei muito. Por
acaso não foste meu doente?
– Não – respondeu Travis, virando a cara.
Kim observava o irmão e Travis. Reede observava-o de olhos
semicerrados, como se procurasse lembrar-se de onde o conhecia.
Travis portava-se como um animal encurralado que quisesse
desesperadamente esconder-se na toca.
– Temos de ir – disse ela. – Travis quer falar com Mister Layton
sobre a possibilidade de abrir uma loja de desporto.
– Faz falta por aqui – concordou Reede. – O que pensas vender?
– Artigos de desporto – apressou-se Kim a responder, desejosa de
afastar o irmão o mais rapidamente possível. – Aquela não é uma
das tuas enfermeiras a acenar-te?
– Sim – anuiu Reede. – Deixei duas salas de observação e a sala
de espera a abarrotar. Podemos jantar juntos. – Começou a andar,
mas virou-se para Travis. – Estou ansioso por saber o que tens
andado a fazer desde que estiveste em Edilean pela primeira vez.
Mal ficaram sozinhos, Kim perguntou a Travis:
– O que vem a ser isto?
– Bom… Creio que já encontrei o teu irmão antes.
Ao ver que ele não parecia disposto a acrescentar mais nada, Kim
deu meia volta e começou a dirigir-se para a joalharia.
Travis alcançou-a.
– Onde vais?
– Se não pensas ser sincero comigo, é melhor voltar ao trabalho.
Neste momento, estou ocupada a desenhar um novo colar. Tinha
planeado usar opalas australianas, mas talvez opte por águas-
marinhas já que ficam tão bem com olhos castanhos.
– Pronto! – disse ele. – Que tal se fôssemos conversar para
qualquer sítio tranquilo? Talvez possas ajudar-me a decidir o que
fazer com a minha mãe.
Uma hora depois estavam sentados a uma mesa de piquenique na
reserva. Tinham passado pelo supermercado e comprado sandes,
saladas e bebidas, mas ainda era muito cedo para comerem.
– Isto é lindo – apreciou Travis, olhando para o lago. – Vives num
sítio maravilhoso.
– Eu gosto – concordou Kim.
Reinava tanta tranquilidade que quase não se lembrava do que a
irritara. Era algo sobre Reede. Mas, nos últimos tempos, tudo o que
se relacionava com o irmão parecia irritá-la. Reede não queria ser
médico na sua cidadezinha natal, queixava-se frequentemente… e
ela estava cansada de o ouvir.
– Na realidade, nunca me apresentaram ao teu irmão, mas quase
o matei – confessou Travis que em seguida lhe resumiu a história,
sem esquecer que havia reposto o carregamento de Reede.
– Reede nunca mencionou o incidente nas suas cartas – comentou
Kim. Imaginava como o irmão devia ter ficado furioso. – Reede acha
que toda a gente devia esquecer-se de frivolidades como corridas de
automóveis e dedicar-se a boas causas.
Travis estava a observá-la.
– Não sabe como divertir-se, certo? – perguntou em voz baixa.
– Riscos de se tornar adulto – respondeu. – O que tens feito
desde que nos conhecemos, quando éramos pequenos?
– Viver segundo o que me ensinaste – esclareceu com um sorriso.
Kim não correspondeu. Começava a reparar que ele se escapava
às suas perguntas, que respondia com evasivas. Nesse dia sentiu
que algo o incomodava. Embora se tivesse mostrado bastante
superficial sobre o que se passara entre ele e a mãe, começava a
pensar que lhe tinha ocultado muita coisa.
– Fala-me mais sobre a conversa com a tua mãe. O que te disse
ela exatamente?
Travis desviou a cara, mas Kim ainda conseguiu detetar o cenho
franzido. Parecia que as palavras trocadas entre mãe e filho eram
demasiado agrestes para que as mencionasse.
Quando voltou a olhá-la, estava a sorrir.
– Garantiu-me que Joe Layton era um bom homem e que a ama.
Não sabe que a minha mãe tem dinheiro e ela desconhece como
conseguiu financiar a remodelação desse velho edifício.
Kim tinha quase a certeza de que ele estava a esconder-lhe
alguma coisa e também sabia que não lhe diria do que se tratava.
«Muito bem», pensou. «Se ele pode guardar segredos, também
estou no meu direito.»
– Quando queres ir visitar Mister Layton?
Travis percebeu que Kim decidira fechar-se em copas e conhecia o
motivo. Para ser sincero, gostaria de contar-lhe a conversa que
tivera com a mãe, mas não podia dado que a pior parte fora
exatamente sobre ela.
Na noite anterior, tinha-se encontrado com a mãe no jardim da
casa de Mrs. Wingate e, depois de uns minutos de abraços e
lágrimas de alegria pelo reencontro, Travis iniciara a averiguação
sobre Joe Layton. Mas assim que abriu a boca, a mãe mostrara-se
diferente do que se recordava dela. Deixara de ser a mulher
acobardada e reservada com que tinha crescido. Agradeceu a Travis
por vir em seu auxílio, mas deixara bem claro que se tratava de uma
batalha que tinha de levar a cabo sozinha.
Travis servira-se do seu melhor tom de advogado para a fazer ver
que estava enganada. Pensava que tinha esclarecido bem a sua
postura até a mãe lhe dizer que ele falava como o pai. O comentário
apanhara-o tão desprevenido que se afundou na cadeira e a fitou
surpreendido.
Foi então que a mãe lhe perguntou o que estava a fazer com Kim
e porque não lhe contara toda a verdade sobre o seu pai.
«Kim sabe o teu apelido?»
A pergunta fez com que passassem a desempenhar os papéis
habituais de mãe e filho.
– É que…gostaria que uma mulher se preocupasse comigo, sem
se deixar deslumbrar pelo apelido Maxwell – explicou Travis. – Sabes
uma coisa, mãe? Gostaria de saber se sou capaz de viver como uma
pessoa normal. A minha infância isolada não me preparou
exatamente para levar uma vida normal como adulto.
Lucy fez uma careta, mas Travis continuou:
– Desde então, as mulheres…
– Por favor, poupa-me a pormenores.
– Não era essa a minha intenção – garantiu. – Só que não se me
apresentou a oportunidade de… enfim, conhecer o amor.
– Então, se fizesses com que a Kim se apaixonasse por ti? –
perguntou Lucy. – O que aconteceria?
– E se me apaixonar por ela? – Estava a brincar, tentando
desanuviar o ambiente.
Porém, Lucy falava a sério.
– Travis, estás apaixonado por essa rapariga desde os teus doze
anos. O que quero saber é o que acontecerá se ela se apaixonar por
ti. Vais olhá-la nos olhos e dizer «Aguarda-me», antes de ires
esquiar para alguma montanha? Esperas que seja como eu e passe
os dias junto ao telefone com medo de receber uma chamada a
informá-la de que ficaste tetraplégico, perdeste uma perna ou
morreste? Queres que compartilhe a tua vida nómada que nunca
cria raízes em parte alguma?
– Não sei – respondeu Travis, frustrado. – A minha vida…
– Não foi normal – completou Lucy. – Sei isso melhor que
ninguém.
– Comecei a trabalhar para o meu pai para proteger…
– Nem penses em responsabilizar-me por essa carga –
interrompeu-o Lucy, erguendo a voz. – Travis, adoraste trabalhar
para Randall. A emoção, o dinheiro, o… o poder. Desabrochaste ao
fazê-lo.
Travis recostou-se novamente no assento duro.
– Acusas-me de estar a converter-me no meu pai? – perguntou
em voz baixa.
– Não, claro que não. Mas temo…
– O quê?
– Que possas vir a sê-lo.
Travis demorou algum tempo antes de responder.
– A mim também me preocupa – disse finalmente. – Às vezes,
deteto coisas em mim que me desagradam. Sempre que lhe agrado,
desagrado a mim mesmo… e preocupa-me que o meu desagrado
seja tão intenso quanto a sua satisfação. – Fitou-a. – Mas não sei
como distanciar-me da parte dele que se encontra no meu íntimo.
Lucy agarrou-lhe na mão.
– Passa mais tempo com Kim. Esquece-te de Joe e de mim.
Estamos bem. Ele não anda atrás do meu dinheiro, nem o faria se
soubesse que o tenho. Ama-me.
– Tens a certeza?
– Absoluta.
– Mas também não estiveste apaixonada pelo pai?
– Era uma miúda que tinha crescido num ambiente muito
protegido e o teu pai perseguiu-me da mesma maneira que
persegue essas empresas que compra.
– Também gostaria de perseguir Kim assim – confessou em voz
baixa.
– Não o faças! – exclamou Lucy. – Que isso não te passe pela
cabeça. Não te sirvas do charme e do dinheiro dos Maxwell, nem de
tudo o que aprendeste com essas mulheres horríveis com quem sais,
para seduzires Kim. Não a deslumbres. Não a leves de avião a jantar
com um bom vinho a Paris, não faças com que se derreta por ti. Não
merece que a trates dessa maneira.
– De que lado estás?
– Do teu! – exclamou e depois acalmou-se. – Amo-te mais do que
à minha vida, Travis. Daria a vida por ti, mas quero que tenhas algo
real. Não te limites a levar essa jovem para a cama e a mostrar-lhe o
que aprendeste com uma modelo ambiciosa. Descobre quem ela é.
Averigua se realmente a amas, ou se apenas sentes gratidão por te
ter ensinado a andar de bicicleta. Conhece a mulher em que se
converteu e deixa que ela conheça o teu verdadeiro eu. Não o
advogado astuto e loquaz capaz de levar a todos com a sua
conversa. Deixa que veja esse rapaz que se deixou impressionar por
uma menina que lhe colocou um colar ao pescoço.
– Não tenho a certeza de que saberei fazê-lo.
De volta ao presente, olhou para Kim, que admirava o lago, e
nesse momento pensou que nunca tinha visto uma jovem mais
bonita ou desejável. Se ela fosse outra mulher, diria qualquer coisa
ou usaria qualquer tática para levá-la para a cama. Mas depois, tal
como a mãe o acusara, deixá-la-ia. Parecia que a sua vida se
resumia a andar de um lado para o outro. Se não era um encontro
de negócios em representação do pai, era alguma corrida ou
escalada, ou qualquer outra atividade que, como a mãe comentara,
poderia acabar na perda de um membro.
– Penso que devíamos ir embora – comentou Kim, interrompendo
o silêncio e chamando Travis à realidade.
Ele não se mexeu.
– Não é minha intenção ser tão misterioso.
– Então diz-me o que te incomoda! – exclamou ela. – Estás a
ocultar-me qualquer coisa horrível que fizeste? Não podes ser um
criminoso procurado, porque tenho a certeza de que neste momento
Colin já investigou tudo sobre ti. Se tivesses antecedentes penais, já
me teria avisado.
Uma vez que nem o xerife, nem Kim, sabiam o seu verdadeiro
apelido, não encontrariam nada, pensou.
– Não tenho antecedentes criminais – garantiu e sorriu-lhe. – Mas,
na verdade, não me sinto orgulhoso de algumas coisas que fiz na
vida.
– Referes-te ao trabalho de duplo em Hollywood ou a teres
atropelado médicos em Marrocos?
Travis riu.
– Sem dúvida, Marrocos. Mas que diabo fazia o teu irmão a puxar
por um burro carregado numa zona que estava marcada para uma
corrida de automóveis?
– Suponho que Reede pensa que toda a gente devia parar para
lhe dar passagem. O seu trabalho é importante e o teu não.
– Nesse aspeto tenho de concordar com ele. Kim…
– Sim?
– Neste momento, tenho de tomar decisões importantes sobre a
minha vida.
– Como por exemplo?
– O que farei com o que me resta. Daqui a três semanas deixarei
de trabalhar para o meu pai.
– Em que consiste exatamente a tua função?
– Em deixar as pessoas sem trabalho – respondeu Travis.
Kim fitou-o com uma expressão crítica.
– Não é tão mau como acabo de dizer-te. As empresas estão na
falência e de qualquer maneira os trabalhadores acabariam na rua.
O meu pai compra a empresa e despede somente dois terços do
pessoal. – Fixou o lago. – Estou cansado de tudo isso e preciso de
mudar. Tens uma vaga na joalharia? Penso que conseguiria vender
coisas.
– A namoriscar com as clientes? Não, obrigada. Para que queres a
minha ajuda?
Queria dizer-lhe que fugisse com ele, mas as palavras da mãe
continuavam a soar-lhe na cabeça. Conhece a mulher em que se
converteu e deixa que ela conheça o teu verdadeiro eu.
– Quero que sejas minha amiga – replicou. – Fomos amigos em
crianças e talvez possamos sê-lo novamente.
– Muito bem – anuiu Kim, voltando a desviar os olhos para o lago.
Amigos. Parecia a história da sua vida. Os seus dois últimos
namorados tinham acabado a relação porque era melhor sucedida
que eles. Sempre que Kim conseguia um novo contrato com uma
empresa que queria vender as suas joias, gerava-se uma discussão.
Calculava que a relação durava três grandes discussões antes de
terminar. Tinha a certeza de que o único motivo por que ela e Dave
estavam juntos há seis meses residia em não lhe ter dito que
Neiman Marcus queria ensaiar uma exposição das suas joias.
– Agora foste tu a manter o silêncio.
– Também preciso de um amigo – disse. – Nos últimos dois anos
todas as minhas amigas casaram e a maioria está grávida.
– E porque não estás também grávida? – inquiriu com uma
expressão solene.
Sabia que se lhe contasse a verdade soaria a autocompaixão, o
que não suportaria.
– Porque o meu irmão médico recusa explicar-me como engravida
uma mulher. Não me parece que seja engolindo uma semente de
melancia como me disse quando eu tinha nove anos. Recusei-me a
comer qualquer coisa com sementes durante dois anos. A minha
mãe ameaçou que me faria comer à força. Mas depois descobri que
o «beijo à francesa», que pensei ser como se beijava em França,
podia engravidar.
– Quem te contou a verdade? – perguntou Travis com um sorriso.
– Fiquei pela teoria francesa, pois nunca estive em França, nem
engravidei.
– Que te parece se tu e eu… – Travis interrompeu-se, pois ia
sugerir que fossem passar uns dias a Paris.
– Se tu e eu o quê?
– Comêssemos as nossas sandes.
Kim sabia que mais uma vez ele mordera a língua antes de lhe
dizer algo. Estendeu-lhe uma sandes e começou a desembrulhar a
dela. Parecia que a ideia que Travis fazia de amizade era muito
diferente da dela.
SEIS
Quando Joe Layton viu Kim e o homem jovem que a acompanhava a
sair do carro, soube duas coisas: a primeira, que o homem era da
família de Lucy; a segunda, que estava apaixonado por Kim. A
primeira fê-lo franzir o sobrolho e a segunda arrancou-lhe um
sorriso.
Joe tinha tentado que Lucy falasse sobre o seu passado desde que
a conhecera, mas ela não dissera uma palavra. Se fosse outro tipo
de homem, teria gostado das suas tentativas para fugir às
perguntas. Porém, não lhe agradava o seu desconforto e, por isso,
evitava interrogá-la.
Mas saltava à vista que aquele jovem indivíduo era parente de
Lucy. «Seu filho?», interrogou-se. Tinham os mesmos olhos, só que
os dele eram mais escuros. Também o cabelo se lhe enrolava junto
ao pescoço, como o dela, e a maneira como fechou a porta do carro
não deixava sombra para dúvidas.
«Então, ela tinha um filho», pensou. Seguia-se a verdadeira
questão: quem era o pai?
Quanto à sua segunda observação, Joe sentia pena de Kim porque
todas as suas amigas se tinham casado e iniciado uma nova fase das
suas vidas. Jecca e ela mantinham uma amizade de anos e Joe sabia
que todas as amigas de Kim se haviam casado uma após outra. Até
mesmo Jecca a abandonara. Fora a Edilean visitar Kim, mas acabara
por passar todo o tempo com o Dr. Tris.
Portanto, gostava de ver um homem apaixonado por Kim. Merecia
o melhor que a vida pudesse oferecer-lhe.
Joe pigarreou e endireitou os ombros. Não podia deixar que se
notasse o seu sentimentalismo. Abriu a porta da frente.
– Vieram por causa do emprego?
– Que emprego? – perguntou Kim enquanto beijava Joe na face.
Conhecia-o há muitos anos e tinha ficado várias noites na sua casa,
em Nova Jérsia. Numa ocasião, quando andava na universidade, Joe
passara toda a noite a pé, ouvindo-a lamentar-se sobre o que um
jovem da associação de estudantes lhe fizera.
– Ajudar-me a pôr a loja a funcionar. Tive de despedir o primeiro
que contratei.
Travis deitou um olhar penetrante ao indivíduo. Era um homem
baixo, de compleição robusta, e parecia carrancudo.
– Este é o meu amigo Travis… – Hesitou – … Merritt e estava a
falar-lhe da sua nova loja. Aquela sala grande que era para uso da
Jecca continua vazia?
Joe estava a observar Travis. O pai devia ser alto, pensou, tal
como o rapaz, mas a semelhança com Lucy era incrível, pensou.
Decorreu um momento antes de Joe se aperceber que Travis lhe
estendia a mão. Joe aceitou-a, sem desviar os olhos do jovem.
Quando Travis retirou a mão, Joe notou os calos.
– Trabalhas na construção?
– Não – respondeu. – Levei uma vida inútil.
– Trabalhava como duplo em Hollywood – esclareceu Kim.
– A sério? Que truques sabes fazer?
– Na maior parte das vezes levava um tiro – respondeu Travis. –
Sou o tipo vestido de polícia que é morto pelo bandido. Chegaram a
matar-me quatro vezes no mesmo filme. Resultado de baixo
orçamento.
– O normal seria que um indivíduo tão bem-parecido fosse o
protagonista – replicou Joe.
Travis riu.
– Concordo. Cheguei a fazer a sugestão a um realizador que me
fez um casting. O veredicto foi que não tenho veia de representação.
– O que tem isso a ver com desistires de ser uma estrela? – disse
Joe com uma expressão séria.
– É a pergunta que faço a mim mesmo – reagiu Travis. – Mas, de
qualquer maneira, nunca me agradou passar horas mortas numa
carrinha sem fazer nada. A que emprego se referia?
– Ao de gerente – respondeu Joe. – Preciso de alguém que se
encarregue da loja para poder passar mais tempo com as minhas
meninas.
– As suas meninas? – repetiu Travis, deixando de sorrir.
– Talvez devêssemos… – começou Kim.
– A minha filha e a minha prometida – explicou Joe. – Achas que
estarias à altura do emprego? É preciso saber muito sobre
ferramentas.
– Travis sabe muito sobre… – começou Kim que hesitou antes de
acrescentar… – balões.
Ambos a fitaram.
– És o tipo que tirou o balão do menino de cima da árvore?
– Sou – admitiu Travis –, mas não sabia que a notícia se
espalharia tão rapidamente pela cidade.
– O xerife passou por aqui – referiu Joe, indicando com a cabeça o
outro extremo do prédio. – Querem ver o estúdio da Jecca?
– Queremos – respondeu Kim e foram atrás de Joe.

– O que te parece? – perguntou Kim a Travis. Encontravam-se a


jantar num pequeno restaurante na estrada de Williamsburg.
– O que me parece o quê? – perguntou ele por sua vez, enquanto
brincava com o garfo.
– Abrires uma loja de artigos desportivos aqui?
Travis levou algum tempo a responder.
– Gostei dele.
– Referes-te a Mister Layton? Não me surpreende. É um bom
homem. Causaste-lhe boa impressão. Achei incrível que te pedisse
opinião sobre as suas finanças.
– Também eu. Não pensas que ele sabe…
– Que és filho da Lucy? Como poderia?
– Disseram-me muitas vezes que sou parecido com a minha mãe,
talvez por isso me tenha reconhecido.
– Não sei, uma vez que nunca vi a tua mãe de perto. – Kim fitou-
o, observando as sobrancelhas negras semelhantes a asas de
gaivota e o queixo sombreado pela barba. Não compreendia que um
homem tão viril pudesse parecer-se com uma mulher.
O que Travis leu nos olhos de Kim levou-o a desejar estender um
braço por cima da mesa e a atraí-la a si. Tinha uma boca tão bonita
que ansiava beijá-la. Nesse momento, recordou as palavras da mãe
e desviou o olhar. Desconhecia o rumo da sua vida e não seria justo
arrastar Kim com ele.
Kim apercebera-se do brilho no olhar de Travis. Tinha sentido a
faísca entre eles. Mas, nesse momento, Travis desviou o olhar. Por
qualquer motivo que ignorava, ele esforçava-se por negar a atração
que havia entre ambos. A atração pura e natural que os homens e
as mulheres sentiam mutuamente era sufocada por ele.
«Que assim seja!», pensou. Havia dito que seriam amigos e era o
que seriam. Mas não conseguiu evitar a raiva que sentia. Existiria
alguma mulher na sua vida? Teria decidido que a jovem de uma
pequena cidade não estava à sua altura? Ou apenas conseguia vê-la
como uma rapariguinha?
Fosse como fosse, não lhe agradava minimamente.
– Importas-te que faça um telefonema? – perguntou-lhe no tom
mais meigo que conseguiu. Parecia que no seu caso o velho ditado
sobre a ira da mulher desprezada era verdadeiro.
– Claro que não. Queres ficar sozinha?
– Não, é muito rápido. Tenho a certeza que ele está a trabalhar.
– Quem?
– Dave, o meu namorado.
Travis quase se engasgou com a comida que levara à boca.
– Namorado?
Kim preparava-se para responder, mas nesse instante Dave
atendeu:
– Olá, miúda, o que se passa?
Kim afastou um pouco o telemóvel do ouvido para que Travis
ouvisse a voz de Dave.
– Estava a pensar se terias alguma ideia sobre a roupa que
devíamos escolher para o fim de semana. O B&B Sweet River é um
sítio elegante? Levo vestido comprido?
– Não sei – respondeu Dave. – Foste tu quem escolheu o sítio.
Mas desde já te garanto que não levo smoking. Já o uso com
frequência no trabalho. Olha! Porque não resolvemos o dilema,
jantando todas as noites na cama?
Kim sorriu enquanto fitava Travis que tinha os olhos arregalados
como se não acreditasse no que ouvia.
– Pensava que o mais normal era o pequeno-almoço na cama –
comentou num tom de voz rouco e sensual, o mesmo que Travis
tinha usado com as mulheres. Outras mulheres que não ela.
– Que te parece se fizermos as duas coisas? – replicou Dave em
voz baixa.
– O que faremos ao almoço, posso perguntar? – inquiriu, fazendo-
se de inocente.
– És tu a criativa, por isso a decisão fica por tua conta. Tenho de
ir. Estamos a carregar a carrinha para um jantar. Até sexta, às duas.
Ah, Kim…
– Sim?
– Não leves nada para vestir à noite.
Rindo, Kim desligou, pousou o telemóvel e sorveu um longo trago
da bebida.
Travis observava-a. Não tinha movido um músculo desde que ela
desligara.
– Namorado? – questionou por fim, quase num sussurro.
– Sim. Qual é o problema? Não gostas da sandes? Podemos pedir
outra coisa. Queres que chame a empregada?
– A comida é ótima. Desde quando tens namorado?
– Dave e eu estamos juntos há seis meses – respondeu com um
sorriso. – Creio que é uma coisa séria.
– Séria até que ponto?
Kim encolheu os ombros.
– O normal. Porque me olhas assim?
– Estou surpreendido. Não me tinha dado conta de que havia
alguém… importante na tua vida.
– Por favor, diz-me que não presumiste que lá porque vivo numa
cidadezinha estava… o quê? À espera que um homem da metrópole
viesse resgatar-me? Pois não é assim.
– Na verdade, até pensei que o casamento que se celebrava
quando cheguei talvez fosse o teu.
O comentário acabou com todas as dúvidas que Kim pudesse ter
sobre a natureza da relação que os unia. Travis não parecia
incomodado com a ideia de que ela estivesse prestes a casar-se.
Mas porque haveria de estar? Mal se conheciam e ele tinha deixado
muito claro que partiria dentro de três semanas.
– E tu? Tens alguém especial?
– Não sei… – respondeu. Estava longe de imaginar que Kim
pudesse ter namorado. Muito menos uma relação «séria».
– Não sabes se há alguma mulher na tua vida? Se houver e
precisarem de alianças, posso desenhá-las e fazê-las. Vamos
embora?
– Claro – respondeu Travis, mas ainda não tinha recuperado do
choque.
Não sabia o que imaginara, mas estava longe de ter pensado em
Kim a falar com outro homem sobre tomar refeições na cama.
Deixou dinheiro em cima da mesa e saiu do restaurante atrás de
Kim. Uma mulher jovem e muito bonita sorriu-lhe, mas Travis não
lhe prestou a mínima atenção.
Kim sentou-se ao volante do seu carro.
– Tenho trabalho à minha espera em casa – pronunciou num tom
frio.
– Fiz alguma coisa que te irritasse?
– Claro que não. Porque havias de me irritar? – Apetecia-lhe
responder aos gritos. Ele namoriscava com outras mulheres, mas
olhava-a como se fosse sua irmã ou uma menina de oito anos.
Respirou fundo e depois soltou o ar, libertando a raiva que a
tomava. Não era justo que se irritasse com ele só porque não a
considerava atraente. Quantas vezes repelira homens que a tinham
abordado? Todas as semanas entrava algum na sua loja que lhe
dava a entender que se encontrava disponível. Às vezes, a mulher
esperava-o do lado de fora da porta.
«Na realidade, a atração sexual é incontrolável», pensou. Ou se
sentia ou não. Imaginara que Travis a sentia por ela, mas
aparentemente tinha-se enganado. Ele deixara bem claro que
desejava e necessitava de uma amizade, por isso era o que ia dar-
lhe.
– Até que ponto a tua relação com esse homem é séria?
«Pensa nele como se fosse uma amiga», disse para si mesma.
«Não o olhes, não te deixes hipnotizar pela sua aparência sedutora.
É um amigo e nada mais.»
– Creio que pode ser duradoura – respondeu. – Carla ri à
gargalhada sempre que fala deste fim de semana e um dos meus
melhores anéis desapareceu do expositor. Uma safira enorme. Não
consigo encontrar o talão de compra e, quando a interroguei sobre
isso, disse… não me lembro da desculpa que me deu, mas o talão
não está na loja.
– Não pareces preocupada com a hipótese de essa tal Carla o ter
roubado. Suponho que insinuas que esse tipo vai oferecer-te um dos
teus anéis. Como anel de noivado?
– Talvez – admitiu Kim.
– Que sítio era esse do hotel B&B?
– A mulher do meu primo Luke, Jocelyn, tem andado a pesquisar
a genealogia das sete famílias fundadoras de Edilean, mas há uma
lacuna na árvore genealógica dos Aldredge. Uma das minhas
antepassadas foi a um local chamado Janes Creek, Maryland, por
volta de mil oitocentos e noventa e regressou grávida. A Joce quer
tentar averiguar quem era o pai. Mas tem dois filhos pequenos e,
por isso, pediu-me para ir até lá e ver o que consigo descobrir.
– E esse homem vai contigo?
– Vai – anuiu Kim. – Dave é dono de uma empresa de catering e
está sempre muito ocupado durante os fins de semana. Teve de
pagar muito dinheiro aos empregados para que o substituíssem no
próximo fim de semana.
– É o facto de ele ter tirado esses dias e o desaparecimento de um
anel e do respetivo talão de compra que te levam a pensar que vai
fazer… o quê? Pedir-te em casamento?
Kim sentiu que a raiva se apoderava novamente dela, mas
dominou-se. Parou o carro diante da casa, desligou o motor e virou-
se para olhar Travis.
– Também há o facto de Dave estar louco por mim. Passamos
todos os seus dias livres juntos. Telefonamos um ao outro.
Conversamos sobre o nosso futuro em comum.
– Futuro? O que significa isso?
– Travis, a verdade é que este interrogatório não me agrada.
Concordei em ajudar-te relativamente à tua mãe e é o que farei,
mas prefiro manter a minha vida privada fora disso. – Saiu do carro
e entrou em casa.
Travis ficou no carro, demasiado atordoado para se mexer. Kim
estava prestes a aceitar uma proposta de casamento do dono de
uma empresa de catering! Como era possível que se tivesse
enganado tanto sobre uma pessoa? Tinha julgado que ela estava…
bom, que estava interessada nele!
Pegou no telemóvel e carregou no número de Penny. Mal ela
atendeu, disse:
– Preciso de saber tudo sobre um homem chamado Dave.
Desconheço o apelido. Vive próximo de Edilean e é dono de uma
empresa de catering. Tem uma reserva em nome dele para o
próximo fim de semana num hotel B&B em Janes Creek, Maryland.
Quero saber tudo sobre ele e refiro-me a tudo.
– Cancelo a reserva no B&B?
– Não. Reserva-me o quarto ao lado. Reserva também os
restantes. Na verdade, reserva todos os quartos disponíveis da
cidade.
– Alguma preferência quanto aos hóspedes? A Leslie ligou-te
várias vezes.
Por um momento, Travis pensou convidá-la. Não sabia se estava
furioso com Kim, ou ciumento, ou… bem, magoado. Qualquer que
fosse o sentimento, não acreditava que a presença de Leslie pudesse
ajudá-lo.
– Provavelmente, ia adorar a joalharia de Miss Aldredge –
comentou Penny, quebrando o silêncio. Ao ver que Travis não
respondia, acrescentou: – A vida não é tão fácil sem o apelido
Maxwell, verdade?
As suas palavras foram demasiado certeiras para o gosto de
Travis.
– Põe quem quiseres nos quartos. Convida a tua família. –
Ocorreu-lhe subitamente que desconhecia em absoluto a vida
pessoal de Penny. – Tens…?
– Se tenho família? – completou por ele. – Tenho, sim. Aliás,
muito numerosa. O meu filho é da tua idade. Envio-te por e-mail o
que descobrir – concluiu e pela primeira vez em todos esses anos foi
ela a primeira a desligar.
Travis fitou o aparelho durante uns momentos. O dia revelava-se
cheio de surpresas! Kim estava prestes a aceitar uma proposta de
casamento e a sua leal mão direita, Penny, tinha um filho da sua
idade.
Ponderou momentaneamente regressar a Nova Iorque para
continuar a destruir as vidas de outras pessoas. Esse trabalho não
afetava tão negativamente os seus sentimentos.
Saiu do carro de Kim sem saber muito bem o que fazer. Entrar na
casa e falar com ela? O que podia dizer-lhe? Que deixasse o noivo
ante a remota possibilidade de que entre Travis e ela pudesse existir
algo e um dia, quando finalmente decidisse o que fazer com a sua
vida, pudessem ficar juntos? Nenhuma mulher aceitaria semelhante
proposta. Muito menos uma mulher como Kim, que sabia o que
queria desde pequena. Aos oito anos, começara a desenhar joias e
continuava a fazê-lo aos vinte e seis.
– Ao passo que eu não decidi… – disse em voz alta, mas não
desejava completar a frase.
Viu que Kim tinha acendido a luz da garagem, o que significava
que estava a trabalhar. Não gostava que o incomodassem enquanto
trabalhava e talvez também ela não gostasse. Além disso, não sabia
o que dizer-lhe.
Dirigiu-se à casa de hóspedes e deitou-se.
SETE
Travis passou a noite praticamente em claro e, quando se levantou
na manhã seguinte, Kim já tinha ido trabalhar. O seu carro, o velho
BMW que Penny lhe comprara, estava no carreiro de cascalho.
Queria ver Kim. Mas, se a visse, não sabia muito bem o que lhe
diria. Continuava sem assimilar a notícia de que tinha um namorado.
Um namorado «formal».
Sem pensar no que fazia, Travis meteu-se no carro e arrancou. O
seu primeiro impulso foi o de praticar qualquer atividade física. Era o
que fazia sempre que o pai exigia demasiado dele: escalar, correr,
conduzir, esqui, surfe, skate. Bastava que o exercício o deixasse
muito cansado para pensar.
Mas não se dirigiu à reserva, não procurou um lago ou um
penhasco. Quando se deu conta, encontrava-se no estacionamento
da loja de bricolagem de Joe Layton.
Ficou sentado no carro, com os olhos cravados na fachada do
prédio, interrogando-se sobre que diabo estava a fazer ali. Quando
alguém abriu a porta do carro, não se surpreendeu ao ver Joe.
– Chegaste mesmo a tempo. Preciso de verificar o inventário. Vais
abrir as caixas, tirar as coisas lá de dentro e risco-as nos papéis.
– Tenho de… – Não lhe ocorreu outro lugar onde tivesse de estar.
– Tudo bem. Mas aviso que não sei distinguir uma serra de um
martelo.
– Eu sei, portanto não faz mal. – Joe manteve a porta aberta
enquanto Travis saía do carro. – Ontem parecias feliz. Agora parece
que o mundo desabou sobre a tua cabeça. A Kim pôs-te fora de
casa?
Travis não estava acostumado a revelar aos demais os seus
pensamentos e muito menos as suas emoções, e não tencionava
começar agora. Mas talvez descarregar caixas de ferramentas o
ajudasse a libertar energia.

– Então, diz-me de repente que tem um namorado – disse Travis.


Tinham passado quatro horas e estava coberto de suor, sujidade e
espuma plástica de embalagem cujo inventor devia ir para o inferno.
Travis contara a Joe a história de como ele e Kim se conheceram em
crianças, e uma coisa puxou outra até lhe dizer muito mais do que
pretendia.
Enquanto falava, tinha descarregado sem ajuda o que se lhe
afigurava centenas de caixas e caixotes de ferramentas e outras
provisões. A inexistência de prateleiras onde arrumá-las não parecia
incomodar Joe Layton minimamente. Limitava-se a estar sentado
com toda a calma num grande sofá de cabedal munido de uma
prancha e assinalava as coisas que Travis retirava das caixas. Joe
mostrara-se desdenhoso ao constatar que Travis não sabia
diferenciar uma chave de fendas com ponta de estrela de uma com
ponta lisa.
– A minha filha sabe… – repetiu Joe. Na sua opinião, a filha era
capaz de governar o mundo.
– Certo, mas eu sei contratar um mecânico para manter as
máquinas em funcionamento – interrompeu-o Travis. Isso pareceu
soltar algo no seu íntimo e no minuto seguinte pôs-se a falar de Kim.
– Não compreendo – disse ao retirar uma ferramenta elétrica de
uma caixa.
– Isso é uma plaina – explicou Joe. – Procura os acessórios.
Travis meteu a cabeça dentro da caixa e as bolinhas de espuma
colaram-se ao cabelo e escorregaram para dentro da camisa. Pensou
imediatamente no filme de Frankenstein e pôs-se a gritar:
– Está vivo! Está vivo!
– Não compreendes o quê? – perguntou Joe.
– Vim a esta cidade para visitar a Kim. Passámos momentos
fantásticos em crianças. Quero dizer, ela era apenas uma menina e
eu um pré-adolescente, mas… ajudei-a com as suas joias. Interrogo-
me se hoje ela teria essa loja se eu não…
– Mentiroso!
Travis levantou a cabeça de dentro da caixa. Estava coberto de
pedacinhos de espuma.
– Desculpe?
– Vieste para interrogar a tua mãe sobre mim.
Travis abriu a boca, mas foi incapaz de articular uma palavra e
fitou Joe.
– Não faças essa cara. Pareces-te com a minha Lucy, falas como
ela. Pensaste que era assim tão estúpido que não veria a
semelhança?
– Eu… Nós…
– Queres investigar que tipo de pessoa sou – continuou Joe. –
Isso é o que faria um bom filho. A Lucy merece que a protejam.
Mas, aviso-te, rapaz, que, se lhe disseres que sei quem és, mostro-
te o que uma serra elétrica pode fazer.
Travis pestanejou algumas vezes. A mãe tinha-o obrigado a jurar
que não falaria a Joe dela e agora Joe queria que não lhe contasse
que ele sabia.
– Encontraste os acessórios? – grunhiu Joe.
– Não… – respondeu Travis em voz baixa sem deixar de fitá-lo
surpreendido.
– Então procura! – exclamou Joe. – Queres que seja eu a fazê-lo?
Travis voltou a meter a cabeça na caixa, encontrou outras duas
mais pequenas e tirou-as para fora. Quando se levantou, olhou para
Joe com uma expressão interrogativa. Como seria a relação deles a
partir desse momento?, pensou.
Joe marcou na lista os acessórios que Travis tinha na mão.
– Então, vieste aqui para veres se a tua mãe tinha enlouquecido
quando disse que queria casar-se com um zé-ninguém que era dono
de uma loja de bricolagem.
Uma vez que era praticamente verdade, Travis limitou-se a
concordar com um brusco aceno de cabeça.
– Pensaste que também podias ver a Kim, já que estavas na
mesma cidade.
– Vi a Kim primeiro – retificou Travis na defensiva, enquanto abria
outra caixa.
– Só por causa do casamento e porque te desviaste.
– Contei-lhe demasiado – murmurou Travis entre dentes.
– O que disseste? – perguntou Joe.
Travis fitou-o.
– Disse que lhe contei demasiado. Sabe demasiado. Vê
demasiado.
Joe soltou uma gargalhada.
– Isso é porque criei dois filhos sozinho. O que tive de passar com
a minha filha! O Joe não me deu problemas. Quando começou a
ficar mais tempo na casa de banho do que o necessário dei-lhe
alguns preservativos. Não foi preciso dizer-lhe nada. Mas a Jecca…
Enfrentou-me sempre. Então, quem é o teu pai?
Travis mordeu a língua antes de dar a resposta. Podia confiar
naquele homem que mal conhecia? Mas Joe tinha algo que inspirava
confiança. A expressão «um homem decente» fora criada à sua
medida.
– Randall Maxwell – respondeu Travis.
Por um instante, Joe pareceu chocado, assustado, impressionado,
horrorizado. Mas depois recuperou.
– Isso explica tudo – replicou. – Então, vieste até aqui para
verificares se o tipo da Nova Jérsia andava atrás do dinheiro da tua
mãe.
– Mais ou menos. Eles continuam casados. – Travis fixou-o bem
nos olhos. – O divórcio vai ser brutal. Sente-se capaz de aguentar?
– Se, no final, ficar com a Lucy para mim, sou capaz.
Travis nem tentou conter o sorriso.
– Sou advogado e…
– Eu a pensar que começava a gostar mesmo de ti.
Travis pediu:
– Não comece com piadas sobre advogados. Conheço-as todas.
Como passámos dos meus problemas aos seus?
– Começaste por me mentir. Vieste ter com a tua mãe e não para
visitar Kim. Deixaste essa jovem sozinha durante todos estes anos e
agora regressaste por outro motivo, viste casualmente a rapariga
que deixaste para trás e agora estás para aí a choramingar porque
ela tem um namorado com quem pode casar. O que esperavas? Que
ficasse virgem e esperasse por ti? Tens irmãos ou irmãs?
– Não a todas as perguntas. O que é esta coisa? O ovo de alguma
espécie extinta?
– Uma lixadeira orbital. Não pensavas que a Kim esperasse por ti,
certo?
– Não, mas sabia… – Voltou a meter a cabeça na caixa para retirar
discos de lixa.
– Sabias o quê?
– Um pouco sobre a sua vida.
– Andavas a espiá-la? – inquiriu Joe, surpreendido.
Travis negou-se a responder. Isso seria dar muitas explicações e
não queria ver-se obrigado a defender-se.
– Quando vai arranjar prateleiras?
– Estão nessas caixas enormes e vais montá-las.
– Não, não vou – replicou Travis. – Se necessita de ajuda e não
pode dar-se a esse luxo, contratarei…
– Com o dinheiro de Maxwell?
– Tenho o meu próprio dinheiro – ripostou Travis, fulminando-o
com o olhar. – Onde arranjou dinheiro para comprar tudo isto?
– Trinta anos de trabalho no duro… e a hipoteca da minha casa de
Nova Jérsia. Não que seja da tua conta. Se estás assim tão
apaixonado pela Kim, o que fazes aqui comigo? Porque não estás a
cortejá-la?
– Devo obrigá-la a dobrar a espinha em público? – retorquiu
Travis, estreitando os olhos.
Joe sorriu.
– Constou-te isso, não? A Lucy sabe fazer dança de varão. Digo-te
que…
– Não quero saber! – interrompeu-o Travis num tom severo.
– Entendido! – anuiu Joe. – O problema parece residir em que não
sabes cortejar uma mulher.
– Só pode estar a brincar, velho. Fiz coisas com mulheres de que
nem sequer ouviu falar. Uma vez…
– Não me refiro ao sexo, chavalo! O único sexo que interessa é
que faças feliz a mulher que amas. Podes fazer um ménage à trois
com meia dúzia de mulheres lindíssimas, mas, se a mulher que amas
não te sorrir ao pequeno-almoço, és um falhado sexual.
Travis quedou-se em silêncio enquanto meditava nessas palavras e
chegou à conclusão que faziam sentido. Voltou a inclinar-se sobre a
caixa, mas endireitou-se novamente.
– Para que saiba, um ménage à trois é com três pessoas e não
com meia dúzia. – Concentrou-se outra vez na caixa.
– Faz com que ela necessite de ti – aconselhou Joe, decorrido um
momento. – Não que te deseje, mas que necessite de ti do mais
fundo da alma. Quer lhe dês uma massagem nos pés ao fim do dia
ou lhe consertes o lava-louça, encontra um vazio na vida dela e
preenche-o.
– A minha mãe necessita de si? – perguntou Travis, curioso.
– Quase não consegue enfiar a agulha nessas máquinas de
costura sem mim.
Travis sorriu ao ouvi-lo. Desde que haviam visitado Edilean pela
primeira vez que a mãe costurara e nunca tivera problemas a enfiar
a agulha.
Joe pareceu compreender o sorriso.
– Okay. A Lucy finge que não consegue cortar o tecido ou mudar
as agulhas. Mas deu-me indicações sobre o preenchimento do
formulário para o pedido da hipoteca. Disse-me, inclusivamente, o
que havia de vestir e o que dizer quando fosse ao banco. Ajudou-me
a arrumar tudo o que está aqui e ela e a Jecca escolheram a cor da
pintura e dos azulejos. Lucy fez as cortinas.
– Parece necessitar mais dela do que ela de si.
– Mas é isso mesmo! – exclamou Joe. – Necessita de mim e eu
dela. Estamos entrosados.
– Entrelaçados – corrigiu Travis.
Joe estreitou os olhos.
– Podes ter mais estudos que eu, mas eu tenho a mulher por
quem estou apaixonado.
– Tem razão. O que devo fazer com estes pedaços de metal?
– Vou ensinar-te a usar uma chave de fendas.
– A minha vida está finalmente completa – murmurou Travis e
agarrou numa chave de fendas.
OITO
– Olá – disse Travis baixinho enquanto abria a porta de acesso à
garagem de Kim. Encontrou-a inclinada sobre uma sólida bancada
de trabalho, examinando, através de uma lupa iluminada, algo que
parecia feito de ouro. – Não quero intrometer-me, mas gostava de
pedir desculpa pela noite de ontem.
– Não é necessário – replicou Kim sem levantar a cabeça.
– Claro que é. Fui grosseiro e… suponho que queria proteger-te,
só isso.
– Tal como o Reede – murmurou Kim. Era o que lhe faltava, dois
irmãos…
Travis percorreu com o olhar a ampla divisão e todo o conteúdo.
Havia prateleiras fundas cheias de caixas, o que lhe pareceu dois
micro-ondas, um cofre grande no canto, uma secretária com um
computador ao lado de uma pilha de dossiês, e três bancadas com
mais ferramentas do que Joe tinha.
– É uma oficina em grande – comentou. – Precisas de tudo isso
para fabricar joias?
– De tudo o que vês. Na verdade, ainda preciso de uma
prancheta, mas não tenho espaço e acabaria por ficar suja.
Na opinião de Travis, o que ela precisava era de luz natural. Na
porta da garagem havia três vidraças e uma janelinha na parede
oposta. Era noite, mas ele gostaria de ver as estrelas.
Kim levantou a cabeça e examinou-o de alto a baixo.
– Por onde andaste o dia todo?
– Fui à loja de Joe Layton e acabei por ajudá-lo a desembalar o
material.
– Tu… – começou, levando uma das mãos à cabeça.
Travis levantou o braço e sacudiu três pedacinhos de espuma do
cabelo.
– Estou cheio dessas malditas coisas. Joe obrigou-me a varrer o
chão e a dobrar as caixas antes de me vir embora. – Aproximou-se
da cadeira junto à secretária e sentou-se pesadamente. – Não
estava tão cansado depois de escalar o monte Evereste.
– Levaste uma vida muito emocionante. – Kim servia-se de uma
pequena lima para polir o que parecia um anel seguro num torno
almofadado. Colocara um pano preto à volta para apanhar as raspas
de ouro.
– De momento, as emoções que estou a viver em Edilean superam
as restantes. Entre o teu irmão, que vai perseguir-me com uma
espingarda quando se lembrar onde me viu; o xerife que quer que
me dedique a resgatar turistas; e o Joe que me envergonha por
ignorar o que é um roteador orbital, o meu pai parece-me um santo.
Kim riu.
– Lixadeira orbital. Um roteador é outra coisa.
– Também tu, Brutus? – replicou Travis, pondo a mão sobre o
coração.
– É só para te pôr a par – disse ela com um sorriso.
Travis observava os documentos e os dossiês que se amontoavam
na secretária.
– Falando em pôr-me a par, o que é tudo isto?
Kim gemeu.
– Dinheiro. Faturas. A cruz da minha existência. Tinha uma
secretária em part-time que me mantinha a contabilidade em dia,
mas casou-se e despediu-se.
– Engravidou? – perguntou Travis. – Essa parece ser a ocupação
principal desta cidadezinha. Deviam investir na televisão por cabo.
– Devias deixar de ver televisão – reagiu Kim. – O resto é mais
divertido.
– Tens de ensinar-me um dia – sussurrou Travis.
Kim fitou-o surpreendida, mas ele colocara os dossiês no colo e
estava a ler as etiquetas.
– Importas-te que dê uma vista de olhos? Sei um pouco de
contabilidade.
– Se não te importares de ver quanto ganho e quanto gasto desde
a alimentação a diamantes, força! – Kim tentara parecer
descontraída, mas na verdade acabara de suster a respiração. Nunca
tinha permitido que um homem, além do pai, examinasse as suas
finanças. O sucesso do seu negócio era sempre o que colocava
ponto final nas suas ligações sentimentais.
Mas Travis era diferente. Eram amigos. Quase se engasgou ao
pensar nisso.
– Disseste alguma coisa? – perguntou ele.
– Não, nada.
– Estas faturas estão contabilizadas?
– Há semanas que não as processo. O meu contabilista vai matar-
me.
– Importas-te que o faça? – perguntou Travis, indicando o
computador com um aceno de cabeça.
Kim encolheu os ombros. Que o fizesse se assim o desejava.
Aguçou o ouvido enquanto ele se acomodava na cadeira e começava
a examinar os dossiês. Ouviu-o teclar e de cada vez que levantava a
cabeça via-o debruçado sobre os papéis. Tinha a certeza de que se
alguém soubesse o que estava a fazer lhe chamaria idiota por deixar
que um homem que não via desde pequena examinasse a sua
contabilidade, mas, independentemente de qualquer outra coisa que
pudesse pensar sobre Travis, confiava nele.
***
Tinham passado quase duas horas desde que Travis regressara e
nessa altura estavam na cozinha. Travis usara o seu programa de
contabilidade, embora tivesse insistido para que fosse ela a colocar a
password, e examinara o trabalho realizado pela sua antiga
secretária. Em seguida, perguntou-lhe se podia pôr a contabilidade
em dia e ela tinha respondido afirmativamente. Depois de várias
perguntas sobre algumas empresas e algumas faturas, tinham
continuado a trabalhar em silêncio.
Em resumo, fora muito agradável trabalhar com ele no ateliê. Tal
como sucedia quando eram crianças, pareciam formar uma boa
equipa.
– Não acredito que fizeste todo o caminho até Williamburg para
trazer frango assado – comentou Kim enquanto tirava a comida do
frigorífico.
Como acontecia frequentemente, não tinha pensado no jantar.
Ficara surpreendida e satisfeita quando Travis disse que trouxera
comida para casa.
Kim sorrira ao ouvi-lo usar a palavra casa. Quase soara como se
ele também vivesse ali.
– Joe explicou-me que havia uma estrada secundária e não
demorei nada – contou Travis, depois do que se entreolharam e
desataram a rir. – Não excedi o limite de velocidade e não saí do
asfalto. – Olhou para o relógio. Era tarde.
– Parece que te entendeste com Mister Layton.
Travis demorou algum tempo a responder enquanto punha a
salada nos pratos e os levava para a mesa.
– Sabe que Lucy é minha mãe.
– Estás a brincar! – exclamou ela.
– A sério. Viu logo a semelhança, mas obrigou-me a jurar não
dizer à minha mãe que tinha descoberto tudo.
– Presumo que ela não desejaria que lho dissesses.
– Exato. Agora estou entre a espada e a parede – concluiu Travis,
enquanto a olhava do outro lado da mesa. Agradara-lhe muito
passar a tarde no ateliê dela, mas preferia passar mais tempo no
exterior, quer fosse de dia ou de noite. A garagem reconvertida em
oficina de joalharia era demasiado claustrofóbica para ele. – Joe não
precisa daquela grande sala nas traseiras da loja. As janelas estão
viradas para o bosque. Diz que a Jecca nunca a usará e entendo o
motivo. Ele admira muito a habilidade da filha quanto a montar
ferramentas elétricas e não hesitaria em pô-la ao seu serviço.
Kim estendeu um braço para retirar um pedaço de espuma que
ele tinha colado na camisa.
– Sinto que tenho essas coisas por todo o lado. Importas-te? –
perguntou, ao mesmo tempo que afastava para trás o colarinho da
camisa.
Kim levantou-se e agarrou no colarinho mas sem lhe tocar. Ao
olhar para baixo, só viu a pele bronzeada pelo sol e os músculos.
– Nem um único.
– De certeza? Faz-me comichão. Devia ter tomado duche, mas
tinhas a luz acesa e queria ver-te. – Agarrou-lhe na mão e beijou-lhe
as pontas dos dedos. – Ups, desculpa! – exclamou e soltou-a. – Vais
casar, portanto tens o cartão de «não tocar».
Kim franziu o sobrolho e voltou a sentar-se.
– Não é bem assim. Não fui pedida em casamento e muito menos
respondi que sim.
– Gostas mesmo desse indivíduo?
– É um querido – respondeu Kim, mas não queria falar de Dave. –
Quais são os teus planos para amanhã?
– Segundo Joe, vou ser seu escravo. Kim, se quiseres esse espaço
que supostamente se destinava à Jecca, posso conseguir-to. Direi a
Joe que to ofereça como presente de casamento. Sem aluguer
durante três meses e depois com uma mensalidade razoável.
– Adoro a minha garagem e porque me daria um presente se
quem vai casar é ele?
– Não me referia ao seu casamento, mas ao teu. Com o Dave. É
um homem e vai querer um sítio para arrumar o carro ou para
guardar uma das carrinhas que as empresas de catering usam. Virá
morar contigo, não? Não creio que ganhe o suficiente para comprar
uma casa como esta. Mas os teus lucros do ano passado foram
substanciais. Parabéns! A tua loja é um sucesso.
O que Travis dizia era maravilhoso, genial, mas de algum modo
irritou-a. Não tinha pensado na hipótese de Dave aparecer com um
monte de equipamento. Era dono de cinco carrinhas enormes e de
muitos utensílios de cozinha gigantescos. Vivia num apartamento
pequeno e alugara uma cozinha industrial. Mesmo assim, também
cozinhava em casa. Num domingo à tarde tinha ido buscá-lo e
acabou por ajudá-lo a preparar dezassete quilos de salada de atum.
As roupas ficaram a cheirar tão mal que se vira obrigada a pô-las de
molho antes de as meter na máquina de lavar.
– Dave e eu ainda não discutimos essas coisas – reconheceu Kim.
– Na verdade, é a Carla que diz que vou receber um pedido de
casamento, mas ela encara todos os homens como potenciais
maridos. Sugeriu inclusive que vocês os dois….
– Nós os dois? – Travis arregalou os olhos. – A Carla e eu? Ela é
gira. Parece-te que aceitaria sair comigo?
Kim fitou-o com uma expressão pensativa e de repente teve a
impressão de que estava a ser manipulada, mas não sabia como.
– Estás a tramar alguma?
– Apenas a tentar ser teu amigo, nada mais. Gosto da tua
companhia e quero ajudar por aqui para não me mandares embora.
Edilean é um sítio assustador.
Kim não conseguiu evitar uma gargalhada.
– Será, quando o meu irmão se lembrar onde te viu! Naquele
momento, não entendi porque tapavas a cara. É mesmo verdade
que quase o atropelaste?
– Sim – confirmou. – Ia-me dando um ataque de coração. Ali
estava eu em Marrocos, a dar o meu melhor para bater o recorde de
Jake Jones, tendo ao lado Ernie, o meu mecânico, que levava o
mapa. Fiz uma curva apertada e apareceu esse tipo a atravessar a
estrada com um burro tão carregado que o pobre animal tinha as
pernas arqueadas com o peso.
– Típico de Reede, sim – comentou ela.
Travis levantou-se e fingiu que estava atrás do volante.
– Antes de fazer essa curva, dei-me conta de que havia
marroquinos nas bermas a gritar-nos em árabe. Não falo por ti, mas
o meu árabe resume-se a la e shukran – não e obrigado. Como
podia saber que estavam a avisar-nos de que um médico americano
com um parafuso a menos andava a deambular pela pista de
corrida?
– O teu era o único carro?
– Não, com os diabos! Íamos atrás do Jake e não conseguia
ultrapassá-lo. Ele tinha feito algo ao sistema de injeção, mas eu não
sabia. Cada vez que me aproximava, metia uma mudança e
afastava-se, lançando-nos uma chuva de pedras. Deixou-me o para-
brisas numa lástima. – Travis inclinou-se para a frente, sem largar o
volante invisível. – Portanto, ali estava, a gritar com o Ernie… um
carro de corrida não é à prova de som… sobre que raio os árabes
estavam a gritar-nos e ele a responder-me que, se não abrandasse,
a caixa das mudanças rebentava quando de repente, pum!, aparece
esse homem.
– Com um burro! – acrescentou Kim.
– Que ficou paralisado. O burro tinha senso bastante para
reconhecer o perigo.
– Mas o meu irmão, não.
– Ah, pois não! Olhou para o carro que se aproximava a quase
cento e noventa e…
– Tinhas abrandado para fazer a curva – observou Kim com uma
expressão solene.
– Sim, claro – confirmou Travis que parecia encantado com a
compreensão dela. – Se o teu irmão estava assustado, disfarçou
muito bem. Limitou-se a fitar-me de cenho franzido como se eu
fosse uma contrariedade e depois virou-se para puxar a corda do
burro.
– Em que ano foi isso?
– Dois mil e cinco.
– Oh, meu Deus! – exclamou Kim. – Foi pouco tempo depois de a
sua noiva de toda a vida o ter deixado. Provavelmente, ainda se
encontrava naquela fase de não se importar se vivia ou morria.
– Tal como me sentiria se me dissesses que saísse da tua vida e
nunca mais voltasse – comentou Travis, após o que retomou de
imediato a narrativa. – Quando gritei, Ernie levantou os olhos do
mapa e pôs-se a gritar como uma rapariga. Torci o volante ao
máximo, travei a fundo e quase capotámos.
Kim escutava-o sem acreditar na sua afirmação de como se
sentiria se o expulsasse da sua vida.
– Acho que… – começou.
– O teu irmão ficou ali plantado, observando tudo. Durante
décimas de segundo fitámo-nos nos olhos e tivemos uma clara visão
um do outro. Foi um desses momentos em que o mundo parece
parar. O burro desmaiou de medo e foi quando as caixas que
transportava caíram por terra e se abriram.
– E Reede…
– Quando consegui endireitar o carro e pô-lo na direção correta, o
teu irmão estava uma fera, gritando connosco. – Travis levou uma
mão ao coração. – Juro-te que é verdade, mas eu queria parar e ver
se o burro estava bem. Não sabia que o conteúdo das caixas era
importante. Então o Ernie disse: «Deus do céu! É um americano!
Não pares ou metem-nos na prisão! Vai, vai! Acelera a fundo, temos
de sair daqui!» E obedeci.
– Ganhaste a corrida?
– Claro que não. A caixa de mudanças quebrou-se oitenta
quilómetros mais à frente. Estávamos tão longe da civilização que
foram buscar-nos de helicóptero.
Kim observou-o enquanto ele voltava a sentar-se. Não pôde evitar
lembrar-se do jovem que tinha montado na sua bicicleta.
– Concordo – disse ela.
– Com o quê?
– Quando o meu irmão se recordar de onde te viu, irá perseguir-te
com uma espingarda.
– Isso não me serve de muito – replicou Travis com um sorriso. –
Quero que estejas do meu lado.
– Estou. Provavelmente, Reede sabia da corrida e queria provocar
uma briga. Nessa altura, tinha tanta raiva dentro dele por a noiva o
haver abandonado que decerto procurava uma maneira de lhe dar
vazão.
Travis compôs uma expressão séria.
– Esteve muito próximo de acabar morto.
Kim sorriu.
– Obrigada por o teres evitado. Obrigada por não o atropelares e
também por teres reposto as provisões. Se não conduzisses tão
bem, os três… e o burro também… podiam ter morrido.
Fitaram-se um instante e Kim sentiu-se de novo atraída por ele.
Era como se o seu corpo a chamasse com uma espécie de
magnetismo que passava entre os dois. Kim sentia a atração, o
formigueiro, o desejo que se apoderava de ambos.
O seu corpo aproximou-se involuntariamente do dele. Queria que
a abraçasse e a beijasse. Viu que Travis fitava os seus lábios e que
os olhos escureciam com uma expressão ardente.
Mas passado um segundo ele virou as costas e o instante diluiu-
se.
– É tarde – ouviu-o murmurar – e o Joe… vemo-nos amanhã. –
Saiu da casa num abrir e fechar de olhos.
Kim sentou-se numa cadeira. Sentia-se como um balão a que
haviam desfeito o nó. Esvaziada. Pior ainda, sentia-se derrotada.
***
Quando Travis entrou na casa de hóspedes, estava a tremer. Nunca
em toda a vida desejara uma mulher como desejava Kim, mas
também se importava com ela. Não queria magoá-la, não queria…
Sentou-se na beira da cama e ligou a Penny.
– Acordei-te? – perguntou.
Ela hesitou. Travis nunca se tinha interessado pelos hábitos de
sono da sua secretária.
– Não – respondeu Penny, mentindo.
– Descobriste alguma coisa sobre o dono da empresa de catering?
– Só o nome, mas enviei o meu filho a Edilean para ver o que ele
consegue descobrir.
– Como é o teu filho?
– Que importância tem isso? – quis saber ela.
– Há uma rapariga, Carla, que trabalha para a Kim e que se atira a
qualquer homem medianamente atraente que entre na loja. Ela sabe
algo sobre um anel de safira em falta. Julgo que está relacionado
com o tipo da empresa de catering e quero chegar ao fundo da
questão. Pensas que o teu filho pode encarregar-se disso?
– Sem problema – garantiu Penny que parecia divertida. – O que
mais descobriste?
– Não muito, só que a Kim está a ser bastante bem-sucedida com
a sua loja.
– O suficiente para levar este homem a piscar-lhe o olho?
– Sim – concordou Travis. – Ambos sabiam muito sobre o que
uma pessoa era capaz de fazer para conseguir um negócio lucrativo.
– Não te parece possível que esse tal Dave esteja enamorado da
bonita Kim?
– Pode estar, mas digamos que, se lhe tocar, precisarei de duas
pistolas de duelo.
– Ora, ora – reagiu Penny.
– Como está a correr o fim de semana com os teus parentes em
Janes Creek?
– Todos estão encantados com o fim de semana gratuito. Mas
preciso avisar-te de que nem o teu pai seria capaz de pagar as
despesas do meu tio Bernie com o serviço de quartos.
– Não te preocupes. Começo a habituar-me a lidar com familiares.
A minha mãe e o seu novo…
– O seu novo quê? – interrompeu Penny, maravilhada por estarem
a manter uma conversa que incluía a sua própria vida.
– O homem com quem planeia casar. Tenho andado a trabalhar
para ele.
– Ofereceu-te um bom seguro dental? – perguntou Penny,
disfarçando a surpresa.
Travis abafou o riso.
– Não me paga em dinheiro, mas com conselhos. Montes de
conselhos.
– Bons ou maus?
– Depende do resultado que ainda desconheço. Tenho de
encontrar uma desculpa convincente para acompanhar Kim a
Maryland.
– Vais pedir-lhe licença para ir? – reagiu, chocada.
– Sim – respondeu Travis. – Não posso continuar a falar. Joe quer
que chegue ao trabalho às sete em ponto. Vou fixar prateleiras de
aço em paredes de tijolo. Estou ansioso.
– Eu, bem… – Penny não sabia o que dizer e portanto desejou-lhe
boa noite e desligou. – Penso que Edilean me agrada – murmurou
enquanto voltava a meter-se na cama.
NOVE
– Então, como é viver com ele? – perguntou Carla a Kim na manhã
seguinte. – Bom sexo, hein? Ele tem ar de ser fabuloso na cama.
Quanto aguenta? Gosta de…
– Carla! – interrompeu-a Kim. – Importas-te de ser um pouco
mais profissional?
– Ora, pela forma como reages, vejo que não aproveitaste. Estás a
reservar-te para o Dave? Mas, se mudares de opinião, conheço um
perfume que podias experimentar. Chama-se…
Kim foi para o seu gabinete e fechou a porta. Não tinha visto
Travis nessa manhã, pois quando se levantara, ele já tinha ido para
a loja de Joe. Deixara-lhe um bilhete engraçado na bancada da
cozinha a dizer-lhe que estava ansioso por aprender a fazer furos em
tijolos. Deviam pôr os tijolos de lado, onde já têm buracos,
escrevera, provocando-lhe um sorriso.
Era agradável começar o dia com uma risada, mas gostaria de tê-
lo visto.
Quando o telemóvel tocou, viu que se tratava de um número
desconhecido.
– Vens almoçar comigo? – ouviu a voz de Travis. – Por favor?
O seu mau humor desapareceu de imediato.
– Onde? – Absteve-se de perguntar: «Quando? Como? Devo levar
comida? O que achas de diamantes de pureza três?»
– No Delmonicos o famoso restaurante fundado em mil oitocentos
e noventa e nove?
– Fantástico. Vou buscar o espartilho à arca.
– Sabes pô-lo sozinha?
– Posso precisar de ajuda – respondeu Kim com o coração junto à
garganta. Adorava a provocação!
– Gostava de me oferecer como voluntário, mas arranjei um
gémeo siamês. Joe não me larga por nada. Importas-te de almoçar
com os dois?
– Será um prazer – disse Kim. – Mas o Joe vai querer comer no
Al’s Diner.
– Já conheço o sítio e não me parece adequado. Joe especificou
que quer pasta al dente com brócolos ao vapor. Uma toalha…
– … serviço de Limoges e talheres de prata – completou Kim.
– Isso mesmo! Vemo-nos na hamburgaria ao meio dia?
– Estou ansiosa – respondeu Kim e regressou à loja com um
enorme sorriso.
Carla ergueu os olhos no momento em que guardava um tabuleiro
com pulseiras.
– O que te pôs esse sorriso na cara não corresponde a metade do
que me aconteceu.
– A sério? – replicou Kim, fitando os tabuleiros. A pulseira que
Travis tinha admirado desaparecera bem como o anel com o enorme
diamante rosa. – Uma boa venda?
– Fabulosa! Um homem queria algo para oferecer à mãe. Tinha
bom gosto e escolheu o melhor da loja quase sem olhar. E…
– O quê?
– Convidou-me para sair com ele esta noite.
– Não é o que faz metade dos homens que entra aqui?
– Os babados e os falhados casados – prosseguiu Carla. – Os
elegantes como ele querem-te a ti.
Kim estava de tão bom humor que se dispôs a ouvir Carla, mas a
porta abriu-se para dar passagem a um homem muito bem-
parecido. Não era tão moreno como Travis, nem tinha o olhar
experiente que caracterizava Travis, mas era lindo. E estava vestido
com um fato que devia ter custado milhares de dólares.
Olhou para Kim, cumprimentou-a com um leve aceno de cabeça e
dirigiu-se a Carla.
Kim manteve-se afastada a observá-los. Formavam um par muito
desigual. Embora Kim tivesse tido imensas conversas com Carla
sobre a sua maneira de vestir, ela teimava em desapertar o botão
superior da camisa, usar a saia uns cinco centímetros acima do
normal e abusar da maquilhagem. O homem parecia acabado de sair
de um clube exclusivo, enquanto Carla… Enfim, era grande a
discrepância entre eles.
– Acho que também vou levar os brincos de pérolas – anunciou o
homem num tom de voz aveludado enquanto fixava Carla, como se
quisesse devorá-la.
– Claro, Mister Pendergast – disse Carla.
– Já pedi que me tratasse por Russell – replicou.
– Assim farei – anuiu Carla que continuou a fitá-lo embeiçada.
Kim dirigiu-se ao expositor mais afastado de onde tirou os seus
melhores brincos de pérolas. Dado que tinha comprado duas peças
caras, presumiu que eram aqueles os que desejava. Formavam uma
concha que continha a pérola. Pousou-os no balcão e fê-los deslizar
entre as duas pessoas que não se largavam com o olhar.
O homem virou-se para ela e os olhos quase negros fitaram-na
com uma enorme intensidade, como se estivesse a avaliá-la. «Se
Travis não estivesse na cidade», pensou «olharia para este homem.»
Mas limitou-se a brindá-lo com um sorriso profissional.
– É a designer? Kimberly Aldredge?
– Sim.
– Chamo-me Russell Pendergast. Estou de passagem pela cidade
e nunca imaginei que houvesse uma joalharia de tanta qualidade. As
suas criações são espetaculares.
A voz e a pronúncia indiciavam uma educação esmerada. «Como
Travis», pensou.
Por trás do cliente, Carla fulminava-a com o olhar, ameaçando-a
sem palavras que, caso Kim se insinuasse, haveria sangue.
– Onde se pode almoçar aqui? – perguntou ele.
– Conheço alguns sítios – disse Carla, atrás dele. – Saio à uma.
– E, quanto a si, Miss Aldredge? A que horas vai almoçar?
Kim recuou um passo. Por mais atraente que ele fosse, não estava
interessada.
– Combinei encontrar-me com uns amigos para comer na
hamburgaria local. Não a recomendaria a um forasteiro. Desculpe-
me. – Regressou ao gabinete.
«Interessante», pensou enquanto agarrava no bloco de esboços e
se concentrava no trabalho. Talvez devesse desenhar mais joias em
forma de conchas. Tinha de criar uma linha específica para a Neiman
Marcus, e talvez fosse preferível uma temática marinha.
Uma hora depois saiu para almoçar. Mr. Layton e Travis já a
esperavam num reservado com as suas bebidas. Mal a viu, os olhos
de Travis brilharam de uma maneira que lhe arrancou um sorriso.
Levantou-se, beijou-a na face e deixou que se sentasse primeiro.
– Sabes o que queres almoçar? – perguntou Travis ao mesmo
tempo que indicava Joe com um aceno de cabeça. – Aqui o nosso
amigo não queria esperar e já encomendámos.
– O Al sabe – respondeu, erguendo o braço e saudando o
homenzarrão que se encontrava na cozinha. Parecia que Travis e Mr.
Layton começavam a conhecer-se bem.
– A mim não me beijas? – perguntou Joe. – Agora reservas os
beijos para os jovenzinhos?
– Perdão – desculpou-se Kim e inclinou-se sobre a mesa para o
beijar na face. Não se deu conta de que Travis a devorava com os
olhos. Nem tão-pouco viu que Mr. Layton fitou Travis como a indicar-
lhe que ficava a dever-lhe uma.
– O que andaram os dois a fazer? – indagou Kim.
– Ele nada; fui eu que fiz tudo – respondeu Travis.
Kim fitou-o. Tinha a camisa suja e serradura numa têmpora.
Estendeu o braço e sacudiu-a e em seguida percebeu que Mr. Layton
os olhava fixamente.
Recuou um pouco no banco.
– Tivemos uma manhã emocionante.
– Melhor do que cortar pedaços de madeira para fazer cavaletes?
– troçou Travis.
Kim corrigiu-lhe a pronúncia e os olhos de Mr. Layton brilharam.
– Está a ser mauzinho e vou fazer queixa à Jecca – prometeu,
fitando novamente Travis. – Esta manhã apareceu um homem jovem
que comprou as três peças mais caras da loja.
– A sério? – interessou-se Travis.
– Disse à Carla que eram para a mãe. Tinha um fato muito
parecido com o que usavas quando te vi no casamento.
– Antes de ter descoberto as maravilhas das T-shirts com
logótipos? – replicou Travis.
Mr. Layton não sorriu.
– Como se chama?
– Russell Pendergast e convidou a Carla para sair esta noite.
Travis engasgou-se com a bebida.
– Pendergast?
– Sim. Conhece-lo?
– Nunca o vi – respondeu Travis que se sentiu trespassado pelo
olhar de Joe Layton. – Como é ele?
– Fabuloso – disse Kim. – Elegante. Destila boa educação e
riqueza.
– Ah, sim? – reagiu Travis com curiosidade. – E comprou-te as
tuas peças mais caras para a mãe. Interessante. Em que
universidade andou? Talvez o conheça.
– Não faço ideia. Mas, depois de ter saído com a Carla, estou
certa de que saberei tudo. Na verdade, não consigo vê-los juntos.
Ele é…
– Atirou-se a ti? – quis saber Travis, franzindo as sobrancelhas
escuras.
– Não creio que seja da tua con… – começou Kim, sentindo-se um
pouco irritada.
– Ah, que bom! – exclamou Joe. – Vem aí a nossa comida. Se
preferem discutir a comer, informem-me para que venda bilhetes.
– Não discutiremos – garantiu Kim. – Russell e eu vamos sair no
sábado à noite.
– No sábado vais para um hotel com o teu quase noivo – lembrou
Travis com uma expressão sombria.
– Ah, claro! – confirmou Kim, sorrindo a Mr. Layton. – Tenho
tantos homens que me confundo.
– Devias levar o Travis contigo.
– Onde? – perguntou Kim.
– No fim de semana – respondeu Joe.
– Levar Travis no fim de semana com o meu namorado? – replicou
Kim.
Sinceramente, a ideia agradava-lhe, mas não estava disposta a
confessá-lo. Se Dave a pedisse em casamento, a presença de Travis
dar-lhe-ia tempo para pensar na resposta. Caso Dave se mostrasse
demasiado… insistente, ou o que quer que fosse, Travis estaria lá.
Mas preferia comer os 57 hambúrgueres que Al tinha na ementa e
sofrer um ataque cardíaco fulminante a admiti-lo.
– Sim – anuiu Joe enquanto dava uma mordidela num
hambúrguer de meio quilo de carne e a gordura escorreu-lhe para os
pulsos. – O Travis disse-me que ias trabalhar um pouco. Como podes
fazê-lo se andares a namoriscar? Se levares o Travis, ele poderá
encarregar-se de todo o trabalho.
Travis brindou Joe com um olhar entre o agradecimento e a
vontade de dar cabo dele.
– Não é má ideia – disse Kim, enquanto remexia com o garfo o
que Al considerava uma «salada». Muita galinha frita e pouca alface.
– Vou pensar no assunto – prometeu, sem se atrever a fitar Travis.
Suspeitou que ele tinha um sorriso de orelha a orelha.

Quando a luz do Sol da manhã entrou pelas janelas, Travis estava


sentado na sala de estar de Kim, tentando concentrar-se no jornal,
mas sem conseguir. Há uma hora que Kim saíra para ir trabalhar e
desde então aguardava a chegada do filho de Penny.
No dia anterior, depois do almoço com Kim e com Joe, Travis tinha
ido visitar a mãe. Ao entrar em casa de Mrs. Wingate, ouviu o
zumbido da máquina de costura da mãe e a familiaridade do som foi
agradável. Quando subiu ao andar de cima, foi fácil adaptar-se ao
ritmo e começou a cortar tecidos. Coser era algo que tinham feito
juntos desde que era um rapazinho. Nunca falavam do assunto, mas
recordava-lhes a época passada em Edilean, um período de paz para
ambos. Aquelas duas semanas tinham-lhes mudado a vida.
Travis sentia-se um pouco preocupado com o que a mãe sabia
sobre Joe e ele, mas o seu nervosismo não tardou a desvanecer-se.
Sempre haviam mantido uma estreita relação e partilhavam quase
sempre a mesma opinião. No começo, tinha receado que lhe fizesse
outro sermão sobre Kim, mas a irritação que demonstrara no seu
primeiro encontro desaparecera.
Em vez disso começaram a falar calmamente sobre Joe. Travis
contou-lhe tudo, exceto que Joe sabia que Travis era filho de Lucy.
Mas falou-lhe do resto, desde o desembalar das ferramentas até à
correção dos termos técnicos, passando pela montagem de
prateleiras de aço numa parede de tijolo.
Lucy começou a rir com as histórias do filho e Travis afastou-a das
máquinas de costura – ela trabalhava demasiado – e levou-a até à
cozinha. Tal como haviam feito durante a sua infância, Travis fez o
chá enquanto ela preparava as sandes. Depois de tudo pronto, Lucy
conduziu-o até à estufa. Ele passeou um bocado junto às plantas,
admirando as orquídeas. Quando se sentou, Lucy perguntou-lhe por
Kim.
Travis hesitou.
– Podes contar-me – incitou baixinho. – Continuas apaixonado por
ela?
– Sim – confirmou e fitou a mãe com uma expressão que
denotava a profundidade dos seus sentimentos. – Mais do que
nunca. Mais do que julgava possível.
Os olhos de Lucy encheram-se de lágrimas. Era uma mãe que
albergava a esperança de que o filho encontrasse o amor.
– É divertida e perspicaz – continuou Travis enquanto pegava na
ponta da sandes. Desde pequeno que a mãe aparava o pão e o
cortava na diagonal para que tivesse quatro pontas. Quando ele
cresceu, continuou a fazê-lo. – Muito inteligente também. Devias ver
as joias que tem na loja. São lindíssimas!
– Já as vi – replicou Lucy. – Sempre que me constava que Kim
estava fora da cidade, visitava a sua loja. Gosto das folhas de
oliveira.
– Também eu – disse Travis. Levantou-se e acariciou a folha de
uma orquídea antes de voltar. – Sinto-me à vontade com ela. Não
necessito impressioná-la, embora o tente.
– Joe contou-me que conduziste pelo atalho da floresta e que não
sabia como foste capaz.
Travis encolheu os ombros.
– Faz parte do trabalho como duplo. Não foi difícil.
– Também me contou algo sobre um balão… – acrescentou Lucy.
– Não conseguia aguentar os gritos da criança, trepei à árvore e
trouxe-lhe o balão.
– Sempre tiveste bom coração.
– Ninguém o diria em Nova Iorque – replicou.
– Não, suponho que não. Tens coisas do teu pai e também minhas
dentro de ti. O que vais fazer agora?
Travis voltou a sentar-se.
– Joe arranjou as coisas de maneira a que passe o fim de semana
com a Kim. Estarei no apartamento ao lado e ela pode estar com o
namorado. Mesmo assim… estarei perto dela.
– Joe contou-me – disse ela, sorrindo ao filho. Nunca o tinha visto
assim e sentia-se feliz.
– A sério? Que outros dos meus segredos te contou esse velho
intrometido?
Lucy sorriu. Desde que os dois se conheceram, Joe só lhe falava
de Travis. O que Travis dizia, o que fazia, o que o preocupava, o
amor profundo por Kim, as sugestões de Travis sobre a loja de
bricolagem. Joe repetia todas as palavras dele.
«Devias tê-lo visto com a Kim», dissera-lhe Joe quando lhe ligou
depois do almoço na hamburgaria. «O pobre não tirava os olhos de
cima dela.»
«E ela?», quis saber Lucy. «O que pensa a Kim do meu… de
Travis?» Se Joe se deu conta do lapso, não o mencionou.
«Comporta-se como se não lhe prestasse atenção, como se não
passasse de qualquer outro homem, mas se ele se mexe, dá por
isso. Quando sugeri que levasse Travis com ela a Maryland, o rosto
iluminou-se-lhe como um anúncio de Natal.»
Lucy olhou para o filho.
– O Joe gosta muito de ti.
– Ninguém o diria pela forma como fala – replicou Travis, embora
sorrisse. – Segundo Joe Layton, qualquer homem que não saiba usar
devidamente um serrote não vale muito. Disse-lhe que era advogado
e sabes o que me respondeu?
Lucy já tinha ouvido a história da boca de Joe, mas queria escutá-
la novamente contada pelo filho.
– Não faço ideia.
– Disse que…
Agora, com o jornal na frente, Travis foi incapaz de conter um
sorriso. Na noite anterior, tinha visto a mãe como a recordava, a sua
bondade, o sentido de humor, a ternura. Ficou feliz por não ter de
aguentar mais uma sessão de reprovações.
Por outro lado, essa mulher talvez conseguisse fazer frente a
Randall Maxwell num tribunal.
Na noite anterior, quando Travis regressara a casa – como passara
a designar o sítio onde vivia Kim –, ela estava prestes a meter dois
pratos congelados no micro-ondas. Na sua época da universidade,
Travis tinha passado mais de um ano em iates privados. Um ano,
para sua grande surpresa, deram-lhe o cargo de chef. Ele nem
sequer sabia ferver água.
Voltou a pôr a comida no congelador e revistou o que havia no
frigorífico enquanto contava a história a Kim.
– Ali estava eu, sem saber distinguir um ovo de uma melancia e
supostamente devia passar seis semanas a cozinhar três refeições
diárias para um velho rico e a sua jovem mulher.
Kim mordiscou a cenoura que cortara para ela.
– O que fizeste?
– Compus o meu ar mais inocente – replicou, fazendo uma
demonstração – e pedi à mulher que me ajudasse.
– Ela ajudou?
– Já te conto – respondeu Travis ao mesmo tempo que metia uns
peitos de frango a descongelar no micro-ondas. Sentiu-se satisfeito
por estar de costas para Kim, enquanto pensava nessa viagem. Não
queria que lhe visse o rosto.
Mas Kim percebeu.
– Que mais te ensinou?
Travis desatou a rir.
– Um pouco de tudo. Luar, estrelas, o velho a roncar lá em baixo.
Na altura tinha dezanove anos e era inocente. Quando regressaram
aos Estados Unidos deixara de ser tão inocente.
Ele e Kim desfrutaram de um jantar que ele pretendia infindável.
Kim contou-lhe mais coisas sobre a joalharia e o que esperava
alcançar.
– Estou prestes a conseguir uma grande encomenda e necessito
de inspiração.
– A viagem a Maryland vai fazer-te bem.
– Foi essa a ideia quando deixei que a Joce me convencesse a ir.
– Não planeaste logo ires acompanhada por esse tipo, pois não?
– Dave? Não, não planeei.
– Foi ele que se convidou? – perguntou Travis.
– Mais ou menos – respondeu Kim –, mas creio que tem algo de
importante para me dizer. Carla e ele deram-me bastantes pistas.
Nesse momento, ocorreram à mente de Travis uma série de coisas
que pretendia dizer, mas decidiu que era preferível silenciar as suas
opiniões. O filho de Penny, Russell, fora sair com Carla e tinham
combinado encontrar-se no dia seguinte de manhã para que lhe
contasse o que descobrira.
Mas a manhã já ia a meio e Russell ainda não tinha aparecido. Ao
pensar nisso, Travis não conseguiu evitar um sorriso. Costumava
habituar-se à mentalidade de uma cidadezinha. Em Nova Iorque,
muitas vezes ainda estava na cama a essa hora, mas geralmente
deitava-se muito tarde. Os clientes adoravam conhecer Nova Iorque
e as diversões noturnas que a cidade proporcionava.
Quando a campainha tocou, Travis largou o jornal e chegou à
porta com grandes passadas. Tinha curiosidade em conhecer o
homem que Kim descrevera como «fabuloso» e também queria
conhecer o filho da mulher que o pai descrevera como a sua «mais
leal empregada». Penny trabalhava para Randall Maxwell desde
muito jovem e, quando Travis se vira obrigado a trabalhar para o
pai, Randall passou-o a Penny para que «cuidasse dele».
Travis abriu a porta e encontrou-se diante da cara mais enfurecida
que alguma vez vira. Tendo em conta o que o pai o obrigara a fazer,
havia visto umas tantas.
Os dois homens eram quase da mesma altura, pareciam ter a
mesma idade e eram ambos bem-parecidos. Mas o rosto de Travis
indiciava uma vida de luta, uma vida de solidão. O seu olhar refletia
todas as ocasiões em que tinha enfrentado a morte durante os seus
exercícios radicais e também a guerra declarada entre os seus pais.
Os olhos de Russell emanavam raiva. Tinha crescido à sombra da
poderosa família Maxwell e chegara a odiar esse apelido porque os
desejos dessa família tinham prioridade total. Nessa semana, não
ficara surpreendido quando a mãe lhe tinha pedido que ajudasse
Travis Maxwell. Era um apelido que aprendera antes do seu. Nem
sequer se admirou ao ser informado de que Travis nunca ouvira falar
dele, nem sequer sabia da sua existência. A raiva que sentia estava
espelhada no seu rosto, na sua postura, como se desejasse que
Travis dissesse algo que lhe permitisse iniciar uma briga.
– És o filho da Penny – disse Travis enquanto se mantinham de pé
junto à porta. – Não sabia que ela… – Interrompeu-se ao ver o olhar
furioso do indivíduo. – Entra, por favor – acrescentou num tom
formal e recuou para dar passagem a Russell, dirigindo-se à sala de
estar azul e branca de Kim.
– Um pouco abaixo do teu nível, não?
Atrás dele, Travis soltou um suspiro. O apelido Maxwell! O facto de
estar em Edilean e sobretudo de se relacionar com Joe quase o
fizera esquecer-se das ideias preconcebidas que as pessoas tinham a
seu respeito. Toda a sua vida tinha ouvido: «É o filho de Randall
Maxwell, portanto…» Cada um acrescentava o que queria.
Aparentemente, o filho de Penny já tinha decidido que Travis era
um clone do pai.
Travis abandonou a expressão amistosa que havia adotado nessa
última semana e trocou-a pela que compunha em Nova Iorque.
Como nada podia chegar até ele, nada podia causar-lhe dano.
Russell sentou-se na poltrona e Travis captou a indireta:
estabelecia quem mandava.
Travis sentou-se no sofá.
– O que descobriste? – inquiriu num tom gélido.
– David Borman quer o controlo do negócio de Kimberly Aldredge.
Travis fez uma careta.
– Era o que temia. Raios! Esperava… – Fitou novamente Russell e
pensou: «Que se lixe!» Estava a falar com o filho de Penny e o
assunto era Kim. Não tinha nada a ver com o apelido Maxwell. –
Queres café? Chá? Um shot de tequila?
Russell olhou para Travis como se estivesse a tentar avaliá-lo… e
se deveria decidir aceitar ou não a sua oferta.
– O café seria ótimo.
Travis levantou-se e dirigiu-se à cozinha, mas Russell não o
seguiu.
– Preciso de fazê-lo. Queres vir até aqui e falamos enquanto o
preparo?
A informalidade do convite pareceu amainar a fúria do olhar de
Russell, que se levantou, dirigindo-se à cozinha. Sentou-se num
banco e observou Travis que tirou a embalagem de café em grão do
frigorífico e deitou um pouco num moinho elétrico.
– Suponho que esperava ver-me obrigado a lutar com ele por
causa de Kim – comentou Travis acima do ruído. – Uma espécie de
duelo ou algo do género. – Retirou a mão da tampa do moinho e o
ruído cessou. – Kim ficará destroçada ao descobrir isto.
Russell arregalou os olhos ao ver Travis filtrar o café moído que,
em seguida, deitou para uma cafeteira elétrica. Parecia incapaz de
assimilar a ideia de que um Maxwell pudesse encarregar-se de algo
tão mundano como preparar café. Onde estavam os criados? O
mordomo?
– Ele é o terceiro.
– Como assim o terceiro?
– O terceiro homem mais interessado no seu sucesso do que nela.
– O que significa isso?
– Segundo a Carla… – Russell interrompeu-se e passou a mão
pela nuca.
– O encontro correu mal? – perguntou Travis.
– É uma mulher muito agressiva.
Travis deixou sair o ar.
– Parece. Obrigou-te a ficar até tarde?
– Até às três – respondeu Russell. – Mal consegui escapar-me
com…
– Com a tua honra intacta? – Travis esboçou um leve sorriso.
– Exato – anuiu Russell.
– Tomaste o pequeno-almoço? Posso preparar-te uma omeleta.
– Não. Quero dizer que… – Russell continuava a olhá-lo como se
não acreditasse no que via.
– É o mínimo que posso fazer pelo filho da Penny depois de tudo o
que ela teve de me aturar.
– Tudo bem, então – aceitou Russell.
Travis começou a tirar coisas do frigorífico.
– Conta-me tudo desde o princípio.
– Referes-te à história completa da vida sexual da Carla que se
deliciou a contar-me em pormenor ou ao que consegui arrancar-lhe
sobre Miss Aldredge?
Travis soltou uma gargalhada.
– De Carla nada, mas tudo de Kim.
– Parece que os homens de cidadezinhas não aceitam que uma
mulher ganhe mais dinheiro do que eles.
Travis gostaria de pensar que ele o aceitaria bem, mas sempre
enfrentara o problema contrário.
– Então todos a deixaram?
– Sim – confirmou Russell enquanto observava Travis a servir-lhe
uma chávena de café fresco que pousou na bancada junto a um
pacote de leite e ao açucareiro. Não ficou surpreendido ao verificar
que o café era ótimo.
– Saint Helena?
– Isso – disse Travis. – Compro-o no supermercado de Edilean. Dá
para acreditar? – Ficou agradavelmente surpreendido por ver que
Russell identificava o sabor do raro e exótico café. – Suponho que
esse Dave é diferente dos outros.
– A Carla e a ex-namorada de Borman são amigas e Carla contou-
lhe tudo sobre Kim, inclusive o pormenor de que os homens a
largam. Carla desconhece totalmente o significado da palavra
discrição.
– Ou lealdade – completou Travis. – Apetece-te cebola, pimento e
tomate?
– Sim – respondeu Russell. – Segundo consegui entender, a
namorada contou a Borman e ele elaborou um plano.
– Deixa-me adivinhar. Cortou com a namorada e foi atrás de Kim.
Russell meteu a mão no bolso interior do casaco de onde tirou um
monte de folhas de papel dobradas.
– Aqui estão as finanças da empresa de Borman nos últimos dois
anos.
Travis deixou as verduras a refogar enquanto folheava as
primeiras páginas, mas depois teve de parar para deitar os ovos na
frigideira e pôr o pão a tostar.
– Importas-te…? – pediu a Russell.
Russell agarrou nos papéis e começou a examiná-los, mas depois
fez uma pausa para despir o casaco que colocou sobre o espaldar de
uma cadeira. Alargou o nó da gravata.
– Em resumo: David Borman não é um bom cozinheiro, gasta
demasiado e é preguiçoso.
Travis deitou a omeleta num prato, colocou-a na frente de Russell
e tirou uma faca e um garfo de uma gaveta.
– Portanto, largou a namorada e foi atrás de Kim, ou melhor, do
negócio dela.
– É ainda pior – acrescentou Russell, provando a omeleta. – Não
está mal.
– Como?
– Pior refere-se a Borman; a omeleta é que não está nada mal.
– Oh! – exclamou Travis enquanto observava Russell a comer.
Tinha algumas parecenças com Penny. Passara muitas noites com
ela e tinham partilhado muitas refeições. Nesse momento,
questionou-se porque nunca a interrogara sobre a sua vida pessoal.
Mas, se o tivesse feito, Penny certamente não lhe responderia.
Russell fitou-o como se esperasse que ele fizesse algum
comentário.
– O anel – disse Travis. – O que há com o anel?
– O Borman convidou a Carla para jantar e contou-lhe uma
história de ir às lágrimas sobre quanto amava a Kim. Conseguiu que
a Carla lhe «emprestasse» um anel para lho oferecer quando a
pedisse em casamento neste fim de semana.
– Depois a Carla contou a toda a cidade que era o que o Borman
tencionava fazer. – Travis serviu a tosta a Russell e tirou a manteiga
para fora. – Por isso, o Borman convidou-se para a acompanhar a
Maryland.
– A Carla não vê nada de mal em que tu e Miss Aldredge estejam
a viver juntos pouco antes de o Borman a pedir em casamento. As
palavras exatas de Carla foram: «Penso que não se devem
desperdiçar as oportunidades.»
– Tenho ficado na casa de hóspedes – explicou Travis
distraidamente enquanto pensava no que acabara de ouvir.
– Toda a cidade julga que tu e Kim são…
– Pura coscuvilhice – garantiu-lhe Travis. Ao olhar para Russell,
notou que ele o observava incrédulo e ferveu de raiva. – Parece que
também acreditaste.
Russell baixou a cabeça para o prato.
– Não me cabe julgar.
– Um Maxwell consegue sempre o que quer, não é? – Se Travis
esperava uma briga foi mal sucedido, porque Russell acabou de
beber o café tranquilamente.
– Segundo a minha experiência, sim – concordou.
A franqueza da resposta fez com que Travis se acalmasse. Voltou
a encher a chávena de Russell.
– Talvez seja assim – reconheceu. – Conseguir o que quer é um
credo para o meu pai.
– Mas não para ti? – quis saber Russell.
Travis não se deixou enganar pelo tom displicente da pergunta. No
fundo, era uma questão muito séria.
– Não, não acredito nisso.
Russell comeu a tosta e manteve-se um instante em silêncio.
– Como pensas recuperar o anel?
– Sou advogado, recordas-te? Vou ameaçá-lo com um processo de
apropriação indevida e prisão.
Russell limpou a boca com o guardanapo que Travis lhe tinha
dado.
– O que dirás a Miss Aldredge? Que o namorado só a queria por
causa do seu negócio de sucesso?
Travis esboçou um esgar.
– Isso vai ferir-lhe o ego.
– E neste fim de semana terás uma mulher deprimida e chorosa
nas mãos.
Travis e Russell trocaram um olhar de entendimento masculino.
Uma mulher infeliz não era a melhor companheira.
Russell levantou-se, agarrou no casaco e dispunha-se a sair, mas
virou-se e olhou para Travis. O olhar não era minimamente amistoso.
– Se saíres da empresa do teu pai, o que acontecerá à minha
mãe? Vão atirá-la para fora com o lixo?
Travis estava habituado a que o atacassem, estava habituado à
raiva contida das pessoas que se relacionavam com o pai. Mas este
homem era diferente. A sua raiva direcionava-se a ele.
– Aconteceu tudo tão depressa que nem tive tempo de pensar no
assunto. Penso que assumi que ela voltaria a trabalhar para o meu
pai.
– Não – garantiu-lhe Russell. A sua expressão indicava que não
tencionava explicar a recusa, mas tratava-se de algo definitivo.
– Diz-me o que quer ela e encarrego-me de que o consiga.
– Deves sentir-te um imperador ao ostentares tanto poder.
Travis compreendia a hostilidade deste homem. Estava a par de
todas as horas, de todos os fins de semana e de todas as férias em
que Penny trabalhara para o seu pai. Ele não melhorara a situação.
Nunca pensara duas vezes antes de telefonar-lhe nos domingos à
tarde – e Penny nunca se tinha queixado nem sequer o tinha
mencionado. O filho devia ter passado quase toda a vida sem a
presença da mãe. Devia odiar o apelido Maxwell. E parecia odiá-lo a
ele em especial, o filho de Maxwell que tinha a sua idade. Mas
julgaria que Travis crescera com uns pais que o adoravam?
– O que fazes? Quer dizer, como ganhas a vida? – perguntou
Travis.
A camaradagem que havia surgido entre eles desapareceu. O
rosto de Russell converteu-se numa máscara impassível e fria.
– Não preciso de nada de ti ou do teu pai e não tens de fingir-te
interessado. Dir-te-ei o que quer a minha mãe e espero que
mantenhas a tua palavra.
A hostilidade da voz e do olhar fez com que os cabelos de Travis
se arrepiassem. Para aliviar a tensão, disse:
– Supostamente com limites. Não posso dar-lhe o Taj Mahal. Não
está à venda.
Russell não sorriu.
– Se estivesse, o teu pai compraria e despediria os curadores.
Acabámos?
– Julgo que sim.
Assim que Russell saiu da casa, Travis ligou a Penny que parecia
estar à espera do telefonema, pois atendeu ao primeiro toque.
Precisava de ocupar-se antes do mais dos negócios e queria saber
onde se encontrava David Borman nesse preciso momento. Tal como
esperava, Penny respondeu que ia averiguar e lhe enviaria uma
mensagem.
Tratava-se da deixa para que Travis desligasse, mas ele não o fez.
– Conheci o teu filho – confessou com alguma hesitação. – Ele,
uh…
Penny sabia o que estava a tentar dizer-lhe. Umas semanas antes
não se teria atrevido a comentar, mas nos últimos tempos Travis
parecia afastar-se do caminho que o transformaria num segundo
Randall Maxwell.
– … odeia tudo o que se relacione com o apelido Maxwell –
completou ela.
– Exato. É reversível?
– Nem pensar.
Travis respirou fundo.
– Prometi-lhe que, quando deixar a empresa do meu pai, me
encarregarei de conseguir o que desejares. Para me certificar de que
não faço asneira, porque não me dizes já o que queres?
– Que o meu filho seja feliz. Netos – respondeu Penny de
imediato.
– Pareces a minha mãe a falar.
– Vindo de ti é um grande elogio – replicou ela. – Mas deixa-me
pensar primeiro. Pelo que Russ me contou sobre Edilean, creio que
gostaria de me reformar e ir viver para essa cidade.
– Não é má ideia. Viste as joias que ele comprou para te oferecer?
Penny soltou uma gargalhada.
– São lindíssimas! A tua Kim é uma jovem talentosa.
Trocaram despedidas e desligaram. Antes de ter acabado de
arrumar a cozinha, recebeu um SMS de Penny com o endereço de
onde Borman trabalhava.
– Vou matá-lo – murmurou Travis e dirigiu-se à porta.
DEZ
Contudo, Travis não chegou à porta. O instinto masculino incitava-o
a sair à procura do homem e a desfazê-lo. Imaginava-se a dar-lhe
um soco na cara. Mas e depois? Faria o que dissera a Russell e
ameaçava que o denunciava? Que o mandaria para a prisão?
Chegaria ao extremo de usar o apelido Maxwell para o intimidar?
Que repercussões teria algo do género? Um indivíduo como
Borman desconhecia princípios éticos, pois, caso contrário, não teria
planeado casar-se por dinheiro, nem fugiria com o rabo entre as
pernas, sem armar confusão. Procuraria Kim e… nem queria
imaginar o dano que poderia causar.
Portanto, Travis ficou onde estava e tentou acalmar-se o suficiente
para poder pensar com clareza sobre o que devia fazer. Necessitava
pôr os nervos de lado e traçar um plano para encontrar uma solução
sem que Kim fosse afetada.
Travis concluiu que o encontro com esse tal Borman seria o mais
importante da sua vida. O menos indicado seria aparecer de
espingarda em punho, por assim dizer. Já tinha lidado antes com
homens da laia de Borman, homens que pensavam que o fim
justificava os meios. Se para conseguir um negócio fosse necessário
casar com uma mulher, não viam qualquer problema.
Travis também aprendera que os grandes perdedores mostravam
tendência a vingar-se da mesma maneira. Se ameaçasse o homem e
o obrigasse a sair da vida de Kim, Borman poderia contactar Kim e
virar o bico ao prego, culpabilizando Travis.
Não, era melhor livrar-se dele de maneira a que ele se
considerasse vencedor, inclusive que havia tramado alguém. Dessa
maneira, não sentiria uma necessidade de vingança, não desejaria
atacar Kim, não desejaria magoá-la.
Travis ligou novamente a Penny, que atendeu de imediato.
– Repensaste o duelo com as pistolas? – perguntou ela.
– Sim – respondeu.
– Foi o que achei – replicou Penny que parecia orgulhosa dele. – O
Maxwell que vive em ti mantém sempre a cabeça fria.
Travis não tinha a certeza de sentir-se agradado com as palavras
dela.
– Quero que me marques um encontro com esse Borman para
hoje. Preciso que seja num lugar imponente. Uma biblioteca ou algo
do género. Com uma secretária enorme e um ambiente de luxo.
Quanto mais grandioso melhor. Diz-lhe que quero comprar a sua
empresa, que me sinto impressionado com os seus lucros. Lisonjeia-
o.
– Não sei se conseguirei mentir a esse ponto.
– Se trabalhaste para o meu pai, és capaz de mentir.
– Mais do que pensas – anuiu, divertida.
– Vou precisar de um contrato onde conste que tudo passará para
o meu nome: o equipamento, o pessoal, tudo. Deixa o espaço em
branco para que o preço seja negociado. Estou a planear oferecer-
lhe uma quantia ridícula para comprar esse negócio moribundo.
Depois quero que lhe digas, em confidência, que soubeste
acidentalmente que a concorrência dele me assusta e portanto seria
melhor que abandonasse este estado. Hoje. Antes do anoitecer. Sem
mesmo ter tempo para ir buscar as suas coisas ao apartamento.
– Que apelido queres usar no contrato?
Travis franziu o sobrolho.
– Se vir o apelido Maxwell voltará para pedir mais.
– Se for assinado por um tal Russell Pendergast? Posso entregar-
lhe o dinheiro através da conta dele.
– Perfeito – anuiu Travis.
– Queres que Borman ligue a Kim para se despedir?
– Não, mas encarrego-me disso. Avisa-me quando tudo estiver
preparado. Achas que o conseguirás no espaço de umas horas?
Penny nem se deu ao trabalho de responder.
– Parece-te bem às quatro da tarde? Assim poderás chegar a casa
a tempo de jantares com a Kim.
– Adoro-te, Penny! – exclamou.
A secretária demorou um momento a responder e Travis pensou
que talvez se tivesse excedido um pouco.
– Vou pedir a um agente imobiliário que me mande informações
sobre Edilean. Creio que é um lugar mágico.
– O meu pai ficará encantado por te comprar uma casa.
Por algum motivo que Travis não entendeu, Penny achou tanta
graça ao comentário que desligou o telefonema entre gargalhadas.
Eram três e quarenta e cinco da tarde quando Travis chegou à
faustosa propriedade de um homem que havia beneficiado
grandemente de negócios feitos com Randall Maxwell. A propriedade
ficava a uma hora de Williamsburg e Travis ligara três vezes a Penny
durante o trajeto. A ideia era que se familiarizasse com tudo na sala
onde ia encontrar-se com Borman para dar a ideia de ser ele o dono
do lugar.
– O contrato estará em cima da secretária – garantiu-lhe Penny –
e Russell e eu já falámos com Borman. Está muito interessado em
vender e pensa que receias tanto a concorrência da sua empresa
que pagarás o necessário desde que te vejas livre dele.
– Exatamente o que penso fazer – replicou Travis. – Mas não pelo
motivo que ele julga. Qual é o preço justo?
– Russ disse que uns cem mil dólares, não mais. Tem demasiado
equipamento e poucas encomendas. Na semana passada usou peixe
barato em vez de caranguejo para uma encomenda. Disse a um
empregado que ninguém notaria a diferença, mas a mãe da noiva
apercebeu-se e o pai da noiva recusou pagar-lhe.
– É bom saber isso – disse Travis. – Deseja-me sorte.
– Desejo sim, e, embora não acredites, o Russ deseja o mesmo. O
que quer que tenhas feito esta manhã amansou-o mais do que
alguma vez consegui na vida.
Travis sorriu.
– Embora me tenha olhado algumas vezes como se quisesse
empalar-me, gostei dele. É parecido contigo.
– Ah, sim? – replicou Penny, satisfeita. – Vemo-nos amanhã em
Janes Creek.
– Estou ansioso – disse Travis antes de desligar.
Se tudo corresse bem, na noite seguinte estaria num acolhedor
quarto de hotel munido de uma porta com acesso direto ao de Kim.
Uns minutos depois, estacionou diante da fachada principal da
mansão Westwood e entregou as chaves a um homem jovem que o
aguardava. Se a propriedade fosse semelhante à do pai, quando
Travis saísse, o carro teria sido aspirado e lavado.
Um mordomo fardado abriu a porta antes de Travis ter subido as
escadas.
– Mister Pendergast espera-o no salão sul – anunciou enquanto
conduzia Travis a uma espaçosa e bonita sala forrada de painéis de
madeira e com uma alcatifa azul e bege.
Os móveis destinavam-se a parecer como se estivessem ali há
anos e constituíssem o legado de uma fortuna, mas o olhar
perspicaz de Travis detetou que era tudo novo.
– Este é mais o teu estilo – comentou Russell enquanto se
aproximava de Travis.
– Para com isso ou conto à tua mãe.
Russell conteve um sorriso.
– Pediram-me que te dissesse que Borman aceitará duzentos e
cinquenta mil dólares, mas é demasiado. As carrinhas não valem
quase nada e ele deve vários meses de salário aos empregados.
Travis assentiu com a cabeça.
– Onde está ele?
– Na biblioteca. Chegou com vinte minutos de avanço.
– Está ansioso por se desfazer de tudo, certo? Já o informaram
das condições?
– Deve sair rapidamente da cidade. Para ajudá-lo, servi-me do
cartão de crédito da minha mãe e comprei-lhe um bilhete de avião
para a Costa Rica. Receberás a fatura.
– Aposto que essa parte te agradou – comentou Travis.
– Nem sabes quanto.
Abanando a cabeça, Travis consultou o relógio. Vestira o seu
melhor fato com uma gravata preta de riscas douradas. Faltavam
três minutos para as quatro.
– A tua mãe quer mudar-se para Edilean quando se reformar.
– Ela disse-me.
– E tu? Onde vives?
Russell não respondeu à pergunta.
– Creio que chegou a altura de entrares. Queres que te leve os
documentos?
– Penso que consigo arranjar-me sozinho. – Enquanto se dirigia às
portas que levavam à biblioteca, Travis lembrou-se de que Penny lhe
dissera que o contrato estaria em cima da secretária. Mas Russell
acabara de perguntar-lhe se queria que lhe entregasse os
documentos, o que significava que tinha aparecido sem o
conhecimento da mãe. Interessante. – Gostas de escalar? Esqui?
Vela?
– Sim – anuiu Russell e esboçou um aceno de cabeça na direção
da porta. Aparentemente, não tencionava revelar mais sobre si
mesmo. – Deves gostar de saber que baixei as expetativas de
Borman para cento e setenta e cinco mil.
Travis pestanejou várias vezes. Não estava habituado a que
negociassem no seu lugar, mas no caso presente estava agradecido.
– Obrigado – disse. – Aprecio a tua…
Russell interrompeu-o.
– São quatro horas.
Travis respirou fundo e abriu a porta. David Borman estava
sentado num cadeirão de cabedal tão grande que fazia com que
parecesse pequeno e insignificante. Travis percebeu que Russell o
colocara ali propositadamente. Foi difícil conter um sorriso. Apesar
da hostilidade e da recusa de Russell em responder às suas
perguntas, Travis começava a simpatizar com ele.
Ao olhar para o homem sentado no cadeirão, Travis pensou antes
de mais que Kim merecia algo muito melhor. Borman não era alto,
tinha uma constituição física fraca e era tão loiro que quase se
tornava invisível. Travis sentiu dificuldade em conciliar os dados que
possuía com o indivíduo que tinha na frente. À primeira vista não
parecia um embusteiro.
– O senhor é Westwood, o dono desta propriedade? – inquiriu o
homem com os olhos arregalados de espanto, que era a reação
pretendida por Travis.
Travis não respondeu e limitou-se a fitá-lo com o que tinha ouvido
as pessoas denominarem de «o olhar fulminante de Maxwell».
Borman recostou-se no assento com um nervosismo evidente.
Travis sentou-se e levou algum tempo a examinar o contrato. Era
muito simples. Comprava a Borman Catering com todos os ativos.
Adquiria o nome, o equipamento e os próprios funcionários.
O documento fora assinado por Russell Pendergast. Travis
demorou mais tempo a examinar a assinatura do que o contrato em
si. Ostentava um traçado seguro e decidido e lembrava-lhe algo mas
não sabia o quê.
Quando ergueu o rosto, Borman estava a roer a unha do polegar e
havia suor no lábio superior.
– Mister Borman – começou Travis enquanto cruzava as mãos em
cima do contrato. – Acabaram de informar-me sobre uma situação
que pode causar problemas insuperáveis.
Borman respirou fundo e murmurou:
– De que se trata?
– Informaram-me sobre o desaparecimento de um anel. Não
quero ter o mínimo problema com as autoridades.
Borman suspirou, aliviado, e ergueu-se um pouco para tirar a
carteira do bolso das calças.
– Trata-se de algo pessoal que não está relacionado com a minha
empresa. – Tirou um pequeno quadrado de papel da carteira e
inclinou-se para o colocar em cima da secretária. – Devo constatar
que andou a fazer o seu trabalho de casa. Onde tenho de assinar?
– Isso é o talão de uma casa de penhores – assinalou Travis,
consciente do que significava.
A funcionária em que Kim confiava havia dado um anel a este
homem e Borman empenhara-o. Mas Travis aprendera há muito
tempo que não devia tirar conclusões precipitadas, que não devia
analisar uma situação baseando-se em rumores. Afinal, apenas
conhecia a versão de Russell sobre o que o homem tramara.
Por mais que Travis desejasse livrar-se do homem, afastá-lo para
sempre, queria provas evidentes dos seus atos. Recostou-se na
cadeira e examinou o recibo que estava em cima da secretária.
– Mister Borman, os meus negócios são transparentes. Não assino
contratos que envolvam a polícia ou casas de penhores.
– A polícia? Não sei do que está a falar. Tenho uma pequena
dívida com os meus fornecedores, mas nunca fiz nada de ilegal.
– Segundo me constou, esse anel vale milhares de dólares. Não
quero recuperá-lo da casa de penhores para descobrir que foi
roubado.
Borman recostou-se no cadeirão, fitou o contrato por assinar que
continuava sobre a secretária e olhou de novo para Travis. Parecia
profundamente irritado.
– Não tem a mínima importância – garantiu. – Trata-se de um
assunto pessoal que envolve uma mulher, nada mais. Pode recuperar
o anel penhorado e devolver-lho. Ninguém apresentará queixa.
A expressão de Travis era muito séria, a que usava quando
trabalhava para o pai.
– Talvez devesse explicar-me essa questão em pormenor. Ou
talvez eu devesse cancelar isto. – Pegou no contrato e fez menção
de ir rasgá-lo em dois.
– Não! – gritou Borman e depois acalmou-se. – É apenas uma
questão de mulheres, nada mais. – Ao ver que Travis não cedia,
acrescentou: – Havia uma mulher, uma ruivinha bonita. Tem uma
joalharia aqui perto. É um negócio pequeno, nada do outro mundo.
O problema é que se trata de uma mulher, entende-me?
– Não sei bem se entendi. – Travis pousou o contrato em cima da
secretária e concentrou-se plenamente em Borman.
– O problema é que trabalha em pequena escala, quando deveria
pensar em grande. Tentei falar-lhe a esse respeito para bem dela,
mas não me deu ouvidos. Pretendia expandir o seu negócio a nível
nacional, queria convertê-lo numa cadeia de joalharia. A minha ideia
era chamar-lhe «As Joias do Pecado». Entende?
– Perfeitamente – respondeu Travis que cerrou os punhos por
baixo do tampo da secretária.
– Mas riu-se de mim. Não lhe disse que estava a falar a sério
sobre o nome, pois ela pode ser um pouco puritana. É o tipo de
rapariga que vai à missa todos os domingos. De qualquer maneira,
nem sequer ponderou expandir-se a nível nacional e por isso decidi
que o melhor seria casar-me com ela, pois assim seria capaz de
ajudá-la. Está a entender-me?
– Estou. – Travis respirou fundo. – Ela conhece os motivos por que
queria casar-se com ela?
– Não, raios! É uma rapariga muito esperta e tive de avançar com
cuidado. Mostrei-me muito carinhoso com ela, o homem mais terno
do mundo. Tratei-a com o máximo respeito, até na cama. Tudo
muito básico, se é que me entende.
Travis teve de fazer um esforço enorme para não se lançar por
cima da secretária e estrangulá-lo.
– Quanto ao anel? Onde se encaixa nesta história?
Dave encolheu os ombros e viu-se pela sua expressão que estava
satisfeito pelo interesse demonstrado por Travis.
– Para lhe pedir que se casasse comigo precisava de um anel,
não? Mas porquê comprar um quando ela tinha uma joalharia? Havia
um montão de anéis na sua loja, cerca de cinquenta, e eram
gratuitos para mim… ou seriam, depois de nos casarmos. – Inclinou-
se para diante como se estivesse prestes a revelar um segredo a
Travis. – Ela tem um cofre na garagem cheio de… Não faço ideia do
que possa conter. Vive num mundo de ouro e de joias. A caverna de
Ali Babá cheia de diamantes e de pérolas. Ela gosta de pérolas. Uma
vez até tentou dar-me uma palestra sobre as diferentes espécies.
Como se o tema me interessasse, está a ver?
– Viu o que ela guarda no cofre?
– Não – replicou Borman com um esgar. – Numa ocasião tentei
convencê-la a que o abrisse, mas não consegui. Inclusive, tentei
arrancar-lhe a combinação, mas ela recusou.
Travis nunca sentira uma raiva tão grande na vida, nem um ódio
tão grande por alguém.
– Entende as condições do contrato, certo?
– Obviamente. – Olhou para Travis como se partilhassem um
segredo. – Não quer concorrência. Parece-se comigo. Somos ambos
homens de negócios e entendemo-nos um ao outro. É pena que as
mulheres não consigam fazê-lo.
Travis nem se dignou responder, pois não confiava em si mesmo
para evitar dizer-lhe o que sentia nesse momento. Esboçou um falso
sorriso, como se pensasse que o homem era um génio e em seguida
assinalou no contrato a quantia exorbitante que Russell tinha
negociado. Travis teria pago mais. Fingiu assinar no lugar onde já se
encontrava o nome de Russell.
Borman pôs-se em pé de um salto, assinou na parte inferior do
contrato sem ler, e Travis entregou-lhe a cópia correspondente.
– Está a pensar telefonar-lhe para se despedir? – perguntou
Travis, embora as mãos lhe tremessem com vontade de dar um
murro no homem.
– Não tenho tempo – respondeu Dave, enquanto se virava para a
porta. – Tenho coisas importantes para fazer, entre elas recuperar a
minha ex-namorada. Essa é uma mulher que sabe dar prazer a um
homem na cama, se é que me percebe.
– Perfeitamente – replicou Travis, que ficou de pé a observar
enquanto Borman saía da sala. Sentia que precisava de tomar um
duche com desinfetante.
Travis ignorou quanto tempo se manteve de pé antes de Russell
entrar por uma porta lateral.
– Ele aceitou?
Travis hesitou.
– O dinheiro? Claro.
– O que é isto? – Ao ver que Travis não o encarou de imediato,
deixou-se ficar quieto e aguardou.
Quando finalmente Travis se voltou, fitou o que Russell tinha na
mão.
– O talão de uma casa de penhores.
– Estou a ver. Mas a que corresponde? Ah, já sei! O anel. – Russell
leu o endereço do talão. – Que plano teria para o fim de semana
quando pedisse Miss Aldredge em casamento sem um anel para lhe
oferecer?
– Acho que pensava dizer-lhe que não sabia que desaparecera um
anel da joalharia.
– A sua palavra contra a de Carla, como se fosse ela que o tivesse
roubado.
– É o meu palpite – disse Travis enquanto estendia o braço para
agarrar no talão. – Vou levantá-lo à loja de penhores.
– Tens dinheiro contigo? – perguntou Russell.
– Não o suficiente, mas levo cartões de crédito.
– Uma loja de penhores que aceite cartões de crédito? Além disso,
não podes usar os teus. – Russell ergueu uma sobrancelha.
Travis desconhecia por completo como funcionavam as casas de
penhores e que tipo de pagamento aceitavam.
– Vou tirar o anel do prego e podes acompanhar-me se quiseres.
Além disso, o teu carro tem dois pneus furados.
– O meu car… – começou Travis, mas deteve-se. Teve a sensação
de que Russell estava a mentir-lhe sobre o carro, mas não se
importava. Nesse momento, precisava de companhia, algo que o
livrasse do fedor de Dave Borman. – De acordo – disse –, mas
conduzo eu.
Russell resfolegou.
Duas horas depois tinham recuperado o anel e estavam quase de
volta a Edilean. Russell conduzia. O trajeto decorrera calmamente e
Travis já não sentia a hostilidade anterior por parte de Russell.
– Qual o apelido que Miss Aldredge acha que tens?
– Não me perguntou e não lhe disse.
– Excelente. Que bases sólidas entre os dois! – murmurou Russell.
– A tua vida é melhor? – ripostou Travis.
– Na verdade, não tão complicada como a tua – respondeu Russell
num tom calmo.
Travis olhou pela janela.
– Sim, penso que chegou a altura de lhe dizer.
– Tencionas dizer-lhe por que razão Borman não vai aparecer em
Janes Creek? Vais contar-lhe o teatrinho que montaste na biblioteca?
E que agora és o dono da Borman Catering?
– Quem és tu, afinal? Um juiz do tribunal federal? Queres todos os
pormenores?
– Estou curioso em saber como conduz o filho do grande Maxwell
a sua vida.
Travis ia a responder-lhe, mas tinham chegado a casa de Kim e
havia um carro desconhecido diante da fachada.
– Não te parece que seja o Borman, certo?
– Não acredito – respondeu Russell –, mas no teu lugar não me
fiava.
– Estaciona na esquina e vou entrar pela porta das traseiras. –
Minutos depois, Travis dirigia-se a casa de Kim, com Russell nos
calcanhares. – Onde vais?
– A minha mãe disse-me que te ajudasse em tudo o que fosse
necessário. Caso se trate de Borman, precisarás de apoio.
Travis sabia que, se chegassem a um confronto, não necessitaria
de ajuda para lidar com Borman. Por outro lado, não sabia como Kim
ia reagir quando ouvisse tudo o que tinha para lhe dizer. Além disso,
até que ponto deveria pô-la ao corrente? Se lhe contasse a verdade
sobre a sua identidade, também deveria falar-lhe de Borman e do
anel. Ou talvez fosse melhor adiar a parte da armadilha que montara
a Borman para lhe comprar a empresa e…
– Vejo que estás a ficar acagaçado – comentou Russell.
– A Penny devia ter passado mais tempo contigo para te ensinar
melhores maneiras.
– Tentou mas andava demasiado ocupada a trabalhar para a tua
família para fazer algo por mim.
– Se te apetecer comparar as nossas infâncias, fica à vontade –
replicou Travis.
– Tu pelo menos tiveste… – começou Russell, mas ambos se
calaram ao escutar a voz furiosa de um homem.
Travis correu para a porta das traseiras. Como sempre, estava
aberta. Entrou de rompante com Russell logo atrás.
Assim que Travis ouviu o seu nome, soube que devia afastar-se,
mas não conseguiu mover-se. Sentia a presença de Russell ao seu
lado e estava tão surpreendido e imóvel como que pregado ao chão.
– Kim! Estás louca? – gritava o Dr. Reede Aldredge, dirigindo-se à
irmã. – Nem sequer sabes quem é esse homem.
– Não digas idiotices. Conheço-o desde os oito anos. É o Travis… –
Não tinha a certeza de qual era o seu apelido, se Cooper, Merritt ou
outro qualquer.
– Ele é John Travis Maxwell e o pai é o Randall Maxwell.
– E daí? Já ouvi esse nome, mas…
– Devias ler outras coisas além de revistas sobre joalharia.
Pesquisa no site da Forbes. Randall Maxwell é um dos homens mais
ricos do mundo e o seu filho Travis é o seu braço-direito. Maxwell é
especialista em adquirir empresas de outras pessoas. Quando
descobre que uma empresa está com dificuldades, Maxwell aparece
e compra-a por uma ninharia e depois envia a sua equipa para a
reerguer. Despede milhares de pessoas, manda-as para o
desemprego. Sabes quem possibilita tudo isso? O seu brilhante filho,
Travis, o advogado… o tipo que está a viver na tua casa de
hóspedes.
Kim cerrou o maxilar.
– Há muitas circunstâncias atenuantes que desconheces.
– Então fala.
– Não posso. Prometi ao Travis que…
– Estás a insinuar que não consigo guardar um segredo? Fazes
ideia da quantidade de mentiras, segredos e intrigas que conheço
sobre esta cidade? Quero saber o que faz o Travis Maxwell em
Edilean. Se anda a planear comprar algum negócio para o pai, julgo
que devíamos avisar as pessoas.
– Não é nada disso – garantiu-lhe Kim. – O Travis só trabalha para
o pai porque quer proteger a mãe.
– Isso não faz sentido. Foi essa a treta que te impingiu?
Kim cerrou os punhos.
– A sua mãe é Lucy Cooper, a mulher que tem andado a esconder-
se de mim há quatro anos. Tinha medo que a reconhecesse porque
a vi quando era pequena.
Reed respirou fundo para se acalmar. Tinha consciência de que
estava a irritar a irmã e quando Kim se irritava não ouvia ninguém.
– Talvez seja assim – anuiu Reede. – Talvez esse tal Travis tenha
vindo por causa da mãe. Mas o que tem isso a ver contigo?
– Nada, suponho – replicou Kim. – Salvo que estou a ajudá-lo.
Estamos a planear o que fazer. Estamos…
– Acreditas que estás a ajudá-lo a traçar um plano? –
interrompeu-a Reede num tom desdenhoso. – Não quero desiludir-
te, Kim, mas Travis Maxwell é um playboy famoso. E agora está a
usar-te.
– Para quê?
– Para o que desejam todos os homens! – respondeu, exasperado.
– Já te manipulou para lhe dares a casa de hóspedes que me
prometeste.
Kim olhou para o irmão com um ar surpreendido e depois foi
incapaz de conter uma gargalhada.
– Estás a falar de sexo, não estás? Julgas que o Travis me
enganou para que lhe permita servir-se da casa de hóspedes que tu
não queres e ter sexo comigo?
Reede fulminou-a com o olhar, mas calou-se.
– Sabes uma coisa, Reede? Nunca me senti tão lisonjeada. O facto
de um homem se dar a tanto trabalho só para ir comigo para a cama
é a melhor piada do século. Hoje em dia, os homens já não se dão a
esforços para conquistar uma mulher. Quando te convidam para sair,
limitam-se a indicar-te a hora e o sítio. Se não superares os seus
padrões de beleza e ganhares menos do que eles, vão-se embora e
deixam-te. Nem sequer precisam de levar-te a casa porque tens
carro próprio.
– Nem todos os homens são assim – contrapôs Reede. – Também
não é essa a questão. Esse homem com quem te andas a divertir
não é como o Paul, o do catering. Maxwell é…
– Dave! – exclamou Kim. – O nome dele é Dave, há seis meses
que saio com ele e não há homem mais chato na cama. Alguém
devia dizer ao David Borman que há mais do que uma posição.
– Preferia não ouvir…
– Preferias não ouvir que a tua irmã mais nova não é virgem?
– Nunca pensei… – disse Reede, erguendo as mãos. – Sabia que
não me darias ouvidos. Nunca dás. És minha irmã, Kim, e não quero
que te magoem. Seja qual for o motivo que trouxe o Travis aqui, irá
embora e deixar-te-á quando o concretizar. – Desviou os olhos por
um momento e acrescentou: – Sei como é ter o coração destroçado
e não quero que te aconteça o mesmo.
Kim apercebeu-se da dor que o olhar dele refletia. Reede tinha
passado os anos todos do secundário e grande parte da fase
universitária apaixonado por uma jovem da cidadezinha. Nunca se
interessara por outra mulher. Depois, ela abandonara-o subitamente
e dissera que ia casar com outro. Reede tinha demorado anos a
superar o desgosto.
– Eu entendo – sussurrou num tom meigo.
– Percebo que estejas irritado, Reede, mas sei o que estou a fazer.
Sei que o Travis está muito acima das pessoas de Edilean. Não está
aqui para se casar, instalar-se numa casa de três divisões e ter
filhos.
– Mas é o que tu queres – ripostou Reede. – Sei disso. Choraste
durante toda a cerimónia do casamento da Jecca e do Tris.
– Sim – concordou Kim em voz baixa. – É o que quero. Desejo-o
de alma e coração. Achas que comprei esta casa tão grande só por
causa da garagem? Eu… – Teve de conter as lágrimas porque o que
acabava de dizer era verdade, mas magoava-a admiti-lo em voz alta.
– Às vezes, penso que a comprei como isco, para atrair um homem
simpático e facilitar-lhe o pensamento de se mudar, para…
Reede abraçou-a, encostou-lhe a cabeça contra o peito e
acariciou-lhe o cabelo.
– Não digas essas coisas. Qualquer homem se sentiria honrado
em ter-te ao seu lado. És inteligente, divertida, meiga e…
– Então onde está esse homem? – replicou Kim enquanto
abraçava o irmão. – Onde está esse homem capaz de ver as minhas
virtudes e esquecer os meus defeitos? Passei seis meses com David,
o do catering, e nunca me queixei sobre como me aborrece. –
Apartou-se do irmão e limpou as lágrimas. – Pelo menos o Travis
esforça-se.
– Sim, mas para quê? – inquiriu Reede, estendendo-lhe um lenço
de papel.
Kim assoou-se ruidosamente.
– Espero que queira uma noite de sexo louco e selvagem.
– Kim! – exclamou o irmão, tão surpreendido como se fosse um
pai da era vitoriana.
– Olha, sei que o Travis se irá embora um dia destes. Quando
chegar à conclusão de que o Joe Layton é um homem às direitas e
louco pela Lucy, o Travis partirá tão repentinamente como apareceu.
Será como quando éramos crianças e ele desapareceu de um dia
para o outro. Sem um bilhete, nada. E regressou da mesma
maneira, sem avisar. Sei que ele aparece e desaparece como lhe
apraz, sem consideração pelos outros.
– Concordo – afirmou Reede. – Regressará ao império do pai e…
Kim, um dia o Travis Maxwell será igual ao pai. Não desejas fazer
parte disso, pois não?
– Não – respondeu Kim, fitando o irmão por cima da beira do
lenço de papel. – Mas enquanto ele estiver aqui, quero obter todo o
sexo quente que puder. Dias inteiros. Ou semanas. Se fossem
meses, por mim seria divino.
– Isso é… – começou Reede com uma expressão séria, mas
depois abanou a cabeça. – Tenho dificuldade em pensar na minha
irmãzinha a fazer… – Aparentemente, não foi capaz de encontrar
palavras que expressassem os seus sentimentos. Em vez disso,
consultou o relógio. – Tenho de ir andando. Já estou atrasado.
Quero que me prometas que vais fazer uma pesquisa na net sobre o
Travis Maxwell para veres com o que podes contar. Ele tem andado a
sair com uma manequim lindíssima chamada Leslie.
– Mas não tão bonita como eu, hein?
Reede soltou um gemido ao dar-se conta de que tinha cometido
uma gafe.
– Não era isso o que pretendia dizer e sabe-lo perfeitamente. Só
não quero que te magoes. É assim tão mau da minha parte?
– Claro que não. É melhor ires. Os teus doentes precisam de ti.
– Telefono-te mais tarde – disse o irmão, beijando-a na face.
– Vou acompanhar-te até lá fora – decidiu Kim e foi atrás dele.
Travis não se mexeu nem sequer depois de a porta da frente se
fechar. Permaneceu com os olhos fixos na porta da sala de estar.
Não tinha gostado do que ouvira a seu respeito.
– É melhor irmos embora – sugeriu Russell baixinho. – Ela não se
sentirá bem se souber que ouviste isso.
A mente de Travis parecia correr a cem à hora e ao mesmo tempo
também parecia paralisada. Era incapaz de decidir o que fazer. Ir ter
com ela? Fugir? Ficar e defender-se? Convencê-la de que não era o
homem que lhe tinham descrito?
Russell pousou uma mão no braço de Travis e virou-o na direção
da porta das traseiras.
– É irónico, certo? – reagiu Travis. – Eu procuro amor e ela quer
sexo.
Russell soltou uma gargalhada e depois empurrou Travis até à
porta. Mas tinham demorado demasiado.
– Fiquem onde estão – disse Kim atrás deles.
ONZE
Russell deixou cair a mão do braço de Travis e afastou-se dele.
– Quando tencionavas dizer-me? – perguntou Kim, de olhos
cravados em Travis. Se ponderasse no que acabava de contar ao
irmão e que Travis ouvira cada palavra, sabia que morreria de
vergonha.
Travis demorou tempo a virar-se e, quando o fez, desejou ter-se
escapulido sem a ver. Nunca presenciara tanta raiva espelhada no
olhar de uma mulher. «É a segunda pessoa que me odeia», pensou.
Russell nessa manhã e agora Kim que o fitava como se ele fosse o
diabo em figura de gente.
– Vim aqui para te contar a verdade a meu respeito.
– Que conveniente! – exclamou Kim. – Porque não me contaste
antes? Contaste-me que a tua mãe se escondia do teu pai, que
queria casar com Joe Layton, mas não te ocorreu mencionares que
és advogado e que tens Maxwell no apelido. Pensaste que me
converteria numa gananciosa e correria atrás da riqueza da tua
família?
– Claro que não – garantiu Travis, sem saber por onde começar. –
Apenas pensei… quero dizer…
– Desculpe, mas estou com de fome – interrompeu Russell. –
Posso…? – inquiriu com um gesto na direção do frigorífico.
– À vontade – anuiu Kim, sem desviar os olhos de Travis.
– Kim, minha querida – começou Travis. Quando se apercebeu de
que ela o fulminava com o olhar, mudou de tática. – Não era minha
intenção…
– Ele tinha medo de que o odiasse por causa da reputação dos
Maxwell – explicou Russell por trás da porta do frigorífico.
– É verdade – concordou Travis. – O apelido Maxwell desperta o
pior que há em muita gente.
– Comigo passa-se o mesmo – comentou Russell. – Há mostarda?
Ah, cá está.
Kim virou-se para ele.
– Você é o homem que estava na loja, o que convidou a Carla
para sair.
– Russell Pendergast – apresentou-se ele com um sorriso. –
Gostaria de lhe apertar a mão, mas… – Tinha os braços cheios de
comida e de pão. – Alguém quer uma sandes?
– Não! – exclamaram Travis e Kim em uníssono.
– É o filho da minha secretária! – explicou Travis. – Só o conheci
esta manhã. Nem sequer sabia da sua existência até há uns dias
quando a Penny me garantiu que o filho me ajudaria. Naquele
momento, pareceu-me que estava a falar de um menino de seis
anos, mas é a mãe dele. Tu e eu falámos de como os nossos pais
nos veem. Lembras-te, Kim?
Ela continuava a fulminá-lo com o olhar.
– De que forma te ajudou o filho da tua secretária que se
relacione com a minha joalharia e a minha empregada?
Travis respirou fundo. Aparentemente, a sua tentativa para distraí-
la não tinha resultado.
Russell também não ajudou ao desatar a rir.
– Importas-te de nos deixares a sós? – pediu Travis de cenho
franzido.
– Na verdade, importo-me – reagiu Russell. – Nenhum musical da
Broadway me agradou tanto, mas irei embora se Miss Aldredge
quiser que o faça.
– Não quero voltar a ficar só com este homem em toda a vida. Por
favor, trate-me por Kim.
– Com prazer – disse, fitando-a com admiração.
– Russell! – ripostou Travis. – Juro-te que se…
– Se o quê? – quis saber Kim, erguendo a voz. – Travis, estou à
espera de uma resposta.
Travis nunca se tinha visto numa situação em que não encontrasse
uma forma de sair airosamente. Mas havia demasiadas coisas em
jogo e não conseguia pensar com coerência.
– Eu… – Hesitou sem saber o que dizer e depois levou a mão ao
bolso das calças de onde tirou o enorme anel de safira que Borman
roubara.
– Recuperei isto para ti – completou num tom esperançoso.
Ao ver que Kim não o recebia, pousou o anel em cima da bancada
da cozinha.
– Entendo. O anel desaparecido. – Kim refletiu um momento. – Se
o anel se encontra na tua posse, isso significa que o que quer que
vocês tenham feito envolve o meu namorado, Dave. Significa que o
conheceram.
Travis compôs uma expressão séria.
– Sim, conhecemo-lo e tu, Kim, não o conheces. Ele não é quem
tu pensas. Na verdade, anda atrás…
– Quer que expanda o meu negócio a nível nacional e lhe chame
As Joias do Pecado. Considerei isso como uma piada. Não a
expansão mas o nome.
Os dois homens ficaram tão surpreendidos com as suas palavras
que Russell parou de comer e Travis fitou-a boquiaberto.
Kim virou as costas. Sentia uma raiva tão grande que tinha
dificuldade em respirar. A sua amiga Gemma praticava boxe. Nesse
momento, se Kim soubesse como, teria atacado Travis com tanta
força que o derrubaria.
Voltou a fitá-lo.
– Porque supuseste que ignorava o desejo de Dave? Pareceu-te
um homem subtil? Misterioso?
– Não – respondeu Travis. – Mas, se sabias a verdade, porque
ponderavas casar com ele?
Kim tinha quase a certeza que se Dave a tivesse pedido em
casamento, teria recusado. Antes de Travis aparecer, talvez
aceitasse, mas atribuía a circunstância ao recente casamento da sua
amiga Jecca. Quando caísse em si, era óbvio que não teria seguido
em frente. Mas de forma alguma contaria isso a Travis.
– Existe algum homem à face da Terra que não encare o
matrimónio com segundas intenções? Pelo menos, Dave foi sincero
comigo. Disse-me que estava interessado na minha empresa e que
tinha algumas boas ideias.
– Mas… – começou Travis.
– Mas o quê? Deveria esperar por um homem como tu? Em
comparação com todas as tuas mentiras e a tua manipulação, Dave
é quase um santo.
Kim queria concentrar-se no tema principal. Queria falar dele,
Travis, e do que fizera, não de David Borman. Isso não era da conta
de Travis.
– Quero ver se percebi bem. És um Maxwell, o filho de um dos
homens mais ricos do mundo. – Como Travis se limitou a ficar
silencioso, Kim olhou para Russell que confirmou com um aceno de
cabeça. – Vieste a Edilean quando tinhas doze anos, passaste duas
semanas comigo e desapareceste sem sequer me deixares um
bilhete.
– Por favor, Kim. Tinha doze anos – recordou-lhe Travis. – Fiz o
que a minha mãe me disse.
– Podias ter escrito – observou Russell com a boca cheia.
Travis fulminou-o com o olhar.
– Sabes que te procurei durante dezoito anos? Costumava
esgueirar-me para o quarto do meu irmão e tentar encontrar-te
através da net.
– Mas não conseguiste porque desconhecias o seu apelido correto
– assinalou Russell. – Posso tirar uma cerveja?
– Serve-te – respondeu Kim. – Dezoito anos sem notícias.
Esqueceste-me completamente.
– Isso não é verdade. Sempre soube onde… – começou Travis,
mas depois calou-se.
Kim fitou Russell com uma expressão interrogativa.
– A minha mãe contou-me que ele nunca te perdia de vista. Disse-
me que o Travis costumava…
– Ia às tuas exposições – apressou-se a confessar Travis antes
que Russell abrisse mais a boca.
Kim arregalou os olhos.
– Tu! Eras tu! A Jecca viu-te. Deu-te o nome de Desconhecido
AMG. Até desenhou o teu retrato, mas não fazia ideia de quem eras.
– AMG? – perguntou Travis.
– Alto, Moreno e Giro – traduziu Russell. – Esta cerveja é boa.
Nunca tinha provado. – Olhou para Travis. – Queres uma?
– Só se não tiver cicuta – resmungou Travis, enquanto um
sorridente Russell tirou outra cerveja, abriu-a e estendeu-lha.
Travis bebeu metade de um trago antes de se deixar cair num
banco. Voltou a olhar para Kim, como que a dizer-lhe que estava
preparado para receber mais chicotadas verbais.
– Acreditei que estava a olhar por ti – disse.
– Mas que nobreza! «A olhar por mim.» A cuidar de mim, é isso?
– Assim julgava – concordou Travis e bebeu mais cerveja.
Russell começou a preparar uma sandes para Travis. Nenhum
deles tinha comido desde o pequeno-almoço.
– Então agora – prosseguiu Kim – voltaste a Edilean não por
mim… claro que não voltaste por mim!... mas porque a tua mãe te
ligou.
– Na realidade, a mãe dele ligou à minha para a informar de tudo
– especificou Russell, cortando o pão.
– Melhor ainda – reagiu Kim. – Lucy Merritt, ou Cooper, ou
Maxwell ligou a… Qual é o nome dela? – perguntou a Russell.
– Cooper e Merritt são nomes falsos. Chama-se Lucy Jane Travis
Maxwell, dos Travis de Boston. Recebeu o nome e a educação, mas
não o dinheiro da família. A minha mãe chama-se Barbara
Pendergast, sem dinheiro nem um nome deslumbrante. Somente
trabalho duro.
– Obrigada – agradeceu Kim. Voltou a olhar para Travis enquanto
ele lhe oferecia um pedaço da sandes que Russell lhe tinha
preparado. Parecia um homem prestes a subir ao cadafalso. –
Chame-se como se chamar, a questão é que não regressaste por
minha causa, mas pela tua mãe.
Travis levantou-se para ir buscar mais duas cervejas.
– Viste-me por acaso no casamento da Jecca e… e uma coisa
puxou outra…
Russell fitou Travis com uma expressão interrogativa.
– Refere-se a que me convidou a ficar aqui – explicou Travis.
Russell assentiu com a cabeça e fitou novamente Kim como que a
dizer que lhe cabia a palavra.
– Mudaste-te para a minha casa de hóspedes e começaste a falar-
me tanto de amizade que julguei que fosses homossexual. E tu…
Russell soltou uma gargalhada.
– Nunca foi minha intenção… – começou Travis.
– Como está a Leslie? – indagou Kim, mostrando-lhe toda a raiva
que sentia.
Travis baixou os olhos para a sandes.
Kim agarrou no anel e fitou Russell.
– Quando lhe disse que tinha namorado, ele quase deu provas de
um ataque de ciúmes à antiga.
– Não é verdade – corrigiu-a Travis na defensiva. Mas cada
palavra dita por Kim correspondia à verdade. – Apanhaste-me de
surpresa, nada mais – murmurou.
– Surpreendeu-te que tivesse namorado? – questionou Kim. – És…
– Arregalou os olhos sem acreditar no que estava a ouvir. –
Observaste-me… vigiaste-me… o suficiente para saberes se tinha
namorado ou não. – Era uma afirmação e não uma pergunta.
Travis nunca teria respondido nem que lhe incendiassem os pés. O
facto de a mãe se haver inteirado de toda a bisbilhotice que
circulava por Edilean e lhe ter falado de Kim em quase todos os
telefonemas não era importante. Interrogou-se de repente se seria
uma coincidência que lhe ligasse quando Kim começava a interessar-
se mais a sério por alguém. Além disso, tinha-lhe ligado quando se
ia realizar um casamento junto à casa de Kim, uma boda em que ela
era dama de honor. A mãe ligara a Penny (a quem sempre
detestara) e foi a secretária que lhe sugeriu que fosse a Edilean o
mais rapidamente possível. Se tivesse sido por ele, adiaria a viagem
a Edilean, mas Penny organizara tudo. Nesse preciso momento,
tinha a sensação de que as duas mulheres se haviam aliado para
que Travis chegasse a Edilean no momento-chave, a fim de que
voltasse a ver Kim. Claro que não podia ser assim e se tratava de
uma coincidência.
Kim tinha os punhos cerrados e virou-lhes momentaneamente as
costas para recuperar o fôlego.
– Pensaste… – disse em voz baixa. – Pensaste que, como eras um
advogado famoso de uma grande cidade e nasceste em berço de
ouro, sabias mais da vida que eu.
– Kim, nunca pensei isso – garantiu-lhe Travis, pousando a
sandes. – Não podias estar mais longe da realidade.
– Supuseste que eu era uma provinciana ingénua, simples e tão
desesperada por casar que não me daria conta da verdadeira
personalidade do homem com quem andava a sair.
– Estás a ser injusta, Kim – acusou Travis e levantou-se. – Borman
era um canalha. Enganou a Carla para que lhe desse o anel,
dizendo-lhe que tencionava oferecer-to quando te pedisse em
casamento. Mas depois empenhou-o. Eu… nós pensamos que ia
dizer-te que não sabia nada do anel e deixar que Carla acarretasse
com a culpa.
Kim não permitiu que o choque dessa informação se refletisse no
seu rosto.
– Como conseguiste isso?
Travis voltou a sentar-se de olhos fixos no prato.
– Comprou a Borman Catering – esclareceu Russell.
Travis deitou-lhe um olhar assassino.
– Fizeste o quê? – replicou Kim, incrédula.
– Pagou cento e setenta e cinco mil dólares pela empresa –
prosseguiu Russell, que tinha comido a sandes e estava prestes a
terminar a segunda cerveja. – Ia pagar-lhe mais, mas consegui que
Borman baixasse o preço. Mesmo assim, trata-se de muito dinheiro.
– Demasiado – sublinhou Kim. – As carrinhas estão velhas e o
Dave perdeu muitas encomendas porque não entrega o que
promete.
– Também achei que era uma quantia excessiva – comentou
Russell –, mas tínhamos um prazo a cumprir.
Travis olhou de lado para Russell por ele estar a atraiçoá-lo.
– Kim, julgo que estamos a desviar-nos do tema principal. O
Borman ia pedir-te em casamento e receava que aceitasses.
– E, quando se declarasse, teria recuperado o meu anel! –
concluiu Kim, erguendo os braços. – Homens! Já não vos aguento
mais esta semana. Hoje tive de ameaçar a Carla com o
despedimento pelo que ela fizera.
– Devias despedi-la – observou Travis com uma expressão séria. –
Ela cometeu um delito.
– Foi enganada por um homem! É um dos perigos de ser mulher.
Para tua informação, em Edilean não nos desfazemos de alguém que
cometeu um erro.
– Foi o que me aconteceu – disse Travis baixinho, ao mesmo
tempo que lhe pedia perdão com o olhar.
– Tu cometeste mil erros. Para de me olhares dessa maneira! Já
me ensinaste o truque, lembras-te? Usaste essa cara para
conseguires que a mulher daquele velho te ensinasse a cozinhar…
entre outras coisas.
Russell soltou uma gargalhada.
– Ela apanhou-te.
– Kim, nunca quis…
– Já sei! – quase gritou. – Tenho a certeza que, do teu ponto de
vista, vieste resgatar-me montado num cavalo branco. Mas não
precisava que me resgatassem. Não precisava que me fizessem
sentir uma imbecil incapaz de organizar a minha própria vida. O que
preciso é… – Já não aguentava mais. – Fora! Saiam os dois da
minha casa e da minha vida. Não quero voltar a vê-los nunca mais.
Levantaram-se ambos e dirigiram-se à porta. Quando Travis
passou junto dela, Kim disse:
– Nunca te ocorreu pensar que não é o apelido Maxwell que
desperta o pior que há em muita gente? Que és tu?
Travis não tinha resposta.
Kim bateu com a porta atrás deles, fechou-a à chave e depois
encostou-se a ela.
– Para tua informação, John Travis Maxwell, também quero amor.
Dois minutos depois ligou à pessoa com quem queria desabafar. O
homem em questão atendeu ao primeiro toque e disse que se
encontraria imediatamente com ela. Vinte minutos mais tarde, Kim
estacionava no parque da loja de Joe Layton.
DOZE
A solução de Joe Layton para qualquer problema era sempre a
mesma: comida e trabalho. Após escutar durante meia hora as
palavras quase incoerentes que Kim balbuciou entre lágrimas
abundantes e depois de lhe dar de comer, pô-la a trabalhar.
Enquanto lhe pedia que o ajudasse a arrumar nas prateleiras tudo o
que Travis tinha desembalado, Joe não conseguiu evitar refletir que
a turbulenta vida amorosa do par estava a proporcionar-lhe mão de
obra grátis.
– Não percebo – disse Kim ao mesmo tempo que pegava em
caixas de brocas elétricas e as colocava nas prateleiras. – Porque se
esforça tanto para afastar um homem da minha vida se apenas
planeia deixar-me e regressar a… onde quer que viva?
– Nova Iorque – informou Joe. – Vive no último andar de um
arranha-céus.
– Foi o que ele disse?
– Não, mas descobri.
– Isso significa que conhecia o apelido de Travis e o pesquisou na
net – replicou Kim com um suspiro. – Reede afirmou que encontraria
toda a informação que quisesse, mas pôs-me ao corrente de um
monte de coisas. Mas a quem interessa procurar informações sobre
alguém na net? Por que razão tudo o que Travis me disse tem de ser
mentira? Ou um escape? O que aconteceu na sua vida que o leva a
pensar que até as coisas mais normais têm de ser mantidas em
segredo?
– Não sei – respondeu Joe, que também se interrogava sobre o
mesmo. Tinha dado a Lucy todas as oportunidades possíveis para
que lhe falasse do filho, mas ela não o fizera. Em três ocasiões
diferentes, estivera quase a dizer «o meu filho», mas controlara-se a
tempo. Joe dava o melhor de si para dominar a irritação, mas era
difícil.
– Estás apaixonada pelo jovem Travis? – indagou subitamente.
Kim, que estava a arrumar uma caixa numa prateleira, deteve-se.
– Como posso estar? Julguei que conhecia o jovem Travis, mas o
adulto… não sei quem é. Aparentemente, julga-se com o direito de
controlar a minha vida. Arranca o que lhe apetece, mas não dá nada
em troca. – Sabia que não era assim, mas a raiva que a tomava
impedia-a de pensar com sensatez.
A luz vermelha do telemóvel de Joe acendeu-se. Joe colocara-o no
silêncio para que Kim não ouvisse as chamadas, mas sabia que
Travis já lhe tinha ligado oito vezes desde que ela chegara. Também
sabia que tinha de responder ou Travis acabaria por aparecer à
porta. E, com o estado de espírito de Kim, era provável que ela lhe
atirasse uma bigorna à cabeça.
– Não ias fazer alguma coisa especial neste fim de semana? –
perguntou Joe.
Kim emitiu um gemido. Por mais irritada que estivesse, o seu olho
artístico não podia ignorar a forma de arrumar as pequenas
máquinas nas prateleiras. Colocou-as com a mesma elegância com
que expunha as joias na sua loja.
– Jocelyn, a mulher do meu primo, quer que me desloque a uma
cidadezinha de Maryland para ver se consigo descobrir alguma coisa
sobre uma minha antepassada. Ela está a elaborar a árvore
genealógica da família, e essa mulher de Maryland teve um filho,
mas não se sabe quem é o pai. Isso aconteceu por volta de mil
oitocentos e noventa. Não sei como vou fazer. De qualquer maneira,
o Dave queria acompanhar-me e íamos fazer umas miniférias. Ia… –
Agitou a mão no ar. Se continuasse a falar, voltaria a romper em
lágrimas. – Julgo que será melhor cancelar a minha reserva.
Não conseguia deixar de pensar no que poderia ter acontecido. O
que teria feito se Dave lhe pedisse que casasse com ele? Dissera a
Travis que sabia tudo sobre o indivíduo, mas não era verdade. Ao
saber que ele empenhara o anel que Carla lhe «dera» após a iludir, o
estômago dera-lhe uma volta. Nada do que vira em Dave a alertara
sobre a possibilidade de que cometesse um roubo daqueles. Sempre
lhe parecera boa pessoa, chata, mas simpática. As suas conversas
sobre a expansão do negócio a nível nacional haviam sido
expressadas de uma forma respeitosa, vincando que a decisão era
dela e se limitava a apresentar-lhe ideias. Kim sempre tinha pensado
que o nome que lhe sugeria para o negócio era ridículo.
Apenas tomara conhecimento do mau momento por que passava
a empresa de Dave na véspera do casamento de Jecca, um dia
antes de Travis aparecer na sua vida. Apercebera-se que duas das
suas carrinhas estavam a dar as últimas, mas ele sorrira e garantira
que o trabalho lhe roubava tempo demasiado para encomendar
outras. Nessa altura, Kim não tinha motivos para não acreditar na
sua palavra.
Mas, na véspera do casamento, no meio da confusão e das muitas
pessoas, Kim ouviu uma mulher dizer que se alegrava por Jecca não
haver contratado os horríveis serviços da Borman Catering. Kim
tentara que fosse Dave a fornecer a comida do casamento, mas ele
reservara o dia para outro evento. Kim tinha perguntado à mulher
porque não lhe agradava a empresa e ela contou-lhe a história da
troca dos ingredientes. Também ouvira dizer que muita gente estava
a cancelar futuros compromissos com a empresa. Nessa altura, Kim
estava tão ocupada a ajudar Jecca que não pensara no que aquilo
significava. Quando relembrou o momento, compreendeu que se
negara a aceitar que o negócio de Dave estava a afundar-se. Tão-
pouco quisera relacionar o facto com a quantidade de vezes em que
Dave lhe perguntara a combinação do cofre.
Seria Dave mais um homem na sua vida incapaz de ver mais além
do seu sucesso empresarial?
Kim colocou uma broca manual na caixa da forma mais artística
que conseguiu e depois começou a ordenar as caixas com os
acessórios.
A dado momento, Joe pediu-lhe permissão para fazer um
telefonema e ela continuou a trabalhar – e a pensar.
Na verdade, talvez não soubesse tanto sobre Dave como garantira
a Travis, mas isso não lhe concedia o direito de… de controlar a
situação.
Analisou a ideia de Travis a comprar a Borman Catering. Porque o
fizera? Mas já sabia a resposta. Tinha pago aquela quantia
exorbitante para que Dave se afastasse. Durante o trajeto até à loja
de Joe, telefonara a uma cliente que vivia no mesmo prédio de Dave
e ficara a saber que ele se fora embora com seis malas e comunicara
ao senhorio que não pensava voltar.
– O senhorio estava furioso – revelou a mulher. – Dave deixou
montes de tralha no andar e agora era ele que tinha de se desfazer
de tudo. Mas depois telefonou um homem e disse que viria buscar
tudo. Todo o prédio fala no assunto. Sabe mais alguma coisa?
– Nada – respondeu Kim que se despediu educadamente, antes
de desligar.
Embora tivesse dito a Travis que detestava a forma como ele
lidara com a situação, uma parte dela agradecia-lhe que a tivesse
liberto de Dave. Nesse momento, interrogou-se sobre se aceitaria
casar com ele. O casamento de Jecca e a sua felicidade ter-lhe-ia
provocado tamanha inveja que seria capaz de dizer sim a Dave só
para…? Não queria pensar no que poderia ter acontecido.
Antes de chegar ao estacionamento da loja de Joe, recebera um
e-mail no telemóvel. Era do irmão que lhe enviara também um
ficheiro. Kim hesitou antes de abri-lo, pois sabia do que se tratava.
Mas também sabia que precisava de conhecer a verdade. Carregou
na tecla e a primeira coisa que lhe saltou aos olhos foi a fotografia
de uma mulher lindíssima chamada Leslie. A legenda dizia, SINOS DE
CASAMENTO PARA UM MAXWELL? O artigo referia que há meses que a
belíssima manequim tinha uma relação séria com o filho
multimilionário de Randall Maxwell. O riquíssimo e elegante Travis
nunca sai com a mesma mulher mais que seis semanas. Mas há
quase um ano que anda com a explosiva Leslie. Atrevemo-nos a
sonhar com o casamento do século?
Kim não foi capaz de ler o resto dos documentos que o irmão lhe
tinha enviado. Aquele artigo foi suficiente.
Quando saiu do carro viu que Joe estava à porta e recebeu-a de
braços abertos. Se o pai estivesse em casa teria ido ao encontro
dele, mas o pai de Jecca estava quase à altura do seu.
Chorou copiosamente durante um bom bocado e depois Joe
encomendou uma piza, duas garrafas gigantes de Coca-Cola e bolos
de canela suficientes para alimentar metade de Edilean. Kim tinha
chorado e comido, e em seguida chorado mais um pouco.
– Não percebo porque me mentiu – afirmou.
– Referes-te a Borman ou a Travis? – perguntou Joe.
– Travis – respondeu Kim. – Dave é… é uma pessoa real, portanto
é normal que minta.
Joe ergueu as sobrancelhas, mas não comentou semelhante
afirmação. Enquanto lidava com os seus dois filhos de sexos
diferentes, aprendera algo muito revelador. Se Joey o procurava
porque tinha um problema, pedia-lhe ajuda para encontrar uma
solução. Mas se era Jecca que tinha um problema, só queria que Joe
a escutasse. Não queria conselhos. Enquanto com Travis se sentira à
vontade para lhe dizer o que pensava, Joe não se atreveu sequer a
dar uma sugestão a Kim.
– Mentiu-me sobre tudo. Fui sincera desde o primeiro dia, mas ele
só me contou mentiras.
Joe teve de se conter para não revirar os olhos. Era praticamente
o mesmo que Travis lhe dissera sobre Kim. Garantira-lhe que ela lhe
ocultara o facto de ter namorado e encobrira a história do anel
desaparecido. Mas Joe absteve-se de comentários. Nesse momento,
a luz vermelha do seu telemóvel piscou novamente e viu que se
tratava de Travis. Era a nona chamada que lhe fazia e Joe
desculpou-se e saiu da sala.
Regressou passados uns minutos e Kim continuava a queixar-se
em voz alta.
Joe queria ajudá-la, mas não sabia como. Falara com Travis, que
estava infelicíssimo. Dissera-lhe que só queria certificar-se de que
Kim se encontrava bem.
– Estava tão furiosa que receei que fosse conduzir.
– Suponho que a tenhas seguido – concluiu Joe e o silêncio de
Travis bastou como confirmação. – O que decidiste quanto ao fim de
semana?
– O fim de semana? – perguntou Travis como se não tivesse
pensado no assunto. – Referes-te ao de Janes Creek?
– Não penses em fazer-me de idiota! O que planeaste?
Travis contou-lhe a medo que tinha reservado todos os
apartamentos disponíveis nos dois hotéis da pequena cidade.
Joe soltou um assobio.
– O teu pai ensinou-te a controlar a vida dos outros?
– Creio que nasci com esse impulso – reconheceu Travis num tom
sombrio.
Joe quase soltou uma gargalhada, mas conteve-se.
– Vou convencer a Kim a ir até essa povoação, mas terás de
ocupar-te do resto. Pensas que conseguirás?
– Mas ela diz que não quer voltar a ver-me – replicou Travis,
parecendo desesperado.
Joe resfolegou, exasperado.
– Isso vai deter-te? Nunca ouviste da boca de uma mulher para
que a deixes em paz? – Para ele tratava-se de uma pergunta retórica
que não exigia resposta. Com certeza que o tinham dito a Travis
como a qualquer outro homem.
– Não, na verdade não – replicou. – Nunca na vida.
– Que mundo o teu! – murmurou Joe e acrescentou em voz alta:
– Isso é porque a Kim te vê a ti e não ao apelido Maxwell. Tenta
seres tu mesmo com ela.
– Mas… – começou Travis e depois vacilou. – De certeza que ela
chegará sã e salva a casa?
– Claro – prometeu Joe antes de desligar. Respirou fundo, passou
uns minutos a contemplar as estrelas, desejando poder estar
aninhado com Lucy, e depois regressou à loja. Teria de pronunciar as
palavras que todas as mulheres desejam ouvir. Embora os seus
cromossomas masculinos se revoltassem contra a ideia, teria de o
fazer.
– Kimberly – disse ao entrar. – Acho que necessitas de fazer algo
por ti mesma. Cuidar-te um pouco. Mimares-te com um fim de
semana. Ires à manicura, comprares uns sapatos novos.
Aguardou um instante e interrogou-se se Kim engoliria o isco.
Jecca perceberia que ele estava a tramar alguma, mas Kim também
o apanharia?
De repente, uma parte da tristeza que ensombrava o rosto de Kim
desapareceu.
– Julgo que é a atitude certa – concordou. – Não vou cancelar a
reserva. Irei a Janes Creek e vou passar o fim de semana a pensar
nas minhas joias e nos meus antepassados. Nada de homens.
Aproximou-se de Joe e deu-lhe um beijo na face.
– Entendo perfeitamente por que motivo Jecca o ama tanto. –
Sorria, embora tivesse os olhos congestionados. – Obrigada por
tudo.
Saiu pela porta da frente e Joe deixou-se cair pesadamente no seu
enorme sofá. Desde quando se tinha convertido num homem que
resolvia os problemas sentimentais dos outros? Nem sequer era
capaz de resolver os dele. Após um segundo, pegou no telemóvel e
carregou na tecla automática para ligar a Lucy.
– Onde estás? – perguntou ela. – Acabei de sair da banheira e só
tenho vestido…
– Lucy – interrompeu-a num tom firme antes de perder a
coragem. – Julgo que chegou a altura de falarmos do teu filho. E do
teu marido.
Ela hesitou.
– De acordo – sussurrou. – Fico à tua espera.
Joe deixou sair a respiração e a tensão abandonou o seu corpo
enorme.
– O que ias a dizer-me sobre o que tens vestido?

Nessa noite, Kim esforçou-se ao máximo por adormecer, mas tinha


demasiadas coisas na cabeça. Sonhou várias vezes com Travis e em
todas as ocasiões ele acabou sempre por abandoná-la. Limitava-se a
desaparecer como fizera muitos anos antes.
Levantou-se às duas da manhã e preparava-se para beber um
copo de leite quando mudou de opinião e serviu-se de um uísque de
malte. Tentou ver um filme, mas não conseguiu concentrar-se. Disse
para si mesma que era ridículo comparar um rapaz de doze anos,
que se viu obrigado a esconder-se com a mãe para escapar à fúria
de um pai violento, com o homem em que se havia convertido.
Pensando bem, Travis tinha todo o direito de manter o seu apelido
em segredo. Ela nunca se relacionara com alguém que tivesse de
lidar com os paparazzi, portanto como podia julgá-lo?
Mas, independentemente do que pudesse pensar e do lado
racional desses pensamentos, continuava a sentir-se atraiçoada.
Quando regressara da loja de Joe, verificou que Travis se mudara
da casa de hóspedes. Fechara a porta e deixara a chave em cima da
bancada da cozinha.
Kim fitou a chave, mas não lhe tocou. Tocar-lhe converteria a sua
partida em algo real.
Tomou duche, lavou o cabelo e disse para si mesma que fora
melhor assim. Travis tinha descoberto que Dave era um canalha;
Kim tinha descoberto que Travis… No fundo, não tinha a certeza do
que descobrira sobre ele. Descobrir que era filho de um homem rico
e poderoso não a surpreendera minimamente.
Às quatro da manhã voltou para a cama e conseguiu dormir até às
oito. Quando despertou, sentia-se melhor e consciente de que a
última coisa que lhe apetecia era ir trabalhar. Por um lado, não
queria ver Carla nem pintada. Demoraria algum tempo antes que
conseguisse voltar a confiar nela. Na manhã anterior, Carla
confessara o que tinha feito; como defesa argumentou que Dave se
mostrara muito convincente ao afirmar que gostava imenso de Kim.
Por isso tinha caído na armadilha. Tirara o anel do expositor e
entregara-o a Dave porque ele afirmara que pensava oferecê-lo a
Kim durante o fim de semana. Acrescentou que o faria à luz das
velas e de joelho em terra. A personalidade romântica de Carla
levara a melhor.
Foi precisamente a sua saída com Russell Pendergast na quarta-
feira à noite que a levou a repensar o que fizera. Russell inclinou-se
sobre a mesa, fitou-a com os seus belos olhos escuros e arrancou-
lhe a verdade. Em seguida, deixou claro que não via uma ponta de
romantismo no que ela fizera. De facto, referiu que se não queria ir
para a prisão, mais valia confessar a verdade a Kim.
Carla precisou reunir toda a sua coragem, mas na manhã seguinte
falou com Kim.
Naquele momento, Kim ficara irritada, embora as suas suspeitas
sobre o ocorrido ficassem confirmadas. Daí que não desejasse
atribuir mais importância ao assunto. Nunca pensara que Dave
quisesse roubar o anel. Como Carla, também ela acreditava nas
insinuações de um futuro com Dave, um futuro em que estivessem
casados e felizes. O problema estava na resposta em que daria a
Dave. Travis mostrara-se ciumento, portanto, talvez tivesse planos
para ambos.
Kim não se permitiu analisar a questão mais em pormenor.
Recordara-se de que Travis era mais escorregadio do que uma
enguia, que não permanecia muito tempo no mesmo sítio.
Passou o dia inteiro nervosa, interrogando-se sobre onde se
encontraria Travis e o que estaria a fazer. Ao ver que não lhe
telefonava à hora do almoço, pensou em regressar cedo a casa.
Talvez Travis estivesse a nadar na piscina. Mas vários clientes
mantiveram-na ocupada e chegara a casa ao mesmo tempo que
Reede. Quando viu a expressão do rosto do irmão, soube o que aí
vinha. Reede recordara-se finalmente de onde conhecia Travis – de
um rali em que ele quase o atropelara e ao burro.
Enquanto se dirigia à porta principal, refletia na melhor maneira
de defender Travis. Argumentaria que Reede se pusera no caminho,
que não deveria estar no meio da estrada. Kim encontrava-se
totalmente do lado de Travis.
O que não esperava era que Reede não se importasse
minimamente com o que acontecera em Marrocos. Na verdade,
admitiu que tudo fora culpa sua.
– Nada disso importa – disse Reede que se dedicou a contar-lhe a
verdade sobre Travis.
Kim não queria saber se Travis era rico ou pobre, mas o mesmo
não acontecia relativamente a ter-lhe ocultado informações tão
relevantes sobre ele mesmo.
Porquê? Não a considerava à altura de lidar com algo do género?
Julgava-a tão provinciana que ficasse angustiada ao descobrir que
ele passara a vida num ambiente tão distinto do seu? Pensaria que a
verdade sobre si mesmo mudaria o que existia entre ambos?
Não tinha respostas para as suas perguntas.
A cena com Reede fora bastante desagradável, mas, quando
regressou à cozinha e deparou com Travis e o indivíduo com quem
Carla tinha saído, ali plantados, explodiu. Travis estava tão pálido
devido à surpresa e à mágoa causadas pelas palavras ouvidas que,
caso não estivesse irritada, Kim morreria de vergonha. Enrolar-se-ia
numa bola e desaparecia terra dentro.
Sem saber como, conseguiu manter a compostura bastante para
dizer a Travis tudo o que pensava dele. Ao recordar-se, porém, de
que dissera ao irmão como desejava passar vários dias na cama com
Travis, a fúria cedera lugar ao embaraço. Sabia que, se os dois
homens ficassem ali mais tempo, acabaria por romper em lágrimas e
por isso mandou-os embora. Mas como não suportava estar sozinha
foi ter com Mr. Layton.
Nesse momento, a luz da manhã entrava pela janela da cozinha e
dava o seu melhor para se mostrar alegre com o fim de semana
iminente, que passaria sozinha. Tentou pensar em qualquer ditado
popular que se adaptasse à situação, mas não se recordou de
nenhum. Já tinha ligado a Carla para lhe dizer que se ocupasse da
loja na sexta e no sábado. Haveria outra rapariga para lhe dar uma
ajuda, Kim estaria ausente. Carla não discutiu nem pediu o
pagamento de horas extraordinárias.
Kim fez as malas rapidamente e às dez da manhã pôs-se a
caminho. Demoraria quatro horas de carro para chegar a Janes
Creek e pensava usar esse tempo para refletir na sua nova coleção
de joias. Precisava de algo diferente, fora do habitual.
Também precisava de pensar na tarefa de que Joce a incumbira. A
sua investigação teria como base as poucas frases que Gemma, a
mulher de Colin, descobrira numa carta escrita no final do século XIX.
– Por favor, garante-me que não estás a tentar encontrar mais
familiares – disse Kim a Joce e a Gemma no dia em que lhe tinham
pedido que se encarregasse do projeto.
As duas fitaram-na com uma expressão que deixava bem claro
que era precisamente essa a intenção e não lhes entrava na cabeça
que Kim não as compreendesse.
Mais tarde, viu-se obrigada a recordar que nenhuma delas tinha
crescido em Edilean, rodeadas por centenas de familiares. Joce e
Gemma provinham de famílias pequenas que nem conheciam os tios
e tias e muito menos primos afastados. Essa ausência de
relacionamento familiar somada com o amor que as duas
partilhavam pela história tornou-as fanáticas pela descoberta de
tudo sobre todos até onde pudessem chegar.
– Porquê eu? – perguntou Kim no dia em que a convidaram para
almoçar na casa de Joce.
Ela vivia na imponente e antiga Edilean Manor, a mansão que Kim
tanto odiara em criança. Joce procedera a grandes transformações e
atualmente era bonita, mas Kim não a teria aceitado nem dada.
Preferia a sua casa nova de um piso, com as amplas janelas e o
chão de madeira que não rangia de velho.
Em resposta à sua pergunta, Gemma colocou uma mão no ventre
avultado e Joce percorrera com o olhar todos os brinquedos
espalhados pelo chão. Era mãe de gémeos.
Kim fez uma careta.
– Se engravidar nos próximos quinze dias, posso ver-me livre
disto?
– Não! – exclamaram as duas em uníssono.
Joce tinha-se encarregado de tudo. Fizera a reserva no Bed &
Breakfast de Janes Creek e preparara um dossiê com tudo o que
sabia a respeito de Clarissa Aldredge, a antepassada em questão.
Gemma escrevera um verdadeiro tratado sobre os lugares onde
Kim poderia procurar os dados de que necessitavam. Kim olhou a
lista de relance e, ao deparar com a palavra «cemitérios» no topo,
fechou a pasta. Não compreendia por que razão as duas mulheres
gostavam de se dedicar a esse tipo de coisas.
Kim quase se sentiu agradecida quando Dave se fez convidado
para a acompanhar no fim de semana. Não parecia interessado em
recolher informações sobre uma antepassada morta, mas pelo
menos poderiam partilhar as refeições.
Quando Carla começou a dar risadinhas sobre o fim de semana e
a dizer que tinha guardado um anel no cofre antes da hora de
encerramento, Kim somou dois mais dois. Precisamente no fim de
semana anterior Dave tinha elogiado o anel e gracejado pelo facto
de servir a Kim. O seu olhar tinha dito o resto.
Porém, as circunstâncias haviam dado uma volta de cento e
oitenta graus. Uns dias depois aparecera Travis… Maxwell – ainda
não se habituara ao nome – e virara a sua vida do avesso.
– Mas tudo isso pertence ao passado – disse e estacionou diante
do B&B Sweet River.
Eram duas da tarde e o estacionamento estava cheio de carros
com matrículas do Nordeste. Não conhecia a cidade, mas supunha
que tinha o mesmo tamanho de Edilean. Talvez se realizasse
qualquer festividade local e daí estar tão cheio.
Retirou o saco do porta-bagagens, meteu o dossiê debaixo do
braço e entrou. Tratava-se de uma casa antiga que fora remodelada
de maneira a parecer um hotel. Ouviu vozes nas traseiras, mas não
viu ninguém. Achou oportuno pegar na máquina e tirar umas fotos
para Gemma e Joce, para que ficassem com uma ideia do local.
Havia entalhes figurativos por todos os lados, junto ao teto, nos
postes das escadas e num armário enorme encostado à parede.
Tinha a certeza de que muitas pessoas adorariam a casa, mas aos
seus olhos parecia escura e triste.
– Como eu – proferiu em voz alta. Nesse momento ouviu um ruído
e virou-se.
– Deve ser Miss Aldredge – disse uma jovem mulher. Era loira,
magra e bonita e olhava para Kim como se estivesse à sua espera.
– Sim, sou Kim. Cheguei cedo, mas o meu quarto está pronto?
– Claro – anuiu ela. – Quero dizer, agora está, mas…
– Mas o quê?
– Nada.
Kim apresentou o cartão de crédito, porém, a mulher não o
aceitou.
– Está tudo pago – explicou. – Refeições, extras, tudo foi pago
antecipadamente.
«Foi Luke», pensou Kim. O marido de Joce, que era um escritor
muito rico, pagara a sua estadia completa.
– Muito bem – anuiu Kim que tentou sorrir, mas não conseguiu.
– Está no último andar – informou a mulher, pegando no saco de
Kim e começando a subir a escada.
O quarto era encantador. Grande, espaçoso e decorado em tons
de pêssego e verde, e reposteiros com motivos florais nas janelas
altas. Se Kim estivesse de melhor humor, teria apreciado mais.
Kim preparava-se para dar uma gorjeta à mulher, mas ela recusou
e segundos depois ficou sozinha.
Deixou-se cair num sofá. «E agora?», interrogou-se. «Desfaço o
saco e vou visitar cemitérios?»
– Que vida mais divertida! – murmurou entre dentes.
Sabia que estava a deixar-se arrastar pela melancolia. Todos os
livros de autoajuda afirmavam que era necessário focar-se no
positivo, não no negativo. Mas nesse momento apenas conseguia
pensar que tinha perdido dois homens num dia.
«Joias!», pensou. «Concentra-te nas joias.» Mas depois recordou-
se do colar que tinha feito para Travis há muitos anos. Ele dissera
que ainda o tinha.
Essa ideia levou-a a pensar que nunca mais o veria. Por que
motivo os homens não prestavam atenção quando as mulheres lhes
pediam que conduzissem mais devagar? Podia repetir-se mil vezes
que faziam orelhas moucas. No entanto, se lhes dissesse uma única
vez que desaparecessem para nunca mais voltar, obedeciam de
imediato. Sem necessidade de lembretes.
Kim disse a si mesma para se controlar. Os dois homens que tinha
perdido não mereciam que estivesse tão angustiada. Dave era… Não
sabia como descrevê-lo. Na verdade, mal conseguia lembrar-se dele.
Em menos de uma semana, Travis ocupara-se por completo da sua
mente.
– Mas não do meu corpo – recordou-se, enquanto se levantava do
sofá.
Precisava «mergulhar no trabalho», uma frase que lia tão
frequentemente nos livros.
Todavia, isso tornava-se mais fácil quando se trabalhava num
escritório. Os colegas e o ruído seriam motivo de distração. Mas o
seu trabalho era criativo. Desenhava sozinha, com um pedaço de
argila ou de cera, ou com papel e caneta. Não havia mais pessoas
que a ajudassem a pensar noutra coisa à exceção do que havia
perdido. Não havia um chefe que lhe exigisse o relatório de imediato
e a forçasse dessa maneira a pensar noutra coisa.
Kim olhou para a parede que tinha na frente e viu três grandes
portas brancas. Partiu do princípio que uma era do closet, a outra a
da casa de banho, mas e a terceira?
– A mulher ou o tigre?1 – murmurou, ao mesmo tempo que
escolhia a porta do meio e rodava a maçaneta.
Tratava-se de uma porta para o quarto contíguo, que era tão
grande e tão bonito como o dela. De pé, ao fundo de uma cama de
dossel, estava Travis. Vestia umas calças desportivas de cintura
descaída e estava de tronco nu, expondo os músculos e a pele
bronzeada e apetecível.
Kim ficou paralisada, olhando-o sem pronunciar uma palavra. No
mais fundo de si ainda conseguia pensar de uma forma racional. Se
Travis estava ali, significava que voltara a manipulá-la segundo a sua
conveniência.
Porém, esses pensamentos encontravam-se no fundo de um poço.
Nesse momento, Kim apenas conseguia sentir. Todas as moléculas
do seu corpo criaram vida, pulsando de desejo, expressando a sua
necessidade daquele homem.
Travis não disse uma palavra. Limitou-se a virar-se para ela e
abriu os braços.
Kim correu para ele, rodeou-lhe o pescoço e beijou-o na boca. Foi
um beijo voraz, tão ansioso como o desejo que a consumia. Travis
colou os lábios aos dela com ferocidade, beijando-lhe primeiro a
boca, depois as faces e o pescoço.
Kim inclinou a cabeça para trás e deixou que aqueles lábios e as
mãos fizessem o que lhes apetecesse.
Subitamente, viu-se nua. Não sabia muito bem como. Não sentiu
botões a desabotoarem-se, nem tecido a rasgar-se. Num abrir e
fechar de olhos passou de vestida a despida.
Soltou uma gargalhada quando Travis a ergueu nos braços e a
atirou para cima da cama. Cobertores e almofadas voaram em redor
e riu novamente. Não estava em causa sexo delicado e respeitoso,
mas paixão pura e dura.
Travis debruçou-se um instante sobre ela e limitou-se a
contemplar o seu corpo desnudo, após o que esboçou um sorriso tão
diabólico e perverso que Kim se recostou nas almofadas e estendeu
os braços para o receber.
Ele passou-lhe um braço à volta dos ombros e ergueu-lhe o corpo,
ao mesmo tempo que lhe entrelaçava o cabelo com a mão livre,
inclinando-lhe a cabeça para trás.
Quando a beijou de novo, fê-lo com toda a paixão que o
arrebatava.
As calças dele caíram no chão e Kim não ficou surpreendida ao ver
que não tinha nada por baixo. Acariciou-lhe as costas musculosas,
em seguida baixou as mãos até ao traseiro e às coxas firmes. Travis
continuou a beijá-la com paixão, avivando o desejo que os invadia.
Kim demorou um momento a acariciar-lhe as coxas e depois
colocou as mãos onde o desejo era mais visível. A ereção do
membro era firme, forte e dura. Kim sentiu o corpo a fundir-se de
desejo para o receber. Tinha a impressão de que o esperara durante
quase toda a vida.
Quando Travis começou a beijar-lhe o pescoço, recostou-se para
trás, tencionando deitar-se na cama, entregar-se-lhe por inteiro. Mas
ele não o permitiu. Como se ela não pesasse nada, ergueu-a com
um braço e com o outro colocou-lhe as pernas à volta da sua
cintura.
Penetrou-a facilmente.
– Encaixamos na perfeição – murmurou Kim.
– Alguma vez duvidaste? – replicou ele, beijando-lhe o pescoço.
Travis manteve-a junto ao corpo, aguentando o seu peso. Kim
sentia-se encantada por poder tocar-lhe. As mãos masculinas,
grandes e fortes, agarravam-lhe o traseiro e faziam-na subir e
descer ao ritmo da penetração.
Kim inclinou a cabeça para trás, deixou que ele se movesse lenta
e profundamente, ao mesmo tempo que as suas estocadas a
enchiam como nunca lhe acontecera com outro homem.
Quando pensava que estava prestes a explodir, Travis deixou-a
cair sobre o colchão, sem sair de dentro dela. Apoiou-a contra a
cabeceira da cama e as estocadas tornaram-se mais prementes e
mais rápidas.
Kim ardia em desejo de gritar. Jamais havia sentido uma
intensidade semelhante, a sensação de que não só tinha ofertado o
seu corpo, como também o coração e a alma.
Quando se veio, apertou-o com tanta força que receou parti-lo em
dois com as pernas. Mas Travis também se encontrava em pleno
orgasmo como o testemunhavam os estremecimentos do corpo.
Deixou-se cair na cama ao lado dela e puxou-a para a abraçar.
Kim passou uma das pernas sobre a sua coxa, sentindo a humidade
daquele corpo que lhe parecia tão estranho e ao mesmo tempo tão
familiar. Era o menino que conhecia tão bem e o homem que
desconhecia totalmente.
– O que queres saber sobre mim? – sussurrou Travis meigamente,
com uma das mãos entrelaçada no seu cabelo e acariciando-lhe a
face com a outra.
– O que é que…? – começou Kim, mas interrompeu-se.
Desejava mesmo que ele falasse do pai enquanto estava nos seus
braços? Queria realmente saber mais coisas sobre a sua infância
solitária? Ou deveria ser uma dessas mulheres que exigiam que os
homens lhes descrevessem em pormenor as suas relações sexuais
anteriores? Em resumo, desejava estar deitada ao lado dele e
interrogá-lo sobre a bonita Leslie?
– Kim – disse Travis –, responderei a tudo o que quiseres saber.
Confesso que reservei todos os quartos deste local por não suportar
a ideia de que estivesses aqui com outro homem. Conto-te como
consegui desmascarar Borman. Também, como…
Kim inclinou-se e beijou-o, roçando-lhe o tronco com os seios.
– Sabes alguma coisa sobre investigação?
– Às mil maravilhas – respondeu num tom solene. – Quando quero
saber alguma coisa, telefono à Penny e dou-lhe instruções. Ela é
capaz de investigar tudo.
– Oh! – exclamou Kim, que rolou de cima dele, pousando as
costas da mão na testa. – Como lido com um homem tão mimado?
Travis virou-se de lado e acariciou-lhe os seios.
– A Penny é uma necessidade. Livra-me de muitas coisas para que
eu possa passar o tempo a dirigir as diabólicas operações do meu
pai. – Inclinou-se e passou os lábios por um dos bicos róseos do seu
seio. – És tão bonita como as rosas selvagens de manhã. O tom rosa
e branco contrasta com o teu cabelo ruivo. Nunca conheci ninguém
mais bonito do que tu.
O significado das suas palavras, a maneira como as pronunciou,
tiraram-lhe a respiração. Mas em simultâneo surgiram-lhe imagens
de outra mulher.
– Não é isso o que o meu irmão diz sobre ti e… e as outras –
replicou num tom descontraído, embora o tema fosse muito sério
para ela.
– O teu irmão? Referes-te ao tipo que se plantou no meio de um
rali segurando as rédeas de um burro aterrorizado?
A imagem arrancou uma gargalhada a Kim e fez com que o irmão
parecesse suficientemente imbecil para não levar em conta a sua
opinião.
Travis começou a beijar-lhe o pescoço. Reparou na aspereza da
barba; encantava-a o odor masculino do corpo. Fechou os olhos e
deixou-se dominar pelos sentidos.
– Adoro ouvir-te rir – sussurrou Travis enquanto roçava os lábios
por um dos seus ombros. – Quando éramos crianças, sabia que
nunca conheceria ninguém tão feliz como tu. – Beijou-a na clavícula
ao mesmo tempo que lhe acariciava os seios e ergueu a cabeça para
a fitar. – O teu amor pela vida, o que aprendi contigo sustentou-me
ao longo dos anos.
Kim ia perguntar-lhe porque não a tinha contactado enquanto ela
estava na universidade, mas nesse momento Travis beijou-a nos
lábios e esqueceu a pergunta.
Ele começou de imediato a explorar-lhe o corpo, sobre as pernas,
entre elas. Quando lhe tocou no ponto mais sensível, ela emitiu um
suspiro. Acariciou-a suavemente e Kim fechou os olhos, deixando-se
levar pelas sensações, pelo prazer que lhe provocavam as mãos
masculinas.
Travis moveu-se lentamente em cima dela. O seu peso era
maravilhoso, recordava-lhe a sua virilidade.
Penetrou-a devagar, enchendo-a por completo, com estocadas
fundas e demoradas. Observava-a e sorria ao detetar o prazer que o
seu rosto espelhava.
Uns minutos depois, Kim abriu os olhos e fitou-o surpreendida.
Sentia ondas de prazer cada vez mais intensas. Nunca tinha
experimentado nada igual, nunca…
– Travis… – sussurrou.
– Estou contigo, miúda – disse ao mesmo tempo que se virava de
costas e a punha a cavalgá-lo. Mantinha as mãos nas suas ancas.
Kim colocou as mãos nos ombros dele e cravou as unhas
enquanto se levantava e baixava a um ritmo frenético.
Quando notou que ela era incapaz de aguentar mais, Travis rodou
e deitou-a sobre o colchão. Uma vez sobre ela, movimentou-se com
igual frenesim. Kim rodeou-lhe as ancas com as coxas e ele veio-se
dentro dela com a mesma intensidade. Ambos caíram exaustos,
saciados e transbordantes de amor. Travis abraçou-a como se
receasse que pudesse desaparecer.
Por um momento, Kim pensou que tinha adormecido, mas, ao
mexer um pé, ele abraçou-a com mais força.
– Estou a magoar-te?
– Pelo contrário – respondeu ela.
Travis soergueu o tronco e apoiou o peso do corpo sobre um
cotovelo e a cabeça sobre a mão. Fitou-a um momento em silêncio.
– Bem, o que queres fazer? – inquiriu finalmente.
– Fazer-te perguntas sobre as tuas ex-namoradas – respondeu ela
num tom sério.
Foi recompensada por uma expressão de puro terror que durou
uma décima de segundo antes de Travis sorrir.
– Vais castigar-me, certo?
– Sim – respondeu Kim enquanto erguia uma mão para lhe
acariciar o cabelo. Ansiava por lhe tocar desde a primeira noite em
que o vira ao luar no casamento de Jecca. – Vou fazer com que te
arrependas de me teres mentido.
– Na realidade, não te menti.
– Não há uma lei que diga que as evasivas são tão condenáveis
como as mentiras?
– Que sei eu de leis? – replicou ele com um brilho alegre nos
olhos. Virando-se, pôs as mãos atrás da cabeça e fixou o dossel.
Quando Kim ia a afastar-se, voltou a puxá-la. Ela pousou a cabeça
na curva do ombro masculino e começou a acariciar a leve penugem
do peito.
– Já deste uma vista de olhos a este lugar? – perguntou Travis.
Kim estava tão absorta pela pele dele que de início não sabia ao
que se referia. Soergueu-se num cotovelo e examinou o peito.
– Que cicatrizes são estas? – Havia três nas costelas e uma num
dos lados.
– Resultado do trabalho como duplo – respondeu sem parecer
interessado em continuar a falar do assunto. – À cidade.
– O que há na cidade?
Travis pôs-se de lado para a fitar.
– Já espreitaste esta cidadezinha?
Kim soergueu-se um pouco para que a beijasse e ele obedeceu.
– Não – respondeu finalmente.
Travis voltou a deitar-se de costas.
Ao ver que ele se mantinha em silêncio, Kim olhou-o e quis saber:
– Estás a insinuar algo?
– Não vieste por um motivo concreto? Além de vires para te
comprometeres com um falhado, quero dizer.
– Eu não… – Longe dela morder o isco e entrar numa discussão. –
Nada mau que lhe tenhas pago para que me deixasse, hein? Vais
aprender a cozinhar para poderes gerir a tua nova empresa de
catering?
– Tenciono oferecer o negócio ao Russell.
– Para quem se conhece há apenas dois dias, vocês tornaram-se
íntimos – comentou Kim.
– Ver-me em baixo parece agradar-lhe.
– Porque estavas infeliz? – perguntou Kim antes de se recordar.
Travis fitou-a e ela estreitou os olhos.
– Se estás a tentar que sinta pena de ti, começarei a perguntar-te
porque ias às minhas exposições às escondidas.
Por um momento, Travis pareceu melindrado, mas acabou por
esboçar um meio-sorriso.
– Estamos quites. Achas que há comida neste hotel?
– Se não houver podes comprar o hotel e usar a tua própria
empresa de catering. Podias fundar uma sucursal das Maxwell
Industries aqui em Janes Creek.
Travis abanou a cabeça.
– Vais dar-te bem com o meu pai. Creio, inclusivamente, que
podes assustá-lo.
– Engraçadinho! – reagiu Kim, embora o comentário lhe tivesse
agradado, pois significava que pensava apresentá-la ao pai. Talvez
mesmo à mãe. Outra vez.
Quando Travis rolou para fora da cama e se levantou, Kim colocou
as mãos atrás da nuca e observou-o. Tapara-se com a colcha e
parecia-lhe maravilhoso – mesmo erótico – estar tapada, mas vê-lo
nu.
Todos os desportos que Travis praticara haviam tido como
resultado um corpo musculoso e proporcionado. As várias cicatrizes
acrescentavam um toque ainda mais viril à sua beleza.
– Passei no exame? – perguntou num tom rouco, fitando-a.
– Sim – respondeu Kim com um sorriso.
Devolvendo o sorriso, Travis vestiu novamente as calças. Percorreu
o quarto com um olhar antes de entrar no de Kim e voltou com o
dossiê que Gemma lhe tinha preparado.
– O que é isto?
– O verdadeiro motivo que me trouxe aqui.
– Importas-te que…
– Nada. Vê o que quiseres. Ainda não li nada.
Enquanto Kim observava Travis a estender-se ao seu lado e
começar a ler, pensou em como sabia pouco a respeito dele. Por
outro lado, talvez o conhecesse totalmente. O homem que tinha
cicatrizes provocadas pelos riscos do seu trabalho como duplo era o
mesmo rapazinho que aprendera a andar de bicicleta e uma hora
depois já fazia cavalinhos. O rapaz que se sentava numa árvore para
ler sobre Alice e o Chapeleiro Louco era o mesmo homem que nesse
momento lia documentos históricos com toda a atenção.
– A sério que não leste isto? – perguntou Travis ao mesmo tempo
que pousava os documentos sobre o estômago e a atraía a si.
– Ao ver a palavra cemitérios fechei o dossiê. Perdi alguma coisa?
– Vejamos… Queres a apresentação dos factos como um conto de
fadas ou como um processo em tribunal?
Kim sentiu-se tentada pela ideia de uma sala de tribunal. Gostaria
de vê-lo falar diante de um júri. Mas nesse caso ele provavelmente
usaria a sedução para conquistar os jurados, o que em nada lhe
agradaria.
– Um conto de fadas – optou.
– Muito bem – anuiu ele com um sorriso. – Era uma vez uma
jovem, que vivia em Edilean, Virgínia, chamada Clarissa Aldredge e
queria passar o verão de mil oitocentos e noventa e três na
cidadezinha de Janes Creek, Maryland.
– Porquê? – interessou-se Kim. – Porque saiu de Edilean? – Sabia
que a sua voz detetava algo mais do que simples curiosidade.
Travis beijou-a na testa.
– Não consigo imaginar porque queria sair de uma povoação onde
toda a gente sabe tudo sobre os outros.
– Menos quem é a mãe de quem – murmurou Kim.
– Vais ouvir-me ou lançar-me farpas?
– Deixa-me pensar – replicou. Ao ver que Travis continuava a
olhá-la, disse-lhe que continuasse.
– Onde ia? Ah, já sei. Miss Clarissa Aldredge veio para Janes
Creek, Maryland, durante o verão de mil oitocentos e noventa e três.
Ninguém sabe porque o fez, mas presumo que tinha amigos na
cidadezinha e queria passar o verão com eles. Concordas?
Kim assentiu com a cabeça.
– Fosse qual fosse o motivo por que abandonou Edilean, sabe-se
que quando regressou, em setembro desse ano, estava grávida.
Nunca disse nada sobre o pai da criança, portanto a gente da
pequena cidade… que, de vez em quando, é dada a alguma
coscuvilhice… supôs que ele fosse casado. Clarissa nunca corrigiu
essa suposição. Mas o problema foi que, depois de regressar,
Clarissa tinha mudado. Andava melancólica, deprimida.
– Lógico! – contrapôs Kim. – Uma mulher solteira e grávida em mil
oitocentos e noventa e três? Estranho que não a tivessem
apedrejado de morte.
– Julgo que isso acontecia numa época muito anterior. De
qualquer maneira, parece que a pobre Clarissa morreu pouco depois
de ter dado à luz um filho.
– Oh! – exclamou Kim. – Gemma e Joce não me contaram essa
parte.
– Talvez não quisessem entristecer-te. No leito de morte, Clarissa
disse ao seu irmão Patrick: «Chama-lhe Tristan e reza para que seja
médico como o pai.» – Travis pôs os documentos de lado e fitou
Kim. – Os médicos da família Aldredge não continuam a chamar-se
Tristan ainda hoje?
– Esse nome está reservado aos herdeiros da mansão Aldredge –
corrigiu-o, embora estivesse obviamente distraída.
– Não pertences a esse ramo da família?
– Não, por isso o meu irmão se chama Reede.
– Ah, sim. É verdade – replicou Travis, estendendo-se na cama ao
lado dela. – O que se passa?
Kim não podia desvendar-lhe o que estava a pensar. Que ela e
Clarissa tinham muito em comum. Entre ela e Travis era tudo
temporário. Ele tinha ido a Edilean para ajudar a sua mãe e dentro
em breve estaria envolvido num polémico processo de divórcio.
Voltaria a exercer a advocacia e retomaria a sua glamorosa vida
nova-iorquina. Kim e a entediante e pequena Edilean seriam uma
mera recordação. Dali a uns anos, sorriria quando pensasse nela?
Tentou libertar-se desses pensamentos. Agora estavam juntos e era
isso que importava. Voltou a prestar atenção a Travis.
– Estou bem – disse. – Continua a história.
– Parece-me que se Clarissa confessou que o pai era médico e se
chamava Tristan isso não facilita o trabalho de investigação das tuas
amigas pela internet?
– Na realidade, já o fizeram – esclareceu Kim. – Contaram-me que
encontraram um tal doutor Tristan Janes…
– Como o nome da povoação.
– Sim – anuiu Kim com um suspiro. – Morreu em mil oitocentos e
noventa e três.
– Percebo – respondeu Travis, que começou a encaixar as peças
da história. – Clarissa vem a Janes Creek, apaixona-se pelo médico
local, enrolam-se no feno, mas antes de se casarem ela engravida e
ele morre. Clarissa volta a Edilean, dá à luz o filho e depois…
– Une-se a Tristan – concluiu ela.
– Esperemos que seja essa a história. – Travis fez uma pausa. –
Se as tuas amigas sabem tudo isso, porque te mandaram vir aqui?
– Joce e Gemma são recém-chegadas.
Travis aguardou que ela explicasse a estranha afirmação.
– Não nasceram em Edilean. Querem que averigúe se esse doutor
Tristan era casado e, nesse caso, que descubra se teve outros filhos.
– Primos – disse Travis. – Trata-se então de encontrar mais
parentes?
– Temo bem que sim – replicou Kim. – Se encontrar algum jovem
descendente, é provável que Joce os adote e Gemma desejará
investigar todo esse ramo da família.
– Desenharás joias para todos?
Kim soltou um gemido.
– Se me ocorrerem ideias novas, claro. Não criei um único design
desde que te encontrei. Na verdade, nem sequer me recordo de
como ganho a vida.
Travis brindou-a com uma expressão séria.
– Kim, se quiseres que…
Ela não tinha a certeza do que se preparava para lhe dizer, mas
suspeitava que se tratava de algo relacionado com a sua capacidade
financeira de compra. Como não desejava ouvi-lo, interrompeu-o e
mudou de assunto.
– Bom, quando interrogamos os vizinhos e lhe perguntamos se há
alguém com idade bastante para se lembrar do que aconteceu em
mil oitocentos e noventa e três?
– Se o doutor Tristan morreu aqui, devíamos procurar uma lápide
tumular e fotografá-la. Talvez tenha alguma inscrição e exista mais
alguém enterrado ao seu lado. Se era casado, a mulher estará com
ele.
– Talvez tenhamos sorte e se chamasse Leslie – disse Kim sem
pensar. Na realidade, não tinha intenção de fazer esse tipo de
comentários. Queria mostrar-se elegante e sofisticada. Em vez disso,
parecia uma… enfim, uma pequena provinciana. – É melhor vestir-
me – decidiu e fez um movimento para sair da cama.
Mas Travis agarrou-lhe no braço.
– Penso que devo dizer-te a verdade.
Kim manteve-se de costas para ele, tapada com o lençol. Tinha a
sensação de que não só estava despida fisicamente, porque as suas
palavras haviam sido muito reveladoras.
– A tua vida pertence-te. Só estou nela por… – Kim desejou dizer
«por sexo», mas não foi capaz.
Com os seus outros pares, sempre conseguira dar um toque
distanciado à relação. Um deles tinha comentado que ela brincava
com tudo. Mas agora era Travis em causa. No dia seguinte ao seu
regresso a Edilean, Kim mandara um e-mail a Jecca dizendo-lhe que
o homem por quem estava apaixonada desde os oito anos tinha
voltado à cidade. Amante ou não, não podia fazer um gracejo sobre
ele e a sua bonita namorada.
Ao constatar que ela não se virava para o olhar, Travis soltou-a.
– Demorei tanto tempo a regressar para junto de ti porque antes
queria descobrir quem era – confessou em voz baixa. – Sempre fui o
filho de um homem rico e precisava de saber se conseguiria
sustentar-me. Não queria ser um desses jovens ricaços que vivem à
custa dos pais. Que tipo de homem seria se fosse tudo o que tinha
para te oferecer? – Kim manteve-se quieta e ele prosseguiu, depois
de respirar fundo. – Após conseguir a licença para exercer advocacia
em Nova Iorque, o meu pai ofereceu-me um cargo importante e
muito bem remunerado, mas recusei. Ficou furioso! Cancelou o meu
fundo fiduciário e fiquei por minha conta. Disse que não conseguiria
singrar na vida e, na verdade, receei que tivesse razão.
Kim virou-se para o fitar.
– Queria afastar-me dele o máximo possível e pedi boleia a uma
pessoa – Travis esboçou um meio-sorriso – que me levou no seu
avião privado para Los Angeles. Fiquei a morar com um colega da
universidade enquanto procurava trabalho. Estava tão furioso que,
quando soube que procuravam duplos para cenas de ação, atirei-me
de cabeça. Obtive o emprego porque tenho a mesma altura e um
físico igual ao de Ben Affleck. Fui baleado por duas vezes em vez
dele. – Fitou Kim com um sorriso. – Tive êxito e provei que era
capaz de sobreviver por minha conta. Mas o meu trabalho consistia
em arriscar a vida nas cenas de ação. Saía-me bem, mas tinha
consciência de que o meu corpo não aguentaria eternamente e
desisti. Além disso, não era uma vida adequada para… para ti.
– Para mim? – Kim pestanejou várias vezes.
– Sim, claro, para ti. Não te disse que a minha vida girou sempre
à tua volta?
– Mas… – Na verdade, pensou que se tratava do típico comentário
de todos os homens. Não o encarara ao pé da letra. – Então, o que
fizeste?
– O meu plano era conseguir um cargo numa firma de advogados.
Fui contratado por uma bastante decente e conservadora, situada no
norte da Califórnia. Pensei que trabalharia um ou dois anos com eles
e em seguida regressaria a Edilean para voltar a ver-te. Queria saber
se poderia existir algo… adulto entre nós. Pensei que com um ano
ou dois de experiência em advocacia, talvez arranjasse trabalho em
Edilean ou nos arredores.
Kim susteve a respiração, mas ficou em silêncio.
– Tudo corria segundo o previsto até a minha mãe roubar alguns
milhões de uma das contas do meu pai, que veio furioso ao meu
encontro e disse que ia matá-la.
Kim engoliu em seco.
– Não o disse à letra, mas sabia que lhe tornaria a vida num tal
inferno que ela desejaria estar morta. Sabia exatamente para onde
fora a minha mãe: para a cidadezinha onde havíamos passado os
dias mais felizes da nossa vida.
– Edilean.
– Exato. Tive consciência de que isso deitava por terra as minhas
esperanças de te rever. Conheço o meu pai. Sei que me seguiria
quando o fizesse e descobriria o esconderijo da minha mãe.
– Portanto, começaste a trabalhar para ele.
– Sim.
– Não planeavas ficar a trabalhar para ele eternamente, certo?
– Não planeei nada a longo prazo. Quando estava prestes a
concretizar o sonho que me acompanhava desde os doze anos,
quase toda a vida, vi-me a trabalhar oitenta horas por semana para
o meu pai. Não tinha tempo para dormir, muito menos para pensar.
– Mas tiveste tempo para visitar as minhas exposições de joias –
ripostou Kim sem conseguir dominar-se e com um tom furioso. – Se
significava tanto para ti, porque não me falaste? Porque não me
disseste algo como: «Olá, Kim. Lembras-te de mim?» Poderias fazer
qualquer coisa. Eu não sabia o teu apelido e passei anos a procurar-
te na net.
Travis estendeu a mão, puxou-a contra ele e acariciou-lhe o
cabelo.
– Como podia aproximar-me de ti? Estavas a sair-te tão bem. Eras
uma promessa no mundo das joias. Seguia a tua carreira pela net e
parecia que todos os dias conseguias uma novidade. Enquanto eu…
eu era apenas a marioneta do meu pai. Precisava de me afirmar
como homem.
– Na cama também? – arriscou Kim num tom mais venenoso do
que pretendia.
– Sim – admitiu Travis. – Também nesse terreno. Uma coisa é
uma jovem ensinar-te a montar uma bicicleta e outra muito
diferente é ensinar-te o que fazeres na cama. «E agora onde meto
essa coisa tão grande?» – imitou em voz de falsete.
Kim foi incapaz de conter uma gargalhada. Depois, afastou-se dele
e fitou-o nos olhos.
– Interferiste para que os meus outros namorados rompessem
comigo?
– Não, mas mantive-os a todos debaixo de olho.
– O que significa isso?
Travis encolheu os ombros.
– O que fizeste? – exigiu saber.
– Investiguei-os, nada mais. Nada de ilegal. Quando via que
ganhavam menos do que tu, descontraía. Sabia que fugiriam de ti,
apavorados.
– Obrigada do fundo do coração – agradeceu Kim. – Dito assim,
até parece que empunho uma espada e monto um cavalo em pelo.
– Agrada-me a imagem – comentou Travis com um brilho nos
olhos.
– Fizeste-me passar um inferno durante anos. Sentia a tua falta e
não podia encontrar-te e tu…
Travis interrompeu-a com um beijo.
– Quero compensar-te – garantiu, beijando-lhe o nariz. – Quero
passar anos e anos a compensar-te.
Embora lhe agradasse e muito o que Travis estava a fazer, Kim
apartou-se dele e fitou-o.
– O que significa isso? Exatamente?
– Que te amo e quero casar contigo. Se me aceitares, claro.
Kim ficou subitamente sem palavras.
– Mas…
– Mas o quê?
– Mal nos conhecemos. Só regressaste há uma semana e antes
disso…
Travis beijou-a de novo.
– O que te parece esta ideia? Dar-te-ei todo o tempo do mundo
para que me conheças e, entretanto, vou pedir-te todos os dias que
cases comigo. Quando julgares que me conheces o suficiente, dizes-
me e vamos à procura de um padre. Então? – Virou-se e pôs os pés
no chão. – Estou morto de fome. E tu? A Penny diz que tem um tio
que come tanto que poderia arruinar-me. Gostava de conhecê-lo e
tu?
– Eu… bom… – Kim ainda sentia a cabeça à roda depois de ouvir
o que Travis acabava de dizer. – Onde vais viver? – conseguiu
perguntar-lhe.
Travis ia a caminho da casa de banho.
– Contigo, se estiveres de acordo. Gosto da tua casa, mas penso
que devias mudar o teu ateliê para a loja do Joe. Queres tomar
duche comigo? Dessa forma, a tua garagem ficará liberta. Acredito
que se deve tratar bem os automóveis. Há bons mecânicos na
cidade?
Enquanto ele desaparecia atrás da porta da casa de banho, Kim
manteve-se sentada na cama. O lençol caiu, mas ela nem reparou.
Travis espreitou.
– Se continuares aí sentada, terei de voltar à cama para fazer
novamente amor contigo e estou mesmo com fome. Tem pena de
mim, okay? – Regressou à casa de banho.
Travis desapareceu de vista, mas Kim continuou onde estava. Não
sabia se ouvira bem as suas palavras nem tão-pouco o que estava a
sentir. Nesse fim de semana esperara receber um pedido de
casamento de um homem que conhecia há meses. Em vez disso,
tinha acabado de receber uma proposta de… de Travis, pensou com
um sorriso. Imaginou-o montado na bicicleta, enquanto se lançava
pelo montão de terra. Tinha a cara e os dentes sujos, mas nunca
vira ninguém mais feliz. Esse rapazinho acabara de pedir-lhe que
casasse com ele!
Ouviu a água do chuveiro a correr. Pestanejou durante mais uns
segundos e depois foi ter com ele a correr.
– Gosto da localização do meu ateliê – disse. – Não preciso de
carro para chegar lá e posso trabalhar até tarde, se me apetecer.
Não podes…
Interrompeu-se, porque Travis estendeu um dos seus compridos
braços e rodeou-lhe a cintura. A cortina do chuveiro enrolou-se entre
os dois corpos.
– Levar-te-ei de carro todos os dias – disse ele, antes de voltar a
beijá-la. – Sou um excelente condutor.
– Sim, para quem gosta de montanhas-russas sem travões.
– Tu gostas – replicou, voltando a beijá-la.

1 «A Mulher ou o Tigre?» é um conto do escritor americano Frank Richard Stockton


(1834-1902). O título entrou no idioma inglês como uma expressão alegórica, uma
indicação que remete para um problema que é insolúvel. (N. da T.)
TREZE
Kim estava sentada no exterior do B&B à espera de Travis. Quando
finalmente se acabaram de vestir – o duche tinha sido demorado – o
telemóvel dele tocou.
– Para este número só me ligam Penny, a minha mãe ou tu – disse
enquanto tirava o aparelho do bolso das calças. – Penny – saudou
ao atender.
Minutos depois, informou Kim de que um «atrasado mental
incompetente chamado Forester» tivera um colapso e precisava de
ajuda.
– Lamento – desculpou-se Travis –, mas isto vai levar algum
tempo. Ele dará cabo do negócio se não o encaminhar. Importas-te?
– Claro que não – respondeu Kim. – Espero-te lá fora.
Ao sair do quarto, agarrou no bloco de esboços. Talvez lhe
ocorresse qualquer ideia para os seus designs. Embora duvidasse
que assim fosse, pois só conseguia pensar no que Travis lhe tinha
dito. Teria mesmo planeado toda a sua vida em torno dela? Seria
possível? Mas em seguida interrogou-se se não teria feito o mesmo.
Não de uma forma consciente, como Travis parecia ter feito, mas
inconscientemente. Procurara-o desde muito pequena, quando se
esgueirava para o quarto do irmão onde havia ligação à net sem o
férreo controlo da mãe. A sua busca para encontrar Travis tinha
vogado em função da sua vida pessoal. Depois de romper com um
namorado, chorava, comia gelado e passava dias inteiros ligada à
net.
Agora, percebia que talvez tivesse visto fotos do multimilionário
Travis Maxwell, mas sem lhes prestar atenção. Descobrira há muito
tempo que Travis e a mãe estavam a fugir de um homem violento.
Nunca lhe ocorreu que os jovens ricos recebessem algo que não
fosse mimos. Por essa razão mantivera as pesquisas longe das
páginas da sociedade.
Quanto ao que Travis dissera sobre a sua intenção de casar com
ela, morria de desejo de lhe lançar os braços ao pescoço e dizer-lhe
que sim. Era o que mais queria no mundo. Mas não podia fazê-lo
pois havia muitos problemas a resolver. Travis ainda se mantinha
demasiado ligado à sua vida anterior, ao cabrão do pai. Como
podiam ser felizes, a menos que o problema se solucionasse? Além
disso, a mãe dele necessitaria de muita ajuda. Por mais que todos
gostassem de Joe, ele era natural de uma cidadezinha; jamais
poderia fazer frente ao importante pai de Travis. Randall Maxwell era
conhecido internacionalmente como um homem capaz de enfrentar
quem quer que fosse – a nível global. Como poderia Joe, o dono de
uma pequena loja de ferragens, lidar com isso? Travis teria de
interferir e ocupar-se de tudo. Quanto tempo poderia durar o
divórcio de um homem riquíssimo que não queria gastar um único
cêntimo? Anos? Como podiam Travis e ela ter uma vida própria se
ele estava permanentemente envolvido naquela confusão?
Os obstáculos à volta deles pareciam insuperáveis. Não pensava
obviamente desistir. Nunca. Mas passaria bastante tempo antes que
pudessem ter as suas vidas, desfrutar de um lar, ter os seus
próprios… filhos.
Quando saiu para o ar fresco do entardecer, respirou fundo.
Lembrou-se que, por mais obstáculos que houvesse pela frente,
tinham-se um ao outro e havia sempre uma luz ao fundo do túnel. O
pensamento de um futuro em que não estaria só – como começara
a temer – fê-la sorrir e a sua mente desanuviou-se. Tal como lhe
acontecia desde criança, começou a pensar em joias. À luz do
crepúsculo, as folhas de um ácer pareciam pedras preciosas. Ou
talvez pedaços de quartzo. As que se conservavam na sombra eram
sem dúvida granadas puras. Há muito tempo que não usava esses
cristais e talvez tivesse chegado a altura de começar a fazê-lo.
Debaixo das árvores havia uns bancos e sentou-se num deles,
começando a desenhar o que tinha imaginado. As pedras, inclusive a
curva das folhas, lembraram-lhe o pescoço de uma mulher. Talvez
conseguisse que o ouro deslizasse sobre a pele, para descrever um
ângulo sobre uma clavícula. Caso pusesse a ideia em prática, o colar
resultaria muito sensual. Teria obviamente de se ajustar à medida de
cada cliente, mas isso seria muito agradável de fazer. Detestava os
colares que formavam um círculo perfeito e rígido. Ninguém tinha
um pescoço totalmente redondo e achava sempre que as joias se
destacavam num ângulo estranho.
Estava tão entusiasmada com os seus pensamentos e com o
desenho que não viu nem ouviu nada até que um homem quase
tropeçou nos seus pés.
– Desculpe – pediu ele. – Não era minha intenção assustá-la.
Kim ergueu o rosto e viu um homem baixo e corpulento, à volta
dos sessenta anos, à sua direita, com uma vassoura na mão. Vestia
umas calças de ganga usadas e uma camisa de xadrez que parecia
ter sido lavada centenas de vezes. Sorria-lhe de uma maneira que
lhe recordou os seus vizinhos.
– Continue, por favor, o que estava a fazer. – O homem fez um
aceno da cabeça na direção do bloco de esboços de uma forma
indiciadora de curiosidade.
– Gosto da forma como a luz joga com as folhas desse ácer –
comentou ela.
– São bonitas, não são? – O homem pousou as mãos sobre o cabo
da vassoura e fixou as folhas. – É uma das pessoas que estão
hospedadas aqui?
– Sim.
– Não quero ser intrometido, mas é uma reunião familiar? Não
costumamos ter tantos hóspedes aqui.
Kim susteve uma gargalhada ao pensar no verdadeiro motivo por
que havia tantas pessoas em Janes Creek. Travis tinha planeado
vigiá-la e a Dave. Mas acabara por afugentar Dave.
– Não – respondeu. – É apenas o meu… – Não sabia muito bem
como designar Travis. O seu noivo? Mas ele não a pedira
oficialmente em casamento, pelo menos com um anel (um pormenor
que Kim considerava imprescindível para um pedido e sempre
vincava aos homens que iam à sua joalharia) e ela não tinha
aceitado.
– O seu pretendente? – arriscou o homem.
Era um termo muito antiquado que parecia enquadrar-se na
situação.
– Sim, o meu pretendente convidou algumas pessoas.
Ficaram calados um momento e depois o homem olhou para o seu
bloco de esboços.
– Vou deixar que volte ao que estava a fazer, mas, se precisar de
qualquer ajuda, diga-me. Só tem de perguntar pelo Red. Tinha o
cabelo ruivo noutros tempos. – O homem fez menção de se afastar.
– Já temos algo em comum. Na verdade – começou Kim –, talvez
possa ajudar-nos a encontrar alguém.
O homem deteve-se e fitou-a. Havia algo nele que lhe agradava.
Tinha um sorriso doce.
– Sinto dificuldade em relacionar-me com recém-chegados, mas
se a pessoa tiver mais de quarenta anos, talvez possa ajudar.
Sorriu ao ouvir a expressão «recém-chegados». Era a mesma que
usavam em Edilean.
– Mas se a pessoa tiver morrido em mil oitocentos e noventa e
três?
– Então decerto frequentámos a mesma escola.
Kim desatou a rir.
– Doutor Tristan Janes. Suponho que a cidade recebeu o nome
devido à sua família?
– É verdade – confirmou o indivíduo ao mesmo tempo que
esboçava um movimento de cabeça para uma das cadeiras vazias na
frente dela. Estava a pedir-lhe licença para se sentar.
– Por favor – convidou ela.
Depois de se sentar, o homem perguntou:
– O seu pretendente não se importará que tenha uma conversa
privada com outro homem?
– Estou certa de que ficará louco de ciúme, mas serei capaz de
acalmar a sua ferocidade.
Red soltou uma gargalhada.
– Fala como uma mulher apaixonada.
Kim não conseguiu evitar ruborizar-se.
– O que me diz do doutor Janes?
– Dantes havia uma biblioteca na povoação, mas, quando a
fábrica fechou, a povoação praticamente morreu com ela. Mudaram
todos os livros e documentos para a capital do estado. Se não o
tivessem feito, agora podia ir à biblioteca para ler tudo. De qualquer
maneira – prosseguiu –, um tal Mister Gustav Janes recuperou a
cidadezinha em mil oitocentos e cinquenta e sete quando abriu um
moinho que moía a farinha de todos os produtores num raio de uns
cem quilómetros. O seu único filho, Tristan, tornou-se médico. Sei
que o velho Gustav, que não sabia ler nem escrever, estava
profundamente orgulhoso do filho.
– O que não é de admirar – comentou Kim. – Tristan morreu novo,
certo?
– Sim. Estava a resgatar alguns mineiros e as paredes desabaram.
Levaram uma semana a encontrar o cadáver. Era uma pessoa muito
amada e centenas de pessoas compareceram no funeral.
– Tenho a certeza de que uma dessas pessoas era uma minha
antepassada – garantiu Kim. – Parece que estava grávida dele, um
menino que era… deixe-me ver se não me engano… o irmão do meu
bisavô.
– Creio que isso a torna uma cidadã honorária de Janes Creek?
– Não sou uma recém-chegada?
– Muito pelo contrário. – À distância, ouviram vozes que se
aproximavam deles e Red levantou-se. – Acho que o seu
pretendente vem à sua procura e me devo ir embora.
– O problema é que na minha povoação todos querem saber se o
doutor Janes era casado ou não.
– Oh, não. Li que era o partido mais cobiçado da cidade, um
jovem encantador, mas nunca se casou. Estou certo de que, se não
tivesse morrido, casaria com a sua antepassada. Sobretudo se ela
tivesse metade da sua beleza.
– Obrigada – agradeceu Kim enquanto Red se afastava. – Oh! –
gritou. – Sabe onde ele está enterrado?
– Toda a família Janes está enterrada junto ao velho moinho. Se
for até lá, tenha cuidado. O sítio está a cair aos pedaços. Leve uma
companhia alta e robusta.
– Assim farei – prometeu Kim e Red dobrou uma esquina e
desapareceu de vista.
À sua esquerda, do outro lado da frondosa sebe, avistou Travis
que franzia a testa enquanto falava ao telemóvel. Mas, ao vê-la,
sorriu e disse:
– Forester, faça isso e mais nada! – Desligou e estendeu o braço a
Kim. – Pronta para jantares?
– Sim – respondeu ela enquanto se dirigiam ao edifício principal.
Escondido entre os arbustos e a observá-los estava Red. Tinha um
sorriso de orelha a orelha.
– Sir? – chamou um homem de fato.
– O que se passa? – ripostou Red.
– Tem uma chamada de Hong Kong e Mister Forester precisa de…
Red franziu o sobrolho.
– O meu filho já se ocupou de Forester. Preciso que envies alguém
à capital do estado. Quero saber tudo sobre o doutor Tristan Janes
que morreu em mil oitocentos e noventa e três.
– De manhã, irei…
Red fitou o homem com cara de poucos amigos.
– Vou telefonar ao governador.
– Assim é melhor – replicou Red e afastou-se do hotel.
O homem agarrou na vassoura e seguiu Randall Maxwell até ao
carro que os aguardava.

O som do duche a correr despertou Kim e espreguiçou-se ao mesmo


tempo que se deixava arrastar por lembranças. A noite anterior tinha
sido maravilhosa. O jantar fora servido a dois numa pequena
varanda envidraçada e Travis tinha escolhido o menu
antecipadamente. Beberam três vinhos diferentes a acompanhar
uma refeição de seis pratos. Lá fora, as estrelas brilhavam e o luar
misturava-se com o brilho suave das velas. Quando chegaram à
sobremesa, estavam a dar de comer um ao outro… e Kim sentia um
desejo enorme de se inclinar sobre Travis e arrancar-lhe a roupa.
– Vamos retirar-nos? – perguntou ele antes de acabar a
sobremesa.
– Se estás pronto – respondeu Kim com voz tímida.
– Há uma hora que estou pronto. – Parecia um homem em
sofrimento.
Kim soltou uma pequena risada.
Conseguiram dar as boas-noites à pessoa que os serviu – a
mesma jovem que tinha atendido Kim na receção quando chegara –
e não se tocarem enquanto subiam a longa escadaria. Travis abriu a
porta do quarto para dar passagem a Kim. Colocou a corrente e
virou-se para a fitar.
Não foram necessárias palavras. Kim lançou-se para os seus
braços. As roupas voaram através do quarto e formaram um monte
no chão. Quando percorreram a pouca distância que os separava da
cama, estavam despidos. Os corpos fundiram-se com toda a paixão
que sentiam. Cinco minutos depois de terem atingido o clímax
juntos, recomeçaram, dessa vez explorando-se lentamente para
descobrir o que mais lhes agradava.
– Que tal isto? – sussurrou Travis com a mão entre as suas
pernas.
– Gosto muito.
Uma parte dela continuava a desejar que tivessem estado juntos
desde o princípio da idade adulta. Teria sido fantástico dedicarem-se
a uma aprendizagem conjunta. Por outro lado, Travis sabia coisas
realmente maravilhosas sobre o corpo de uma mulher. Sabia na
perfeição o que fazer para a levar ao pico do êxtase e a manter aí.
Kim também havia aprendido umas quantas coisas e, quando
baixou a boca até à sua virilidade, agradou-lhe ouvi-lo gemer de
gozo. Vinte minutos depois regressou ao pescoço.
– Onde aprendeste a fazer isso? – perguntou-lhe com um olhar
surpreendido.
– Nos programas de madrugada da televisão – respondeu ela
muito séria.
Travis deu a entender que não sabia bem se devia ou não
acreditar nela, mas agradava-lhe a ideia de que aprendera na
televisão e não com outro homem.
– Enlouqueces-me, sabes? – reagiu enquanto a punha de costas e
começava a beijá-la.
Só tinham adormecido às três da manhã. Deixaram-se cair um em
cima do outro, nus, transpirados e completamente exaustos. Em
dado momento, Travis tinha acordado. Mudou a posição de Kim para
que não ficasse atravessada na cama, mas com a cabeça apoiada no
seu ombro, tapou-os com os cobertores e voltou a adormecer de
imediato.
Agora amanhecera e Kim escutava a água do duche a correr,
sorrindo ao recordar a noite anterior.
Travis entrou no quarto com uma toalha enrolada à cintura e
secando o cabelo com outra.
– Se continuares a olhar-me dessa maneira, vou precisar de outro
duche. – Fitou-a com uma expressão apaixonada. – Dentro de mais
ou menos uma hora, claro.
Kim espreguiçou-se com um sorriso.
– Passei uma noite fantástica.
– Passaste? – perguntou, sentando-se na beira da cama ao lado
dela e afastando-lhe o cabelo do rosto. – Também eu. E se hoje…
– Oh! – exclamou ela e endireitou-se. – Esqueci-me de te dizer
que sei onde está enterrado Tristan Janes.
– Não era essa a minha sugestão, mas como foi para isso que aqui
estamos…
– Exato. Para encontrar mais familiares meus. – Travis inclinou-se
e beijou-lhe o lóbulo da orelha. – Talvez pudéssemos telefonar a
todos com o nome de Janes e perguntar o que sabem.
Travis levantou-se e dirigiu-se à casa de banho.
– Já consultei a lista telefónica local e falei com a Penny. Não
restam Janes na povoação.
– Quando falaste com ela? – quis saber Kim.
– Esta manhã enquanto dormias – respondeu ela da casa de
banho.
Kim olhou para o relógio. Passava um pouco das nove e não se
lembrava de alguma vez na vida ter dormido até tão tarde. Quando
eram pequenos, ela e Travis já estavam lá fora antes das seis.
– Ainda és madrugador?
Travis enfiou a cabeça pela porta da casa de banho, com a cara
coberta de espuma de barbear.
– Normalmente estou no escritório às sete. E tu?
– Estou no ateliê às seis.
– Tomo obviamente o pequeno-almoço às cinco – replicou ele.
– Eu, às quatro e meia.
– Às quatro estou no ginásio.
– Eu nem sequer me dou ao trabalho de dormir – garantiu ela e
ambos desataram a rir com a competição.
Travis saiu da casa de banho, barbeado de fresco e nu. Ao ver a
expressão de Kim, fez uma pausa antes de começar a vestir-se, mas
depois virou-se.
– Não posso falar por ti, mas eu estou a morrer de fome.
Kim fez menção de sair da cama, mas deu-se conta de que
também estava nua e hesitou. Travis encontrava-se de costas para
ela, mas observava-a através do espelho. «Não é a primeira vez que
me vê nua», pensou ao mesmo tempo que atirava a roupa para trás
e atravessava o quarto com toda a ousadia que conseguiu reunir.
Parou ao chegar à porta da casa de banho e olhou para Travis que
abotoava a camisa… com um sorriso de orelha a orelha.
Tomou duche e lavou o cabelo, aplicando uma enorme quantidade
de amaciador para o deixar o mais sedoso possível. Quando saiu do
duche, limpou-se, vestiu o roupão do hotel que estava pendurado
num cabide da porta e começou a secar o cabelo. Travis entrou
completamente vestido e tirou-lhe o secador da mão. Kim ficou
satisfeita ao ver que ele não se ajeitava muito bem com o enorme
secador de mão, o que significava que nunca executara uma tarefa
tão doméstica. Enquanto se mantinha inclinada para a frente,
sentindo as mãos dele na nuca e no cabelo, pensou que nunca havia
sentido nada tão sensual. Existia algo de tão íntimo e especial no
que ele fazia que pensou que era, inclusivamente, mais sexy que o
sexo. Que pensamento divertido! Mais sexy que o sexo.
– De que estás a rir? – perguntou ele quando desligou o secador.
– De nada. Era uma idiotice. – Virando-se, rodeou-lhe o pescoço
com os braços e beijou-o. – Obrigada – agradeceu. – Gostei da
experiência.
– Também eu. – Passou-lhe as mãos pelos ombros e terminou
com uma palmada no traseiro. – Veste-te para que possa comer
alguma coisa. Na noite passada esgotaste-me. – Saiu da casa de
banho.
– Como é possível se passaste quase todo o tempo de costas? –
replicou e começou a maquilhar-se. – Fui eu que tive todo o
trabalho.
Travis olhou em volta.
– Então que canais vês na televisão quando passas a noite a pé?
Penso que devemos assistir juntos a esses programas.
– Fora daqui – ordenou ela com uma gargalhada. – Deixa-me
arranjar.
Travis regressou ao quarto e pôs o relógio.
– Conta-me como descobriste onde Janes está enterrado.
Enquanto punha rímel nas pestanas, falou-lhe do seu encontro
com o jardineiro, Red, e fez-lhe um resumo do que ele lhe contara.
Uns minutos depois, acabou de maquilhar-se e dirigiu-se ao quarto
para se vestir. Travis sentou-se numa cadeira para desfrutar do
espetáculo.
– Portanto, quem há aqui que possa acompanhar-nos? – concluiu,
tentando colocar a pulseira. Porém, acabou por se render e
estendeu o braço a Travis.
– Esse homem disse-te que levássemos alguém alto e corpulento?
Será na eventualidade de uma pedra cair em cima de um de nós e o
outro não conseguir retirá-la?
– Não sei porque o disse. Achas que Russell está cá?
– Sem dúvida. Dado que sou eu a pagar a conta, decerto está a
regalar-se com trufas e caviar.
– Parece-me muito boa ideia – aplaudiu Kim. – Depois de irmos
ver essa velha construção, talvez possamos dar um passeio pela
cidade.
– E ver se há alguma joalharia?
– Isso mesmo – replicou Kim, satisfeita por ele a conhecer tão
bem.
Travis sorriu ao abrir a porta para o corredor e começaram a
descer a escada.
– Penso que me agradará. Talvez encontremos um anel de que
gostes.
– Não copio o trabalho dos outros – declarou num tom áspero.
Estavam à porta da sala de jantar principal que Kim ainda não
conhecia.
– Pensava num anel que gostasses de usar para o resto da vida.
– Eu… – Queria continuar, mas foi interrompida por um coro de
saudações. A sala de jantar tinha oito mesas e estavam ocupadas
por pessoas que nunca vira antes. Mas todos pareciam conhecê-los,
pois cumprimentaram Travis e «Miss Aldredge». – Vais ter de me
apresentar.
Travis fez um aceno de cabeça para uma mesa de quatro pessoas.
– Ali está Penny e já conheces o filho dela. Os outros nunca os vi
na vida.
– Os teus hóspedes suplentes – comentou, divertida. Quando
Travis queria alguma coisa não estava com meias-medidas;
preparava-se para todas as eventualidades. «Sou eu o que deseja a
seguir?», pensou sem conseguir dominar-se.
Penny – Mrs. Pendergast – olhou para Kim e indicou com a cabeça
as duas cadeiras vazias na mesa deles. Era uma mulher elegante e
com uma aparência mais jovem do que Kim imaginara. Não tinha
rugas na cara e conservava uma figura esbelta, que era ressaltada
pelas calças de linho pretas e uma camisa branca. Sob os cabelos,
que caíam em ondas suaves até à gola da camisa, espreitavam os
brincos de pérolas que Russell comprara na loja de Kim.
– Decide tu – disse Travis.
Sem hesitar, Kim dirigiu-se à mesa e sentou-se. Tinha os olhos
cravados em Mrs. Pendergast.
– Ouvi coisas maravilhosas a seu respeito – afirmou. – Parece que
Travis é incapaz de viver sem a sua ajuda.
– Quando se mete em sarilhos é a minha mãe que o salva –
comentou Russell.
Penny lançou um olhar de aviso ao filho, mas ele limitou-se a
sorrir.
– Há anos que ouço falar de si – garantiu Penny.
– A sério? – perguntou ela, surpreendida. – Não tinha ideia de que
Travis falasse de mim com alguém.
– Mostraste-lhe a placa?
– Ainda não – respondeu Travis e fez o seu pedido ao empregado.
Havia um aparador antigo encostado à parede cheio de bandejas em
prata, mas aparentemente queria que lhe levassem a comida à
mesa.
Penny inclinou-se para Kim.
– Se quiser alguma coisa do bufê, é melhor ir buscar agora, antes
que o meu tio Bernie coma tudo. – Esboçou um aceno de cabeça na
direção de uma mesa no canto, onde um homem alto e magro
comia de três pratos repletos.
Kim desculpou-se e foi buscar um prato com ovos mexidos,
salsichas e tostas integrais. Quando regressou à mesa, deteve-se a
observar os três. Travis e Mrs. Pendergast tinham as cabeças juntas
e falavam em voz baixa. Na verdade, era ela que falava e Travis
assentia com uma expressão grave e o sobrolho franzido.
A familiaridade entre eles não a surpreendeu, mas sim o facto de
ver Travis e Russell tão próximos. Na última vez que Kim vira Russell
estava demasiado alterada para notar pormenores, mas nesse
momento apercebia-se da semelhança entre os dois. Tinham a
mesma estatura, a mesma cor de cabelo e de olhos e pegavam da
mesma forma nas chávenas de café. Dado que vivera sempre em
Edilean, Kim percebia muito de familiares. Teve facilidade em ver
que Travis e Russell mantinham estreitos laços de sangue.
Com os olhos arregalados, Kim levantou o rosto e verificou que
Penny a fixava. Ergueu as sobrancelhas, interrogando-se se Travis
sabia. Penny abanou a cabeça e dirigiu-lhe um olhar suplicante.
Como se dissesse: «Por favor, não lhe diga. Ainda não.»
Kim não gostava de ocultar segredos a Travis, mas havia muitas
coisas que ignorava dessa história. Esboçou um leve aceno de
cabeça a Penny e sentou-se.
Travis e Penny continuaram a falar sobre a maneira como o
«imbecil» de Nova Iorque lidava com um negócio qualquer. Embora
considerasse interessante observar essa faceta de Travis, Kim sentiu-
se mais fascinada pelas parecenças entre ele e Russell. Observou os
gestos de Travis, a sua forma de pegar no garfo. Quando Russell
falou com a mãe, reparou no tom de voz. Era muito parecido com a
voz grave de Travis.
Decorridos uns minutos de um visível escrutínio, Kim sentiu os
olhos de Russ sobre ela e correspondeu. Ele dirigiu-lhe um sorriso,
como se partilhassem um segredo… e assim parecia. Um enorme
segredo.
Quando Kim olhou Russell bem de frente, ele levantou um pouco
o copo de sumo de laranja, como se lhe fizesse um brinde. Foi
incapaz de suster uma risada. A menos que estivesse muito
enganada, Travis tinha um meio-irmão.
– Desculpa – pediu Travis, afastando-se de Penny e olhando para
Kim. – Estamos a ignorar-te.
– Ninguém está a ignorar-me – replicou ela. – Na verdade, estou
bem divertida. – Voltou-se para Penny. – Dantes trabalhava para o
pai de Travis, não é verdade?
– Durante muitos anos – admitiu Penny com um brilho nos olhos,
como se estivesse a interrogar-se sobre o que Kim iria dizer.
Anunciaria o que acabava de descobrir?
Mas Kim não se sentia tentada a fazer a revelação. Saber que
tinha um irmão mudaria o mundo de Travis e não lhe cabia dizer-lho.
Essa notícia deveria ser dada por Russell e Penny – e iam ter de
explicar muitas coisas.
– Talvez Russell pudesse acompanhar-nos hoje – sugeriu Kim.
– Onde? – Fitava Kim como se aguardasse que ela contasse o que
acabava de descobrir.
– A um velho edifício abandonado – esclareceu Travis. – Na noite
passada, enquanto eu estava a trabalhar, o amor da minha vida
namoriscava com outro homem que lhe indicou onde tinha de ir
hoje. Acrescentou que precisaria da ajuda de alguém alto e
corpulento. Kim parece acreditar que és tu – concluiu num tom leve
e trocista.
As palavras «o amor da minha vida» fizeram com que Penny e
Russell fixassem Kim atentamente. Penny olhou para a mão
esquerda de Kim, certificando-se sem dúvida de que não havia anel
de noivado.
Kim sabia que o silêncio era mais eloquente do que quaisquer
palavras.
– Caso se tenham esquecido, estou aqui para encontrar a minha
antepassada.
– Também os possíveis descendentes – acrescentou Travis.
– Parece que há um túmulo próximo de um velho moinho e
portanto Travis e eu vamos dar uma vista de olhos. – Kim fitou
Russell nos olhos. – Creio que devias acompanhar-nos. Se o local
estiver em ruínas, haverá tranquilidade. Uma pessoa pode pensar ou
falar.
Russell esboçou um leve sorriso.
– Fiquei sem palavras – replicou e olhou para a mãe. – E tu?
Terminaste esse assunto de Nova Iorque?
– Totalmente – respondeu ela.
– A Penny vai reformar-se – disse Travis a Kim – e está a pensar
mudar-se para Edilean. Há algumas boas casas para venda?
– Antigas ou novas? – quis saber Kim.
– Antiga, pequena, com um terreno mínimo de quatro mil metros
quadrados. Gosto de jardinar. Mas não quero que fique muito longe
da cidade.
– Conheço um sítio. Era a casa de um guarda-florestal. Vai
precisar de remodelações. – Kim virou-se para Russell. – Quanto a
ti? Onde vives?
– Não em Edilean – respondeu ao mesmo tempo que pousava o
guardanapo sobre a mesa e se levantava. – Quando querem ir até
esse edifício em ruínas? Alguém trouxe máquina fotográfica? Bloco
de apontamentos e caneta?
Travis levantou-se e colocou-se ao lado de Russell. Tinham a
mesma estatura e denotavam a mesma expressão desafiadora nos
rostos bem-parecidos.
Kim fitou Penny. Por que razão Travis não notava a parecença?
Penny voltou a fitá-la com uma expressão suplicante. «Por favor, não
diga», parecia transparecer o olhar.
Kim não se tornara uma mulher de sucesso, deixando-se intimidar
por alguém, independentemente de para quem trabalhara.
– Amanhã – sussurrou e Penny assentiu com a cabeça.
A mulher tinha vinte e quatro horas para contar a verdade a Travis
e, se não o fizesse, seria Kim a contar-lhe.
Travis aguardava-a junto à porta.
– Russ alugou um jipe e foi receber instruções sobre o caminho. –
Baixou a voz. – Kim, se preferes que fiquemos sozinhos, posso
encarregar a Penny de resolver o assunto. Ela descobrirá tudo sobre
o doutor Janes.
– Não – contrapôs Kim. – Acho que devias… – Esteve quase a
dizer-lhe que deveria conhecer melhor o irmão, mas mordeu a
língua. Interrogou-se como Travis iria reagir quando descobrisse que
a sua adorada secretária tivera uma aventura com o pai. Travis já
tinha problemas suficientes com o pai e não precisava de mais.
– Achas que devia o quê?
– Nada. Cá está o Russ. Vamos?
Travis queria conduzir, mas Russell não lhe permitiu.
– O meu carro, as minhas mãos no volante – disse.
Kim sentou-se na frente. Travis ia no banco traseiro, a ler as
instruções que Russell escrevera.
– Parece que reprovaste em caligrafia – comentou Travis. – Não
consigo ler isto.
– Talvez devesses ter frequentado melhores escolas para
desenvolveres a interpretação da leitura – ripostou Russ. – Ah, mas
espera! Frequentámos o mesmo colégio.
– Passaste em alguma disciplina? – resmungou Travis.
Kim olhou através da janela para disfarçar o sorriso. Pareciam ela
e Reede a discutir.
A velha construção era encantadora. Tratava-se de um edifício
amplo e baixo, em forma de U; a parte central tinha um andar,
rodeada por duas secções de dois. Na frente havia um muro baixo
em pedra, que formava um pátio no centro do U.
Por um momento, quedaram-se os três, contemplando o
maravilhoso e antigo edifício. Uma parte não tinha telhado e um
bando de pombos voou quando se aproximaram. Mas a ala esquerda
de dois andares tinha telhas novas. O pequeno muro parecia estar
em ruínas, mas as pedras haviam sido substituídas em alguns
lugares.
– Alguém andou a restaurar por aqui – concluiu Travis.
– É perfeito – disse Kim, assinalando o interior do pátio, à direita.
Atrás de um outro muro em pedra havia um jardinzinho perfeito –
exceto que parecia retirado de um livro de jardinagem do século
XVIII. Tinha carreiros de cascalho dispostos em dois círculos
concêntricos, atravessados por um x. Em cada uma das secções
cresciam plantas semelhantes a ervas daninhas, de cores, alturas e
texturas diferentes. Todas haviam sido cuidadas com esmero. – Se
não estou enganada, são ervas medicinais – prosseguiu com um
sorriso. – Isso significa que ainda há um Tristan nas redondezas.
Travis e Russ entreolharam-se e depois fitaram Kim.
– O que queres dizer? – perguntou Russ.
– Os Tristan são médicos, portanto… – disse Kim.
– Ervas medicinais – concluiu Travis por ela.
– Todos os Tristan têm um toque especial para cultivar plantas.
Quando éramos crianças, obrigávamos Tris a plantar coisas para nós.
Se fosse ele a plantá-las, decerto cresciam. Se fôssemos nós,
metade delas murchava.
– Então, talvez um descendente seja o dono deste lugar – sugeriu
Russ.
Uma telha desprendeu-se do telhado, caiu no chão e quebrou-se.
– Alguém que não pode dar-se ao luxo de o restaurar –
acrescentou Travis, olhando para Kim. – Julgo que vais encontrar
alguns parentes aqui.
Kim fitou Russ.
– Encontrar novos parentes, sobretudo se desconhecias a sua
existência, pode ser muito gratificante, não te parece?
– Também pode ser aterrador – replicou ele em voz baixa. –
Traumático.
– Talvez, mas na minha opinião saber a verdade é muito melhor
do que segredos profundos.
– Depende de qual seja a verdade – contrapôs Russ. Tinha uma
expressão risonha, como se estivesse a apreciar a troca de palavras.
Travis dirigira-se ao centro do edifício e empurrou uma porta.
– Tencionam ficar aí os dois plantados o dia inteiro embrulhados
num debate críptico e filosófico ou vamos dar uma vista de olhos?
– Voto para que trepes o muro e caminhes pela beira do telhado.
Mostra-nos o que aprendeste em Hollywood – sugeriu Russ.
– Só se nos mostrares que sabes fazer alguma coisa – ripostou
Travis, atravessando a ombreira.
Russ dirigiu-se à porta, mas virou-se para Kim.
– Vens?
– Eu… – Havia alguma coisa no jardim de ervas que lhe agradava.
Talvez fosse o formato, ou a luz refletida nas folhas amarelecidas de
uma das plantas, mas ficou satisfeita por ter consigo o bloco de
esboços.
Travis regressou à porta e aproximou-se de Kim.
– Porque não ficas aqui a desenhar? O chavalo e eu vamos
encontrar o cemitério e registaremos tudo. – Beijou-a no alto da
cabeça.
Kim sentiu-se grata pela sua compreensão. Quando um surto
criativo a invadia, exigia toda a sua atenção. Se o relegasse para
segundo plano, podia desaparecer. Além disso, contrariamente às
primas, que eram amantes da história, Kim não suportava os
cemitérios.
– Obrigada – disse.
– Não saias daqui, não fales com estranhos e…
– Não comas nenhuma dessas plantas – concluiu Russ.
– Tentarei comportar-me – prometeu Kim e fez sinal para que se
afastassem. Ansiava por passar aquelas formas ao papel.
Travis voltou a beijá-la, dessa vez na face e começou a andar na
direção da porta.
– Pensei que eras um don juan – ouviu Kim da boca de Russell –,
mas nem sequer sabes onde beijá-la.
– Podia ensinar-te muita coisa sobre… – ainda lhe chegou a
resposta de Travis antes que as vozes deles se perdessem à
distância.
Kim sentou-se numa pedra lisa junto às plantas que mais
admirava. Eram altas, com flores cheias de sementes que pareciam
tão delicadas como raios de sol. Tirou o telemóvel do bolso,
fotografou-as e enviou-as ao seu primo Tristan.
O QUE É ISTO?, perguntou por SMS.
Kim começou a desenhar, convertendo as formas em joias. A
corrente seria formada por compridas e finas gavinhas, como as
folhas da planta. Desenhou uma forma curva com pequenas espirais
no interior, que se uniriam num extremo da corrente. Colocaria uma
pérola no centro de cada uma. Os brincos seriam uma folha delicada
que se curvaria sobre a orelha.
O telemóvel deu sinal; era Tristan.
ANGELICA, escreveu. ONDE VISTE ISSO?
Levantou-se e recuou para obter uma visão completa do jardim.
Ao perceber que não conseguia encontrar o ângulo adequado para
captar o formato do jardim, subiu ao muro de pedra, fez uma foto e
enviou-a a Tris.
Quando ia a descer, as pedras soltas deslizaram por baixo dos
seus pés e perdeu o equilíbrio. Teria caído se um braço forte não a
agarrasse.
Era Red, o jardineiro do hotel.
– Sente-se bem? – perguntou e ajudou-a a descer.
– Sim, obrigada.
– Avisei-a de que este sítio era perigoso – censurou ele num tom
severo. – No ano passado uma mulher quase partiu a perna.
Kim sentou-se à sombra, numa antiga ombreira.
– Não se encoste – disse Red. – Essa porta não parece ter
dobradiças seguras.
Kim sacudiu a poeira das calças e um pouco de areia do cabelo.
– Você é o cão de guarda da povoação?
– Mais ou menos – respondeu ele. – Ia a caminho da garagem,
mas fiz um desvio e passei por aqui. Parece que a minha
preocupação não foi em vão. Não veio sozinha, pois não?
– Não. Tenho dois homens altos e corpulentos na minha
companhia.
Red soltou uma gargalhada.
– O seu pretendente e…
– O seu… – hesitou. – O amigo dele.
– Mas não o seu? – Inclinando-se, Red pegou no bloco de
esboços. – Posso?
Kim fez um gesto indicativo de que não lhe importava que visse o
que havia desenhado.
– São bonitos – aprovou, sacudindo um pouco da areia. –
Transforma-os em joias?
– Sim. Tenho uma loja em Edilean. Fica em…
– Virgínia! – concluiu ele. – Costumava pescar lá. É uma bela
povoação. Gosto de casas antigas. Não me lembro de uma joalharia,
mas lembro-me de uma loja que vendia roupa de bebé. – Red
sentou-se no muro baixo. – Porque me lembrarei disso?
– Porque a roupa é maravilhosa – disse Kim. – A loja chama-se
Yesterday e a dona é uma mulher encantadora, Mistress Olivia
Wingate.
– É ela que confeciona a roupa?
– Não. Lucy encarrega-se da maioria.
– Lucy Wingate?
– Não. Ela… – Kim interrompeu-se. Tudo o que se relacionava com
Lucy era um segredo demasiado importante para ser falado à toa. –
Conhece o dono desse sítio? – perguntou, abrangendo o velho
moinho com um gesto da mão.
– Não sei bem – respondeu ele. – Tenho visto uma jovem mulher
por aqui, mas não sei de quem se trata.
– Tem menos de quarenta anos?
Red sorriu ante a sua boa memória.
– Sim, tem. Estou certo de que poderia averiguar quem é, se
consultar os registos de propriedade no tribunal do condado.
– Hoje? Sábado?
– Ah, claro! – exclamou. – Mas decerto não quer perder tempo
com o seu pretendente num tribunal velho e poeirento, certo?
– Não – concordou Kim. – Sobretudo, porque não nos resta muito
tempo juntos antes que ele… – Kim agitou a mão.
Red pareceu preocupado.
– Fala como se ele estivesse doente. Por amor de Deus, minha
querida, diga-me que não é verdade.
– Não, não – garantiu Kim. – Só que…
– É militar? Vão enviá-lo para a frente de guerra?
– Não – respondeu Kim. – Tem de se encarregar de um assunto
muito importante que o obriga a ir embora.
Red respirou de alívio.
– Não soa assim tão mal.
Kim resfolegou.
– Tem a ver com o pai e pelo que me contaram… – Voltou a agitar
a mão. – É algo…
– Compreendo. Algo privado, mas há um motivo por que na
povoação me conhecem como o avô de todos. Sou um bom ouvinte.
Kim sorriu.
– É dessa forma que Travis o descreve.
– É verdade?
– Sim, gosta muito de ouvir.
– Tem outras qualidades?
– Sem dúvida. Muitas.
– Nesse caso, talvez… – Hesitou.
– Talvez o quê?
– Às vezes, os filhos não encaram os pais com clareza. Recordam
que a mãe não os deixava comer o que eles queriam, mas não
recordam que queriam comer tinta que haviam arrancado de uma
velha parede.
Pelo que ouvira dizer, o pai de Travis não estivera ao seu lado
tempo bastante para saber o que comia o filho. Teria mantido um
caso com Mrs. Pendergast ao longo de todos esses anos? Mas ela
não poderia dizê-lo a ninguém, muito menos a um desconhecido.
Red levantou-se.
– Acho que os seus companheiros vêm aí e, portanto, será melhor
ir-me embora.
Kim também se levantou.
– Deixe-se ficar para os conhecer.
– Talvez logo à noite – apressou-se a dizer enquanto se afastava.
– Acabo de me lembrar que tenho cinquenta quilos de gelo nas
traseiras do camião.
– Provavelmente nesta altura já se derreteram – gritou atrás de
Red que desapareceu a toda a pressa.
– Estavas a falar com alguém? – perguntou Travis ao regressar ao
pátio seguido de Russ.
– O jardineiro do hotel passou por aqui. Ele… – interrompeu-se
porque o telemóvel vibrou. Era uma mensagem de Tristan.
LINDO JARDIM. QUERO CONHECER QUEM O FEZ. VEJO PLANTA MEDICINAL
CONSOLDA. PRECISO ALGUMA PARA FAZER CHÁ VERDE.
Estendeu o telemóvel a Travis. Ele leu e passou-o a Russ. Os três
examinaram o jardim de ervas medicinais. Aos olhos de quem nada
soubesse de plantas, todas pareciam semelhantes. Como poderia ele
diferenciar uma delas a partir de uma foto tirada por telemóvel?
– Já vos disse que aqui há um Tristan – insistiu Kim. – Então, o
que descobriram vocês?
Travis foi o primeiro a falar:
– Doutor Tristan Janes, nascido em mil oitocentos e sessenta e
um, falecido em noventa e três, aos trinta e dois anos. – Virou-se
para Russell. – O que estava escrito na lápide?
– «Um homem amado» – respondeu Russ. – Não é mau que
digam isso sobre nós. Lamento, mas não há provas de uma mulher
ou de filhos.
– O pai chamava-se…
– Gustav – completou Kim.
– Isso mesmo – disse Travis. – Sem dúvida que o soubeste
através do teu misterioso homem chamado Red.
– O que tem ele de misterioso?
– Desaparece sempre que nós aparecemos – justificou Travis.
– Provavelmente, ouviu dizer que és um Maxwell e afasta-se a
correr – interferiu Russ. – Um homem esperto.
Kim fitou Russell de olhos semicerrados. Ele era tão Maxwell
quanto Travis.
Russ esboçou um arremedo de sorriso. Captara perfeitamente a
expressão de Kim.
– Então o que fazemos agora?
– Não faremos nada – decidiu Travis. – Tu vais dar uma volta pela
cidade e fazer perguntas até descobrires quem é o dono deste sítio.
Kim e eu vamos ver joias.
– A sério? – perguntou Russ, erguendo uma sobrancelha.
– Para as minhas criações – apressou-se a explicar Kim.
Travis enfiou o braço no dela.
– As chaves – pediu a Russell com a mão estendida.
– Preciso de…
– As chaves! – exigiu Travis num tom de voz que não admitia
réplica.
Russell soltou uma gargalhada.
– O Grande Maxwell… ordena. – Entregou as chaves do carro a
Travis.
Kim tinha a certeza de que Russ estivera quase a dizer que «o
irmão mais velho» ordenava.
Russ sorriu e piscou-lhe o olho.
«Ele está a apreciar a situação», pensou Kim. Ainda ficaria mais
deliciado quando largasse a bomba de que era seu irmão.
Quando estavam no carro, Kim quis saber de que Russ e Travis
haviam falado enquanto estavam sós.
– Nada de especial. Porquê?
– Passaram o tempo a discutir?
– Não – garantiu-lhe com um sorriso. – Só o fazemos quando
estás presente. Na verdade, deu-me uma boa ajuda. Só existem seis
lápides no cemitério e tirei as fotos enquanto o Russ anotava os
nomes e as datas. Presumo que as tuas amigas queriam toda a
informação.
– Sem dúvida.
– O que fizeste, além de te encontrares em segredo com outro
homem?
Kim ignorou o comentário e abriu o bloco de esboços. Tinham
chegado ao centro da povoação e Travis estacionou o carro com
perícia, desligou o motor e pegou no bloco para observar os projetos
de Kim.
– Portanto, isso desliza à volta do pescoço de uma mulher? –
perguntou.
– Sim, e os brincos sobem.
– Não descem? Não roçam os ombros?
– Dispenso os brincos grandes.
– Também eu. Estorvam. – Inclinou-se sobre o assento e beijou-
lhe o lóbulo da orelha. Kim usava uns pequenos brincos de ouro com
pedras de citrino um pouco descentradas.
Kim fitou-o com um sorriso, contente por ele ter observado os
seus desenhos com atenção. A maior parte das pessoas limitava-se a
dar uma olhadela e a elogiar a criatividade, mas não os visualizavam
realmente.
– Queres espreitar todas as lojas ou preferes ir direita à única
joalharia da povoação?
Kim olhou-o, incrédula.
– Não me digas que fazes parte dos homens que gostam de
acompanhar as mulheres às lojas? Dos que gostam de entrar e sair
de cada uma, reparando em todos os artigos?
– Bom, eu… – Olhou através do para-brisas.
– Percebo. Estavas apenas a mostrar-te amável. Colocaste a
joalharia no final para me atraíres diretamente até lá.
– Sinto-me contente por não presidires um júri num tribunal ou
seria incapaz de te enganar. Vou ser sincero: hoje sou todo teu.
Entrarei e sairei de cada uma dessas bonitas lojinhas, mas de
futuro…
– Fico por minha conta? Beberás uma cerveja enquanto vagueio
pelas lojas?
– Basicamente – replicou e trocaram sorrisos. Falavam como se o
futuro deles em comum fosse uma certeza, um dado, um negócio
fechado, e isso agradava aos dois.
Saíram do carro e pararam no passeio, de mãos dadas. «Tão
normal», pensou Kim. «Tão… tão deliciosa e profundamente
normal.»
– Onde vamos primeiro? – perguntou Travis.
– Ali. – Kim apontou para uma livraria de livros em segunda mão
situada do outro lado da rua. As montras estavam cobertas de anos
de sujidade e os poucos livros que se viam tinham as capas
encaracoladas e desbotadas.
– História local, acertei? – quis saber Travis. Quando Kim assentiu
com a cabeça, levou-lhe a mão aos lábios e beijou-a. – Guardamos a
joalharia para o fim? Para ser saboreada?
– Exato – concordou ela.
Uma vez na livraria, Kim gostou de comprovar que Travis não se
importava de revistar caixas poeirentas com vinte anos para tirar de
dentro livros fora de circulação e panfletos locais. Descobriu um livro
de culinária publicado nos anos vinte pelas mulheres de uma igreja
local.
Folhearam-no para verem se havia o contributo de alguém
chamado Janes e Kim disse que não lhe servia. Mas Travis replicou
que nunca se sabia de onde poderiam surgir os seus parentes. Kim
ia perguntar-lhe o que queria dizer, mas Travis afastou-se. Foi falar
com o dono da livraria enquanto ela revistava as prateleiras à
procura de livros sobre a história da joalharia. Escolheu um muito
grande sobre Peter Carl Fabergé.
Saíram da livraria com uma caixa cheia de livros que Travis
colocou no jipe que tinha requisitado a Russell.
– Achas que ele foi a pé?
– Quem? – perguntou Travis.
– Russell. Deixaste-o junto ao velho moinho e sem transporte.
Pensas que foi a pé… até onde quer que tenha ido?
– Provavelmente ligou a Penny e ela foi buscá-lo – respondeu
Travis.
– Há quanto tempo ela trabalha para ti? – Atravessaram
novamente a rua.
– Desde que comecei a ocupar-me dos assuntos do meu pai.
– O teu pai libertou-a para que trabalhasse para ti?
– Porquê todas essas perguntas?
– Só quero saber como é a tua vida, nada mais.
Travis parou diante de uma lojinha que tinha roupas muito bonitas
na montra.
– Quando o meu pai me obrigou a trabalhar para ele, a Penny
disse que ia ajudar-me. O meu pai não queria abdicar dos seus
serviços, mas a Penny ameaçou demitir-se se não deixasse e, como
sabe mais do negócio do que ele, teve de ceder.
– Porque insistiu tanto em trabalhar para ti?
– Suponho que tinha pena de mim. Acabava de chegar de
Hollywood e a minha maneira de encarar as coisas era física. Até me
custava recordar o que tinha aprendido em direito.
– Mas Mistress Pendergast abrigou-te debaixo da asa e cuidou de
ti como uma mãe?
Travis resmungou baixinho.
– Dava-me pontapés a torto e a direito. Fazia-me pensar. Obrigou-
me a colocar a raiva do meu pai de lado para poder cumprir as
minhas responsabilidades. O primeiro ano foi um inferno. Agrada-te?
– Que o teu primeiro ano tivesse sido um inferno?
– Não. Refiro-me à camisa e às calças. Penso que te assentariam
como uma luva.
– Se as provar, deixaria de fazer perguntas, certo?
– Não quero ter de defrontar-te em tribunal. – Pôs-lhe a mão nas
costas e empurrou-a na direção da porta.
Passaram duas horas a ir de loja em loja. Embora Travis tivesse
dito que não gostava desse tipo de atividade, era maravilhoso andar
às compras com ele. Sentava-se e esperava enquanto Kim
experimentava a roupa e dava-lhe a sua opinião sobre cada peça.
Mas, embora aparentemente lhe prestasse toda a atenção, em
duas ocasiões apanhou-o a falar ao telefone e em ambas franziu o
sobrolho ao vê-la. Kim perguntou-lhe o que se passava.
– Estou a fechar um negócio. Estás pronta para almoçar?
Quando Kim se voltou, recordou-se de tudo o que ainda tinham
pela frente, sobretudo o processo em tribunal do divórcio.
– Claro – respondeu enquanto Travis lhe abria a porta e lhe dava
passagem.
Mas mal chegaram lá fora, o telemóvel de Travis tocou
novamente.
– Raios! – murmurou ao fixar o ecrã. – É a Penny. Tenho de… –
Lançou um olhar interrogativo a Kim.
– Atende – disse ela. – Vemo-nos no restaurante.
Mas avistou um movimento na montra da loja de antiguidades do
outro lado da rua. Era o braço de Mrs. Pendergast e acenou a Kim
com o telemóvel no ouvido.
Kim fitou as costas de Travis e em seguida Mrs. Pendergast. Fazia-
lhe sinal para que Kim entrasse na loja. Precisavam de falar.
– Vemo-nos daqui a meia hora no restaurante – disse a Travis e
ele assentiu com a cabeça, enquanto continuava ao telemóvel de
cenho franzido.
Kim atravessou a rua a toda a pressa.

Joe Layton respirou fundo algumas vezes enquanto pegava no


auscultador do telefone do escritório. Era um crente dos telefones
fixos. Tinham melhores ligações e menos probabilidades de
interferências e dado que a chamada que estava prestes a fazer
mudaria a sua vida – e a de Lucy – desejava ouvir cada palavra.
Tinha sido muito simples obter o número do quartel general das
Maxwell Industries, mas já não era tão simples conseguir que o
chefe em pessoa atendesse o telefone. Joe pensou em dizer a quem
quer que atendesse que se tratava de uma questão de vida ou
morte. Dessa maneira a verdade ficaria entre ele e Maxwell. Mas a
mulher arrogante que acabou por vir à linha depois de uma longa
sucessão de secretárias revelou a verdade a Joe.
– Não pode telefonar e esperar que passemos a chamada
diretamente para Mister Maxwell – declarou num tom paternalista e
em simultâneo divertido. Era óbvio que se considerava uma mulher
culta e o considerava um pacóvio.
Joe estava farto de toda aquela gente.
– Diga-lhe que sou o homem que quer casar com a mulher dele.
A secretária ficou um momento silenciosa, mas depois adotou um
som seco e eficiente.
– Verei se está disponível.
Num abrir e fechar de olhos, Randall Maxwell estava em linha.
– Você é por conseguinte Joe Layton.
– Aparentemente, ninguém consegue ocultar-lhe um segredo –
replicou Joe.
– Quando quero saber o que se passa, ninguém consegue. Bom, o
que está a Lucy a tramar?
– Quero resolver essa coisa entre nós os dois.
– Por «coisa» refere-se a um divórcio? – perguntou Randall.
– Isso mesmo.
– Layton, você não nasceu ontem – ripostou Randall num tom que
frequentemente intimidava as pessoas. – Estamos a falar de algo
mais que uns milhares.
Joe não se sentiu minimamente intimidado.
– Guarde o dinheiro – rugiu. – Guarde-o até ao último cêntimo.
– Parece-me um conceito interessante. Quanto ao dinheiro que ela
me roubou?
– Refere-se ao dinheiro que apropriadamente deixou à vista para
que ela o encontrasse?
Randall soltou uma gargalhada.
– Lucy sempre gostou de homens inteligentes.
Joe não respondeu. Quando Lucy lhe contou que tinha visto
«acidentalmente» o portátil do marido ligado à sua conta bancária,
Joe soube que Maxwell quisera propositadamente que ela o visse.
Lucy disse que havia cinco milhões na conta e que ela apenas
levantara três e meio. Joe admirou a sua contenção. Acrescentou
que era muito raro Randall deixar o portátil onde ela pudesse vê-lo.
«Devia estar muito stressado», comentou num tom culposo,
denotando que se sentia mal pelo que havia feito. A ideia de que
metade da fortuna de Maxwell lhe pertencia não parecia ter-lhe
passado pela cabeça.
Se Maxwell deixara propositadamente o portátil ligado à sua conta
bancária, fizera-o por um motivo concreto. Se Lucy fosse outro tipo
de mulher, Joe pensaria que Maxwell suspeitava de que ela vivia
uma aventura e desejava saber onde ia quando tinha dinheiro. Mas,
à medida que Joe se inteirava de mais coisas sobre Lucy, pensou na
hipótese de Maxwell estar a dar liberdade à mulher.
Talvez Maxwell pensasse que tinha falhado com o filho e já não
precisava de usar Lucy para controlá-lo. Se havia algo em que Joe
era perito, era na dor e no prazer ofertados pela família. Amava o
filho com todo o coração, mas havia vezes em que a nora fazia com
que desejasse deserdá-lo.
– Bom, como está o Travis? – perguntou Randall, quebrando o
silêncio.
O tom de voz indicou a Joe que Maxwell amava muito o filho.
– É bom rapaz – respondeu. – Educou-o bem.
Nesse momento, foi Randall quem guardou silêncio antes de
acrescentar:
– A Lucy pode ficar com o dinheiro, vou dar-lhe o divórcio… e
serei justo com ela.
Joe susteve a respiração.
– Se pretende dizer que lhe dará mais milhões, esqueça! Guarde-
os para o Travis… e para esse seu outro filho que tenho visto andar
pela cidade. Parece que a mãe é a sua antiga secretária. Deve ter
sido muito conveniente para si.
Randall soltou uma gargalhada.
– Layton, se alguma vez quiser trabalhar comigo, pode contar com
o emprego.
– Não, obrigado – agradeceu Joe, mas estava a sorrir quando
desligou.
CATORZE
– Então, o que quer perguntar-me? – quis saber Penny, dirigindo-se
a Kim.
Estavam sentadas numa velha mesa enferrujada nas traseiras de
uma loja de antiguidades. Uma cerca alta em madeira rodeava o
pátio e tinha afixadas umas dezenas de cartazes publicitários. O
anúncio do óleo Mobil Pegasus encontrava-se mesmo atrás da
cabeça impecavelmente penteada de Penny.
Kim reparou que Mrs. Pendergast se tinha colocado na posição
que denotava mais autoridade. A sua cadeira encontrava-se de
costas para a cerca, uma barreira sólida, enquanto a de Kim se
expunha à porta e às montras da loja, uma posição mais vulnerável.
Contudo, o mais importante era que as palavras de Penny haviam
colocado Kim na pessoa interessada em obter respostas a perguntas
e talvez as conseguisse ou não.
Kim não mordeu o isco. Em primeiro lugar, colocou a cadeira
noutra posição de forma a não ficar de costas para a porta da loja e
em seguida fitou Penny.
– Quero que me conte tudo.
Penny acolheu a reação de Kim com um sorriso e um encolher de
ombros.
– Uma noite com o chefe a festejar com champanhe o fecho de
um negócio, no mesmo dia em que tinha discutido com o meu
namorado. Um acumular de circunstâncias.
– Em seguida? – quis saber Kim.
Penny demorou algum tempo a responder e Kim duvidou que
alguma vez tivesse contado essa história a alguém. Mrs. Pendergast
não parecia o género de mulher disposta a partilhar pormenores
íntimos da sua vida com outra pessoa.
– Não foi fácil. Só percebi que estava grávida aos quatro meses.
Nessa altura, o namorado tinha desaparecido e além disso Randall
era…
– Casado.
– Sim. Casado com uma mulher que não podia importar-se menos
com ele ou o seu negócio, os seus sonhos, ou qualquer coisa
relacionada com o marido – replicou Penny num tom amargo.
– Isso justifica que se metesse na cama com ele? – ripostou Kim,
que estava claramente do lado de Lucy.
– Quando ficar mais velha, descobrirá que há sempre duas
versões para cada caso. Lucy casou com Randall Maxwell
pressionada pela família, gente com um apelido de renome mas sem
um cêntimo. Randall sustentou os sogros até morrerem e continua a
pagar as contas dos irmãos de Lucy, que são dois preguiçosos.
Kim baixou momentaneamente os olhos.
– Porque manteve Travis tão isolado?
– Randall teve uma infância dura. Era muito pobre e sofria de uma
ligeira dislexia. Foi vítima de bullying na escola.
– Foi por isso que quis dar privacidade ao filho e contratou os
tutores?
– Exato – admitiu Penny.
Kim manteve-se silenciosa à espera de que Penny prosseguisse.
Era óbvio que a mulher mais velha não estava interessada em
continuar… ou talvez sim. Ao fim e ao cabo fora ela a incentivar o
encontro, portanto, talvez esperasse que Kim suavizasse o caminho
entre Travis e Russell.
– Randall julgou que estava a agir bem com o filho ao
proporcionar-lhe uma educação em casa – começou Penny, olhando
para as mãos. – Sei que é amiga da Lucy, mas…
– Sou capaz de digerir a verdade, seja ela qual for.
– Julgo que no início Randall pensou estar apaixonado por Lucy,
mas na verdade estava apaixonado pela ideia de ter uma família.
Sonhava em conquistarem o mundo juntos. Ele ganharia dinheiro,
compraria a Lucy uma mansão imponente e ela seria a anfitriã
famosa pelas receções. Algo parecido com o que se vê nas revistas.
– Pelo que conheço de Lucy e da sua vida atual, penso que não se
coadunava com ela. Lucy gosta de costurar e de manter um círculo
reduzido de amizades.
– Exato – reconheceu Penny. – E Randall gosta de trabalhar. Além
disso detesta receções. Agradava-lhe a ideia, mas não conseguia
suportar o tédio quando estava em casa.
Kim começava a entender o problema. Duas pessoas totalmente
incompatíveis unidas pelo casamento. Lucy obrigada pela família,
quase vendida a um homem com um grave complexo de
inferioridade e algo a demonstrar ao mundo.
Travis parecia a vítima inocente apanhada no meio do turbilhão.
– Onde se encaixa em toda a história? – perguntou Kim.
– Eu… – hesitou Penny. – Pareço-me mais com Randall do que a
Lucy. Também cresci no seio de uma família pobre e estava
desesperada por me livrar dessa fase da minha vida. Conheci
Randall numa festa. Gostei dele porque só falava de negócios em
vez de se atirar às raparigas. Passei a noite próximo dele, escutando
despudoradamente as suas conversas. Estava tão concentrado no
negócio a fechar que achei que nem tinha reparado em mim. Mas,
quando os outros jovens se entediaram com a conversa e se
afastaram, Randall virou-se para mim e disse: «Apanhou tudo?» «A
maior parte», respondi e indiquei-lhe os números. Ele fitou-me um
momento, depois pediu-me o número de telefone e dei-lho.
– Presumo que lhe ligou.
– Sim – admitiu Penny com um sorriso. – Contudo, só lhe
interessava o trabalho. Entre nós o trabalho foi sempre fundamental.
– À exceção de uma vez.
Penny esboçou um largo sorriso.
– Essa vez deu-me o Russell.
– Mister Maxwell era casado quando o conheceu?
– Não – respondeu Penny. – Nessa altura, nem sequer conhecia a
Lucy, mas sabia o que queria e seguiu em frente.
– Se vocês eram tão parecidos, por que motivo não…
– Porque não me viu como uma potencial parceira? – riu Penny. –
Devia ter conhecido Randall à época. A ambição devorava-o,
consumia-o totalmente. Tinha de ultrapassar todos ou morreria.
– Lucy fazia parte desse esquema – concluiu Kim.
– Sem dúvida.
– Mas uma noite… – assinalou Kim.
Penny encolheu os ombros.
– Sempre que reflito no assunto, chego à conclusão de que era
inevitável. Randall e eu estávamos sempre juntos. Travis tinha
apenas um ano e devo confessar que sentia muitos ciúmes de Lucy.
Não dispunha de tempo para uma vida social e nunca encontrara um
homem capaz de aguentar o meu ritmo de trabalho. De qualquer
maneira, nesse dia Randall e eu trabalhámos até tarde, fizemos sexo
e engravidei.
– Como reagiu Mister Maxwell quando lhe contou?
Penny abanou a cabeça várias vezes ao recordar-se.
– Ficou muito emocionado. A gravidez de Lucy tinha sido
complicada e não podia ter mais filhos, portanto, Randall ficou feliz
com a possibilidade de voltar a ser pai. Queria que os filhos fossem
criados juntos.
– Está a brincar, certo?
– De maneira nenhuma. Randall não vive segundo as regras
convencionais. Mas por fim persuadi-o a guardar segredo, mas Lucy
sempre presumiu que havia algo entre nós. Olhava-me por cima do
ombro e nunca a recriminei porque o merecia.
– Como seguiram as coisas entre si e Mister Maxwell?
– Nunca mais tivemos relações desde essa vez, se é o que
pretende saber. Só raramente as manteve com Lucy. Fez o que se
esperava dele e encarregou-se de que nada faltasse a todos nós.
Sempre levei uma vida modesta, mas proporcionei a melhor
educação ao meu filho.
– Russell sabe quem é o pai – declarou Kim.
– Sempre soube. Nunca lho ocultei.
– Passavam tempo juntos?
– Randall passou tanto tempo com o meu filho como passou com
o de Lucy. Não é o pai ideal que à noite vai aconchegar a roupa aos
filhos.
– Continuou a trabalhar para Mister Maxwell. Será que ele tem
mais filhos por aí?
– Não. Nenhum. Randall sempre teve aventuras, mas nunca levou
as mulheres a sério e foi discreto.
Kim refletiu um momento.
– Tinha Lucy em casa, tinha-a a si no trabalho e dois belos filhos.
Entendo que não quisesse mais confusões.
Penny sorriu.
– Parece-me que começa a entender Randall Maxwell.
– Porque chantageou Travis para que trabalhasse com ele?
A expressão de Penny tornou-se séria.
– Bom, esse é o pedregulho no plano de vida de Randall.
Presumiu que, quando os dois filhos crescessem, iriam trabalhar
para ele, mas nenhum deles quis fazê-lo. Travis estava furioso com o
pai e Randall não entendia o motivo. Na sua opinião, sempre
protegera Travis.
– Travis via-se como se tivesse passado toda a vida em cativeiro
numa bela prisão.
– Exato. Randall é muito melhor a gerir os negócios do que a vida.
Disse-lhe que não o fizesse, mas ameaçou Travis a fim de obrigá-lo a
trabalhar para ele. Randall pensou que, se o filho estivesse
diariamente no escritório ao seu lado, seria contagiado pelo vírus da
ambição e dessa maneira acabaria por entendê-lo.
– Mas isso não aconteceu – vincou Kim.
– Não. Travis abriu os olhos graças a uma menina que o ensinou a
divertir-se.
Kim sorriu.
– Foi um ponto de viragem nas nossas vidas – reconheceu ao
mesmo tempo que erguia a cabeça. – Então, agora, o que se segue?
Como vamos dizer a Travis que Russell é seu irmão?
– Não estou segura que o desconheça.
– Não vi qualquer indício de que o saiba.
– Ambos têm sangue Maxwell nas veias e não permitem que os
outros lhes adivinhem os pensamentos.
– Nem mesmo eu – replicou Kim em voz baixa.
– Também não deixou propriamente escapar os factos quando se
apercebeu da verdade, certo? Pelo que vi, você e Travis estão bem
um para o outro.
Kim refletiu um momento.
– Então, Travis terá de passar anos a enfrentar o pai para ajudar
Lucy a obter o divórcio?
– Desconheço as intenções de Randall. De há um tempo a esta
parte anda muito misterioso. Na verdade, é a primeira vez em trinta
anos que nem sequer sei onde se encontra.
Havia algo na voz de Penny que fez com que Kim se arrepiasse.
– Não tem por acaso uma fotografia de Mister Maxwell?
– Posso mostrar uma que tenho no telemóvel – disse enquanto
tirava o aparelho da mala. – Randall prefere estar longe da ribalta.
– Ao contrário de Travis – observou Kim, ao lembrar-se das fotos
que Reede lhe enviara. – A propósito, como está Leslie?
– Subornada e bem longe – esclareceu Penny e entregou o
telemóvel a Kim.
Kim não ficou surpreendida ao ver uma fotografia do homem que
conhecia como Red, mas decidiu ocultar a informação de que Mr.
Maxwell se encontrava em Janes Creek.
– Nem Travis nem Russell são muito parecidos com ele –
comentou e devolveu o telemóvel.
– Parecem-se com o avô de Randall, que era um homem
elegantíssimo. Já…
Kim levantou-se de uma forma tão brusca que Penny deixou a
pergunta no ar.
– O Travis vai pensar que o abandonei. Devia encontrar-me com
ele há quinze minutos. Foi uma conversa muito… reveladora.
Obrigada por me ter ajudado a compreender melhor o Travis. –
Pegou nas suas coisas e correu para o interior da loja de
antiguidades. Não tinha querido responder à pergunta de Penny
sobre se conhecia ou não Randall Maxwell. Sim, conhecia-o. Tinha
falado com ele em duas ocasiões.
No exterior, parou um momento, tentando recordar tudo o que
«Red» lhe tinha dito. A primeira coisa que lhe ocorreu foi que tinha
pescado em Edilean. Aparentemente, sempre soubera onde vivia
Lucy. Se conhecia o paradeiro da mulher, também devia estar ao
corrente da existência de Joe Layton. Nesse caso, tendo em conta
que não levara a mal, talvez isso significasse que Travis não seria
obrigado a passar anos a lutar pelo divórcio da mãe.
– Talvez possamos ter uma vida – murmurou. No presente. Não
num futuro longínquo, mas agora. Atravessou a rua na direção do
restaurante, mas com passo vagaroso. Tinha muita informação na
cabeça e na verdade ignorava o uso a dar-lhe. Quanto deveria
contar a Travis? Quanto deveria guardar para si mesma?
Qual seria a sua reação quando ouvisse o que tinha para lhe
dizer? Ficaria furioso? Provinha de uma família rica e poderosa e
podia meter-se num avião privado e ir… fazer o que os
multimilionários faziam para se libertar do stresse?
Recordou-se subitamente da fotografia de Travis vestido de
smoking na companhia da manequim loira. Era essa a sua vida real?
Ter-se-ia adaptado à vida glamorosa de Nova Iorque melhor do que
o pai julgara?
Kim sabia que devia manter a calma, independentemente do que
ocorresse. Não podia ir ter a correr com os dois filhos de Randall
Maxwell e dizer-lhes o que acabavam de lhe contar. Limitar-se-iam a
olhá-la com um sorriso de superioridade e responder que já o
sabiam? Que tinham descoberto tudo há muito tempo? Kim não se
achava capaz de suportar tamanha humilhação.
Deteve-se à porta do restaurante e respirou fundo. Precisava
manter uma expressão normal e fazer o que tão bem se adequava
aos Maxwell: guardar segredos.
O restaurante não estava cheio e Travis e Russell destacavam-se
entre a escassa clientela. Estavam sentados numa mesinha redonda
de madeira junto a uma parede, de costas para ela. Tinham uma
enorme taça de pipocas entre os dois. Bebiam cerveja e pareciam
completamente absortos no jogo de futebol que transmitiam na
televisão.
Kim voltou a surpreender-se devido à parecença física entre os
dois homens. Se trocassem de roupa e os visse de costas,
possivelmente não conseguiria distingui-los.
Travis virou-se e avistou-a. Por um momento, fixou-a com uma
expressão tão séria que Kim receou que soubesse onde estivera.
Mas em seguida descontraiu-se, sorriu e puxou uma cadeira para
que ela se sentasse.
– Não compraste nada? – perguntou.
– Comprar… – No último momento recordou-se que fora a uma
loja. – Não vi nada que me agradasse.
Russell observava-a.
– Estás com ar de caso.
– Não, só ansiosa por desfrutar da companhia de dois homens
lindos – apressou-se a replicar. Pensou que não tinha o mínimo jeito
para guardar segredos. – Então, o que há de bom que se coma
aqui? – perguntou.
– Estávamos à tua espera – respondeu Travis, que continuava a
olhá-la como se quisesse ler-lhe o pensamento. – Aqui o amigo
Russell tem algo para nos mostrar, mas quis aguardar que
chegasses.
Kim negou-se a fitar Travis de frente. Não queria que ele
adivinhasse mais do que estava disposta a revelar.
– Parece interessante. De que se trata?
Russell levantou-se e aproximou-se da parede lateral onde havia
um embrulho de 61 X 62 cm pousado no chão. Estava envolto em
papel pardo e era bastante volumoso. Começou a desembrulhá-lo de
costas para eles, a fim de evitar que vissem o conteúdo. Quando se
virou, segurava um retrato e, a julgar pela parte traseira da tela, era
bastante antigo. Segurava-o de frente para ele, ocultando-o da vista
de Travis e de Kim.
– Sempre o engraçadinho! – comentou Travis.
– Olha quem fala… – replicou Russell, com os olhos cravados em
Kim. – Senti-me curioso sobre esses Tristan. Fiz uma pesquisa na net
e encontrei algumas fotos. O teu primo tem um ar muito distinto.
Kim não conseguiu evitar um sorriso ao ouvir a descrição da
extraordinária postura do seu primo.
Sem deixar de olhá-la, Russell virou o quadro na sua direção e
Kim soltou uma exclamação. O homem do retrato era idêntico ao
seu primo Tristan Aldredge.
– É ele? O médico que morreu na mina? – perguntou.
Russell encostou o retrato à parede de frente para eles e voltou a
sentar-se.
– Esse é James Hanleigh, nascido em mil oitocentos e oitenta,
falecido em mil novecentos e oitenta e dois.
– Mas… – começou Kim. – É igual ao meu primo Tristan.
Travis fitou-os.
– Algum bastardo?
– É o meu palpite – respondeu Russell que se preparava para
continuar, mas nesse momento chegou a empregada para anotar o
pedido.
Kim encomendou uma sandes club e Travis pediu empadas de
caranguejo com dose tripla de salada de repolho e uma cerveja. Kim
não ficou surpreendida quando Russell pediu exatamente o mesmo.
Tentou não olhar para ele, mas foi incapaz. Tal como esperava,
Russell tinha um brilho divertido no olhar. Sentiu vontade de lhe dar
um pontapé por baixo da mesa.
Enquanto comiam, a conversa girou em redor da descoberta do
retrato. Aparentemente, fora encontrado por Bernie, o tio de Russell.
– Precisava de encarregá-lo de algo para digerir tudo o que comeu
– disse Russell. – Contou-me que na noite passada tinha encontrado
na net algumas fotos do atual doutor Tristan Aldredge, e as mostrara
à família materna, pedindo-lhes que falassem com a gente da
povoação para ver se alguém o conhecia. Por vezes, as parecenças
são inacreditáveis – acrescentou Russell, dirigindo mais um sorriso a
Kim.
– Ele descobriu esse retrato numa das lojas? – quis saber Travis.
– Não. Isso teria sido demasiado fácil. Conheceu um velho que lhe
disse que talvez tivesse visto um retrato do doutor Aldredge, mas
não se recordava onde. O tio Bernie mandou os familiares para
investigarem, fazerem perguntas e…
– Tudo isso aconteceu enquanto estávamos no velho moinho? –
inquiriu Travis.
– Tudo. Creio que a minha família invadiu a cidadezinha de Janes
Creek como uma praga de gafanhotos.
– Onde encontraram o retrato? – interessou-se Kim.
– Na casa de uma velhinha que o comprou há trinta anos numa
venda por cinquenta dólares.
– Quanto? – perguntou Travis.
– Cinquenta…
– Não. Refiro-me a quanto me custou.
– Doze mil.
– O quê? – exclamou Kim.
– Essa mulher é um osso duro de roer – justificou Russell que
estava obviamente a divertir-se. – Além disso, precisava de um
telhado novo.
– Eu reembolso-te… – começou Kim, mas interrompeu-se ante o
olhar de Travis.
– Nesse caso, qual é o parentesco desse homem com os Aldredge
e como se encaixa na árvore genealógica? – quis saber Travis.
– Ainda não averiguei. Vou investigar durante a tarde e conto-vos
tudo ao jantar.
– Então não sabes se ainda existem mais membros da família
Hanleigh na povoação? – inquiriu Travis num tom de desafio.
– Ainda não – respondeu Russell com uma calma a que não
faltava um toque divertido.
Kim dedicou toda a atenção à comida. Estava tão ocupada a
pensar no que Penny lhe contara que não tinha tempo para refletir
na procura do descendente de um homem que podia ou não ser seu
parente.
Quando acabaram de comer, Travis perguntou-lhe se estava
pronta para ir à joalharia.
Por um momento, não fez ideia a que se referia ele e limitou-se a
fitá-lo em silêncio.
Travis sorriu-lhe com um brilho no olhar.
– Concordo contigo – disse ele num tom sedutor, antes de fitar
Russell. – Kim e eu vamos…
– Dormir uma sesta – completou Russell.
– Uma boa forma de expressão, sim – observou Travis que afastou
a cadeira para trás e ofereceu o braço a Kim. – Obrigada pelo
almoço. Vemo-nos ao jantar.
Travis conduziu-a para fora do restaurante e até ao carro. O
trajeto de volta ao B&B foi feito em silêncio.
Kim sabia que Travis se referira a sexo. Porque não, afinal? Era
uma cidadezinha muito romântica e estavam num hotel fantástico.
Eram jovens e enamorados, portanto, deveriam passar o dia inteiro
na cama. Não tinha dito ao irmão que era esse o seu desejo? O que
lhe dissera exatamente? Quero obter todo o sexo quente que puder.
Dias inteiros. Ou semanas. Se fossem meses, por mim seria divino.
Bom, agora havia realizado o desejo e o que queria mesmo nesse
momento era telefonar à sua amiga Jecca e passar quatro horas a
desabafar com ela. O que mais precisava agora era a consolação
que a conversa lhe proporcionaria.
«Talvez devesse procurar Red e pedir-lhe conselho», pensou.
Perguntar ao homem que causara todos os problemas a maneira de
os resolver? Soltou uma gargalhada.
– De que te ris? – quis saber Travis enquanto estacionava o carro.
– De nada – respondeu antes de sair.
Travis deu-lhe a mão para subirem a escada a caminho dos
quartos contíguos. Uma vez lá dentro, inclinou-se para a beijar, mas
Kim empurrou-o para trás.
– Desculpa – disse. – Tenho uma… uma dor de cabeça e acho que
devia repousar um pouco.
Travis afastou-se.
– Queres que te traga alguma coisa?
– Não, nada – agradeceu Kim. – Só preciso de ficar algum
tempo… sozinha.
– Claro – anuiu Travis. Dirigiu-se à porta do seu quarto, abriu-a,
entrou e fechou-a.
Kim olhou para a cama. Talvez dormir um pouco lhe fizesse bem,
mas sabia que não conseguiria adormecer. As palavras de Mrs.
Pendergast não lhe saíam da cabeça. O que devia contar? O que
devia ocultar? Quanto…
– Nem pensar! – exclamou Travis que acabava de abrir a porta. –
Não está certo. Hoje aconteceu-te algo e quero saber o que é.
– Não posso…
– Se insistires em que não podes, eu…
– Tu o quê? – interrompeu-o Kim, erguendo a voz. – Vais-te
embora? Desapareces quando te sentes abafado? Desapareces como
fizeste antes? Deixas-me só sem me dar qualquer explicação? Deixas
que te procure durante anos enquanto me vigias às escondidas e
vais às minhas exposições? É isso o que vais fazer?
– Não – respondeu Travis em voz baixa. – Nunca mais farei isso.
Mas neste momento vou ficar aqui no quarto contigo até me
contares o que te atormenta.
– Eu… – A raiva abandonou-a. Sentou-se na cama e tapou o rosto
com as mãos.
Travis sentou-se ao lado dela e colocou o braço à volta dela,
incitando-a a que repousasse a cabeça no seu ombro.
– É alguma coisa relacionada com o facto de Russell ser meu
meio-irmão?
Kim hesitou um mero segundo.
– Como é que tu…
– Não tenho muita experiência com familiares, mas sou um bom
observador. Quem mais poderia fitar-me com o ódio que Russell
demonstrou no dia em que me conheceu? Era como se olhasse para
um espelho, com a diferença de que a minha própria imagem queria
matar-me.
Aliviada, Kim suspirou. Ao ver que a tensão a abandonava, Travis
virou-a na cama para que pudessem deitar-se ao lado um do outro.
– O que se passou enquanto eu falava ao telefone com a Penny?
Estavas ótima quando visitámos as lojas, mas entraste no
restaurante tão pálida como se um vampiro te tivesse chupado o
sangue.
– É uma descrição mais apropriada do que julgas – replicou Kim
com um leve sorriso.
Travis beijou-a na testa.
– Quero ouvir tudo. Não omitas uma única palavra.
– Mas…
Travis inclinou-se sobre ela e fitou-a.
– Não há «mas» nem desculpas. Sobretudo, esquece o medo. Não
tens de ter medo, muito menos de mim. Assassinaste alguém que
me é querido?
Kim sabia que ele estava a tentar aligeirar a questão, mas
considerava o assunto muito sério.
– Não, mas estou a ponderar atropelar o teu pai com um cortador
de relva.
O rosto de Travis perdeu todo o ar divertido e de súbito ela viu o
homem que aparecia nos tribunais. Estreitou-a com tanta força que
Kim mal conseguia respirar. Mas, se fosse possível, ainda se teria
chegado mais a ele.
Por onde começar?
– Recordas-te daquela noite antes do jantar em que fiquei à tua
espera enquanto falavas ao telefone?
– Com o imbecil do Forester? Sim. O que aconteceu?
– Conheci o teu pai.
Travis apertou-lhe o ombro com força, mas manteve-se em
silêncio. Quando Kim deu início à história, Travis conservou-se muito
calado e atento. Kim relatou-lhe os seus dois encontros com Red e
repetiu palavra por palavra o que se recordava das conversas,
incluindo o pequeno sermão de Red sobre os meninos que comiam
tinta, mas apenas se lembravam que os pais os proibiam de fazer o
que queriam.
– Isso é típico do meu pai. Acha-se capaz de justificar todas as
atrocidades que comete.
Kim percebeu sem sombra de dúvida que Travis não se
surpreendera com a presença do pai em Janes Creek. Mas susteve a
respiração ao descobrir que tinha ido pescar a Edilean.
– Nunca perguntei à minha mãe quando tinha ouvido falar de
Edilean. Nem sequer pensei nisso, mas é possível que o meu pai lhe
falasse da povoação. Faz sentido. Continua, por favor.
Kim relatou o momento em que descobriu que Russell era seu
irmão.
– Fitaram-me com um olhar suplicante para que não te contasse.
– Foi a Penny. Russell estava a apreciar o momento.
– Deste-te conta?
– Uma das coisas que aprendi na profissão de advogado foi a
observar e a escutar. Nenhum de vocês primou pela subtileza.
– Pensas que Russ sabe que tu sabes?
– Obviamente. O chavalo está a divertir-se à grande.
– Ele nem sequer tem menos dois anos que tu, portanto, não é
um chavalo.
– O teu irmão encara-te como uma adulta?
– De facto, não – admitiu Kim.
– Bom, o que se passou enquanto te esperava no restaurante?
– Tive uma conversa com a tua secretária.
Travis ficou em silêncio por um momento.
– Agora, sim, surpreendeste-me. O que te disse Penny?
– Não sabe que o teu pai está aqui. Ela…
– Não, espera. Conta-me tudo desde o princípio. Como se pôs em
contacto contigo, o que te disse, cada palavra sem omitires nada.
Kim contou lentamente o que tinha sucedido. Começou pelas
cadeiras e como ela mudara a posição da sua.
Travis soltou uma gargalhada, abraçou-a e deu-lhe um beijo ao de
leve.
– Linda menina! Estou orgulhoso de ti.
Kim gostou tanto do beijo que o devolveu, mas ambos queriam e
precisavam falar sobre o que Penny lhe tinha contado.
Começou pela informação mais fácil de digerir, o que considerava
mais inofensivo para Travis. Contou-lhe como Russell tinha sido
concebido. Ao ver que Travis não reagia, prosseguiu:
– Não pareces surpreendido.
– Estou sim, mas não como o esperas. As más-línguas no gabinete
dizem que o meu pai e Penny foram amantes durante anos. A
surpresa reside em que apenas estiveram juntos uma vez.
– Dessa vez nasceu um rapaz.
– Um rapaz alto e feio sem dúvida – acrescentou Travis, mas Kim
apercebeu-se do tom carinhoso na voz. – Que mais há? O que não
me contaste?
– Vais deixar que te conte a história segundo o meu ritmo ou não?
– É o que tenho estado a fazer, não? – replicou em voz baixa.
Kim virou-se e olhou-o com uma expressão interrogativa.
– Não assumi o controlo da situação – vincou Travis.
– Referes-te a como lidaste com a questão de Dave?
– Eu… – Hesitou como se lhe fosse difícil o que estava prestes a
dizer. – Receio parecer-me mais com o meu pai do que me
agradaria. Quando comprei a Borman Catering, fi-lo com arrogância,
já que, como me disseste, não te julgava capaz de resolveres uma
situação semelhante sem ajuda. Peço desculpa. Não voltarei a agir
dessa maneira. Não vou assumir o controlo da tua vida, mas, na
minha opinião, se queremos obter bons resultados, precisamos fazer
as coisas juntos. Em equipa, como uma dupla. Estou aqui para te
ouvir. Talvez que, se me contares o que te preocupa, os dois juntos
possamos encontrar uma solução. – Esboçou um sorriso. – Dito
isto… confesso que nunca na vida gritaram tanto comigo. Até
ficaram a doer-me os ouvidos.
– Não precisas exagerar.
– Foi verdade e mereci.
Kim aconchegou-se nos seus braços.
– Então, desta vez…
– Desta vez permiti que lidasses com as coisas como querias e
não foi fácil. Não imaginas a vontade que senti de dizer a Russell
que deixasse de te sorrir daquela maneira.
– É teu irmão.
– Sim – replicou Travis com um toque de emoção na voz. – É
estranho pensar nisso. Bom, conta-me mais.
Kim respirou fundo.
– Não gostarás do que se segue.
– Significa que vais falar-me do meu pai.
– Sim – admitiu Kim e começou a explicar-lhe a perspetiva que
Randall Maxwell tinha da infância de Travis.
Travis manteve-se silencioso durante todo o relato e, quando
acabou, Kim olhou para ele.
– Em parte já imaginava que assim fosse – disse ele. – Não que o
meu pai alguma vez admitisse perante mim que sofrera bullying.
Suponho que até certo ponto foi vítima da sua língua comprida. Tem
tendência a dar ordens e provavelmente foi assim desde criança.
– Não te afeta saber tudo isto?
– Eu… – sorriu Travis. – Na verdade, não. É difícil admiti-lo, mas
creio que comecei a trabalhar para ele porque queria saber se seria
capaz de triunfar ao seu lado. Não é fácil ser o filho de Randall
Maxwell. Às vezes, quando estava a fazer de duplo em Hollywood,
perguntavam-me porque arriscava a pele todos os dias. Gostavam
de dizer-me que, se estivessem no meu lugar, passariam o tempo a
viajar num jato privado, a beber champanhe.
– Mas não era isso o que querias – salientou Kim. – Pelo menos
nessa altura. Creio que depois aprendeste a valorizar esse tipo de
coisas.
– Sim. Bebi muito champanhe. E desfrutei de… bom, de muitas
outras coisas.
– Deve ter sido agradável – comentou Kim num fio de voz.
– Nem por isso. Sabes uma coisa? Recebi mais afeto de Joe
Layton do que de… enfim, da maior parte das pessoas que me
rodeava. Posso contar-te um segredo?
– Sim, por favor – respondeu Kim que sorria devido ao comentário
que ele fizera sobre Joe, o homem que seria seu padrasto. O homem
vivia em Edilean, portanto, talvez Travis também se mudasse para
lá.
– Quero abrir um acampamento.
– Que tipo de acampamento?
– Gratuito – respondeu Travis. – Há anos que tenho esta ideia e
ocorreu-me que podia concretizá-la na Califórnia, mas, desde que vi
os terrenos à volta de Edilean, mudei de opinião. O Joe podia
encarregar-se da construção, a Penny podia geri-lo e…
– Ela quer reformar-se.
– Depois de ter passado anos a trabalhar com o meu pai, isto
seria uma aposentação.
– A tua mãe podia encarregar-se da decoração.
Travis ergueu-lhe o rosto para a fitar.
– O que te parece se ensinasses os jovens a fazer colares com
macarrão?
– Se te ensinei a fazer uma casa de bonecas, creio que posso
ensinar qualquer coisa.
– Ensinaste-me? Como assim? Não paravas de me dar ordens. –
Ele estava a desabotoar-lhe a camisa.
– Diz-me, por favor, que não vais pedir-me que encerre o meu
negócio e trabalhe para ti.
– Nunca me passou isso pela cabeça – garantiu-lhe Travis
enquanto a beijava no pescoço. – Mas posso dizer-te que o meu
plano secreto reside em encarregar-me da contabilidade.
– A sério que o farás? – sussurrou enquanto ele lhe beijava o seio.
– Achas que poderei convencer-te a que me recomendes para a
firma de advogados de Edilean?
Kim, que lhe mordiscava a orelha, afastou-se para dizer:
– Referes-te à McDowell, Aldredge & Welsh? Tens de usar um
desses três apelidos para seres sócio.
– Casar com um membro da família não chega? – perguntou
Travis, que logo se apoderou dos seus lábios.
Uma hora antes, Kim não estava minimamente interessada em
sexo, mas nesse momento não conseguia pensar noutra coisa.
– Acho que temos futuro – sussurrou.
Travis afastou-se dela.
– O quê?
– Acho que temos futuro – repetiu.
– Tu… – começou, mas calou-se um momento. – Pensaste mesmo
que ia deixar-te?
– Sim. Quero dizer, não. Simplesmente não conseguia imaginar
onde íamos viver.
– Na tua casa. Se conseguir convencer-te a tirares tudo aquilo da
garagem. O Joe disse-me…
Kim silenciou-o com um beijo.
– Quanto ao divórcio?
– Joe pode lidar com isso. Na verdade, receio um pouco o que
possa passar-se com o meu pai quando enfrentar Joe. Queres
continuar a falar? – perguntou, exasperado.
– Sim, sim e sim! Quero falar sem parar sobre nós, sobre o nosso
futuro, sobre… Oh! – exclamou ao sentir os lábios de Travis sobre o
ventre.
– Vá lá, continua a falar – incitou ele, descendo mais ao longo do
seu corpo.
– Talvez mais tarde – disse Kim, fechando os olhos e esquecendo
todas as preocupações.
QUINZE
Quando Kim despertou, verificou que já era de noite. A primeira
coisa que notou foi que Travis não estava na cama. Haviam feito
amor a tarde toda e sabia que nunca tivera tanto prazer na vida.
Não se apercebera, mas desde o início que tinha tantas perguntas
que fora incapaz de se descontrair por completo. Existia uma
barreira entre eles feita dos anos em que o procurara, em que
desconhecera o que era feito dele.
Tão-pouco lhe perdoara na totalidade, nem entendia
completamente o seu raciocínio masculino, mas, pela primeira vez,
desde que vira esse estranho ao luar, encarou a possibilidade de
superar tudo isso.
Alguém bateu à porta do quarto e Kim olhou em volta à procura
das roupas. Estavam impecavelmente dobradas sobre uma cadeira e
não no chão, para onde as tinha atirado umas horas antes.
– Um minuto – pediu, mas nesse momento Travis atravessou a
porta que ligava os dois quartos. Tinha tomado duche, barbeara-se e
vestia umas calças de ganga e uma T-shirt.
Passou-lhe pela cabeça não sair da cama.
– Tens fome? – perguntou Travis, enquanto abria a porta e falava
com alguém. Fechou a porta e virou-se para ela. – Vão servir-nos o
jantar no meu quarto. Ou preferes descer à sala de jantar e ouvir o
que os Pendergast descobriram sobre os teus familiares?
Fez com que a segunda escolha parecesse tão terrível que ela
soltou uma gargalhada.
– Russell vai sentir a tua falta.
– A tua – corrigiu Travis. – Parece-te que o chavalo tem uma noiva
em qualquer lado?
– Também começo a interrogar-me sobre o mesmo. Suponho que
se ele fosse um advogado nova-iorquino o saberias.
– Provavelmente. – Travis sentou-se na cama ao lado dela e fitou-
a com uma expressão séria. – Não me tinha apercebido que não
expressara com clareza as minhas esperanças para o futuro.
Kim sabia que ele se referia ao pânico que mostrara ao pensar
que voltaria a deixá-la.
– Está tudo bem – garantiu Kim. – Temos… – Hesitou. – Temos
tempo para pensar o que queremos fazer.
O som de uma rolha de champanhe a saltar de uma garrafa
chegou-lhes do outro quarto.
– Julgo que estão a chamar-nos – disse Travis e estendeu-lhe a
mão para a tirar da cama.
Kim puxou o lençol e recusou sair.
– Vemo-nos na mesa depois de ter tomado duche – declarou num
tom firme.
Travis sorriu e beijou-lhe a mão antes de abandonar o quarto.
Kim levou uma boa meia hora a tomar duche e a arranjar-se.
Optou por um vestido de seda azul que tinha metido no saco à
última hora. Quando o fizera, havia pensado que estava tudo
acabado entre Travis e ela, que nunca mais o veria. Sorriu ao
recordar que pensara que se daria por vencido. Dissera-lhe que a
deixasse em paz e ele fora-se embora. Mas Kim começava a
aprender que os três Maxwell nunca desistiam.
Quando acabou de se vestir, respirou fundo, alisou a saia e abriu a
porta que dava para o quarto de Travis. Estava tudo tão bonito que
se deteve um momento a apreciar a cena. Toalha de mesa creme,
pratos de um azul-esverdeado com conchinhas desenhadas, e
talheres de prata que brilhavam à luz das velas. Mas aos seus olhos
o que havia de mais bonito no quarto era Travis. Mudara de roupa e
vestira um smoking e Kim ficou muito contente por ter levado o seu
vestido de seda.
– Permites? – perguntou Travis ao mesmo tempo que lhe estendia
o braço.
Conduziu-a até uma bonita cadeira forrada de cetim às riscas azuis
e brancas.
– Que maravilha! – exclamou, olhando para a outra ponta da
mesa. Mas, quando se virou, Travis encontrava-se de joelho em terra
ao seu lado.
O coração de Kim subiu-lhe à garganta e começou a palpitar.
– Queres casar comigo? – perguntou em voz baixa. – Queres ser
minha mulher e viver comigo para sempre?
Kim não mostrou qualquer hesitação.
– Sim – respondeu.
Com um sorriso, Travis inclinou-se para a beijar, pegou-lhe nas
mãos e beijou primeiro as costas e depois as palmas.
Conservando-se de joelhos e pegando-lhe na mão esquerda,
meteu a mão por baixo da toalha de onde tirou um estojo enorme
forrado de veludo azul. Kim sabia do que se tratava, pois já vira o
mesmo tipo de estojo no seu trabalho.
Travis levantou a tampa e no interior havia uma dúzia de anéis,
todos diferentes. Kim não precisou da lupa de joalheiro para saber
que contemplava pedras de primeiríssima qualidade. Safira,
diamante, esmeralda, rubi… não faltava nenhuma. Cada engaste era
único e sabia que cada anel era obra de um joalheiro diferente.
Nunca veria um anel semelhante noutra pessoa.
Com os olhos arregalados, fitou Travis com uma expressão
interrogativa.
– Importas-te que…? – Baixou os olhos para o joelho em terra.
– Claro – disse antes de pegar na caixa para observar os anéis. –
Fiquei sem palavras. São lindos. Como é que…? Oh, Mistress
Pendergast.
– Não – corrigiu Travis, deitando o champanhe nas taças. –
Enquanto Russ me trouxe, telefonei para alguns sítios e providenciei
para que me mandassem os anéis. Cada um é da autoria de um
artista diferente.
– Foi o que pensei. – Não era fácil escolher entre os anéis.
– Não se podem devolver – acrescentou Travis.
Ao ouvi-lo, franziu o sobrolho.
– Não tencionas inundar-me de presentes, certo?
– Uma vez que providencias a casa onde vivemos e o mobiliário,
parece-me que tenho de contribuir com umas coisinhas.
Kim retirou da caixa um anel com uma esmeralda quadrada. O seu
olho de perita indicava-lhe que era de excelente qualidade.
Aproximou-o da luz da vela para admirar as oclusões, as diminutas
imperfeições que mostravam que fora extraída da terra e não obra
do homem.
Entregou o anel a Travis e estendeu a mão esquerda. Ele colocou
o anel no dedo, beijou as costas da mão e susteve-a ao mesmo
tempo que a fitava nos olhos.
– Amo-te, Kim – sussurrou. – Amo-te desde que era um rapazinho
e não quero que voltemos a separar-nos. Quero viver onde viveres,
contigo.
Kim, sempre prática, dirigiu-lhe um sorriso.
– Gostaria de falar sobre onde, quando e como. Aparentemente,
tens muitos planos e quero conhecê-los.
– Genial! – exclamou ele ao mesmo tempo que destapava uma
bandeja de prata, expondo dois filet mignons. – Gosto de mulheres
que sabem o que querem.
Falaram, comeram e discutiram. Travis expôs a Kim as suas ideias
para o futuro: queria viver em Edilean e inaugurar o seu
acampamento de verão. No inverno, dedicar-se-ia a exercer
advocacia.
– Agrada-me mais do que pensava e, portanto, talvez o que o
meu pai disse a Penny seja verdade, que tenho algo de Maxwell em
mim.
– Acreditas que uma cidadezinha como Edilean será suficiente
para ti?
– Sim – respondeu – e prometo que não farei nada com que
discordes. – Inclinou-se sobre a mesa para se aproximar dela. –
Porém, creio que tens algo do teu irmão e a tua ambição se estende
um pouco além da tua povoação.
– Apanhaste-me! – exclamou Kim e começaram a falar do futuro
de ambos como ela o via. As ideias de expansão de Dave não lhe
tinham pertencido inteiramente.
Falaram do divórcio iminente e Travis contou-lhe a sua decisão de
que Joe e os seus pais podiam resolver a questão entre eles.
– Arranjarei um bom advogado à minha mãe.
– Forester? – perguntou Kim e desataram a rir.
Enquanto partilhavam uma grossa fatia de bolo de chocolate,
alguém fez deslizar um convite por baixo da porta. Quando
terminaram a sobremesa, Travis e Kim apenas tinham olhos um para
o outro e não viram o grosso envelope de velino.
Era de manhã quando Kim lhe pegou e o mostrou a Travis. Estava
dirigido a ambos.
– Abre-o – disse Kim a Travis. – Aposto que é de Mistress
Pendergast a informar-te que Russell é teu meio-irmão.
– Tarde de mais – replicou Travis. – Já deste com a língua nos
dentes.
– Não é essa a minha perspetiva. Penso que ele… – Interrompeu-
se ao ver a expressão no rosto de Travis. Ainda estava deitado
apenas com o lençol a tapar-lhe a parte inferior do corpo. – O que é
isso?
– É um convite para um piquenique, hoje, à uma da tarde e há
um mapa com instruções para se chegar ao local. – Estendeu-lho e
foi a vez de Kim ficar surpreendida.
– É do teu pai. – Sentou-se na beira da cama. – Diz que tem um
presente para todos nós. – Olhou para Travis. – Achas que é um
cofre com um tesouro de pirata? Umas pérolas viriam a calhar! Um
pouco de tanzanite, também. É óbvio que ando sempre com falta de
ouro!
Travis tirou-lhe o convite da mão.
– Não conseguirás isso do meu pai.
– Isso o quê?
– Ouro.
– Espero que não seja mais um aviso para que não comas tinta de
chumbo. Acho que o interrogarei sobre a sua política de romances
no escritório.
– Faz isso – apoiou Travis e atirou o lençol para trás. – Gostava de
ver.
Kim apoiou-se nos cotovelos para observar Travis a atravessar o
quarto nu.
– Bom, o que te parece que ele quer dar-te?
– Dar-nos. O presente é para os dois. – Travis enfiou umas calças
de ganga debotadas. – Oxalá seja liberdade. Anuir em conceder um
divórcio não litigioso à minha mãe.
– Preocupa-te que Joe e a tua mãe tenham de passar por um
tribunal, certo? O teu pai irá rodear-se de meia dúzia de advogados?
– Diria que uns vinte e cada um de uma etnia distinta. Será um
arco-íris global.
Kim soltou uma gargalhada.
– Aposto a favor de Mister Layton. Acredito que é capaz de lidar
com tudo e tendo em conta como dançavam no casamento de
Jecca… – Interrompeu-se ao ver a cara de Travis. – De acordo. Nada
de pais e sexo à mistura na mesma frase.
– Vamos tomar o pequeno-almoço e ficaremos a saber quem mais
foi convidado para essa festa.
Na sala de jantar do andar de baixo, as pessoas haviam ocupado
os lugares devidos, tendo ficado duas cadeiras desocupadas na
mesa de Russell e de Mrs. Pendergast.
– Oh, que maravilha! – elogiou Mrs. Pendergast de olhos fixos no
anel de Kim.
Russell sorria porque a mãe fitava Travis com uma expressão
chocada.
– Nunca pensaste que ele seria capaz de fazer uma coisa dessas
sozinho, certo? Mas foi – comentou Russell. – Inclusivamente,
carregou nas teclas do telemóvel sem a ajuda de ninguém. Fiquei
espantado.
– Penso que os irmãos mais novos devem ter tento na língua –
disse Travis, uma frase que silenciou os comensais.
Kim olhou para Penny e encolheu os ombros.
– Adivinhou por ele.
Penny interrogou Travis com o olhar sobre o que pensava sobre
tudo isso.
Travis pousou a mão na dela.
– O meu pai devia ter-se divorciado da minha mãe, dar-nos a
liberdade e casado contigo – pronunciou em voz baixa. – O facto de
não o ter feito só demonstra falta de bom senso.
Por um momento, brilharam lágrimas de gratidão nos olhos de
Penny e depois afastou a mão.
– Basta de disparates. O que pensas que Randall está a preparar
com este presente-surpresa?
– Espero que apareça com uma irmã – sugeriu Russell e todos
desataram a rir.
Durante toda a refeição, Kim apanhou Russell e Travis a trocarem
olhares às escondidas. Uma série de relações estava a formar-se!
Havia as costumadas – a que teria de conhecer os pais dele e ele os
dela. Mas era a Travis que cabia a pior parte. Tinha um meio-irmão
que lhe demonstrara muita hostilidade e um futuro cunhado que não
queria que se casasse com a sua irmã.
Travis pareceu dar-se conta do pensamento de Kim. Fitou-a do
outro lado da mesa e piscou-lhe o olho, como a dizer-lhe que era
capaz de enfrentar qualquer coisa com que o atacassem.
Kim sorriu, indicando-lhe que, sucedesse o que sucedesse, estaria
ao seu lado.
– Parem com isso os dois! – interrompeu Russell. – Estão a
embaciar os copos!
Kim desviou os olhos envergonhada, mas Travis limitou-se a soltar
uma gargalhada e a dar uma forte palmada nas costas de Russell.
– Um dia pode acontecer-te! – previu.
Ao ver que Russ não respondia, Kim disse:
– Tanto quanto sabemos, Russell pode ter uma mulher e três
filhos!
Russell fitou-a sem responder e Kim dirigiu-se a Mrs. Pendergast.
Ela ergueu as mãos em sinal de rendição.
– Obrigaram-me a jurar segredo.
– Acho bem que me deixes conservar a minha privacidade –
replicou Russell e, pela primeira vez desde que o conhecia, Kim não
lhe viu a habitual expressão trocista. O facto de o seu bom humor
sempre haver sido à custa de Travis não impediu que desatasse a rir.
Russell pediu bruscamente desculpa e levantou-se da mesa.
– Mas nem sequer comeu – protestou Kim e dispunha-se a ir atrás
dele, porém, Mrs. Pendergast agarrou-a pelo braço.
– O meu filho tem de combater os seus próprios demónios e é
melhor deixá-lo sozinho.
Kim voltou a sentar-se, mas fitou Travis. Os seus olhos indicaram-
lhe que concordava com Kim. Sem olhar para Penny, abandonou a
sala atrás de Russell, mas regressou uns minutos depois.
– Russell levou o jipe. Não sei para onde foi. Devemos preocupar-
nos? – perguntou a Penny.
– Eu sim, vocês não – respondeu ela. – Quem quer provar as
panquecas de pêssego?
DEZASSEIS
Russell sabia que estava a portar-se como uma criança ao levantar-
se da mesa sem comer, mas atingira o seu limite. Além disso, o seu
convite para o piquenique incluíra um bilhete a pedir-lhe que se
encontrasse com o pai no velho moinho logo a seguir ao pequeno-
almoço. Não especificava a hora, apenas dizia que o esperasse.
Entre a sensação de ser um intruso num grupo de amigos e a
curiosidade sobre o que o seu pai desejava, Russell saiu.
Enquanto conduzia, foi incapaz de se abstrair do facto de que
Travis sabia que eram irmãos. No seu caso, sempre tinha sabido da
existência de Travis Maxwell. Sabia que o seu meio-irmão vivia numa
mansão, via a mãe todos os dias e recebia tudo o que desejava.
Quando era pequeno e a mãe lhe contou que tinha um «meio-
irmão», Russ começara a chorar. A mãe só entendeu o motivo
quando Russell lhe perguntou entre lágrimas que parte faltava ao
menino.
Depois de a mãe lhe explicar que tinham o mesmo pai, mas mães
diferentes, Russell começara a interessar-se muito pelo irmão e fazia
frequentemente perguntas a respeito dele. Era algo que partilhava
com a mãe.
Não havia obviamente muito para partilhar. Apenas se viam raras
vezes enquanto crescera. A mãe ausentava-se durante semanas,
viajando por todo o mundo, sempre na companhia de Randall
Maxwell.
Russell ficava em casa com amas, que mudavam com bastante
frequência e mais tarde foram substituídas por tutores. Não ficou
surpreendido ao descobrir que eram os mesmos que tinham
educado o irmão.
Quando atingiu a idade de frequentar o secundário, tinha-se
fartado de viver à sombra de Travis Maxwell e mostrou à mãe o
panfleto de um internato. A mãe não podia recusar.
Russell não sabia bem quando a sua curiosidade se transformou
em raiva. Tão-pouco ignorava porque dirigia a animosidade contra o
meio-irmão e não contra o pai.
Apenas viu Randall Maxwell uma dezena de vezes enquanto
crescia.
Quando tinha cinco anos, numa manhã chuvosa de domingo,
estava sentado na sala ao lado do gabinete da mãe a desenhar
quando entrou um homem. Não era muito alto e tão-pouco lhe
pareceu ameaçador.
O homem parou na ombreira da porta, não disse nada, mas
depois virou-se.
– És o Russell?
Ele assentiu com a cabeça.
O homem aproximou-se dele e observou o que Russell estava a
desenhar: os prédios elevados que se viam através das janelas.
– Gostas de arte?
Russell voltou a assentir com a cabeça.
– Fico contente em saber.
O homem saiu e Russell apenas se recordou da cena porque, mais
tarde, a mãe lhe disse que ele era seu pai. No domingo seguinte,
quando Russell foi para o trabalho com a mãe, encontrou à sua
espera uma caixa cheia de material de desenho.
A mãe comentou:
– O teu pai é um homem muito generoso.
Durante os anos seguintes, Russell apenas teve pensamentos
bons sobre o pai. Até que perto dos nove anos começou a notar
como eram os pais dos demais e do que eles faziam pelos filhos.
Russell não podia permitir-se irritar-se com a mãe, pois ela era
tudo o que tinha. Além disso, a mãe dizia que deviam «tudo» ao pai
e, portanto, não ousou atingi-lo com a sua hostilidade. Em vez disso,
Russell despejou toda a raiva no irmão, o rapaz que nunca vira e
tinha tudo, inclusive uma mãe que ficava sempre em casa. Russell
nunca esqueceu que o pai vivia com ele.
Russell matriculou-se na mesma universidade que o irmão, mas
nessa altura já havia decidido seguir outro caminho. Não estudou
Direito. Uma vez acabado o curso, regressou aos Estados Unidos e
continuou a estudar, mas nunca fora capaz de se manter muito
tempo no mesmo sítio. Talvez os demónios que rugiam no seu
íntimo não lhe permitissem assentar.
Quando a mãe o chamara recentemente e lhe tinha pedido que
ajudasse Travis, recusou. Chegara até a rir. Ajudar um irmão que
nunca o contactara? Na sua mente, era ao irmão que cabia dar o
primeiro passo.
Foi então que a mãe lhe contou que Travis desconhecia a
existência de um irmão. Russell ficara tão surpreendido que
concordou em seduzir uma rapariga para lhe arrancar informações.
Mas, quando por fim conheceu Travis, assaltou-o toda a raiva que
tinha sentido em criança. Esperara encontrar um imbecil convencido
e mimado, mas encontrara um homem que lhe fizera uma omeleta.
Desde esse primeiro dia, haviam-se tornado quase inseparáveis.
Porém, apesar da boa relação que mantinham, Russell continuava
enraivecido. Agradara-lhe ter superado Travis na negociação do
contrato com o ganancioso namorado de Kim. Gostara,
inclusivamente, de acompanhar o irmão nas suas andanças de carro.
Mais tarde, quando Kim tinha dito a Travis que desaparecesse,
chegou à conclusão de que nada lhe dera tanto prazer na vida.
Mesmo assim… o mais difícil foi ver como Kim e Travis se
amavam. Embora, efetivamente, discutissem, também era verdade
que pertenciam um ao outro.
Quando viajaram de Virgínia a Maryland, Travis, nervoso e
inquieto, contou-lhe como tinha conhecido Kim quando eram
crianças e como ela lhe mudara a vida. Pela primeira vez, Russell
escutou em primeira mão que a vida de Travis não fora a gloriosa
aventura que Russell sempre havia suposto.
Essa manhã, vê-los durante o pequeno-almoço, fora a gota que
extravasara do copo. Kim e Travis eram a imagem perfeita da
«felicidade conjugal». E nessa tarde Randall Maxwell organizara um
piquenique, sem dúvida em honra do filho mais velho, o predileto.
Russell estava tão absorto nos seus pensamentos que, quando o
carro que seguia na frente parou de repente, teve de pisar o travão
a fundo. Ao fazê-lo, o estojo de veludo azul que Travis lhe entregara
no dia anterior deslizou para o chão.
«A Kim não os quer», dissera-lhe Travis no dia anterior, quando o
mandara chamar ao seu quarto. «Desfaz-te deles.»
Russell absteve-se de mencionar quanto haviam sido caros. Tão-
pouco respondeu que não era criado dele. Russell sabia que se
tratava de um despotismo fraterno e nada tinha a ver com negócios,
por isso colocou o estojo com os anéis debaixo do assento do jipe
com a intenção de dá-los à mãe para que ela se encarregasse do
assunto.
Russell meteu pela estrada que levava ao velho moinho. Tinha
descoberto – na verdade, haviam sido os parentes da mãe a fazê-lo
– que um descendente de James Hanleigh, o primeiro filho bastardo
do Dr. Tristan Jane, continuava a viver em Janes Creek.
«É uma viúva», tinham-lhe dito e ele imaginou uma anciã de
cabelo grisalho apanhado na nuca. Não admirava que não se
pudesse dar ao luxo de restaurar o velho moinho de pedra.
Russell necessitava de um lugar e de tempo para se sentar e
refletir. Sabia que chegara o momento de dar um rumo à sua vida e
para tal tinha de tomar algumas decisões difíceis.
Estacionou o jipe diante da fachada principal, vagueou junto ao
jardim de ervas («um jardim Tristan», pensou) e chegou às
traseiras. Mal havia dado uns passos quando ouviu um estrondo,
como uma telha a cair, e um grito sufocado, como se alguém tivesse
ficado ferido.
Correu na direção do lugar de onde lhe chegara o som, atravessou
uma porta e entrou numa divisão a que faltava uma parte do
telhado. Mas não viu nada nem ninguém, apenas um raio de sol que
deixava a descoberto partículas de poeira.
– Dás-me uma ajuda? – sussurrou uma voz por cima da sua
cabeça.
Quando ergueu a cabeça, viu uma mulher jovem agarrada
precariamente pelas pontas dos dedos a uma viga de madeira
apodrecida que se estendia ao longo da parede.
– Por todos os santos do céu! – exclamou Russell ofegante e
correu a colocar-se debaixo dela. – Há uma escada?
– Do outro lado – murmurou ela.
Russell correu para a divisão contígua, mas ouviu o ranger da
madeira apodrecida e soube que ela ia cair. Só havia uma coisa a
fazer: colocar-se mesmo por baixo dela. O seu corpo amorteceria a
queda.
Deu uns passos para diante, de braços estendidos, e chegou no
preciso momento em que a madeira cedeu. Embora não lhe tivesse
parecido muito alta ao vê-la pendurada na viga, quando o corpo dela
o atingiu, cambaleou para trás. Os pés tropeçaram numas tábuas
soltas e caiu. O peso e o impulso dos dois corpos fê-los derrapar
pelo chão. Russell sentiu a pele esfolada ao deslizar sobre o
cascalho. A dor invadiu-o e grunhiu, mas não soltou a mulher.
Agarrou-a com tanta força que foi um milagre que não a partisse em
duas.
Quando deixou de mover-se, estavam envoltos numa nuvem de
poeira. Russell encontrava-se de costas com a mulher por cima. Para
protegê-la da poeira e dos destroços que caíam, tapou-lhe a cabeça
com as mãos e ocultou-lhe o rosto de encontro ao peito; por sua
vez, enterrou a cara nos cabelos loiros e encaracolados. Quando a
nuvem de poeira os envolveu, inalou a fragrância do seu cabelo. E,
quando assentou, manteve-se quieto, abraçando-a.
– Julgo que está tudo bem agora – disse ela num tom de voz
abafado, contra o seu peito.
– Sim – concordou ele, sem afastar o rosto do cabelo dela.
– Uff! – exclamou ela. – Creio que posso levantar-me.
Russ começou a recuperar o senso comum de forma a levantar a
cabeça e a olhar em volta, mas não a largou. Era uma mulher
pequena e agradava-lhe aquela união de corpos.
Quando tentou libertar-se, soltou-a relutantemente e ela rolou e
sentou-se no chão ao seu lado. Russell deixou-se ficar deitado de
costas, fitando-a. Mesmo com uma mancha de sujidade na cara, era
lindíssima. Tinha o cabelo loiro-escuro cortado curto e encaracolado
e uma das madeixas caía-lhe sobre o olho esquerdo. Os olhos de um
azul intenso, um narizinho arrebitado e uma boca sorridente
completavam o quadro.
Tentou limpar a sujidade do rosto, mas só alargou mais a mancha.
Russell indicou a face direita. Ela puxou a manga da camisa para
baixo e esfregou a cara.
– Consegui?
– Não totalmente – respondeu, estendendo um braço. Continuava
deitado no mesmo sítio onde caíra, mas levantou a mão para a sua
face. – Posso?
– Porque não? Não somos dois desconhecidos.
Sorriu ao ouvir as palavras, segurou-lhe o queixo – mais tempo do
que o necessário – e usou o polegar para limpar a mancha. Quando
acabou, não a largou e os olhares prenderam-se por um momento.
Na verdade, poderiam ter-se mantido assim se um toro não caísse
atrás deles. Russell rolou para o lado e colocou o corpo entre o dela
e o pedaço de madeira caído. Ela rodeou-o com os braços e
mantiveram-se assim mesmo depois de a poeira assentar.
– Penso que é melhor sairmos daqui – sugeriu ela e teve
novamente de apartá-lo à força.
Russell sentou-se, sem deixar de a fitar com um sorriso.
– Estás…? – Interrompeu-se ao ouvi-la soltar uma exclamação.
Viu-a erguer as mãos manchadas de sangue.
Num abrir e fechar de olhos, ela passou de um sorriso terno a
uma expressão prática. Pousou-lhe uma mão no ombro e inclinou-se
para lhe observar as costas.
– Tens as costas a sangrar.
Quando Russell se limitou a sorrir, fez uma careta.
– Vá lá, herói. Levanta-te. Temos de limpar-te as feridas.
Pôs-se em pé e Russell viu que tinha uma figura muito agradável,
ainda que tapada por umas calças de ganga largas e uma camisa
larga sobre uma T-shirt com os dizeres Myrtle Beach no bolso. Não
era uma mulher exuberante, mas esbelta e bem constituída.
Estendeu a mão para o ajudar a levantar-se, porém, quando
Russell se mexeu, a dor nas costas devolveu-o à realidade. Mas, com
aqueles olhos azuis cravados nele, foi incapaz de emitir um gemido.
Ao vê-lo esboçar um esgar de dor, rodeou-lhe a cintura com o
braço e ajudou-o a avançar pelo meio dos escombros que atulhavam
o chão, até sair para o pátio e para a luz do Sol. Conduziu-o para
que se sentasse no pequeno muro de pedra.
– Fica aqui sentado e não te mexas, está bem?
– Mas… começou ele.
– Volto já. Tenho de ir buscar a minha maleta de médico.
O rosto de Russell iluminou-se.
– És uma Hanleigh.
Após hesitar um momento, sorriu.
– Sim. Pelo menos esse é o meu apelido de solteira.
O sorriso de Russell esmoreceu, mas em seguida recuperou-o.
– És a viúva.
Dessa vez, ela soltou uma gargalhada.
– Sou Clarissa Hanleigh Wells, a dona deste monte de pedras, e,
sim, sou viúva. Precisas de saber mais alguma coisa antes que vá
buscar a minha maleta?
– És uma Tristan – afirmou ele.
Ela sacudiu a cabeça.
– Não faço ideia do que isso significa. Fica aí sentado e não te
mexas que volto já. – Desapareceu atrás de uma parede.
Russell tirou o telemóvel do bolso. Verificou que tinha três e-mails
e três mensagens de voz, mas ignorou-os. Esteve prestes a enviar
um SMS a Travis a dizer que tinha encontrado Clarissa Hanleigh, mas
pensou melhor, desligou o telemóvel e voltou a pô-lo no bolso. Iria
vê-los a todos no piquenique e, portanto, as notícias podiam esperar
até essa altura.
Ergueu os olhos para Clarissa que regressava apressadamente.
Tinha na mão uma maleta de couro vermelho que parecia bastante
pesada, mas saltou agilmente sobre algumas pedras caídas e
pedaços de madeira apodrecidos.
Russell manteve-se sentado com um sorriso no rosto, embora
soubesse que tinha uma expressão de imbecil.
Ela pôs-se na frente dele, contemplou-o um momento e disse:
– Despe isso.
– Desculpa?
– Oh, céus! Onde estudaste?
– Em Stanford.
– Era de esperar. Despe a camisa para que possa observar os
estragos.
Enquanto ele começou a desabotoar a camisa, Clarissa moveu-se
à sua volta para observar as costas e ouviu-a respirar fundo.
– Deixa lá. Tenho de cortá-la e, se for demasiado grave, levo-te ao
hospital.
– Não – recusou ele. – Prefiro que sejas tu a tratar-me. – Ouviu-a
a calçar luvas esterilizadas e logo depois sentiu a mão dela no
ombro. Forçou-se a manter-se quieto quando ela começou a
arrancar o tecido da camisa dos arranhões na pele.
– Acho que devias…
– Não – interrompeu-a bruscamente. – És médica, certo?
Ela hesitou enquanto cortava o tecido.
– Era esse o meu plano.
– Quiseste sê-lo durante toda a vida? Parecia-te que tinhas
nascido para ser médica? Esse tipo de coisas?
– Exato – confirmou ela. – É por isso que me chamas Tristan? Por
causa do meu antepassado?
– É como lhe chamam em Edilean.
– Nunca ouvi falar desse sítio.
– Fica na Virgínia e tens parentes lá.
Ela deteve-se, com as mãos nas suas costas.
– Jamie e eu não temos parentes.
– Jamie?
– O meu filho – esclareceu.
Russell conteve a respiração enquanto ela se servia de pinças para
retirar um pedaço de tecido de um corte.
– Oh! Um filho. Quantos anos tem?
– Cinco.
– Suponho que seja esse o motivo por que não…
Teve de concentrar-se na respiração porque o que ela estava a
fazer lhe provocava muitas dores.
– Ele é o motivo da minha existência, se é a isso que te referes,
mas sim… – Deteve-se para humedecer uma gaze e limpar o
sangue. – Jamie é o motivo por que não frequentei a faculdade de
Medicina. Bem, de facto não é justo. Os culpados disso são um
bonito futebolista, alguns shots de tequila e o banco traseiro de um
Chevrolet.
– Casaste com o futebolista?
– Sim – confirmou baixinho –, mas ele embebedou-se e caiu de
uma ponte antes do nascimento do filho. Jamie e eu estivemos
sempre sozinhos.
– Deixaram de estar. – Fitou-a no preciso momento em que ela
limpava um corte e gemeu de dor.
– Não mudarei a minha opinião sobre ti, se gritares. Ou chorares.
– E perder o meu estatuto de herói? – disse ele.
Ela parou o que estava a fazer, pousou-lhe as mãos nos ombros e
aproximou o rosto do dele.
– Nunca perderás o estatuto de herói aos meus olhos. Salvaste-
me a vida – disse em voz baixa ao mesmo tempo que o beijava na
face.
Russell inclinou a cabeça e beijou-lhe as costas da mão.
Ela soltou as mãos.
– Salvar-me a vida não te dá direito a mais nada. Quem és,
porque estás aqui e que história é essa de que tenho parentes?
À medida que Russell contava tudo, apercebeu-se de que o que
dizia era um pouco incoerente, mas custava-lhe pensar com clareza.
Entre a dor nas costas e a presença da jovem mulher, não tinha a
cabeça no devido lugar. Começou por lhe contar o objetivo da sua
viagem, como acompanhara o seu meio-irmão Travis, a fim de
ajudar a noiva dele, Kim, a localizar um antepassado na esperança
de encontrar descendentes.
– Todos os habitantes de Edilean são parentes uns dos outros –
disse – e portanto não entendo para que precisam de mais.
– Pareces invejoso.
– Eu… – começou. Ia a dizer que tinha parentes, mas as pessoas
que a mãe alojara no B&B só apareciam sempre que lhes ocorria
qualquer esquema que o seu patrão rico poderia financiar. Salvo
isso, ele e a mãe estavam por conta própria.
– Continua – incitou Clarissa. – Como é que de repente tenho uma
família?
– Devido à aventura entre o doutor Tristan Janes e Miss Clarissa
Aldredge de Edilean, Virgínia, por volta de mil oitocentos e noventa.
Tiveram um filho a que ela chamou Tristan e o nome dele foi
transmitido ao primogénito de cada geração.
– São todos médicos?
– Suponho que sim. Terás de perguntar pormenores a Kim.
– Ela vai casar com o teu meio-irmão?
– Sim – admitiu e não conseguiu resistir a contar-lhe o que
pensara que a palavra significava quando era pequeno.
Clarissa soltou uma gargalhada e o som agradou-lhe.
– Parece-se com o que diria o meu Jamie. – Estava a ligar-lhe as
costas.
– O que fazias ali quando te salvei?
Ela emitiu um suspiro de frustração.
– Tentava restaurar este sítio, mas sou um desastre.
– Vejo-me obrigado a dar-te razão. – Tinha as mãos sobre a sua
pele, alisando as ligaduras, e por um momento Russell fechou os
olhos.
– Pronto. Penso que acabei. – Decidiu e deu a volta. Ele ainda
conservava a parte da frente da camisa que ela não cortara e sorriu
ante o efeito cómico.
Russell começou a arrancar o resto da camisa, mas Clarissa emitiu
um som que o fez levantar a cabeça. Tinha os olhos cheios de
lágrimas. Para ele, foi um gesto natural estreitá-la nos braços,
entrelaçar as mãos no cabelo e encostar-lhe a cabeça no seu ombro.
– Estava muito assustada – sussurrou enquanto as lágrimas lhe
corriam pelas faces. – Só conseguia pensar que o meu filho ficaria
sem a mãe. Nunca iria recuperar. Com a minha estupidez, ia
arruinar-lhe a vida. Fui uma imbecil ao vir aqui sozinha todos os
domingos de manhã.
– Claro que é uma estupidez – concordou Russell, abraçando-a
com força… e, de repente, lembrou-se que o pai o tinha enviado ao
velho moinho numa manhã de domingo. – Tens de prometer não
voltar a fazê-lo.
– Mas isto é tudo o que tenho – ripostou ela e afastou-se dele. –
Este velho monte de pedras semidestruído é tudo o que possuo. O
meu emprego mal dá para pagar as despesas e…
– Vou ajudar-te.
– O quê? – Afastou-se para enxugar os olhos e fitá-lo.
– Ficarei em Janes Creek e vou ajudar-te.
– Não podes fazer isso. Não te conheço. Nem sequer sei o teu
nome.
– Oh, desculpa. Sou Russell Pendergast. Tenho vinte e oito anos e
o meu pai é Randall Maxwell.
– Ele não é…
– Esse mesmo. Um dos homens mais ricos do mundo. Mas penso
que ele pode… – Russell decidiu que seria melhor adiar o momento
de lhe contar que havia a hipótese de o pai o ter enviado ali para
que a conhecesse. – A minha mãe trabalha para ele. E também para
o meu irmão, de momento, mas ele está prestes a mudar-se para
Edilean e a minha mãe também quer viver lá. Onde está o teu filho?
– Na catequese. Uma das mulheres com quem trabalho leva-o
para me permitir ficar algumas horas aqui. – Vagueou o olhar pelo
local em ruínas. – Julgo que preciso de mais do que algumas horas
por semana, certo?
– Este sítio necessita de meses de trabalho, montes de maquinaria
e de materiais e pelo menos de uma dúzia de homens.
– Ou de mulheres – sugeriu e Russell não conseguiu evitar um
sorriso.
– Claro. Onde trabalhas?
– Adivinha.
– Para um médico? Num hospital? Em algo relacionado com a
medicina.
– Parece que és mais do que uma cara bonita – comentou e
depois ficou vermelha. – Não queria dizer que…
Russell fitou-a com um sorriso.
– Há algum sítio onde possa arranjar uma camisa? Não quero
voltar ao hotel para tomar o pequeno-almoço. Saí sem comer e
estou a morrer de fome.
– Eu… – Clarissa hesitou. – No sótão tenho um caixote com roupa
do meu pai. Ele era quase do teu tamanho. Posso pôr uma a lavar
enquanto te preparo uns ovos mexidos com bacon.
– Quando regressa o teu filho a casa?
– Por volta das onze.
– Gostava de conhecê-lo – disse Russell em voz baixa.
– E eu gostava que te conhecesse.
Por um momento, fitaram-se como se ambos dessem como certo
que isso podia ser o princípio de algo real, de algo sério.
Russell foi o primeiro a quebrar o silêncio.
– Tu e o Jamie gostariam de me acompanhar a um piquenique
hoje, à uma da tarde? Tenho a certeza de que haverá montes de
comida e julgo que arranjarei uma forma de o Jamie se divertir. – Os
seus olhos refletiam o muito que desejava que fosse com ele.
– Penso que gostávamos muito.
– Ótimo! – exclamou Russell, levantando-se. Contudo, o
movimento repercutiu-se nas costas e fez uma careta de dor.
Clarissa voltou a rodear-lhe a cintura com o braço para o ajudar.
– Poderia ficar ferido para sempre – replicou ao mesmo tempo
que colocava o braço por cima dos seus ombros. – De que é que o
Jamie gosta? Balões? Animais? Acrobatas?
– Carros de bombeiros – respondeu ela. – Quanto maiores e mais
encarnados, melhor.
– Que sejam carros de bombeiros – disse Russell.
– Vou buscar o meu carro e trazê-lo – disse Clarissa. – Fica aqui e
não te mexas.
– Às suas ordens, minha senhora – acedeu Russell e observou-a a
afastar-se rapidamente.
Quando a perdeu de vista, enviou um SMS à mãe:
VOU LEVAR UM MENINO DE CINCO ANOS AO PIQUENIQUE. ADORA CARROS DE
BOMBEIROS. VOU CASAR-ME COM A MÃE DELE. R.
DEZASSETE
Quando Travis chegou de carro à bonita zona arborizada que fora
criada para o piquenique, esperava ver o jipe de Russell, mas tal não
aconteceu. Em vez disso, avistou um carro de bombeiros encarnado
e o que lhe parecia ser um corpo de bombeiros, homens e mulheres,
fardados dos pés à cabeça. Os bombeiros riam e conversavam
enquanto desfrutavam da fabulosa refeição pródiga em comida e em
bebida que lhes tinham servido.
– O que é isto? – perguntou Kim.
– Não faço ideia, mas, tanto quanto sei, o meu pai planeou
acender uma fogueira.
Kim observou o idílico lugar e respirou fundo. Percebeu
subitamente de que não estava em causa o que havia receado.
Julgou que encontraria empregados de luvas brancas a servirem
champanhe em taças de cristal e provavelmente centenas de
convidados.
Em vez disso, avistou somente uma toalha de quadrados
vermelhos e brancos estendida no chão debaixo de um castanheiro
enorme e meia dúzia de arcas frigoríficas portáteis ao lado. Nem
sombra de um empregado.
A única estranheza residia na presença do corpo de bombeiros
local.
– Não é o que esperava – disse Kim.
– Nem eu – admitiu Travis.
Nesse momento, apareceu Penny no carro alugado de onde saiu
rapidamente e correu para eles.
– O Russell já chegou? – perguntou a Travis através da janela que
ele baixara.
– Não o vi. O que é que… – Interrompeu-se porque Penny se
dirigiu a toda a pressa para o carro dos bombeiros.
– Terá acontecido alguma coisa? – disse Kim.
Travis observava pelo retrovisor como Penny falava com todos os
bombeiros.
– Nunca a tinha visto perder a compostura – observou,
surpreendido. – Uma vez apareceram dois inimigos declarados no
gabinete ao mesmo tempo. O meu pai e eu receámos que sacassem
das pistolas, mas Penny conseguiu forma de os movimentar pelo
edifício para que não se cruzassem. Graças a ela conseguimos um
contrato multimilionário.
Kim observava a cena através do para-brisas traseiro.
– Não sei o que se passou, mas ela está muito nervosa. Parece
histérica.
– Interessante! – comentou Travis ao mesmo tempo que se virava
e lhe sorria. – Estás preparada para isto? Tenho a certeza de que o
meu pai… Macacos me mordam!
Kim ergueu os olhos e avistou outro carro que saía da estrada e
estacionava na pequena zona arborizada. – É…
– Isso mesmo. Joe Layton e a minha mãe – constatou Travis em
voz baixa. – Falando de inimigos declarados…
– A tua mãe e Mistress Pendergast – completou Kim, afundando-
se no assento. – Tenho uma sugestão. É uma estupidez, mas
gostava que a tomasses em consideração. Se nos fôssemos embora
e regressássemos a Edilean? Mistress Pendergast pode mandar-nos
as roupas. Ou compramos outras novas. O que te parece?
– Agrada-me a forma como resolves certas situações – replicou
Travis enquanto ligava o motor.
Mas Joe Layton plantou-se na frente do carro.
– E se puseres em prática alguma técnica de condução especial? –
sugeriu Kim. – Podias rodeá-lo.
– É grande de mais; amachucaria o carro. Vamos sair pelo teu
lado e correr pela floresta. Talvez consigamos escapar.
Joe demonstrou ser demasiado rápido para eles. Num abrir e
fechar de olhos, colocou-se junto à porta de Travis, enfiou a mão
pela janela e tirou as chaves da ignição.
– Vamos lá, seus cobardes. Saiam e juntem-se à festa. – Abriu a
porta do lado de Travis.
Travis apertou a mão de Kim e revirou os olhos.
– Deus me dê força!
Kim saiu pelo seu lado do carro e recuou para observar Lucy, uma
mulher pequena e bonita que se encontrava atrás de Joe. Ele era tão
alto que a tapava por completo.
Kim sentia curiosidade por ver essa mulher que, durante quatro
anos, conseguira manter-se escondida dela. Quando Lucy avançou e
se pôs em bicos de pés para abraçar o filho, Kim soube que teria
feito exatamente o mesmo. Tinha de tal maneira gravadas na mente
as semanas que passara com Travis quando eram pequenos que não
esquecera as feições de Lucy. Caso Kim a tivesse visto em Edilean,
faria exatamente o que Lucy receava e contaria a todos que a
conhecia. Lucy era o vínculo com Travis, a maneira de encontrá-lo, e
Kim não teria pensado nisso, não teria analisado as consequências.
Lucy enfrentou o olhar de Kim e nos olhos de ambas brilhava um
pedido de desculpa.
– Kim – começou Lucy, mantendo-se na sua frente. – Não era
minha intenção…
– Compreendo – interrompeu-a. – Tenho a certeza de que a
minha mãe lhe disse que eu daria com a língua nos dentes e não se
enganava. Desejava tanto encontrar Travis que teria vendido a
minha mãe como escrava para obter essa informação.
– Pelo que sei, ela poderia ter lidado com isso – replicou Lucy e
ambas desataram a rir.
– Está tudo bem entre vocês os dois? – perguntou Lucy em voz
baixa. Travis e Joe estavam um pouco afastados.
– Muito, mas muito bem, e entre si e Mister Layton?
Lucy emitiu um suspiro que lhe veio do coração.
– É bom ser amada, não é?
– Sim, maravilhoso – reconheceu Kim. – Seria indelicado
perguntar como está a correr o seu divórcio?
Lucy olhou de relance para Joe e Travis e inclinou-se para diante,
falando num sussurro ao mesmo tempo que pegava na mão de Kim:
– Randall concordou num divórcio não litigioso. Nada de
confrontos. Um acordo justo. Disse-lhe que não quero que Travis
tenha de comparecer em tribunal. Quero que passem juntos todo o
tempo a que têm direito.
Kim não conseguiu evitar as lágrimas de felicidade que lhe
subiram aos olhos.
– Obrigada – murmurou.
Lucy sorriu e as duas mulheres apertaram mais as mãos.
– Ei, vocês as duas! – chamou Travis. – Tenho fome. Vamos ver o
que o meu pai nos mandou para comer.
Penny continuava a falar com os bombeiros e, embora se sentisse
faminto, Travis foi ao encontro dela. Cumprimentou os membros da
equipa e disse-lhes que estava à sua disposição para o que fosse
preciso. Todos quiseram apertar a mão ao filho do homem que
acabara de lhes comprar um carro de bombeiros novo. Travis ainda
demorou algum tempo antes de conseguir chegar junto de Penny.
– O que está a tramar o meu pai? – perguntou. – Agrada-me que
contribua para o Departamento de Bombeiros de Janes Creek, mas o
que lucra com isso?
– Fui eu – confessou Penny, baixando os olhos para o chão e sem
fitar Travis.
– Compraste um carro de bombeiros?
– Encomendei-o. Foi o teu pai que o pagou – respondeu e deteve-
se como se não pudesse falar mais sobre o assunto.
– Penny? – insistiu Travis.
Nesse momento, ouviu-se o motor de um carro que descia a
estrada e ela pareceu conter a respiração. Porém, o carro afastou-se
e Penny deixou sair o ar.
– O que se passa? – exigiu saber Travis.
Sem nunca desviar os olhos da estrada, Penny estendeu-lhe o
telemóvel.
– Lê o SMS que Russell me enviou.
– Oh! – exclamou Travis ao lê-lo. – Pediu a namorada em
casamento? Deve ser contagioso. Espero que tenha usado um
desses anéis que ofereci à Kim. Certamente…
– Russell não tem uma namorada fixa.
– Mas disse que vai casar com a mãe de um menino que gosta de
carros de bombeiros. Quem é ela?
Penny voltou-se e fitou-o em silêncio.
Travis demorou uns momentos a entender o que isso significava.
– Acaba de conhecer essa mulher?
– Julgo que sim – respondeu Penny que começou a esfregar as
mãos, nervosa. – Oh, Russell! – murmurou. – O que fizeste?
Pela primeira vez na vida, Travis colocou o braço à volta dos
ombros de Penny. Ela sempre havia sido quem mantinha a calma em
qualquer circunstância. Todas as vezes que Travis e o pai
embarcavam em qualquer discussão, usava a sensatez. A sua recusa
em permitir que uma crise a alterasse era o que tranquilizava os
demais.
Mas agora era ela quem necessitava de uma presença
tranquilizadora.
– A tua mãe vai odiar-me ainda mais – disse Penny, demonstrando
que no fundo continuava a ser a mesma, mas encostou a cabeça no
ombro de Travis.
Ele olhou para o local onde a mãe se encontrava, sentada ao lado
de Joe e de Kim em cima da toalha aos quadrados. Tinham aberto a
arca e retirado limonada e copos e uma grande variedade de queijo
e bolachas salgadas. Talvez faltassem os criados, mas a comida
parecia apetitosa.
– A minha mãe só tem olhos para o Joe e, quando vir o Russell,
acho que vai gostar dele.
Penny afastou-se dele.
– Assim o espero, embora, claro, se pareça muito contigo, e a tua
mãe adora-te mais do que tudo no mundo.
Travis sorriu.
– Joe disse-me que o meu pai vai conceder o divórcio sem lutar
em tribunal. Acreditas nisso?
– Sei que está muito impressionado com a Kim.
Travis não conseguiu evitar um esgar.
– Que filho da mãe! Aparecer assim às escondidas! Sempre soube
onde a minha mãe esteve durante todos estes anos. Quando me
lembro do que me custou esconder-me dele para poder… – Fitou
Penny. – Como sabes que ele gosta da Kim?
– Falei com ele. Mostrei à Kim uma fotografia do teu pai e ela
ficou branca. Soube que o tinha visto em algum lado.
Travis assentiu com a cabeça.
– Ela apareceu no restaurante com uma cara como se tivesse visto
um fantasma.
– Contou-te que ele fingiu ser um jardineiro?
– Só depois de alguma persuasão.
– Muito bem – aprovou Penny. – Não escondam segredos um do
outro. O teu pai e eu nunca… quero dizer…
– Compreendo. A vida dele sempre girou mais em torno de ti do
que da minha mãe.
Penny virou-se para observar Lucy e Joe que estavam sentados
muito juntos sobre a toalha.
– Nunca gostei da tua mãe. Não por me ter feito algo em
concreto, mas pela opinião que tinha dela. O facto de ter um apelido
tão ilustre levou-me a pensar que vivia num mundo pleno de festas
e chás. Julgava que lhe agradavam os cavalheiros que usavam
lenços de renda.
Joe Layton não parecia de forma alguma o típico «cavalheiro».
– Tenho a certeza de que o Russ não tardará a chegar e será um
bom momento para um frente-a-frente com a minha mãe.
– Sabes se ela trouxe alguma arma? – perguntou Penny.
– Só umas facas de mato – troçou Travis, mas, ao ver que Penny
recuava, soltou uma gargalhada. – Anda lá. A Kim e eu protegemos-
te.
Travis manteve-se perto de Penny enquanto se dirigiam à zona do
piquenique e deitou um olhar suplicante à mãe para que não
atacasse. Mas nessa altura compreendeu que não era justo. Afinal,
Penny tivera um filho do marido de Lucy. Por outro lado, também
não estragara um casamento feliz. A verdade era que Travis se
sentia tão contente por ter um irmão que nada mais lhe importava.
Enquanto se sentava entre a mãe e Kim, Travis fitou Joe em busca
de apoio moral. Este agarrou na mão de Lucy e deu-lhe a entender
com o olhar que tudo correria bem.
– Há cerveja aí dentro? – perguntou Travis enquanto observava a
mãe, que se recusava a fitar Penny. – Mãe – insistiu, aceitando a
cerveja que Kim lhe estendia. – A Kim disse-me que tens dois
irmãos. É verdade?
– Howard e Arthur – respondeu ela. – Não os vejo, desde…bom,
desde que me casei. Trocámos palavras muito desagradáveis.
Toda a gente se calou, à espera que Lucy acrescentasse mais
alguma coisa, mas não o fez.
– Como são eles? – insistiu Travis que diria o que quer que fosse
para quebrar o incómodo silêncio. – Gostaria de os conhe…
– Cá estão eles! – exclamou Penny, aliviada e satisfeita. Levantou-
se e começou a correr.
– De quem está ela a falar? – quis saber Kim.
– Parece que desde que o meu irmão mais novo – disse Travis
olhando diretamente para a mãe que se recusou a encará-lo – nos
deixou à hora do pequeno-almoço, conheceu uma mulher,
apaixonou-se por ela e pediu-a em casamento.
Os outros ficaram paralisados com a comida a meio caminho da
boca.
– Quem é ela? – perguntou Kim.
– Não faço ideia. Tudo o que se refere ao meu irmão é um
mistério. Vamos conhecê-la? Parece que tem um filho de cinco anos
que é louco por carros de bombeiros.
Todos se levantaram e começaram a dirigir-se para o carro de
bombeiros quando ouviram um grito de alegria e um menino lindo
correu na direção deles.
– Tristan! – exclamou Kim que também começou a correr. –
Parece-se com o meu primo Tristan! – gritou por cima do ombro. –
O Russell encontrou os meus primos!
O seu entusiasmo era contagiante e Travis, Joe e Lucy apressaram
o passo.
O rapazinho estava a subir para o carro, ajudado pelos bombeiros.
Irradiava uma tal felicidade que todos sorriam.
Atrás do menino surgiu Russell com uma expressão de pura
felicidade e dando a mão a uma bonita e jovem mulher.
– Gosto do anel – disse Kim a Travis, que a fitou com um ar
interrogativo. – Tem o diamante rosa de quatro quilates que estava
entre os que me mostraste. Era a minha segunda escolha. A jovem
tem bom gosto.
Travis sorriu e assentiu com a cabeça. Como esperava, Russell
usara um dos anéis que ele tinha oferecido a Kim como anel de
noivado.
Russell parou diante do irmão.
– O pai disse que queria encontrar-se comigo no velho moinho
esta manhã. Parece que a Clarissa vai trabalhar para lá todos os
domingos de manhã.
– Se o Russell não tivesse aparecido, a esta hora estaria morta ou
com os ossos todos partidos – acrescentou Clarissa e todos a
fitaram.
– Tens de contar-nos tudo – incitou Kim. – Creio que somos
primas.
– Primas em segundo grau – especificou Travis.
– Tenho de vigiar o meu filho – desculpou-se Clarissa. – O Jamie…
– Agora ele tem uma avó – interrompeu-a Russell em voz baixa e
todos se viraram para observar.
Penny estava no chão, com os braços estendidos por cima da
cabeça para que os bombeiros a içassem até à parte superior do
carro de bombeiros, onde se sentou ao lado de Jamie. O menino
sorriu-lhe e, quando o carro se pôs em marcha, ela rodeou-lhe os
ombros com o braço.
– Penso que terá quem cuide dele – disse Russell com um sorriso
dirigido a Clarissa. – Vamos sentar-nos?
– E comer – acrescentou Clarissa. – Tenho a certeza de que estás
novamente com fome.
Na sua qualidade de pombinhos, aquele comentário íntimo
pareceu diverti-los muito.
Passaram três horas antes que todos ficassem saciados com
comida e bebida e notícias. O carro de bombeiros tinha regressado e
todos escutaram com atenção o relato de Jamie, que lhes contou o
que tinha visto e feito. Recebera como presente um capacete e um
colete amarelo brilhante, de que não queria desfazer-se.
Depois de comer, sentou-se ao colo da mãe porque estava morto
de cansaço. Quando adormeceu, Russell pegou-lhe e estendeu-o,
com a cabeça no seu colo e os pés no de Penny.
Todos haviam escutado atentamente o relato que Russell e
Clarissa fizeram atabalhoadamente de como se haviam conhecido.
Travis fitou Penny e a comunicação resultante de anos de trabalho
em conjunto não necessitou de palavras. Randall Maxwell encontrara
os descendentes da família Aldredge e orquestrara tudo para que o
seu filho Russell conhecesse Clarissa.
Quando esta falou do encontro com a morte que havia sofrido
devido ao seu empenho em restaurar o velho moinho, Travis fixou
de novo Penny e ela assentiu com a cabeça. Randall Maxwell ia
oferecer ao filho a remodelação completa do edifício como presente
de casamento.
Mas o que todos ouviram com mais atenção foi a narrativa do
primeiro encontro entre Russell e Clarissa. Ambos se mostraram
tímidos e reservados quanto a pormenores sobre essa parte da
história, embora as expressões de ambos não deixassem lugar para
dúvidas.
Travis olhou várias vezes para a mãe, cuja cara denotava que se
sentia tão fascinada pelo que ouvia como os demais. Por duas vezes,
Travis apanhou-a a fitar maravilhada Russell, que era um decalque
do filho.
Por volta das quatro da tarde, o cansaço de um dia tão
emocionante começou a provocar cansaço em todos. Travis e Kim
fitavam-se como se desejassem estar a sós, tal como o faziam Joe e
Lucy, e também Russell e Clarissa.
A única que não tinha par era Penny.
– Talvez devêssemos regressar ao hotel – disse Kim. – Podíamos
encontrar-nos mais tarde para… – Interrompeu-se porque nesse
momento uma grande limusina preta estacionou junto aos outros
carros.
A porta de trás abriu-se, mas ninguém saiu e o motor continuou
ligado. No interior distinguiam vagamente o contorno de uma
pessoa, que não se decidia a sair.
– É o Randall – disse Lucy num tom de voz que parecia anunciar o
final da festa, mas de súbito o rosto iluminou-se e fitou Penny. Não
com o olhar de relance com que a brindara durante toda a tarde,
mas fitando-a de frente. – Ele veio por si!
Penny encolheu os ombros.
– Provavelmente, quer que vá buscar-lhe a roupa à lavandaria.
Todos continuaram de olhos postos nela, sem pestanejar.
– Mãe – disse Russell –, há trinta anos que estás apaixonada por
esse homem. Não te parece que chegou a altura de demonstrares o
que sentes?
Penny olhou para Lucy, como se estivesse a pedir-lhe licença. Lucy
aconchegou-se a Joe.
– Tenho aqui tudo o que preciso.
Penny demorou uns escassos segundos a tomar uma decisão.
Com o ar de quem estava finalmente a levar por diante tudo o que
desejara fazer na vida, levantou-se, alisou a parte da frente da saia,
beijou Russell na testa, depois Jamie e por último Clarissa. Virou-
lhes as costas e iniciou uma lenta e tranquila caminhada na direção
da limusina. Mas, quando se aproximou, desatou a correr. Viram-na
sorrir ao chegar junto à porta. Entrou sem a mínima hesitação e
fechou a porta. A limusina arrancou.
O silêncio absoluto de todos fez com que Jamie se mexesse,
inquieto. Ao abrir os olhos, avistou Russell e sorriu.
– Ofereceste-me um carro de bombeiros – disse, rodeando o
pescoço de Russell com os braços.
– Penso que devemos ir embora – disse Russ a Clarissa e
levantaram-se.
Os restantes continuaram sentados, sem desviarem os olhos
deles. Russell levava o rapazinho apertado ao seu pescoço enquanto
o segurava com um braço e com o outro ajudava Clarissa a pegar
nos sacos. Era difícil acreditar que se tivessem conhecido nessa
manhã. As três pessoas formavam indubitavelmente uma família.
– Bom. Quais são os teus planos? – perguntou Travis.
Clarissa ergueu os olhos para Russell. Enquanto dobrava uma
manta, o anel que tinha no dedo reluziu.
– Ainda é um pouco cedo para falar disso.
Russell acrescentou:
– Suponho que tudo depende do sítio onde encontrar trabalho.
– Muito bem, irmãozinho – replicou Travis. – Estamos todos à
espera. Qual é a tua vocação?
Russell sorriu como se não pensasse responder.
Clarissa pareceu surpreendida ao ver que os irmãos ignoravam
algo tão básico um sobre o outro.
– Russell é um pastor da igreja batista.
O comentário silenciou todos.
– Tenho a formação, mas não a prática. Disseram-me que tinha
alguns problemas… em controlar o meu temperamento e sugeriram-
me que tinha de resolver a questão.
Travis parecia prestes a soltar uma gargalhada, mas Kim fitou-o
com uma expressão, avisando-o a que não o fizesse. Em seguida,
disse:
– A verdade é que metade de Edilean não perdoou ao nosso
pastor atual por roubar a namorada ao meu irmão. Além disso, há
anos que ocupa o cargo e… – Deixou pairar a frase.
– O que a minha futura mulher pretende dizer é que talvez haja
um lugar livre em Edilean para um pastor batista. – Travis fitava o
irmão de olhos arregalados, mas conseguiu dominar-se. – Penso que
devíamos falar sobre um acampamento que faço tenção de
inaugurar. Há um lugar para ti.
– Com todo o gosto – replicou Russell –, mas antes a Clarissa terá
de ir para a universidade a fim de estudar medicina. Ela quer ser
médica.
– É uma verdadeira Tristan – comentou Kim e todos riram.
Depois de contemplar os rostos sorridentes dos presentes, fitou
Travis. Por fim, conseguira o que tinha desejado desde os oito anos.
– Pronta para irmos embora? – perguntou Travis em voz baixa.
– Sim – respondeu. – Contigo, sempre.
EPÍLOGO
Já era tarde quando o telemóvel de Kim tocou. Ela e Travis estavam
em Paris em lua de mel e pensou em não olhar para o e-mail. Mas
Travis ouviu o toque.
– Vá lá. Vê quem é. Estou à espera de notícias da minha mãe e de
Joe.
Kim carregou na tecla e leu, incrédula:
– É da Sophie.
– De quem?
– Da minha outra colega de quarto na universidade, além da
Jecca.
– Ah, sim, a loira explosiva.
Kim continuou a ler e deixou-se cair em cima da cama.
– Más notícias?
– Sim e não – sussurrou. – Sophie diz que precisa de um sítio
onde se esconder e de um trabalho.
– De se esconder? Do quê?
– Não explica – respondeu Kim.
Travis sentou-se na cama ao lado dela e rodeou-lhe os ombros
com os braços.
– Se queres ir para casa, podemos fazê-lo.
– Não – recusou Kim. – A Sophie diz que não o faça. Eu… –
Ergueu a cabeça. – Vou ligar à Betsy.
– Quem é a Betsy?
– A gerente do consultório do meu irmão. O Reede ainda não
sabe, mas vai ter uma empregada nova. – Encostou o telemóvel ao
ouvido.
Travis levantou-se.
– Parece-me que estás a fazer de casamenteira.
– Céus! Nem pensar! Reede e Sophie? Nunca daria resultado. Ela
é demasiado inteligente, boa de mais para o meu irmão. Mas acho
que vou mandar um e-mail ao meu primo Roan e pedir-lhe que
esteja atento à minha amiga.
Travis abanou a cabeça, sentou-se num sofá confortável e abriu
um jornal. Aparentemente, a sua mulher ia demorar algum tempo a
organizar a vida da amiga.
Esboçou um sorriso, a coberto do jornal. Estava convencido de
que era o homem mais feliz do planeta.
– Não te apresses – disse. – Temos todo o tempo do mundo.
Table of Contents
Ficha Técnica
PRÓLOGO
UM
DOIS
TRÊS
QUATRO
CINCO
SEIS
SETE
OITO
NOVE
DEZ
ONZE
DOZE
TREZE
CATORZE
QUINZE
DEZASSEIS
DEZASSETE
EPÍLOGO

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