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ESTRANHOS AO LUAR
1993
Kim nunca se tinha sentido tão entediada nos seus oito anos de vida
como agora. Nem sequer sabia que tal tédio poderia existir. A mãe
disse-lhe que saísse um pouco para o grande jardim que rodeava a
velha mansão, Edilean Manor, mas como iria brincar sozinha?
Duas semanas antes, o pai tinha levado o irmão a qualquer estado
longínquo para irem pescar. «Elo masculino», chamou-lhe a mãe e
depois disse que não tencionava ficar sozinha em casa durante um
mês inteiro. Naquela noite, Kim despertou ao ouvir os pais a discutir.
Não se tratava de algo que costumassem fazer – pelo menos que
soubesse – e de repente ocorreu-lhe a palavra divórcio. Tinha pavor
de ficar sem os pais.
Mas na manhã seguinte viu-os aos beijos e tudo pareceu regressar
à normalidade. O pai insistia em afirmar que não havia coisa melhor
do que fazer as pazes, mas a mãe mandou-o calar.
Nessa mesma tarde, a mãe informou-a de que durante a ausência
do pai e do irmão ficariam num apartamento em Edilean Manor. Kim
não gostou da ideia porque detestava a velha mansão. Era
demasiado grande e ecoava a cada passo. Além disso, sempre que
visitava o local parecia haver menos móveis e o vazio fazia com que
parecesse ainda mais assustador.
O pai explicou que Mr. Bertrand, o velho que morava na casa,
tinha vendido os móveis da família para não se ver obrigado a
trabalhar.
– Ele venderia a casa se Miss Edi o permitisse.
Miss Edi era a irmã de Mr. Bertrand. Era mais velha do que ele e,
embora não vivesse na casa, era a dona. Kim ouvira dizer que
detestava tanto o irmão que recusava viver em Edilean.
Kim não compreendia que alguém pudesse detestar Edilean,
porque todos os seus conhecidos viviam na cidade. O pai era um
Aldredge e pertencia a uma das sete famílias que tinham fundado a
cidade. Kim sabia que era um motivo de orgulho. Apenas pensava
que se sentia feliz por não pertencer à família que tinha de viver na
grande e assustadora mansão.
Agora que ela e a mãe estavam a morar no apartamento há duas
semanas sentia-se terrivelmente aborrecida. Queria voltar para a sua
casa e para o seu quarto.
Quando estavam a fazer as malas para ir, a mãe dissera:
– Vamos por pouco tempo e como fica aqui ao lado não precisas
de levar isso.
Com «isso» referia-se a quase todos os pertences de Kim, como
livros, brinquedos, bonecas e kits de trabalhos manuais. A mãe
parecia considerá-los «desnecessários».
Mas, por fim, Kim agarrara com força o guiador da bicicleta que
tinha recebido como presente de aniversário e fitou a mãe com um
olhar decidido.
O pai riu.
– Ellen – disse à mulher. – Vi esse olhar no teu rosto centenas de
vezes e garanto-te que a tua filha não vai dar o braço a torcer. Sei
por experiência que, por muito que grites, a ameaces, lhe fales com
ternura, implores, supliques, ou chores, ela não cederá.
A mãe estreitou os olhos ao fitar o marido a rir.
O sorriso desapareceu-lhe dos lábios e disse:
– Reede, que achas se tu e eu formos…
– Onde, pai? – perguntou Reede. Aos dezassete anos dava grande
importância a poder ir embora sozinho com o pai. Sem a companhia
de mulheres. Só os dois.
– A qualquer lado – murmurou o pai.
Kim conseguiu levar a bicicleta para Edilean Manor, e durante os
três primeiros dias quase não desmontou, mas agora apetecia-lhe
fazer outra coisa. A sua prima Sara apareceu um dia, mas apenas
lhe interessava explorar a velha e decadente mansão. Sara adorava
edifícios antigos!
Mr. Bertrand tinha retirado um exemplar de Alice no País das
Maravilhas de uma pilha de livros no chão. A mãe comentou que ele
tinha vendido a estante à Fundação Colonial Williamsburg.
– Uma peça original do século dezoito e que estava há mais de
duzentos anos na família – comentara. – Que vergonha. Pobre Miss
Edi.
Kim passou dias a ler sobre Alice e a sua descida à toca do coelho.
Gostou tanto do livro que disse à mãe que queria o cabelo loiro e
um vestido azul com um avental branco. A mãe respondeu que, se o
pai voltasse a ausentar-se por quatro semanas, o seu próximo filho
podia ser loiro. Mr. Bertrand disse que gostaria de passar o dia
sentado num cogumelo, a fumar um cachimbo de água e a dar
sábios conselhos.
Os dois adultos desataram a rir – pareciam achar muita graça um
ao outro. Desgostosa, Kim saiu lá para fora e foi sentar-se na
forquilha da sua pereira favorita para ler mais sobre Alice. Releu as
passagens favoritas e depois a mãe chamou-a para o que Mr.
Bertrand designava como «o chá das cinco». Era um ancião
estranho, com um aspeto suave, e o seu pai dizia que Mr. Bertrand
podia chocar um ovo no sofá.
– Nunca se levanta.
Kim apercebera-se que, embora poucos homens da cidade
gostassem de Mr. Bertrand, todas as mulheres o adoravam. Havia
alguns dias em que apareciam seis mulheres com garrafas de vinho,
guisados e bolos, e todas pareciam muito divertidas. Ao repararem
em Kim, todas diziam: «Devia ter trazido… » e indicavam o nome
dos filhos.
Mas, em seguida, uma outra mulher comentava como era
maravilhoso ter um pouco de paz e de tranquilidade durante
algumas horas.
Na visita seguinte as mulheres voltaram a esquecer-se de levar os
filhos.
Kim, que se conservava lá fora e ouviu as mulheres a rir à
gargalhada, não achou que parecessem muito calmas ou tranquilas.
Foi só depois de estar com a mãe na mansão há duas longas
semanas que uma manhã esta pareceu muito excitada com qualquer
coisa, mas Kim desconhecia o motivo. Algo tinha acontecido durante
a noite, uma coisa de adultos. Kim estava mais preocupada em
encontrar o exemplar de Alice no País das Maravilhas que Mr.
Bertrand lhe tinha emprestado. Só tinha esse livro e agora
desaparecera. Perguntou à mãe por ele, pois sabia que o deixara em
cima da mesinha de café.
– Na noite passada levei-o para… – Deixou a frase a meio porque
o velho telefone de parede tocou, a mãe correu a atendê-lo e
começou imediatamente a rir.
Desgostosa, Kim saiu para o jardim. A sua vida parecia estar a
piorar.
Deu pontapés nas pedras, fitou os canteiros vazios de cenho
franzido e dirigiu-se à sua árvore. Tinha planeado trepar pelo tronco,
sentar-se no seu ramo favorito e pensar no que poderia fazer
durante as longas e aborrecidas semanas que faltavam até que o pai
voltasse a casa e a vida recomeçasse.
Quando chegou perto da árvore, viu algo que a fez estacar. Havia
um rapaz, mais novo do que o seu irmão, mas mais velho do que
ela. Vestia uma camisa limpa de colarinho e umas calças escuras,
como se estivesse prestes a ir à missa de domingo. O pior de tudo
era que estava sentado na sua árvore, a ler o seu livro.
Tinha cabelo escuro que lhe caía para a frente e estava tão
absorto na leitura que nem sequer ergueu os olhos quando Kim deu
um pontapé num torrão de terra.
«Quem era?», pensou. Com que direito se achava de poder
sentar-se na sua árvore?
Ignorava a resposta às duas perguntas, mas sabia que queria que
aquele estranho se fosse embora.
Agarrou num pedaço de terra e atirou-lho com todas as forças.
Fizera pontaria à cabeça dele, mas acertou-lhe no ombro. O torrão
desfez-se e caiu em cima do seu livro.
O rapaz fitou-a, um pouco surpreendido no princípio, mas depois o
rosto descontraiu-se e observou-a em silêncio. «Era um jovem
bonito», pensou Kim. Em nada semelhante ao seu primo Tristan. O
jovem parecia-se com uma boneca que ela tinha visto num catálogo,
com a pele rosada e olhos muito escuros.
– Esse livro é meu! – gritou-lhe. – E essa é a minha árvore. Não
tens direito a nenhum dos dois. – Agarrou noutro torrão de terra e
atirou-lho. Deveria tê-lo atingido na cara, mas o rapaz desviou-se a
tempo.
Kim tivera muita experiência com rapazes mais velhos e sabia que
eles se vingavam sempre. Eram fáceis de afastar, mas depois
passavam à perseguição, apanhavam as raparigas, torciam-lhes o
braço atrás das costas ou puxavam o cabelo até implorarem
misericórdia.
Ao ver que o rapaz fazia um movimento como se tencionasse
descer da árvore, Kim desatou a correr o mais rapidamente que as
pernas lhe permitiam. Talvez tivesse tempo de alcançar o que sabia
ser um ótimo esconderijo. Esgueirou o corpo delgado entre duas
pilhas de tijolos antigos, agachou-se e ficou a aguardar que o jovem
a perseguisse.
Depois do que lhe pareceu uma hora de espera, o rapaz não
apareceu e as pernas começaram a doer-lhe. Cautelosamente e sem
fazer ruído, Kim saiu do meio dos tijolos e olhou em volta. Estava
convencida de que ele apareceria de trás de um tronco de árvore e
gritaria: «Apanhei-te!» e a bombardearia com um pedaço de terra.
Mas enganou-se. No grande jardim reinava o silêncio e a
tranquilidade habituais e não havia vestígio do desconhecido.
Correu a esconder-se atrás de uma árvore, esperou e ficou à
escuta, mas não ouviu nem viu nada. Correu para outra árvore e
ficou à espera. Nada. Demorou muito tempo antes de voltar à «sua»
árvore e o que viu surpreendeu-a.
De pé, no chão, sob os ramos, estava o rapaz. Segurava o livro
debaixo do braço e parecia estar à espera.
Seria que se tratava de uma nova armadilha de rapazes que
desconhecia?, interrogou-se. Seria o que os jovens forasteiros – os
que não eram de Edilean – faziam às raparigas que lhes atiravam
terra? Caso se aproximasse dele, iria espancá-la?
Talvez tivesse feito algum som enquanto o observava, porque ele
virou-se e olhou-a.
Kim escondeu-se apressadamente atrás de uma árvore, pronta a
proteger-se de algo que voasse pelos ares, mas nada aconteceu.
Decorridos uns momentos, resolveu que não queria continuar a
parecer um gato assustado e saiu de trás do tronco.
O jovem encaminhou-se lentamente na sua direção e Kim
preparou-se para fugir. Sabia muito bem que não devia deixar que
os rapazes se aproximassem depois de lhes ter atirado coisas. Eles
orgulhavam-se e muito da rapidez dos seus braços.
Contudo, susteve a respiração quando ele se aproximou tanto que
sabia não poder fugir.
– Lamento ter pegado no teu livro – disse ele em voz baixa. –
Mister Bertrand emprestou-mo, portanto, não sabia que era de outra
pessoa. Também não sabia que a árvore era tua. Desculpa.
Kim ficou tão surpreendida que não conseguiu falar. A mãe dizia
que os homens desconheciam o significado da palavra desculpa. Mas
este jovem conhecia. Aceitou o livro que ele lhe devolvia e observou-
o a virar costas, afastando-se rumo à mansão.
Ele ia a meio caminho quando Kim conseguiu mexer-se.
– Espera! – gritou e ficou surpreendida quando ele parou.
Nenhum dos seus primos alguma vez lhe obedecia.
Aproximou-se dele com o livro firmemente apertado contra o
peito.
– Quem és tu? – perguntou.
Se ele respondesse que era um visitante de outro planeta, não
ficaria admirada.
– Travis… Merritt – disse. – A minha mãe e eu chegámos ontem à
noite, muito tarde. Quem és tu?
– Kimberly Aldredge. A minha mãe e eu hospedámo-nos ali –
disse, apontando o dedo –, enquanto o meu pai e o meu irmão
estão a pescar em Montana.
Travis assentiu com a cabeça, como se o que Kim acabara de dizer
fosse muito importante.
– A minha mãe e eu estamos alojados ali. – Apontou por sua vez
para o apartamento situado no outro lado da mansão. – O meu pai
está em Tóquio.
Kim nunca tinha ouvido falar desse lugar.
– Vives perto daqui?
– Não, não neste estado.
Kim olhava-o e pensava que ele era muito parecido com uma
boneca, pois não sorria nem tão-pouco se mexia muito.
– Gosto do livro – acrescentou. – Nunca tinha lido nada parecido.
Na sua experiência, Kim desconhecia que os rapazes lessem algo
que não tivessem de ler por obrigação. À exceção do seu primo Tris,
mas ele só lia sobre pessoas doentes, por isso não contava.
– O que lês? – quis saber.
– Livros didáticos.
Kim esperou que aumentasse a lista, mas Travis manteve-se em
silêncio.
– O que lês para te divertires?
Ele franziu levemente a testa.
– Gosto muito dos livros de ciência.
– Ah! – exclamou ela.
Nesse momento, Travis pareceu compreender que devia
acrescentar mais qualquer coisa.
– O meu pai diz que a minha educação é muito importante e o
meu tutor…
– O que é um tutor?
– O homem que me ensina.
– Ah! – repetiu Kim, que não fazia ideia do que Travis estava a
falar.
– Recebo aulas em casa – explicou ele. – A minha escola é a casa
do meu pai.
– Não parece muito divertido – comentou Kim.
Pela primeira vez, Travis esboçou um leve sorriso.
– Posso atestar que não é nada divertido.
Kim ignorava o significado de atestar, mas podia adivinhar.
– Sou boa a divertir-me – afirmou com a sua melhor voz de
adulta. – Queres que te mostre como?
– Gostaria muito – disse ele. – Por onde começamos?
Kim refletiu um instante.
– Nas traseiras há um monte de terra enorme. Vou ensinar-te a
subi-lo e a descê-lo com a minha bicicleta. Podes soltar os pés e as
mãos. Vamos! – gritou e desatou a correr.
Mas um momento depois olhou para trás e viu que Travis não a
seguia. Regressou até junto da árvore e ele estava exatamente onde
o deixara.
– Tens medo? – perguntou, trocista.
– Não me parece, mas nunca andei de bicicleta e creio que és
demasiado jovem para me ensinares.
Kim não gostava que lhe dissessem que era «demasiado jovem»
para fazer o que quer que fosse. Agora, ele estava a falar como
todos os rapazes.
– Ninguém te ensina a andar de bicicleta – respondeu, sabendo
que estava a mentir. O pai tinha passado dias a segurar-lhe a
bicicleta enquanto ela aprendia a equilibrar-se.
– Muito bem – anuiu ele com uma expressão séria. – Vou tentar.
A bicicleta era demasiado baixa para ele e na primeira vez que a
montou, caiu e aterrou com a cara no chão. Levantou-se a cuspir
sujidade e Kim observou-o. Seria um daqueles rapazes que iam a
correr ter com a mãe a chorar?
Em vez disso, limpou a boca com a manga da camisa e depois
esboçou um sorriso de orelha a orelha.
– Hurra! – gritou ao mesmo tempo que voltava a montar a
bicicleta.
À hora do almoço, Travis já descia a colina mais rapidamente do
que Kim alguma vez tinha ousado e levantava a roda da frente como
se fosse saltar um obstáculo.
– Que tal estou a portar-me? – perguntou a Kim depois da sua
descida mais rápida pelo montão de terra suja.
Não parecia o mesmo rapaz que Kim havia visto pela primeira vez,
sentado na árvore. Tinha a camisa rasgada no ombro e estava sujo
da cabeça aos pés. Um galo estava a crescer na cara no sítio onde
quase fora de encontro a uma árvore, mas guinara para a esquerda
e passara a rasar. Até os dentes estavam sujos.
Antes que Kim pudesse responder, olhou por cima do ombro e
ficou tenso, convertendo-se no jovem que vira pela primeira vez.
– Mãe… – disse.
Ao virar-se, Kim deparou com uma mulher baixa. Era bonita em
termos puramente maternais, mas faltavam-lhe as faces rosadas de
Travis. Parecia uma versão descorada e mais velha dele no feminino.
Sem dizer uma palavra, a recém-chegada colocou-se entre os dois
e examinou o filho de alto a baixo.
Kim susteve a respiração. Se a mulher dissesse à sua mãe que
Travis se sujara por sua culpa, Kim seria castigada.
– Ensinaste-o a andar de bicicleta? – perguntou-lhe Mrs. Merritt.
Travis colocou-se diante de Kim, como se quisesse protegê-la.
– Mãe, ela é apenas uma jovenzinha. Aprendi sozinho. Vou lavar-
me... – Deu um passo em direção à casa.
– Não! – exclamou Mrs. Merritt e ele virou-se para a olhar. A mãe
aproximou-se e abraçou-o. – Nunca te vi com melhor ar. – Beijou-lhe
a face e depois sorriu ao mesmo tempo que limpava a sujidade dos
lábios. Voltou-se para Kim. – Tu, jovenzinha… – começou, mas
deteve-se. Inclinando-se, abraçou Kim. – És uma menina
maravilhosa. Obrigada!
Kim fitou a mulher com uma expressão surpreendida.
– Continuem a brincar, miúdos. Que tal, se vos preparar um
piquenique para comerem aqui fora? Gostas de bolo de chocolate?
– Gosto – respondeu Kim.
Mrs. Merritt deu dois passos na direção da casa e Kim gritou:
– Ele precisa da sua própria bicicleta!
Mrs. Merritt olhou para trás e Kim engoliu em seco. Nunca tinha
dado uma ordem a um adulto.
– É que… – acrescentou num tom de voz mais baixo – … a minha
bicicleta é muito pequena para ele. Os pés arrastam no chão.
– De que mais precisa? – perguntou Mrs. Merritt.
– De uma bola de basebol e de um taco – disse Travis.
– De um pula-pula – acrescentou Kim. – E de… – Interrompeu-se
porque Mrs. Merritt levantou a mão.
– Os meus recursos são limitados, mas verei o que posso fazer.
Regressou a casa e uns minutos mais tarde apareceu com sandes
e limonada. À tarde voltou com duas enormes fatias de bolo de
chocolate acabado de fazer. Nessa altura, Travis já aprendera a fazer
cavalinhos e a mãe observou-o com um misto de espanto e de
terror.
– Quem iria pensar que és um atleta nato, Travis? – observou
admirada e depois regressou a casa.
No início da noite, chegou Benjamin, o tio de Kim e pai do seu
primo Ramsey.
– Ho, ho, ho! – gritou. – Quem pediu o Natal em julho?
– Nós pedimos! – entusiasmou-se Kim e Travis seguiu-a enquanto
ela corria para o jipe do tio.
O tio Ben retirou uma reluzente e nova bicicleta azul do porta-
bagagens.
– Disseram-me que a entregasse ao garoto mais sujo de Edilean.
– Olhou para Travis. – Creio que serás tu.
Travis esboçou um sorriso. Ainda tinha sujidade nos dentes e o
cabelo coberto de lama seca.
– É para mim?
– Da parte da tua mãe – explicou o tio Ben e acenou na direção
da porta da frente.
Mrs. Merritt encontrava-se na ombreira e Kim teve a sensação de
que estava a chorar. Mas isso não fazia sentido. Uma bicicleta fazia
uma pessoa rir e não chorar.
Travis correu para a mãe e rodeou-lhe a cintura com os braços.
Kim observou-o surpreendida. Nenhum dos rapazes de doze anos
que conhecia faria algo semelhante. Não era costume abraçar a mãe
diante de outras pessoas.
– Um bom menino – elogiou Ben e Kim virou-se para ele. – Não
contes à tua mãe, mas passei pela vossa casa e fiz algumas
limpezas. Reconheces alguma coisa?
Puxou uma caixa que também trouxera no porta-bagagens e
inclinou-a para que Kim visse o conteúdo. Continha cinco dos seus
livros favoritos, a sua segunda boneca predileta, um kit ainda
fechado para fazer enfeites e, no fundo, estava a sua corda de saltar.
– Desculpa não ter o pula-pula, mas trouxe alguns tacos antigos
do Ram e algumas bolas.
– Obrigada, tio Ben! – agradeceu e abraçou-o, seguindo o
exemplo de Travis.
– Se soubesse que ia receber um abraço, teria comprado um
pónei.
Kim arregalou os olhos.
– Não contes à tua mãe que te disse isso ou ela esfola-me vivo.
Travis tinha-se afastado da mãe e contemplava a sua nova
bicicleta em silêncio.
– Achas que sabes montá-la? – perguntou o tio Ben. – Ou só és
capaz de lidar com uma bicicleta de rapariga?
– Benjamin! – exclamou a mãe de Kim que tinha saído para ver o
que estava a acontecer.
Mr. Bertrand continuava no interior. Segundo constava, nunca saía
de casa. O pai de Kim dissera uma vez que era tão preguiçoso que
nem sequer rodava a maçaneta de uma porta.
Travis brindou o tio de Kim com uma expressão séria, tirou-lhe a
bicicleta das mãos e partiu a uma velocidade vertiginosa em torno
da casa. Quando ouviram o som inconfundível de um choque, o tio
Ben pousou a mão no braço de Mrs. Merritt para evitar que corresse
até junto do filho.
Ouviram o que lhes pareceu outra batida no outro lado da casa e,
por fim, Travis voltou a aparecer. Estava mais sujo, com a camisa
mais rasgada, e tinha um vestígio de sangue no lábio superior.
– Algum problema? – perguntou o tio Ben.
– Nenhum – respondeu Travis, fitando-o diretamente nos olhos.
– Este é o meu rapaz! – exclamou o tio Ben e deu-lhe uma forte
palmada no ombro. Depois, baixou a tampa do porta-bagagens. –
Tenho de voltar ao trabalho.
– Qual é o seu trabalho? – interessou-se Travis, expressando-se
com voz de adulto.
– Sou advogado.
– É uma boa profissão?
Os olhos do tio Ben adquiriram um brilho alegre, mas susteve o
riso.
– Serve para pagar as contas e tem coisas boas e outras más.
Estás a pensar tentar a advocacia?
– Admiro bastante Thomas Jefferson.
– Vieste para o lugar indicado – replicou o tio Ben, sorrindo ao
mesmo tempo que abria a porta do carro. – Fazemos uma
combinação, Travis. Quando saíres da faculdade de Direito, vem ter
comigo.
– Irei, sir, e obrigado – agradeceu Travis. Embora a voz parecesse
a de um adulto, a sujidade que tinha em cima, os galhos e as
contusões davam um toque engraçado às palavras.
Mas o tio Ben não riu. Em vez disso, olhou para Mrs. Merritt.
– É um bom miúdo. Parabéns.
Mrs. Merritt colocou o braço à volta dos ombros do filho, mas ele
afastou-se. Parecia não querer que o tio Ben o visse tão apegado a
uma mulher.
Todos observaram o tio Ben a ir embora e depois a mãe de Kim
disse:
– Meninos, vão brincar. Chamar-vos-emos a tempo do jantar e
depois podem ir apanhar pirilampos.
– Sim. Vão brincar – anuiu Mrs. Merritt. Parecia ter esperado
durante anos para dizer isso ao filho. – Mister Bertrand vai ensinar-
me a costurar.
– Lucy – interferiu a mãe de Kim –, penso que devia avisar-te de
que o Bertrand está a usar-te para trabalho não recompensado.
Quer arranjar os reposteiros e…
– Eu sei – interrompeu-a Lucy Merritt –, mas não tem importância.
Quero aprender a fazer algo criativo e isso pode ser a costura.
Parece-te que ele me venderia a sua máquina de costura?
– Creio mesmo que te venderia os pés, já que os usa tão pouco.
Lucy riu.
– Anda – disse a mãe de Kim. – Vou ensinar-te a trabalhares com
a máquina.
Durante duas semanas, Kim viveu no que lhe parecia um paraíso.
Travis e ela passavam o dia juntos, desde manhã até à noite.
Travis entregou-se à diversão de corpo e alma, como se tivesse
nascido para ela – o que a mãe de Kim afirmava que deveria ser
verdade.
Enquanto os jovens brincavam no jardim, as duas mulheres e Mr.
Bertrand conversavam e costuravam no interior da casa. Lucy Merritt
usou a velha máquina de costura Bernina para reparar todos os
cortinados da casa.
– Assim, poderá vendê-los por um preço mais elevado –
murmurou a mãe de Kim.
Lucy comprou tecido e fez cortinas novas para a casa de banho e
para a cozinha.
– Estás a pagar-lhe um aluguer – recordou a mãe de Kim. – Não
devias pagar o tecido do teu bolso.
– Que importância tem? De qualquer maneira, não posso pôr
dinheiro de lado. O Randall vai levar-me tudo o que não gastei.
Mrs. Aldredge sabia que Randall era o marido de Lucy, mas
desconhecia o resto.
– Gostava de saber o que isso significa – disse, mas Lucy replicou
que já falara de mais.
À noite, os jovens recolhiam com relutância aos seus
apartamentos separados. As mães obrigavam-nos a lavar-se, a
comer e a ir para a cama. Na manhã seguinte, voltavam a ir para o
jardim. Por muito cedo que Kim se levantasse, Travis estava sempre
à sua espera nas traseiras da casa.
Uma noite Travis disse:
– Voltarei.
Kim não percebeu o que isso significava.
– Depois de me ir embora, voltarei.
Kim não respondeu, porque não queria imaginar que ele partisse.
Trepavam juntos às árvores, escavavam a lama, montavam nas
bicicletas; ela atirava a bola e Travis lançava-a através do jardim.
Quando Kim trouxe para o exterior a sua segunda boneca favorita,
sentiu-se nervosa. Os rapazes não gostavam de bonecas. Mas Travis
disse que lhe construiria uma casa e cumpriu a promessa. Era feita
de folhas e de ramos e no interior havia uma cama que Kim cobriu
de musgo. Enquanto Travis construía o telhado, ela usou o seu kit de
enfeites para fazer dois colares com contas de plástico. Travis sorriu
quando ela lhe passou um pela cabeça, mas na manhã seguinte
apareceu com ele.
Quando a temperatura subiu a ponto de não lhes apetecer
mexerem-se, estendiam-se no chão fresco à sombra e revezavam-se
a ler em voz alta Alice e os outros livros. Kim não era tão boa leitora
como Travis, mas ele nunca se queixava. Quando Kim tropeçava
numa palavra, ajudava-a. Travis dissera-lhe que era um bom ouvinte
e não tinha mentido.
Kim sabia que, aos doze anos, ele era bastante mais velho do que
ela, mas não parecia. Quando se tratava de matéria escolar parecia
um adulto. Descreveu-lhe o ciclo completo de vida de um girino e
também lhe falou de casulos. Explicou-lhe por que motivo a Lua
tinha formas diferentes e o que causava o inverno e o verão.
Mas, apesar de todos os seus conhecimentos, nunca tinha atirado
uma pedra para um lago. Nunca tinha trepado a uma árvore antes
de vir para Edilean. Nem sequer raspara um cotovelo.
Então, aprenderam definitivamente um com o outro. Embora
Travis tivesse doze anos e ela apenas oito, às vezes era Kim a servir
de mestra, e gostava disso.
Tudo acabou exatamente duas semanas depois de ter começado.
Como sempre, mal a luz surgiu no exterior, Kim, com os olhos
inchados pelo sono, saiu a correr pela porta das traseiras, e passou
junto à parte posterior da enorme mansão, onde se encontrava a ala
em que se alojavam Travis e a sua mãe.
Mas, nessa manhã, quando Travis não se encontrava já lá fora à
sua espera, percebeu imediatamente que algo se tinha passado.
Começou a bater na porta, chamando-o aos gritos. Pouco lhe
importava que despertasse a casa inteira.
A mãe apareceu à porta a correr, de roupão e chinelos.
– Kimberly! Porque estás aos gritos?
– Onde está o Travis? – exigiu saber, esforçando-se por não
chorar.
– E se te acalmasses? Provavelmente adormeceram.
– Não! Passou-se alguma coisa.
A mãe hesitou e, em seguida, experimentou a maçaneta. A porta
abriu-se. O interior estava vazio e não havia indício de que tivesse
estado habitado.
– Fica aqui – ordenou a mãe. – Vou saber o que se passa.
Regressou a toda a pressa à frente da casa, mas o carro de Mrs.
Merritt não estava lá. Era demasiado cedo para incomodar Bertrand,
mas sentia-se demasiado preocupada com Lucy e o filho para que
deixasse de entrar.
Bertrand estava a dormir no sofá, o que demonstrou o que toda a
gente suspeitava: que não subia as escadas para ir para a cama.
Despertou de imediato, sempre pronto para escutar uma boa
coscuvilhice.
– Querida – disse ele. – Saíram os dois disparados de manhã.
Estava profundamente adormecido quando a Lucy me despertou.
Queria saber se lhe vendia a velha máquina de costura.
– Espero que lha tivesse dado.
– Quase. Só lhe cobrei cinquenta dólares.
Mrs. Aldredge fez uma careta.
– Para onde foram? Porque se foram embora a meio da noite?
– Lucy disse-me apenas que alguém lhe ligou a avisá-la de que o
marido ia regressar e ela devia partir. Disse-me que tinha de chegar
lá antes dele.
– Mas onde? Quero ligar-lhe para saber se está bem.
– Pediu-me que, por favor, não tentássemos contactá-la. – Baixou
a voz. – Disse que ninguém devia saber que ela e o Travis estiveram
aqui.
– Isso soa-me muito mal! – Mrs. Aldredge sentou-se no sofá e
depois levantou-se de um salto. – Santo Deus! A Kim vai ficar
destroçada. Nem sei como dizer-lhe. Ficará devastada. Ela adora
esse rapaz.
– Era um jovem fantástico – concordou Bertrand. – Com uma pele
de porcelana. Espero que a conserve e não permita que o sol a
estrague. Julgo que a minha boa compleição provém de toda uma
vida a coberto do sol.
Mrs. Aldredge regressou de testa franzida até junto de Kim para
lhe comunicar que o seu amigo se fora embora e era provável que
nunca mais voltasse a vê-lo.
Kim reagiu melhor do que a mãe esperava. Não houve birras nem
lágrimas, pelo menos que alguém visse. Mas passaram semanas
antes que Kim voltasse a ser a mesma.
A mãe levou-a a Williamsburg para comprar uma moldura cara
onde Kim colocasse a única fotografia que tinha de Travis. Os dois
estavam de pé junto às suas bicicletas, sujos e muito sorridentes.
Pouco antes de Mrs. Aldredge carregar no obturador, Travis rodeou
os ombros de Kim com o braço e ela apertou-lhe a cintura. Era um
doce retrato da infância e ficava muito bem na moldura que Kim
escolheu. Colocou-a na mesa de cabeceira para que pudesse vê-la
antes de adormecer e quando acordasse todas as manhãs.
Só um mês depois de Travis e a mãe partirem Kim explodiu. A
família tinha acabado de se sentar para jantar quando Reede, o seu
irmão mais velho, lhe perguntou o que ia fazer com a bicicleta que
Travis deixara ficar.
– Nada – respondeu Kim. – Não posso fazer nada por causa do
cabrão do pai do Travis.
Toda a gente parou boquiaberta.
– O que disseste? – sussurrou Mrs. Aldredge incrédula.
– O ca…
– Eu ouvi-te – interrompeu a mãe. – Não permitirei que uma
criança de oito anos use esse tipo de linguagem na minha casa. Vai
já para o teu quarto!
– Mas, mãe – protestou Kim surpreendida e à beira das lágrimas
–, é o que estás sempre a chamar-lhe.
A mãe não pronunciou nem mais uma palavra. Limitou-se a
apontar com um dedo e Kim levantou-se. Ainda mal fechara a porta
do quarto quando ouviu os pais desatarem a rir à gargalhada.
Kim pegou na fotografia de Travis e fitou-a.
– Se estivesses aqui, ensinava-te um palavrão.
Suspirou e estendeu-se sobre a cama à espera de que o pai
subisse para «conversar» com ela… e levar-lhe às escondidas algo
de comer. Ele era brando e a mãe impunha a disciplina. Kim pensava
que era muito injusto castigarem-na por repetir algo que tinha
ouvido dizer à mãe várias vezes.
– Que cabrões são os pais! – murmurou Kim ao mesmo tempo
que estreitava a fotografia de Travis contra o peito.
Nunca o esqueceria e jamais deixaria de procurá-lo.
UM
Nova Iorque
2011
– Ele não é real – disse Kim em voz alta para si mesma, enquanto
limpava o balcão da cozinha. – Não é real e não vai ficar –
acrescentou para ter a certeza de que ouvia a sua própria voz.
Umas horas antes, Travis e ela tinham saído a correr pelas
traseiras do que viria a ser a Bricolagem Layton para se refugiarem
no bosque.
– Ele vai ver o teu carro – avisou Kim ofegante, enquanto se
apoiava ao tronco de uma árvore e o fitava.
Travis era tão alto e tão viril! Ainda não conseguia acreditar que o
jovem em que tinha pensado ao longo dos anos se convertera
naquele magnífico espécime de virilidade. A camisa colara-se ao
tronco, permitindo adivinhar os músculos. «O que faria para ter uma
musculatura daquelas?», interrogou-se. «Passava seis horas por dia
num ginásio?»
Quando Travis olhou para ela, desviou o rosto. Não queria
observar novamente aquela sua expressão indicativa de que a via
como uma menina.
– Só se sair pelas traseiras! – replicou Travis com um sorriso. –
Espera aí!
Puseram-se à escuta e ouviram o som da relva a ser pisada.
– Vai-se embora! – disse Travis. – Voltamos?
Kim percorreu os olhos pelo bosque. O que lhe apetecia era
caminhar com ele por entre as árvores e…
– Kim?
– Já vou – respondeu e percorreu atrás dele os escassos metros
que os separavam das traseiras do grande edifício de tijolo.
Travis abriu-lhe a porta do carro, antes de se pôr atrás do volante.
– Regressamos pelo mesmo caminho, certo? – perguntou ele.
– Mas agora é a minha vez de conduzir.
Travis soltou uma gargalhada.
– Então é melhor irmos pela estrada principal.
– Cobarde! – acusou-o e riu também.
Travis levou-a de regresso a casa, acompanhou-a até à porta,
destrancou-a, mas não entrou.
– Preciso de ir ver a minha mãe – explicou. – Temos de falar sobre
algumas coisas.
– Claro – anuiu Kim e entrou em casa. Não duvidava de que,
quando voltasse, Travis lhe diria que ia deixar a cidade e que gostara
de voltar a vê-la.
O seu telemóvel tocou assim que fechou a porta.
– Tiveste saudades minhas? – perguntou Dave.
Passara-se tanta coisa no último dia e meio que quase não lhe
reconheceu a voz.
– Claro que sim – afirmou. – E tu?
– Ainda mais quando não respondeste às minhas mensagens.
Kim afastou o telemóvel do ouvido e carregou numa tecla. Tinha
quatro mensagens de voz.
– Desculpa – pediu. – Tenho estado tão ocupada que nem fui ver
a caixa de mensagens.
– Eu sei. Com o casamento dos Johnson, não é?
«Oh, não!», pensou Kim. «As alianças. Por favor, por favor, que
Carla se tenha lembrado de fazê-las», implorou. Encaminhou-se para
a porta da garagem.
– Sim, o casamento – confirmou. Acendeu a luz. Em cima da
bancada de trabalho estavam duas alianças em ouro, com as
intrincadas superfícies polidas na perfeição. – Graças a Deus! –
murmurou entre dentes ao sair do ateliê. – E tu, que contas? Estás
muito ocupado?
– Se tivesses ouvido as minhas mensagens, embora não esteja a
queixar-me, saberias que me encontro atolado de trabalho. Mas
estou a fazer o possível para me escapar no fim de semana.
Apagou a luz e fechou a porta.
– Oh?
– Kim! – exclamou Dave. – Até parece que te esqueceste. O fim
de semana?
– Ah, sim, claro – respondeu. Tinha-se esquecido por completo.
Mas a ideia da viagem não partira de si, mas dos seus amigos e
familiares.
– Fizeste as reservas, não?
Deu uns passos na direção da secretária colocada num canto da
cozinha e examinou a reserva impressa. Um quarto duplo no B&B
Sweet River, em Janes Creek, Maryland, para as noites de sexta,
sábado e domingo no fim de semana seguinte. Carla tinha-lhe dito
que pensava que Dave tencionava pedi-la em casamento enquanto
estivessem lá. Era verdade que praticamente se convidara para a
acompanhar.
«Só o conheço há seis meses», contestara Kim, de cenho franzido.
«Pediu-me para ir comigo porque quer afastar-se uns dias da
empresa de catering.»
«Claro, claro», reagira Carla. «Esqueces-te que conheço a sua
última namorada. Nunca lhe dedicou um fim de semana e estiveram
juntos mais de dois anos.»
Kim dissera que precisava de… Como não lhe ocorrera uma
desculpa, limitara-se a sair da sala.
– Kim? – perguntou Dave. – Continuas aí?
– Sim. Só que um amigo de infância apareceu inesperadamente e
está hospedado na casinha da piscina.
– Deve ter sido uma surpresa muito agradável – reagiu Dave –,
mas, Kim, nada de amigos este fim de semana. Quero-te só para
mim.
– Combinado – anuiu e, depois de mais algumas frases, Dave
disse que tinha de desligar, pois acabavam de fazer uma entrega de
mais de dez quilos de camarão.
Meteu o telemóvel no bolso e pôs-se a limpar a cozinha, sem
deixar de olhar para o relógio. Não fazia sentido que estivesse
nervosa quanto ao tempo que Travis passaria com a mãe, mas assim
era.
Passou uma hora, depois duas. No começo da terceira hora,
convenceu-se de que não voltaria a vê-lo. Quando Travis bateu na
porta de vidro das traseiras, sobressaltou-se e depois presenteou-o
com o seu melhor sorriso.
Travis não parecia estar de bom humor, uma suspeita que se
confirmou quando se sentou num dos bancos do bar e perguntou:
– Tens uísque?
Serviu-lhe um copo de McTarvit, o uísque de malte que tinha
sempre para os primos.
Travis bebeu-o de um trago.
– Queres falar sobre isso? – perguntou em voz baixa. Quando a
fitou, Kim viu a dor refletida nos seus olhos.
– Alguma vez tiveste a sensação de que a coisa que mais temes
na vida está a tornar-se realidade?
Queria responder que temia ser uma empresária cinquentona sem
vida pessoal e, de momento, era esse o caminho que levava.
– Já – respondeu. – É o que pensas que está a acontecer-te?
– É o que parece pensar a minha mãe.
Esperou que adiantasse conversa, mas ele manteve-se em
silêncio. Quando eram pequenos, Travis dizia sempre o mínimo
possível e era a Kim que coubera arrancar-lhe informação.
– Então o que estás a planear fazer amanhã?
Travis fitou-a por um momento e sorriu.
– Não o que gostaria de fazer, mas estou aberto a sugestões.
– O que significa isso de não poderes fazer o que gostarias?
– Nada – respondeu. – O que vais fazer amanhã?
Kim sentiu-se aliviada da pressão no peito. Até esse momento
tinha receado que, depois de ter falado com a mãe, Travis
anunciasse que se ia embora.
– Trabalhar – disse. – A minha rotina diária. És tu o único com
planos em aberto. A tua mãe disse-te que deixasses a cidade?
– Bem pelo contrário. Há alguma coisa que se coma? Estou com
as reservas em baixo depois da conversa materna.
Kim sentira-se tão preocupada com a possibilidade de Travis se ir
embora que nem reparara que ele tinha a camisa rasgada e suja e
uma folha no cabelo. Exatamente como quando eram pequenos.
– O que andaste a fazer? – perguntou enquanto abria o frigorífico.
– Um pouco de escalada. Têm um belo penhasco em Stirling
Point.
– E como te sujaste tanto a subir esse trilho?
– Não subi pelo trilho – respondeu, dirigindo-se ao armário de
onde tirou dois pratos.
Kim deteve-se com uma tigela nas mãos.
– Mas é uma parede vertical.
Travis encolheu os ombros.
Kim não achou graça.
– Não tinhas cordas e estavas sozinho. Foi arriscado. Não voltes a
fazê-lo – disse num tom firme.
– Ou desmembras-me? – replicou e algo na palavra levou-o a
fazer uma careta. Colocou salada de batata nos pratos. – Então e o
que fizeste na minha ausência?
– Tentei moldar cera em forma de luar
Travis brindou-a com um olhar curioso.
– O que significa isso?
– Ontem à noite, no casamento, o luar pareceu-me tão belo que
me interroguei se poderia transformá-lo numa joia.
– O que tem isso a ver com a cera? – perguntou, enquanto
começava a comer.
Kim sentou-se ao lado dele e pegou no prato que ele lhe tinha
servido. Ocorreu-lhe que a sala fora preparada por Dave e que tinha
de falar dele a Travis, mas não o fez.
– Fabrico joalharia industrial, soldando em pequena escala ou
mediante o processo de cera perdida.
– Cera perdida? Lembro-me de ter visto qualquer coisa na
televisão. Era um método misterioso que foi desaparecendo ao longo
dos anos.
Kim soltou um suspiro desdenhoso.
– Idiotas! Chama-se «cera perdida» não por o processo se ter
perdido, mas porque a cera se funde e escorre para fora. A cera
perde-se durante o processo.
– Tens de mostrar-me. Talvez pudesses…
– Travis! – exclamou Kim. – Quero saber o que se passa. Disseste
que necessitavas da minha ajuda e não me parece que seja dar-te
um curso sobre joalharia.
Ele hesitou antes de dizer:
– Tenho três semanas.
– Três semanas até o quê?
– Até ter de enfrentar o meu pai com a notícia de que a mulher
quer o divórcio.
– O que acontecerá depois?
– Batalha em tribunal – esclareceu. – O meu pai vai lutar e lutarei
contra ele. Será uma guerra.
– Mas, quando terminar, ficarás livre? – quis saber.
– Sim – respondeu. – Não sei o que essa liberdade significará,
mas deixarei de ter obrigações em relação a qualquer dos meus
pais. Exceto por motivos éticos e morais, por afeto e…
– Mas que planos tens agora? Para estas três semanas? –
interrompeu-o Kim.
– Talvez capture um pouco de luar para que possas colocá-lo em
cera e perdê-lo.
Kim sorriu.
– Seria ótimo. Necessito de ideias novas. As formas orgânicas
sempre me inspiraram e pode dizer-se que esgotei todas as que
conheço.
– Que me dizes das flores que costumavas atar?
– Crescem do trevo e são consideradas ervas daninhas.
– Agradavam-me – confessou ele baixinho e por um segundo os
olhares cruzaram-se. Mas depois Travis virou as costas, agarrou nos
pratos vazios e colocou-os na máquina de lavar louça.
– Se vais ficar aqui durante três semanas, teremos de dizer às
pessoas quem és.
– Às pessoas? – surpreendeu-se. – A quem te referes?
– Travis, estamos numa cidade pequena. Tenho a certeza que
toda a gente fala que a Kim engatou um moreno desconhecido e o
levou para casa.
– A tua mãe já te ligou? – perguntou com um sorriso.
– Da última vez que soube dela estava na Nova Zelândia,
portanto, as novidades demoraram, espero, mais vinte e quatro
horas a chegar. Mas está cá o meu irmão, bem como o meu primo
Colin.
– O médico da cidade e o xerife. És uma mulher jovem e bem
relacionada.
– O que vais dizer-lhes? Que Lucy Cooper é tua mãe?
– Pediu-me uma semana para contar a Layton que é casada e que
tem um filho.
– Se lhe disser dessa maneira, ele pensará que tem um filho de
nove anos.
– Quantos anos julga a tua mãe que tens? – perguntou Travis.
– Cinco – respondeu Kim e riram os dois. – O que te parece se
contarmos a verdade, mas deixarmos de lado que a senhora que
costura, Lucy Cooper, é Mistress Merritt? Visitaste este local em
criança, conhecemo-nos, cresceste e agora voltaste a Edilean para
passar três semanas de férias.
Os olhos de Travis iluminaram-se.
– Se conseguir que a minha mãe adie o momento de contar a
verdade a Layton, podia conhecê-lo antes de ela lhe dizer quem sou.
– Creio que temos um plano – disse Kim e trocaram sorrisos.
QUATRO
Joe Layton destrancou a porta do seu escritório e fez uma careta ao
deparar com os papéis que se amontoavam na sua secretária. Voltou
a interrogar-se sobre que diabo lhe passara pela cabeça para
recomeçar na sua idade. Assaltou-o o velho ressentimento. Sempre
pensara que passaria a vida em Nova Jérsia a gerir a loja de
ferragens que o avô tinha fundado. Nunca considerara o negócio
como demasiado ambicioso nem tão-pouco havia imaginado que
alguém pudesse cobiçá-lo. Mas, depois de o seu filho Joey se casar e
ter filhos, a sua mulher encarara a Bricolagem Layton como uma
mina de ouro, deixando bem claro que estaria disposta a matar para
a conseguir.
Se ela não a ambicionasse para bem dos seus netos, Joe enfrentá-
la-ia com todas as suas forças. Mas nem sequer o tentou. Na
verdade, agradava-lhe que a nora demonstrasse essa ambição para
garantir o futuro dos filhos.
Quando a sua filha, Jecca, decidiu casar-se com um homem que
vivia na cidadezinha de Edilean, Virgínia, Joe encarou a situação
como uma forma de se livrar de toda aquela trapalhada. Na altura,
parecia simples. Tinha certificados de aforro no banco e pensou usá-
los para abrir uma loja em Virgínia. Sheila, a sua nora, reclamara aos
gritos que Joe «não tinha o direito» de levar o que ganhara ao longo
dos anos e que deveria «deixá-lo» para eles. Afirmara-o como se a
morte de Joe estivesse iminente. Foi a gota de água que serviu para
terminar com a generosidade de Joe. Sabia que a nora queria
comprar uma dessas mansões em algo chamado um «condomínio
fechado».
«Um condomínio fechado?», repetira com um esgar ao ouvir o
termo pela primeira vez.
«Isso mesmo!», vincara Sheila com a sua habitual hostilidade. A
menos que estivesse a tentar vender alguma coisa a alguém,
deixava claro que estava pronta para lutar. «Com um segurança na
entrada. Como proteção.»
«Contra quê?», perguntara Joe no mesmo tom. «Dos fotógrafos
que te perseguem? Querem uma foto da nora de Joe Layton?»
Sempre que Sheila e o pai se embrenhavam numa discussão, Joey
deixava-os sós. Negava-se a que o arrastassem para a troca de
argumentos. Mas Joe sabia que o filho queria montar o seu próprio
negócio. Às vezes, Joe interrogava-se se o filho tinha casado com
Sheila por saber que ela faria frente ao pai. Ia mesmo ao ponto de
pensar que talvez o filho tivesse instigado a mulher para se apoderar
da loja. Deus sabia que Sheila carecia de inteligência bastante para
planear qual era a melhor maneira de levar o sogro a deixar-lhes o
negócio.
Uma tarde, quando Sheila o martirizava com a ideia de vender
umas malditas cortinas na sua loja de ferragens, recebeu um SMS de
um homem que desconhecia por completo. O indivíduo garantia
estar apaixonado por Jecca e afirmava que queria casar com ela,
pelo que lhe perguntava a forma de a conquistar.
O amor era a última coisa que ocupava a mente de Joe. Entre os
gritos de Sheila, o amuo de Joey, que os tinha deixado sozinhos, e
inteirar-se por aquele meio de que um indivíduo qualquer queria
casar com a filha, os nervos de Joe cederam. Levado por um impulso
– o que era impensável nele –, respondeu ao homem e perguntou-
lhe se na sua cidade havia uma loja de ferragens. Se a sua preciosa
e querida filha tencionava mudar-se para essa localidade, iria
também. Preparava-se para carregar na tecla de «enviar» quando
acrescentou que queria mais fotografias dessa bonita mulher, Lucy
Cooper, de quem Jecca lhe mandara algumas, e de quem falava
maravilhas.
Na altura, Joe só pensava que essa mulher se convertera na mãe
que Jecca nunca tinha tido. A mulher de Joe, o amor da sua vida,
tinha morrido quando Jecca era praticamente um bebé. Depois
estivera demasiado ocupado a ganhar a vida e a criar dois filhos
para pensar em procurar outra companhia. Havia saído
ocasionalmente com algumas mulheres, inclusive tivera uma relação
séria, mas encontrava sempre um defeito em todas elas. Jecca dizia
que ele procurava um clone da mãe, não uma pessoa real, e Joe
sabia que a filha tinha razão.
Na verdade, Jecca tinha quase sempre razão. Era o que Joe
pensava, mas preferia morrer a dizer-lho.
Quando descobriu que a filha ia casar-se com um médico, ficou
com a certeza de que ela ia cometer um grande erro. Jecca tinha
nascido no seio de uma família de gente trabalhadora. Como iria
lidar com um médico pretensioso? Mas o Dr. Tris – como era
conhecido – revelara ser um indivíduo às direitas. Estava louco por
Jecca e renunciou a uma infinidade de coisas para estar com ela.
Graças a Tristan, Joe ia conseguir abrir a sua loja de bricolagem
em Edilean. Tris deu-lhe praticamente o velho edifício. O facto de
necessitar de uma remodelação total era o menos.
Ao longo dos anos, Joe tinha ajudado muitas pessoas em Nova
Jérsia. Quando estavam desempregadas, arranjava-lhes emprego.
Quando precisavam de ferramentas para qualquer trabalho,
concedia-lhes crédito. Se não lhe pagavam, Joe alargava os prazos o
tempo que fosse necessário.
Toda essa gente compensava-o com lealdade, indo à loja dele em
vez de comprarem nas grandes superfícies, mas mesmo assim o
negócio de Joe estava a ressentir-se. Embora preferisse morrer a ter
de admiti-lo, a ideia de Sheila de abrir uma loja de decoração podia
ter sido uma boa solução.
Também seria incapaz de admitir que tinha menos dinheiro do que
apregoava. Não chegava a mentir, mas manipulava os números.
Jecca e ele tiveram uma das suas habituais discussões quando Joe
a informou de que pensava contratar os serviços de uns pedreiros de
Nova Jérsia para realizarem as remodelações do edifício. Afirmou
que o fazia porque confiava neles. Mas, na verdade, pretendia
cobrar uma série de favores. Recorreu a homens com quem não
falava há dez anos. Salvo poucas exceções, todos apareceram na
cidadezinha e trabalharam uns dias gratuitamente. Alguns
negociavam há tantos anos com Joe que lhe enviaram os netos – ou
as filhas, o que em nada incomodava Joe. A sua própria filha sempre
trabalhara para ele.
Quase todos trabalharam de graça. Joe pagou a alguns dos mais
jovens, mas os seus velhos amigos recusaram qualquer pagamento.
«Estás a ver essa serra?», perguntou um deles. «Faz dezassete
anos em junho que ma vendeste. Os teus dois filhos repararam-na
tantas vezes que já perdi a conta. Suponho que te devo o dinheiro
que poupei por não ter comprado uma nova de cada vez que esta se
avariava.»
Joe tinha assumido o papel de empreiteiro e limitou-se a
supervisionar os homens que trabalhavam a qualquer hora do dia ou
da noite. Alguns não necessitavam de indicações, mas outros eram
tão inexperientes que teve de ensinar-lhes como se agarrava numa
pistola de pregos.
Só teve de pagar o material. As vigas para o teto e a grua para a
sua instalação quase o depenaram.
Pensou muitas vezes em desistir e voltar a casa para lutar com
Sheila pelo que lhe pertencia. Mas isso significava enfrentar o filho e
os netos. O que podia fazer? Aparecer em Nova Jérsia e destruir o
mostruário de cortinas de Sheila? Tentar que o negócio recuperasse
as mesmas vendas de quando os filhos eram pequenos?
Era uma ideia absurda, mas tê-la-ia levado a cabo se não
houvesse um travão: Lucy.
«Lucy», pensou nesse momento enquanto fixava os documentos
em cima da secretária. Toda a sua vida acabara por girar em torno
dela.
Jecca tinha-a conhecido quando alugara um apartamento em casa
de Mrs. Wingate. As três mulheres começaram a dar-se tão bem que
todos os e-mails que Jecca lhe enviava falavam dessas duas
mulheres. Mais tarde, descobriu que a filha tentava encobrir que
conhecera um homem. Sabia que o pai lhe faria uma infinidade de
perguntas e portanto não o tinha mencionado nas mensagens.
Jecca não sabia que as suas mensagens, e as fotos de Lucy, ou
melhor Lucy, tinham despertado a curiosidade do pai. Lucy Cooper
levara-o a recordar tudo o que não vivera. Agora que tinha perdido o
filho e estava prestes a perder a filha e o seu negócio. Lucy Cooper
preenchia esse vazio.
Quando Joe se deslocou a Edilean para ver o edifício que o Dr. Tris
lhe oferecia, recordou-se de que Miss Cooper não sabia nada a seu
respeito. Não podia cumprimentá-la como se a conhecesse graças às
centenas de fotos que vira dela e de tudo o que incitara Jecca a
contar-lhe. Devia mostrar-se distante e reservado. «Imita James
Bond», disse para si mesmo, «e não faças o papel do indivíduo de
Nova Jérsia tão antiquado que se recusa a usar uma broca elétrica
para fixar pregos.»
Quando Joe apareceu em Edilean, Jecca e Tris tiveram uma
discussão enorme. Ela fugira para Nova Iorque e o Dr. Tris ficara
doido com a ideia de perdê-la.
Joe apercebeu-se imediatamente de que toda a gente simpatizava
com o médico quando o que ele precisava era de «uns bons copos».
Joe encarregou-se disso. Ficou surpreendido com os palavrões que
saíram da boca do indivíduo. Por esse motivo deixou de pensar que
um médico era demasiado afetado para a sua Jecca. Passou uma
longa noite a conviver e a dar-lhe conselhos sobre Jecca.
Tris demorou três dias a superar a ressaca, enquanto Joe se
levantou às nove em ponto da manhã seguinte, e começou a fazer o
que lhe haviam indicado para recuperar Jecca.
Após ter resolvido a situação com Tristan, Joe localizou a loja de
Mrs. Wingate em Edilean e pediu-lhe para alugar um quarto na sua
casa. Tratava-se de uma senhora alta e elegante – de forma alguma
o seu tipo – que o examinou de alto a baixo e declarou que não
tinha vagas.
Quando se apresentou como o pai de Jecca, ela ficou mais calma.
Tinha alguns clientes e ele pediu-lhe se poderia ver a casa. A mulher
hesitou.
– Constou-me que precisa de algumas reparações – disse ele. –
Talvez possa dar-lhes uma vista de olhos.
As palavras convenceram-na e deu-lhe as indicações necessárias.
– Vou telefonar à Lucy e avisá-la da sua chegada – decidiu Mrs.
Wingate, voltando a examiná-lo de alto a baixo.
Joe conhecia bem esse género de olhar. Senhoras como ela não
queriam encontrar-se com um homem como ele sem prévio aviso.
Tinha levado tempo a percorrer de carro a distância que o
separava de Aldredge Road até à grande e antiga casa de Mrs.
Wingate. A ideia de conhecer Lucy aterrava-o. Tinha o
pressentimento de que gostaria dela. Mas se tivesse interpretado
erradamente o que ouvira a seu respeito e fosse tão arrogante como
Mrs. Wingate? A mulher tinha-o olhado como se ele fosse um
comerciante que se enganara na porta de entrada. Caso Lucy o
olhasse da mesma forma…
– Irei para um motel – decidiu.
A casa era grande, tal como Jecca indicara, e estava rodeada de
um belo jardim. O edifício precisava de algumas reparações, mas
nada de importante.
Tirou a velha mala de viagem da carrinha, respirou fundo e
dirigiu-se à casa. O interior era tão feminino que teve a sensação de
estar a entrar num harém – e de certeza que não era o sheik.
Deteve-se um instante ao fundo das escadas e aguçou o ouvido.
Tal como Jecca o informara, ouviu o barulho de uma máquina de
costura. Era um som maravilhoso para um homem que passara a
vida entre ferramentas.
Subiu a escada lentamente e, quando chegou ao cimo, deparou
com uma mulher muito bonita com os braços cheios do que parecia
roupa para bebé. O embate foi forte e se não a tivesse agarrado por
um braço, ela teria caído e aterrado no chão. Agradou-lhe ter
comprovado que era forte, tinha bons reflexos e uma grande
flexibilidade. Levantou-se tão rapidamente que, de repente, Joe a
sentiu encostada ao seu peito.
O tempo pareceu parar um momento. Olharam-se e souberam.
Simplesmente souberam.
– Suponho que sejas o Joe e preciso de ajuda – disse Lucy ao
afastar-se dele. – A máquina não funciona, uma das pernas da mesa
abana e preciso de ajuda para a cortar. Deixa a mala aí e segue-me.
Dobrou-se para apanhar os vestidinhos brancos e Joe admirou-lhe
a figura firme e esbelta. Parou junto à ombreira.
– Vamos. Não temos o dia todo – disse e desapareceu na sala.
Joe deteve-se um instante, assaltado pelo pensamento repentino
de que ele e o filho talvez fossem mais parecidos do que julgava.
– Adoro mulheres mandonas – disse em voz alta e depois seguiu
Lucy até à sala de costura.
CINCO
Kim estava na sua loja a mostrar a um jovem casal de recém-
casados alguns anéis que desenhara na estação anterior. Só ficariam
na cidadezinha um dia e não paravam de dizer como Edilean era
«típica.» A palavra arrancava sempre um sorriso a Kim. A mulher do
primo, Tess, opinava que deviam colocar uma tabuleta na rua
principal a dizer: NÃO SOMOS TÍPICOS.
Kim tentou concentrar-se novamente no casal, embora estivesse
convencida de que iam comprar-lhe uma peça de baixo custo.
– De qual gosta mais? – perguntou a jovem mulher a Kim,
enquanto olhava para o expositor com seis anéis.
Kim queria dizer-lhe a verdade, que gostava de todos, pois
desenhara tudo o que havia na loja.
– Tudo depende do seu gosto, mas creio que…
Alguém abriu a porta e ouviu Carla a respirar fundo. Era o som de
«homem à vista» para a sua assistente que estava sempre atenta.
Kim ergueu os olhos e avistou Travis na ombreira da porta. Vestira
uma camisa verde-floresta e calças de ganga; o cabelo e os olhos
negros emprestavam-lhe o ar mais viril do mundo. Era como se
irradiasse masculinidade, como se uma aura especial o rodeasse.
– Estou apaixonada – murmurou Carla entre dentes e aproximou-
se de Kim. Dado que Travis só tinha olhos para Kim, Carla
acrescentou: – Por favor, diz-me que é teu parente e que está livre
para o resto das mulheres.
Em vez de responder-lhe, Kim voltou a concentrar-se no casal,
mas a rapariga não tirava os olhos de Travis e o marido franziu o
sobrolho. «Adeus clientes», pensou Kim.
Travis avançou e parou junto da jovem mulher. Quando ela lhe
sorriu, ele correspondeu.
– Acho que devemos ir embora – disse o marido, mas ela não fez
caso.
– Vejo-a com a água-marinha – observou Travis num tom de voz
que Kim nunca lhe tinha ouvido. Era rouca, suave, aveludada.
– A sério? – replicou a jovem mulher que subitamente parecia
uma adolescente.
– Com esses olhos que outra cor poderia usar?
A jovem mulher não era especialmente bonita e os olhos eram de
um castanho muito vulgar. Por outro lado, o anel que Travis indicava
com a cabeça era uma das peças mais caras da joalharia.
– Nunca pensaria em usar água-marinha. – Virou-se para o
marido com um bater de pestanas coquete. – O que te parece,
querido?
Antes que o marido pudesse responder, Travis inclinou-se sobre o
expositor de modo a que o tronco ficasse na frente da jovem mulher.
– Mas, se quiser algo mais barato, esses anéis de âmbar ficariam
bem. Não brilham da mesma forma, mas pesam menos no cartão de
crédito.
Ela não desviava os olhos do pescoço de Travis, onde o cabelo se
enrolava junto à pele bronzeada. Parecia estar hipnotizada. Quando
ergueu a mão, como se fosse tocar-lhe no cabelo, o marido colocou-
se diante dela. Travis recuou um passo.
– Vamos levar esse anel e os brincos também – decidiu o marido,
apontando para as águas-marinhas.
– Boa escolha – aprovou Travis e virou-se para Kim com um
sorriso.
Uma parte dela queria agradecer, mas outra parte, muito maior,
desaprovava o que ele acabara de fazer.
– Estás pronta para almoçar? – perguntou a Kim.
Ela fez um sinal de cabeça a Carla para que se encarregasse do
talão de venda e dirigiu-se ao balcão mais afastado, seguida de
Travis.
– Às dez da manhã não são horas de comer – respondeu num tom
cortante.
– Estás zangada comigo?
– Claro que não! – ripostou, ao mesmo tempo que tirava para fora
uma bandeja com pulseiras e começava a organizá-las.
Travis pegou numa delas e examinou-a à luz.
– É bonita.
A pulseira era a mais pequena de todas, mas a mais elaborada, e
as pedras de melhor qualidade que as outras. Era também a peça
mais cara que tinha à venda.
– Parece que aprendeste alguma coisa sobre joalharia.
– Tenho muita experiência – admitiu, inclinando-se sobre ela. – Há
coisas que quero contar-te e portanto vamos dar um passeio e
almoçar.
– Dirijo um negócio, Travis. Não posso entrar e sair quando e
como me apetece.
Travis fitou Carla que ainda não tinha tirado os olhos dele e
brindou-a com um sorriso.
– Ela parece à altura de se ocupar de tudo.
Kim baixou a voz.
– Deixa de namoriscar com as mulheres da minha loja.
– Então vem sair comigo.
– Onde foste esta manhã?
Travis fez uma expressão séria.
– Levantei-me às cinco e fui correr um pouco pela floresta.
Quando regressei, já tinhas saído. É simpática essa tua preocupação.
– Não estou preocupada – garantiu-lhe ao mesmo tempo que
fechava o expositor. Travis sorria-lhe. – Pronto! Estava preocupada.
Com a tua maneira de conduzires, podias ter-te despenhado de uma
montanha e ninguém saberia onde estavas.
– Desculpa – pediu com um ar constrangido. – Não estou
habituado a dizer a ninguém onde vou nem quando regressarei. –
Hesitou. – Também não estou habituado a que alguém se importe.
Agora, podes vir comigo? Por favor?
Os olhos escuros imploravam e seduziam mesmo. Kim cedeu.
Aproximou-se de Carla e perguntou-lhe se podia tomar conta da loja
durante um bocado.
Carla baixou-se atrás de um balcão e fez um gesto a Kim para que
a imitasse.
– Quem é ele? Onde o conheceste? É ele a emergência que tiveste
no domingo? O Dave está a par?
Kim endireitou-se.
– Ele sabe da existência de Dave? – inquiriu Carla sem se erguer.
Kim revirou os olhos, agarrou na mala e saiu da loja com Travis.
Diante deles estendia-se a cidade de Edilean, o que se resumia a
duas praças, uma delas com um carvalho gigantesco no meio.
– Vamos sentar-nos ali? – sugeriu Travis, indicando com um aceno
de cabeça os bancos por baixo da árvore. Deixara de lado a atitude
de conquistador e voltara a ser o Travis que ela conhecia.
Não havia muito tráfego na cidadezinha quando atravessaram a
rua. Educadamente, Travis aguardou que ela se sentasse antes de se
sentar ao seu lado.
– A tua loja é bonita. Talvez um dia destes, quando não houver
clientes, possas mostrar-ma.
– Irias apreciá-la sem clientes?
– Prometo que não voltarei a namoriscar com nenhuma mulher na
tua loja. Embora o casal tenha comprado umas peças bonitas. Gosto
muito mais das tuas joias do que algumas que vi em joalharias de
Nova Iorque.
Kim sabia que estava a lisonjeá-la, mas parecia tão preocupado
com a hipótese de não ser perdoado que ela fê-lo. Sorriu-lhe.
– Então, o que querias dizer-me? – Ao ver que ele não lhe
respondia, acrescentou: – Que tal correu a conversa com a tua mãe
ontem à noite?
Durante um segundo, Travis olhou em frente sem responder e Kim
ficou com a sensação de que algo o preocupava.
– Lembras-te de te ter dito que podia encarar a situação de duas
formas distintas: ficar feliz ou irritada?
– Sei que disseste que as mulheres são imprevisíveis.
– E prometeste-me os DVDs de A Guerra das Estrelas.
– Os de O Caminho das Estrelas que não é o mesmo. Como reagiu
a tua mãe?
– Irritou-se.
Kim fitou-o com uma expressão compreensiva e concluiu que a
mãe lhe dissera algo mais do que não se metesse nos seus
assuntos.
– Foi assim tão mau?
Travis ficou uns instantes em silêncio.
– O meu pai passa o tempo a gritar. Tem um feitio dos diabos e
serve-se dele para assustar as pessoas.
– Tens medo dele?
– Nem pensar – replicou Travis com um leve sorriso. – Na
verdade, até gosto de fazer coisas que o irritem.
– Mas se ele te despedisse…
Travis soltou uma gargalhada.
– Pensas que não desejo que o faça? Ele sabe isso perfeitamente.
De qualquer maneira, o meu pai diz-me coisas que deviam humilhar-
me e rio-me na cara dele. Mas a minha mãe que é muito frágil… –
Acenou com a mão.
– Entendo-te – disse Kim. – A minha mãe grita comigo até ficar
vermelha de raiva, mas não lhe dou atenção. Mas uma vez, quando
andava no secundário, o meu pai disse-me: «Estou desiludido
contigo, Kim.» Fiquei tão perturbada que a minha mãe o obrigou a
pedir-me desculpa.
Travis fitou-a e abanou a cabeça.
– A tua família parece muito normal. Não imagino a minha mãe a
«obrigar» o meu pai a fazer o que quer que fosse. Ela desmorona-se
na frente dele.
Kim era de opinião que Lucy devia ter enfrentado o marido
quando Travis era pequeno, mas não considerou que aquele fosse o
momento indicado para o dizer.
– Se a tua mãe pensa que não deves meter-te nos assuntos dela,
porque te ligou a dizer que queria divorciar-se?
– Perguntei-lhe isso mesmo. Infelizmente, foi depois de ter feito
alguns comentários desagradáveis sobre o homem com quem
pretende casar-se.
– Não acredito!
– Mas foi o que aconteceu. Depois de ter visto todo o
equipamento que comprou para essa loja nova e o tamanho desse
homem, tirei algumas conclusões precipitadas. Talvez tivesse
exagerado um pouco nas minhas opiniões.
– Disse-te que Joe Layton é um bom homem.
Travis agarrou-lhe no braço e beijou-lhe as costas da mão.
– É verdade. Oxalá te tivesse dado ouvidos.
Kim fitou-o de olhos arregalados. Travis não lhe soltou a mão e
começou a massajá-la, com uma expressão distante. Não parecia
concentrado no que estava a fazer.
– O que te disse ela exatamente?
– Disse-me que não me metesse, que arranjaria um advogado e
enfrentaria o meu pai sozinha. – Respirou fundo. – Acrescentou que
podia deixar de trabalhar para ele, porque já não necessitava da
minha proteção.
– Oh! – exclamou Kim, fitando-o de perfil. Travis tinha o sobrolho
franzido. – Vais fazê-lo?
– Claro que não! – reagiu, voltando a pôr-lhe a mão no colo.
Diante deles estava uma mãe com dois filhos pequenos, um
menino e uma menina, provavelmente gémeos. Kim não conhecia a
família. As crianças seguravam balões presos em fios e olhavam-nos
fascinados.
Ao ver que Travis não adiantava nada mais, olhou-o.
– Tens algum plano?
– De momento, nenhum.
Um grito agudo levou Kim a olhar para as crianças. O balão do
menino tinha-lhe escapado da mão e flutuava por entre os ramos da
árvore.
Segundos depois, Travis levantou-se e ergueu os olhos para a
árvore, como se estivesse a examiná-la. Para surpresa de Kim,
agarrou num ramo e içou-se. De pé num dos ramos, olhou para
baixo.
– Falei com a minha mãe esta manhã e disse-lhe que queria
conhecer esse indivíduo e ela deu-me uma semana antes de… –
Caminhou sobre o ramo e depois tomou balanço para subir para
outro mais alto – … antes de lhe dizer que estou aqui – concluiu.
Nessa altura, o menino tinha deixado de gritar e observava o
homem em cima da árvore, tal como o faziam alguns adolescentes.
Kim estava sem palavras e levantou-se.
– Pensas que consegues arranjar-me um encontro com Mister… –
Travis deteve-se e fitou as pessoas que a rodeavam. Não queria
dizer o nome dele em público. – Com ele? – Tinha subido bastante e
nesse momento arrastou-se ao longo de um ramo que não parecia
com largura suficiente para lhe aguentar o peso.
Kim susteve a respiração e assentiu com a cabeça como resposta
à pergunta.
– Tenho de decidir sobre… – Travis continuou a avançar pelo ramo
de aspeto bastante frágil, mantendo o braço estendido para o balão
amarelo.
Kim levou a mão à boca e mordeu os nós dos dedos.
– Quem é esse, pode saber-se? – perguntou-lhe uma voz ao
ouvido.
Ao virar-se, deparou com o tronco largo e robusto do seu primo
Colin, o xerife de Edilean.
Kim fixou novamente o olhar em Travis. Era incapaz de articular
palavra.
Colin manteve-se junto dela, observando como Travis continuou a
avançar até alcançar o fio do balão e agarrá-lo.
– As férias. – Travis baixou de novo os olhos para Kim. – Bom dia,
xerife – saudou, precisamente antes de o ramo se quebrar.
Uma menina gritou e todos contiveram a respiração.
Enquanto caía, Travis agarrou um ramo com a mão direita e
segurou o balão com a esquerda. Enrolou o fio à volta dos dedos e
passou as pernas sobre o ramo. Içou-se, cavalgou o ramo, pôs-se de
pé, caminhou de volta até ao tronco da árvore e desceu.
Aterrou com os dois pés no solo, avançou até junto do menino
para lhe devolver o balão e sacudiu o pó da roupa enquanto
regressava para junto de Kim.
– O que achas?
Kim limitou-se a fitá-lo boquiaberta.
– Está a perguntar-te a tua opinião sobre o que deveria fazer
durante as férias em Edilean – comentou Colin, parecendo muito
divertido com o que acabava de presenciar.
– Travis! – conseguiu exclamar Kim.
Colin riu-se.
– Muito bem – disse ele, dirigindo-se a Travis. Ao ver que Kim se
preparava para falar, interrompeu-a. – Costuma fazer esse género de
coisas frequentemente?
– Costumava – admitiu Travis. – Trabalhei como duplo em Los
Angeles durante alguns anos.
Colin examinou-o de alto a baixo.
– Ainda se mantém em forma?
– Tento. Em que está a pensar?
– Às vezes os turistas ficam presos na reserva e temos de resgatá-
los. Estou mais próximo e costumo ser o primeiro a chegar. Às vezes
necessito de ajuda.
Travis sorriu ao lembrar-se que Kim se tinha referido àquele
homem e ao seu irmão como super-heróis que resgatavam pessoas.
Travis nem de longe tencionava recusar a oportunidade de ajudar… e
talvez de impressionar Kim.
– Tem o telemóvel à mão? Vou dar-lhe o meu número.
Colin entregou-lhe o telemóvel. Travis deu um toque para o dele e
colocou o nome junto ao número, antes de lho devolver.
– A qualquer hora do dia ou da noite estarei disponível para
ajudar. Tenho experiência com cordas e escalada, mas nunca
resgatei ninguém. Pelo menos, a sério.
Colin sorriu.
– Bem-vindo a Edilean. – Olhou para Kim. – Fico feliz por ver que
desta vez arranjaste alguém útil – murmurou e pôs-se a caminho do
seu gabinete.
– Dá saudades à Gemma da minha parte – gritou Kim, antes de
fitar novamente Travis.
– Tenho três semanas de férias. – Ainda parecia estar a aguardar
uma resposta.
– O meu filho quer agradecer-lhe – interrompeu nesse momento a
mãe do menino e Travis ajoelhou-se ao pé dele.
– Obrigado – disse o menino e abraçou Travis. A menina, para não
ficar de lado, abraçou-o também.
A mãe sorriu a Travis e fitou-o um pouco mais demoradamente do
que seria normal.
– Talvez possamos convidá-lo para jantar uma destas noites.
Os olhos escuros de Travis adquiriram uma vez mais aquele brilho
sedutor.
– Isso seria…
– Ele está ocupado – interferiu Kim, despachando a mulher com o
olhar.
Sem deixar de sorrir, ela agarrou nos filhos e afastou-se.
– Consegues um encontro? – insistiu.
– O que acabas de fazer é muito perigoso, Travis – censurou Kim.
– Podias ter-te magoado com gravidade. Podias…
Travis inclinou-se e beijou-a na face.
– Descobri que gosto que alguém se preocupe comigo.
– Isso significa que vais fazer mais idiotices como essa? Não faz
sentido arriscares a vida por um balão.
– A minha vida não correu qualquer perigo e o balão não me
interessava minimamente. Foi o olhar do menino que fez com que
tudo valesse a pena.
Kim não tinha resposta já que a razão estava do lado dele.
– Bem e o que me dizes do encontro com o homem com quem a
minha mãe quer casar-se?
– Estamos em Edilean. Não precisas de marcar encontro. Mister
Layton está provavelmente na sua loja agora. Podemos ir até lá para
falares com ele.
– Que desculpa lhe daremos?
– Dizemos que passámos para o cumprimentar – respondeu Kim,
frustrada e um pouco aborrecida com tanta formalidade… e pela
maneira como ele tinha namoriscado com a bonita e jovem mãe dos
miúdos. – Pergunto-lhe como está a Jecca ou algo do género. Era o
que faltava, agora!
– O que se passa? – perguntou ele.
– Vem aí o meu irmão. Aposto que Colin lhe ligou. O bufo! Agora
vais ser espremido até ao infinito. Não será agradável.
Travis não conseguiu reprimir um sorriso ante as suas palavras. Os
advogados mais famosos do mundo tinham-no interrogado, tanto
nos tribunais nacionais como em alguns internacionais. Não tinha a
menor dúvida de que poderia fazer frente ao irmão médico de Kim.
Mas, ao ver o homem que se aproximava deles, Travis
empalideceu. Já tinha visto Reede Aldredge antes e não
propriamente nas melhores circunstâncias.
Travis e o seu mecânico tinham participado numa corrida de
automóveis em Marrocos. Ao fazerem uma curva nos arredores de
uma aldeia remota, apareceu-lhes pela frente um homem que
puxava as rédeas de um burro carregado até acima.
Travis conseguiu não atropelar o homem e virara o volante com
tanta força que o carro descrevera um pião. Fora difícil controlá-lo
para não capotar, mas saíra-se bem.
Por azar, com a iminência do acidente, as caixas que o burro
transportava caíram no chão. Quando Travis conseguiu endireitar
novamente o carro, viu que escorria líquido do interior das caixas e
que o homem os ameaçava com o punho. A sua expressão furiosa
ficara gravada na memória de Travis.
Enquanto se afastavam, disse ao mecânico que ligasse a Penny
para descobrir a identidade do homem e substituir o que se perdera.
Dias mais tarde, Penny tinha mencionado que o homem era um
médico americano e que lhe enviara a reposição da carga. Também
fizera uma doação à clínica. Não indicara a Travis o nome do médico
e ele também não tinha perguntado.
Esse homem, o médico que lhe havia gritado obscenidades em
Marrocos, caminhava agora na sua direção.
– Posso contar-lhe a verdade sobre ti? – sussurrou Kim.
Por um momento, pensou que ela se referia à corrida, mas ela
referia-se à infância deles.
– Claro, mas não lhe digas que Lucy Cooper é minha mãe.
– Nunca me passaria pela cabeça – murmurou enquanto sorria ao
irmão.
– Kimberly – disse Reede num tom bastante ríspido. – Constou-me
que provocaste uma pequena confusão esta manhã.
– O Travis resgatou o balão de um miúdo – explicou, ao mesmo
tempo que olhava para Travis que tapava a cara com uma das mãos.
– Apresento-te a…
– Não me digas que é o Travis – interrompeu-a Reede. – O rapaz
com que criaste fantasias desde criança?
– Reede! – protestou Kim, sentindo-se corar. – Isso é mentira!
– É um prazer conhecer-te finalmente! – exclamou Reede,
estendendo-lhe a mão.
Travis apertou-a, mas conservou a mão esquerda a tapar-lhe os
olhos.
– Já te vi em qualquer lado! – referiu Reede. – Viajei muito. Por
acaso não foste meu doente?
– Não – respondeu Travis, virando a cara.
Kim observava o irmão e Travis. Reede observava-o de olhos
semicerrados, como se procurasse lembrar-se de onde o conhecia.
Travis portava-se como um animal encurralado que quisesse
desesperadamente esconder-se na toca.
– Temos de ir – disse ela. – Travis quer falar com Mister Layton
sobre a possibilidade de abrir uma loja de desporto.
– Faz falta por aqui – concordou Reede. – O que pensas vender?
– Artigos de desporto – apressou-se Kim a responder, desejosa de
afastar o irmão o mais rapidamente possível. – Aquela não é uma
das tuas enfermeiras a acenar-te?
– Sim – anuiu Reede. – Deixei duas salas de observação e a sala
de espera a abarrotar. Podemos jantar juntos. – Começou a andar,
mas virou-se para Travis. – Estou ansioso por saber o que tens
andado a fazer desde que estiveste em Edilean pela primeira vez.
Mal ficaram sozinhos, Kim perguntou a Travis:
– O que vem a ser isto?
– Bom… Creio que já encontrei o teu irmão antes.
Ao ver que ele não parecia disposto a acrescentar mais nada, Kim
deu meia volta e começou a dirigir-se para a joalharia.
Travis alcançou-a.
– Onde vais?
– Se não pensas ser sincero comigo, é melhor voltar ao trabalho.
Neste momento, estou ocupada a desenhar um novo colar. Tinha
planeado usar opalas australianas, mas talvez opte por águas-
marinhas já que ficam tão bem com olhos castanhos.
– Pronto! – disse ele. – Que tal se fôssemos conversar para
qualquer sítio tranquilo? Talvez possas ajudar-me a decidir o que
fazer com a minha mãe.
Uma hora depois estavam sentados a uma mesa de piquenique na
reserva. Tinham passado pelo supermercado e comprado sandes,
saladas e bebidas, mas ainda era muito cedo para comerem.
– Isto é lindo – apreciou Travis, olhando para o lago. – Vives num
sítio maravilhoso.
– Eu gosto – concordou Kim.
Reinava tanta tranquilidade que quase não se lembrava do que a
irritara. Era algo sobre Reede. Mas, nos últimos tempos, tudo o que
se relacionava com o irmão parecia irritá-la. Reede não queria ser
médico na sua cidadezinha natal, queixava-se frequentemente… e
ela estava cansada de o ouvir.
– Na realidade, nunca me apresentaram ao teu irmão, mas quase
o matei – confessou Travis que em seguida lhe resumiu a história,
sem esquecer que havia reposto o carregamento de Reede.
– Reede nunca mencionou o incidente nas suas cartas – comentou
Kim. Imaginava como o irmão devia ter ficado furioso. – Reede acha
que toda a gente devia esquecer-se de frivolidades como corridas de
automóveis e dedicar-se a boas causas.
Travis estava a observá-la.
– Não sabe como divertir-se, certo? – perguntou em voz baixa.
– Riscos de se tornar adulto – respondeu. – O que tens feito
desde que nos conhecemos, quando éramos pequenos?
– Viver segundo o que me ensinaste – esclareceu com um sorriso.
Kim não correspondeu. Começava a reparar que ele se escapava
às suas perguntas, que respondia com evasivas. Nesse dia sentiu
que algo o incomodava. Embora se tivesse mostrado bastante
superficial sobre o que se passara entre ele e a mãe, começava a
pensar que lhe tinha ocultado muita coisa.
– Fala-me mais sobre a conversa com a tua mãe. O que te disse
ela exatamente?
Travis desviou a cara, mas Kim ainda conseguiu detetar o cenho
franzido. Parecia que as palavras trocadas entre mãe e filho eram
demasiado agrestes para que as mencionasse.
Quando voltou a olhá-la, estava a sorrir.
– Garantiu-me que Joe Layton era um bom homem e que a ama.
Não sabe que a minha mãe tem dinheiro e ela desconhece como
conseguiu financiar a remodelação desse velho edifício.
Kim tinha quase a certeza de que ele estava a esconder-lhe
alguma coisa e também sabia que não lhe diria do que se tratava.
«Muito bem», pensou. «Se ele pode guardar segredos, também
estou no meu direito.»
– Quando queres ir visitar Mister Layton?
Travis percebeu que Kim decidira fechar-se em copas e conhecia o
motivo. Para ser sincero, gostaria de contar-lhe a conversa que
tivera com a mãe, mas não podia dado que a pior parte fora
exatamente sobre ela.
Na noite anterior, tinha-se encontrado com a mãe no jardim da
casa de Mrs. Wingate e, depois de uns minutos de abraços e
lágrimas de alegria pelo reencontro, Travis iniciara a averiguação
sobre Joe Layton. Mas assim que abriu a boca, a mãe mostrara-se
diferente do que se recordava dela. Deixara de ser a mulher
acobardada e reservada com que tinha crescido. Agradeceu a Travis
por vir em seu auxílio, mas deixara bem claro que se tratava de uma
batalha que tinha de levar a cabo sozinha.
Travis servira-se do seu melhor tom de advogado para a fazer ver
que estava enganada. Pensava que tinha esclarecido bem a sua
postura até a mãe lhe dizer que ele falava como o pai. O comentário
apanhara-o tão desprevenido que se afundou na cadeira e a fitou
surpreendido.
Foi então que a mãe lhe perguntou o que estava a fazer com Kim
e porque não lhe contara toda a verdade sobre o seu pai.
«Kim sabe o teu apelido?»
A pergunta fez com que passassem a desempenhar os papéis
habituais de mãe e filho.
– É que…gostaria que uma mulher se preocupasse comigo, sem
se deixar deslumbrar pelo apelido Maxwell – explicou Travis. – Sabes
uma coisa, mãe? Gostaria de saber se sou capaz de viver como uma
pessoa normal. A minha infância isolada não me preparou
exatamente para levar uma vida normal como adulto.
Lucy fez uma careta, mas Travis continuou:
– Desde então, as mulheres…
– Por favor, poupa-me a pormenores.
– Não era essa a minha intenção – garantiu. – Só que não se me
apresentou a oportunidade de… enfim, conhecer o amor.
– Então, se fizesses com que a Kim se apaixonasse por ti? –
perguntou Lucy. – O que aconteceria?
– E se me apaixonar por ela? – Estava a brincar, tentando
desanuviar o ambiente.
Porém, Lucy falava a sério.
– Travis, estás apaixonado por essa rapariga desde os teus doze
anos. O que quero saber é o que acontecerá se ela se apaixonar por
ti. Vais olhá-la nos olhos e dizer «Aguarda-me», antes de ires
esquiar para alguma montanha? Esperas que seja como eu e passe
os dias junto ao telefone com medo de receber uma chamada a
informá-la de que ficaste tetraplégico, perdeste uma perna ou
morreste? Queres que compartilhe a tua vida nómada que nunca
cria raízes em parte alguma?
– Não sei – respondeu Travis, frustrado. – A minha vida…
– Não foi normal – completou Lucy. – Sei isso melhor que
ninguém.
– Comecei a trabalhar para o meu pai para proteger…
– Nem penses em responsabilizar-me por essa carga –
interrompeu-o Lucy, erguendo a voz. – Travis, adoraste trabalhar
para Randall. A emoção, o dinheiro, o… o poder. Desabrochaste ao
fazê-lo.
Travis recostou-se novamente no assento duro.
– Acusas-me de estar a converter-me no meu pai? – perguntou
em voz baixa.
– Não, claro que não. Mas temo…
– O quê?
– Que possas vir a sê-lo.
Travis demorou algum tempo antes de responder.
– A mim também me preocupa – disse finalmente. – Às vezes,
deteto coisas em mim que me desagradam. Sempre que lhe agrado,
desagrado a mim mesmo… e preocupa-me que o meu desagrado
seja tão intenso quanto a sua satisfação. – Fitou-a. – Mas não sei
como distanciar-me da parte dele que se encontra no meu íntimo.
Lucy agarrou-lhe na mão.
– Passa mais tempo com Kim. Esquece-te de Joe e de mim.
Estamos bem. Ele não anda atrás do meu dinheiro, nem o faria se
soubesse que o tenho. Ama-me.
– Tens a certeza?
– Absoluta.
– Mas também não estiveste apaixonada pelo pai?
– Era uma miúda que tinha crescido num ambiente muito
protegido e o teu pai perseguiu-me da mesma maneira que
persegue essas empresas que compra.
– Também gostaria de perseguir Kim assim – confessou em voz
baixa.
– Não o faças! – exclamou Lucy. – Que isso não te passe pela
cabeça. Não te sirvas do charme e do dinheiro dos Maxwell, nem de
tudo o que aprendeste com essas mulheres horríveis com quem sais,
para seduzires Kim. Não a deslumbres. Não a leves de avião a jantar
com um bom vinho a Paris, não faças com que se derreta por ti. Não
merece que a trates dessa maneira.
– De que lado estás?
– Do teu! – exclamou e depois acalmou-se. – Amo-te mais do que
à minha vida, Travis. Daria a vida por ti, mas quero que tenhas algo
real. Não te limites a levar essa jovem para a cama e a mostrar-lhe o
que aprendeste com uma modelo ambiciosa. Descobre quem ela é.
Averigua se realmente a amas, ou se apenas sentes gratidão por te
ter ensinado a andar de bicicleta. Conhece a mulher em que se
converteu e deixa que ela conheça o teu verdadeiro eu. Não o
advogado astuto e loquaz capaz de levar a todos com a sua
conversa. Deixa que veja esse rapaz que se deixou impressionar por
uma menina que lhe colocou um colar ao pescoço.
– Não tenho a certeza de que saberei fazê-lo.
De volta ao presente, olhou para Kim, que admirava o lago, e
nesse momento pensou que nunca tinha visto uma jovem mais
bonita ou desejável. Se ela fosse outra mulher, diria qualquer coisa
ou usaria qualquer tática para levá-la para a cama. Mas depois, tal
como a mãe o acusara, deixá-la-ia. Parecia que a sua vida se
resumia a andar de um lado para o outro. Se não era um encontro
de negócios em representação do pai, era alguma corrida ou
escalada, ou qualquer outra atividade que, como a mãe comentara,
poderia acabar na perda de um membro.
– Penso que devíamos ir embora – comentou Kim, interrompendo
o silêncio e chamando Travis à realidade.
Ele não se mexeu.
– Não é minha intenção ser tão misterioso.
– Então diz-me o que te incomoda! – exclamou ela. – Estás a
ocultar-me qualquer coisa horrível que fizeste? Não podes ser um
criminoso procurado, porque tenho a certeza de que neste momento
Colin já investigou tudo sobre ti. Se tivesses antecedentes penais, já
me teria avisado.
Uma vez que nem o xerife, nem Kim, sabiam o seu verdadeiro
apelido, não encontrariam nada, pensou.
– Não tenho antecedentes criminais – garantiu e sorriu-lhe. – Mas,
na verdade, não me sinto orgulhoso de algumas coisas que fiz na
vida.
– Referes-te ao trabalho de duplo em Hollywood ou a teres
atropelado médicos em Marrocos?
Travis riu.
– Sem dúvida, Marrocos. Mas que diabo fazia o teu irmão a puxar
por um burro carregado numa zona que estava marcada para uma
corrida de automóveis?
– Suponho que Reede pensa que toda a gente devia parar para
lhe dar passagem. O seu trabalho é importante e o teu não.
– Nesse aspeto tenho de concordar com ele. Kim…
– Sim?
– Neste momento, tenho de tomar decisões importantes sobre a
minha vida.
– Como por exemplo?
– O que farei com o que me resta. Daqui a três semanas deixarei
de trabalhar para o meu pai.
– Em que consiste exatamente a tua função?
– Em deixar as pessoas sem trabalho – respondeu Travis.
Kim fitou-o com uma expressão crítica.
– Não é tão mau como acabo de dizer-te. As empresas estão na
falência e de qualquer maneira os trabalhadores acabariam na rua.
O meu pai compra a empresa e despede somente dois terços do
pessoal. – Fixou o lago. – Estou cansado de tudo isso e preciso de
mudar. Tens uma vaga na joalharia? Penso que conseguiria vender
coisas.
– A namoriscar com as clientes? Não, obrigada. Para que queres a
minha ajuda?
Queria dizer-lhe que fugisse com ele, mas as palavras da mãe
continuavam a soar-lhe na cabeça. Conhece a mulher em que se
converteu e deixa que ela conheça o teu verdadeiro eu.
– Quero que sejas minha amiga – replicou. – Fomos amigos em
crianças e talvez possamos sê-lo novamente.
– Muito bem – anuiu Kim, voltando a desviar os olhos para o lago.
Amigos. Parecia a história da sua vida. Os seus dois últimos
namorados tinham acabado a relação porque era melhor sucedida
que eles. Sempre que Kim conseguia um novo contrato com uma
empresa que queria vender as suas joias, gerava-se uma discussão.
Calculava que a relação durava três grandes discussões antes de
terminar. Tinha a certeza de que o único motivo por que ela e Dave
estavam juntos há seis meses residia em não lhe ter dito que
Neiman Marcus queria ensaiar uma exposição das suas joias.
– Agora foste tu a manter o silêncio.
– Também preciso de um amigo – disse. – Nos últimos dois anos
todas as minhas amigas casaram e a maioria está grávida.
– E porque não estás também grávida? – inquiriu com uma
expressão solene.
Sabia que se lhe contasse a verdade soaria a autocompaixão, o
que não suportaria.
– Porque o meu irmão médico recusa explicar-me como engravida
uma mulher. Não me parece que seja engolindo uma semente de
melancia como me disse quando eu tinha nove anos. Recusei-me a
comer qualquer coisa com sementes durante dois anos. A minha
mãe ameaçou que me faria comer à força. Mas depois descobri que
o «beijo à francesa», que pensei ser como se beijava em França,
podia engravidar.
– Quem te contou a verdade? – perguntou Travis com um sorriso.
– Fiquei pela teoria francesa, pois nunca estive em França, nem
engravidei.
– Que te parece se tu e eu… – Travis interrompeu-se, pois ia
sugerir que fossem passar uns dias a Paris.
– Se tu e eu o quê?
– Comêssemos as nossas sandes.
Kim sabia que mais uma vez ele mordera a língua antes de lhe
dizer algo. Estendeu-lhe uma sandes e começou a desembrulhar a
dela. Parecia que a ideia que Travis fazia de amizade era muito
diferente da dela.
SEIS
Quando Joe Layton viu Kim e o homem jovem que a acompanhava a
sair do carro, soube duas coisas: a primeira, que o homem era da
família de Lucy; a segunda, que estava apaixonado por Kim. A
primeira fê-lo franzir o sobrolho e a segunda arrancou-lhe um
sorriso.
Joe tinha tentado que Lucy falasse sobre o seu passado desde que
a conhecera, mas ela não dissera uma palavra. Se fosse outro tipo
de homem, teria gostado das suas tentativas para fugir às
perguntas. Porém, não lhe agradava o seu desconforto e, por isso,
evitava interrogá-la.
Mas saltava à vista que aquele jovem indivíduo era parente de
Lucy. «Seu filho?», interrogou-se. Tinham os mesmos olhos, só que
os dele eram mais escuros. Também o cabelo se lhe enrolava junto
ao pescoço, como o dela, e a maneira como fechou a porta do carro
não deixava sombra para dúvidas.
«Então, ela tinha um filho», pensou. Seguia-se a verdadeira
questão: quem era o pai?
Quanto à sua segunda observação, Joe sentia pena de Kim porque
todas as suas amigas se tinham casado e iniciado uma nova fase das
suas vidas. Jecca e ela mantinham uma amizade de anos e Joe sabia
que todas as amigas de Kim se haviam casado uma após outra. Até
mesmo Jecca a abandonara. Fora a Edilean visitar Kim, mas acabara
por passar todo o tempo com o Dr. Tris.
Portanto, gostava de ver um homem apaixonado por Kim. Merecia
o melhor que a vida pudesse oferecer-lhe.
Joe pigarreou e endireitou os ombros. Não podia deixar que se
notasse o seu sentimentalismo. Abriu a porta da frente.
– Vieram por causa do emprego?
– Que emprego? – perguntou Kim enquanto beijava Joe na face.
Conhecia-o há muitos anos e tinha ficado várias noites na sua casa,
em Nova Jérsia. Numa ocasião, quando andava na universidade, Joe
passara toda a noite a pé, ouvindo-a lamentar-se sobre o que um
jovem da associação de estudantes lhe fizera.
– Ajudar-me a pôr a loja a funcionar. Tive de despedir o primeiro
que contratei.
Travis deitou um olhar penetrante ao indivíduo. Era um homem
baixo, de compleição robusta, e parecia carrancudo.
– Este é o meu amigo Travis… – Hesitou – … Merritt e estava a
falar-lhe da sua nova loja. Aquela sala grande que era para uso da
Jecca continua vazia?
Joe estava a observar Travis. O pai devia ser alto, pensou, tal
como o rapaz, mas a semelhança com Lucy era incrível, pensou.
Decorreu um momento antes de Joe se aperceber que Travis lhe
estendia a mão. Joe aceitou-a, sem desviar os olhos do jovem.
Quando Travis retirou a mão, Joe notou os calos.
– Trabalhas na construção?
– Não – respondeu. – Levei uma vida inútil.
– Trabalhava como duplo em Hollywood – esclareceu Kim.
– A sério? Que truques sabes fazer?
– Na maior parte das vezes levava um tiro – respondeu Travis. –
Sou o tipo vestido de polícia que é morto pelo bandido. Chegaram a
matar-me quatro vezes no mesmo filme. Resultado de baixo
orçamento.
– O normal seria que um indivíduo tão bem-parecido fosse o
protagonista – replicou Joe.
Travis riu.
– Concordo. Cheguei a fazer a sugestão a um realizador que me
fez um casting. O veredicto foi que não tenho veia de representação.
– O que tem isso a ver com desistires de ser uma estrela? – disse
Joe com uma expressão séria.
– É a pergunta que faço a mim mesmo – reagiu Travis. – Mas, de
qualquer maneira, nunca me agradou passar horas mortas numa
carrinha sem fazer nada. A que emprego se referia?
– Ao de gerente – respondeu Joe. – Preciso de alguém que se
encarregue da loja para poder passar mais tempo com as minhas
meninas.
– As suas meninas? – repetiu Travis, deixando de sorrir.
– Talvez devêssemos… – começou Kim.
– A minha filha e a minha prometida – explicou Joe. – Achas que
estarias à altura do emprego? É preciso saber muito sobre
ferramentas.
– Travis sabe muito sobre… – começou Kim que hesitou antes de
acrescentar… – balões.
Ambos a fitaram.
– És o tipo que tirou o balão do menino de cima da árvore?
– Sou – admitiu Travis –, mas não sabia que a notícia se
espalharia tão rapidamente pela cidade.
– O xerife passou por aqui – referiu Joe, indicando com a cabeça o
outro extremo do prédio. – Querem ver o estúdio da Jecca?
– Queremos – respondeu Kim e foram atrás de Joe.