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Presente de Natal

MARY BALOGH
Um verdadeiro “Presente de Natal”

Com sua narrativa tocante e deliciosa, Mary Balogh nos


presenteia com três lindos contos de Natal.A esperança, o
amor e o perdão aparecem com uma leveza capaz de mostrar
o verdadeiro sentido da Natividade, e, o personagem central
desta trama não será esquecido. De forma sutil e bela, o
Natal é celebrado no seu sentido mais real e amplo,
demonstrando como a alegria é contagiante e deve ser
compartilhada.
O melhor Natal de todos

Tudo o que Anna mais quer de presente de Natal é uma


nova mamãe. Ela não pode dizer seu pedido em voz alta, é
claro. Não só porque ela deixou de falar desde que viu sua
mãe morrer afogada quando tinha 3 anos, mas porque sabe
que se contar seus desejos, eles não se realizarão. Então, ela
faz sua prece silenciosa e fervorosa diante da lareira com a
esperança de que seu desejo será atendido. Na véspera do
Natal, Anna desce para a sala juntamente com as outras
crianças,certa de que encontrará seu presente:Sua nova
mamãe, uma senhorita de modos brandos, roupas simples,
um rosto gentil e um cheiro maravilhoso de violetas. O Natal
chegou adiantado para Anna, e promete ser o melhor de
todos.
Edwin, visconde Radbrook, está desesperado para saber
o que sua filha deseja de Natal, mas tem como empecilho o
fato de ela não emitir nenhum tipo de som. Está ciente
também de que precisa providenciar uma nova mãe para a
menina, sem demora. Ele pôs seus olhos na jovem Roberta,
que conheceu em Londres e que fora convidada a passar o
Natal com sua família. Lorde Radbrook não espera, contudo,
que a sombra da mulher que ele amou no passado ameace
todos os seus planos com seus modos irritantemente
comedidos capazes de encantar sua filha... E a ele também.
Emma se considera uma solteirona relativamente
satisfeita com a vida. A contragosto, ela aceita passar o Natal
com a família da cunhada, pois assim terá a oportunidade de
rever seus sobrinhos.Seu plano é passar completamente
despercebida, mas é rapidamente frustrado quando ela
estranhamente ganha o carinho e atenção de uma adorável
menininha. A filha de Edwin, o homem que ela rejeitara nove
anos antes. O carinho de Anna acaba por despertar em
Emma todos os sonhos abafados durante todos aqueles anos
de solidão.

A virgem de porcelana
O Natal se aproxima, mas o Conde de Kevern apenas ri
sem um pingo de humor para o que ele considera ser apenas
um mito. Ele está olhando com todo seu cinismo para o
movimento nas ruas quando vêo que nomeou mentalmente
como a epítome do“espírito de Natal”: uma jovem
empobrecida observando com olhos sonhadores uma das
vitrines na rua. Algo o impulsiona até ela. E, no meio do
caminho, ele a salva de ter seus poucos pertences roubados
por um pivete das ruas.
O pequeno maltrapilho com um dialeto ininteligível é
livrado do merecido castigo que estava prestes a receber por
sua ousadia, graças a bondade da jovem senhorita que ele
pretendia roubar. O menino conta uma triste história, o que o
levara a tomar àquela atitude desesperada. O conde não
acredita nem por um minuto no garoto, mas a jovem
bondosa, sim. Assim, parece que o destino resolve colocar
estes três em um só caminho de esperança em meio à
desolação. Cada um carrega uma história de perdas
significantes em suas vidas e, juntos, talvez possam
encontrar um novo significado para o Natal... e para um
sentimento chamado Amor.

A festa surpresa
Rupert, Patrícia e Caroline se tornaram recentemente
três irmãos órfãos preocupados com o que o futuro incerto
lhes reserva. Ao mesmo tempo, os sonhos de infância os
fazem desejar um pouco de felicidade e fantasia para o Natal
que se aproxima. Eles ficam extasiados quandoseu tio
materno e sua tia paterna aparecessem como uma possível
salvação.
Lady Carlyle —Úrsula,agora uma jovem viúva, é uma
dama respeitada na alta sociedade londrina. E está
terrivelmente aborrecida com sua nova responsabilidade. Não
deseja ter três crianças sob seus cuidados. Ela espera
fervorosamente que Timothy, isto é, Lorde Morsey, tome para
si essa responsabilidade. Ambos não esperavam, no entanto,
se encontrarem presos na mesma casa para o Natal. Logo
percebem que devem mostrar aos seus sobrinhos o que
significa verdadeiramente a celebração. O que envolve
diversão, carinho, esperança e uma certa dose de
sentimentos muito profundos... Como o amor e o perdão.
♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥

O melhor Natal de todos


♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥
― Eu desejo um exército de soldadinhos de chumbo ―,
Peregrine Milford disse de forma muito deliberada, fixando os
olhos no azevinho drapejado sobre a lareira de mármore,
acesa com fogo crepitante. Ele se certificou de que sua voz
fosse alta o suficiente para penetrar no canto mais distante e
remoto do salão que pudesse abrigar qualquer um dos seus
tios e tias.
― Um exército inteiro, não apenas uma companhia ou
um regimento ―, disse Sir Peter Milford, seu pai, secamente.
― Bem, quando alguém faz um desejo, não pensa em desejar
pouca coisa, eu suponho .
― Eu desejo uma boneca de porcelana ―, disse Harriet,
a irmã de Peregrine, com a mesma distinção. ― Com cachos
dourados e olhos azuis.
― Previsível, graças ao céu ―, Lady Sophia Milford
murmurou para o marido.
― Eu desejo uma bola de cricket e um taco ―, Aubrey
Dermott disse numa explosão de palavras, antes que
chegasse sua vez de falar, ― embora eu não seja capaz de
usá-los até o verão. Mas quero dizer, esta é uma brincadeira
muito boba. Estou muito velho pra isso .
Lorde Hodges, seu pai, sentado em algum lugar atrás do
semicírculo de crianças em volta do fogo, riu.
― Até que você tenha doze anos, Aub, você deve fazer
seu pedido ―, disse ele. ― É uma tradição familiar. E você
tem apenas onze anos e sete meses.
― As crianças desta família sempre deixaram seus
desejos de Natal em volta da lareira na noite anterior à

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véspera de Natal ―, afirmou a condessa de Crampton, a avó
de Aubrey. ― E por estranho milagre, seus desejos são quase
sempre concedidos.
O conde de Crampton sibilou de tal forma que era
impossível dizer se ele estava rindo ou tossindo. ― E muitos
pais confundidos tiveram que ir à York na véspera de Natal
para compras de última hora também ―, disse ele.
― Meu amor, porfavor, ― a condessa censurou, com voz
suave. ― As crianças!
O bufo do conde desta vez foi definitivamente por pura
diversão.
― É a vez de Julie ―, disse a condessa. ― Qual é o seu
desejo de Natal, querida?
Edwin Gwent, visconde Radbrook, único filho homem do
conde e da condessa, fixou os olhos na criança indicada e
franziu sua testa. Ela se parecia bastante com a boneca de
porcelana que sua irmã mais velha tinha desejado. Ela estava
corada e com os olhos estrelados com toda a emoção pelo
natal que se aproximava. Mas lorde Radbrook não ouviu o
que ela desejava.
E quanto a Anna? Ele pensou, seus olhos se desviando
para sua própria filha de cinco anos, que estava sentada de
pernas cruzadas no chão com as outras crianças, olhando
sonhadoramente para o fogo. O que ela queria para o Natal?
E como ele podia saber? Como ele impediria sua decepção e
desilusão na manhã de Natal quando seu desejo não se
tornasse realidade?

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Era muito bom aos outros pais encorajar a continuidade
deste costume familiar, que foi seguido tradicionalmente por
todo o tempo que eleconseguia se lembrar. As chances eram
de que seus filhos haviam deixado as sugestões por tempo
suficiente para que eles já tivessem ido comprar os itens
desejados. E, como seu pai acabara de sugerir, sempre havia
York a apenas sete milhas de distância para aquela ocasião
em que uma criança mantivera seu desejo em segredo até o
último momento.
E quanto a Anna?
― Anna? ― A condessa falou no tom suave que ela
sempre reservava para essa neta em particular.
― É hora de fazer o seu desejo, querida .
Anna se virou para olhar para a avó com os grandes
olhos escuros que a tornariam uma beleza quando crescesse,
pensou seu pai. Os olhos de Marianne. Os olhos da mãe dela.
Mas, aos cinco anos, os olhos pareciam muito grandes para o
rosto magro e pálido, e os cabelos escuros, cheios de cachos,
pareciam muito pesados.
Ela voltou a olhar para o fogo novamente enquanto os
membros de sua família, reunidos na sala de estar de
Williston Hall, mantiveram um silêncio educado.
Desejo uma nova mamãe para o Natal, pensou Anna,
articulando as palavras muito claramente em sua mente.
Por favor, uma nova mamãe. Eu não quero que ela seja
bonita, como a srta. Chadwick, sempre tagarelando e
curvando-se para me dizer o quão bonita e o quão boa eu sou e
depois virando-se e sorrindo para papai, e me esquecendo. Eu

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quero uma que não seja tão bonita, e alguém calma. Alguém
que me amará e não tentará afastar papai de mim.
― Você fez o seu desejo, querida? ― -perguntou sua avó,
rompendo o silêncio em torno dela.
Anna fechou os olhos, bem forte. Uma nova mamãe para
o Natal, por favor, ela implorou a um poder invisível mais
uma vez, abriu os olhos e virou a cabeça para olhar para o
rosto inexpressivo de seu pai.
― Ela já fez ―, ele disse calmamente e sorriu para ela. E
sentiu seu coração doer por ela. Ele notou seus olhos
fechados e lábios comprimidos e sabia que um desejo muito
particular tinha sido feito.
Qual é seu desejo? Ele perguntou com os olhos para ela.
O que você quer, Anna? Uma boneca? Um novo vestido? Um
guarda-sol? Um rolo de pelo para esquentar as mãos? Todos
os quatro estavam no andar de cima, embrulhados
cuidadosamente e amarrados com fitas brilhantes,esperando
a manhã de Natal. Mas e se em todas as quatro compras ele
tivesse adivinhado erroneamente?
― Stephanie? ―, A condessa de Crampton disse em sua
voz mais normal, virando os olhos para sua sobrinha, filha de
Marjorie Fotheringale. ― Qual é o seu desejo de Natal,
querida?
Anna gostava de seus primos. Ela realmente gostava de
todos os seus parentes. Havia um maravilhoso sentimento de
segurançasobre estar em Williston Hall, na casa de seu avô,
cercado por pessoas que pertenciam a ela eque a aceitavam.
Ela adorava o Natal em particular e todas as decorações,

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aromas picantes e ricosalimentos. Ela adorava o modo como
era permitido às crianças estar no andar de baixo para se
misturar com os adultos com tanta frequência duranteos dias
de Natal.
E ela amava as atividades do Natal ― as longas
caminhadaslá foranos passeios quando não havia neve, como
no ano passado, as decidas de trenó e a patinação quando
havia. Dois anos antes, seu papai a levou em seus braços ―
ela poderia se lembrar, embora não tivesse nem quatro anos
de idade- e patinou sobre o lago congelado com ela, e a fez se
sentir tão segura como poderia estar, mesmo que seus primos
mais velhos tenham gritado e caído por todo o lugar. Papai
não caiu com ela nem uma vez.
E as atividades em casa– charadas, cabra-cegae canções
de natal enquanto tia Sophia tocavao pianoforte e toda uma
série de outras coisas.
Havia apenas uma coisa errada nesses encontros
familiares. Stephanie, Angela e William tinham tia Marjorie
para se preocupar com eles, repreendê-los, louvá-los e colocá-
los na cama à noite. Peregrine, Harriet e Julie tinham tia
Sophia. Até Aubrey, que era velho demais para precisar de
uma mãe, tinha tia Patricia.
Ela não tinha uma mãe. Ela já teve uma vez. Na
verdade... mas não. Seus pensamentos sempre se fechavam
abruptamente em tais momentos. Tinha uma mãe, mas não
conseguia se lembrar dela. Ela não se lembraria dela.
Ela tinha seu papai. E ela o amava totalmente. Ele era
seu mundo e seu universo. Ficaria com papai pelo resto da

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vida. Quando ela crescesse, iria para a Índia com ele, para a
América e Brasil. E também para Bath. Ela iria por todo o
mundo com seu papai.
Mas há algum tempo ela desejava uma mãe. Desde o
verão passado, de fato, quando ela e seu pai estiveram na
casa dos avós e ela viu a tia Marjorie despir Stephanie à
noite, escovar os longos cabelos loiros e rir com ela enquanto
arrumava seu cabelo em vários estilos adultos com as mãos
dela. E então a tia Marjorie, vendo Anna olhando com
melancolia toda a cena, tinha vindo e feito o mesmo por ela
antes que seu pai chegasse para beijá-la, e dar boa noite. E
as mãos da tia Marjorie tinham sido delicadas e suaves, não
como as de papai, e tinham cheiro de rosas.
As chamas do fogo estavam dançando diante dos olhos
de Anna. Ela não tinha ouvido o desejo de Stephanie, nem o
de Angela ou de William, embora todos estivessem se rindo do
desejo de William e a tia Marjorie estava dizendo ―
Misericórdia para nós! ― E olhando curiosa para o tio
Humphrey.
― Esperamos que York seja uma cidade milagrosa ―,
disse tio Humphrey, e explodiu em riso enquanto a tia
Marjorie dizia ― Misericórdia para nós! ― Novamente.
Anna levantou-se e deixou o semicírculo de crianças.
Ela foi até seu pai, que a pegou e a colocou em seu colo, e ela
enfiou a cabeça sob o casaco e contra a seda quente e
escorregadia de seu colete.

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― Você fez o seu desejo, Anna? ― Ele perguntou a ela. ―
Você vai deixar papai saber de alguma forma? Você vai me
desenhar o que quer?
Mas ela balançou a cabeça e se aconchegou mais. Os
desejos não se tornariam realidade se alguém dissesse. Era
por isso que todas as crianças foram instruídas a pensar em
voz alta diante do fogo. Eles não estavam contando a
ninguém. Eles estavam apenas pensando. Isso foi o que a avó
sempre disse, de qualquer maneira, e Anna acreditava
implicitamente. Seu desejo não se tornaria realidade se ela
contasse para seu papai. E ela queria que seu desejo se
tornasse realidade. Mais do que tudo.
Mas, por favor, não a senhorita Chadwick, pensou. Por
favor, uma muito calma e comum. Alguém que cheire a rosas.
Alguém com mãos suaves e magras.
Lorde Radbrook baixou a cabeça e beijou os cachos
escuros agrupados na cabeça da filha.
O que ele deveria lhe dar de Natal, pensou ele, era uma
nova mãe. Isso era provavelmente o que ela precisava mais do
que qualquer outra coisa. Ela estava sem Marianne há mais
de dois anos ― por quase metade de sua vida.
Roberta Chadwick? Ela chegaria no dia seguinte com o
Sr. e a Sra. Shelton, sua irmã e cunhado, e vários outros
convidados que não eram próximos osuficientemente da
família para terem sido convidados para a semana inteira
antes do Natal.
Ele deveria fazer o que tinha pensado desde a
temporada anterior na cidade e oferecer casamento a ela? Ele

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deveria contar a Anna no Natal, se ele tivesse a resposta que
esperava, que ela teriauma nova mamãe?
― Crianças? ― Marjorie Fotheringale estava em pé e
batendo palmas. ― Hora de dormir. E não adianta gemer e
olhar com expectativapara o papai, William. Se você quiser
estar animado e brilhante para a véspera de Natal, você
precisará descansar. Para cama! .
― Sim, você também, Aub ―, disse Lord Hodges com
firmeza. ― Você será um rapazinho no próximo ano, quando
tiver doze anos, e sem dúvida lhe será permitido ficar
acordado a noite toda e o dia seguinte também se desejar.
Este ano você tem apenas onze anos. Você vai descansar .
Lord Radbrook levantou-se, sua filha nos braços. ― Eu
levarei Anna ―, disse ele. ― Volto em breve.
A condessa de Crampton suspirou quando seu filho
seguiu com as crianças. ― Querida Aninha, ― ela disse. ―
Será que nunca mais conversará? ― Ela não estava dirigindo
a pergunta a ninguém em particular.
― Um dia ela vai, mamãe ―, disse lady Sophia. ― Mas o
choque é muito profundo. Ela tinha apenas três anos.
Lady Patricia estremeceu. ― Bom Deus ―, ela disse, ―
eu odeio pensar nesse assunto. Ainda tenho pesadelos sobre
isso. Ver sua mãe afogar-se assim, tentando recuperar a bola
do rio, e ninguém perto para salvá-la. E os gritos da criança.
Felizmente, não os ouvi, mas Edwin os descreveu o
suficiente. A pequena gritou por dois dias inteiros até perder
a voz .

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Lorde Hodges deu um tapinha na mão dela. ― Não há
motivo para torturar sua mente, Trish ―, ele disse
rapidamente. ― É Natal. As crianças são resilientes. Anna
falará novamente, marque minhas palavras, e também
sorrirá.
― Roberta Chadwick seria boa para ela ―, disse Sophia.
― Ela é tão adorável e sempre tão ensolarada. Edwin fará o
pedido, você acha?
― Anna seria eclipsada por Roberta ―, disse a condessa
calmamente. ― Ela demandaria toda a admiração de Edwin.
E lembre-se de que Anna o tem por completo para si por
quase três anos ―. Ela suspirou de novo.
― Sophia ―, o conde disse severamente para sua filha
mais velha, sua voz ressonando em seu peito ― para o
pianoforte, menina. É Natal ou é um funeral? Toque algo
animado, algo que todos possamos cantar .
Lady Sophia levantou-se obedientemente.

― Estamos em Williston Hall finalmente? ― A senhorita


Hannah Beynon olhou para a janela da carruagem quando o
transporte girou bruscamente e passou entre dois altos e
imponentes portões de pedra. ― E a tempo, também. Nós
duas seríamos dois blocos de gelo, Emma, se tivéssemos que
viajar muito mais. O caminhoaté a casa é longo? Não consigo
lembrar. Eu não estive aqui desde o casamento de Pedro com
Sophia. Isso foi há oito anos... ou nove?
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― Nove ―, sua sobrinha respondeu, virando-se para
sorrir para a figura de nariz vermelho de sua tia, coberta do
joelho até os pés por um cobertor de pelos. ― A entrada não
fica a mais do que uma milha daqui. Nós estaremos lá em um
momento. Tenho certeza de que haverá uma lareira em cada
sala para nos cumprimentar e, sem dúvida, muito chá quente
também.
― Véspera de Natal ―, disse a srta. Beynon com
indignação. ― É bastante desumano, Emma .
― Sim ―, sua sobrinha concordou, ― é amargamente
frio. Mas essas nuvens vão derrubar uma carga de neve antes
do fim do dia, tia Hannah. Nós vamos ter um Natal todo
branco. Isso será um deleite raro .
― E um corpo não será capaz de colocar um dedo ao ar
livre sem escorregar e deslizar e quebrar todos os ossos em
seu corpo ―, sua tia se queixou.
Emma não estava sentindo o frio. Estava sentindo algo
bem pior. Medo. Náusea. Pânico. Uma nostalgia terrível. Um
amargo arrependimento por não ter batido o pé e ido contra
sua tia, para que recusasse o amável convite do condee da
condessa, como tinha feito no ano anterior. No ano passado
foi mais fácil, é claro. Ela ainda estava vestindo luto pela sua
mãe. Este ano não havia tal desculpa. E seu irmão Peter
estava ansioso para que ela aceitasse, assim como sua
cunhada, Sophia.
Não, teria sido quase impossível se recusar a vir. A casa,
grande, divagante, uma curiosa mistura de estilos
arquitetônicos que atravessava vários séculos, apareceu

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conforme a carruagem fazia uma curva da entrada, e Emma
sentiu seu estômago se revolver.
Sim, era assim que se lembrava. Como se tivesse sido
ontem. Na verdade, foi há nove anos durante o verão. O
casamento de Peter e Sophia, quando ela passou um mês
inteiro em Williston Hall com seus pais. Tinha dezoito anos
na época. Tinha apenas dezoito anos. Uma criança. E ainda
suficientemente velha para tomar a decisão que definiria o
curso do resto de sua vida.
Velha o suficiente para arruinar todo o resto da vida.
― Brrr! ―, Disse a srta. Beynon enquanto a carruagem
parou de frente aos degraus em forma de ferradura que
levavam até o piso principal da mansão. ― Eu não quero sair
de baixo deste manto, Emma .
Emma sorriu. ― Apenas pense naquelas lareiras ―, ela
disse, ― e naquele chá. ― Ela se virou e permitiu que um
homem a ajudasse a descer. As portas principais estavam
abertas, ela viu,olhando para cima. Peter estava lá, e Sophia,
além do conde e da condessa. Ninguém mais. Apenas os
quatro. Ela se sentiu enormemente aliviada.
― Vocês sãs as últimas a chegar ―, disse a condessa de
Crampton alguns minutos depois, abraçando as duas damas
e recebendo-os em Williston Hall. ― E bem a tempo, também.
A neve vai cair a qualquer momento. As apostas são altas e
animadas, e as fortunas estão prestes a mudar de mãos no
momento exato em que cair o primeiro floco. Venha até o
andar de cima, minha querida senhorita Beynon. Você vai
querer se refrescar, tenho certeza. E o chá estará pronto na

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sala de desenho assim que você estiver pronta. Venha
também, Emma. Que adorável vê-la usando cores novamente,
minha querida. A última vez que vi você estava no funeral de
sua pobre querida mamãe.
A sala de desenho estava cheia, Emma descobriu para
seu grande alívio menos de meia hora depois, quando ela e
sua tia trocaram seus vestidos, lavaram suas mãos e rostos e
pentearam seus cabelos. Havia muito mais convidados do
que esperava. Ela havia esperado uma reunião familiar,
estendida para incluir as famílias dos sogros.
Ela não estava muito animada. Permitiu que seu irmão
tomasse seu braço, respondeu suas perguntas sobre a
viagem, saudou a irmã mais nova de Sophia, Lady Patricia, e
seu marido, Lorde Hodges, e se sentaram ao lado deles, longe
do fogo e do centro de atividade. Ela esperava que, com seu
vestido de alfazema pálido e sua toquinha de renda branca,
ela se misturasse discretamente como um pano de fundo ao
cenário. Quase todas as outras ladies estavam muito mais
bem vestidas e várias delas eram mais jovens e muito mais
bonitas do que ela.
Ela manteve os olhos focalizados no pequeno grupo de
pessoas perto dela e de Lady Patricia.
― Ah, aí vêm as crianças ―, Lady Patricia disse, olhando
para a porta e sorrindo. ― Eles estiveram irritados durante
toda tarde, esperando o momento prometido quando
poderiam finalmente se juntar aos adultos na sala de
desenho para o chá. Não sei como se sente por ter a sala
invadida por crianças, Emma. Tenho certeza de que alguns

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de nossos convidados ficarão horrorizados. Mas o que é o
Natal sem crianças?
Havia vários deles, viu Emma. Todos eles, obviamente,
foram liberados dos cuidados da babá apenas momentos
antes. Não havia um cacho ou manga de camisa fora do
lugar.
E olhando para o outro lado da sala, Emma percebeu
pela primeira vez todos os sinais do Natal ― o azevinho e a
hera pendurados sobre as paredes e drapeavam todas as
pinturas e espelhos, os galhos verdes decorados com grandes
fitas verdes e vermelhas de cetim, os sinos de prata e as
velas. E o galho de visco elaboradamente decorado no centro
da sala para pegar os desavisados ― ou não, na brincadeira
do beijo.
Uma garota pequena ficou parada na porta, olhando
para dentro. Ela não procedeu imediatamente ao lado de um
pai como as outras crianças fizeram. Ela era uma criança
pequena e solene, muito magra e muito simples para os
pesados cachos escuros que cobriam sua cabeça. Era um
penteado totalmente equivocado para ela, Emma pensou
distraidamente.
E então a criança olhou diretamente para ela, e Emma
podia ver, mesmo do outro lado da sala, que os grandes olhos
escuros da criança tiravam sua simplicidade e lhe davam
uma beleza estranha e inesperada. Emma sentiu-se
compelida a sorrir para ela, enquanto a criança segurava o
seu olhar.

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E então, percebeu com alguma surpresa, que a criança
estava atravessando a sala em direção a ela, nunca desviando
o olhar.
― Olá. ― Emma disse um pouco incerta quando a
menina parou na frente dela. ― Qual é o seu nome?
A criança não disse nada, mas olhou para ela de forma
solene e constante.
Emma sentiu-se um pouco desconfortável. Ela nunca foi
muito boa com crianças. Lady Patricia, ela podia ouvir, estava
conversando com um menino jovem e empolgado que
reclamava de algo.
A menina levantouuma mão e tocou o joelho de Emma,
retirando-a em seguida. Emma inclinou-se para frente e
sorriu.
― Eu sou Emma Milford ―, disse ela. ― Você gostaria de
apertar minha mão? ― Ela estendeu a mão. Os olhos da
criança a olharam, e ela acomodou lentamente sua mão na
dela. Emma fechou a mão ao redor da mão da criança e a
sacudiu. ― Muito prazer em conhecê-la ―, disse ela. ― Um
feliz Natal para você. Posso saber quem tenho o prazer de
conhecer?
A criança olhou de novo para os olhos dela e, de
repente, Emma não sabia muito bem como aconteceu–mas
ela estava em seu colo, sentada e reta, com as pernas
penduradas acima do chão.
― Bem ―, disse Emma, satisfeita e muito lisonjeada. ―
Que adorável recepção, de fato. Viajei o dia todo e estou em
uma sala cheia de estranhos, e de repente eu tenho uma

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amiga. Você está pronta para tomar chá? Eu certamente
estou.
Dois grandes olhos escuros olharam para ela de um
rosto magro e estranhamente familiar, e então a criança se
inclinou para seu lado e todos aqueles cachos escuros
estavam contra o peito de Emma. Ela colocou um braço em
volta da criança, um pouco assustada, e abraçou-a. Ela se
sentiu perto de lágrimas sem nenhuma razão que pudesse
entender, exceto que era uma solteirona com duas sobrinhas
e um sobrinho que nunca tinhamse animado de se manterem
nos braços de uma mera tia.
Quem era aquela criança estranha e silenciosa com os
olhos escuros, um lindo rosto magro e familiar?
Mas é claro! A resposta veio até ela rapidamente, assim
que alguém se colocou na frente dela, cortando sua visão do
resto da sala e de todos os outros.
Ela ergueu os olhos, fazendo um esforço físico para
olhar naqueles olhos cinzentos que eram muito parecidos
com o da filha, naquele rosto bastante magro que ele também
havia passado para sua criança. Ela tinha esquecido o nariz,
que ele havia quebrado quando menino, uma característica
que destruiu todas as chances de ter sido classicamente
bonito, embora o tenha tornado incrivelmente atraente, como
ela pensou, certa vez. E ela tinha esquecido que a espessura
de seus cabelos escuros tornava-os um tanto indisciplinados.
Ele não mudou em nove anos. Na verdade não. Havia
talvez mais anos, mais experiência, mais personalidade no

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rosto dele. Ele tinha apenas vinte e três naquela época. Um
homem muito jovem.
― Olá, Emma ―, disse ele.
― Olá, Edwin .
Inconscientemente, ela segurou sua filha mais perto. Ela
deveria ter lhe chamadode Lorde Radbrook, pensou. Mas
então, ele deveria ter lhe chamado de senhorita Milford. Ela
estava muito consciente de seu vestido simples e de sua
touca de renda, uma vestimenta planejada com ele em mente.
Para mostrar-lhe que depois dos nove anos que se passaram,
ela não tinha qualquer ideia tola de renovar um velho
romance, mas tinha vindo simplesmente porque os pais dele
a convidaram e teria sido errado ter recusado.
― Eu vejo que você fez amizade com Anna ―, disse ele.
― Sim.
― Ela não fala, você sabe ―, disse ele.
― Eu sei.
Sua nova mamãe não era bonita, a criança estava
pensando. Mas ela tinha um rosto amável e gentil, e quando
ela sorria, sabia que o sorriso não era para si mesma, para se
tornar mais bonita ou para chamar a atenção para ela, mas
para fazer a outra pessoa se sentir bem.
Suas mãos eram macias e magras. E quentes. E seu
colo era quente e confortável. Ela era exatamente como Anna
esperava que uma mãe deveria ser.
Ela não cheirava a rosas. O perfume não era tão forte ou
tão doce. Anna fechou os olhos por um momento e respirou.
Violetas. Era isso. Sua nova mamãe cheirava como violetas.

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Emma Milford. Era como a dama se chamava. E Papai a
chamou de Emma. Mas Anna não precisava do nome. Ela
seria sua mamãe. Anna soube disso assim que entrara no
salão.
Ela pensou consigo mesma na noite anterior enquanto
estava deitada na cama esperando dormir. E ela pensou da
mesma maneira naquela manhã. Se o desejo dela se tornasse
realidade, então certamente se tornaria realidade hoje, na
véspera de Natal, não no dia de Natal. Vovô e vovó esperavam
vários novos visitantes hoje, mas nenhum amanhã.
Sua nova mãe viria hoje.
E então ela entrou na sala de desenho com uma
confiança sobre seu desejo de Natal misturada a ansiedade
de que este pudesse não se tornar realidade. Ela olhou com
atenção para todas as damas.
A senhorita Chadwick, parecendo mais bonita ainda do
que de costume, ria com o papai dela, de modo que ele não
percebeu imediatamente a entrada de Anna. Havia várias
outras damas desconhecidas, algumas delas da idade
aproximada que ela esperava que sua nova mãe tivesse. Mas
nenhuma delas pareceu a certa. Não sentiu reconhecimento
por nenhuma delas.
Até que ela avistou a dama na outra extremidade do
salão, perto das grandes janelas, sentada em uma cadeira
baixa perto de sua tia Patricia. A dama calma, usando um
vestido lavanda e uma touca de renda em seu cabelo
castanho liso. Uma dama que não era nem tão bonita nem

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tão vivaz. Uma dama que sorriu para ela de uma maneira
completamente gentil e confortável do outro lado da sala.
E, caminhando em direção a ela por toda a sala de estar,
sem uma pontada de incerteza ou desconforto, Anna sentiu
pena por seus primos, que tinham uma noite mais de
excitação e suspense para viver antes de verem o
cumprimento de seus próprios desejos, enquanto o dela foi
concedido na véspera de Natal.
Estava satisfeita, pensou ela, sua bochecha aninhada
contra o peito de sua nova mamãe, suas narinas aspirando o
cálido e sutil aroma de violetas. Ela estava feliz. Seria o
melhor Natal de todos.
― Anna ―, o papai estava lhe dizendo, ― deixe-me levá-
la até a bandeja para que pegue umatortinha e limonada.
Parece que as crianças foram autorizadas a ir primeiro. A
srta. Milford precisará de ambas as mãos para segurar o
prato e o chá dela.
Mas Anna não se moveu, e sua nova mãe não a soltou
de seu abraço.
― Anna? ―, Disse seu pai. Ele pareceu perplexo.
― Por favor ―, disse a dama. Sua voz era suave e
musical. Anna percebeu isso logo no início. ― Deixe-a ficar se
quiser. Tenho poucas chances de estar com crianças.
Os olhos de Anna olharam para o pai, embora não
levantasse a cabeça. Ele estava imóvel, com as mãos
cruzadas atrás dele. Ele estava sentindo aquilo também,
pensou, sorrindo sem mover um músculo facial. Papai

26
também podia sentir isso. Como é claro, ele precisava. Ele
teria que se casar com sua nova mamãe.
― Muito bem, então ―, disse ele. ― Mas, por favor, não
permita que ela a aborreça. Você deve estar cansadapor
causa da viagem .
Suas palavras sugeriram uma preocupação por seu
conforto, pensou Emma. Mas sua mandíbula estava
apertada. Uma veia pulsava ali perto. E quando ele se virou
para se afastar, foi com movimentos abruptos e bastante
bruscos. Ele estava com raiva.
Como ele tinha direito de estar. Ela estava em Williston
Hall há menos de uma hora, e já segurava sua filha em seus
braços e a criança se recusara a ir com ele.
Anna Gwent não havia falado desde o horror da morte
de sua mãe quase três anos antes, Sophia e Peter lhe
disseram. Pai e filha eram praticamente inseparáveis. E ele
cuidava dela como se ela fosse o único item de valor no
universo.
Sim, dificilmente poderia culpá-lo por estar com raiva.
― Vamos compartilhar um prato? ―, Ela perguntou a
Anna quando um lacaio lhe ofereceu um e depois exibiu um
prato de bolos e tortas para sua inspeção.
A criança assentiu.
― Qual deles você gostaria? ―, perguntou Emma.
Anna apontou para um bolo em forma de anjo banhado
em creme branco e o lacaio colocou-o no prato, com o pedaço
de torta que Emma escolheu.

27
― Oh, as delícias de Natal ―, disse Emma com um
suspiro. ― Será que vamos engordar muito, Anna?
A criança olhou solenemente para ela antes de pegar
seu bolo.
Emma ergueu os olhos e olhou involuntariamente
através da sala. Ele estava conversando com uma jovem loira
muito linda e olhando sobre o ombro da menina diretamente
para ela. Ou para a sua filha. Era difícil dizer para qual.

A noite da Véspera de Natal começou com um banquete


animado, no qual trinta membros da família e convidados se
sentaram à mesa. As crianças comeram no andar de cima,
embora se juntassem aos adultos na sala de desenho depois
para os jogos até os carolers —cantores de natal— chegarem
da aldeia. Sua visita era tradicional e sempre antecipada pela
ansiedade. Então as crianças que assim o desejassem iriam à
igreja com seus pais. A eles sempre era dado a escolha,
embora nenhuma criança que se tenha respeito, para além
dos três anos de idade, tenha ido para o calor e aconchego de
sua cama quando havia a chance de suportar toda a tortura
auto infligida de ficar acordada até depois da meia-noite.
Lorde Radbrook sentou-se ao lado de Roberta Chadwick
no jantar. Ela estava vestida com um delicado vestido branco
desafiando a estação e parecia tão pura e tão adorável quanto
um lírio, um lírio brilhando ao sol. Havia sempre um brilho

28
sobre Roberta, que atraía os olhares, independentemente da
beleza loira dela.
Ele nunca a viu sem ostentar aquele brilho, pensou
Lorde Radbrook. Ela seria uma companheira constantemente
alegre ao longo da vida, mesmo que sua conversa estivesse
longe de ser profunda. Ela traria luz e alegria para a vida de
Anna, e aquelas eram qualidades que sua filha precisava
mais do que qualquer coisa.
Ela aceitaria seu pedido, tinha certeza. Sentiu que ela o
favorecia, embora não fosse de forma tão clara. Na verdade,
ela passou tanto tempo durante o jantar, conversando e rindo
com o jovem visconde Treadwell ao seu lado, como fez com
ele.
Ele também conversara, quando conseguiu, com a srta.
Beynon à esquerda. E quando a cabeça dele se dirigia de lado
para a senhorita, ele podia ver Emma na extremidade da
mesa. Ela estava vestindo azul esta noite, o vestido simples
de cintura alta e de mangas compridas. Sua cabeça estava
desnuda da touca que ela usara naquela tarde, mas seu
cabelo estava arrumado simplesmente, arrastando-se
suavemente sobre as orelhas num nó baixo, atrás do pescoço.
Seu rosto parecia sereno enquanto conversava com o coronel
Porchester ao lado dela.
Ele teve uma lembrança repentina e inabalável desse
mesmo rosto, cheio de vida e risada e aquele cabelo castanho
cortado e emoldurando seu rosto. Ele se lembrou desse
mesmo corpo usando musselina leve, caminhando levemente

29
pelo parque e ao lado do lago, sua mão na dele. A mesma
mão magra que agora segurava o garfo.
Ela mudou. E não para melhor. Ela tinha envelhecido
um pouco.
Ele sentiu sua mandíbula apertar com raiva. Como ela
conseguiu atrair Anna para seu colo na hora do chá? Ela
esperava impressioná-lo? Anna era tímida mesmo com seus
parentes. Ela quase nunca teve nenhuma ligação com
estranhos.
Ele colocou o pensamento no canto de sua mente e se
virou para Roberta, que tinha terminado a conversa com o
visconde e estava sorrindo.
Sua irritação voltou quando os cavalheiros se juntaram
às damas na sala de desenho, depois de serem deixados para
o Porto por um curto período de tempo. As crianças já
estavam no andar de baixo, mas Anna nem percebeu sua
chegada. Ela estava parada na janela do centro com Emma,
segurando a sua mão e olhando para ela com o olhar que ela
normalmente reservava apenas para ele. Emma estava
inclinada para baixo ao lado dela. Em meio ao barulho e ao
riso na sala, as duas pareciam separadas em um pequeno
mundo de silêncio e contentamento.
Quase involuntariamente ele se dirigiu para elas.

Anna sentou-se pacientemente no andar de cima,


enquanto a babá arrumava os seus cabelos em uma miríade
30
de cachos e tinha colocado e ajeitado seu vestido de seda
rosa, seu segundo melhor vestido ― o melhor estava
reservado para o Dia de Natal ― de modo que os vincos
caíssem lindamente. Mas por dentro ela estava cheia de
emoção. Tinha que lembrar-se de comer o jantar e quase não
escutara a conversa e as discussões de seus primos.
Quando as crianças foram convocadas para a sala de
desenho, ela tinha subido a escada com os outros em vez de
esperaratrás de todos, como costumava fazer. E ela olhou
pela sala com olhos brilhantes, ignorando ― de fato, nem
mesmo viu ― o sorriso gentil e acolhedor de sua avó, e
atravessou a sala para pegar a mão de sua nova mamãe.
― Você fez uma amiga, Emma ―, disse Marjorie
Fotheringale com uma risada. ― Eu notei que Anna estava
sentada em seu colo durante todo o chá. ― Ela sorriu com
carinho para a criança e tocou um de seus cachos. ― Anna é
muito especial nesta família .
Mas Anna não estava preparada para se tornar uma
terceira pessoa em uma conversa adulta. Ela puxou a mão de
sua mamãe, atraindo-a para seu lugar favorito na casa
durante o Natal, a cena de Belém que sempre ficava instalada
na janela central.
― Ah ―, disse Emma, ― a cena da natividade. É muito
adorável, de fato.
Anna olhou para ela. Ela não conhecia a palavra que
sua nova mãe usara. Mas sim, era adorável.
Alguém fez isso especialmente para a avó. Ela apontou
para o bebê Jesus na sua manjedoura.

31
Ela amava o bebê Jesus porque ele parecia um bebê de
verdade. Um braço gordinho acenava sem rumo no ar
enquanto o bebê sugava o polegar da outra mão. Suas pernas
carnudas estavam dobradas. Todos os seus membros
estavam livres das roupas de bebê, e não precisava das
roupas de infância, tia Sophia havia dito uma vez. Mas Anna
não se importava. Ela amava este bebê muito mais do que
aquele na igreja, com os braços esticados como se fosse
abençoar o mundo, como tio Humphrey havia explicado, e o
halo sobre o rosto sorridente dele. Aquele bebê não parecia
muito real.
― Ele é um bebê muito feliz, não é verdade? ―, Disse
Emma. ― Eu me pergunto se a palha está arranhando sua
pele .
Anna olhou para ela novamente. Ela sempre se
perguntou o mesmo. Era a única coisa sobre toda a cena que
a incomodava.
― Mas aposto que não ―, disse Emma. ― Ele não parece
chateado, verdade? E estou certo de que sua mãe se
certificaria de que ele estava confortável. Ela só tem olhos
para ele, olhe!
Maria estava encurvada sobre a manjedoura, olhando
para o bebê Jesus. Mas as mãos dela não estavam juntas em
oração, assim como a da virgem na igreja. Ela estava
segurando a borda da manjedoura e sorrindo. Ela não estava
adorando o bebê; ela estava o amando. Anna tocou o ombro
da figura e passou delicadamente um de seus dedos.

32
Emma inclinou-se para baixo ao lado dela. ― Eu acho
que ela está muito orgulhosa do bebê dela, não é mesmo? ―,
disse ela. ― Mas que mamãe não ficaria orgulhosa de seu
filho? ― Ela soltou a mão da criança e colocou um braço
frouxamente em volta de sua cintura fina, observando o
pequeno dedo da menina acariciar a virgem mãe.
― Anna ―, disse uma voz por trás delas, ― você está
mantendo a srta. Milford apenas para si. Não é muito
educado de sua parte .
Emma olhou em volta bruscamente e deixou cair o
braço da cintura da criança. ― Nós estávamos olhando para a
cena da natividade ―, ela disse meio tonta, e estava ciente de
repente de uma pequena mão levando a dela novamente em
volta de sua cintura pequena.
― Sim ―, disse ele. ― Anna sempre fica fascinada por
isso. Eu acho que é porque o escultor enfatizou o realismo em
vez da ideia de que esta é a Sagrada Família .
Anna pegou a mão do pai na dela e apontou para a
figura de José.
Ele riu. ― Ah, sim, pobre José ―, disse ele. ― Sempre no
fundo. ― Ele inclinou-se e olhou mais de perto. ― Mas esse é
mais humano do que a maioria, não é? Ele parece bastante
satisfeito consigo mesmo, e ele definitivamente parece capaz
de enfrentar o mundo para proteger mãe e filho. Eu acredito
que ele está prestes a sugerir com firmeza aos pastores que é
hora de se retirarem para as colinas .

33
Anna segurou a mão de seu pai e descansou uma
bochecha no ombro de Emma enquanto olhavam
silenciosamente para o cenário da Natividade por um tempo.
― Neve ―, disse finalmente Lorde Radbrook, olhando
além do estábulo e suas figuras silenciosas, para a janela
atrás. ― Há um debate acalorado sobre se devemos ir à igreja
na aldeia ou não. O criado de meu pai deu-lhe a sua opinião
de que a queda de neve ainda não é suficientemente espessa
para tornar as viagens de carruagens perigosas, embora, sem
dúvida, de manhã, teremos que viajar de trenó ou a pé. E
quanto a isso, Anna? Devemos ir?
Uma cabeça assentiu contra o ombro de Emma.
― Sim ―, disse ele. ― Não seria o Natal sem o culto da
igreja, não é? Senhorita Milford?
― Sim, milorde ―, disse ela. ― Eu irei com Peter, Sophia
e minha tia .
― Oh, milorde ―, uma voz doce e leve disse por trás
deles, ― os carolers vieram e estão na grande sala
preparando-se para cantar. Adrian estava errado, você vê, e
eles vieram apesar da neve. ― Ela riu alegremente. ― Eu
acredito que você ganhou essa aposta. Você virá?
― Sim ―, disse ele, endireitando-se. ― Eu a
acompanharei se puder, Srta. Chadwick. ― Ele estendeu um
braço para o dela. ― Anna?
― Oh, sim ―, Roberta disse, seus olhos brilhando. ―
Venha e ouça o canto, Anna, querida. Você vai pegar minha
mão?

34
Mas Anna balançou a cabeça negativamente e se
agarrou à saia de Emma. Ela observou o maxilar de papai
apertado e sabia que ele estava irritado com ela. Porém ela
também sabia, com todo o otimismo da infância, que seria
um Natal perfeito depois de tudo. Ela sentiu momentos antes,
quando papai e sua nova mamãe haviam se agachado de
cada lado dela e os três tinham contemplado José, Maria e o
bebê Jesus ― uma família olhando para outra.
Se sentiu tão feliz quanto Jesus, e a pequena questão de
uma palha quebradiça fazendo cócegas na pele também não
acabaria com sua alegria. Ela sentiu que sua nova mãe
estava pairando sobre ela com tanto calor e amor quanto
Maria estava prodigando a Jesus. E ela sentiu que Papai
estava lá como José, amando sua família, protegendo-as do
mundo.
Papai estava com raiva e ele estava entrando no grande
salão com a Srta. Chadwick em seu braço enquanto Anna
caminhava atrás, com a mão na mão da mãe dela. Mas ela
não estava preocupada. Embora seu desejo já tenha sido
concedido, ainda não era Natal. Amanhã seria Natal.
Amanhã seria o melhor dia em todo o mundo. O melhor
dia de todos.

Emma estava no quarto de dormir anexo ao berçário que


era compartilhado por Anna, Harriet e Julie. Harriet e Julie
estavam no berçário ouvindo Marjorie Fotheringale contar
35
uma história, apesar da hora já adiantada ― passava da
meia-noite. Mas Anna não queria ouvir. Ela queria que Emma
a despisse e a colocasse para dormir na cama.
Emma não sabia se cedia à tentação de abraçar a si
mesma por esse raro dia de alegria ou se sentia todo o
constrangimento do que aconteceu desde sua chegada a
Williston Hall.
Anna não saiu do seu lado toda a noite. Elas ficaram de
mãos dadas, ouvindo os carolers no grande salão e
observando a cidra, o ponche quente e o wassail para o
brinde, sendo entregues depois, enquanto todos tagarelavam
e riam ainda mais alegremente do que no jantar. Emma
sentiu-se culpada. A criança deveria ter estado com o pai e
com a Srta. Chadwick, a quem ele parecia estar fazendo a
corte. E a senhorita Chadwick olhou para Anna gentilmente e
falou docemente com ela.
Emma sentiu-se ainda mais culpada quando chegou a
hora de ir à igreja e Anna recusou teimosamente em ir com
seu pai na carruagem do Sr. Shelton. Ela agarrou-se à mão
de Emma, mesmo quando Emma se curvou e assegurou-lhe
que a veria na igreja.
Acabou tendo que ir na carruagem dos Shelton também,
Anna em seu colo. Dizer que se sentiu desconfortável era
subestimar o caso. E de alguma forma, Lorde Radbrook tinha
sido separado da srta. Chadwick do lado de fora da igreja e
tinha entrado com Emma, Anna entre eles, agarrando-se a
uma mão de cada um. Eles se sentaram lado a lado e se
ajoelharam lado a lado durante todo o serviço, o mundo

36
encolhido em um pequenoespaço, a consciência de Emma
sobre o pai e a criança ao seu lado, esmagadora, mesmo
sentindo a atmosfera muito amada do culto de Natal.
E então, quando eles chegaram em casa e as crianças
cansadas e excitadas tinham sido levadas até a cama por
Marjorie, que geralmente assumia a liderança em tais
assuntos, Anna tinha chacoalhado em negação a cabeça
quando seu pai se curvou para levantá-la e se virou para o
outro lado, erguendo seus bracinhos para Emma.
― Minha querida Emma ―, a condessa disse com uma
risada: ― Nunca vi Anna tão encantada com ninguém, exceto
Edwin. Leve-a, por bondade, querida. Haverá chocolate
quente esperando por você na sala de desenho quando
descer.
Suas palavras foram abafadas por um gritinho da srta.
Chadwick e uma alta risada de vários outros, já que essa
jovem foi presa sob o raminho de visco no grande salão pelo
Visconde Treadwell que lhe deu um beijo estralado.
Emma não estava entendendo o que havia nela que
encantava à Anna. Ela desejava que pudesse ter sido
qualquer outra criança. Mas mesmo assim, sentiu algo
profundo em seu coração enquanto despia a criança e a
vestia com uma camisola de flanela quente e ajeitava a roupa
de cama. O carinho de Anna para com ela era um presente de
Natal que não ignoraria ou esqueceria facilmente.
Anna entregou-lhe uma escova e instalou-se diante do
espelho estreito do pequeno toucador ao lado da cama.

37
Emma escovou os cachos macios até que o cabelo da
criança estivesse livre de emaranhados. No espelho, ela
parecia de repente muito mais como a criança pequena e
frágil que ela era. Emma afastou o cabelo do rosto da criança
e recolheu-o com uma mão, na nuca.
― Ficaria lindo trançado ―, disse ela. ― Você tem lindos
cabelos brilhantes, Anna .
A criança olhou para ela no espelho com grandes olhos
brilhantes. Emma sorriu, embora o sorriso
desaparecesseassim que outra figura apareceu atrás dela.
― Hora de dormir, Anna ―, ele disse com firmeza. ―
Você manteve a srta. Milford longe da sala tempo suficiente .
Anna pôs-se de pé e mergulhou na cama. Emma virou-
se quando Lorde Radbrook inclinou-se sobre a cama,
colocando os cobertores sobre a criança. ― Anna quer dizer
boa noite ―, disse ele, sem virar a cabeça para ela.
Quando ela olhou para cama, viu a filha dele com os
braços abertos para ela, os olhos ansiosos, as bochechas
coradas de cansaço.
― Boa noite, Anna ―, disse ela, curvando-se ao lado da
figura imóvel do pai, envergonhada de novo, sentindo os
braços da criança perto do pescoço dela. ― Feliz Natal.
Mas não seria liberada tão facilmente. Anna agarrou-se
nela quando ergueu a cabeça, e seus lábios franzidos foram
levados sob a cabeça de Emma para lhe dar um beijinho.
― Durma bem ―, ela sussurrou, virou-se e fugiu do
berçário, caminhando rapidamente pelo longo corredor

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superior, descendo as escadas para chegar à segurança da
companhia de outros adultos.
Mas ele a alcançou logo antes dela chegar às portas do
salão. Sua mão apertada no pulso dela não podia ser
ignorada. Ele a levou sem dizer uma palavra, passando as
portas da sala de música até a biblioteca. Ele a puxou para
dentro e fechou a porta atrás deles antes de soltá-la.
Havia um fogo na lareira e um único ramo de velas
sobre ela.
Ele se recostou contra a porta e cruzou os braços sobre
o peito. ― O que está acontecendo? ―, Ele perguntou. Sua voz
era dura e fria.
― Com Anna? ― Ela se virou para encará-lo. ― Eu não
sei. Ela parece ter gostado de mim por algum motivo. Mas
terá me esquecido até amanhã pela manhã. Desculpe-me,
milorde.
― Anna não costuma gostar das pessoas ―, disse ele. ―
Desde que sua mãe morreu, ela se agarrou a mim buscando
conforto e tranquilidade .
― O que posso dizer? ―, Perguntou depois de um breve e
tenso silêncio. ― Você deve ter visto que eu não fiz nada para
atraí-la para longe de você. Por que eu faria tal coisa, afinal?
Ele afastou-se da porta. ― Ela poderia ter sido sua ―, ele
disse com dureza. ― Você poderia ter tido direito ao carinho
da minha filha. Mas você não quis saber de mim, nove anos
atrás. Você nem respondeu minhas cartas. E agora você quer
simplesmente tomar para si o carinho da minha filha?

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― Edwin! ―, Ela disse, chocada. ― Eu recusei sua oferta
― duas vezes. Eu dei-lhe o meu motivo. Foi impróprio você
escrever depois. Teria sido impróprio eu lhe responder.
― Impróprio! ― Ele disse, sua voz um sussurro. ― Você
já fez algo espontâneo em sua vida, Emma? Eu estava
enganado sobre você. A juventude, a beleza, o verão e as
núpcias da minha irmã com seu irmão me enganaram
pensando que você era uma garota quente e vibrante capaz
de amar e rir. Eu afortunadamente escapei desse enlace.
Olhe o que você se tornou! ― Seus olhos se moveram sobre
ela.
Ela apertou as mãos firmemente na frente de seu corpo
e engoliu o nó na garganta. ― Eu me tornei uma solteirona de
vinte e sete anos de idade ―, disse ela. ― Não uma criatura
que merece ser desprezada, Edwin. Eu disse-lhe que
precisava permanecer com meus pais, que eles não poderiam
ficar bem sem mim. Foi o que eu fiz .
― Você foi fria, sem coração ―, disse ele. ― Sem espinha
dorsal. Você não viu que eles a usaram, se eles a amassem,
eles teriam lhe concedido o prazer de estar com alguém que
se apaixonou por você e que tinha os meios para sustentá-la.
Embora eu suponha que você poderia ter lutado contra eles
com bastante teimosia, se houvesse quase metade da
vivacidade e amor em você como eu pensava que existia. Eu
fui um tolo.
― E eu era jovem ―, disse ela, ferida. ― Eu tinha apenas
dezoito anos. Você foi o primeiro homem que eu conheci.
Fiquei assustada, confusa com os sentimentos que você

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despertou em mim. Era mais seguro me apegar à vida que eu
conhecia .
― O primeiro homem! ―, Ele disse, olhando-a da cabeça
aos pés novamente. ― O único homem, Emma. Você é tão fria
quanto o mármore de um túmulo, não é?
Ela engoliu em seco várias vezes, mas não conseguiu
confiar em sua voz. Perguntou-se novamente o conteúdo
daquelas três cartas que ele havia escrito. Seu pai tinha
contado sobre as cartas, mas eram indecentes, ele havia dito.
Ele então as tinha destruído. Ela tinha sofrido ao longo
dos anos desejando que tivesse apenas uma dessas cartas
para manter consigo.
― Mas esse não é o ponto ―, disse ele. ― Eu me casei
com Marianne dois anos após você me rejeitar. Ela foi minha
esposa, Emma, por quatro anos. Nós tivemos Anna juntos.
Eu vivi a agonia de sua morte, quando ela tentou
absurdamente resgatar a bola de Anna do rio, sabendo que
ela não sabia nadar. Você está tão longe, em meu passado,
que você não significa nada pra mim. Nada! Você me
entende?
― Por que você acha que precisa dizer isso? ―,
Perguntou ela. ― Foi há muitos anos, Edwin. Eu recusei você.
Por que acredita que eu espero que você sinta algo por mim
agora? O que você quer me fazer entender?
― Eu não sei como você está fazendo isso ―, disse ele, ―
mas você está tentando me conquistar através de Anna. Não
vai acontecer. Eu não te tocaria nem se você fosse a única
mulher que existisse na Terra .

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Ela elevou seu queixo. ― E eu não permitiria que você
me tocasse ―, disse ela, ― mesmo se você fosse o último
homem na Terra. Você realmente acredita que eu vim aqui
para laçar você? Você acha que eu estou cheia de emoções
frustradas só porque eu tenho vinte e sete anos e nunca
conheci um homem? Eu escolhi meu curso na vida há nove
anos e nunca me arrependi disso. Estou satisfeita. ― ― Oh,
mentirosa, seu coração lhe disse.
Ele caminhou em direção a ela e pegou em seus ombros
com um aperto forte e ameaçador, um fato que contrariou
completamente a afirmação anterior dele sobre não tocá-la.
― Deixe Anna em paz ―, disse ele. ― Eu não quero você
perto dela, você me entende? Você poderia ter sido a mãe da
minha filha, mas você escolheu não ser. A mãe dela era
Marianne. Eu gostava dela. E quando chegar a hora de Anna
ter uma nova mãe, então vou escolhê-la com cuidado.
Escolheremos alguém que possa trazer luz e juventude para a
vida dela. Não é seu caso, Emma. Você teve sua chance e
você escolheu me desprezar.
― Não te desprezei ―, disse ela. ― Nunca isso. Você sabe
que não, Edwin. Eu tinha dezoito anos de idade. Você não
pode usar esse fato para suavizar o ódio que sente por mim?
― Ódio? ―, Ele disse. ― Você bajula a si mesma, Emma.
Não tenho sentimentos por você. Nenhum. Eu não quero você
na minha vida ou na vida da minha filha .
Suas mãos a apertavam como se estivesse a ponto de
quebrar seus ossos.

42
― Eu vou me manter longe de Anna amanhã ―, ela disse
calmamente. ― Você está me machucando, milorde .
Ele a soltou imediatamente.
― Emma ―, disse ele. Sua voz parecia dolorida. ― Durou
apenas sete anos, a caminhada que escolhera para si. Seu
pai morreu depois de um ano, sua mãe dentro de sete. Com a
idade de vinte e cinco anos, você estava sozinha, com toda
uma vida pela frente .
― Sim ―, disse ela.
― Por que você não se casou? ―, Ele perguntou. ― Vinte
e cinco anos não era uma idade tão avançada. Nem vinte e
sete, apesar do disfarce de solteirona que você escolheu.
― Como você acabou de dizer ―, ela respondeu, ― foi o
caminho que escolhi .
― Bem ―, ele disse, seu rosto e sua voz cansados, ― é
sua vida, eu suponho. Eu nunca entendi você, embora
acreditei que sim durante aquele mês. Foi insensato acreditar
que após pouco mais de quatro semanas eu a conhecia o
suficiente para prometer-lhe o meu coração durante o resto
da vida .
― Sim ―, disse ela.
― Suponho que nós dois éramos jovens demais para
lidar com a situação com um pouco de sensatez ―, disse ele.
― Sim.
― Você deve estar querendo uma bebida quente ―, disse
ele. ― Vá para o salão, Emma. Perdoe-me se eu não a escolto.
Eu vou ficar aqui por alguns minutos para ver se consigo
recuperar meu temperamento .

43
Ela deixou a biblioteca sem mais uma palavra. Mas
subiu as escadas até seu quarto em vez de entrar na sala de
desenho, da qual sons de alegria emanavam.

Lorde Radbrook estava um pouco mais animado na


manhã seguinte, apesar de ter dormido mal. Ele evitou com
sucesso tanto Emma quanto Roberta Chadwick no café da
manhã e teve uma conversa satisfatória com o Coronel
Porchester.
Quando o café da manhã acabou, todas as crianças
estavam acordadas apesar de terem ido tão tarde para a
cama. Ainda assim, na manhã de Natal, ele se lembrou de
sua própria infância. Na véspera de Natal, sempre adormecia
quase com expectativa, e bastante convencido de que não iria
dar uma piscadela. E então vinha o alívio de acordar pela
manhã para encontrar a luz do dia passando as cortinas e de
saber que a longa espera e o interminável suspense
chegavam, finalmente, ao fim.
Sim, as crianças estavam lá, é claro. E enviando
mensagens urgentes ao andar de baixo para anunciar o fato.
O costume era que eles fossem levados para um dos salões
com seus pais e avós para a abertura de seus presentes.
Lorde Radbrook poderia, portanto, estar ansioso por essa
cerimônia em particular. Ele teria sua filha indiscutivelmente
para si mesmo. Sua raiva da noite anterior, ele admitiu
pesarosamente, tinha sido causada mais pelo ciúme do que
44
por qualquer outra coisa. Foi uma admissão perturbadora.
Ele teria ficado com ciúmes de Marianne se ela tivesse vivido?
Anna estava esperando por ele no berçário e ergueu seu
rosto para o beijo da manhã.
― Mas o que é isso? ― Ele perguntou a ela, rindo e
virando-a para ver a parte de trás de sua cabeça. Seu cabelo
estava penteado suavemente de seu rosto e enrolado em uma
coroa trançada sobre a coroa.
Inesperadamente, considerando a simplicidade do estilo
em contraste com seus costumeiros cachos, ela parecia linda.
― Ela insistira nisso, milorde ―, disse a babá de Anna,
nervosa. ― Ela não me deixou chegar perto com a haste de
fazer cachos. Ela me mostrou o que queria que eu fizesse.
Farei rapidamente do jeito certo, se desejar, milorde, mas
você deve dizer a ela. A senhorita Anna pode ser tão teimosa
como uma mula quando quer alguma coisa, com voz ou sem
voz .
Lorde Radbrook ergueu sua filha e beijou sua bochecha.
― Não ―, disse ele. ― Anna parece linda como está .
À medida que os olhos escuros de sua filha se
acomodavam nos dele, ele teve uma lembrança repentina de
Emma segurando o cabelo da criança na noite anterior e
escovando-o. Seria influência dela? Mas ele afastou o
pensamento. Nada iria estragar sua manhã de Natal.
Anna sentou-se silenciosamente em seu colo no salão
enquanto seus primos rasgavam os embrulhos de seus
presentes e exclamavam excitadamente sobre seus
conteúdos. Ela abriu seus próprios presentes com mais

45
cuidado e olhou para ele quando cada um foi revelado. Ela
apertou todos eles em um abraço, recusando-se a permitir
que ele os colocasse na mesa ao lado da cadeira.
Ela parecia satisfeita. Ela não parecia estar esperando
nada mais. Ele suspirou aliviado.
De alguma forma ele deve ter adivinhado seu desejo de
Natal e a satisfez. Era provavelmente a boneca. Ela a beijou
quando desembrulhou e colocou-a com cuidado em seu colo.
Ela brincou com os cachos laranjas entre os dedos.
― Você conseguiu o que desejou, querida? ―, Perguntou-
lhe suavemente enquanto Peregrine desembrulhava seus
soldados de chumbo e gritava com alegria.
Ela assentiu solenemente e ergueu um braço para puxá-
lo pelo pescoço. Ele baixou a cabeça para lhe dar um
beijinho.
Ela se afastou de seu colo e ele observou, divertido, que
ela deslizou seu novo casaco de peles pelo ombro, arrumou a
fita de seu novo guarda-sol sobre o pulso, dobrou o vestido
novo de cetim azul sobre o braço e colocou a boneca
confortavelmente contra o interior do cotovelo. E então ela
levantou o braço e o levou pela mão.
― Para onde vamos? ― Ele perguntou, rindo enquanto se
levantava. ― Quer mostrar à vovó?
Mas ela o levou para fora da sala. Ela queria voltar para
o berçário? Já? No dia de Natal, quando as crianças usavam
de todas as estratégias de seu arsenal para se manterem
longe de lá?

46
Mas ele soube quase que imediatamente que estava
equivocado. E soube para onde eles estavam indo. Por um
momento, ele considerou interrompê-la, pegando-a, levando-a
de volta ao salão, pensando em alguma forma de distrair sua
atenção. Mas como ele poderia? Era Natal. O dia do Natal.
Era o dia dela. E ele a amava com loucura.
A maioria dos convidados estava na sala da manhã,
tagarelando felizes. Uma mesa de cartas estava em
andamento.
― Ah, aqui está Lorde Radbrook ―, disse Roberta
Chadwick alegremente. Ela parecia extremamente bem
vestida em um tom rosa escuro. ― Todo mundo está dizendo
que podemos fazer passeios de trenó mais tarde, milorde.
Mas a neve é profunda e muito fresca. Eu disse que o trenó
vai virar e nos atirar todos em um banco de neve. Qual e sua
opinião?
Ele sorriu. ― Isso seria um desastre apenas se alguém
fosse atirado sozinho ou ao lado da companhia errada ―, ele
disse escandalosamente.
Mas não teve permissão para ficar ali parado e se juntar
ao riso que saudou suas palavras. Ele foi puxado pela mão da
filha ao longo da sala em direção à janela, onde três damas
conversavam silenciosamente juntas.
Anna soltou a mão do pai e segurou sua boneca para a
inspeção de Emma.
Emma olhou bruscamente e se encontrou com os olhos
inescrutáveis do pai da criança.

47
― Uma boneca ―, disse ela. ― Quão linda ela é. Ela tem
cachos como os seus. Mas, Anna... ― Ela olhou mais de perto
para a criança e sorriu sem conseguir evitar. ― Você não tem
cachos hoje. Você tem uma coroa trançada. Quão linda está,
com toda certeza .
Anna segurou a boneca até Emma pegá-la. E então ela
colocou o vestido no colo de Emma e lutou com o guarda-sol
até que ela o abriu.
― Que garota de sorte você é ―, disse Emma. ― Estes
são adoráveis presentes, Anna. E o rolo de pele para as mãos
também?
Anna ergueu-o e esfregou-o contra a bochecha de
Emma. E então ela ergueu os dois braços, pedindo colo.
Emma olhou inquieta para lorde Radbrook. Mas ela não
teve escolha, ele foi obrigado a admitir, enquanto olhava de
volta para ela com silêncio. Ele dificilmente poderia acusá-la
nesta manhã de ter atraído Anna para seus braços ― nem
poderia ter feito no dia anterior, ele assumiu. Ela estava
certa. Por alguma razão, Anna se encantou com ela.
― Anna queria que você visse os presentes dela ―, ele
falou desajeitado, quando Emma hesitou e então se inclinou
para levantar sua filha no colo.
Anna pegou sua boneca em seus próprios braços
novamente e aconchegou-se contra o peito de Emma.
Ao vê-la assim, lorde Radbrook lembrou-se do cheiro de
Emma que acabou por notar diversas vezes no dia anterior ―
quando estavam olhando para a Natividade, quando estavam
um ao lado do outro na igreja, quando ele se aproximou dela

48
na biblioteca. Ela tinha cheiro de violetas como sempre tinha
sido. Ele estava quase surpreso quando um sentimento de
nostalgia o embargou assim que ele se curvou ao lado dela
para dar uma olhada em José.
Agora, Anna iria respirar aquele aroma.
Ele engoliu em seco. Deus, como ele tinha a amado.
Levou meses até mesmo para estar ciente de que o sol
continuava aparecendo todas as manhãs. Levou anos para
superá-la.
Talvez ele nunca tivesse superado realmente. Talvez, se
ele tivesse, não a odiaria tão intensamente agora.
― Vamos voltar para o salão, Anna? ―, perguntou.
Mas ela balançou a cabeça, se negando, como ele temia
que ela fizesse, e se aconchegou ainda mais em Emma.
Emma olhou para ele com olhos preocupados.
― Você se importa? ― Ele perguntou a ela.
Ela balançou a cabeça.
― É melhor ver se consigo resolver esta questão dos
passeios de trenó ―, disse ele, afastando-se abruptamente.

Emma não acreditava que ela já havia se sentido tão


feliz ou tão miserável durante toda sua vida. Ela sentou-se
em um canto da sala, depois de um almoço leve, segurando
Anna adormecida em seus braços. A cabeça da criança
repousava em seu peito, a boca aberta, a respiração profunda
e uniforme.
49
Emma se doía com uma ternura materna que nunca
antes havia sido autorizada a despertar dentro de si.
Certamente, não poderia haver sentimento mais maravilhoso
do que esse, concluiu, a menos que talvez fosse o de segurar
um bebê pequeno em seu peito e o sentir sugando seu leite.
Era um Natal para se lembrar. Isso contrastava com a
agonia da noite anterior e sua insônia depois de todas as
coisas dolorosas que ele havia dito a ela, depois de pensar em
tudo o que ela havia perdido com aquela decisão tola e juvenil
que havia feito todos aqueles anos atrás.
Anna poderia ter sido filha dela, ele havia dito duas
vezes. Emma poderia ter tido direito ao carinho da criança.
Emma completou os detalhes durante uma noite sem
dormir. Ele poderia ter plantado Anna, ou outra criança, no
corpo dela através da intimidade do amor do casamento. Ela
poderia ter tido a alegria de sentir os filhos dele crescendo
nela por nove meses. Ela poderia ter segurado a criança
desde o momento do nascimento e amamentado ela mesma.
Ela poderia ter tido muito mais do que esta breve agonia de
fingir maternidade quando a criança já tinha quase seis anos
de idade.
Ela poderia. E ela poderia ter sido seu amor nos últimos
nove anos.
Mas ela decidiu o contrário. Encantada, excitada e,
finalmente, aterrorizada por aquele mês de diversão, amizade
e amor em pleno florescimento, culminando com uma oferta
apaixonada de casamento feita por Edwin, ela se dirigiu a
seus pais para conselhos. Ela era muito nova e inexperiente.

50
Por que ambos se opuseram tão veementemente ao
enlace? Perguntou-se. Tinha dezoito anos de idade, e Edwin
dificilmente poderia ter sido mais elegível: um barão em seu
direito, rico, herdeiro de um condado e uma fortuna ainda
mais vasta. Papai era apenas um barão de meios moderados.
Teria sido uma combinação brilhante para ela.
Mas eles, ela sabia, sentiram alguma humilhação com o
casamento de Peter. Orgulho, sim, mas humilhação também
por não conseguir parear todos os gastos generosos das
núpcias com o conde indulgente. Talvez eles estremeceram
com o pensamento de ter que passar por isso novamente com
sua filha.
Papai tinha sido um homem orgulhoso.
E então, é claro, sua mãe sempre era de uma
constituição delicada e sempre se apoiou fortemente no
cuidado de sua filha. Eles precisavam dela, seu pai havia
dito. Não podiam liberá-la para este ou qualquer outro
casamento. Não por pelo menos alguns anos mais.
E então ela recusou Edwin. E, quando ele implorou e
pleiteou com ela, abraçando-a forte e tentando convencê-la
em outras palavras, ela se despediu dele, correu de volta para
a casa e se recusou a conversar com ele antes de partirem no
dia seguinte.
E ela se arrependeu daquela decisão, talvez por todos os
dias desde então. E ainda lamentava, agora mais do que
nunca. E, no entanto, ela desejava estar a um milhão de
quilômetros de distância, pensou, alisando suavemente com
uma mão a cabeça da filha dele que dormia em seu colo.

51
― Eu não consigo compreender, Emma querida ―, disse
a condessa em um sussurro, apesar do zumbido de conversa
em volta delas, sentando-se brevemente na cadeira ao lado de
Emma. ― Deve haver uma espécie de encantamento sobre
você. Anna não permite que você fique fora da vista dela. ―
Ela deu um tapinha no braço de Emma com uma mão cheia
de anéis. ― É quase o suficiente para que eu busque preparar
um enlace entre você e Edwin. Na verdade, pensamos que
isso aconteceria, há muitos anos, quando Sophia se casou
com Peter, mas nunca aconteceu .
Emma olhou para ela, horrorizada.
― Oh, não se preocupe. ― A condessa riu antes de sair
para se juntar a outro grupo. ― Eu nunca fui do tipo
casamenteira, querida. Eu não a envergonharia assim. E eu
acredito que Edwin esteja interessado na garota Chadwick,
embora eu não tenha certeza de que Anna irá aprovar sua
escolha .
Roberta Chadwick seria perfeita para ele, Emma pensou
com determinação. Ela traria o riso de volta à sua vida. Ele
costumava rir muito. Os dois. Haviam passado um mês
rindo. E falando. E andando e correndo, cavalgando e
passeando de barco. E se beijando pela última semanaque
passaram juntos. Se beijando mais e mais. Ele era o único
homem que ela já havia beijado.
Estranhamente, ela estava muito livre das
acompanhantes durante esse mês. Eles haviam estado
sozinhos por um bom tempo.

52
― Emma. ― Ele estava agachado em frente dela de
repente, a hostilidade do dia anterior totalmente desaparecida
de seu rosto ― por enquanto, de qualquer maneira. ― Devo
levá-la? Não é justo que você seja tão amarrada dessa forma .
Amarrada!
― Se você quiser ―, ela disse, seu coração se afundando.
Ela percebeu que as lágrimas haviam surgido em seus olhos
apenas quando o rosto dele embaçou diante dela. Ela olhou
para sua imagem borrada, horrorizada. ― Mas talvez ela
acorde. E ela precisa dormir, penso eu. Ela dormiu muito
tarde ontem à noite e acordou bastante cedo esta manhã .
― Emma, o que foi? ― Ele perguntou suavemente. Ela
balançou a cabeça. ― Desculpe pela noite passada ―, disse
ele. ― Você tem sido extraordinariamente gentil com ela. Ela
não tem uma figura materna já por um longo tempo .
― Deixe-a aqui comigo ―, disse ela. ― Eu não me
importo.
― Os passeios de trenó vão acontecer somente mais
tarde ―, disse ele, ― e não devem ser apenas para adultos ―.
Ele sorriu.
― Eles são muito mansos para as crianças. Descerão a
colina junto ao lago depois que Marjorie julgar que seus
almoços tiveram tempo suficiente para se acomodar nos
estômagos. Eu irei com eles, como Anna sem dúvida quererá
ir também .
― O ar fresco será bom para eles ―, disse ela.
― Ela vai querer que você venha também ―, disse ele. ―
Você não precisa, Emma. Está frio lá fora, e será uma longa

53
caminhada até a colina. Eu aviso você agora para que possa
ter uma desculpa plausível pronta para ela .
― Sim ―, disse ela.
Ele procurou seus olhos com os dele. ― A menos que
você queira vir ―, disse ele. ― Você deve fazer o que deseja
fazer. Desconsidere o que eu disse ontem à noite. Faria isso,
por favor? Eu estava com um mau humor e acredito que falei
muitas palavras pelas quais eu lhe devo um pedido de
desculpas .
― Não ―, disse ela.
― Bem. ― Ele olhou para ela com incerteza e endireitou-
se novamente. ― Anna ficará satisfeita se você vier, Emma,
mesmo que seja por pouco tempo .
Ela não respondeu, mas olhou para a criança que
poderia ter sido dela.
Ele se foi quando ela o olhou novamente.

Aubrey e Peregrine se estabeleceram como líderes da


festa, cada um sentado na frente de um trenó, uma criança
menor atrás apegada à cintura deles como se dependesse
disso sua vida.
Anna não iria com nenhum dos dois. Lorde Radbrook
dificilmente poderia culpá-la. A colina era longa e bastante
íngreme, chegando ao fim do largo caminho diante do lago
congelado. A neve estava fresca e grossa e os meninos eram
imprudentes e não os melhores pilotos. Nove vezes a cada
54
dez, os trenós viravam antes de chegarem, derramando seus
dois ocupantes em um banco de neve.
As outras crianças não pareciam perturbadas pelos
tombos frequentes. Houve uma grande quantidade de gritos e
risos e uma grande quantidade de insultos foram lançados.
Lorde Radbrook e Emma no topo da colina e Marjorie na
parte inferior sabiamente decidiram se fazer de surdos para a
ocasião.
― Eu sei o que vai acontecer ―, disse Lorde Radbrook,
olhando para a filha dele, que olhava com anseio para seus
primos rindo e cobertos de neve, mas agarrando-se à mão de
Emma. ― Eu vou ter que descer e cair sozinho, não é, Anna?
E se eu cair na metade do caminho, eu serei o ridículo pelo
resto da nossa estadia aqui. ― Ele estava sorrindo. ― Você vai
cair com papai?
Ela olhou para ele ansiosamente e assentiu com a
cabeça.
― Isso pode ser um suicídio, por certo ―, disse ele a
Emma, ― ou pode resultar em poucos membros quebrados
pelo menos .
― Admita ―, disse ela. ― Você estava esperando por esse
momento .
Havia cor em suas bochechas, ele viu ― e na ponta do
nariz. Os olhos dela estavam dançando, seus lábios curvados
em um sorriso. Ele sentiu uma súbita sacudida de
reconhecimento. Ela realmente não havia mudado tanto,
depois de tudo.

55
― Aubrey! ―, Ele gritou, virando-se bruscamente. ― Eu
vou precisar desse trenó para poder ensinar-lhe uma lição
sobre como descer uma colina sem se transformar em um
boneco de neve no caminho .
― Oh, famoso! ― Aubrey fez uma concha com as mãos e
gritou com todas as outras crianças. ― Tio Edwin está prestes
a fazer papel de bobo. Venham todos .
― Cachorrinho descarado ―, disse seu tio. ― Venha,
Anna. Você pode sentar na frente entre meus joelhos.
Anna estava com os olhos arregalados e solenes quando
ele a instalou no trenó na frente dele e as outras crianças se
reuniram para rir, torcer e zombar.
― Aqui vamos, então ―, disse Lorde Radbrook,
lançando-os abaixo da colina no mesmo momento em que
uma bola de neve da mão de William pousou com um barulho
contra a parte de trás do casaco dele.
Ele se sentiu como um menino novamente. E Emma
estava certa: ele estava esperando por esse momento,
esperando que, de alguma forma, ele achasse uma desculpa
para brincar. Ele estava rindo quando chegaram lá embaixo.
As crianças estavam pulando e saltitando no topo da colina,
torcendo, Emma ao lado deles. Ele levantou Anna, abraçou-a
e fez para sua audiência distante um arco teatral.
― Agora, temos apenas dois acompanhantes adultos e
um garoto extra ―, disse Marjorie, estalando a língua. ― No
entanto, conseguimos gerenciar? E quando você voltar lá,
Edwin, diga a William para amarrar direito aquele lenço sobre

56
seu pescoço ou eu vou estrangulá-lo com isso quando ele
descer. Não estamos em julho .
Anna estava se afastando sem olhar para trás,correndo
de volta para a encosta. Ela estava indo direto para Emma,
que se curvou e estendeu os braços quando ela se aproximou
do topo. Lorde Radbrook estreitou os olhos e observou-as.
― É muito peculiar ―, disse Marjorie ao lado dele. ― Mas
muito desportivo e gentil da parte dela vir até aqui com Anna,
quando a maioria dos pais inventaram mil e uma desculpas
para permanecer dentro de casa. Roberta está chateada com
isso, Edwin?
― Roberta? ―, Ele disse. ― Por que deveria estar?
Ela olhou para ele. ― Você não está prestes a propor a
ela a posição de segunda mãe para Anna? ―, Perguntou ela.
― Ou estou sendo precipitada?
― Você está. Muito ―, disse ele.
― Estou? ― Ela sorriu. ― Mas você lhe deu atenção de
forma tão marcada na cidade, primavera passada, você sabe,
Edwin, e você se juntou a uma festa na casa do cunhado dela
por algumas semanas durante o verão. E então eles foram
convidados para vir aqui. Você certamente não pode me
culpar ― e não somente a mim, também ― por colocar dois e
dois juntos .
― E chegando ao resultado de cinco ―, disse ele.
― Oh, Julie ―, disse Marjorie, seus olhos voltando para
cima da encosta. ― Ela grita como uma espevitada, mesmo
que pareça um anjo. E eu falei a Peregrine na última vez em

57
que ele tinha caído que, se ele não se inclinasse de lado, ele
não cairia direito. Lá vão eles para um banco de neve.
Mas Lorde Radbrook não estava observando o trenó que
descia pela encosta, ele estava assistindo Anna puxando
Emma pela mão em direção ao outro trenó e Aubrey
segurando as cordas para elas.
Mas que o diabo? Ela certamente não pretendia descer?
Mas ela pretendia. Anna já havia subido na frente e Emma
estava se abaixando cuidadosamente atrás dela.
Tinha uma imagem mental súbita de Emma como ele a
tinha visto pela primeira vez no dia anterior, silenciosa e
recatada em seu vestido formal de na cor de alfazema e
usando um gorro de renda branca, a epítome de uma
solteirona desvanecida. Mas a imagem foi quase
imediatamente substituída pela lembrança de Emma, seu
bonnet de palha levantado, seus cachos curtos em desordem
desenfreada sobre seu rosto corado, e ela rindo, remando
furiosamente em uma corrida de barco pelo lago com ele,
molhando-se com água em cada puxada indigna e não
qualificada dos remos. E, finalmente, ela saiu do barco e caiu
de joelhos ao lado dele, onde ele se deitara insolente na
grama, tendo terminado sua corrida muitos minutos antes.
Ela estava rindo como uma menina e acusando-o de toda
forma de trapaça imaginável antes que ele abaixasse a cabeça
e a beijasse longa e profundamente.
― Misericórdia ―, disse Marjorie, ― Aí vem Emma. O
mundo ficou louco .

58
Ela estava gritando e rindo, impotente. O trenó balançou
de um lado para o outro, mas milagrosamente manteve-se em
curso até que deslizou para uma parada a poucos metros de
onde os outros dois adultos estavam de pé.
Ela estava inclinada para Anna, Lorde Radbrook viu
enquanto ele dava os poucos passos em direção a elas, ainda
rindo impotente. Ela não estava rindo sozinha. Anna também
estava gritando com prazer agudo e recostando-se em Emma.
― Nós fizemos isso ―, disse Emma, ofegante. ― Isso
ensinará aqueles meninos desagradáveis a não zombar de
nós. Papai ficará orgulhoso de você.
Mas Lorde Radbrook estava parado petrificado. Deus.
Oh Deus. Ela estava rindo, seu rosto, de uma criança
ensolarada. Ela estava fazendo sons.
Anna saltou ficando de pé, silenciosa novamente, e
envolveu seus braços em torno da cintura dele. Emma estava
olhando para ele, o riso morrendo em seu rosto. Ela se
levantou devagar.
― Ela não estava em perigo, asseguro-lhe ―, disse ela. ―
Se eu tivesse derrubado o trenó, teríamos pousado em neve
macia .
Ela tinha entendido mal o olhar em seu rosto.
― Ela estava rindo ―, ele disse sua voz curiosamente
apertada. Mas ele teve que morder o lábio de repente e se
afastar bruscamente para que ela não visse a humilhação de
suas lágrimas.
Ele subiu a colina depois, enquanto Emma e Anna
ficaram lá embaixo com Marjorie. Mais de meia hora depois,

59
eles voltaram para a casa e Marjorie enxotou todas as
crianças até o berçário para pentear os cabelos e lavar as
mãos antes do chá.
Lorde Radbrook foi puxado, para desfazer um nó
particularmente obstinado do lenço de Anna. Ela ainda
estava segurando a mão de Emma, ele podia ver, embora
Emma estivesse um pouco à frente e tinha claramente a
intenção de prosseguir para seu próprio quarto no andar de
cima.
― Pronto ―, ele disse finalmente, endireitando. ― Já
arrumei. Pra cima com os outros, então, Anna, para arrumar-
se, se quiser tomar chá.
Mas ela olhou para ele com olhos ansiosos e por sobre
Emma, que ainda estava a um passo de distância. Anna
olhou de volta para ele e deliberadamente até o teto acima da
cabeça de Emma.
― Ah ―, ele disse com um afundamento do coração e um
estranho revirar no estômago. E ele percebeu com a
expressão repentina nos olhos dela que Emma tinha acabado
de perceber. ― Eu peguei a srta. Milford sob o visco, não é,
Anna? Que inteligente de minha parte.
Sua filhasoltou a mão de Emma finalmente e agarrou-se
a sua saia em vez disso. E seu braço livre veio sobre a perna
de seu pai. Ela olhou para eles.
― Eu tenho uma filha bem treinada ―, ele disse tão
ligeiramente quanto pôde, colocando as mãos nos ombros de
Emma e dando o passo em direção a ela. ― Ela a manteve
prisioneira até que eu estivesse pronto para capturar você por

60
mim mesmo. ― E baixou a cabeça e beijou-a com rapidez e
firmeza.
E foi imediatamente engolfado no delicado perfume das
violetas e nas impressões do verão e do calor, juventude,
risos e amor jovem. E nas memórias de Emma e o que ela
tinha significado para ele antes de todos os meses e anos de
dor terríveis, que o fizeram odiá-la. E do que ela continuou a
significar para ele apesar de toda a dor e todo o ódio. E do
que ela ainda significava para ele e sempre significaria.
Pelo menos, pensou ele, levantando a cabeça e olhando
para os olhos castanhos atordoados, ele queria que o beijo
fosse rápido. Ele não tinha ideia se realmente foi ou não.
Anna, ele percebeu, ainda estava olhando fixamente para
eles.
― Você está embaixo do visco também ―, disse ele,
curvando-se e beijando-a. ― E agora que esse absurdo foi
feito, talvez possamos prosseguir para o nosso chá. Estou
morrendo de fome .
Subiram as escadas em silêncio, os três, Anna entre
eles, segurando uma mão de cada um.

Eles deveriam manter a rotina do campo, a condessa


havia anunciado aquela manhã e o jantar de Natal seria mais
cedo. Em parte, era para que os jovens com sua energia
ilimitada tivessem muito tempo tanto para ir para os passeios
de trenó como para se juntarem às danças previstas no salão
61
mais tarde, à noite, e em parte para que os criados pudessem
ter algum momento de diversão para eles mesmos após o
banquete.
Os passeios de trenó sempre foram melhores após o
anoitecer, de qualquer forma, alguém disse. Especialmente
porque a tempestade havia desaparecido completamente e
provavelmente haveria luz da lua e luz das estrelas para guiá-
los.
Emma não iria. Ela decidiu isso durante o chá. Não
seria próprio. Ela não era nem uma das jovens damas e nem
um casal com alguém. Ela era apenas uma solteirona, na
mesma categoria de tia Hannah, que se sentara ao lado do
fogo o dia todo, acenando com gentileza sobre todo o
divertimento em volta dela.
Além disso, se ela fosse para uma festa puramente
adulta, sem a presença de Anna como desculpa, ele poderia
pensar que ela esperava acompanhá-lo. Havia três trenós
aparentemente, cada um deles grande o suficiente para
acomodar apenas dois passageiros.
― Outra razão pela qual a noite é o melhor momento
para os passeios ―, disse um jovem cavalheiro, sorrindo
calorosamente para uma jovem dama corada.
Edwin poderia pensar que ela esperava ser levada por
ele. Suas bochechas queimaram com o pensamento. E
queimaram novamente, sua respiração surgiu em um suspiro
inigualável, quando ela se lembrou daquele beijo no corredor
abaixo do visco, e do jeito que seus lábios se agarraram ao
dele em vez de se afastar assim que uma aparência de beijo

62
havia acontecido para satisfazer Anna. E a maneira como ela
se empolgou, colocando-se contra ele de modo que seus seios
tivessem tocado o casaco e sentido toda a dureza masculina
da parte superior do corpo dele.
E ela ficou por debaixo daquele visco por um minuto
antes do beijo, mantida ali pela mão de Anna na dela, sem
querer magoar a criança se afastando. Mas para ele deve ter
parecido que ela esperou pacientemente lá até que percebesse
onde estava.
Contorceu-se de vergonha ao pensar.
Não, ela não se juntaria aos passeios de trenó. Ela
também não dançaria naquela noite. Ela se lembraria de
quem e o que era e se comportaria de acordo.
Mas as outras pessoas tinham outras ideias.
― Você não se juntará aos passeios de trenó, senhorita
Milford? ― O coronel Porchester perguntou-lhe alto do outro
lado da mesa de jantar, quando ela acabava de explicar isso a
Lorde Hodges que estava sentado ao lado dela.
Emma engoliu um bocado de ganso. ― Não, senhor ―,
ela disse com um sorriso. ― Eu acredito que vou ceder à
sanidade e ficar em casa onde é quente .
― Ah, sim ―, disse ele. ― Você ficou pinoteando com as
crianças esta tarde, não foi mesmo, madame? Parece ser
muito esportista, devo dizer .
― Não vai andar de trenó, Emma? ―, Perguntou Peter de
três lugares além na mesa, inclinando-se para a frente para
que ele pudesse vê-la. ― Absurdo! A neve provavelmente
estará derretendo amanhã ou no dia seguinte e não a

63
veremos novamente por mais dois anos ou mais. Claro que
você deve vir. Você pode se apertar entre Sophia e eu.
― Eu não sonharia com isso ―, disse ela.
― Emma ―, Sophia disse com um suspiro, sentada
ainda mais longe, ― Peter e eu estamos casados há mais de
nove anos. Não precisamos mais do romance de um passeio
de trenó.
Houve uma risada geral ao longo da mesa.
― Nós podemos encontrá-lo em outros, ah, lugares mais
confortáveis ―, disse Peter.
Suas palavras foram recebidas com risadas muito mais
acaloradas.
O coronel tossiu. ― Isso vai contra todas as leis da
galanteria, permitir que uma linda jovem passeie num trenó
entre o irmão e a cunhada ―, disse ele. ― Madame, eu vou
retirar esses ossos envelhecidos e pulverizar esses pulmões
antigos para dar uma volta com você eu mesmo, se você
consentir em confiar em mim .
Emma sorriu. ― Obrigado, senhor ―, disse ela. ― Isso
seria muito agradável .
Era querer muito sair pela tangente, ela pensou
tristemente quando a conversa mudou para outros tópicos. E
era muito querer parecer uma jovem solteirona decorosa.
Um horário havia sido ajustado, uma vez que havia
apenas três trenós e doze casais que desejavam montar neles,
de modo que nove casais não ficariam lá fora por uma hora
ou mais sem mais prazer da noite do que pés frios e narizes
avermelhados. Miss Chadwick e outra jovem afortunada

64
deveriam andar duas vezes, já que havia dois cavalheiros
ansiosos para escoltar cada uma.
Emma passearia com o último grupo. Enquanto isso, ela
brincaria de cabra cega com as crianças.
O passeio, quando chegou o momento, foi quase
anticlimático. Enquanto Lorde Radbrook afastou-se com a
Srta. Chadwick na direção do lago, e outro jovem cavalheiro
levou a dama de sua escolha para o pasto, o coronel pegou as
fitas de seu trenó e colocou os cavalos para moverem
lentamente ao longo do calçamento até o Portões, na estrada
por uma milha, e de volta.
Foi muito agradável. A lua e as estrelas brilharam a
noite, e a leve brisa, que tinha feito o ar fresco durante a
tarde, tinha diminuído para que quase não se sentisse frio.
Claro, pensou Emma, ela tinha uma túnica pesada sobre ela,
e suas mãos estavam apertadas dentro de seu rolo de pelo.
― Dia de Natal ―, disse o coronel. ― Sempre há um
sentimento especial sobre isso, não é mesmo? Eu lembro... ―.
E ele estava contando uma série de reminiscências sobre o
Natal e suas experiências militares.
Emma relaxou e aproveitou a viagem.
Eles chegaram de volta à casa quase no mesmo
momento que Lorde Radbrook e Miss Chadwick.
― Ah ―, disse o coronel, tendo ajudado Emma descer e
se virou. ― O frescor da juventude. Juro que seus olhos
brilham tão brilhantemente quanto as estrelas, madame. Ele
curvou a mão de Roberta e a tomou na dele. ― E aposto que
você está se preparando para dançar a noite toda .

65
― Como eu poderia resistir, senhor? ―, Ela disse
alegremente, colocando seu braço sobre o dele e seguindo
pelos degraus de ferradura e as portas principais com ele.
Emma sentiu uma mão em seu braço enquanto se
preparava para seguir.
― Venha para um passeio comigo ―, disse Lorde
Radbrook rapidamente, e antes que ela soubesse o que estava
acontecendo, ela estava sentada no outro trenó, sua túnica
mais pesada sobre os joelhos, e ele estava colocando os
cavalos em movimento. Os sinos dos arreios tocaram.
Ela se virou para olhar seu perfil na escuridão e desviou
o olhar novamente. Pareciam muito cercados pela escuridão e
pelo vazio. A casa parecia muito atrás deles.
Ela pensou por um minuto que ele deveria ter algo
muito particular para dizer a ela, talvez uma repetição da
reprimenda do dia anterior. Talvez, afinal, ele se ressentisse
de ela ter ido andar de trenó com a filha dele naquela tarde
ou de ter se juntado aos passeios de trenó esta noite. Mas ele
não disse nada enquanto levava o trenó pelas trilhas já bem
ordenadas em direção ao lago.
― Ela não falou ou fez um som ou sorriu ou riu desde
que Marianne morreu ―, ele disse, abruptamente, finalmente.
― Não, pelo menos, depois que ela perdeu a voz após quase
dois dias gritando sem parar .
Ela pensou naquela tarde, quando Anna tinha gritado
com gargalhadas em sua quase desastrosa corrida pela
encosta. No momento, ela não percebeu o significado do que
estava acontecendo ― não até ele ter falado e ela ter visto as

66
lágrimas nos olhos dele. Ela pensou primeiro que ele
estivesse furioso com ela.
― Tudo vai voltar ―, disse ela. ― Tudo tem um limite,
uma fronteira .
Seguiram em silêncio.
― Eu quase não vinha este ano ―, ele disse
bruscamente, ― quando eu soube que você estaria aqui.
Pensei em levar Anna para a Itália. Mas a atração da família é
sempre muito forte no Natal .
― Sim ―, ela disse, a dor no peito dificultando a
respiração. ― Peter e Sophia e as crianças estavam vindo pra
cá. E a tia Hannah desejou vir. Eu não tive coragem em
insistir no contrário. Se não fosse por ela, eu não teria vindo.
― Sim ―, disse ele. ― Como você fez no ano passado.
Fiquei aliviado .
Eles voltaram ao silêncio. Um longo silêncio até que de
repente, quando eles estavam no caminho acima do lago,
voltando para a casa ao longo da outra margem, ele puxou os
cavalos para uma parada e amaldiçoou expressivamente na
noite. Emma apertou as mãos em punhos sob o manto.
― Você sabe onde estamos? ― Ele perguntou, falando
entre dentes. ― Pelo amor de Deus, Emma, você percebe onde
estamos?
Ela olhou a sua volta, assustada. E seus olhos se
arregalaram. O ponto alto do lago, com as árvores nuas
caindo para a água congelada abaixo. Árvores carregadas de
folhas verdes durante o verão. Água azul, um tom mais

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escuro do que o céu. Calor e o cheiro de árvores, grama,
flores silvestres e água.
― Sim ―, ela disse, e a palavra saiu tremendo em seus
lábios.
Era o lugar onde ele beijou seus lábios vermelhos e
inchados até que ela gemeu e se arqueou contra o corpo dele.
O lugar onde ele havia derramado palavras de amor e lhe
pedido que se casasse com ele lhe contando o que queria
fazer com ela pelo que restava da vida.
O lugar onde ela havia dito sim e então não e então
depois ela já não sabia, até que ele riu com leve confiança e
concordou que ela deveria consultar seus pais. Ele deveria
falar com seu pai também, disse ele. Ainda não tinha feito
isso. Mas não havia nuvem de incerteza em seu rosto.
Ele já vivia no Felizes-para-sempre.
― Sim ―, ela disse novamente.
― Emma. ― Seu nome era um gemido em seus lábios, e
então um braço dele estava sobre seus ombros e a outra mão
estava virando o seu queixo e sua boca estava na dela.
Não seus lábios. A boca dele. Aberta. Calorosa. Úmida.
Com gosto de vinho. O beijo de um homem com experiência,
não do jovem com quem viveu um verão de amor inocente.
Como supôs na época.
Ela não sabia nada sobre homens com experiência. Ela
sentiu sua língua contra seus lábios, dura, exigente, ousada
ou desesperada.
Ela o afastou, resistiu com cada grama de força de
vontade contra o desejo de saltar do trenó e correr e correr.

68
― Não é por isso que eu vim aqui ―, disse ela. ― Eu não
vim para isso. Eu não gostaria que você pensasse... Apenas
porque Anna... Edwin... .
― Não. ― Sua voz estava calma. Sem expressão. Ele
estava pegando novamente as cordas dos cavalos e batendo-
as devagar. ― Claro que não. E eu da mesma forma. Perdoe-
me, por favor, madame.
― Edwin ―, disse ela, estendendo a mão para tocar seu
braço, angustiada.
― Você ficará doente ―, disse ele. ― Puxe a manta acima
dos joelhos novamente e coloque suas mãos de volta dentro
do seu rolo de pelo. Você já deve estar gelada após dois
passeios sucessivos .
― Edwin ―, ela disse, sua voz uma súplica.
― O Natal acabará logo ―, disse ele. ― O Natal sempre
faz coisas estranhas com as pessoas, não é? Dá um sonho de
paz perfeita, amor e amizade. Ridículo, na verdade, embora
eu suponha que seja um mito agradável. Vale a pena
perpetuar. Dentro de alguns dias, seguiremos caminhos
separados, madame. No próximo ano vou tentar a Itália e, no
ano seguinte, talvez Áustria, Espanha ou América. Suponho
que haja navios suficientes no mundo para todos os Natais
que restarem na minha vida e na sua, não é mesmo? Durante
nove anos, foi relativamente fácil manter nossos caminhos
sem cruzar. Estou certo de que, com um pouco de engenho,
podemos gerenciar isso por uns quarenta anos ou mais .
Ela puxou a manta sobre ela e deslizou as mãos dentro
de seu rolo. Ela dirigiu seus olhos para o último.

69
― Eu suponho que você nunca tenha ido visitar Carlton
House, você foi? ―, Ele perguntou.
― Não ―, disse ela.
― Bom. ― Sua voz era viva, alegre. ― Eu vou descrevê-lo
para você. Se ainda não estivermos em casa quando
terminar, também descreverei o Pavilhão em Brighton.
Suponho que você não conhece essa monstruosidade
também?
― Não ―, disse ela.
― Bom ―. Ele se lançou a discursar...

As crianças podiam ficar acordadas até mais tarde,


apesar de que já tivessem ido dormir tarde na noite anterior.
O Natal vinha apenas uma vez por ano, afinal. E nenhuma
criança queria discutir sobre esse profundo pronunciamento
de um adulto.
Eles foram enxotados da sala de estar para o berçário
apenas quando os passeios de trenó dos adultos tinham
chegado ao fim e a condessa declarou que era hora do tapete
ser enrolado e a sala preparada para a dança.
Já era hora de subir de qualquer jeito, disse Aubrey,
corado de excitação e indignação. Se ele tivesse que beijar
mais uma das primas debaixo do galho de visco, ele fugiria
para o mar, a família veria se ele não faria. E ele não tinha
vontade de ficar para assistir as danças bobas, também. Ele
condescendeu e deu uma palmada nas costas de seu primo
70
mais novo, Peregrine, e sugeriu que montassem um campo de
batalha com os soldados de chumbo.
Anna não estava tão ansiosa para subir, já que nem seu
papai e nem sua nova mamãe apareceram com o retorno da
última leva de passeios de trenó. Pegou, porém, a mão da tia
Marjorie obedientemente, permitiu que sua avó beijasse sua
bochecha e subiu as escadas até o berçário sem queixar.
Ela até brincou por um tempo com as outras meninas e
suas bonecas, mas quando seu papai finalmente chegou, ela
pegou na mão dele e abriu o caminho para o quarto. Os
outros não estavam indo dormir, mas ela já queria ir pra
cama.
― Cansada, querida? ―, perguntou o papai, sentando-se
na beira da cama enquanto ela se trocava sem ajuda de uma
babá.
Ela assentiu com a cabeça e permitiu que ele soltasse
seu cabelo e depois colocasse os cobertores debaixo do seu
queixo. Ela ergueu os lábios esperando pelo beijo dele.
― Boa noite, Anna ―, ele disse, segurando uma de suas
bochechas com uma mão quente. ― Foi um bom Natal, não
é?
Ela assentiu.
Ele se inclinou sobre ela e a beijou novamente antes de
partir.
Ela ficou muito imóvel deitada de costas, olhando para
cima. Sim, foi um bom Natal. Ela tinha tido o melhor
presente de Natal e seu desejo havia sido concedido. Ela

71
tinha a mãe mais maravilhosa do mundo,melhor que a tia
Sophia ou a tia Patricia. Melhor ainda do que a tia Marjorie.
Melhor do que a própria mãe? Ela não conseguia se
lembrar dela e geralmente tentava não fazê-lo, mas pensou
nela agora e descobriu que não conseguia ter lembranças
claras. Mamãe se afogou. Ela sabia disso. Ela tinha visto isso.
Mas ela não a empurrou. Tinha medo de que pudesse ter feito
isso, mas Papa lhe havia dito uma e outra vez que não tinha,
que a mãe simplesmente se inclinara muito na água e caiu.
Sim, era verdade. Ela testou a memória em sua mente e já
não sentiu o velho terror que a acometia em suas
lembranças.
Ela mal podia lembrar-se de sua mãe. Com exceção de
um sentimento caloroso. Mamãe era calorosa. Assim como
sua nova mãe era.
Exceto que havia outra coisa com sua nova mamãe ―
um pequeno sentimento lá dentro, que ela não conseguia
expressar. Uma pequena dor, vazio ou pânico. Ela não
conseguia nomear o que era.
Os desejos de Natal às vezes eram concedidos apenas
para o dia de Natal? Ela nunca tinha pensado nisso antes.
Ela ganhou uma nova mãe, mas talvez fosse apenas
durante o dia de Natal. Talvez amanhã ela não fosse mais sua
mamãe. Talvez ela voltasse a ser apenas a Srta. Emma
Milford.
Talvez seu papai nunca se casasse com ela. E a menos
que ele fizesse isso, o presente não duraria mais do que o
Natal. Papai a beijou debaixo do visco e ela o beijou de volta.

72
E agarrando-se a ambos, Anna sentiu algo maravilhoso por
tudo isso. Ela esperava que quando seu papai se inclinou
para beijá-la também que ele dissesse a ela que eles deveriam
ser uma família agora.
Mas ele não tinha feito isso. E quando os adultos
entraram no salão depois do jantar, seu pai imediatamente se
retirou para conversar com alguns cavalheiros enquanto sua
nova mãe ficara brincando com as crianças. E então, quando
ambos saíram para seus passeios de trenó, eles não foram
juntos.
Papai levara a senhorita Chadwick com ele e a sua nova
mamãe tinha ido com o cavalheiro de cabelos brancos e
bigodes.
Eles não voltaram depois, nenhum dos dois. E apesar de
papai ter subido as escadas para dizer boa noite a ela, sua
mamãe não tinha ido também.
Tinha tanta certeza de que seria o melhor Natal de
todos. Tinha tanta certeza de que hoje tudo seria perfeito.
Amanhã, o Natal acabaria. Não era assim? Ainda seria Natal
amanhã?
Ela achava que não. Na verdade, todos ainda estariam lá
e as decorações ainda estariamdo mesmo jeito, e ainda
haveria todas as delícias para comer.
Mas o Natal acabaria e não seria perfeito depois de tudo.
Anna continuou a olhar para cima. Depois de um
tempo, uma lágrima derramou-se do canto do seu olho e
correu pela lateral de seu rosto até sua orelha.

73
Emma se arrumaria sem os serviços de uma criada,
embora a condessa tivesse oferecido ajuda. Antes do jantar
ela tinha separado o vestido de seda verde, o seu vestido mais
novo e apropriado, com a intenção de usá-lo para a dança.
Mas ela o pendurou de volta dentro do guarda-roupa e
tirou o vestido cor de lavanda. Ela se arrumou lentamente e
deliberadamente, alisando as mangas que chegavam aos
pulsos dela. Ela tirou os grampos dos cabelos e o desfez. Ela
o separou cuidadosamente ao meio, penteou-o baixo e o atou
firmemente à nuca. Ela colocou a sua melhor touquinha de
renda em sua cabeça.
Ela olhou para si mesma no espelho, hesitou e rejeitou a
ideia de colocar seu colar de pérolas. Ela se virou, desceu as
escadas e sentou-se em um canto sombrio da sala ao lado de
sua tia, que estava conversando com a velha irmã da
condessa, a mãe de Marjorie Fotheringale.
Ela quase foi a última pessoa a descer, percebeu,
olhando a sua volta uma vez que estava seguramente
sentada. Sophia já estava no pianoforte, praticando
silenciosamente. O tapete havia sido removido.
Era a noite de Natal. O salão estava quente e festivo,
com seus laços de azevinho e hera e seus galhos de pinheiro
decorados, com as dezenas de velas nos candelabros, todos
brilhantemente iluminados e com o ramo de visco para o
beijo ornamentado pendurado no centro do teto.

74
As damas estavam vestidas com todas as suas sedas e
laços, penas e ornamentos. A maioria dos cavalheiros usava
calças até o joelho e casacos com brocado.
Era o Natal, a temporada mais maravilhosa e alegre do
ano. Havia um zumbido de antecipação quando o conde de
Crampton levou sua condessa até o centro para começar a
dançar e uma onda de risada ecoou quando ele a beijou com
força nos lábios assim que pararam sob o galho de beijos,
esperando que Sophia começasse a tocar .
― Não ―, disse Emma, distraída um momento depois
quando viu o casal começar a dançar. Ela olhou para Lorde
Hodges. ― Eu não danço, obrigada, milorde .
― Mas você realmente deveria, querida ―, disse sua tia
em um sussurro alto depois que sua senhoria se afastou para
reivindicar outra parceira. ― Você não é uma donzela
envelhecida, e sabe que sempre gosta de dançar nas reuniões
caseiras .
― Foi um dia muito atarefado, tia Hannah ―, disse ela
com um sorriso. ― Estes meus ossos envelhecidos estão
cansados .
A senhorita Beynon bufou e a irmã da condessa riu.
Lorde Radbrook estava dançando com Roberta
Chadwick. Ele não tinha a intenção de escolhê-la para a
primeira dança, mas de alguma forma aconteceu. E ele sorriu
para ela e se perguntou se deveria controlar seu
temperamento imprudente ou dar-lhe as rédeas soltas. Seria
a coisa mais fácil do mundo guiar seus passos até o centro do

75
salão, reivindicar seu beijo, dirigi-la até a porta e ir para um
salão mais silencioso para fazer sua oferta de casamento.
Ele tinha vindo a Williston Hall meio decidido a fazer
exatamente isso. E ela era uma jovenzinha extremamente
bonita e amável. Tal resultado para o feriado de Natal era
parcialmente esperado por outros naquela sala também, ele
acreditava.
― Foi um dia tão maravilhoso ―, disse ela, olhando para
ele com olhos azuis brilhantes, um rubor nas bochechas. ―
Eu nunca participei de uma festa dessas no Natal antes,
milorde. Houve tanto para fazer a cada momento do dia .
― Foi um prazer ter você junto à nossa família ―, disse
ele, sorrindo para ela.
Bom Deus, ele estava pensando, tentando concentrar
sua mente e seus olhos somente na jovem em seus braços,
mas se alguém quisesse pintar um retrato da quintessência
de uma típica solteirona, dificilmente poderia se fazer melhor
do que pintar Emma como ela estava agora. Esse vestido
virgem e recatado. Essa touca ridícula. Esse assassinato que
ela cometeu aos seus cabelos grossos e juvenis.
Ele queria rasgar o vestido dela, atirar a touca medonha
no fogo, puxar cada grampo de seus cabelos. Ele queria
sacudi-la até o pescoço dela se quebrar. Deus. Ele queria
fazer algo violento com ela.
― E não vai acabar tão cedo ―, Roberta estava dizendo,
seu rosto brilhante com a juventude e a vitalidade do Natal.

76
― O visconde Treadwell convidou minha irmã e cunhado
― e eu, claro ― para passar o Ano Novo em Norfolk. Ele
também enviou um convite para mamãe e papai .
― Então, toda Londres deve sofrer sua ausência por
muito mais tempo do que o esperado ―, disse ele.
Ela riu, um som leve e contagioso. ― Estou certa de que
ninguém vai sentir minha falta ―, disse ela. ― Meu cunhado,
Adrian, diz que deve haver algum significado para o fato de
que mamãe e papai também estão sendo convidados, mas
acho que isso é bobagem. Eu não sou de grande importância,
afinal .
― Pelo contrário ―, disse ele. ― Parece que me lembro
bem que você foi a jovem que causou um alvoroço na
sociedade durante sua primeira temporada na primavera
passada .
Ela riu novamente. Lorde Radbrook teve o cuidado de
evitar o centro da sala pelo restante da dança.
Ele dançou com sua mãe, com Maria Shelton, com
várias outras damas. E ele sentiu a irritação se transformar
em raiva e fúriaprestes a irromper quando Emma continuou
sentada silenciosamente nas sombras, as mãos dobradas
primariamente no colo, fazendo-se uma com a tia dele e dela.
Ele se sentiu apto a cometer assassinato quando ele riu
de algo que uma de suas parceiras disse enquanto ele a
conduzia de volta para seu lugar no final de uma dança.
Emma havia rejeitado ofertas para dançar com Lorde
Hodges e o Coronel Porchester. Ela até se recusou a dançar

77
com seu irmão, embora ele tivesse sido mais insistente e
abertamente ridicularizado sua opção pela touca.
― Eu teria dado uma meia dúzia dessas de Natal para
você, se soubesse que estava indo para este caminho ―, disse
ele. ― Você esqueceu-se de trazer seu tricô aqui para o salão,
Emma .
Ela virou seu rosto e ele tinha ido embora contrariado.
Sophia acabara de anunciar uma valsa. Já tinha havido
várias. Parecia ser a dança favorita da maioria dos jovens e
de alguns dos mais velhos também. Emma tinha dançado
uma vez em uma reunião local e gostou, embora a opinião
geral tenha sido de que era muito rápida e um pouco vulgar e
melhor para as pessoas que gostavam de frequentar Londres,
o que sempre encorajava tudo que era rápido e vulgar.
― Madame? ― Uma mão coberta de renda foi estendida
para ela. ― Você vai dançar?
― Não. ― Ela olhou para cima, assustada, e sentiu seu
rosto queimar. Ela pensou que ele ficaria o mais longe
possível dela do que restava da sua estadia em Williston Hall.
― Obrigada, mas eu não danço .
― Não dança ou não vai dançar? ―, Ele perguntou. Sua
mão ainda estava estendida. Sua voz era fria e abrupta. Ela
não viu qual era a expressão dele. Ela se viu incapaz de
levantar os olhos para além do seu pescoço.
― Ambas as coisas ―, disse ela.
― Bem ―, ele disse calmamente, ― você fará uma
exceção nesta ocasião. Venha e dance comigo. .

78
Ela não podia acreditar em como ele estava violando as
boas maneiras. Tanto a tia dela como a dele eram
expectadoras interessadas, ela estava ciente. No entanto,
havia alguma coisa na voz e na tensão do corpo dele que lhe
sugeria que mesmo outra negativa não o intimidaria. Ele
poderiacriar uma cena se ela se recusasse novamente.
Ela se levantou.
Sophia já estava tocando. Os casais já estavam
dançando. Ela levantou um braço endurecido até o ombro
dele. Ele pegou a outra mão dela na dele. Ela só percebeu que
a sua mão estava fria quando sentiu o calor dele.
― Você já valsou antes? ―, perguntou ele.
― Uma vez ―, disse ela.
Dançaram em silêncio. Ela não tinha percebido naquela
ocasião anterior quão íntima era esta dança.
Toda a atenção estava focada neles, dentro do círculo de
seus braços. Se ela fosse um pouco mais alta, talvez pudesse
ter olhado por cima do ombro, observado as outras
dançarinas, sentindo-se menos presa por um certo feitiço,
uma certa tensão.
― Não se preocupe ―, ele disse calmamente depois de
alguns minutos, quando ela pegou o ritmo da dança e se
moveu suavemente enquanto ele a guiava. Sua voz estava
novamente fria. ― Eu vou nos manter longe do centro do
salão .
Ela não respondeu. O pino de diamante aninhado nas
dobras do seu lençocapturava a luz das velas em qualquer

79
direção que eles se viraram. Ela fixou seus olhos em suas
explosões de arco-íris que mudavam de forma brilhante.
Ele amaldiçoou baixinho, de repente, e ela olhou para
cima, assustada, até seus olhos. Eles estavam tão duros e
frios quanto o gelo. Sua mandíbula estava apertada, seu
rosto pálido.
― Você virá comigo ―, ele disse, dançando e a levando
em direção às portas que levaram para o corredor. ― Nós
vamos colocar isso pra fora. Não faça uma cena, Emma.
Ela não tinha intenção de fazer tal coisa. Mas ela sabia
que ele estava a ponto de fazê-lo, e faria,sem dúvidas, se ela
desse um movimento falso. Ela não ofereceu resistência
quando ele abriu uma das portas e a conduziu, com uma
mão na parte inferior de suas costas. Ele fechou a porta atrás
deles.
― Para a biblioteca ―, ele falou bruscamente. ― Haverá
uma lareira acesa lá. E velas também, provavelmente.
Sentia-se um pouco como se estivesse revivendo o
passado, entrando novamente na biblioteca, como na noite
anterior, esperando que ele a trucidasse. Ela caminhou até o
meio da sala e se virou calmamente para encará-lo. Ele
estava com as costas contra a porta, as mãos atrás dele,
ainda na maçaneta. Seus olhos passaram lentamente sobre
ela da cabeça aos pés.
― Eu quero arrancar esse vestido do seu corpo ―, ele
disse selvagemente enquanto os olhos dela se arregalaram
com surpresa e algo como medo. ― E isso. ― Ele apontou um
dedo acusador para a cabeça dela. ― Eu quero... ― Ele

80
respirou fundo e caminhou em direção a ela. ― Eu vou fazer
isso .
Ele tirou a touca da cabeça, retirando um par de
grampos enquanto fazia isso, e caminhou em direção à lareira
com aquilo nas mãos. Emma virou-se para vê-lo, com os
olhos chocados, enquanto ele hesitava, olhava de volta para
ela e deixava cair sua melhor touca de renda sobre as
chamas.
― Você é tão fria assim, até o âmago do seu ser? ―, Ele
perguntou. ― Não há nenhum calor em você?
Ela não disse nada. Ela piscou ferozmente, afastando as
lágrimas que haviam borrado sua visão.
― O que há comigo? ―, ele perguntou entre dentes. ― O
que há de errado comigo, Emma?
Ela engoliu em seco.
― Eu sempre pensei ser um homem elegível ―, disse ele.
― Eu ainda acredito nisto. Mesmo se não tivesse o título, a
fortuna, as expectativas e todos os ornamentos de riqueza e
privilégio, eu ainda me consideraria elegível. Eu sempre
soube que não sou um Adônis, mas também não sou um
gárgula. Eu tenho alguma educação, sei manter uma
conversa, tenho criação. O que me torna tão inaceitável,
então? Ou não sou eu? É você? Você é friaaté o mais
profundo do seu coração?
― Edwin ―, ela disse, apertando as mãos na frente dela,
― não faça isso. Por favor, não. Não há nada de errado com
você. E eu sou humana .

81
― O que acontece, então? ―, Ele disse. ― Por que você
preferiu isso aí em vez de ficar comigo? ― Ele gesticulou para
o vestido lavanda.
Ela balançou a cabeça. ― É o que eu sou ―, disse ela. ―
Eu me visto para me adequar à minha situação na vida .
― Deus! ― Ele girou de repente e esmurrou a lareira. Ele
ficou virado de costas para ela, ambas as mãos agarrando a
parte de cima do mármore, seus olhos fixos no fogo. ― Eu fui
um tolo. Um completo idiota. Eu me tornei uma figura abjeta
e ridícula, implorando e arguindo com você, chorando por
você, escrevendo aquelas cartas. Como você pode ter se
mantido tão fria o suficiente para ignorá-las completamente,
Emma? Todo o coração frágil e quebrado de um jovem estava
naquelas cartas, ridículas como podiam parecer .
― Meu pai as destruiu ―, disse ela. ― Eu nunca as vi.
Ele virou a cabeça para olhar para ela por cima do
ombro, sua expressão cínica. ― Teria feito alguma diferença
se você tivesse as lido? ―, Perguntou ele.
― Eu amei você ―, ela disse, sua voz quebrada. E então,
ela disse de forma mais passional, ― Eu amei você, Edwin! Se
eu tivesse te amado menos, acho que talvez eu tivesse lutado
contra eles e me casado com você .
Ele se afastou da lareira e virou-se para olhá-la. ― Que
tipo de bobagem é essa que está dizendo? ― ele perguntou.
― Eu nunca tinha saído de casa antes ―, disse ela. ― Eu
nunca havia conhecido nenhum homem senão aqueles com
quem cresci. Eu me apaixonei por você tão completamente,
Edwin, que eu fiquei totalmente aterrorizada com o poder de

82
minhas próprias emoções, aterrorizada com o que você fez
com meus sentimentos e com o meu... com o meu corpo. Eu
queria você e o que você tinha me oferecido mais do que quis
qualquer outra coisa na vida. E eu também queria a
segurança e familiaridade da minha vida, da minha casa. Eu
tinha medo da minha própria feminilidade desperta .
Ele olhou para ela, sua expressão pétrea.
― E então eles me aconselharam a não fazer isso ―,
disse ela. ― Na verdade, meu pai disse que não daria seu
consentimento. Ele disse que seria errado, que eu não estava
pronta, e que seria ingratidão eu deixar minha mãe tão cedo e
quando ela estava com sua saúde tão delicada. Ele disse
tantas coisas que me desconcertaram completamente.Muitas
coisas que eu odiei ouvir e, no entanto, isso me reconfortou
estranhamente. Eu poderia rastejar de volta à vida que eu
conhecia .
― Para o resto de sua vida ―, ele disse, sua voz
escarnecedora. Os olhos dele voltaram a examiná-la.
― Sim ―, disse ela. ― Mas eu lamentei minha decisão
todos os dias desde então e me arrependerei todos os dias até
que eu morra .
Ele riu sem se divertir. ― Então, por que você não se
casou? ―, Ele perguntou. ― Você não vai me dizer que não
teve nenhuma outra chance, Emma.
― Mas nenhum deles era você ―, ela disse suavemente.
Ele riu de novo e olhou para ela.

83
― Eu sou o amor de sua vida, suponho ―, disse ele. ―
Você me levou no seu coração por nove anos e continuará a
fazê-lo até o túmulo .
― Sim.
― Estranho ―, disse ele, com um sorriso escarnecedor
em seus lábios. ― Você se afasta em pânico e repugnância do
amor da sua vida quando ele tenta te beijar, Emma?
Ela engoliu em seco. ― Edwin ―, Emma disse, ― eu
tinha dezoito anos. Foi há nove anos. Você foi o primeiro
homem a me beijar. E também o último. Você mudou. Você
não me beijou dessa forma, nove anos atrás. ― Ela corou. ―
Eu sou uma solteirona de quase trinta anos. Você me
assustou. Assim como me assustou quando eu tinha dezoito
anos, suponho, mas desta vez de forma puramente física .
Ele olhou para ela.
― Eu estava com medo ―, ela disse novamente com
calma.
Eles se olharam em silêncio.
― Venha aqui ―, ele disse finalmente.
― Por quê? ― Ela estava apertando as mãos com muita
força tentando parar de tremer.
Ele esticou uma mão em sua direção. ― Deixe-me ver se
consigo fazer isso sem te assustar ―, disse ele. ― Venha para
mim, Emma. Por favor?
Ela deu alguns passos hesitantes em sua direção e
depois caminhou firmemente para seu abraço, até que ele
fechou seus braços em volta dela e ela enterrou seu rosto no
veludo de seu casaco.

84
― Só houve você pra mim ―, disse ele, embargado. ―
Você sabe disso, não é? Eu quis dizer tudo o que eu disse a
você durante esses dias, e o tempo não mudou nada. Eu te
amei durante aquele mês, atravessei um inferno sofrendo por
você durante um ano, te odiei por oito, e tenho vivido o
inferno novamente por esses dois dias. Mas houve apenas
você no meu coração. Você sabe disso, Emma, não é?
Ela engoliu, sentindoum nó na garganta.
― Eu gostava de Marianne ―, disse ele. ― Não vou
desonrar a memória dela e nem mentir, negando que fosse
assim. Ela era doce e gentil e eu gostava dela. Mas meu
coração sempre pertenceu a ti ―. Os braços dele apertaram-
se em volta dela. ― Emma, o que acontecerá? Vou viver mais
um ano de agonia antes que, de alguma forma, eu consiga
reunir novamente meus cacos do chão? Ou viverei novamente
a felicidade que vivi daquela primeira vez, durante aquele mês
em que estivemos juntos?
Ela ergueu a cabeça de seu casaco e olhou nos olhos
dele.
― Edwin ―, disse ela, ― tanto tempo passou. Muito
tempo foi perdido. Eu não sou maisaquela jovem .
Ele sorriu. ― Nove anos atrás, eu tinha cinco anos a
mais do que você ―, disse ele. ― Quantos anos você tem?
― Vinte e sete ―, disse ela.
― Ah ―, disse ele, ― que coincidência estranha. Eu
tenho trinta e dois, ainda sou cinco anos mais velho do que
você. O sorriso desapareceu, exceto de seus olhos. ― Você
ainda me ama o suficiente para se casar comigo?

85
Ela mordeu o lábio. ― Você não pode me querer ainda,
Edwin ―, disse ela. ― talvez seja apenas a memória de mim
que você quer. Sou uma velha solteirona .
― Você tem imitado perfeitamente uma ―, admitiu ele. ―
Este vestido horrível é uma obra-prima do disfarce ― pelo
menos eraaté eu te tocar. Mas suas habilidades de atuação
não foram impecáveis. Quem foi que desceu correndo e
gritando por uma encosta em um trenó esta tarde e quase
parou meu coração com medo de que caísse em um banco de
neve?
Ela sorriu involuntariamente para ele.
Ele baixou a cabeça e a beijou devagar e gentilmente,
com os lábios fechados.
― Você vai se casar comigo? ―, Perguntou ele.
― Sim ―, disse ela. E fechou os olhos, o silêncio se
prolongando, ― Sim, eu vou. ― Ela abriu os olhos novamente.
― Você fariade novo aquilo que tentou fazer hoje mais cedo,
quando estávamos perto do lago, Edwin?
― Isto? ― Ele perguntou, baixando a cabeça, abrindo a
boca sobre a dela e passando a língua por seus lábios.
Ela resfolegou. ― Sim, isto ―. Disse, com falta de ar.
Ele sorriu para ela. ― Muito bem ―, disse ele, ― mas só
porque você é minha noiva, Emma. Estou feliz por ter tido o
bom senso de trancar a ponta com chave quando entramos
aqui. Isso vai ficar bastante indecoroso, preciso te avisar.
― Eu quero aprender ―, disse ela.

86
― Oh, você vai ―, disse ele. ― Isso eu prometo a você,
meu amor. Você certamente aprenderá. Agora, abra sua boca
para mim.
Ela olhou para ele com surpresa e obedeceu quando sua
boca se aproximou dela novamente.
E então ela se agarrou em suas lapelas e jogou seus
braços em cima do pescoço dele para obter um melhor
suporte enquanto a cabeça dele se inclinava contra a dela,
suas bocas abertas se encontraram e sua língua percorreu
todo o caminho de sua boca. Muito antes de finalmente ele
levantar a cabeça para deixar beijinhos em seu nariz,
bochechas e pálpebras, ela havia pressionado seu corpo ao
dele, do peito até os joelhos, sentindo-se perto de desfalecer.
Em algum momento não especificado, ela parecia ter perdido
o controle de suas pernas abaixo dos joelhos.
― Lição número um ―, ele murmurou. ― O resto vem
depois que os proclamas forem lidos e a cerimônia de
casamento realizada. Antes do final de janeiro.
― Tão longe? ―, Disse ela. ― Quantas aulas existem?
― Cinco mil, trezentos e cinquenta e sete ―, disse ele,
deixando beijinhos em seu queixo e ao longo do pescoço até a
base da garganta. ― meia dúzia para mais ou para menos .
― Ah ―, disse ela. ― E todo um mês para esperar a
segunda lição? Com umasala quente e vazia, Edwin, e uma
porta fechada?
― A segunda lição pode assustá-la novamente ―, disse
ele, voltando os lábios para os dela e falando contra eles.
Seus olhos estavam abertos, observando-a. ― Envolve algo

87
assim. ― Ele colocou as mãos em seus seios, através do
tecido de seu vestido. Seus polegares tocaram as pontas dos
seios e as roçaram até ela tremer.
― Oh ―, ela disse, os olhos fechados, a cabeça jogada
para trás. ― Edwin?
― E então ―, ele murmurou contra sua garganta, ― a
lição três envolve a remoção da metade superior do seu
vestido para o mesmo processo. Mas você definitivamente não
gostaria de prosseguir com a lição três hoje à noite, não é?
Seria muito impróprio .
― Impróprio ―, disse ela, aturdida. ― Não sei nada disso.
― Claro ―, ele disse, encontrando os botões na parte de
trás do seu vestido, ― é Natal, Emma, e as pessoas fazem
todo tipo de coisas impróprias no Natal, como se beijarem no
meio dos salões lotados apenas porque lá passa a ter um
raminho de visco acima de suas cabeças. .
― Sim ―, ela disse, ― é Natal .
― E esse é um vestido horrível ―, disse ele.
― Sim.
― Humm ―, ele disse antes de levantar a cabeça até a
dela novamente, com uma mão por trás e beijá-la de novo
com a boca aberta, ― e você ficará muito mais adorável e
infinitamente mais feminina sem ele, Emma .
― Eu ficarei? ―, Ela disse enquanto ainda podia. Sua
voz tornou-se um gemido. ― Edwin!

88
Todas as outras crianças já tinham ido para cama há
muito tempo e já tinham dormido há muito tempo. A ama de
Anna tinha vindo até ela duas vezes, uma vez se ofereceu
para buscar algo para ela beber e trazer sua boneca e colocá-
la ao lado dela, mas ela negou com a cabeça e na outra vez
perguntou se ela queria que o papai dela fosse chamado.
Anna continuou a olhar para cima enquanto sacudia a
cabeça.
― Você quer a senhorita, então, amor? ―, Perguntou sua
ama suavemente para não despertar Harriet e Julie. ― A srta.
Milford? Você quer que ela venha e dê boa noite para você?
Você dormiria então?
Anna balançou a cabeça mais devagar.
Mas ela esperava que sua ama enviasse um dos dois de
qualquer maneira. Sentia-se tão sozinha e tão completamente
triste, embora se sentisse culpada por sentir tamanha
tristeza, já que o desejo de Natal tinha lhe sido concedido de
uma maneira tão maravilhosa e o Dia de Natal tinha sido o
melhor de todos.
Ela ficou feliz quando ouviu as vozes dos dois ecoando
pelo berçário, conversando com a ama dela. Ambos. Ambos
tinham vindo. Ela estava feliz. Ela queria abraçar sua mãe – a
senhorita Milford ― mais uma vez antes do Natal acabar. Ela
acreditava que o Natal ainda não tinha se findado.
Certamente ainda não era meia-noite.

89
E então eles entraram no quarto e se acomodaram ao
lado da cama. O braço de seu papai estava em volta da
cintura de sua mamãe, ela percebeu imediatamente. E
quando ela olhou para o rosto de sua mamãe, ela prendeu
seus olhos nos dela com expectativa e esperança.
Havia algo. O cabelo de sua mamãe estava desordenado,
como se tivesse sido puxado e preso de volta sem o auxílio de
uma escova ou espelho, e seus lábios pareciam vermelhos e
inchados, como se ela estivesse com dor de dente, embora
não fosse bem assim. E seus olhos ― oh, havia algo sobre
seus olhos.
― Anna? ―, Ela disse. ― Você não consegue dormir?
― O que foi, querida? ― Papai perguntou. ― O dia foi
muito emocionante para você?
Havia algo diferente nele também. Um certo brilho em
seus olhos e uma certa curva em sua boca. Anna podia ouvir
seu coração pulsando em seus ouvidos.
Sua nova mamãe sentou-se à beira da cama e a mão de
seu papai se transferiu para os ombros dela. E mamãe se
inclinou e a abraçou.
― Pobre Anna ―, disse ela. ― É horrível não conseguir
dormir, não é?
Anna levantou os braços em volta do pescoço da sua
nova mamãe e fechou os olhos.
― Mamãe ―, ela sussurrou suavemente.
Ela estava dizendo adeus em sua mente, atrás de suas
pálpebras bem fechadas. Adeus para o Natal mais lindo de
sempre. Ela não notou o pequeno silêncio curioso.

90
― O quê? ― Papai disse, também em um sussurro.
Talvez houvesse alguma esperança. Talvez se pudesse
levá-lo a ver sua mamãe da forma como ela a via...
― Mamãe ―, ela disse novamente.
E então seu papai estava chorando. Ele afastou-se
bruscamente da cama e Anna podia dizer que ele estava
tentando se controlar, mas ele estava chorando, no entanto,
com soluços ruidosos.
Ela deveria ter dito seu nome também. Ela não queria
que ele se sentisse deixado de fora. Ela não queria que fosse
apenas mamãe e ela. Ela queria que os três fossem uma
família.
― Não chore, papai ―, disse ela.
E então ele estava de joelhos ao lado da cama, seu rosto
contra o estômago de Anna, seus braços a envolvendo forte o
suficiente para dificultar sua respiração.
― Eu ainda te amo, papai ―, ela disse, passando os
dedos pelos seus cabelos. ― Mesmo que eu tenha agora uma
nova mamãe .
Ele olhou para ela de repente, e para a nova mamãe
dela, e ele estava rindo, embora seus olhos estivessem
molhados.
― Uma nova mamãe? ―, Ele disse. ― Que passarinho
veio aqui à nossa frente, te contando isso?
― Eu já sabia ―, ela disse, olhando para cima para ver
que sua mãe estava sorrindo para ela, seus olhos molhados
também. ― Foi o que desejei de Natal .

91
Papai pareceu atordoado. ― Seu desejo de Natal? ―, Ele
disse. ― Emma foi o que você pediu de Natal?
― Ela chegou cedo ―, disse ela. ― Ontem, não hoje. Mas
eu a reconheci assim que a vi.
Seu papai ficou de pé e passou a mão por seus cabelos.
Ele olhou para ela e depois para sua mamãe.
― Alguém se importaria de me dizer se isto é um sonho?
―, Ele perguntou.
Ambas olharam silenciosamente para ele.
― Anna ―, disse sua mamãe, segurando uma de suas
bochechas como papai tinha feito anteriormente, ― eu ficarei
muito honrada em ser sua nova mamãe, querida .
― Você vai se casar com papai? ―, perguntou ela.
Sua mãe assentiu. ― No final de janeiro ―, disse ela.
Anna olhou para o papai dela, cuja mão estava
descansando sobre a cabeça de sua mamãe.
― Não vou te perguntar se isso te fará feliz, sua criança
levada ―, disse ele. ― Você tem atuado determinadamente
como Cupido desde ontem, não é mesmo?
Anna não sabia quem ou o que Cupido era, mas papai
parecia satisfeito. Ela sorriu.
― Oh, Anna ―, ele disse, olhando para ela, e pareceu por
um momento que ele começaria a chorar de novo.
― Minha pequena Anna .
― Podemos ter um bebê? ―, perguntou ela.
Ele ficou estupefato. Sua mamãe tornou-se escarlate.
Ela havia dito algo errado?

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― Um irmão? ―, ela disse. ― Todo mundo tem um irmão,
com exceção de mim .
― Eu lhe digo o que vai acontecer ―, disse seu pai,
debruçando-se novamente e beijando sua mãe e depois ela
nos lábios com um selinho, ― você vai dormir, Anna, e deixar
que sua mamãe e eu discutamos sobre sua sugestão. Vamos
trabalhar nisso durante o próximo ano. E talvez no próximo
Natal o seu desejo seja para pedir um irmão .
Anna ajeitou sua cabeça no travesseiro até ficar
confortável e relaxou os braços sob os cobertores enquanto
sua mamãe os puxava até debaixo do seu queixo. Ela
suspirou com satisfação e fechou os olhos.
Tudo ficaria bem depois de tudo. Ela teve seu desejo e
foi tudo ótimo, bastante perfeito. O Natal, ela decidiu, era a
melhor época do ano. E, talvez, no próximo ano, haveria um
bebê verdadeiro em um berço, assim como o bebê Jesus em
sua manjedoura, e sua mamãe se curvando ao lado do berço
e Anna, do outro lado, assim como Maria, lá no andar de
baixo, na sala de estar. E papai ficaria a um passo de
distância, amando todos e mantendo-os a salvo de todos os
perigos, assim como José.
No próximo Natal.
― Ou talvez uma irmã ―, ela disse, abrindo os olhos
brevemente. ― Eu não me importaria se viesse uma irmã ao
invés do irmão.
― Vamos ver o que podemos fazer ―, disse seu papai. ―
Não vamos, Emma?

93
― Sim ―, disse mamãe. ― Vamos ver o que podemos
fazer, Anna.

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♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥

A Virgem de Porcelana
♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥

95
O Cavalheiro que caminhava pela Bond Street fazia isso
puramente porque passara toda a manhã no White’s, lendo
jornais e discutindo política, e ele precisava de um pouco de
ar e exercício. Talvez ele caminhasse por essa rua em
particular, quando poderia ter escolhido uma mais silenciosa,
porque tinha um gosto cínico emassistirao mundo cedendo à
observância anual do grande mito.
Natal! Ele tocou seu chapéu cumprimentando duas
conhecidas senhoras esaiu do calçamento para dar-lhes
passagem. E ele fez uma careta quando subira novamente. A
nevasca de ontem, que havia sido aclamada pela população
de Londres, agraciada por esse fenômeno raro, um Natal em
neve, havia se transformado em água enlameada nas ruas e
calçadas, encharcando a sarjeta de barro.
Natal! Ele olhou para o bico das suas botas e franziu a
testa para os salpicos de lama que cobriram o couro
lustrosoa que seu criado havia se dedicado aquela manhã.
Encolheu os ombros para dentro das doze capas de seu
casaco e juraria sobre uma pilha de Bíblias sem medo de
cometer perjúrio de que a umidade fria havia penetrado até
chegar aos ossos. Ele quase desejou que o chapéu de pele de
castor tivesseabas para cobrir suas orelhas. O pensamento o
divertiu, embora seus olhos azuis pálidos não perdessem seu
cinismo frio em nenhum momento.
Uma carruagem parou ao lado dele e ele fez uma careta
novamente com o esguicho de água turva jogada pelas rodas
e os cascos dos cavalos. Ele parou também quando duas
senhoras saíram da loja à sua direita e um criado de libré

96
saltou da carruagem para aliviá-las das numerosas caixas e
outras encomendas que eles carregavam. Elas deveriam ter
passado horas comprando, pensou ele, discutindo
exatamente qual presente se adequaria a essa tia ou a esse
sobrinho ou ao outro irmão. E, sem dúvida, os presentes
cuidadosamente embrulhados seriam abertos no dia de Natal,
teriam exclamações de felicidade e seriam jogados numa
gaveta de algum móvel do andar de cima para nunca mais
serem vistos novamente.
E, no entanto, ambas as damas, que ele não conhecia,
viraram-se para ele quando seus braços estavam livres o
agradecendo por dar-lhes o direito de passagem e, com os
sorrisos mais perfeitamente alegres, desejaram-lhe um feliz
Natal.
Bobagens e disparates! Pensou enquanto tocava o
chapéu e desejava um bom dia. Em todos os lugares era a
mesma coisa. As pessoas estavam correndo de um lado pro
outro e passando e sorrindo e gritando cumprimentos alegres
para todo o mundo como se acreditassem que a paz e a boa
vontade flutuariam pela Terra e na humanidade por três dias
e permaneceriam lá para sempre. Eles comeriam seu assado,
o pudim de Natal, beberiam seu wassail e ponche, e então
eles se instalariam diante da calorosa cena da natividade e
fofocariam confortavelmente antes de irem para cama,
massacrando a reputação de todos os conhecidos que não
estivessem presentes.
Não ele. Não esse ano. Este ano ele ficaria em Londres e
se comportaria no dia de Natal como se fosse qualquer outro

97
dia. Embora isso não fosse totalmente possível, é claro. Os
criados esperariam seus presentes e seu tempo livre, e
esperariam que ele encomendasse o assado, as tortas e todo o
resto da comida tradicional de Natal para que eles pudessem
desfrutar sua porção.
Ele suspirou internamente. E Lady Lawrence, depois de
ter ouvido que ele permaneceria na cidade durante o feriado,
o perseguia para que ele participasse da festa de Natal e das
danças que ela organizaria no dia 25. Quem lhe havia dito? ―
ele se perguntou. Ele certamente não tinha espalhado as
boas novas.
E então seus passos diminuíram e seus lábios se
comprimiram. Agora, provavelmenteera aquela a imagem
perfeita do sentimentalismo do Natal, pensou, olhando
adiante e do outro lado da rua até uma joalheria. Era
suficiente para fazer qualquer um, com qualquer grau de
sensibilidade, agarrar um grande lenço e enxugar os olhos
úmidos. Ele se perguntou o que ela estava olhando tão
intensamente na vitrine.
Fosse como fosse, era sem dúvida muito mais caro do
que ela poderia pagar. Ela fazia uma cena triste e totalmente
fora de lugar aqui na Bond Street, como ele teria estado em
Newgate. Seu manto já havia sido azul, ele adivinhou, porém
agora estava desbotado para um cinza indescritível. Sua
touquinha era cinza e muito simples. Ela deveria estar com
frio, pensou. Mas se estivesse, então era em parte sua própria
culpa. Olhando para alguns badulaques, ela estava de costas

98
para ele, sonhando com um sonho impossível. Sonhando com
o Natal.
Ele afastou os olhos dela. E, no entanto, algo o levou a
olhar novamente, e ele se viu hesitando, encolhendo os
ombros e caminhando para cruzar a rua. Ele queria ver o que
ela estava olhando. Queria ver a extensão de sua tolice.
Ela não era a única pessoa que destoava do resto na
Bond Street, é claro. Havia sempre um número variado de
jovens e moleques de rua que se recostavam contra os cantos
dos edifícios, caminhando entre as pernas dos cavalos e as
rodas das carruagens, gritando sua vontade de carregar
pacotes por uma pequena miséria.
A época de Natal era especialmente lucrativa para eles,
com todos aqueles pacotes e bondade extra.
Ele notou um daqueles moleques em particular, porque
ele estava se comportando atipicamente. O menino estava
caminhando pela rua, com um olhar bem firme, como se ele
tivesse um destino definido em mente. E ele estava olhando
com olhar compenetrado ― não havia um movimento de
cabeça –a bolsinha que a dama pobre pendia
descuidadamente em uma mão. E então, não apenas os olhos
do menino se precipitaram ― sua mão esquerda seguiu o
exemplo, pegando a bolsinha com habilidade, e depois os
pésavançaram à frente...
Exceto que seus pés não saíram do lugar para
correr,quando o colarinho de sua jaqueta remendada de
alguma forma se enganchou na bengala de cabeça de ouro de
um cavalheiro alto, bem vestido e cínico ― o próprio que

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estava atravessando a rua para olhar a vitrine do joalheiro. O
menino moveu as duas mãos defensivamente para afrouxar a
frente do colarinho e para não ser estrangulado, deixando
cair a bolsinha no processo.
― Não foi rápido o suficiente, pivete ―, disse o
cavalheiro, o tédio em sua voz se adequando à expressão em
seu rosto. ― Os meninos de sua estirpe não passeiam pela
Bond Street, a menos que estejam querendo fazer algo que
não seja nada bom. É uma observação que você pode querer
se lembrar, pois essa será uma sova que você vai desejar
esquecer .
Virou o menino sob o seu braço em apenas um mero
momento, apesar dos movimentos bruscos das mãos e dos
pés que o garoto fazia e apesar do fato de que o pivete
amaldiçoava utilizando um vocabulário que até o cavalheiro
achara bem original. Ele ergueu a bengala.
― Não. ― A palavra não foi gritada nem mesmo falada
alto, mas a mão e a bengala do cavalheiro pararam no ar.
Vários espectadores interessados passaram, educados demais
para parar, mas ávidos para testemunhar a surra que ele
estava prestes a dar no garoto.
― Não, ― ela disse novamente, sua voz um pouco mais
firme. ― Agradeço-lhe por ter recuperado minha bolsa,
senhor, mas não bata no garoto .
Bom Deus. Ela era a própria encarnação do Natal –
pobre, honrada,bonita com um discurso suave. Seu rosto era
oval e delicadamente desenhado. Sua pele brilhava com cor,
por causa do frio. Os cabelos dela sob a enfadonha touquinha

100
resplandecia o dourado. Mas é claro que ela era linda, e é
claro que ela era educada, e é claro que ela era alguém
empobrecida, ele pensou com desprezo. O que mais ele
poderia esperar? E ela admirava, não uma pulseira dourada
ou um colar de diamantes, mas uma Virgem de porcelana
com um bebê nu enrolado em seus braços, o suficiente para
derreter qualquer coração feminino terno.
E essa mulher, obviamente, tinha um coração cheio de
ternura. Ele abaixou a bengala e deixou o garoto ereto,
segurando-o ainda por sua gola.
― Ah ―, disse ele. ― Vou desejar a ele um Feliz Natal,
então, madame, e deixar ele seguir seu caminho. Ainda
assim, a surra poderia ter feito mais para aquecê-lo .
Ela não discutiu com ele nem lhe olhou irritada pelo seu
sarcasmo. Mas, claro, não o faria. Ela era toda doçura e
sensibilidade, bem como coração terno. A aba da sua
touquinhabatia na altura do queixo dele.
E seus olhos eram verdes, uma sombra interessante e
incomum de verde. Ele apertou os lábios.
Ela olhou fixamente para o menino, que estava tentando
esconder o rosto dele dentro da gola. Ele conseguiu esconder
apenas o queixo. ― Por que você precisava disto? ―,
Perguntou ela.
O cavalheiro fechou os olhos brevemente. Ela seria
muito melhor aconselhada a pegar sua bolsa e bater com ela
na cabeça do pivete. Mas, é claro, ela era o espírito do Natal.
O garoto sabiamente não respondeu.
― Você está com fome? ―, Perguntou ela.

101
O menino fungou profundamente, e o cavalheiro
realmente se pegou no ato de levar as mãos ao bolso à
procura de um lenço. Ele ergueu as sobrancelhas e deixou
seu lenço onde estava.
― Você está sozinho? ―, perguntou ela. ― Ou você tem
uma família?
O garoto parecia finalmente ter percebido que a mão que
o apertava na parte de trás de sua gola tinha impossibilitado
que ele escondesse o rosto. Ele olhou para ela com olhos que
se tornaram instantaneamente emotivos, tanto que o
cavalheiro sentiu uma onda de diversão interior. Ele
aumentou a força do seu aperto e mordeu os lábios
novamente. Esperou a descrição inevitável da família
― Eu tem a mãe ―, disse o menino, com a voz alta e
estridente, ― e a Violet e Roddy e o pai .
Seus olhos teriam feito justiça a uma encenaçãode
Garrick ou Kean. ― E tem um que a mãe tá esperano
Oh Deus. O cavalheiro ergueu os olhos para o céu cinza
acima. E ela tambémcairia nisso. Não duvidava nenhum
pouco. Mas o menino perdeu sua chance mais dourada. Ele
não havia explicado como ele agora era o único mantenedor
de sua família.
― O pai trabaiava nos cais, sinhá ―, disse o menino. ―
Mais eleismagô a mão no mêis passadu e eu sô o homi da
famia agora, e tenhu que alimentá tudo eis.
Ele cometeu uma injustiça ao menino. À parte da forma
inadvertida que ele caminhou pela rua, ele estava se
mostrando um garoto extremamente inteligente.

102
― Você, pobre criança ―, disse a pobre e linda dama,
suavemente. ― Mas se roubar, você sabe, será jogado na
prisão ou até mesmo enforcado e então sua família
certamente morrerá de fome. E se afligirá por você também.
O cavalheiro olhou para o garoto e quase sorriu
completamente quando viu o que parecia suspeitosamente
como uma lágrima pendurada sobre os cílios inferiores da
criança.
― Eu queria que você tivesse me pedido ajudar ao invés
de tentar me roubar ―, disse ela. ― Mas também, você não
sabia se eu te ajudaria ou teria franzido a testa te
desprezando, não é? Vou lhe dar algo .
― Madame ―. O cavalheiro não pôde mais se segurar,
ainda que estivesse desfrutando o drama completamente
previsível que se desenrolava diante dele. ― O patife
provavelmente vive com uma cova de ladrões. Ele
provavelmente nunca conheceu sua mãe ou seu pai .
Ela olhou para ele com aqueles olhos verdes notáveis,
como se estivesse esquecido de sua existência até aquele
momento. ― Então, seu fardo seria todo mais triste, senhor
―, disse ela. ― No entanto, ele não estaria roubando se não
houvesse necessidade .
E então ela inclinou a cabeça sobre sua bolsa de couro
antigo e esfarelando e a abriu. E, sem dúvida, pensou ele, ela
retiraria uma bolsa igualmente antiga dela e a abriria
revelando dois centavos solitários, um dos quais ela daria ao
menino, que alegremente teria surrupiado a ambos e ainda se
riria disso.

103
― Espere! ―, Disse o cavalheiro, e agora havia irritação
pela primeira vez em sua voz e em seu coração. Pois ele
estava prestes a entrar no palco e tomar parte nesse mais
desprezível melodrama.
― Guarde sua bolsa, madame ―. Depois de transferir a
bengala para a mão que segurava o menino, ele alcançou um
bolso interno do casaco com a sua mão livre e puxou sua
própria carteira abaulada de couro novo, suave e muito caro.
― Aqui, moleque. ― Ele finalmente libertou o menino,
julgando-corretamente ― que ele não fugiria depois dessa
interessante conjuntura. E ele entregou ao menino meia
coroa, amaldiçoando-se por passar sobre os seis pence e o
xelim, amaldiçoando-se por cair nessa armadilha, em
primeiro lugar. ― Mas da próxima vez será a minha bengala
em seu traseiro, não importa quem implorar pedindo para
que eu pare .
A meia-coroa desapareceu como num passe de mágica.
As lágrimas desapareceram também, o cavalheiro notou sem
a menor surpresa.
― Você é muito gentil ―, disse a dama. ― Obrigado,
senhor. ― Mas ela voltou sua atenção para o menino, mesmo
quando o cavalheiro se perguntava ociosamente quão suave
sua aparência deveriaser quando não estivesse corada pelo
frio. Ela sorriu. ― Você pode comprar algum alimento para
sua família agora, criança. Qual é o seu nome?
― Charlie Cobban, m’dami ―, disse o menino.
O cavalheiro ficou um tanto surpreso com o fato de o
menino não ter escapulido no instante em que a meia-coroa

104
havia desaparecido entre as dobras bastante irregulares de
suas roupas. Mas talvez ele tenha percebido a iminência do
sentimentalismo final, como o cavalheiro não percebeu.
― Você está com fome, Charlie? ―, Perguntou ela. ― E
frio? Devemos encontrar uma confeitaria, e eu lhe compro
uma torta de carne?
Bom Deus. A mulher deve ter escapado do Instituto
Bedlam. O cavalheiro a olhou um pouco fascinado.
O garoto fungou e tentou esconder a cabeça novamente.
Com muito mais sucesso desta vez.
― Madame ―. O cavalheiro sentiu a terrível compulsão
de interferir de novo. ― Eu não incentivaria o vício se fosse
você .
― Vício? ― Ela olhou para ele uma vez mais. ― Não
pobreza, desespero e desamparo? ― Ela parecia ter conhecido
de antemão pelo menos um desses três.
― Bem ―, ele disse, e culpou inteiramente o verde de
seus olhos pelas palavras que sabia estarem a ponto de sair
de sua boca, ― Eu conheço uma excelente confeitaria que
está logo à nossa frente. A sua especialidade são tortas de
carne. ― Na realidade, ele não tinha ideia de qual era a
especialidade da casa. ― Permita-me presentear vocês dois .
Dois olhos bem afiados estavam olhando por cima da
gola desgastada do menino. A dama estava possivelmente
corando, mas era impossível dizer com certeza, pois suas
bochechas já estavam escarlate para começar.
― Não seria apropriado, senhor ―, disse ela. ― Não te
conheço.

105
Deus misericordioso. Oh Deus. Talvez ele devesse correr
para encontrar um daqueles dragões que eramas anfitriãs do
Almack’s para efetuar uma apresentação social.
― Permita-me apresentar-me ―, disse ele, tirando o
chapéu e fazendo uma reverência à mulher, para a vista
interessada da multidão que se deslocava pela rua. ― Darcy
Austin, Conde de Kevern, ao seu serviço, madame .
― Oh, ― ela disse enquanto os olhos do moleque iam de
um lado para o outro entre os dois.
― Agora você me conhece bem o suficiente para vir
comigo e com esse pivete para o calor de uma confeitaria? ―
Ele perguntou.
O menino mudou o peso de um pé para o outro.
― Obrigada, milorde ―, disse ela.
― Mas eu não conheço você, madame ―, disse ele.
― Julie Bevan, milorde ―, disse ela.
Julie. Um nome completamente doce. Ele poderia ter
esperado isso, pensou o conde de Kevern. E ele ofereceu o
braço para ela e a observou hesitar antes de aceitá-lo. Ele
saiu pela rua com ela, o ladrãozinho pulando do seu outro
lado, um pé na sarjeta e o outro na calçada.
Natal, pensou ele. Era como um polvo com mil
tentáculos ou uma rede de pesca de tamanho infinito.
Ou como uma mão gigante coberta de geleia, a que
qualquer pessoa que tocasse ficaria imediatamente grudado.
Não houve escapatória. Estava acontecendo ao redor dele e lá
estava ele no meio de tudo isso, uma dama pobre ao seu lado,
uma criança esfarrapada saltitando do outro, os três a

106
caminho de uma confeitaria para partilhar tortas de carne e
alguma bebida quente.
A criança já havia contado sua história dolorosa. Sem
dúvida, havia muitos outros detalhes para serem torcidos de
sua fértil imaginação. Ele ouviria alguns deles assim que
estivessem no interior aquecido do estabelecimento, o conde
decidiu. E ele ainda não tinha nem ouvido os emocionantes
detalhes da existência empobrecida da senhorita Julie Bevan.
Era algo para se antecipar com algum prazer.
Era bom que ele não tivesse dado o lenço ao menino,
decidiu. Antes que ele deixasse o local, como um homem livre
e são de novo, ele certamente precisaria disso para enxugar
as lágrimas de seus próprios olhos.
Se ele não tivesse realizado nada mais neste dia, Lorde
Kevern pensou alguns minutos depois ― e sem dúvida não
tinha, além de ter encorajado um criminoso em
desenvolvimento, recompensando-o com meia coroa em vez
de castigá-lo e entregá-lo a um magistrado como merecia ― se
ele não tivesse realizado nada mais, ele havia ao menos
fornecido fofoca para as conversas dos salões mais elegantes
naquela noite.
As cabeças elegantes se viraram quando ele entrou na
confeitaria com uma dama pobre de um lado e um moleque
de rua tropeçando nos seus calcanhares. E as sobrancelhas
elegantes se levantaram quando ele sentou a dama numa das
mesas antes de se sentar. Ele também não levantou
nenhuma objeção sobre o moleque ter uma cadeira para ele

107
na mesma mesa e tamborilar os calcanhares contra suas
pernas de metal.
Cabeças elegantes, ele pensou, podiam muito bem ir à
merda. E ele estremeceu quando o garoto que fungou
audivelmente resolveu o problema da falta de um lenço,
limpando o nariz com a mão.
A srta. Julie Bevan não aceitaria a torta de carne,
embora ela parecesse precisar comer algo de mais
substância, pensou o conde, seus olhos passando sobre sua
figura ligeiramente esbelta. Ela aceitaria apenas uma xícara
de chá e um pedaço de bolo quando alguém a pressionasse.
Charlie Cobban aceitaria uma torta de carne e dois pedaços
de bolo sem ter que ser pressionado de forma alguma ― e
uma xícara de chocolate bem fumegante, que ele olhou com
algo parecido com reverência. Certamente, suas pernas
tamborilariam uma batida mais alta contra as pernas de sua
cadeira quando tudo estivesse diante dele.
― Charlie ―, disse a srta. Bevan calmamente e com um
sorriso gentil, ― mantenha suas pernas imóveis, querido.
Você está incomodando os outros clientes ―.
As pernas pararam. Os sons da torta de carne sendo
completamente apreciada e uma xícara de chocolate quente
demais sendo tomada, tomou seu lugar.
― Natal! ―, Disse o conde, levando seus olhos azuis
pálidos para a dama e tentando adivinhar a história que ela
deveria ter para contar e determinando que ele tiraria dela e,
assim, se divertiria. ― O tempo para a paz na terra e a boa
vontade entre os homens. A estação mais maravilhosa e

108
calorosa do ano. O tempo para a família, troca de presentes e
banquete .
― Sim. ― Ela sorriu para ele.
Ele sabia, é claro, que ela concordaria com todos os
clichês tolos que ele havia falado.
― E como você vai passar o feriado, senhorita Bevan? ―,
Ele perguntou a ela.
― Em meu lar ―, disse ela, ― onde o Natal deve ser
passado, milorde .
― E onde é seu lar? ―, Ele perguntou.
― Londres. ― Ela sorriu de novo. ― Realmente não
importa onde está seu lar,contanto que haja um.
Especialmente no Natal. Lar é onde as pessoas amadasestão.
Onde alguém pertence.
Ah, ele pensou, brincando com a alça de sua xícara de
chá e ignorando o prato de bolos, mas e se houvesse um lar ―
mais do que um, e todos eles grandes e generosamente
decorados ― e não houvesse pessoas amadas por lá? E se
alguém não pertencesse a ninguém, a não ser a si mesmo?
Sedescontasse, é claro, um irmão, duas irmãs e seus
cônjuges com numerosos filhos, e um costume eterno deles
de se juntar no Natal? Algumas pessoas poderiam se sentir
ainda mais sozinhos em companhias desse tipo do que
quando solitários.
― E você tem pessoas queridas? ―, Ele perguntou. ― Em
seu lar, quero dizer .
― Sim. ― Seus olhos se suavizaram, e ele se perguntou
pela primeira vez se aquela casa continha um marido e talvez

109
alguns filhos. Ela não havia dito que era uma senhorita em
vez de Senhora Bevan. Mas ela não usava anéis.
Talvez o Sr. Bevan não pudesse pagar os anéis.
Ele voltou sua atenção para o menino e se perguntou
como o pessoal da confeitaria reagiria quando as migalhas
que grudavam na jaqueta esfarrapada estivessem decorando
o chão depois que o menino se levantasse.
― Eu suponho ―, disse ele, ― que você gostaria de
encher o estômago com os pedaços de bolo, Charlie, mas
constatou, para seu próprio pesar, que não haja mais espaço
nele .
― Eu quiria levá pra Violet eHarry ixprimentá ―, disse o
menino.
― Não se preocupe. ― O conde apertou os lábios. ―
Pediremos para que sejam embrulhados e você poderá
compartilhar generosamente seu deleite com Violet e Harry –
ou... não seria Roddy? Você deve ter cuidado ao inventar
esses detalhes, pivete .
Olhos afiados se dirigiram para os dele. ― Harry é meu
amigu qui vévi ao lado di nóis ―, disse Charlie. ― Roddy é
muito piquenu pra comê bolo. Bem, ele tem um ano e meiu.
― Ah ―, disse Lorde Kevern. ― Se você não tem uma
memória perfeita, rapaz, então uma imaginação rápida e fértil
é a próxima melhor qualidade. ― Ele ergueu a mão para
chamar um garçom e ordenou que o que restava do bolo nos
pratos fosse embrulhado para levar e que outra torta de
carne fosse embrulhada separadamente. E se os próximos

110
três dias não passassem mais depressa, ele pensou, ele iria
se juntar ao mundo em sua insanidade coletiva.
O menino deveria ter sido açoitado e já esquecido por
agora.
Quando voltou sua atenção para a srta. Julie Bevan foi
para encontrar seus olhos fixos nele pensativamente.
― Você é gentil ―, disse ela, ― embora finja não ser, eu
acho. E como será o seu próprio Natal, milorde ― ?
Ele fez uma careta. ― Muito breve, é o que eu espero ―,
disse ele. ― Eu vou me fechar em minha casa da cidade,
tentar ignorar a alegria de meus criados e tentar esquecer
que dia é. Eu escolho não fazer parte da hipocrisia universal
que se apodera de todos durante a segunda metade de
dezembro .
― Oh ―, ela disse, e pareceu tão triste que ele sentiu o
desejo de olhar por cima do ombro para ver quem poderia ter
despertado uma emoção tão terna nela. ― Você não tem
família, milorde?
― Um irmão, irmãs, sobrinhos e sobrinhas em
abundância ―, disse ele. ― Pela primeira vez eu vou me
manter longe da festa de Natal. Por que eu deveria ser uma
testemunha de todas as afecções de ternura materna e
paterna que aflige meu irmão e minhas irmãs e meus
cunhados no dia de Natal e a todo o carinho ilimitado que o
recebimento de presentes inspira no peito de meus sobrinhos
e sobrinhas ― ?
― E não tendo nenhuma parte nisso você mesmo ―, ela
disse calmamente, a tristeza ainda em seus olhos.

111
Eles eram de um tom quase verde esmeralda, pensou.
Mas ele estava muito irritado para apreciar a admirar os
olhos dela. Ele tinha a intenção de divertir-se com as
histórias de seus convidados, não contar a dele. Ele se
levantou para ajudar a dama a se levantar e Charlie engoliu
os últimos dois bocados de seu chocolate.
― Obrigada, milorde ―, disse ela, oferecendo-lhe a mão
quando estavam do lado de fora. ― Que o Natal te traga uma
bênção assim como você trouxe uma para este menino hoje .
Oh Senhor, ele pensou, ela deveria estar ensaiando o
discurso o tempo todo, enquanto bebericava seu chá. Mas ele
pegou sua minúscula mão e apertou-a com delicadeza e
educação.
― Você me permitirá chamar uma carruagem de
aluguel? ―, Perguntou-lhe. ― O vento está extremamente frio.
― Ele estava em grave perigo, pensou ironicamente, de cair de
cabeça no clima de Natal como em uma cuba de melaço e
encontrar-se incapaz de sair de lá. Que destino incrivelmente
terrível!
― Obrigada, milorde. ― Ela sorriu. ― Mas eu não tenho
que caminhar muito ―. E ela se virou e prosseguiu no seu
caminho enquanto ele a observava. Ela olhou brevemente
para a vitrine do joalheiro quando passou em frente.
O conde de Kevern abaixou o olhar para Charlie
Cobban, que ainda estava de pé ao lado dele, olhando para
ele até que a figura de Julie Bevan desaparecesse, se
agarrando ao pacote firmemente com uma mão.

112
― Ocê errô feio, cara, ―, ele disse com sua voz
estridente. ― dama como ela, não faiz passeio di carruage
com cavaieiros .
― Não, de fato? ―, Disse o conde. ― Mas as damas
gostam de resgatar pequenos e desprezíveis ladrõezinhos dos
golpes que merecem,pivete, e encherem suas barrigas. E não
se esqueça disso. E da próxima vez que você decidir tentar ―
eu não duvido que haja uma próxima vez ― roube de alguém
que aparentanão fazer falta o que você tirar. Agora,pegue seu
rumo. E não coma isso tudo de uma só vez, ou você acabará
doente .
O menino correu na mesma direção que Julie Bevan
tomou e logo se perdeu entre as multidões e os meios de
transporte. O conde de Kevern ficou de pé por mais alguns
minutos e se sentiu um pouco mais vazio do que antes. A
grande lenda acenou por um momento para ele e depois riu
dele novamente.
Ele se virou com uma curva cínica nos lábios e
continuou seu caminho.

O conde de Kevern estava de mau humor. Pelo menos,


essa era a palavra que se espalhava no andar debaixo em sua
casa da cidade de frente à Praça de Hanôver. Ele havia
vociferado com seu criado por ter escovado o casaco errado
logo que se levantou, embora nenhum casaco particular
tivesse sido solicitado. E ele comentou com um tom cáustico
113
ao seu mordomo no café da manhã que havia comida
suficiente no aparador para alimentar uns cinco mil, e Cook
faria bem em lembrar que, apesar de seu elevado nível, ele
era apenas um homem em posse de um único ordinário
estômago.
O Natal estava se aproximando novamente, seus criados
se lembraram, como se algum deles precisasse lembrar, e eles
assentiram com sabedoria um para o outro como se esse fato
fosse responsável pela irritabilidade de seu mestre. E ele não
iria para Buckland Abbey este ano, embora fosse sua casa de
campo e o resto da família estaria lá, como de costume.
Teria ajudado a limpar sua mente,se tivesse ido, a
governanta deu a sua opinião. Todas aquelas crianças
torceriam o coração de qualquer pessoa no Natal.
Mas era por causa das crianças que isso era difícil para
ele, disse Cook, balançando a cabeça e murmurando ― Meu
pobre e querido cavalheiro ― sobre a grande panela de sopa
que estava mexendo. Era a filosofia de Cook que a melhor
maneira de ajudar um homem a esquecer de coisas ruins era
encher seu estômago com pratos saborosos. E, portanto, era
improvável que o café-da-manhã seguinte diminuísse em
tamanho ou na variedade de alimentos preparados.
Fosse qual fosse a causa do mau humor, estava lá. E o
que estava prestes a dizer, poderia muito bem rivalizar com
isso. O mordomo, portanto, bateu na porta da biblioteca em
algum momento depois do café da manhã com a firme
convicção de que ele poderia estar cometendo suicídio

114
fazendo assim ― ou pelo menos garantindo que ele fosse
jogado no olho da rua, sem emprego, justo no Natal.
― Coloque isso aí ―, disse o conde, olhando brevemente
do seu livro para a bandeja cheia de jornais do dia seu
mordomo se agarrava. E então, seu olhar tornou-se irritável.
― O que foi, Horrocks?
Horrocks tossiu, esclarecendo gentilmente a garganta,
um sinal claro de que ele tinha algo a dizer.
― Há uma pessoa, milorde ―, ele disse com seu tom
altivo que geralmente transformavam as meras pessoas em
geleia trêmula. ― Um feixe de trapos. Um menino
impertinente.
Sua senhoria o olhou friamente com seus olhos azuis
pálidos.
― Na cozinha, milorde ―, disse Horrocks. ― Caminhando
em volta do fogo, tentando aquecer-se apesar de que eu
desaprove. ― Horrocks aqueceu a sua história como talvez o
menino estivesse se aquecendo. Ele tossiu de novo.
― Jogue-o na rua ―, disse o conde e preparou-se para
voltar sua atenção para seu livro, embora a bem da verdade
ele também pudesse tê-lo de cabeça para baixo por toda a
atenção que estava lhe dando antes da interrupção. ― Mas
não antes de lhe dar um pouco de pão e uma moeda .
― Ele exige falar com você, milorde. ― Horrocks falou
como se o nó da forca estivesse sendo baixado sobre sua
cabeça. ― Diz que é uma questão de vida ou morte .

115
Lorde Kevern baixou o livro e Horrocks endureceu o
lábio superior. ― Seu nome não é por acaso Charlie Cobban,
é? ―, Perguntou o conde.
― Sim, milorde. ― A breve resposta parecia a melhor
defesa contra uma pergunta tão inesperada. Mas o menino
tinha dito à governanta que isso significaria certa morte e
demissão ― embora ele não tivesse dito que seriam
necessariamente nessa ordem – caso o impedissem de falar
com Sua Alteza.
― Traga-o, seja lá o que isso signifique ―, disse o conde,
deixando totalmente de lado seu livro e ficando em pé.
Horrocks desapareceu como um tiro, apenas tentando
manter adignidade.
O conde de Kevern ficou de pé diante do fogo e aqueceu
suas costas e as mãos, que ele apertava atrás de si. Passara a
noite sonhando alternadamente com olhos verde-esmeralda e
com o moleque de rua balançando pendurado na forca do
cadafalso de Tyburn e acordou com o mais terrível mau
humor, porque havia ainda dois dias inteiros para o Natale
até tudo isso ter terminado. Ele poderia muito bem divertir-se
com a visão de um pivete inteligente e inventivo que ainda
tinha os pés firmemente no chão.
Por que será, ele pensou, que não estava de modo algum
surpreso com a chegada de Charlie Cobban à sua porta?
― Bom dia, Charlie ―, ele disse quando seu mordomo
conduziu o menino até a biblioteca e desapareceu novamente
com um aceno de cabeça de seu mestre.

116
― Caramba, meu chapa ―, disse o menino, ― Tem tudo
esse tipo de coisa lá em Carlto house1? .
― Eu diria que há muito mais ―, disse o conde. ― Você
veio para uma visita guiada?
― Nem! ― Charlie disse com desdém. ― Ocê num sabe
dondi ela mora, né, chapa? E ocê qué sabe. Eu vi isso ontem
quando ocê assistiu ela andanu pela rua. Vo dizê dondi ela
mora. Eu segui ela .
― Você a seguiu? ―, Disse o senhorio, começando a
sentir os primeiros sintomas de bom humor naquela manhã.
― E você vai me dizer? Por uma pequena taxa, eu suponho?
― Um guinéu, meu chapa, ― Charlie disse com firmeza.
― Eu vi qui ocê aparenta não sê o tipo que vai senti farta de
um guinéu .
― Ah ―, o conde disse: ― Eu vejo que você considerou
minhas últimas palavras de sabedoria ontem à tarde, meu
filho. Mas uma guinéu é uma quantidade prodigiosa a pagar
por informações que nunca considerei necessárias para
minha existência ou bem-estar .
― Metade de um guinéu então, praeu falá dondi ela foi
esta manhã ―, disse Charlie.
As sobrancelhas do conde subiram. ― Bondade! ―, disse
ele. ― Você tem feito sua lição de casa. Talvez eu devesse dar
uma olhada em você, Charlie, para ver se roubou algum
pertence da dama. Se você tiver roubado, você sabe, te

1Carlton House foi a residência palaciana do príncipe regente na época, até


aproximadamente 1820 quando se tornou rei. Foi demolida em 1825, se tornando,
posteriormente, Carlton House Terrace.

117
colocarei sobre meu joelho e lhe darei umas boas palmadas
com a minha mão nua que você nunca esquecerá .
― Nem! ―, Charlie disse com desprezo. ― Eu decidi
abandoná a vida di roubo meu chapa. Ela veiu pruma casa
aqui perto ―. Ela devi di trabaiá lá .
Sim, ela deve estar de pé em uma hora em que a maioria
das mulheres ainda está dormindo. Perto de Hanover Square.
Bond Street estava, então, em sua rota para o trabalho.
― Então você decidiu fazer uma vida mais honesta,
vendendo informações, ― disse o conde secamente. ― Você
não passou mal com os bolos e o pastel, por sinal?
― A mãe i a Annie comeu o pastel, ― Charlie disse, ― i…
― Annie deve ser o nome do meio da Violet, eu suponho
―, disse o conde.
― Nem! ―, Charlie disse: ― Annie, minha irmã mais véia,
a única qui tava trabaiandodi costureiramais ela perdeu
ontem di ontem .
― Ah ―, disse o conde. ― Então, o peso sobre seus
ombros torna-se cada vez mais oneroso .
― Nóis sempre come carne no Natar ―, disse Charlie,
com os seus olhos tão emotivos como tinham sido na tarde
anterior, quando se dirigiam à Julie Bevan. ― Mais este ano
nóis num vai tê .
― Meu coração está partido em dois ―, disse o conde. ―
Agora, então, Charlie, te mandarei de volta à cozinha com
instruções para que você seja alimentado com o jantar. Aqui
está uma coroa, sem informações solicitadas em troca.

118
Suponho que você deu a meia coroa de ontem para sua mãe,
como um bom menino?
― Sim, chapa ―, disse Charlie.
― Eu imaginei mesmo ―, disse o lorde secamente. ―
Certifique-se de fazer o mesmo com isso. Sua mãe, sem
dúvida, terá a sabedoria para gastá-la com cuidado .
― Sim, chapa ―, disse Charlie. ― Mais pra um
pagamentu como este, eu digo dondi ela mora. Preço especial,
chapa,pro Natar.
― Espiando uma dama ―, disse o conde de Kevern, ―
tudo o que você ganhará de mim é uma sessão de tapas com
o lado pesado da minha mão, Charlie. O Sr. Horrocks, meu
mordomo, estará aguardando fora da porta por você. Vá em
frente com ele, coma o seu jantar e, em seguida, retire-se.
Sinto-me obrigado a acrescentar que não me afligirei
terrivelmente se nunca mais voltar a te ver .
― Nossa, meu ―, disse Charlie, com uma mão na porta
da biblioteca, e com o braço livre acenando com o polegar em
direção ao mordomo, todo empolgado: ― Eu achei qui ele era
tipo um duque ou alguma coisa assim .
O conde esperou que a porta se fechasse atrás do
menino antes de sorrir. Sim, Horrocks faria o perfeito duque
em um palco.
Mas o sorriso dele desapareceu rapidamente o
suficiente. Se ela trabalhava para ganhar a vida, as chances
eram de que ela trabalhava horas normais. Ela provavelmente
caminhava para trabalhar exatamente no mesmo horário

119
todas as manhãs e para casa novamente exatamente na
mesma hora da tarde. E sempre na mesma rota.
O conde franziu a testa para o tapete abaixo dos seus
pés e tentou reconstruir seus movimentos no dia anterior.
Em exatamenteque horas ele tinha deixado o White? Teria ele
parado em qualquer lugar ao longo do caminho antes de
chegar a frente daquela joalheria?
E ele estava realmente fazendo esses cálculos?
Perguntou a si mesmo de repente, com o cenho franzido. Por
que ele gostaria de saber as respostas se ele não estava
planejando estar no mesmo lugar e no mesmo horário hoje?
Ele estava enlouquecendo?
Muito provavelmente, ele decidiu. Porque era
exatamente o que ele estava planejando fazer, a menos que
pudesse se convencer do contrário nas próximas duas horas.
Ele ameaçou bater em Charlie por espionar a dama. E
qual seria o seu castigo por tentar fazer exatamente o
mesmo? Exceto que ele não queria segui-la até sua casa. Ou
queria?
Bom Deus, pensou, ele deveria ir para Buckland Abbey
agora, nesse minuto, antes que fosse tarde demais. Ele ainda
poderia participar do brinde, ouvir os carolers e trocar
presentes. Não, nada disso. De novo não. Era melhor
espreitar pelas lojas da Bond Street espionando damaspobres
com olhos cor de esmeralda. Era melhor divertir-se
novamente com a imagem do espírito perfeito do Natal: uma
dama empobrecida, de roupas gastas, mas com um coração
de ouro.

120
Se ela passasse pela Bond Street novamente naquele
dia... As probabilidades, ele supôs, estavam muito contra ela
fazer isso. Mas ele iria de qualquer jeito e veria. Não havia
muito mais a fazer com seu tempo até o Natal ter passado.

Ela veio, mas certamente um pouco mais tarde do que


no dia anterior. O conde de Kevern havia subido e descido
esse trecho particular da rua três vezes, examinando o
conteúdo de cada vitrine de ambos os lados da rua,
mantendo-se atento para vê-la chegar, para que ele pudesse
se esconder —se e quando— ela aparecesse, se esforçando
para não parecer muito notável.
Ele tocou seu chapéu para cumprimentar duas vezes
Lady Goodborough, uma vez em um lado da rua enquanto
caminhava em uma direção, e novamente do outro lado da
rua indo para o outro lado. Bem, pensou, ela simplesmente
assumiria que ele estava tendo problemas especiais para
selecionar um presente para uma tia ou uma irmã. O que
talvez fosse exatamente o que estava acontecendo com ela.
Havia Natal ao seu redor novamente, mas isso o deixou
incômodo e irritado hoje. Ele não podia vê-lo com
desinteresse satírico que sentira na tarde anterior. Pois foi o
Natal que o trouxera aqui novamente. O que mais? O Natal
sempre trazia a ilusão de que o impossível poderia acontecer
e que alguém poderia ser feliz e permanecer feliz. Embora o

121
que essa ideia tivesse a ver com uma pobre estranha, ele não
podia imaginar.
Ele a viu finalmente e se escondeu na soleira da porta
de um fabricante de botas. Ela estava andando na mesma
direção do dia anterior e vestia o mesmo ― uma jovem
pequena, esbelta e vestida com roupas sombrias, que nem
deveria ter captado sua atenção. Ela certamente não tinha
nada que pudesse então mantê-la. Não havia nada lá para
atrair.
Exceto aquele espetáculo ridículo e afetado que ela tinha
feito de si mesma, olhando através de uma vitrine de
joalheria na Bond Street. Embora isso não tenha sido
atraente, apenas meramente patético. E aqueles olhos, é
claro, que ele nem tinha visto até se comprometer a
atravessar a rua e salvá-la de um pequeno ladrãozinho de
rua. Então ele não podia dizer que eram os olhos que os
atraíram para ela.
Ele prendeu a respiração sem perceber que o havia feito,
até que ela parou quase em frente de onde ele se encontrava,
do outro lado da rua, e olhou para a vitrine do joalheiro. Ela
não ficaria desapontada. A virgem e a criança ainda estavam
lá, um elegante grupo de porcelana pintada. Embora
houvesse algo mais do que uma mera elegância, ele havia
concedido antes, quando ele próprio havia parado para
examinar. Aquilo foi moldado por uma mão sensível, por
alguém que conhecia algo sobre amor materno e paterno. Ou
talvez apenas por alguém que tivesse esperando que uma
mulher sentimental e de bolsa cheiafosse vê-lo em uma

122
vitrine. Só que a bolsa da dama em questão era sem dúvida
muito vazia para compeli-la a comprar.
O conde de Kevern se recostou na entrada da loja
tentando parecer como se não estivesse à espreita. O que ele
deveria fazer? Simplesmente ficar lá e observá-la até que ela
fosse para casa, como deveria fazer em breve? Segui-la
quando ela fizesse isso? O pensamento era altamente
desagradável. Ou atravessar a rua para falar com ela? Mas o
que dizer? Simplesmente tocar seu chapéu e desejar-lhe um
bom dia? Fazer algum comentário sobre a cena de porcelana?
Perguntar depois sobre a saúde dela?
Pedir a ela que gentilmente não assombrasse seus
sonhos esta noite? Mas enquanto ele estava parado indeciso,
alguém foi muito mais ousado. O filho de Denbridge,
chamado Colley, o jovem pateta arrogante. Ele havia sido
expulso de Oxford no ano anterior por algum crime
desconhecido e passou a semear sua aveia selvagem em
Londres. E sua aveia selvagem era um modo de falar. Ter um
pai rico e indulgente e possuir a aparência de um deus loiro
assegurou-lhe de que ele ainda não colhesse àquela aveia.
Mas ele provavelmente faria com o tempo.
Ele parou e estava conversando com Julie Bevan. O
conde podia ver seu sorriso praticado em perfil. Ela deu um
passo para o lado, afastou-se dele e continuou a olhar para a
vitrine. Colley deu um passo se aproximando novamente. E
então ela virou-se para encará-lo, pretendendo seguir, mas
ele tocou seu braço e ela parou.

123
Por Deus, pensou o conde, agarrando a bengala e dando
um passo da porta em que ele estava, haveria um chapéu de
castor esmagado e um crânio rachado quando ele cruzasse a
rua.E um conjunto de nós dos dedos machucadoscom um
tanto de dentes pendurados daquele pirralho filho de
Denbridge.
Ela estava olhando para Colley e falando, e ele estava
sorrindo para ela. Para dar-lhe o devido crédito, ela não
parecia estar pânico. Ela não estava desmaiando em uma
crise virginal que necessitaria de sais e vapores.
E então o conde parou, um pé na calçada e outro na
rua.
Bom Deus. Oh, bom Senhor.
Ele estava em caducando ou com o cérebro se
desfazendo em uma massa mole? Ela era uma mulher
trabalhadora. Claro. Uma dama trabalhadora.
Pobre, humilde, trabalhando provavelmente por apenas
metade do preço que ela poderia conseguircaso pudesse se
vestir com roupas mais caras.
Ele apertou os dentes e devolveu o pé para a calçada.
E então ela se virou e ele pôde ver seu rosto, e havia
angústia nele. Ela estava claramente tentando se soltarda
mão que segurava seu braço sem atrair atenção indevida
para si mesma.
Antes que o conde pudesse chegar a meio caminho da
rua, um pequeno míssil esfarrapado lançou-se bem de cabeça
contra o cavalheiro, e dois punhos finos bateram contra as

124
capas de um casaco excelente e dois pés maldosos chutaram
suas botas bem brilhantes. Houve um rugido agudo de raiva.
Quando Lorde Kevern chegou à cena, o honorável Sr.
Cuthbert Colley estava sacudindo pelo pescoço um pequeno
menino de ruaque xingava e guinchava como um rato, e Julie
Bevan estava observando, as mãos no peito, sem nem sequer
pensar em sair correndo da cena enquanto era possível.
Mesmo alguns dos compradores educados da Bond Street
pararam para testemunhar o que acontecia.
― Deixe-o ir, Colley ―, disse o conde com seu tom
entediado que o caracterizava. ― Não parece bom, meu
querido amigo, lutar com um mero bebê .
― Não até eu ter dado a este pequeno animal uma lição
de boas maneiras ―, disse o Sr. Colley, com a voz apertada de
fúria.
― Depois de você, então ―, disse Lorde Kevern. ― Eu
espero minha vez .
― Ele também o ofendeu, Kevern? ―, Perguntou o Sr.
Colley, agitando Charlie Cobban mais uma vez e ouvindo com
desgosto o fluxo de linguagens irrepetíveis que saíam da boca
da criança.
― Não, não ―, disse o conde. ― Não esta tarde, de
qualquer maneira. É um grande animal que estou querendo
castigar. Embora dado o cenário muito público, você pode
preferir pedir desculpas à lady e seguir seu caminho, Colley.
Nesse caso, vamos esquecer o incidente, desde que nunca
seja repetido .

125
― Lady? ― O Sr. Colley olhou para Julie Bevan com
incredulidade, apareceu um pouco envergonhado com o que
viu, e soltou Charlie, que o chutou mais uma vez na canela.
― Minhas desculpas, madame. Eu confundi você, errr, com
alguém que eu conheço. ― Ele tocou o chapéu, virou-se em
seus calcanhares e desapareceu sem olhar para trás.
― Porque demorô tanto, chapa? ― Charlie perguntou,
arrumando suas roupas rasgadas em sua posição correta. ―
Eu podia tevirado mingau se ele me sacudisse mais.
― Oh, Charlie ―, disse Julie, ― quão incrivelmente
corajoso você veio em meu resgate. Eu agradeço. ― Ela se
virou para o conde. ― E você também, milorde. Tinha muito
medo de que Charlie pudesse ter sido machucado se não
estivesse aqui.
― Charlie teria se machucado ―, disse ele. ― Você está
bem, madame? Posso oferecer-lhe meu braço? Você gostaria
de se sentar na confeitaria novamente e tomar um pouco de
chá?
― Não. ― Ela sorriu. ― Embora seja muito gentil por
oferecer, milorde. Mas obrigada. ― Ela tomou seu braço
oferecido e sua voz vacilou um pouco. ― Talvez eu me segure
em você por alguns passos, se estiver seguindo pelo meu
caminho .
Ela era pequena, frágil e tremia ― todas as coisas que
mais desprezava nas mulheres porque sabiam tão bem como
explorar suas fraquezas como algo vantajoso. E, no entanto,
Julie Bevan não estava usando como vantagem, como ele
esperava que ela fizesse e desejasse que ela não fizesse. Ela

126
voltou a cabeça e acenou para Charlie caminhar do outro
lado.
― Ele te machucou, Charlie? ―, Perguntou. ― Oh, seu
pobre menino corajoso. ― E sua mão continuou a tremer no
braço do conde, e sua voz continuou a tremer. ― Você vai
caminhar para casa comigo? Há alguns bolos sendo feitos
para o Natal hoje, e você deve levar algum para você e sua
família .
Tudo o que o menino precisava, pensou Lorde Kevern,
era outra noite de se empanturrando de bolo para ficar
seriamente doente.
― Dê-lhe instruções para não comê-los de uma vez ―,
disse ele, ― ou ele vai passar o Natal com dor de estômago .
Ela sorriu para ele. ― Não, se ele compartilhar ―, disse
ela. Ela parou de caminhar e retirou o braço dele.
― Obrigada pelo seu apoio, milorde. Estou melhor agora.
Desejo-lhe um bom dia .
Ele deveria fazer o mesmo por ela, pensou. Ele deveria
se apressar para casa e se afastar do Natal antes que ele
fosse mais infectado por isso. Antes que ele fosse absorvido
de forma mais completa na hipocrisia e na artificialidade e na
pura irrealidade.
― Eu a levarei até à sua porta, madame ―, disse ele, ―
com Charlie como seu acompanhante. Quero garantir que
não será importunada de novo.
Seu sorriso era um pouco triste, pensou ele. ― Foi
minha culpa, ficando lá parada ―, disse ela. ― Eu deveria
saber, por experiência própria, que isso apenas convida

127
avanços indesejáveis. Mas eu sempre os evito quando
mantenho a cabeça baixa e ando rapidamente. Eu ficarei
bem, milorde. E há uma boa distância ainda para andar. Eu
não quero lhe afastar de seu caminho .
― Se você não tomar meu braço e deixar-me
acompanhá-la ―, disse ele, ― então eu seguirei logo trás como
um cão de guarda. O que você prefere?
Seu sorriso mostrou diversão. ― Seu braço, então ―,
disse ela. ― Eu devo confessar que será um presente raro me
sentir completamente segura. Mas que estranha coincidência
que você estava lá novamente hoje, milorde, no mesmo lugar .
― Sim ―, disse ele. ― Uma estranha coincidência .
― E Charlie também ―, disse ela com uma risada.
Charlie, o conde notou quando olhou, estava envolvido
em sua habitual brincadeira, pululando na calçada, um pé e
depois o outro, e estava olhando para ele acusadoramente. O
lorde levantou as sobrancelhas em desafio.
Ela morava em uma rua que não era muito boa, um
bairro pobre. Não era exatamente um miserável, mas seria
antes que muitos anos se passassem. Ela parou diante de
uma casa geminada e retirou a mão do braço do conde
― Esta é a minha casa ―, disse ela, ― e você me trouxe
com segurança, milorde. Você entrará para que eu possa
apresentar meu avô a você? Ele tem tão pouca companhia. E
posso lhe oferecer um pouco de chá? .
Oh Senhor, não. Ele não tinha vontade de ser atraído
para a vida de pessoas que caíram em tempos difíceis. Ele

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não desejava ver o desespero dessas pessoas de perto. Suas
cordas do coração não precisavam ser puxadas dessa forma.
Ele estava bastante satisfeito com o estado de seu
coração como estava. Levou quase dois anos para amortizá-
lo, e esse era o estado em que ele gostava.
― Eu entendo ―, ela disse, fazendo-lhe uma brusca
reverência, seus olhos se afastaram dele. ― Bom dia, milorde,
e agradeço novamente por sua grande gentileza. Charlie?
Venha, querido.
Ela entendeu o quê? Que ele se sentia muito acima dela
para passar além da porta da casa atrás deles e beber chá
com seu avô?
― Eu gostaria de conhecer seu avô, senhorita Bevan ―,
ele disse, ― e beber um chá quente ―. Embora seus olhos,
que se voltaram alegres para ele, pudessem aquecer seu
sangue de forma tão eficaz quanto fogo ou mesmo uma
intoxicante bebida, pensou. E franziu a testa com o
pensamento.
Um velho e antigocriado com as costas dobradas na
forma de um arco se arrastou para o corredor estreito quando
Julie abriu a porta da frente com a chave no ferrolho. Ele
deveria ter uns noventa anos se não mais, pensou o conde.
― Oh, Sr. Stebbins ―, disse ela, ― você deveria estar na
cozinha onde está quente. Posso entrar e cuidar do meu
casaco e touca, como você sabe. Hum, maravilhoso. ― Ela
respirou profundamente. ― Sra. Stebbins tem cozinhado.
Suas pernas estão melhores hoje, então?

129
― Não, senhorita ―, disse o servo. ― Mas você conhece
minha Martha .
― Conheço ―, disse ela. ― Este é Charlie Cobban,Sr.
Stebbins. ― O conde observou, fascinado, enquanto ela
passava um braço sobre os magros ombros do garoto e o
abraçava ao seu lado. ― Ele me salvou hoje de alguém que
estava sendo descortês. Leve-o de para a cozinha, se você
puder, e deixe-o comer o recheio doce e pedaços de torta.
Deixe a Sra. Stebbins saber que ele é meu campeão. ― E para
o espanto do conde, ela inclinou a cabeça e beijou o garoto na
bochecha antes de liberá-lo para o cuidado do criado idoso.
― Charlie ―, o idoso disse com a voz tremendo que se
adequava à sua aparência com perfeição: ― venha, meu bom
menino. A Sra. Stebbins vai te empanturrar com comida. ―
Ele riu de sua própria brincadeira.
― E diga à Sra. Stebbins que ela não deve subir as
escadas com a bandeja de chá ―, disse Julie com firmeza. ―
Buscarei isso eu mesma em alguns minutos .
Ela voltou para o conde e sorriu. ― Você me acompanha
por aqui, milorde? ―, Perguntou, virando-se para a porta
fechada à esquerda e abrindo-a.
Não era a sala sombria e triste que Lorde Kevern
esperava, embora pudesse ter sido. Um fogo alegre queimava
na lareira e as velas já estavam acesas. As cadeiras bastante
gastas estavam cobertas com almofadas bordadas
alegremente, e o velho cavalheiro que dormia numa cadeira
ao lado do fogo estava coberto por uma manta
brilhantemente colorida da cintura para baixo.

130
E voltou a ser Natal, mesmo nesta pobre e velha casa.
Os ramos de vermelhos adornavam a sala com alegria, e um
raminho de visco dependurava do teto um pouco para a
frente da lareira.
― Vovô ―, disse Julie, curvando-se sobre o velho
cavalheiro e ajeitando os cabelos finos e brancos que caíam
sobre sua testa. ― Eu estou em casa. E trouxe alguém
comigo.
― Eh? ― O velho cavalheiro acordou e olhou para cima
com olhos assustados debaixo de sobrancelhas brancas
espessas. E então seus olhos suavizaram com calor e amor. ―
É você, Julie, não é? Casa de novo? E para ficar até depois do
Natal?
― Não, vovô. ― Ela falou alto e distintamente. ― Eu
tenho que ir amanhã de novo, mas apenas para tocar piano
para que os jovens possam praticar seus passos de dança,
não para dar aulas. Eu trouxe alguém comigo.
― Eh? ―, Disse o velho cavalheiro, e ela se endireitou e
ficou ao um lado da cadeira.
― Milorde ―, ela disse, ― posso apresentar meu avô, Sir
Richard Bevan? ― Ela ergueu a voz novamente.
― Este é o Conde de Kevern, vovô. Ele foi gentil o
suficiente para me acompanhar em casa depois que alguém
foi desrespeitoso comigo .
― Eh? ―, Ele disse. ― Alguém foi desrespeitoso, Julie? O
conde de Kevern? O velho cavalheiro colocou as mãos nos
braços da cadeira e fez gesto para ficar de pé.

131
― Não, não ―, disse o conde, avançando, uma mão
estendida. ― Não precisa se levantar, senhor. Eu diria que
você está no melhor lugar hoje. Está frio lá fora .
Julie ofereceu-lhe a cadeira em frente ao avô e ao lado
do fogo, e ela saiu da sala para buscar a bandeja de chá. O
conde a observou ir e resistiu ao desejo desconhecido oferecer
sua assistência.
Sir Richard estava inclinado a conversar, o conde
descobriu, e falou de dias anteriores e dias melhores quando
ele viveu em sua própria propriedade no campo e teve amigos
que se estendiam por todo o município. E de seu filho, o
Reverendo Peter Bevan, que poderia ter sido bispo, se ele
tivesse tido alguma ambição e aceitado o patrocínio quando
lhe foi oferecido. Em vez disso, ele havia morrido de febre
juntamente com sua esposa e sem ter deixado um só centavo.
― Mas papai era um homem feliz, vovô ―, disse Julie.
Ela voltou para sala já há tempo e serviu o chá e entregou um
prato de bolos e tortas. ― E muito amado .
― E deixou você sem um centavo para um dote ―, disse
o velho senhor. ― E eu como um fardo pesado depois que
você havia perdido tudo .
― Você não é um fardo, vovô ―, disse ela, deixando seu
próprio prato e cruzando a sala para ajustar a manta que
tinha caído dos joelhos do idoso. ― Você é minha família.
Minha única família .
Ele tocou os cabelos dourados da neta com uma mão
nodosa antes de se endireitar e sentar novamente.

132
― Você já deveria ter sua própria família, Julie ―, disse
ele. ― Você deveria ter se casado com aquele jovem do qual
não me recordo o nome, quando teve uma chance e ter se
livrado de mim. Tive minha vida. Você deveria ter filhos
próprios .
― Bem, eu não o fiz ―, ela disse rapidamente, e parecia
profundamente envergonhada, o conde viu. ― Nós nos
mudamos para Londres, milorde, para que eu pudesse
assumir um emprego. Eu não poderia aceitar uma posição de
governanta porque isso significaria deixar o avô e o Sr. e a
Sra. Stebbins sozinhos, que já estavam muito velhos para
trabalhar. Ensino música e às vezes francês .
― E ela tem que sair sozinha todos os dias ―, disse Sir
Richard, ― sem empregada ou acompanhante. E nenhuma
carruagem. Não é certo, Kevern, para a neta de um baronete.
Você não acha?
― Oh, avô ―, disse ela.
O conde recusou uma segunda xícara de chá e ficou de
pé. Ela estava claramente desconfortável, e ele estava
desconfortável. Bom Deus. Ela tinha feito uma casa e uma
vida fora apesar desta sua situação tão assustadora. E havia
amor em seus olhos quando olhava ao velho excêntrico que a
impedira de assumir um emprego regular ou se casar. E, no
entanto, ela estava preparada para entrar no espírito do
Natal, pensou ele, olhando novamente para o azevinho, como
se realmente pudesse trazer alegria para a vida dela.
Ele apertou a mão do velho cavalheiro e seguiu Julie no
corredor.

133
― Você disse que aprendeu por experiência ―, ele disse
para ela, olhando-a profundamente quando ela fechou a
porta da sala de estar atrás dela. ― Isso significa que você foi
abordada antes desta tarde?
― Quando uma dama tem essa aparência ―, disse ela,
olhando para o vestido liso e cinzento, ― e está parada na
rua, cavalheiros tiram suas próprias conclusões. Mesmo a
filha de um clérigo do interior aprende essa lição com rapidez,
milorde. E quando se trabalha nas casas dos ricos, sempre
há cavalheiros que assumem que meio tipo deseja aumentar
a renda. Aprendi a cuidar de mim mesma .
― E ainda ―, disse ele, ― você estava tremendo como
vara verde depois do que passou esta tarde .
― Porque você estava lá ―, disse ela, ― e Charlie. É fácil
ceder aos nervos femininos quando se sabe que não é
necessário lidar sozinha com uma situaçãodaquela .
― Diga-me onde trabalha ―, disse ele, ― e eu irei passar
um belo sermão aos machos da casa sobre como se deve ser
um verdadeiro cavalheiro .
Ela riu, um som baixo e doce. ― Quão gentil você é ―,
disse ela, ― e quão diferente do que seus olhos e suas
expressões faciais proclamam que você é. ― Ela corou e
abaixou os olhos como se percebendo muito tarde o que ela
havia dito.
― E o que eles proclamam? ―, Perguntou ele.
Ela olhou para ele novamente e hesitou. ― Que você é
um homem que não se importa com nada e ninguém ―, disse

134
ela. ― Você realmente teria batido em Charlie com sua
bengala?
― E ele teria merecido cada golpe ―, disse ele. ―
ladrãozinho de rua .
― Você é rico, eu suponho ―, disse ela. ― Você já tentou
se colocar mentalmente no lugar de alguém que não sabe de
onde vem a próxima refeição? Ou alguém que tem em seus
ombros magros e jovens todo o ônus de ter que providenciar
tudo para uma família que não consegue se manter?
― Mãe, Pai, Violet e Roddy? ―, Ele disse. ― E a
metamorfose da irmã e do irmão em Annie e Harry, que então
teve que se tornar um amigo da porta ao lado e uma irmã
mais velha, que é claro ― precisava ser dito ― acabara de
perder seu emprego? E suponho que a mãe ― se fizéssemos a
pergunta –estaria perto de parir outra criança. Venha,
Srta.Bevan, você ainda não é ingênua o suficiente para
acreditar nesse conto da carochinha, é? Há quanto tempo
você vive em Londres?
― Eu vivi ―, disse ela, ― por quase vinte e cinco anos,
milorde, e eu aprendi com minha mãe e meu pai a amar as
pessoas e aceitar suas histórias sem questionar. É verdade
que Charlie tentou me roubar ontem, mas hoje ele arriscou
sua própria segurança para me salvar. E ele é apenas uma
criança pequena. Você acha que ele tem mais de dez anos? E
ainda por cima vive mal alimentado e mal vestido.
― É este o momento em que retiro um lenço do meu
bolso para secar meus olhos e me assoar o nariz? ― Ele
perguntou.

135
― Seus olhos estão novamente frios ―, ela disse, ― e tão
maravilhosamente azuis. Mas você não pode me enganar,
milorde. Lembro-me dos bolos e da torta extra de ontem e da
meia coroa. E lembro-me de sua caminhada para casa comigo
esta tarde, quando você deve estar acostumado a usar a
carruagem em tais distâncias .
― Talvez eu tenha voltado para casa com você por causa
do seu cabelo dourado e olhos cor de esmeralda ―, disse ele.
Ela corou de novo. ― Eu acho que não, milorde ―, disse
ela.
― Bem. ― Ele procurou o casaco e o vestiu. ― Eu vou
chamar aquela criança na cozinha antes de eu sair. Caso
contrário, ele pode esquecer-se deir embora completamente e
se tornar um destinatário permanente da sua caridade .
― Eu acho que Charlie é um espírito mais independente
―, ela disse com um sorriso, mas caminhou até a entrada do
corredor e o chamou da escada.
― Agora ―, ele disse antes que Charlie aparecesse, ―
diga-me onde trabalha, para que eu possa aguardar perto de
lá amanhã para escoltá-la para casa. Será a véspera de Natal,
e é provável que haja alguns foliões inebriados, procurando
um pouco de esporte .
Ela corou mais uma vez. ― Não posso te pedir tal coisa
―, disse ela.
― Você não pediu ―, disse ele. ― Onde você trabalha?
Ela hesitou e depois nomeou um endereço na Brook
Street, bastante perto da Hanôver Square.

136
― A verei amanhã, então ―, ele disse quando Charlie
apareceu da cozinha. ― Ah, eu vejo que você está levando o
despojo da guerra com você, meu rapaz .
Charlie olhou para o pacote apertado em sua mão. ― A
véiasenhora mi deu alguns pra levápra Violet e Annie ―, disse
ele.
― Meus parabéns ―, disse o conde. ― Sua memória está
melhorando, Charlie. Venha comigo. É hora de ir para casa.
― Tchau, querido ―, disse Julie, e ela se abaixou para
abraçar a criança fortemente contra seu corpo e beijar sua
bochecha de novo.
E ela deslizou algo em um bolso esfarrapado antes de
liberá-lo, Lorde Kevern percebeu.
― Carambola! ―, o menino disse quando os dois estavam
na rua e Julie Bevan tinha acenado para eles e fechado a
porta. ― Eu aposto qui ocê ia dá um saco de guinéus pra táno
meu lugá aquela hora, né chapa. ― Ele caminhou ao longo da
calçada, equilibrando-se com os braços estendidos,
lembrando do abraço.
― Dois sacos ―, disse o conde. ― E eu te devo um
guinéu e meio, Charlie. Aqui estão eles.
― Carambola! ―, Charlie disse novamente, olhando as
moedas em sua mão e esquecendo-se de escondê-las com a
rapidez mágica habitual. ― Natar deve tá chegando .
― Não ―, disse o conde. ― Não é isso. É só minha
consciência me punindo, pois sem sua sugestão não
conseguiria descobrir a informação que você ofereceu me

137
vender, Charlie. Agora vá embora para qualquer coberto que
você chame de casa .
Charlie ficou imóvel na calçada e murmurou um
endereço distraído enquanto continuava a olhar para a nova
fortuna. E então ele olhou para cima e sorriu atrevido. ― Eu
vou comprar presentes para eles ―, ele disse, e correu pela
rua desaparecendo menos de um minuto depois no
crepúsculo.
O conde de Kevern ficou novamente com aquele
sentimento de vazio. Estava anoitecendo, fazia frio e estava
em uma rua vazia.
E aquele espírito de Natal tinha desaparecido, não havia
sinal disso sobre ele. Do jeito que ele queria. Mas o que era
essa sensação de vazio.
Mas não completamente, afinal. ― Número Cinco, Brook
Street ―, ele murmurou para si mesmo quando começou a
longa caminhada para casa.

Ele realmente deveria ter ido para Buckland Abbey, o


conde disse a si mesmo na tarde seguinte. Importava que no
ano passado tivesse se sentido como um estranho lá, mesmo
que a casa fosse dele etodos os convidados eram membros da
família da qual ele era o cabeça? Importava que ele não
estivesse feliz lá, mas tivesse visto a crueldade do Natal e a
alegria ilusória que fingia oferecer?
Pelo menos ele teria mantido sua sanidade lá.
138
Ele não tinha certeza de que continuaria são em
Londres. Por um lado, ele demorou toda a manhã, se
atrasando o máximo possível para sair, não porque a tarefa
de comprar presentes para seus servos fosse desagradável,
embora fosse, mas porque esperava um visitante. E ele
encontrou-se não só decepcionado quando Charlie Cobban
não veio, mas também preocupado. Por que diabos ele estava
desapontado, e por que, no nome do céu, ele o esperava de
qualquer maneira?
Preocupado com um moleque de rua cujo pescoço
provavelmente seria pendurado muito antes de chegar à
maturidade? Preocupado com um fedelho que poderia roubar
alguém quase tão pobre como ele e extorquir dinheiro para
informações inúteis e mentir sem piscar um olho e xingar
como um marinheiro?
Por que diabos ele estava preocupado? A criança tinha
se virado sozinha nos últimos dois dias. E, no entanto, o
conde não conseguiu sacudir de sua mentea imagem do
menino passando o Natal em uma cova de ladrões, despojado
das moedas que lhe tinham sido dadas e enviado para
implorar ou roubar mais. Ou do menino sozinho, buscando
calor e conforto em um beco em algum lugar, esperando que
as pessoas aparecessem novamente quando o Natal
acabasse. Ou do menino que sonhava com uma família ― de
duas irmãs e um irmão, e uma mãe prestes dar à luz a mais
um deles.

139
De um menino solitário como ele se sentia solitário,
exceto que o menino era apenas uma criança e devia ter
direito ao amor e à segurança e a uma família.
Um endereço continuava repetindo-se na mente do
conde, uma rua que ele nunca tinha ouvido falar, certamente
que ele nunca havia caminhado. Ele nem sabia de onde o
endereço tinha vindo, exceto que ele podia ouvir a voz do
menino recitando.
O Condede Kevern fez suas compras eventualmente e
depois esperou inquieto até chegar a hora de se aproximar do
número cinco, em Brook Street. Mas ele não estava de bom
humor e resmungou com seu valete por lhe entregar sua
bengala coberta de ouro quando ele queria a prata e franziu o
cenho para um lacaio que pulou para abrir a porta da frente
um segundo depois do que deveria.
Ele estava com um mau humor selvagem. Ele deveria
saber que o Natal abriria feridas que ele pensava já estarem
curadas. Ele deveria saber que não seria possível apenas rir
do grande mito.
Mas também teria sido possível, pensou ele, se tivesse
ignorado a visão dela diante daquela maldita vitrine do
joalheiro e seguisse adiante. Se ele tivesse feito isso, ele nem
teria visto o menino roubar sua bolsa. E Charlie teria
conseguido, e ela teria ficado desamparada.
Ela estava caminhando rapidamente pela Brook Street,
com a cabeça baixa, embora por duas vezes ela levantou-a
para olhar ansiosamente a sua volta. A segunda vez,ela o viu,
fez uma pausa e mordeu o lábio.

140
― Senhorita Bevan? ―, Ele disse erguendoo chapéu para
ela.
Ela sorriu e seu sorriso foi como um bálsamo calmante
para sua dor. Ele se viu sorrindo de volta.
― Oh ―, ela disse, tomando o braço que ele ofereceu, ―
você parece bem diferente quando sorri, milorde. Você parece
humano.
― Eu não vou perguntar o que eu pareço quando eu não
estou sorrindo, então ―, disse ele. ― Você sorri o tempo todo.
Nunca se sente amargaporque a sua vida acabou assim?
Você é a neta de um baronete, e ainda assim tem de
trabalhar para viver e aguentar os insultos de homens que se
consideram seus superiores ― e os insultos ainda pior das
mulheres, eu não duvidaria, porque você tem o infortúnio de
ser bonita. Vocêrecusou uma proposta de casamento porque
tem um avô idoso e enfermo e seus fiéis criados para
cuidar.Como você pode sorrir?
― Porque eu estou viva ―, disse ela, ― e desfruto de boa
saúde e tenha pessoas que eu amo e que me amam. E eu não
gostava muito dele, embora fosse um cavalheiro
perfeitamente elegível .
― Você está feliz, então? ―, Ele perguntou.
― Meu pai costumava dizer que a felicidade nunca pode
ser alcançada nesta vida ―, disse ela, exceto por breves
momentos. Breves vislumbres do céu que ele costumava
chamá-los. Há sempre algo mais que queremos. Sempre algo
que desejamos, mesmo não sendo pessoas egoístas e
gananciosas. Eu acredito que ele estava certo. Eu tenho

141
anseios exatamente como você deve ter. Como todos devem
ter.
― Não ―, disse ele. ― Eu não. Não quero nada para o
futuro. Eu queria que não houvesse futuro .
― Ah. ― Ela não sorriu quando olhou para ele. ― Alguma
coisa lhe feriu profundamente. Eu senti isso desde o início -
isso foiapenas dois dias atrás?
Mas ele foi salvo de ter que responder a ela. Havia um
grupo de carolers um pouco mais à frente em Bond Street, e
os alegres sons da cantoria de Natal chamaram a atenção
deles. Eles caminharam para mais perto e pararam, como
muitos outros pedestres e compradores haviam feito.
Se alguém estivesse pintando uma imagem de felicidade
perfeita de Natal, pensou o conde, certamente não
conseguiria fazer melhor do que desenhar um grupo de
carolers, empenhados contra o frio, suas bochechas e narizes
rosados do frio, seus rostos brilhando com o a felicidade da
estação e o nascimento da criança que proclamavam, as
mãos enluvadas segurando os papeis com as letras das
músicas para que todos vissem.
E então, caminharampela Bond Street e passaram pela
vitrine do joalheiro. Seus passos ficaram mais lentos, e ela
virou a cabeça, masnão parou.
― Ah ―, foi tudo o que ela disse, mas foi mais um
suspiro que uma palavra.
― Não está mais aqui ―, disse ele, ― e foi substituída por
um relógio de prata. Por que você gostava daquilo?

142
Ela olhou para ele com alguma surpresa. ― A virgem de
porcelana? ―, Ela disse. ― Você também a admirava,
milorde? Meu pai sempre colocou uma de madeira esculpida
na frente da igreja no Natal, embora algumas pessoas
costumassem pensar que era algo católico demais. Quando
eu vi pela primeira vez na janela há uma semana, foi Natal
para mim me enchendo de memórias de casa. E esperança.
Eu acho que deve ter sido maravilhoso para Maria dar à luz
Jesus no dia de Natal. Não é? ― Ela riu de repente. ―
Embora, claro, só é o dia de Natal porque isso aconteceu .
Mas ele estava engolindo com dificuldade e fechou os
olhos. E engoliu em seco novamente.
― O que foi? ― Suas palavras foram sussurradas.
― Nada ―. A palavra saiu dura mesmo para seus
próprios ouvidos. Ele manteve sua mão apertada em seu
lado, o braço rígido. ― É apenas por causa de toda essa
conversa de Natal. É apenas um dia do ano como qualquer
outro. E, no entanto, alguém é convidado a gastar uma
fortuna em presentes e a encher-se de alimentos ricos e licor
e fingir que a natureza humana é bela e permanecerá assim.
Somos convidados a acreditar que nada de ruim pode
acontecer no Natal, apenas a paz na terra e a boa vontade
entre os homens .
― Alguma coisa ruim aconteceu com você? ―, perguntou
ela.
Mas ele não lhe respondeu. Ele caminhou, atraindo-a
com ele, reduzindo o ritmo quando percebeu que estava
caminhando, mas não falando. E ele lamentou novamente

143
por não ter ido a Buckland Abbey e lamentou ter virado a
cabeça por um segundo e olhado para ela parada em frente a
joalharia dois dias antes. E lamentou por todos os incidentes
que o levaram a esse momento.
― Eu lamento ―, ela disse finalmente, quando estavam
bem perto da casa dela, ― não ter visto Charlie na Bond
Street hoje. De alguma forma, eu o esperava. Isso não é
absurdo? Eu me pergunto que tipo de Natal ele terá. A família
deve ao menos poder comprar algum alimento com a meia-
coroa que você lhe deu.
― E com o dinheiro que você escorregou no bolso dele
ontem ―, disse ele. ― Não acredite demais nessa família.
Charlie é um garoto de rua
― Eu tenho que acreditar que existe essa família ―,
disse ela, ― ou meu coração se partirá totalmente. Ele é
apenas uma criança. Gostaria de saber onde eu poderia
encontrá-lo. Gostaria de ter perguntado isso a ele.
― Eu acredito que sei ―, disse ele. ― Pelo menos, um
endereço estranho continua passando pela minha cabeça, e
se repetindo na voz de Charlie .
Seu rosto se acendeu. ― Oh, diga-me ―, disse ela. ― Eu
irei lá. Amanhã. Eu tomarei mais comida da cozinha da Sra.
Stebbins, e verei se posso encontrar algo para levar como
presentes para Charlie e as crianças pequenas .
― Violet e Roddy? ―, Ele disse. ― Você sempre foi tão
crédula, senhorita Bevan? Mas você não deve ir. É sem
dúvida um bairro perigoso.

144
― Eu irei de qualquer jeito. ― Ela sorriu para ele. ― Oh,
eu espero ansiosamente voltar a ver Charlie e desejar-lhe um
feliz Natal .
Deixe isto do jeito que está, uma voz interna lhe disse.
Diga adeus a ela agora e se afaste.
― Se você insistir em ir ―, disse ele, ― então eu também
irei. Eu a escoltarei até lá para assistir sua decepção e
desilusão quando descobrir que o endereço é o de uma cova
de ladrões .
― Isso é o que você deseja encontrar? ―, Perguntou ela.
Não. E maldito fosse aquele menino por puxar as cordas
de seu coração e se emaranhar nelas. ― Vou levá-lo para casa
comigo ―, disse ele. ― Sem dúvida, minha governanta pode
encontrar algumas tarefas para ele fazer que sejam
adequadas à sua idade, força e talentos. Talvez eu o treine
para ser meu tigre. Isso te satisfaria?
― Você faria isso? ―, Perguntou ela. ― Por Charlie?
Mesmo se você estiver correto e ele não for mais do que uma
criança abandonada,um ladrão e um mentiroso?
― Ele é uma criança ―, ele disse com irritação.
― Sim. ― O sorriso dela era quente, embora suas
bochechas brilhassem escarlates com o frio. ― Em algum
momento ele foi como aquele pequeno bebê de porcelana nos
braços de Maria .
― Eu virei te buscar amanhã de manhã, então ―, disse
ele. Eles chegaram a porta de sua casa.

145
― Você não vai entrar para o chá? ―, Perguntou ela. ―
Vovô ficaria feliz em vê-lo novamente. E você tem uma longa
caminhada para casa .
― Não ―, disse ele. ― Não hoje. ― Mas ele não se afastou
imediatamentelhe desejando um bom dia.
― Sempre há algo pelo qual desejamos ―, disse ela
antes.
― Não eu ―, ele havia dito.
E ainda, ele desejava agora algo que não saberia dizer o
quê. Ele pegou sua mão enluvada na dele, sentiu com sua
própria luva o buraco na palma da luva dela que ela havia
escondido e virou a mão para olhar o remendo gasto no
couro. E ele levantou a mão até sua boca, beijando a pele
exposta da mão dela.
Bem, ele disse a si mesmo com todo o velho cinismo
interior, diga isso. Ele poderia também se tornar uma parte
de tudo isso, como todos os outros, para que pudesse se
divertir tanto quanto o mundo inteiro. Por que ele deveria ser
o único são em um universo insano? O único imune ao mito?
E então ele disse isso. Ele tocou a bochecha dela com a
outra mão, descansando brevemente o polegar enluvado
contra seus lábios. ― Feliz Natal, Julie ―, disse ele.
Os olhos dela ficaram brilhantes com lágrimas
novamente antes de se afastar abruptamente. ― Feliz Natal,
milorde ―, ele a ouviu dizer enquanto se afastava.

146
Dia de Natal. Foi o primeiro pensamento a se hospedar
em sua mente quando o sono o abandonou, mesmo antes de
abrir os olhos. O conde de Kevern rolou seu corpo e enterrou
a cabeça sob dois travesseiros como se assim pudesse
bloquear esse conhecimento e vinte e quatro horas
passassem em um momento.
Dois anos atrás. Tudo começou a acontecer ali, embora
continuasse durante todo o dia e na noite. Não tinha
amortecido os espíritos de ninguém. Pelo contrário. Quão
maravilhoso ser no Natal, sua família havia dito. Quão
apropriado. E mesmo ele, inquieto e ansioso como ele estava,
incapaz de pensar em presentes ou no jantar de Natal,
também estava excitado e feliz.
Natal. O dia mais glorioso do ano. O dia mais glorioso de
sua vida.
O conde permaneceu por muito tempo sob seus
travesseiros antes de finalmente arremessá-los longe. Mesmo
debaixo dos travesseiros, podia sentir o cheiro do Natal ― as
tortas, o pudim de ameixa e o ganso assado. Eo cheiro da
vegetação com que a casa tinha sido decorada no dia
anterior, enquanto ele estava fora. Havia coisas a serem
feitas, principalmente a distribuição de presentes e os bônus
de Natal entre seus servos. Havia sorrisos a serem usados e
brincadeiras a serem feitas e mãos a serem apertadas.
E então havia algo a ser feito. Havia Julie para ser
buscada ― quando ele começou a pensar nela como Julie em
vez de Srta. Bevan?, ele se perguntou surpreso ― e aquela

147
visita louca a ser feita até a casa que poderia ou não ser o
esconderijo de Charlie. E a família mítica.
Lorde Kevern olhou com um sorriso irônico para os
pacotes que se encontravam em cima de uma cômoda no
quarto ― cachecóis e luvas para Charlie, Violet e Roddy, e um
xale para Annie que ele havia comprado depois de deixar
Julie na tarde anterior. E outro pacote mais longo, que
comprara anteriormente, durante a manhã.
Ele deveria caminhar diretamente para o Hospício
Bethlehem, pensou, e salvar alguém do problema de ter que
levá-lo e entrega-lo lá dentro de alguns dias. Pois, sem
dúvida, ele se desviou de seus sentidos. E, no entanto, a
visão dos pacotes e o conhecimento da estranha jornada que
ele faria mais tarde, de alguma forma, fez o dia parece menos
impossível de enfrentar.
Sentou-se na beira da cama e passou as mãos pelo
cabelo antes de chamar seu criado. Seu anseio do dia
anterior tinha sido por algo sem nome. E, no entanto, pelo
menos um anseio ele tinha sido capaz de identificar, mesmo
naquele momento. Ele queria colocar a boca contra os lábios
que ele tinha tocado com o polegar.
Ele ficou satisfeito depois de tudo por não ter ido para
Buckland Abbey. Ah, ele estava feliz.
― Vovô. ― Julie inclinou-se sobre a cadeira do velho
cavalheiro e arrumou mais confortavelmente a manta sobre
sua cintura. Ele a levantou de sobre os pés para que pudesse
olhar para os chinelos que ela lhe dera de Natal. ― Lorde
Kevern e eu vamos sair por um curto período de tempo para

148
visitar Charlie, o menino que eu falei sobre quem me resgatou
no outro dia. É a hora de dormir de qualquer maneira.
Quando eu voltar, vamos jogar outra uma mão de cartas e
depois eu lerei para você .
― Sim, vá ―, disse Sir Richard. ― Vá, Julie, e dê aos
melhores cumprimentos ao menino. ― Ele olhou com
entusiasmo para o conde, que se levantou depois de ter
sentado e conversado por quase meia hora. ― Vá, e tenha o
seu próprio feliz Natal,garota. Não há pressa para você voltar.
Estou cansado.
Ela beijou sua bochecha.
― Eu tenho uma cesta para levar ―, disse ela, quando os
dois deixaram a sala. ― Eu vou correr e buscá-la .
Era a primeira vez que a via sem estar no frio. Sua
aparência era tão delicada e suave como ele esperava que
fosse, embora houvesse um ruborleve de cor nas bochechas.
E seus olhos brilhavam por causa do Natal, embora
parecesse haver tão pouco de precioso em sua vida, além de
três dependentes idosos e um garoto que teria roubado todo o
seu dinheiro se tivesse conseguido fugir.
E ele mesmo. Ele era parte do Natal dela? se perguntou.
Será que ela tinha acordado naquela manhã e lembrou-se de
que o veria e pensou que talvez depois de tudo, o dia fosse
suportável?
Ela voltou vestindo um manto azul, a touca cinza e as
luvas de couro desgastadas e carregando uma cesta coberta
apenas um pouco menor que a que estava em um assento de
sua carruagem diante de sua porta. Ela recusou sua

149
sugestão de que ela poderia querer levar a Sra. Stebbins com
ela como acompanhante.
― É feriado e dia de descanso para ela ―, disse ela. ―
Além disso, milorde, eu já passei da idade de precisar de
acompanhantes .
Talvez ela mudasse de ideia, pensou, se soubesse como
os olhos dele haviam se embriagado dela assim que chegou e
a viu e sempre que ela desviava o olhar para comentar algo
com o avô. Ou como suas emoções cruas e reprimidas
estavam sendo acalmadas pelo som de sua voz. Ele ajudou-a
a subir na carruagem e entrou atrás dela.
― Pelo menos ―, disse ela, rindo quando viu a cesta que
ele também levava, ― eles não morrerão de fome, não é? Eu
estou levando lenços para as crianças, um liso para Charlie e
Roddy, e bordados para Violet e Annie. Não são grandes
presentes, não é? Mas eu vi como você notou a ausência de
um lenço para o Charlie quando estávamos na confeitaria .
Seu rosto estava aceso com calor e felicidade.
― Julie ―, ele disse, ― não conte tanto com encontrá-lo.
O endereço que eu possuo pode não ser dele. Pode até não
existir.E é muito provável que a família não exista .
― É Natal ―, disse ela. ― Somente coisas maravilhosas
acontecem no Natal .
Ele virou a cabeça para olhar pela janela. Já as ruas
ficavam mais estreitas e menos conhecidas.
― Desculpe ―, disse ela suavemente. ― Seu rosto está
fechado novamente. Foi uma coisa irrefletida de se dizer. Algo
menos que maravilhoso aconteceu com você, não foi?

150
― É só ―, disse ele rigidamente, ― que não quero te ver
decepcionada .
― Eu vou lamentar ―, disse ela, ― se não encontrá-lo,
porque eu quero abraçá-lo e desejar-lhe o bem. Ficarei triste
se o encontrarmos e não houver família, porque ele terá sido
privado daquilo que todas as crianças deveriam ter direito.
Mas o dia inteiro não será uma decepção. Porque você saiu,
embora algo tenha triste tenha acontecido lhe fazendo odiar o
Natal, apenas para encontrar e alimentar um menino que
deve estar bem abaixo do benefício de ser notado por um
aristocrata. Um menino que você teria castigado com sua
bengala há apenas três dias, embora seu único crime fosse
não estar disposto a morrer de fome .
― Julie ―, ele disse, seus olhos ainda dirigidos para as
ruas maltratadas que passavam pelas janelas da carruagem,
― você é muito sentimental para o seu próprio bem, sabe. Ele
teria entendido a surra muito mais do que os seus abraços .
― Entendido, sim ―, disse ela. ― Ele teria entendido o
que deveria esperar da vida. Mas você não acredita que o
castigo teria sido melhor para ele. Eu sei que você não
acredita.
― Oh, bem ―, disse ele, virando a cabeça novamente
para olhar para ela, ― se você sabe o que há na profundidade
do meu coração, então não há nada o que discutir, não é?
Mas ela se recusou a ser intimida pela censura. Ela
colocou a cabeça de lado e sorriu para ele. ― Aqueles olhos
cínicos e frios ―, disse ela. ― Mas eles não me enganam mais.
Se seus olhos denotassem verdadeiramente o que está em

151
sua mente e em seu coração, milorde, você não estaria
sentado nesta carruagem, neste momento e nesta tarefa
particular .
Ele franziu os lábios. ― Eu estou aqui ―, disse ele, ―
para salvá-la de algum ataque de rufiões. Você já olhou para
fora da janela? E para mostrar o quão tolo de sua parte é ser
sentimental e acreditar em tudo o que um ladrãozinho se
preocupa em contar. Eu vim para que lhe dizer ― eu te disse
― enquanto voltamos para casa novamente .
― E você veio com uma cesta cheia. ― Ela riu. Mas não
tentou continuar a conversa. Ela virou a cabeça para olhar
pela janela. E havia muito a se ver que era chocante e até
hipnotizante para alguém que não estava acostumada com as
favelas de Londres. Mas, aparentemente, a carruagem do
conde de Kevern era tão ou mais chocante e fascinante para
os habitantes dessas ruas.
O endereço certamente não era fictício, o conde
descobriu quando sua carruagem desacelerou e,
eventualmente, parou diante de uma construção alta,
sombria e velha em uma rua estreita de edifícios sombrios e
precários. Homens e mulheres mal vestidos se debruçavam
nas portas e estavam sentados nos degraus, apesar da frieza
do tempo, e as crianças esfarrapadas, muitas delas
descalças, atravessavam a rua. A maioria deles estava se
lançando em direção de sua carruagem e depois parando,
com olhos como pratos, observando-o como se ele tivesse
acabado de cair de outro planeta.

152
― O rei da Inglaterra vévi duas casas atrás da sua
irquerda, camarada ―, gritou alguém quando o lacaio abriu a
porta da carruagem e, depois de um olhar apreensivo e
indagador dirigido ao seu mestre, desceu os degraus.
― I a rainha da Ingraterra e todas as criadas vévia
dereita ―, gritou alguém.
Os ociosos ficaram felizes com as duas observações e
fizeram chacotadando instruções espirituosas sobre a casa do
Príncipe Regente e as de todos os duques e princesas reais.
― Ele poderia viver aqui? ― Julie perguntou, olhando
quase com medo pela porta.
Mas a pergunta dela não necessitou de sua resposta.
― Caramba ―, uma voz estridente e conhecida gritou, ―
é o meu chapa. Agora vou prováprôce, Pai. .
Charlie andava pela rua com um homem pequeno e
nervoso, cujo braço direito estava enrolado em ataduras que,
ainda que esfarrapadas, estavam limpas.
O conde de Kevern desceu de sua carruagem. Um Daniel
na cova dos leões, pensou. Mas ― pai ― ?
Estaria enganado depois de tudo? E então ele fechou os
olhos rapidamente quando o homem se afundou em um
joelho. Nem sequer notou as chacotas e balbúrdias dos
observadores.
― Sinhô ―, o homem disse: ― Jádei uma boa surra nele,
sinhô, memo quetive que usá só o braço bão pra fazê isso,
sinhô. E, amanhã, sinhô, eu ia fazê ele leva o dinheiro de
vorta e assumi o erro, sinhô. Mais tô implorano seu perdão,
sinhô ele é um bão minino, sinhô, e sentiu o peso di nossos

153
probrema pesá em seus ombros jove. Não coloca ele na
prisão, por favô. Vão enforcá ele. Sua mãe ficaria arrasada .
Bom Senhor, o conde pensou. A qualquer momento, o
homem tentaria beijar a bainha de seu casaco.
― Charlie! ―, Ele podia ouvir Julie dizendo. ― Feliz
Natal, querido. Oh, quão bom é vê-lo .
― Eu acho que há algum mal-entendido ―, disse o
conde. ― Bom céu, homem, levante-se. Eu não vim levar
Charlie para a prisão. Eu vim porque a senhorita Bevan
queria vê-lo e, errr, abraçá-lo, e porque eu, ah, queria
desejar-lhe um feliz Natal .
― Viu, pai? ― Charlie disse, triunfante em sua voz.
Então ele virou um olhar acusador no conde. ― Mi colocou
num probremão, meu chapa ―, disse ele. ― Quando eu
mostrei ao pai o um guinéu e meio, sem falá na coroa que a
dama deu pra eu, o pai não acreditô que eu arrumei do jeito
honesto. Inda bem que ele não usou o braço bão .
― O que quer que ele tenha feito para ganhar um
guinéue meio, meu camarada ―, uma mulher expectadora
gritou para o deleite da crescente audiência, ― eu vou fazer o
dobro por um único guinéu .
― Para um cavalheiro tão bonito, ela faria isso de graça,
meu chapa ―, disse alguém.
Bom Deus. O conde começou a se arrepender sobre
Buckland Abbey novamente. Buckland Abbey pertencia ao
mesmo mundo?
― Charlie ganhou o dinheiro ―, disse ele ao Sr. Cobban.
― A Srta. Bevan e eu trouxemos alguma comida de Natal e

154
alguns presentes para as crianças. Há algum lugar mais
privado que podemos entrar por alguns instantes? ― Ele
olhou duvidosamente para a casa.
O Sr. Cobban franziu a sobrancelha de repente, ao
mesmo tempo em que uma jovem de dezesseis ou dezessete
anos, regularmente limpa embora em roupas bem pobres,
apareceu na porta e olhou ansiosamente.
― Oh, Pai ―, ela disse, ― ela não vem? ― E então ela viu
a carruagem, o cocheiro e o conde e os olhou com olhos
arregalados.
― Ela não pudia vim, Annie ―, disse o Sr. Cobban. ―
Tinha ido pra outro lugar .
― Oh ―, disse a garota, ainda olhando a carruagem. ―
Mas não tem mais ninguém, Pai. O que havemos di fazê?
O Sr. Cobban olhou para o conde. ― peço discurpa,
sinhô ―, disse ele, ― num posso convidá ocês pra minha
humirde morada. A minha muié está esperano outro fio,
sinhô, e seu tempo chego. E num achei a parteira .
Lorde Kevern sentiu de repente como se alguém
estivesse drenando todo seu sangue, começando no topo da
cabeça sugando-o pra baixo.
― Eu num sei o que fazê, Pai ―, a menina lamentou. ― I
a Violeti o Roddy tão chorano porque tão assustado .
― Deus nos ajude ―, disse o Sr. Cobban, coçando a
cabeça. ― Peço discurpas, sinhô, mas tenho qui ir. Si Charlie
num roubô esse dinheiro, agradeço gentirmente .
O conde teria entregado sua cesta ao homem e partido
sem mais uma palavra. Ele se sentia enclausurado pela rua

155
estreita e os edifícios altos e em ruína. Ele sentia como se não
houvesse ar suficiente na rua. Ele tinha que respirar. Mas
Julie estava falando.
― Eu tenho alguma experiência, Sr. Cobban ―, ela
estava dizendo. ― Eu já ajudei como uma parteira, embora
nunca sozinha. Posso ver se consigoajudar?
Não! Ele queria segurá-la apertada em seu corpo, levá-la
e empurrá-la para dentro da carruagem. Ele queria instruir
seu chauffer a atiçar os cavalos. Ele precisava de ar.
― Deus ti abençoe sinhorita ―, disse o Sr. Cobban. ―
Oh, Deus ti abençoe. Ocê foi enviada do céu, ocês dois, para
abençoá a gente no Natar.
― Julie. ― O conde pegou seu braço quando o outro se
virou para a casa. ― Esta não é sua responsabilidade. Volte
para casa comigoe eu enviarei um médico.
Ela sorriu. ― Um médico vindo aqui? ―, Disse ela. ―
Não, não, eu vou ajudar. Annie parece uma garota sensata e
será uma assistente capaz, uma vez que houver alguém para
lhe dizer o que fazer, tenho certeza. Haverá um novo filho no
Natal. Isso não é maravilhoso e apropriado, milorde?
Sua mão soltou o braço dela. Ela olhou indagadora para
ele. ― Vá para casa, milorde ―, disse ela. ― Obrigada por me
trazer aqui. Eu ficarei o tempo que for necessário, e então
Charlie me mostrará o caminho para casa. Ele será um
guarda-costas adequado .
Ela se virou e se apressou para dentro da casa.
― Si ocê for ―, disse a voz de Charlie da altura do seu
cotovelo, ― ocê será um bocó, meu chapa. Depois di ela ajudá

156
a mãe, vai ficá feliz de i embora nos assento macio e vai usá
seu ombro pra descansá a cabeça.
― Charlie ―, disse o conde, respirando profundamente e
descobrindo que, afinal, havia ar na rua, ― você tem a cabeça
de um velho com oitenta anos de idade sobre seus ombros.
Mas seu conselho é desnecessário. Por que eu deveria deixar
a senhorita Bevan ter a sua escolta mais tarde, quando ela
pudesse ter minha?
― Muito exatamenti o qui eu tava dizendo, chapa ―,
disse Charlie. ― O qui qui tem aí na cesta?
Este deveria ser o Natal mais estranho de todos, o conde
de Kevern decidiu nas duas horas seguintes. Na verdade,
poderia ser o dia mais estranho de toda sua vida. Ele talvez
tivesse se divertido por tudo isso ― divertido muito- se ele não
estivesse se sentindo aterrorizado ao pensar no que estava
acontecendo dentro daquele edifício.
Durante duas horas, ele esteve atendendo seus novos
conhecidos dentro da carruagem. Ele se sentou lá depois que
Julie seguiu para seu dever de parteira, e Charlie subiu atrás
dele sem convite, curioso para descobrir o conteúdo das duas
cestas. O Sr. Cobban entrou por convite, e logo depois um
menino pequeno com roupas velhas, mas impecavelmente
limpo, subiu os degraus, usando as mãos e os pés,
levantando dois braços para ser erguido até o colo de seu pai,
onde ele se aconchegou e passou a sugar seu polegar. E
então uma menina, dois ou três anos mais velha, apareceu e
sentou-se perto de Charlie e olhou para o conde com olhos
solenes e emotivos.

157
― O qui tem nas cestas, meu chapa? ― Charlie
perguntou, embora seu pai o tivesse avisado para não ser mal
criado quando ele fez a mesma pergunta quando ainda
estavam na calçada.
― Essa cesta ―, respondeu o conde, indicando a menor
das duas ― pertence a Srta. Bevan. Esta contém presunto,
alguns doces e pão para sua família .
― Deus ti abençoe, sinhô ―, disse o Sr. Cobban.
― E um presente de Natal para cada um de vocês,
crianças ―, acrescentou Lorde Kevern.
Violet sentou-se ainda mais reta e solene. Roddy
esqueceu por um momento de chupar o polegar. Seus olhos
passaram a olhar o conde fixamente.
― Vamo abri elas intão, chapa ―, Charlie disse,
pululando no assento e ganhando outro aviso paterno.
― Deus ti abençoe, sinhô ―, disse o Sr. Cobban
novamente cinco minutos depois, quando os presentes foram
abertos e os cachecóis enrolados nos pescoços e luvas
calçadas em mãos frias.
― Caramba, meu chapa ―, Charlie disse, sua voz aguda
soava animada e mais infantil do que o habitual, ― Nunca
mais vô fica cum frio ―. Ele enfiou queixo dentro do cachecol
verde até que só seus olhos estivessem visíveis.
Violet tocou o braço do irmão com uma luva vermelha e
alisou-o na manga. ― Charlie ―, ela disse, seus olhos
brilhando no dele, ― eu recebi dois presentes de Natar. ― Ela
olhou timidamente para o conde e se escondeu atrás do braço
do irmão. ― Charlie mi deu sabão .

158
Roddy sentou olhando suas luvas azuis, que eram
vários tamanhos maiores que sua mão, erguendo-as para a
inspeção de seu pai. Então ele descobriu que precisava tirar
uma luva para sugar seu polegar e se ajeitou para dormir
contra o peito de seu pai.
O conde se encontrou envolvido em uma longa
discussão sobre a tendência estranha que a vida mostrava de
ter altos e baixos. Pelo menos, ele supunha que discussão
fosse uma descrição imprecisa do que estava acontecendo, já
que sua parte consistia em dizer estratégicos ― sim, é
verdade ― e alguns agradecimentos monossilábicos pela
sabedoria das observações sobre a vida que o Sr. Cobban
fazia.
Mas uma coisa era muito óbvia. Os Cobbans estavam
atualmente vivendo ― apenas vivendo ― um dos mais
profundos dos baixos da vida. O braço do Sr. Cobban não
estava curando como deveria. A ferida infeccionada. E, sem
um braço direito saudável, não podia trabalhar. A Sra.
Cobban escolheu o pior de todos os momentos possíveis para
decidir presentear o Sr. Cobban com outra criança, embora
ele tenha generosamente reconhecido sua própria parte nesse
pequeno inconveniente.
― O qui quero dizê, sinhô ―, ele disse com olhares
significativos para as crianças, ― qui o qui foi feito, se ocê
consegue entende o qui eu quero dize, foi qui aconteceu antis
de eu machuca o braço .
O conde realmente entendia o que o Sr. Cobban estava
dizendo. Ele sabia uma coisa ou duas sobre a procriação. E

159
então, Annie Cobban perdeu seu emprego como assistente de
costureira quando a sobrinha da costureira veio do campo em
busca de emprego. E Charlie era um bom menino, mas
apenas um rapaz de onze anos, e seu pai estava preocupado
sobre onde seu zelo de cuidar de sua família poderia levá-lo.
― Eu tive quase certeza quando ele chegou com um
guinéu e meio ontem qui ele tinha roubado ―, disse Cobban.
― E intão quando ele levanto hoje cedo e deu aos pequenos
uns presente, eu não tive mais dúvida. Dei umas belas de
umas cintada nele. Roubá nunca foi uma opção pros
Cobbans, sinhô.
O conde assegurou ao Sr. Cobban que tal treinamento
moral firme deveria ter seu efeito em fazer Charlie e os outros
jovens cidadãos honestos. Charlie olhou para ele com olhos
arregalados que depois se estreitaram de forma especulativa.
― Espero qui sim, sinhô ―, disse o Sr. Cobban. ― Nós é
pobre, sinhô, e caímo em tempos difirce, mais ainda temo
nosso orgulho .
O trabalho de parto da Sra. Cobban já estava em um
estágio avançado antes que eles tivessem chegado. Menos de
duas horas depois, Annie Cobban veio correndo da casa para
anunciar o nascimento de outro filho.
O conde de Kevern sentou-se no canto da carruagem
assistindo o pai, que meia hora antes estava lamentando a
chegada iminente de mais uma boca para alimentar,
abraçando seu filho dormindo mais forte contra seu peito e
chorando de alegria. E ele viu Charlie saltar no assento
novamente e explicar a Violet que eles tinham outro irmão.

160
Violet olhou para ele com uma maravilha silenciosa. Annie,
enquanto isso, estava explicando com uma voz rápida e
excitada como ela ajudara a madame e viu o bebê nascer.
Nem o Sr. Cobban nem as crianças foram autorizados a
entrar imediatamente na casa. Aparentemente, a dama ainda
estava ocupada, e Annie teve que voltar a ajudá-la. Mas, em
breve, eles foram convocados para dentro e não perderam
tempo em fugir da carruagem para ver a criança quechegava
no Natal.
― Um fio nascido no dia do Natar, sinhô ―, disse o Sr.
Cobban antes de partir. ― Imagine isso. Meu fionascendo no
mesmo dia qui Jesus. ― Ele riu. ― Um homem num podia
pedi um presente mió, podia?
Não. Um homem não poderia pedir um presente melhor.
Ele esperou silenciosamente até que ela saiu alguns
minutos depois, sem a touca, o rosto corado, um pedaço de
cabelo caído fora do seu coque.
― Milorde ―, ela disse, ― eu não sabia até que Charlie
entrou que você tinha me esperado. Deve ter parecido um
tempo terrivelmente longo. Mas fico feliz que minha cesta
ainda esteja aqui. Eu me esqueci de leva-la. Dê-me um
momento para levar isso pra eles? .
― Leve a minha também ―, disse ele. ― Eles esqueceram
a comida por causa de toda a animação .
Ela hesitou e olhou nos olhos dele. ― Venha também ―,
disse ela. ― Apenas por um momento. Venha ver o bebê e
desejar a Sra. Cobban um feliz Natal.
Mas ele recuou mais para o canto da carruagem.

161
― Por favor ―, ela disse suavemente. ― Eu acho que você
precisa ver que uma criança nasceu com segurança .
Palavras estranhas. Ele teria gostado de refletir sobre
isso, mas ela tinha entrado na carruagem para pegar sua
cesta, e ela estava sorrindo para ele ― um sorriso cheio da
maravilha do Natal e do evento em que ela acabava de
desempenhar um papel ativo. E um sorriso que foi dirigido
diretamente para seus olhos, diretamente em seu coração.
― Eu levarei a cesta até lá ―, disse ele. Bom Deus e bom
Deus! Ele poderia estar jogando bilhar agora em Buckland
Abbey.
Eles viviam em dois cômodos, bem pobres, porém
mobiliado e limpo. Como poderia uma família de seis e agora
sete pessoas viver em uma casa de dois cômodos? E sem
renda estável?
Ele acenou com a cabeça para uma cansada Sra.
Cobban da porta que separa os dois cômodos e olhou para o
novo pacote de humanidade vermelho e enrugado que o Sr.
Cobban trouxe orgulhosamente para ele ver Feio. Vida. Vida
humana trazida com segurança para sua jornada ao
desconhecido. Muito bonito.
Annie estava exclamando sobre o xale e agradecendo-lhe
profundamente. E todos estavam desembrulhando os lenços,
e Violet estava passando um dedo sobre o bordado do lenço
dela e dizendo a Charlie, com admiração em sua voz, que ela
tinha três presentes de Natal.
Charlie estava exigindo saber quando iam poder comer.
Ele já tinha retirado o presunto da cesta do conde.

162
― Sr. Cobban ―, Lord Kevern disse enquanto o homem
pousava o bebê dormindo ao lado de sua esposa e voltava
para o outro cômodo, ― você sentiria falta do cais se você
trabalhasse em uma mansão? Talvez nos estábulos? Ou
mesmo no campo, talvez, em Dorsetshire? Como jardineiro?
Você gostaria de trabalhar para mim?
O Sr. Cobban simplesmente o olhou fixamente.
― O meu caseiroem Buckland Abbey está pra se
aposentar na primavera ―, disse o conde. ― Talvez você se
interesse por esse trabalho. Há um alojamento confortável
para se viver. Estou certo de que possoencontrar um trabalho
para Annie na casa, ou aqui se preferir ficar em Londres. E
pequenos trabalhos podem ser encontrados para Charlie
quando ele não estiver na escola .
― Iscola? ―, Charlie disse. ― Caramba. Eu sempre quis
aprendê a lê, meu chapa
― Trabaiá em uma casa? ― As mãos de Annie estavam
apertadas em seu peito. ― Oh, sinhô, eu sempre sonhei em
trabaiá em uma mansão e usá um daqueles uniforme.
― Então você deve fazê-lo ―, disse o conde. ― Sr.
Cobban?
― Deus ti abençoe ―, disse o homem. ― Mas meu braço.
― Ele levantou-o.
― Eu pedirei a um médico para que cuide dele ―, disse o
conde. ― Enquanto isso, meu mordomo e minha governanta
encontrarão tarefas que podem ser feitas com um braço. Isto
é, se você quiser o emprego .

163
― Se eu quisé o emprego! ― O tom do Sr. Cobban
implicava que não havia dúvidas sobre sua vontade.
Lorde Kevern se sentiu um pouco embaraçado e ele
estava muito consciente de Julie, de pé silenciosamente ao
fundo.
― Informe a minha governanta em Hanôver Square
amanhã de manhã, então ―, disse ele. ― Vocês três. Ela será
instruída a oferecer-lhes um emprego imediato até encontrar
algum lugar permanente para você. Ele se despediu e pegou
sua cesta vazia da mesa.
― Charlie sabe o caminho. Um feliz Natal para todos
vocês .
Um coro de saudações de Natal e bênçãos o seguiram
para fora da casa. Ele levou Julie até a carruagem e seguiu-a
para dentro. Ele afundou no assento ao lado dela e fechou os
olhos com alívio enquanto seu cocheiro subia os degraus e
fechava a porta. Poucos momentos depois, a carruagem se
moveu.
― Bem ―, ele disse depois de alguns minutos de silêncio,
― você está perdendo sua chance. ― Eu lhe disse ― seria uma
observação bastante apropriada .
― Eu só temia ―, disse ela, virando a cabeça para olhar
para ele ― que talvez os pais dele lhe fossem indiferentes e
deliberadamente dirigiram Charlie para o crime. Mas há
muito amor e muito orgulho nessa família, apesar da pobreza
.
― Eu suponho ―, disse ele, ― que até mesmo deve haver
um amigo ao lado chamado Harry .

164
― Você fez uma coisa maravilhosa ―, disse ela. ― Que
você nunca mais volte os olhos cínicos para mim, milorde,
pois não acredito neles nem por um momento .
― Oh ―, ele disse, ― eu prefiro ter um caseiro com
sotaque cockney 2 . O Sr. Cobban deve ser uma fonte de
diversão infinita .
Eles voltaram ao silêncio, e ele olhava sem ver nada pela
janela. Passaram-se vários minutos enquanto sentia o peso
de uma grande tristeza descendo sobre ele com o início do
anoitecer.
― Conte-me sobre isso ―, ela disse finalmente, sua voz
um pouco mais do que um sussurro.
Ele não perguntou o que ela queria dizer. Ele apoiou a
cabeça contra as almofadas e continuou a olhar pela janela.
― Meu filho morreu no dia de Natal ―, disse ele. ― Dois
anos atrás. ― Ele engoliu em seco. ― Morreu fazendo a
perigosa jornada do útero de sua mãe para um mundo que
ele nunca viu .
O silêncio esticou-se como algo tangível.
― Minha esposa sobreviveu a ele por duas horas ―,
disse o conde. Ele fechou os olhos e respirou devagar e
profundamente. ― Era Natal. Mesmo que ela estivesse no
andar de cima o dia todo gemendo e, ocasionalmente,
gritando, todos estavam no melhor dos espíritos, mesmo eu,
apesar de toda minha ansiedade. Nada de ruim poderia
acontecer no Natal. Apenas tudo o que era bom. O
nascimento do meu primeiro filho. Que evento mais

2 Sotaque das classes baixas

165
apropriadamente alegre poderia haver no Natal do que o
nascimento do filho primogênito?
Ainda o silêncio.
― Minha esposa e meu filho morreram no dia de Natal
―, disse ele.
A dor era intensa. Tinha toda a crueza que teve quando
a ferida tinha acabado de se abrir. A ferida nunca tinha sido
tratada, na verdade. Não foi dada a oportunidade. Ele
suprimiu a dor deliberadamente. Ele parou de pensar neles.
Ele se recusou a que mencionassem eles no Natal anterior e
pediu que deixassem seu luto para não amortecer a felicidade
do resto de sua família. Seu próprio humor tinha sido
decididamente festivo. Ele suprimiu sua dor e não se
permitiu sofrer.
Agora a dor dificultava a sua respiração.
Ele virou a cabeça bruscamente quando ela pegou a sua
mão na dela, removendo cuidadosamente a luva antes de
fazer isso. Ele podia sentir as lágrimas quentes em suas
bochechas e sentiu-se profundamente envergonhado. Por que
ele se sentiu obrigado a sobrecarregá-la com seu inferno
pessoal sobre isso, hoje dentre todos os dias?
E então fechou os olhos novamente enquanto ela
levantava sua mão, e ele sentiu primeiro os lábios dela contra
o dorso e depois a suavidade de sua bochecha contra a
palma.
― Sinto muito ―, disse ela. ― Eu sinto tanto, tanto
mesmo.

166
― E ainda ―, disse ele, virando a cabeça para olhá-la
alguns minutos depois, ― a vida continua. É o mais atroz dos
clichês, mas aprendi a verdade nos últimos dias. Há outros
Natais sem dor. Há filhos nascidos no mundo todos os dias.
Mesmo no dia de Natal. É isso que é o Natal, suponho.
Nascimento. Vida. Esperança .
― Sim ―, disse ela enquanto segurava a mão dele contra
sua bochecha com as suas duas mãos.
― Até a felicidade ―, disse ele. ― Fui feliz hoje .
― Você foi? ― Ela sorriu para ele. ― Você notou as luvas
do pequeno, milorde? Eram maiores que sua cabeça .
Ele riu. ― Eu não imaginei que ele seria tão jovem ―,
disse ele.
― Você nem sabia que ele existia ―, disse ela. ― Mas eu
acho que no fundo, você esperava que sim.
Ele olhou nos olhos dela, esmeralda escurecida pelo
crepúsculo. ― Eu não sabia que seria possível viver
novamente e não apenas existir ―, disse ele. ― Eu não sabia
que conseguiria voltar a rir .
― Você vai fazer os dois ―, disse ela. ― Seu período de
luto acabou, milorde .
― Eu não sabia que seria possível amar de novo ―, disse
ele.
Ela tirou a mão de sua bochecha e voltou a coloca-la ao
seu lado, embora ela não a soltasse. ― Você amou Charlie
quando ele entrou em sua vida ―, disse ela, ― assim como eu
fiz. E agora você ama toda a sua família .

167
― Eu não sabia que seria possível amar uma mulher
novamente ―, disse ele.
Ela estava com a cabeça abaixada, olhando para suas
mãos entrelaçadas.
― Você vai passar o jantar de Natal conosco, milorde? ―,
Perguntou, levantando os olhos para os dele. ― Estou certa
de que é uma pergunta tola quando você deve ter uma festa
suntuosa planejada em sua própria casa ou em outro lugar.
E não posso oferecer nenhum entretenimento além da
companhia do meu avô e minha própria. Tenho certeza de
que deve haver uma festa da alta sociedade para participar
em algum lugar .
― Na casa de Lady Lawrence ―, disse ele. ― Sou um
convidado .
― Ah. ― Ela sorriu.
― Já que é Natal ―, disse ele, ― eu pretendo evitar
completamente uma noite tediosa a todo custo. E parece que
eu tenho escolha. Tédio ou certo entretenimento, qual será?
Ela estava sorrindo e balançando a cabeça. ― Eu
entendo ―, disse ela.
― Certo entretenimento, eu acho ―, disse ele. ― Se você
tem certeza de que não vou me intrometer .
Ela olhou em seus olhos e seus lábios se separaram
ligeiramente.
― Eu aceito seu convite ―, ele disse e observou a luz
entrar nos olhos delae esperança e alegria pulando no
coração dele.

168
― Traga-me o Natal, Julie ―, ele disse, e sentiu a
sensação há muito desconhecida de sorrir. ― Estou pronto
para isso .

― Ele adormeceu ―, ela disse calmamente quando o


queixo do velho cavalheiro finalmente veio descansar contra
seu peito e os sons de baixo ronco se tornaram
inconfundíveis. ― Foi uma noite muito emocionante para ele,
milorde. Mas ele se cansa facilmente, temo dizer. Já passou
muito da habitual hora de dormir .
― Você não precisa parecer apologética ―, ele disse
enquanto ela se levantava. ― Eu compreendo. Aonde você
vai?
― Chamar o Sr. Stebbins ―, disse ela. ― Ele me ajudará
a levar o vovô pra cama .
― Eu a ajudarei quando chegar a hora ―, disse ele. ―
Mas tem que ser imediatamente, Julie? Se o seu avô for para
a cama, eu terei de partir porque você não tem uma
acompanhante .
Ela sentou-se novamente na cadeira que acabara de
desocupar,ao lado da dele. ― Deve ter sido uma noite
terrivelmente aborrecida para você ―, disse ela. ― Temo que
vovô goste de relembrar os velhos tempos. Não me importo
porque as histórias são sobre meus próprios antepassados e
algumas pessoas que lembro. Mas você foi maravilhosamente
paciente ouvindo com tanta atenção.
169
― Minha avó morreu há menos de três anos ―, disse ele.
― Ela superaria seu avô sem nenhum esforço. Ainda sinto
falta dela.
― Você é gentil ―, disse ela. ― E ele ficou tão satisfeito
ao descobrir que você joga xadrez. Eu nunca aprendi. É um
jogo muito longo. Pensei algumas vezes que ele tinha
adormecido .
― Um bom jogador de xadrez gosta de passar o tempo
pensando em seus movimentos e imaginando o próximo
movimento de seu oponente e seu próximo, e depois o
próximo e assim por diante ―, disse ele. ― Seu avô foi um
adversário digno. Eu quase não o venci.
― Mas fico feliz que você tenha feito ―, disse ela. ― Ele
fica ferozmente bravo comigo, às vezes, quando suspeita que
eudeliberadamente deixe que ele vença nas cartas .
Ele sorriu para ela e viu a cor subir em suas bochechas
e suas mãos se torcendo em seu colo.
― Mas você foi muito gentil em passar a noite com a
gente quando poderia ter ido à casa de Lady Lawrence ―,
disse ela. ― Vovô ficou tão feliz .
― E você? ―, Ele disse.
― E eu também fiquei feliz ―, ela disse e olhou para
baixo, absorvida na tarefa de alisar o vestido sobre os joelhos,
sem jeito.
― Eu tenho um presente de Natal para você ―, disse ele.
― Durante todo o dia tenho hesitado. Não é apropriado que
damas solteiras aceitem presentes de cavalheiros solteiros,
não é?

170
Os olhos dela se ergueram bruscamente para os dele, e
ela pareceu por um momento Violet Cobban quando surgiu
em sua carruagem diante da menção dos presentes de Natal.
― Oh, ― ela disse, ― o que é? .
Ele sorriu para ela. ― Se eu tivesse sabido com
antecedência do convite para o jantar ―, ele disse, ― poderia
ter trazido um vinho comigo e seria apropriado, não é? Você
aceitaria em troca um presente? .
― Onde está? ―, Ela perguntou.
― Eu me lembrei de colocá-lo no bolso do meu casaco ―,
disse ele, ― antes de enviar minha carruagem para casa. Meu
casaco está no corredor? ― Ela assentiu.
Ele trouxe o pacote alguns minutos depois e entregou-o
a ela. Os olhos dela brilhavam.
― Oh ―, ela disse, ― é pesado .
Ele a observou desembrulhar com cuidado para não
rasgar o papel e talvez prolongar a antecipação, assim como
ele e seu irmão e irmãs sempre faziam no Natal muito tempo
atrás. E então ele observou a quietude da incredulidade em
seu rosto, antes que ela apertasse seu lábio inferior entre os
dentes.
E ele a observou levantar os olhos esmeralda para o
dele.
― Você comprou ―, disse ela. ― Era por isso que já não
estava mais lá. Eu quase chorei quando percebi que não
estava mais na vitrine ontem. ― Lágrimas surgiram em seus
olhos como que para provar seu ponto.

171
― Você olhou para isso ―, disse ele, ― como se nada
neste mundo triste importasse, porque havia o Natal e uma
mãe e seu filho .
Ela olhou para a virgem de porcelana e tocou um dedo
no bebê gordinho em seus braços. Seu dedo estava tremendo.
― Oh ―, ela disse, ― é a coisa mais maravilhosa e
perfeita que eu já possuí. Obrigada. ― E ele viu uma lágrima
cair na parte de trás de sua mão.
― Talvez ―, disse ele, ― quando você olhar para isso, se
lembrará desse Natal estranho e da felicidade que trouxe para
alguém que já havia perdido a fé nela .
Ela olhou para ele, lágrimas nadando em seus olhos. ―
Mas eu não tenho nenhum presente para você ―, disse ela.
― Ah ―, ele disse suavemente. ― Então você terá que me
pagar uma prenda .
― Uma prenda? ―, Ela disse.
― Por que tem um visco pendurado lá? ―, Ele
perguntou, indicando o raminho pendurado na lareira.
― Oh. ― Ela riu perdendo o fôlego. ― Não parece bem o
Natal se não tiver visco e azevinho. Vovô pediu para pendurá-
lo.
― Vá e fique de pé debaixo disso, então ―, disse ele, ― e
pague sua prenda como a boa e honesta senhorita que é .
Ela mordeu o lábio novamente, e suas bochechas
ficaram coradas. Mas depois de um momento de hesitação,
ela colocou a virgem com cuidado na mesinha, levantou-se e
foi ficar de pé sob o visco. Ela se virou para ficar de frente.

172
Ele moldou o rosto dela com as mãos, sentindo sua pele
macia e seus cabelos lisos. Ele a observou engolir, embora
seus olhos não desviassem dos dele, baixou a cabeça e a
beijou.
Suavidade, doçura e fragrância sutil. E calor. E
felicidade. E a sensação de estar em casa.
Ele levantou a cabeça e sorriu para ela. ― Feliz Natal,
Julie .
― Feliz Natal, milorde .
― Darcy ―, disse ele. ― É o meu nome. Nenhum nome
tão comum quanto Richard ou Robert ou John quando minha
mãe decidiu dar à luz ao herdeiro do meu pai .
― Darcy ―, disse ela.
― Eu amo você ―, disse ele.
Ela balançou a cabeça. ― É Natal ―, disse ela. ― E é o
primeiro que você se permite aproveitar em três anos.
Acontece isso nesse dia: calor, felicidade e amor. É
maravilhoso, mas não é a vida real. Amanhã você sentirá
diferente.
― Agora, quem está sendo cínica? ―, Perguntou.
Ela olhou silenciosamente para ele.
― Não me sentirei diferente ―, disse ele. ― Poderá me
perguntar quando o amanhã chegar. Eu a amo.
Ela balançou a cabeça novamente.
― Equero me casar com você ―, disse ele.
Ela sorriu, engoliu em seco novamente e ergueu as mãos
para agarrar seus pulsos. ― Você é um conde ―, disse ela.
― É, de fato eu sou ―, disse ele.

173
― Eu sou filha de um clérigo ―, disse ela. ― Que
trabalha para ganhar a vida .
― Mas não por muito tempo mais ―, disse ele. ― Sua
única tarefa, como minha esposa, será fazer a si mesma e a
mim feliz, assim como a minha será nos manter felizes. Case-
se comigo, Julie .
Ela balançou a cabeça. ― Eu tenho o meu avô ―, disse
ela. ― E o Sr. e Sra. Stebbins. Não posso abandoná-los.
― Ah ―, ele disse, e recuou o comprimento de seus
braços, embora ele ainda segurasse o rosto dela entre as
mãos e franziu a testa para ela. ― Eu pensei que pudéssemos
apenas nos casar e esquecê-los, Julie. Eles são apenas gente
velha, afinal de contas .
― Você também os levaria? ―, perguntou ela.
― É claro que eu os levaria ―, disse ele. ― Com quem
mais eu poderia jogar xadrez senão com seu avô? Você me
confessou que não joga .
Ela mordeu o lábio uma vez mais.
― Bem? ―, Ele disse, reduzindo a distância entre eles
novamente. ― Julie, não posso te dizer o quanto você significa
pra mim. Não há palavras suficientemente ricas. Quando a vi
na rua olhando para a virgem tive que atravessar a rua para
você. E então Charlie, Deus o abençoe, escolheu esse
momento para tentar seu roubo bastante inexperiente e me
deu a chance de uma vida para que pudesse falar com você.
Tenho pensado em você cada momento insone e sonhei com
você a cada momento de sono. Acho que você é o espírito do
Natal enviado para me libertar do meu cativeiro. Mas eu sou

174
ganancioso e quero que seja Natal a cada momento de cada
dia pelo resto da minha vida. Não chore .
― Eu não posso evitar ―, disse ela, inclinando a cabeça
para frente descansando a testa contra o pescoço dele. ―
Quando eu me virei da vitrine e vi você segurando Charlie e
levantando sua bengala para bater nele, fiquei horrorizada. E
então, olhei para seus olhos ― esses lindos olhos azuis ― e eu
soube que você não era cruel. E eu acho que meu coração
virou dentro de mim naquele momento. Eu pensei que nunca
mais o veria depois que saímos da confeitaria, mas sabia que
sonharia com você pelo resto da minha vida. E então, no dia
seguinte, você estava lá de novo e veio em meu socorro e
insistiu em caminhar para casa comigo .
― Eu acho que está resolvido, então ―, disse ele. ― Eu
aceitaria um não como resposta, você vê, Julie, apenas se
você não tivesse nenhum sentimento por mim. Mas parece
que você tem.
― Sim, eu aceito ―, disse ela, levantando a cabeça
novamente e olhando para ele com admiração.
― O visco deve ter sido difícil de pendurar ―, disse ele.
― Foi. ― Ela olhou para ele. ― Eu tive que equilibrar
uma cadeira em cima de uma mesa. E vovô e o Sr. Stebbins
continuaram me dando conselhos e declarando que eram eles
que deveriam ter subido lá. E a Sra. Stebbins cobriu sua
cabeça com o avental e ficou orando em voz alta para que o
Senhor me mantivesse segura. O que ele fez. ― Ela riu
alegremente.

175
― Bem, então ―, disse ele, ― seria uma pena que todo
esse trabalho resultasse em apenas um beijo, não seria? .
Ela olhou nos olhos dele e corou novamente. ― Sim,
Darcy ―, disse ela, ― seria .
Ele finalmente tirou as mãos do rosto dela e colocou um
braço sobre seus ombros e o outro sobre sua cintura para
atraí-la contra ele.
― É melhor fazer um bom e completo uso disso ―, disse
ele. ― Você acha que dez minutos, ou mesmo quinze, seriam
suficientes para fazer um bome completo uso?
― Sim ―, ela disse e riu sem fôlego. ― Eu acho que dez.
Ou talvez até quinze.
Ele sorriu para ela e pela borda externa de sua visão viu
o visco acima de sua cabeça, a lareira queimando
alegremente às costas dela, os ramos de azevinho decorando
as pinturas ao lado da lareira e seu avô balançando
calmamente em sua cadeira.
Natal! Não havia época como essa para fazer com que
uma pessoa acreditasse na paz eterna na terra e na boa
vontade eterna entre os homens.
― Eu te amo ―, ele disse, e baixou a cabeça e abriu a
boca sobre a dela antes que ela pudesse responder.
Mas ela não precisava dizer as palavras. Ele as viu em
seus olhos e sentiu-as em seu corpo e as provou em sua
boca. E seus braços vieram sobre ele e o abraçaram.
O velho cavalheiro em sua cadeira ressonou suavemente
e abriu apenas um olho ― e mesmo isso só em parte e só por

176
um momento ― para se convencer de que o silêncio
significava o que ele imaginava–e esperava –e significava.
Julie estava tendo seu Natal feliz, Abençoado fosse seu
querido coração amoroso.

177
♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥

A Festa Surpresa
♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥

178
Estava nevando parcamente. Não o suficiente para fazer
uma cena pitoresca do jardim abaixo da janela do berçário.
Nem para deixar o solo branco. Somente o suficiente para
salpicar as bordas do gramado com pó branco e soprar em
finas raias brancas através do caminho. Somente o suficiente
para fazer o céu pesado como chumbo, de modo que parecia
mais como o início da noite do que meio da tarde.
Não era exatamente o tipo de cena natal que uma
pessoa sonhava. Mas o Natal ainda estava a três dias de
distância. Talvez estivesse nevando adequadamente antes
disso.
― O suficiente para que possamos construir um boneco
de neve ―, disse Rupert Parr, franzindo a testa
especulativamente para o céu através da janela.
― O suficiente para que possamos fazer anjos na neve ―,
Patricia Parr, sua irmã, acrescentou, contemplando de forma
bastante gloriosa os poucos flocos finos que estavam vagando
lentamente para baixo.
Caroline Parr estava ajoelhada no chão, os cotovelos na
borda da janela, o queixo nas mãos, olhando para fora. ― O
Natal chegará logo, Rupert? ―, Perguntou com desejosa. ―
Será que vai nevar?
Lembrou-se de Natal no ano passado, quando houve
carne de ganso e pudim de ameixa para comer. Mas não foi o
dia tão feliz que ela foi levada a esperar. A babá tinha estado
zangada, Rupert e Patricia estiveram irritadiços. Não tinha
nevado. Caroline realmente não conseguia lembrar como era
a neve. E mamãe e papai não voltaram para casa. Eles

179
tiveram que ir a uma reunião inesperada, mas muito
importante, a babá explicou a Rupert, e voltariam para casa
assim que pudessem. Eles enviaram presentes que chegaram
com uma semana de atraso.
― Conte-me sobre o Natal ―, disse Caroline agora,
endereçando-se a seu irmão de oito anos, a quem ela
considerava onisciente, embora ela continuasse a olhar pela
janela. ― Conte-me sobre a neve .
Mas foi a babá que lhe respondeu. Caroline adorava a
babá, mas ela tinha estado muito briguenta e zangada
ultimamente ― ainda pior do que tinha sido no Natal
passado.
― Não haverá conversa sobre Natal este ano ―, disse ela
com firmeza. ― E não falaremos de bonecos de neve e anjos
de neve, Mestre Rupert e senhorita Patricia. Os dois são
velhos o suficiente para isso. Que vergonha, preenchendo a
cabeça da senhorita Caroline com ideias que não são
adequadas. Haverá outros anos e outros natais para se
divertirem .
― Peço desculpas, nanny ―, disse Rupert na voz que
sempre fazia com que Caroline desejasse segurar sua mão e
esfregar a bochecha contra o braço dele para reafirmar-se.
Era a voz de menino crescido, não sua voz real.
― Você deve entender, Mestre Rupert. ―, disse a babá.
Mas Caroline parou de ouvir e começou a observar as
serpentes de neve deslizando diagonalmente através do
caminho, todas indo da mesma maneira. Ela procurou por
uma que estivesse indo para o outro lado, mas não havia

180
nenhuma. Todos estavam fugindo de um dragão feroz,
decidiu. O dragão segurava uma bela princesa cativa. Era um
dragão malvado. Logo uma das serpentes de neve voltaria
para lutar contra o dragão e resgatar a donzela e tornar-se
um grande herói. E se casaria com ela e eles viveriam felizes
para sempre. Ela procurou atentamente pela serpente que
seria o herói deslizando de volta pelo caminho, nos dentes do
vento.
Ela meramente ouvia a babá, que estava lembrando
Rupert e Patricia de que porque a mamãe e papai deles
tinham passado dessa para melhor recentemente ― Caroline
às vezes se perguntou para onde eles tinham passado, mas
quando ela fez a pergunta, a babá disse que era para o
paraíso com os anjos cantando no trono de Deus e ela não
deveria fazer tantas perguntas ― eles nem sequer deveriam
pensar em presentes ou tortas ou carolers3 ou qualquer outra
coisa que os fizesse esquecer que estavam de luto.
Patricia odiava seus vestidos pretos, mas a babá não a
deixaria usar outra coisa. Caroline não se importava com os
dela. Ela não se importava com o que a babá a vestia, desde
que ela estivesse quente e confortável.
― O que acontecerá conosco? ― Rupert estava
perguntando para a babá atrás das costas de Caroline. Ele
ainda estava usando sua voz de menino grande. ― Tudo nos
será tomando, não é mesmo? E a casa vendida. Para pagar as
dívidas de papai. E você não poderá ficar conosco porque não
haverá dinheiro para lhe pagar. Nós seremos enviados para o

3 cantores de músicas natalinas que se apresentam em coro.

181
orfanato, nanny, não seremos? Não me importo. Eu cuidarei
de Patricia e Caroline até crescerem e se casarem. Eu não
ficarei lá, sairei para trabalhar e fazer minha fortuna .
― E eu irei com você, Rupert ―, disse Patricia
ansiosamente. ― Vamos deixar Caroline no orfanato porque
ela é muito pequena e voltaremos para ela quando fizermos
nossa fortuna. Eu tenho sete anos. Posso cozinhar para você
e costurar suas roupas .
― Não falem bobagens ―, disse a babá bruscamente. ―
Vocês assustarão a senhorita Caroline. Claro que não serão
enviados para o orfanato. Sua tia ou seu tio virão até vocês e
lhes darão um lar. Eles foram notificados. Eles chegarão a
qualquer momento. Agora, eu quero que vocês dois peguem
seus livros e leiam. Venha, senhorita Caroline ―, sua voz
suavizou um pouco, ― Venha sentar no colo da nanny,
querida, e eu vou ler uma história para você .
Caroline fez o que lhe disseram e ouviu a história de
uma menina a quem coisas muito boas aconteceram porque
ela sempre tinha sido uma garotinha muito boa. Mas
Caroline teria preferido ficar na janela, tecendo histórias
sobre as cobras de neve e o dragão escondido e a bela
princesa. Ou ela preferiria ouvir de Rupert sobre Natal ou
sobre a neve.
Ela se perguntou por que eles só podiam usar preto e
por que não haveria Natal e não haveria bonecos de neve ou
anjos da neve e por que eles deveriam ir para o orfanato só
porque mamãe e papai haviam passado dessa para melhor.
Mamãe e papai nunca voltavam para casa mesmo. Ela não

182
conseguia se lembrar deles muito mais claramente do que se
lembrava da neve.
Quem eram sua tia e tio? Ela se perguntou, recostando
a cabeça no amplo peito da babá, bocejando alto. Ela também
não se lembrava deles. Por que eles estavam vindo?

Lady Carlyle aproximou a cabeça da janela da


carruagem e olhou ansiosamente para o céu. Vinha
ameaçando a cair neve de verdade nas últimas horas. Estava
prestes a cair de verdade? Ela estremeceu apesar de
estarbem agasalhada,com suas pernas cobertas com um
manto pesado e o tijolo em seus pés ainda quase quente,
embora já tivesse se passado duas horas desde que pararam
em uma pousada para almoçar e o aqueceram de novo .
Ela esperava que pelo menos chegasse ao seu destino
antes de nevar. Não que ela estivesse viajando em direção a
isso com grande ansiedade. Ela nunca foi muito próxima de
Adrian. Muito menos nos últimos anos. Seus filhos eram
estranhos para ela. Todas as crianças eram estranhas para
ela. Ela nunca teve filhos apesar dos sete anos de casamento
antes de sua viuvez ter começado há dois anos. Não que ela
tivesse muitas oportunidades...
Seus lábios se contraíram por um momento e ela
enterrou as mãos mais fundo em seu rolo de pelo.
Não tinha ideia do que ia fazer com três crianças
pequenas. Já tinha se passado o tempo em que desejara uma
183
família própria, mas o desejo havia morrido durante o
primeiro ano de seu casamento, e agora ela estava bastante
contente com seu estado sem filhos. E com a sua viuvez.
Gostava de estar sozinha e independente.
Ela gostava de ser uma das anfitriãs mais respeitadas
de Londres. E do conhecimento de que os convites para os
seus salões em eventos semanais eram cobiçados entre os
membros da alta sociedade e pelos grandes intelectuais. Ela
nem sequer se importava com o rótulo ocasional de mulher
erudita.
O que, no nome do céu, ela iria fazer com três crianças?
Ela não poderia tê-los vivendo junto a ela. Eles colocariam
sua casa e sua vida de cabeça para baixo. Eles a deixariam
louca. Ela conquistou sua atual vida muito agradável e
pacífica por meio de sete anos de casamento aborrecido.
Adrian e Marjorie levaram a vida de irresponsabilidade
egoísta ― e isso era uma constatação fraca da realidade. Eles
viveram quase toda a vida de casados em Londres, gastando
generosamente em alojamentos caros, roupas elegantes, joias
dispendiosas e divertindo-se jogando com dinheiro que não
tinham. Mesmo sem o problema do jogo, eles sempre
sofreram com as pesadas dívidas. A pequena fortuna de
Adrian e a propriedade que ele havia herdado de seu pai
tinham sido perdidas no primeiro ano. Mas a coisa mais
egoísta que eles já fizeram foi trazer três filhos para o mundo,
apenas para negligenciá-los quase totalmente.
Eles morreram, os dois, em uma contenda em casa de
jogos. Lady Carlyle suspeitava que suas mortes poderiam ter

184
sido orquestradas pelos credores a quem eles estavam
indevidamente endividados.
Ela sentiu um lampejo da velha ira contra eles, mesmo
que uma pessoa não devesse sustentar sentimentos negativos
contra os mortos. Como ousaram viver tão descuidadamente
quando tinham filhos para cuidar. E como ousaram deixar a
responsabilidade dessas crianças para ela. Sua raiva a irritou
mais pela culpa que a acompanhava. Ela não conseguiu se
afligir profundamente pela morte de seu único irmão. E ela
não conseguiu sentir muita simpatia por seus filhos
inocentes que ficaram para trás. Ela estava muito ciente do
fato de que eles haviam complicado sua vida e egoisticamente
― talvez ela não fosse tão diferente de Adrian afinal de contas
― ela não queria ter sua vida complicada. E ressentiu a culpa
que esse conhecimento trouxe.
Pobres crianças. Eram seus sobrinhos. Mas ela não
podia sentir nenhum parentesco, nem amor por eles. Nunca
tinha sequer os visto. Ela e Adrian haviam se afastado pouco
depois do casamento.
E por que ela deveria ser aquela a qual as crianças
deveriam ser impostas? Marjorie tinha um irmão ― o visconde
Morsey. Ele era um homem rico e influente. Ele tinha mais de
uma casa. Seria fácil para ele levar as crianças e nem mesmo
sentir o fardo de cuidar delas. Mas ela apostaria uma fortuna
de que ele ignoraria qualquer apelo que lhe fosse feito.
Seus lábios comprimiram novamente. Sim, seria
típicoele fazer isso, assumir que outra pessoa cuidaria
daquele problema. Ele era um homem arrogante, cínico e de

185
coração duro. Ela havia descoberto isso há anos. Durante
anos, ela o evitara, uma tarefa bastante fácil, embora ambos
estivessem frequentemente em Londres. Ele parecia tão
ansioso quanto ela para evitá-la.
Bem, ela cuidaria que ele não se esquivasse de toda a
responsabilidade pelas crianças. Ela o confrontaria. Ela
exigiria que ele fizesse sua parte.
Mas seria o Natal dela o arruinado, não o dele. Ela
sempre curtiu o Natal na cidade e sua ocupada rodada de
prazeres sociais. As chances eram escassas de que voltasse à
cidade a tempo de qualquer das celebrações. Especialmente
se nevassem com seriedade. Talvez ela ficasse presa no
campo por uma semana ou mais. Ela não podia pensar em
um destino pior.
Sim, ela poderia – ficar presa no campo por uma
semana ou mais com três crianças: de oito, sete e quatro
anos. A possibilidade muito real era impensável.
O que diabos ela faria com eles? Além de enlouquecer?
Durante as últimas milhas, a carruagem tinha parado
diversas vezes enquanto seu cocheiro pedia instruções.
Mas, finalmente, parecia que eles haviam chegado. Lady
Carlyle olhou pela janela e fez uma careta. Adrian comprou
esta casa com os ganhos de uma noite, logo depois de perder
sua própria propriedade, a casa em que ela foi criada. Ela
nunca tinha visto esta casa antes. Não era uma mansão.
Também não era um barraco, mas tinha visto dias melhores.
Havia um ar de pobreza e descuido sobre ela e sobre os
jardins da frente. Claramente, não havia mais dinheiro para

186
gastar na manutenção da propriedade ou na contratação de
criados para cuidar disso.
Ela respirou profundamente. ― Bem, é isso, Netty ―, ela
disse para a criada, que estava começando a mexer de uma
longa soneca no canto mais distante da carruagem. ― Um
Natal para lembrar .
Mas sua carruagem não parou no portão do jardim, ela
percebeu de repente, mas a certa distância. Quando ela
apertou seu rosto contra a janela e olhou para frente, ela
podia ver o motivo.
Outra carruagem estava bloqueando o caminho, e
alguém estava descendo dela ― um cavalheiro alto e bem
formado, cujos ombros já largos ficavam ainda maiores pelas
muitas capas de seu casaco elegante e cujo chapéu escondia
cabelos grossos de um rico marrom, ela sabia ainda que, no
momento, não pudesse vê-lo.
E cujo rosto bonito era marcado por sua expressão
arrogante habitual.
Agora, seu dia, seu Natal, estava completo, ela pensou
irritada quando ele se virou para olhar a carruagem dela.
Ela afastou a cabeça da janela com pressa. Não queria
que ele acreditasse que ela estivesse esticando o pescoço
apenas para vê-lo.
Um momento depois, a porta se abriu.
― Ah ―, o Visconde Morsey disse na bem lembrada voz
que ela tanto odiava. Ele sempre parecia muito entediado até
mesmo para respirar. ― Eu vejo que teria perdido minha

187
aposta se eu tivesse sido imprudente o suficiente parafazê-la.
Você veio.

Ele sentiu pesar pelas notícias. Talvez não fosse um


sofrimento tão intenso como se esperaria sentir por uma irmã
que morreu violentamente antes de chegar aos trinta anos,
mas sentiu pesar, no entanto. Sua tristeza derivou de suas
lembranças dela como criança e jovem. Antes que conhecesse
e se casasse com o Adrian Parr.
Antes que ela o desafiasse e se casasse com aquele
vagabundo. Antes que o amor, ou o que quer que fosse que
ela sentia por ele, a tivesse deixado tão a cega a ponto de
segui-lo em todas as loucuras da sua vida curta. Antes de ter
dado à luz a crianças que ela não queria nem cuidava.
Talvez o seu sofrimento carecesse de intensidade porque
ela se tornou uma pessoa que ele não gostava, uma pessoa a
que ele tinha dado as costas há anos,depois de descobrir que
o dinheiro que ela lhe implorava para alimentar seus filhos
era na verdade usado para apostas.
E foi tudo culpa dele. A relutante culpa tinha pesado
fortemente sobre ele após a morte dela. Se não fosse por ele e
sua paixão jovem por uma mulher que agora ele odiava,
Marjorie nunca teria encontrado Parr. Mas ele havia lançado
fora a culpa. Ela sempre foi uma garota tola, fraca e difícil de
lidar. Talvez ela conhecesse Parr de qualquer maneira ou

188
alguém que se parecesse com ele. Ela tinha sido sempre
imune aos bons conselhos e até aos comandos.
Ela tinha fugido com Adrian Parr quando ele havia
retido seu consentimento para o casamento.
Bem, não passava tudo de história agora. Embora não
fosse exatamente assim. Havia três crianças. O visconde
tinha visto o menino mais velho quando ainda era um bebê.
Ele não conhecera nenhuma das meninas. Mas eles existiam,
os três deles ― uma pedra de moinho sobre seu pescoço. Ele
não sabia nada sobre crianças. Ele não queria saber nada
sobre crianças. Ele não queria se envolver com essas três.
Mas eram seus sobrinhos e ele era seu parente mais próximo,
com exceção de Lady Carlyle, sua tia paterna.
Suas narinas se inflamaram só de pensar na mulher.
Caçadora de fortunas. Impostora–fixando-se como uma das
anfitriãs mais elegantes de Londres depois de fazer intrigas e
se acotovelar até chegar ao topo. Uma erudita.
Seus lábios se transformaram em uma desprezível
torção zombeteira.
Não, ele certamente não podia esperar que Lady Carlyle
tivesse os instintos maternos para leva-la a correr
apressadamente para socorrer três crianças órfãs. Ele
realmente apostaria contra isso.
O Natal, claro, estava arruinado. Havia a necessidade,
para manter a decência, de entrar de luto e de reduzir seus
envolvimentos sociais. Mas ele poderia ter aceitado o convite
para passar as férias na propriedade de Hinckley. Havia
companhia agradável ali, incluindo a filha de Hinckley...

189
Mas não. Ele estava condenado a passar o Natal
tentando resolver o futuro de três criançasque eram
estranhas para ele. E olhando para o tempo enquanto sua
carruagem aproximava-se da casa onde moravam, ele poderia
ficar preso lá com eles por vários dias. Que grande
perspectiva!
O que diabos ele faria com três crianças?
Ele franziu a testa para a casa quando sua carruagem
finalmente parou noportão. Era pequena o suficiente, embora
maior do que ele poderia esperar, considerando o fato de que
Parr e Marjorie haviam desperdiçado tanto a propriedade que
herdara quanto a pequena fortuna, além do considerável dote
e se debruçaram profundamente e irrevogavelmente em
dívidas. Mas era um lugar bastante ruim. Sombrio.
Deprimente.
Ele se sentiu bastante triste pelas crianças. Ele se
perguntou o quão profundamente eles lamentavam. Marjorie
e Parr foram seus pais, afinal.
Ele percebeu enquanto pulava da carruagem que outra
estava chegando atrás dele. E um olhar em sua direção
revelou o rosto de Lady Carlyle pressionado na janela,
olhando para ele. Ela retirou o rosto apressadamente. Claro.
Seria muito inferior à sua dignidade dar a impressão de que
ela estava de alguma forma interessada nele.
Ele estava irritado. Ela provou que ele estava errado e
ele odiava estar errado. Ele odiaria pensar que ela tinha um
bocadinho de piedade para as crianças em sua alma. E o
pensamento de que eles estariam juntos na casa, passou por

190
sua mente. Com o Natal se aproximando. E com uma
tempestade de neve iminente.
Puta merda! Ele permitiu à sua mente o luxo do
palavrão.
Às vezes, ele odiava as imposições colocadas sobre ele
pelo fato de ser um cavalheiro. Ele teria gostado de ignorar
sua presença e avançar o caminho para a porta da casa de
campo sozinho. Mas ele era um cavalheiro. Ele caminhou em
direção a sua carruagem e abriu a porta. Só não podia se
negar completamente a indulgência do mau humor.
― Ah ―, disse ele, olhando para o rosto bonito, frio e
arrogante, em desacordo com os vívidos cabelos vermelhos
visíveis sob a borda de seu capô. ― ― Eu vejo que teria
perdido minha aposta se eu tivesse sido imprudente o
suficiente para fazê-la. Você veio.
Sua linda e regalada boca tornou-se uma linha fina e
sua mandíbula tornou-se tão endurecida que ele imaginou
que seus dentes podiam se quebrar pela força em que
estavam pressionados.
― Eu vim, milorde ―, ela disse, sua voz tão gelada
quanto aquele dia ― porque nem na minha fantasia mais
louca eu acreditei que você o faria. Parece que ambos,
ocasionalmente, podemos estar errados .
Ele não gostou de ter que olhar para ela. No entanto,
não havia nenhum sinal de que seu cocheiro se aproximaria
para dar os passos para elalhe ajudar a descer.
― Permita-me, madame ―, ele disse, e se inclinou para
dentro da carruagem, afastou a manta que cobria suas

191
pernas, colocou as mãos na sua cintura e a trouxe para a
estrada colocando-a em frente a ele. Isso foi o melhor. O topo
de sua cabeça mal alcançava o queixo dele. Sua cintura, ele
notou tardiamente, era tão pequena agora quanto havia sido.
E ela ainda usava o mesmo perfume que costumava usar, um
aroma sutil que provocava em vez de assaltar as narinas.
― Obrigada ―, ela disse com sarcasmo, ― por aguardar
minha permissão, milorde. Suas mãos?
Ele retirou suas mãos dela e franziu os lábios.
― Madame ―. Ele se curvou com uma cortesia exagerada
e contemplou maneiras agradáveis de conter aquela língua
afiada. ― Tomará meu braço para que possamos nos
aproximar da casa e conhecer nossos sobrinhos? ― Ele
esperou por sua resposta.
― Obrigada. ― Ela ergueu o queixo e o nariz ― embora
ambos se movessem juntos, ela conseguiu fazer parecer dois
movimentos bem distintos. Ela colocou o braço levemente ao
longo do dele como se ele estivesse prestes a levá-la a uma
dança e assim se salvou da aparência de ter sido superada.
Eles passaram pelo portão e subiram o caminho em um
rígido silêncio.
Que Natal seria esse, pensou o Viscount Morsey. Uma
casa de campo surrada, uma tempestade de neve indesejável,
três crianças pequenas, uma mulher fria e altiva. Bom Deus,
que Natal!
Perguntou-se por que raios ele loucamente havia
imaginado alguma vez que amava essa mulher. E se

192
perguntou qual bendito e desconhecido poder dos céus
tinham recompensado ele, salvando-o de se casar com ela.

Duas carruagens. Não uma, mas duas. Todos sentiram


uma excitação a ponto de passarem mal quando avistaram
uma carruagem parada em frente ao portão, especialmente
porque era muito maior do que qualquer carruagem que eles
já tivessem visto antes. Mas quando a segunda apareceu
parando logo atrás, eles estavam com os olhos como pratos e
em puro êxtase. Exceto que não foram autorizados a apreciar
a visão por muito tempo. A babá os afastou da janela e logo
esfregou os rostos com pressa de forma quase dolorosa e
mudou as roupas das meninas para as mais novas e mais
limpas.
Parecia que a tia e o tio haviam chegado.
Rupert e Patricia, instantaneamente alertas, queriam
correr para baixo e conhecer os visitantes. Mas a ama disse
que nem a excitação nem a ânsia de deixar o berçário era
algo aceitável. Eles deveriam esperar silenciosamente onde
estavam até que sua tia e tio se recuperassem de sua jornada
e optassem por chamá-los ou convocá-los. E eles deveriam
estar em seu melhor comportamento no momento.
As crianças devem ser vistas e não ouvidas. As crianças
devem falar apenas quando requisitado. Caroline recitou as
regras em sua cabeça, embora fossem desnecessárias. Ela
estava feliz por não terem sido autorizados a correr até o
193
andar de baixo. Ela esperava que seu tio e sua tia
demorassem muito se recuperando da viagem. Ela esperava
quecontinuasse sem ter que dizer nada mesmo depois de
seus tios terem falado.
Só que eles apareceram logo. A babá havia dito que eles
com certeza iriam querer se lavar, trocar a roupa e tomar
chá, mas a babá devia ter se enganado. Caroline tentou se
esconder atrás dela quando eles entraram no berçário, mas
foi empurrada firmemente para frente, depois que a babá fez
uma reverência profunda. Caroline se agarrou à manga do
irmão e ficou meio atrás dele, espiando através de seu braço.
― Rupert ―, disse seu tio. ― Patricia. Caroline. Ele olhou
para cada um deles e inclinou a cabeça em cumprimento.
Caroline cumprimentou-o logo depois de Rupert quando
chegou a vez. Seu tio era um homem sério e muito alto. Ela
pensou que ele devia ser mais alto do que seu papai, apesar
de não poder lembrar do pai com muita clareza.
Papai nunca a cumprimentou. Gostou de ser
cumprimentada com essa inclinação. As princesas sempre
recebiam cumprimentos assim.
― Olá, crianças. ― Sua tia sorriu para cada um deles na
vez dela. Ela era uma lady muito bonita. Tinha ocabelo como
o de Patricia. Caroline tinha ouvido os criados dizerem que o
temperamento agitado de Patricia era por conta dos cabelos
vermelhos.
Embora Caroline não tivesse notado que Patricia tivesse
mau humor. Ela se perguntou se sua tia sim. Sua tia, ela
percebeu, gostaria de se esconder atrás do seu tioassim como

194
Caroline estava escondida atrás de Rupert. Sua tia era
tímida.
― Boa tarde senhor. Boa tarde, madame. ― Rupert
estava curvando-se em um cumprimento, levando a mão de
Caroline com ele. Ele estava usando sua voz de menino
crescido.
― Boa tarde, tio. Boa tarde, tia. A reverência de Patricia
foi uma das melhores que já havia visto. Ela não levantou a
saia muito alto nem entortou para o lado. A babá devia estar
satisfeita.
Houve uma pequena pausa e Caroline percebeu que era
sua vez. Seu polegar subiu em direção a sua boca, mas ela
percebeu a tempo e baixou-o firmemente. Chupar dedo era
coisa de bebês. Ela moveu o braço para trás das costas de
Rupert para se tranquilizar e dirigiu o olho que não estava
escondido para a tia.
― Há cobras de neve ―, disse ela.
No começo, ela pensou que havia dito a coisa errada.
Rupert e Patricia se remexeram desconfortavelmente, e sua
tia e tio olharam para ela como se não entendessem. Ambos a
olhavam.
― Há mesmo? ―, perguntou a tia finalmente. ― Onde?
― Lá fora. ― Caroline fez um gesto com o braço livre
para a janela, embora ela não movesse a cabeça. ― Na
estradinha. Todas estão indo para a mesma direção.
― Caroline! ― A voz de Patricia estava agonizada.

195
― Caroline tem uma imaginação fértil, madame ―, disse
Rupert, apressando-se em sua defesa. ― Ela tem apenas
quatro anos. Ela crescerá. Você teve uma viagem agradável?
― Obrigada, sim ―, disse a tia.
Mas seu tio falou ao mesmo tempo. ― Talvez você fosse
amável o suficiente para nos mostrar, Caroline ―, ele estava
dizendo. E deu um passo à frente e esticou uma mão para
ela.
Caroline olhou para seu rosto. Ele não estava sorrindo e
ainda parecia severo. Mas havia algo em seus olhos, algo que
tirou um pouco de seu medo. Mas ela estava apenas
conversando com sua tia, e ela não teve a intenção de
mostrar-lhes as cobras de neve. Apenas estava conversando.
A babá sempre dizia que damas e cavalheiros tinham que
aprender a conversar. Ela estendeu a mãoaté a grande mão
de seu tio. Ela deixou o santuário atrás das costas de Rupert
e guiou-os para a janela. Sua tia veio também.
― Lá ―, disse Caroline, apontando para baixo. As cobras
ainda estavam lá, mas havia mais delas agora e estavam se
movendo mais rápido. Ela não podia vê-las com muita
clareza, porém, porque ela não estava ajoelhada e inclinada
sobre o assento da janela.
E então seu tio pôs as mãos na cintura dela e ergueu-a
para ficar no assento. Ele manteve as mãos onde estavam
para que ela se sentisse segura. Caroline não queria lhe dizer
que era proibido ficar no banco da janela. Ela esperou que a
babá o repreendesse, mas não o fez. Talvez a babá estivesse
sendo educada com os hóspedes.

196
― Realmente parecem cobras ―, admitiu seu tio.
― E realmente estão indo para o mesmo caminho ―,
disse a tia. ― É por causa do vento, você sabe. Elas não são
tão fortes quanto o vento e devem ir onde quer que ele decida
as levar .
Caroline foi encorajada a dizer mais. As pessoas
costumavam chamá-la de boba quando dizia essas coisas. E
então, ela costumava manter seus pensamentos para si
mesma.
― Mas uma vai voltar a correr para o outro lado ―, disse
ela. ― Uma serpente herói. Um príncipe. Ele vai resgatar a
princesa .
― Ah ―, disse seu tio. ― Claro. Príncipes heróis sempre
resgatam princesas.
― E casam-se com elas e vivem felizes para sempre ―,
acrescentou a tia.
― A senhorita Caroline é dada a voos de fantasia,
milorde e milady ―, disse a babá rapidamente, sua voz
tremendo e nervosa. ― Se as crianças forem um
aborrecimento para vocês... .
― Elas não são ―, disse o tio de Caroline. ― Eles são
nossa família, Sra. Chambers .
― Talvez você goste de aproveitar a oportunidade para ir
à cozinha e tomar uma xícara de chá, Sra. Chambers ―,
acrescentou a tia.
― O dragão cruel levou a princesa cativa ―, disse
Caroline. Estava ficando escuro. Não parecia que o herói

197
fosse voltar a atravessar o caminho hoje. Talvez amanhã. A
princesa teria que passar outra noite em cativeiro.
― Os dragões tendem a fazer isso ―, disse seu tio.
― Eu acredito que está começando a nevar mais forte ―,
disse a tia. Ela não parecia muito feliz com isso.
― Não vamos construir bonecos de neve ―, disse Rupert.
Ele estava falando em sua própria voz novamente. Sua voz de
menino, mas triste.
― Ou fazer anjos da neve ―, disse Patricia. Ela também
parecia triste.
Caroline lembrou o ano passado e os sonhos que não se
tornaram realidade. Eles também não se tornariam realidade
este ano. ― Ou ter um Natal ―, ela disse, esquecendo suas
cobras de neve e olhando para a escuridão da estrada além
do portão. ― Existe mesmo Natal? Ou é apenas uma história?
― Estamos de luto ―, disse Rupert. Ele havia mudado
sua voz novamente.
― Nossa mãe e papai se foram ―, disse Patricia, ― e
devemos ficar de luto por respeito a eles .
Houve um silêncio.
Caroline virou-se no banco da janela e olhou no rosto do
tio. Não estava tão acima do seu agora. Ele parecia um pouco
como um príncipe, só um pouco velho, é claro. Ela gostava de
seus olhos. Eles a impediram de ter medo dele. E ela gostava
de seu colete bordado. Seus olhos foram atraídos para o
brilhante botão preto visível acima de seu casaco. Ela
estendeu o dedo e tocou-o. Era suave e com textura onde
tinha um padrão.

198
― Existe mesmo o Natal? ―, Perguntou-lhe. De repente,
sentiu-se muito triste, esperando que ele dissesse que não,
assim como a babá sempre dizia que não havia fadas-
madrinhas ou elfos no jardim. E não havia dragões com
princesas cativas. Ela queria desesperadamente que existisse
Natal.
Os olhos dele ― eram azuis, como os de Rupert ―
mudaram e se tornaram bastante amáveis. ― Sim, existe o
Natal ―, disse ele. ― Sempre há Natal, todos os anos .
― Mas não este ano ―, disse Rupert. Ele se lembrou de
seus modos. ― Senhor.
― E também há uma história ―, disse a tia. ― Uma
história maravilhosa que se concretiza todos os anos .
― Exceto este ano ―, disse Patricia.
― Mamãe e papai se foram o céu ―, Caroline disse a seu
tio, caso não tivesse ouvido Patricia nem soubesse a
conclusão de sua história. ― Eles estão com os anjos. E há
um trono .
― Sim ―. Seu tio fez algo inesperado. Ele deslizou um
braço para baixo até a parte de trás dos seus joelhos e o
outro em suas costas, e ele a levantou em seus braços. Ela
estava olhando para a sua tia e para Rupert e Patricia. Ela
gostava de estar lá em cima. Ela se sentia segura. E ela
gostou da maneira como ele cheirava. Era um cheiro de
sabonete, rapé e couro. Ela colocou um braço em voltado
pescoço dele.
― Nós seremos levados ao orfanato, tio? ― Patricia
perguntou.

199
― Não ―, disse seu tio.
― Não ―, sua tia disse ao mesmo tempo.
― Por que Mamãe e Papai se foram? ― Caroline
perguntou a seu tio.
Seus braços apertaram sobre ela, mas ele não
respondeu sua pergunta.
― Oh, querida ―, disse a tia, e Caroline podia dizer que
ela fingia estar alegre quando não se sentia alegre. ― Eu acho
que é melhor pedir o chá .

O cansado mordomo ― ou melhor, o criado que


desempenhava as funções de mordomo, lacaio, cavalariço e,
provavelmente, jardineiro ― os colocara em extremidades
opostas na longa mesa de jantar. Ele –Visconde Morsey –
ocupava o lugar principal, é claro. Ela estava na parte mais
distante. Ela pensou em pedir que uma bandeja de jantar
fosse enviada para seu quarto, mas não lhe daria a satisfação
de acreditar que ele estava fazendo com que ela se
escondesse.
Ela olhou para ele enquanto o criado servia a sopa. ―
Eles não serão enviados para um orfanato, é claro ―, disse
lady Carlyle. ― Mas não se pode esperar que eu seja a única
responsável por cuidar deles. Vivo na cidade, e nem o lugar
nem a minha casa são adequados à educação de crianças
pequenas. Você, por outro lado, tem três casas, duas delas no

200
campo. Você não ficaria incomodado por causa deles de
nenhuma maneira.
― Exceto que eu sou um homem solteiro ―, disse ele. ―
As crianças precisam do cuidado de uma mãe .
― E de um pai ―, ela acrescentou, eriçada.
― Meninas precisam de uma figura materna para lhes
dar exemplo ―, disse ele, espalhando o guardanapo com
bastante ostentação no colo e pegando sua colher de sopa.
Ele havia se trocado e usava roupas noturnas, arrumado o
suficiente para uma audiência num tribunal ― preto, é claro,
ela percebeu, e se perguntou se ele se vestira tão
imaculadamente para zombar dela. Mas então ele sempre se
vestiu bem e ainda fazia, se os vislumbres ocasionais que ela
teve dele na cidade eram algo para julgar. E agora ele era
mais bonito do que era... Bem, talvez não. Mas sua boa
aparência a irritou.
― E os meninos precisam de uma figura paterna pelo
mesmo motivo ―, disse ela. ― Esta família tem meninos e
meninas, milorde .
― Talvez ―, ele disse, sua colher vazia suspensa a meio
caminho do prato, ― você está sugerindo que nós devemos
dividir a família, milady? Você leva as meninas e eu, o
menino?
― Absolutamente não ―, ela disse com dureza. ― Você
não viu como as pequenas dependem de seu irmão mais
velho e quão protetor ele é com ambas? Eles devem
permanecer juntos .

201
― Em uma das minhas casas de campo ―, ele disse,
baixando a colher completamente e olhando através da mesa
com os olhos preguiçosos. Aquele olhar que denotava
aborrecimento. O olhar que ela achara irresistível quando
jovem. Dizer que ela tinha estado loucamente apaixonadapor
ele era subestimar o caso. Jovem tola.
― Eles não serão um inconveniente para nenhum de nós
ficando lá ―, disse ela.
Ela o amaldiçoou silenciosamente por não lhe responder
imediatamente. O silêncio esticara e suas palavras ― suas
palavras insensíveis e sem coração ― pareciam ecoar e ecoar
nas paredes da grande e sombria sala de jantar. Como ela
poderia ter falado deles? Pior, como poderia ter querido dizer
isso?
― Assim como eles não foram um inconveniente ficando
aqui para Marjorie e seu irmão ―, ele disse finalmente.
Ela sentiu suas bochechas arder e piorou as coisas. ―
Não pretenda insinuar que você os quer mais do que eu ―,
disse ela. ― Ambas as nossas vidas seguiram um curso
decididamente sem crianças .
― Na verdade não ―, disse ele, balançando a cabeça
para o mordomo remover o prato e trazer o próximo. ― Eu
sou um visconde, herdeiro do título de um conde, e este ano
cheguei a esse marco temido para um solteiro que tem título
e propriedades, meu trigésimo aniversário. Eu certamente
cumprirei o meu dever, me casarei e montarei meu berçário
nos próximos anos.

202
Ela sentiu seu rubor se aprofundar. Porque uma vez
eles tinham sonhado em montar este berçário juntos. Quatro
filhos, ambos concordaram. Eles fariam isso seguindo uma
perfeita ordem, ele havia dito rindo. Menino, menina, menino,
menina ― a família perfeita.
― Por que você nunca teve filhos? ―, Perguntou ele.
Ela olhou para ele, chocada. ― Milorde? ―, Ela disse.
― Muitas vezes me perguntei ―, disse ele. ― Você se
casou com ele com ansiedade suficiente, menos de um mês
depois de você terminar nosso noivado, como eu me lembro .
Ela respirou lentamente. ― Meu casamento e a falta de
filhos nele não são da sua conta, milorde ―, disse ela. ― nada
em absoluto ―. Ela não teve filhos porque depois do primeiro
mês de seu casamento, Carlyle deixou claro que ele preferia
seus amigos homens a ela e, compreendendo o significado
daquilo, ela manteve sua porta trancada para ele desde
então. Ele se casou com ela para manter as aparências,
suspeitava ― um destino adequado, talvez, enquanto ela se
casou com ele para fugir.
― Não. Minhas desculpas. Ele olhou para a janela,
através do qual as cortinas ainda não tinham sido baixadas.
― Este é o momento mais maldito para cair uma
tempestade de neve. Vamos ficar presos aqui juntos por dias,
Úrsula. E com três crianças. Durante o Natal. Você pode
imaginar um pesadelo pior?
― Não ―, ela disse bruscamente. ― Nem mesmo se você
me desse uma hora para pensar sobre isso. E ficaria grata se
você cuidasse da sua linguagem na minha presença, milorde.

203
E não me lembro de ter lhe concedido a permissão–no
presente momento ― para usar meu nome de batismo .
― Lady Carlyle, madame ―, disse ele ― havia tanta frieza
em sua voz como havia neve lá fora, ― aceite minhas
humildes desculpas .
Ela lidou com o prato de vitela com o apetite de quem já
tinha comido doze pratos abundantes antes desse.
― Eles terão que usar preto ―, disse ele, ― pelos pais
que raramente puderam ver. E eles devem se comportar como
se estivessem no luto mais profundo. ― Ele parecia
vagamente com raiva.
― Eles não terão permissão para brincar na neve
amanhã ―, disse ela, ― embora sem dúvida haverá o
suficiente para tentá-los. Sem bonecos de neve nem anjos na
neve. Ou guerra de bola de neve. Ou patinação. Ou gritinhos
pela simples diversão de se fazer isso.
― E absolutamente nada de Natal ―, disse ele. ―
Nenhuma decoração, nenhum presente, nenhum ganso
assado ou qualquer um dos enfeites, sem carolers. Talvez
apenas assistam a missa tranquila de natal .
― A pequenininha perguntou se havia realmente aquilo
que chamavam de Natal ―, disse ela. ― Ela tem quatro anos
de idade. Certamente poderia se lembrar do Natal do ano
passado, mesmo que não do ano anterior. ― Ela ficou
perturbada com a questão. Percebeu as implicações
completas disso. Ela olhou para ele, seus olhos perturbados.
― Eles nunca tiveram um Natal de verdade, Timothy?
Marjorie e Adrian nunca ficavam aqui com eles? Nem no

204
Natal? ― Ela percebeu tarde demais que acabou usando o
nome de batismo dele, eesperava que ele não tivesse notado.
― O Natal é o momento em que os adultos muitas vezes
se mostram mais relutantes em presentear alguém, exceto a
si mesmos ―, disse ele.
Suas palavras a atingiram quando se lembrou de sua
própria irritação sobre isso mais cedo.
― E eu incluso, milady ―, ele disse, com tanta ênfase na
última palavra que ela soube que ele havia notado sua falta
hipócrita de usar o nome dele.
― É um crime. ― disse ela finalmente, ― Se você e eu
perdemos o Natal, perdemos somente algumas festas. Se as
crianças perdem o Natal, estão perdendo um dos elementos
mágicos da infância. Marjorie e Adrian privaram essas
crianças disso durante o passado? Eles devem ser privados
novamente este ano porque eles morreram? É justo fazer
essas crianças prantearem e lamentarem? .
― Por duas pessoas que eles mal puderam conhecer? ―
Ele não estava comendo seu pudim. Estava com as costas
recostadas em sua cadeira e girando a colher pensativamente
sobre o guardanapo. ― Fazer bonecos de neve e anjos na neve
é desrespeitosoaos mortos?
― Quem faz as regras pelas quais essas crianças vivem?
―, Perguntou ela.
― Sua babá? ―, Ele disse. ― Uma mulher competente,
afetuosa e um pouco sem imaginação, pelo meu julgamento .
― Encarregada de pelo menos uma criança com soberba
imaginação ―, disse ela, pensando com um carinho

205
inesperado sobre as cobras das neves e o príncipe cobra e do
dragão que mantinha a princesa cativa. ― Não deveria ser
você ou eu fazer as regras?
Ele franziu os lábios e olhou para ela com aquele olhar
aborrecido de novo. ― Você quer dar-lhes um Natal de
verdade? ―, Perguntou ele. ― Você sabe como, Úrsu- milady?
Ela pensou. ― Já faz muito tempo ―, disse ela. ― Mas eu
consigo me lembrar. Posso lembrar-me da magia e talvez
daquilo que a criava. E você?
Ele também pensou por um tempo. ― Troncos de Yule
―, disse ele. ― Azevinho, hera, visco. Pudim. Presentes
embrulhados. Que depois serão desembrulhados.Músicas de
natal .
― E a história de Natal ―, disse ela.
― Ah, sim. ― Ele riu suavemente. ― Às vezes, a gente
quase esquece. Então, vamos quebrar todas as regras e
sacrificar o nosso próprio conforto e tempo para dar aos
nossos sobrinhos um Natal para se lembrar ― antes de serem
encarcerados em umadas minhas propriedades no campo. A
neve é sempre um bônus extra no Natal, é claro. Você está
preparada para ficar com os dedos e o nariz vermelhos e
formigantes, milady, tudo isso para entreter três crianças, a
qual você bem disse, nenhum de nós malditamente se
importa? .
― Olhe sua linguagem ―, disse ela bruscamente,
olhando para ele. ― E não é verdade. ― Seus olhos vacilaram
nos dele quando ela se lembrou de que era perfeitamente
verdade, como ela perceberia quando tivesse superado essa

206
loucura de querer dar-lhes algo que nunca tinham tido. ―
Não é verdade. Eu senti algo no berçário mais cedo. Rupert
está tentando ser o homem da família. Ele está tentando ser
corajoso. E Patricia está tentando serdignados cuidados dele.
A pequena é simplesmente adorável. Patricia tem meus
cabelos vermelhos. Rupert tem seus olhos azuis. Caroline é
bem ela mesma. Mas quase poderiam ser...
― Nossos? ― As sobrancelhas dele se ergueram e seus
olhos se abriram para revelar toda a extensão azul. ―
Dificilmente, minha querida senhora. Nós nunca nos
deitamos juntos, nem mesmo uma vez, embora nós
chegássemos perto disso naquela ocasião em que estivemos
no Vauxhall e sua mãe nos permitiu escapar de sua
companhia por quase uma hora feliz.
Ele tinha lhe beijado de forma calorosa, com a boca
aberta e a língua se aprofundando nela. Suas mãos haviam
vagado por todo seu corpo ― em cima de suas roupas ― como
ela também tinha feito sobre ele. Ela tinha sido pressionada,
e tinha se pressionado, forte o suficiente contra ele e tinha
sabido o suficiente sobre a vida, mesmo naquela idade, para
perceber o quão excitado ele estava e o quão fácil e prazeroso
seria fazer amor lá naquelelugar mais escuro escondido da
via principal. Ainda não estava certa de qual deles tinha
assegurado que isso não tivesse acontecido.
Era uma lembrança que ela não puxava de seu cérebro
com grande regularidade.
― É típico de você ―, disse ela, ― ter a vulgaridade de me
lembrar dessa indiscrição .

207
― É isso? ―, Ele disse. ― Sou vulgar, madame? Suponho
que para uma erudita como você, a maioria das atividades
que não estão ligadas ao intelecto parecem vulgares .
― Touché! ―, Exclamou, jogando o guardanapo sobre a
mesa e levantando-se. ― Deixarei você para tomar seu porto,
milorde .
― Pelo contrário, madame ―, ele disse, levantando-se
também e vindo em sua direção para oferecer seu braço. ―
Vamos passar para a sala de desenho, a fim de planejar o
Natal que daremos às crianças que não poderiam jamais ser
nossas. Você acha que conseguiremos permanecer civilizados
tempo suficiente para que isso aconteça?
― Eu sempre sei como ser civilizada, milorde ―, disse
ela.
― Exceto ―, disse ele, ― quando você está terminando
um noivado .
― Eu acredito que sua memória é culpada, milorde ―,
disse ela. ― Eu acredito que estávamos de pleno acordo com o
fim de nosso noivado. Eu acredito que fui acusada de ser
mercenária e conivente. Não são palavras de um homem que
valoriza sua noiva .
― E fui chamado de frio, avarento e coração de pedra ―,
disse ele. ― Não é o tipo de reconhecimento que um homem
espera de sua noiva .
― Você estava certo ―, disse ela. ― Esta é uma situação
condenável em que nos encontramos. Não consigo imaginar
ninguém em cuja companhia eu menos gostaria de passar
alguns dias. Até mesmo o próprio diabo seria preferível. ― Era

208
a proximidade dele, a firmeza dos músculos do seu braço
debaixo de sua mão, o calor de seu corpo, o cheiro dele, tão
estranhamente familiar, que estava fazendo isso. Ela odiava
essa proximidade. Ela odiava o pensamento de que viveriam
nessa mesma casa por um número indeterminado de dias e
dormiriam debaixo do mesmo teto.
Talvez, pensou ela, alguém só pudesse odiar tão
intensamente alguém que já amara com igual intensidade.
Esse não era um pensamento reconfortante.
― A questão é ―, disse ele, sentando-a no salão e
parando de pé diante dela, as mãos cruzadas nas costas, ―
Nós conseguiremos deixar de lado essa antipatia mútua,
milady, para trazer uma pequena felicidade à vida dessas
crianças inocentes? Eu posso. Você pode? .
― Sim ―, ela estalou. ― Sim eu posso. Mas devemos
encontrar um assunto menos pessoal para conversar,
milorde. Devemos começar falando do clima? .
― Parece um tópico de que há muito a ser dito no
momento ―, disse ele, sentando-se em frente a ela, tirando
uma caixa de rapé e abrindo-a com o polegar em um gesto
bem lembrado por ela.
Isso certamente não seria nada fácil.

Ele estava parado em frente a janela do quarto,


tamborilando os dedos no peitoril e olhando para fora. Estava
como esperava, talvez pior. A luz da manhã feria seus olhos,
209
embora o céu ainda estivesse cheio de nuvens pesadas e não
havia o brilho do sol. Ainda estava nevando, na verdade. Os
olhos dele doíam porque não havia nada lá fora, exceto a
brancura. Nada. Mesmo os postes da cerca estavam
carregados de neve e os ramos das árvores todos cobertos.
Era impossível saber onde o gramado terminava e a
estradinha começava. O portão era quase invisível. Seria
quase impossível abri-lo. Na hipótese, ele diria que pelo
menos um pé de neve havia caído durante a noite.
Maravilhoso! Todas as suas previsões se tornaram
realidade. Eles estavam bem e verdadeiramente presos nesta
casa por dias. Para o Natal. Ele, Lady Carlyle e três crianças.
E ele nem sequer poderia ter o conforto duvidoso de fechar-se
em seu quarto ou na biblioteca sem livros que havia no andar
de baixo para ler os poucos livros que ele trouxera com ele e
um decantador de conhaque. Na última noite, ele concordou
em quebrar todas as regras da decência e propriedade, a fim
de permitir que essas crianças desfrutassem de um Natal. Ele
não mudou de ideia, mas estava caindo na conta esta manhã
que dar a três crianças algo parecido com Natal iria envolver
algum esforço considerável de sua parte.
Ele não esperava que Lady Carlyle quisesse sair lá fora
com eles. Não tinha escapado de seu aviso que ela evitara
responder a sua pergunta sobre querer expor seus dedos das
mãos e dos pés e o nariz ao frio do ar livre. Sem dúvida, ela
ficaria no interior da casa, sorrindo e os encorajando a partir
das janelas. Talvez nem mesmo isso se tivesse que se manter
longe da lareira.

210
Ele franziu o cenho e seus dedos tamborilaram com
força. Ele deveria ter a avisado que estava vindo aqui. Ela
poderia ter ficado em Londres. Mas, maldição, isso não teria
sido justo. Era também responsabilidade dela prover sobre o
futuro de seus sobrinhos órfãos. Mais dela do que a dele ―
ela era uma mulher, afinal, e as crianças eram domínio de
uma mulher. Embora ele tivesse a graça de admitir, irritado ―
para si mesmo, que também havia pouca justiça nesse
argumento.
Mas ele desejou que ela tivesse se mantido longe ou que
ela lhe tivesse avisado de sua intenção de vir aqui para que
ele pudesse ficar longe. Não era uma casa de campo grande.
Seus quartos eram próximos. Ele virou a cabeça para olhar a
parede que separava seu quarto do dela. Ele olhou para a
parede várias vezes durante uma noite inquieta e quase sem
conseguir dormir. Ele até mesmo achou-se calculando
tolamente a distância que devia haver entre a cama dela e a
dele.
E ele encontrou-se lembrando de forma involuntária a
garota graciosa, vividamente linda, sorridente, inteligente e
espirituosa que tinha estreado em sua primeira temporada. E
sua própria paixão profunda por ela. E a dela por ele. Eles
haviam ficado noivos depois de dois meses, embora ela fosse
de uma família sem título e quase não tivesse um dote.
Durante o mês seguinte, eles planejaram, sonharam e se
amaram- inocentemente. O único abraço real que tinham
compartilhado tinha sido aquele em Vauxhall.

211
Ele tinha passado muitas noites inquietas, quase sem
dormir, naqueles dias.
E então, o irmão dela, cuja reputação desagradável ele
tinha ignorado porque a amava, tinha começado a prestar
atenção à sua irmã, que aos dezessete anos ainda não havia
feito seu debute. E os dois, que estavam se encontrando por
trás de suas costas, logo declararam a intenção de se
casarem. Eles haviam feito com que Úrsula e ele se
separassem. Eles haviam brigado amargamente, cada um
defendendo seu próprio irmão e irmã que eles mesmos
tinham cortado relaçõeslogo depois. Mas não rápido
suficiente para salvar o próprio noivado.
O visconde tamborilou os dedos ainda mais rápido. Ele
tinha escapado por um triz. Antes de poder reunir os pedaços
de seu orgulho e ir até ela com a intenção de pedir perdão e
reparar as coisas, ela havia anunciado seu noivado com
Carlyle e tinha se casado com ele quase imediatamente
depois. Foi essa a profundidade dos sentimentos que ela
realmente tivera por ele.
Ele saiu resolutamente da janela e cruzou o quarto em
direção à porta. Normalmente não começava o dia sem o café
da manhã, mas não estava com muita fome esta manhã. Ele
não estava com vontade ser sociável ou de passar um tempo
sendo vítima de sua língua afiada. Não que ela provavelmente
estivesse de pé. A maioria das damas de seu conhecimento, e
principalmente as que não eram damas, não saíam de seus
dormitórios até o meio dia. Mas ele não estava disposto a
assumir o risco. Dirigiu seus passos na direção do berçário.

212
Pelo menos, levar as crianças para fora lhe daria uma chance
de escapar da presença dela completamente durante algumas
horas.
Ele virou a maçaneta da porta silenciosamente e abriu a
porta lentamente. Talvez até as crianças ainda não
estivessem acordadas. Mas estavam, e, previsivelmente,
estavam aglomerados na frente da janela com sua babá. Não,
a babá não era tão esbelta. Nem tinha o cabelo vermelho.
Maldição! Sua mente procurou ― e encontrou ― algumas
palavras muito mais satisfatórias com as quais descrever
seus sentimentos quando entrou no quarto e fechou a porta
atrás dele. A babá das crianças estava fazendo uma profunda
reverência à sua direta. Ele virou a cabeça e acenou com a
cabeça para ela antes de dar sua atenção ao grupo pela
janela.
― Bom Dia senhor.
― Bom dia, tio .
Uma inclinação fria de cabeça, da orgulhosa ruiva.
Grandes olhos castanhos olhando fixamente e
silenciosamente para cima, debaixo de cachos castanhos
macios.
Que jeito para passar o Natal, pensou pesarosamente,
devolvendo os cumprimentos e caminhando pelo quarto em
direção a eles.
― Um mundo vazio e branco ―, disse ele, olhando por
cima da cabeça deles. ― Eu acredito que suas cobras de neve
foram enterradas, Caroline .

213
Ela balançou a cabeça e apontou. Quando ele olhou
para baixo, ele podia ver que com certeza, havia cobras ―
muito mais longas ― soprando pelo topo da cobertura de
neve.
― Ah ―, disse ele.
― Elas estão indo para o palácio de gelo ―, disse a
criança. ― Onde o príncipe mora .
― Entendo. Vão contar a ele sobre o dragão para que ele
possa ir e resgatar a princesa ―, disse ele. Ele quase se
esqueceu do mágico país das maravilhas que podia ser a
imaginação de uma criança, o mundo em que qualquer coisa
poderia ser outra coisa e nada era impossível. Ele sentiu uma
onda repentina e bastante inesperada de nostalgia.
― Patricia vai pintar, senhor ―, disse Rupert. ― Ela é
uma boa pintora. Eu vou praticar minha caligrafia. Eu acabo
deixando muitas manchas quando escrevo e minhas letras
são tamanhos diferentes .
― Mas ele tenta, tio ―, disse Patricia. ― E ele está
melhorando .
O visconde olhou para eles, para o bravo menino de oito
anos que estava tentando valorosamente ser um homem e
ignorar a neve além da janela e a pequena e leal ruivinha de
sete anos, que defenderia seu irmão da maneira que pudesse
da possível ira do tio sobre uma mancha ou uma letra
malformada.
Algo que se parecia muito como se fosse seu coração
afundou dentro dele.

214
Seus olhos encontraram os de Lady Carlyle e
mantiveram o olhar. Ela o olhou firmemente de volta.
― Eu deixei isso para você ―, disse ela. ― Os homens
são geralmente os que adoram fazer as regras .
Ele olhou para os rostos de seus sobrinhos que o
olhavam, rostos sem qualquer esperança, mas com apenas
uma aceitação silenciosa da maneira como as coisas eram e
deveriam ser.
Ele apertou as mãos nas costas. ― A pintura e a
caligrafia soam mais convidativas do que sair na neve para
brincar, construir bonecos de neve, fazer anjos na neve e
arremessar bolas de neve? ―, Perguntou. ― Se assim for,
esqueçamos a ideia de ir lá pra fora. Mas eu, sem dúvidas,
seria um dos que lamentaria.
A pequena olhou para ele sem aparente mudança em
sua expressão. Uma esperança quase dolorosa voltou aos
olhos dos outros dois.
― Milorde... ― A babá parecia quase atingida pelo
pânico.
Ele se virou para olhar para ela, suas sobrancelhas
levantadas. Ele usou descaradamente seus modos mais
aristocráticos e altivos. ― Sim, Sra. Chambers?
― Milorde ―, disse ela. ― O vigário. As senhorias
Hickman-Pugh. Seria um escândalo.
Ele teria mandado – audivelmente- o vigário e as
senhoritas Hickman-Pugh, quem quer que essas fossem, para
o diabo que os carregassem, mas ele se lembrou da presença
das crianças e das duas reprimendas que havia recebido pela

215
sua má linguagem na noite anterior. ― Usaremos o jardim de
trás para que ninguém veja e se sinta escandalizado, Sra.
Chambers ―, disse ele. ― Se, isto é ― ― ele voltou-se para as
crianças ― ― qualquer um de vocês quiser realmente me
acompanhar ao lado de fora. Caso contrário, eu ficarei aqui
dentro também. Não é divertido brincar sozinho na neve .
― Eu vou, senhor ―, Rupert disse apressadamente. ― Se
não é impróprio e desrespeitoso com a memória de mamãe e
papai .
― Não é, carinho ―, disse Lady Carlyle calmamente.
Os olhos de Lorde Morsey voaram para os dela. Ela o
havia chamado dessa forma carinhosa por duas vezes,
durante o mês de seu noivado. Mas ela estava sorrindo para o
sobrinho, algo como ternura em seus olhos.
― Eu também irei ―. Esperança parecia quase
agonizante na voz de Patricia. ― Nós podemos, babá? Por
favor, por favor?
― Com respeito à Sra. Chambers, Patricia ―, disse Lady
Carlyle com firmeza, ― preciso lhe dizer que seu tio Timothy
agora está no lugar de seu papai, já que seu papai se... foi. Se
o tio Timothy diz que você pode brincar lá fora na neve, então
você pode fazer isso .
― Ah ―, disse Patricia, com os olhos arregalados de
expectativa.
― Eu vou fazer um boneco de neve de dois metros e
meio de altura ―, Rupert gritou, seus olhos começando a
brilhar, sua voz soando como de uma criança exuberante. ―
E um metro e meio de largura .

216
Alguém estava puxando a perna da calça do visconde,
logo acima do joelho. Grandes olhos castanhos estavam
olhando para ele. ― Você é o nosso tio Timothy? ―, perguntou
Caroline.
― O próprio ―. Ele sorriu para ela. ― E esta é sua tia
Úrsula. ― Ele percebeu que as crianças nem sequer sabiam
como se chamavam. Ele não devia ter virado as costas
totalmente para Marjorie, ele percebeu. Ele deveria ter
tolerado ela, e o intolerável Parr, nem que fosse pelo bem das
crianças. As crianças precisavam de tios e tias. E primos. Ele
pensou brevemente sobre os quatro primos ― dois meninos e
duas meninas -que ele e Úrsula poderiam ter tido e estar lhes
apresentando agora.
― A babá irá vestir todos vocês para que fiquem bem
quentinhos ―, disse ele. ― Vamos nos encontrar lá embaixo
em dez minutos. Você virá também, Caroline? .
Ela assentiu. Seu rosto ainda estava inclinado para ele.
Como algum pai, tendo três crianças dessas poderiam
procurar por algo mais precioso noutro local? Ele se
perguntou, levando uma mão delicadamente sobre sua
cabeça para tocar seus cachinhos.
― A tia Úrsula pode ir também? ― ela perguntou a ele.
― Eu acredito que sua tia preferiria o conforto da casa
―, disse ele. ― As mulheres crescidas costumam preferir .
― O quê? ― Ele ouviu a indignação na voz de Lady
Carlyle antes de olhar para ela e ver suas narinas bufando,
os olhos brilhando e os cabelos se acendendo ― ele se
lembrava de provocá-la dizendo que seus cabelos pareciam se

217
acender quando ela ficava com raiva de alguma coisa. ―
Nunca ouvi nada mais ridículo em toda minha vida. Então
será negada a diversão de brincar ao ar livre depois de uma
tempestade de neve rara, simplesmente porque eu sou uma
mulher adulta e as mulheres geralmente são covardes? Esta
aqui não é, milorde. Ela virou em direção à porta. ― Eu vou
esperar vocês lá embaixo, adequadamente vestidos para sair
ao ar livre, em nove minutos .
A porta não fechou muito gentilmente depois de sua
saída.
― Acho que tia Úrsula quer mesmo sair para brincar ―,
Caroline sussurrou.
As outras duas crianças gargalharam, gritaram e
bufaram cheios de diversão sobre a ideia de uma dama
crescida querer sair para brincar, e Caroline riu da reação
que suas palavras provocaram. Era a primeira vez que os três
tinham realmente parecido ou soado como crianças desde a
sua chegada, pensou o Visconde Morsey.
― Ela ficou eriçada como se fosse um ouriço, quando
sugeri que ela poderia querer ficar dentro de casa, não foi? ―,
ele disse. ― As damas crescidas precisam ser tratadas com
luvas de pelica, sabe .
Suas palavras fizeram as crianças gargalharem com
hilaridade renovada.
Visconde Morsey, deliberadamente evitando olhar para a
babá e sua possível reação a isso tudo, acenou, saindo do
quarto.

218
Aquilo era maravilhoso. O dia mais maravilhoso que já
teve em sua vida. Não havia dúvida sobre isso na mente de
Caroline. Não havia mais nada para compará-lo – nem
mesmo o piquenique que as senhoritas Hickman-Pugh os
levaram no verão passado, quando eles andaram de
carruagem e ela conseguiu segurar o guarda-sol da senhorita
Olga Hickman-Pugh e até girá-lo acima de sua cabeça até que
a senhorita Iola Hickman-Pugh tivesse dito que ela poderia
quebrá-lo e a srta. Olga tomasse de volta e a beijasse na
bochecha, chamando-a de uma criança querida.
Mesmo aquilo não tinha sido tão maravilhoso quanto a
manhã em que brincaram na neve acabou sendo.
Começou desastrosamente. Ou o que parecia ser
desastroso. Caroline correu para fora depois que Rupert
entrou na neve branca e profunda,e ela derrapou antes de ter
dado três passos e caiu de costas. Ela não se machucara ―
havia muita neve e ela estava vestindo muita roupa. Mas
sentiu o choque de cair tão de repente e a frieza da neve
debaixo da gola e tocando suas orelhas, bochechas e boca. E
sentiu certa humilhação. Todo mundo riu.
Caroline poderia ter chorado, embora raramente o
fizesse. Mas logo que ela tinha caído e todos começaram a rir,
o tio Timothy derrapou bastante desajeitadamente e gritou de
forma ensurdecedora e pousou com um grande baque de
costas e rugiu com fúria quando o riso de repente se virou

219
sobre ele. Até Rupert se aproximou para ver se o tio Timothy
estava realmente ferido e seu tio o pegou pelo tornozelo e o
derrubou também. E quando Patricia correu para ajudá-lo, o
tio Timothy usou as duas mãos para pegá-la pela cintura e
rolá-la na neve.
E então todos estavam rindo, Caroline também. Com
exceção da tia Úrsula, que estava com as mãos na cintura e
dizendo-lhes que nunca viu na sua vida quatro pessoas
fazerem tanto espetáculo. Mas Caroline percebeu que seus
olhos brilhavam quando ela falou, então não quis realmente
dizer isso. E então o tio Timothy esticou sua longa perna e
enganchou sua bota ao redor de um dos tornozelos dela, e ela
caiutambém.
E todos riram novamente. Tia Úrsula também desta vez.
Embora tenha ameaçado dar o troco no tio Timothy.
E ela realmente deu. Depois de terem se levantado e ido
para o jardim para encontrar um bom lugar que pudessem
fazer os bonecos de neve, tia Úrsula ficou para trás com
Caroline, curvou-se para pegar um punhado de neve,
moldou-o em uma bola, piscou para Caroline, e atirou-o nas
costas do tio Timothy. O atingiu no pescoço, e a neve estava
prestes a escorrer pela gola.
Caroline riu. Ela riu ainda mais quando o tio Timothy
girou e, mais rápido do que qualquer um poderia piscar,
formou uma bola de neve e jogou-a diretamente no rosto da
tia Úrsula. O que significava, é claro, que tia Úrsula teria que
dar o troco novamente. Logo, havia bolas de neve voando pelo

220
ar, embora o tio Timothy estivesse gritando que era injusto
que todos estivessem atirando nele.
― As crianças sabem como defender a honra de uma
dama ―, tia Úrsula gritou de volta para ele. ― E esta dama
sabe como defender a sua própria honra, meu querido
senhor.
Mas Caroline sabia que era tudo divertido. Foi o que
tornou aquilo tão maravilhoso. E o tio Timothy apenas jogava
as menores bolas de neve nela. Ele a atingiu várias vezes até
que ela não conseguiu evitar e caiu na risada e já não
conseguia mais jogar.
Eles finalmente fizeram os bonecos de neve. Ou melhor,
Rupert e Tio Timothy fizeram um boneco de neve, gordo,
redondo e alto. Caroline preferiu fazer um dragão e a tia
Úrsula e Patricia a ajudaram, embora a tia Úrsula tenha
declarado que não tinha ideia de como era um dragão ou
como fazer um.
Rupert disse que o dragão que elas fizeram parecia uma
vaca cansada, mas o tio Timothy discordou e disse que seu
dragão definitivamente parecia o tipo que fugiria com uma
bela princesa. E então ele desapareceu dentro de casa e
voltou com cenouras e alguns pedaços de carvão. Ele tinha
deixado a cozinheira com o queixo caído, disse-lhes, mas
nenhum boneco de neve ou dragão de neve de respeito estaria
completo sem nariz e olhos e alguns botões.
― Dragões tem nariz? ―, Ele perguntou à tia Úrsula
depois que terminou com o boneco de neve gorducho de
Rupert. Ele estava segurando a cenoura restante na mão.

221
― Sem dúvida ―, disse tia Úrsula. ― Mas não botões,
suponho. Nosso dragão tem botões, Caroline?
― Ele tem dentes como presas ―, disse Caroline. E ela
foi autorizada a colocar os dentes na cenoura antes que todos
se afastassem e rissem de suas criações. Caroline pensou que
seu dragão parecia muito adorável para sequestrar uma
princesa, mas não disse isso. Ela não queria ferir os
sentimentos da tia Úrsula ou os de Patricia. Ela amava seu
dragão.
― E agora os anjos da neve de Patricia ―, disse tia
Úrsula. ― A menos que todos os dedos das mãos e dos pés
estejam prontos para cair congelados e todos prefiram entrar
para beber chocolate quente diante da lareira .
― Covarde ―, disse o tio Timothy, o que era grosseiro
para se falar, mas Caroline podia dizer que ele estava apenas
provocando sua tia. ― Vamos deixar a tia Úrsula entrar e ter
seu chocolate, crianças? As damas são criaturas tão
delicadas, sabe .
Tia Úrsula foi a primeira a fazer um anjo na neve.
Tio Timothy e Rupert não fizeram nada no início. Eles
simplesmente observaram.
― Qual é o problema? ―, Tia Úrsula perguntou. ― A neve
está muito fria para você, milorde?
― Os anjos da neve sempre parecem distintamente
femininos ―, disse Tio Timothy. ― Eu acredito que fazê-los
está abaixo da nossa dignidade, não é, Rupert? Claro,
podemos fazer anjos de Lúcifer. O que você diz, meu rapaz?

222
Os anjos de Lúcifer não pareciam muito diferentes dos
verdadeiros anjos da neve para Caroline, exceto que eles
estavam sendo feitos com muito menos cuidado e estivessem
ligeiramente sem contorno com a neve voando para todo lado.
― Agora ―, disse Tio Timothy, finalmente, batendo a
neve de seu casaco, ― o que alguém disse agora a pouco
sobre o chocolate quente e um bom fogo na lareira? .
Caroline percebeu de repente como estava gelada. E
como estava cansada. Ela bocejou sem colocar uma mão
sobre a boca nem silenciou o som. A babá teria lhe feito uma
reprimenda se a tivesse visto e ouvido.
A tia Úrsula apenas sorriu e se curvou para pegá-la.
― Cansada, carinho? ―, Perguntou ela. ― Nós brincamos
muito. Vamos te deixar seca e quentinha num momento.
Mas tio Timothy estava ao lado delas antes que Caroline
pudesse aconchegar a cabeça contra o ombro de tia Úrsula. ―
Aqui ―, ele disse, ― Deixe que eu a levo. Ela é muito pesada
para você .
Ele estendeu os braços e colocou-os sobre Caroline, mas
antes de levantá-la contra ele e para dentro de seu casaco,
onde ela poderia sentir seu calor e cheirar aquele cheiro
agradável de rapé novamente, ele olhou para o rosto da tia
Úrsula e ela olhou de volta. Seus olhos devem ter se
cruzados, eles estavam tão perto, pensou Caroline. Ela não
sabia por que se olhavam tão silenciosamente ou porque
ambos os braços estavam rígidos em volta dela. Eles não
disseram nada, nem sorriram nem riram. Caroline bocejou
mais uma vez.

223
E então, ela ficou mais alta no colo do tio Timothy e se
sentindo completamente segura novamente. E mais quente. E
eles estavam entrando para tomar chocolate quente.
Foi maravilhoso. Foi o momento mais maravilhoso de
toda a vida.

Ela estava se sentindo decididamente desconfortável.


Porque ela se sentia completamente aconchegada e
confortável. Um paradoxo desconcertante.
Era hora de se trocar para o jantar, mas ela ainda não
havia feito nenhum movimento para isso. Nem ele também. E
sentiu o desejo traiçoeiro de prolongar este momento e se
atrasar para o jantar ― algo que nunca teve a mínima
vontade de fazer antes ― ou então descer sem trocar de
roupa, algo que ela nunca fazia, nem mesmo quando jantava
sozinha em sua própria casa.
Ela estava sentada em uma grande poltrona ao lado do
fogo da lareira, Caroline aninhada em seu colo. Ele estava
sentado em uma poltrona igual do outro lado do fogo, Um dos
braços em volta da cintura de Patricia, que estava sentada
num dos braços da poltrona, e a outra mão na cabeça de
Rupert enquanto o menino estava sentado no chão,
recostando-se contra suas pernas.
Era uma cena insuportavelmente doméstica.
Eles começaram como dois grupos. Ela deveria ler para
Caroline uma história. As outras crianças conversariam com
224
Timothy ― Lorde Morsey ― sobre tudo e qualquer coisa. Mas
ela descobriu que os únicos livros disponíveis continham
contos morais maçantes destinados a melhorar a mente das
crianças. E então ela fechou os livros e contou uma história ―
uma história que ela não tinha percebido que ela sabia
contar, tudo sobre feiticeiros, bruxas, florestas encantadas,
animais encantados e o inevitável príncipe e princesa.
Antes de estar tão compenetrada, ela esteve ciente do
silêncio do outro lado da lareira e percebeu que tinha a
atenção das três crianças. Antes de terminar, um olhar até a
outra poltrona revelou que ele também estava ouvindo, a
cabeça recostada na poltrona, seus olhos preguiçosos fixados
nela.
Poderia ter sido sua própria casa, pensou
traiçoeiramente, e seu próprio berçário. Estes poderiam ter
sido seus próprios filhos e isso poderia ter sido um ritual
diário regular. Ele poderia ter sido seu marido.
Seu companheiro. Seu amante. Quando ele tocara lá
fora mais cedo, seu braço envolvendo Caroline empurrando o
dela, seu outro braço havia tocado seus seios, e quando ele
virou a cabeça para olhar para ela, seu rosto a poucos
centímetros do dela. . . Não!
― E então, ― ela disse, ― eles viveram felizes para
sempre .
Caroline suspirou com contentamento.
― Essa foi a mais bela história que já ouvi, ― Patricia
disse com um suspiro parecido.

225
― Eu gostei da parte em que a árvore esticou seus
galhos e pegou o mago e o enroscou para sempre ―, disse
Rupert.
Visconde Morsey parecia com sono. E irremediavelmente
atraente. Maldito fosse ele! Ela estava feliz por ele ter usado
essa palavra na noite anterior. Era realmente uma forma de
aliviar seus sentimentos. E então ele bocejou. Talvez, pensou,
ele tivesse algum motivo para estar cansado. Quando voltou
para o berçário depois de uma soneca ― uma coisa que ela
não costumava fazer durante as tardes, mas que foi
necessário depois da manhã de brincadeiras vigorosas ― ele
estava de quatro, imitando um cavalo sendo montado por
suas duas sobrinhas. Ele estava até mesmo relinchando.
Sentiu-se assustada de repente. Ela tinha vindo até aqui
para tomar algumas decisões racionais sobre o futuro das
crianças de seu irmão, levá-los de volta a Londres com ela até
que um acordo mais satisfatório pudesse ser feito. Ela não
esperava que Lorde Morsey viesse, mas, quando viu sua
carruagem e depois ele, esperava que eles
friamentechegassem a um acordo. Ela esperava que ele
pudesse ser persuadido a abrigar as crianças em uma de
suas casas de campo e que sua própria responsabilidade
para elas seria reduzida a alguma ajuda monetária e a visita
ocasional.
Ela certamente não esperava isso. Mesmo quando
decidiram na noite passada dar às crianças um Natal real
apesar do fato de estarem todos de luto, ela não esperava
esse sentimento de envolvimento pessoal, esse senso de

226
família. Sentia-sequase maternal. Ela pensou que esses
sentimentos já estavam há muito mortos. Ela não esperaria
que pudesse sentir essa afeição por crianças, pelo menos não
na medida em que fazia coisas com elas.
O que poderia ser mais tedioso do que ter que passar
tempo com crianças? Ou então ela teria pensado assim
ontem. E pensaria no futuro, decidiu com firmeza. Ela estava
esquecendo a vida completamente satisfatória que ela havia
feito para si em Londres?
― Amanhã é véspera de Natal ―, disse Visconde Morsey.
― O que é a véspera de Natal? ―, Perguntou Caroline.
― É o dia antes do Natal, boba ―, disse Rupert. ― E no
dia seguinte, é o Natal. Mas não haverá Natal neste ano. A
babá disse isso. Seria desrespeitoso com mamãe e papai.
A alegria do momento foi destruída. Rupert inclinou-se
para frente, longe das pernas e da mão do visconde. Patricia
sentou-se mais reta no braço da poltrona, os ombros
encolhidos.
Caroline ficou em silêncio e com os olhos grandes.
― Sempre há Natal ―, disse Lady Carlyle calmamente. ―
É o aniversário de Jesus. Vocês conhecem a história?
― Ele nasceu em uma manjedoura ―, disse Patricia.
― Em Belém ―, acrescentou Rupert. ― Babá nos disse.
― Havia uma estrela ―, sussurrou Caroline.
Sua tia a abraçou mais forte. ― Eu vou lhes contar a
história novamente, amanhã ―, disse ela.
― E amanhã ―, o Visconde Morsey disse: ― iremos sair e
pegar o que pudermos encontrar na neve para decorar a casa.

227
E sua tia Úrsula conversará com a cozinheira sobre assar um
ganso e assar tortinhas de Natal. Vamos cantar canções e ir à
igreja à noite, se vocês puderem ficar acordados tempo o
suficiente. Seria desrespeitoso não comemorar o aniversário
de Jesus .
― E os presentes? ― A voz de Patricia era quase um
gemido.
― Presentes? ― Caroline ecoou sua irmã como um mero
suspiro.
― Claro que não haverá presentes ―, disse Rupert,
usando a voz do irmão mais velho que ele costumava usar
quando não se esquecia de sua posição na família e deixava
de usar sua própria voz de criança, que ele realmente era. ―
Babá disse isso. Além disso, os presentes vinham de mamãe e
papai, e eles se foram.
― Eu acho que sua mamãe e papai quereriam que vocês
ficassem felizes no dia de Natal ―, disse seu tio. ― E já que
eles não podem mais dar seus presentes, eu acredito que eles
estariam felizes se alguém mais fizesse. Talvez alguém o faça.
Vamos aproveitar a Noite de Natal amanhã e esperar que haja
presentes no dia de Natal?
Nenhuma das crianças disse nada. Elas simplesmente o
encararam. Lady Carlyle encontrou-se engolindo em seco
mais de uma vez. Eram crianças ― crianças inocentes e
vulneráveis, totalmente à mercê de pessoas e circunstâncias
fora de seu próprio controle. E, no entanto, ela tinha se
ressentido de existência deles quando recebeu a carta sobre a
morte de seu irmão. Ela se sentiu ressentida por sua

228
responsabilidade por eles. Ela esperava que eles fossem
convenientemente enviados para longe de Londres, onde não
teria que se preocupar com eles além de uma visita de
cortesia uma ou duas vezes por ano. Ela ainda desejava. Ela
não queria que nada mudasse sua vida. Gostava de sua vida
do jeito que era.
Ele também deveria ter trazido presentes, pensou. Caso
contrário, não estaria aumentando as esperanças das
crianças assim. Ele falou sobre montar seu próprio berçário
nos próximos anos. Era apenas uma coisa de dever, o mero
desejo de ter um herdeiro para sucedê-lo? Ele ainda queria
filhos? Mas, em caso afirmativo, por que ele esperou nove
anos desde que o noivado deles terminou? Era assim que ele
seria com seus próprios filhos?
Sentiu-se um pouco doente ao pensar. Quem os
compartilharia com ele? Quem deitaria com ele e receberia
sua semente? Quem os levaria na barriga? Eles? Haveria
quatro, dois meninos e duas meninas? Ele se sentaria assim
no berçário com seus próprios filhos ao lado da mãe deles?
Ela engoliu dificilmente novamente e ouviu um
murmúrio se formar na sua garganta que atraiu os olhos de
Caroline. Ela sorriu. ― É hora de sua tia Úrsula se trocar
para o jantar ―, disse ela. ― E é quase a hora de dormir .
A criança se revirou no colo.
― Quando mamãe estava em casa uma vez ―, disse
Patricia, ― ela veio para nossos quartos, nos colocou na cama
e nos deu um beijode boa noite. Eu lembro. Eu vou sempre

229
lembrar. Caroline era apenas um bebê. Ela não se lembraria.
Mamãe era bonita. .
Sim, ela realmente era. Marjorie tinha sido
extremamente bonita. Adrian, que provavelmente nunca
havia pensado uma só vez em casamento, bastou um só olhar
para a jovem irmã de Timothy e decidiu cortejá-la a sério.
Ou ele soube de seu grande dote e montou seu sítio com
interesse de tê-lo para si. O que realmente tinha o motivado?
Lady Carlyle nunca tinha tido certeza. Ainda não tinha.
Durante anos, ela não lhe deu nem mesmo esse benefício da
dúvida.
― Depois do jantar ―, ela disse, ― eu vou subir e ajeitar
as cobertas e lhes dar um beijo de boa noite. Posso? .
Patricia sorriu ansiosamente para ela. Rupert parecia
em expectativa. Caroline olhou para ela e agarrou-se a um
punhado de sua saia.
― E eu também irei ―, disse Visconde Morsey, ― para
garantir que nenhum canto dos cobertores tenha ficado solto.
Devemos ser caprichosos sobre essas coisas .
Rupert gargalhou e as meninas viraram seus sorrisos
para ele. Caroline riu daquela maneira totalmente alegre que
já havia feito o coração de Lady Carlyle tombar pela primeira
vez que o ouviu lá fora.
Lorde Morsey também ficou de pé. ― Milady? ―, Ele
disse, oferecendo seu braço. ― Permita-me escoltá-la até seu
quarto .
Ela desejava que isso pudesse ser evitado. Ela odiava ter
que tocá-lo. Tinha sido sábia de ficar o mais longe possível

230
dele por todos esses anos. Seu coração tivera certa paz por
muitos desses anos. Queria que permanecesse assim.
Ele se curvou formalmente quando estavam diante de
sua porta e soltou seu braço. Ele se dirigiu para seu próprio
quarto,ao lado, sem uma palavra.
Ela desejou que seu quarto não precisasse estar tão
perto do dele. Imaginou na noite anterior que tinha ouvido
todos os movimentos dele na cama. E em sua imaginação, ela
o havia visto lá, quente, adormecido, despenteado. Masculino.
Ela fechou os olhos brevemente e entrou no seu quarto.
Estaria atrasada para jantar se não se apressasse.

Eles haviam passado todo o jantar com o tipo de


conversa de segunda natureza para ambos. Ambos
acomodavam os olhos na tigela de frutas de prata no centro
da mesa quando as boas maneiras determinavam que eles
deveriam levantar os olhos do prato. Sem dúvida, ela estava
tão agradecida quanto ele que a mesa era bastante longa e
que o mordomo colocara cada um em uma extremidade.
Ela parecia incrivelmente bela. O preto era
inconveniente para a maioria das mulheres, diminuindo a
cor, a juventude e o caráter. Com seus cabelos vermelhos e a
cor avivada na pele que várias horas brincando no ar livre
trouxeram, seu vestido preto parecia espetacular. Ela ainda
tinha a figura e a aparência de uma menina, mas a idade
acrescentava dignidade e beleza.
231
Eles foram ver as crianças depois do jantar. Ela foi para
o quarto das meninas enquanto ele foi dar boa noite ao
menino Rupert. Rupert estava chorando e escondeu o rosto
assustado debaixo das cobertas, assim que viu seu tio
chegar. Ele não sabia o que aconteceria com eles, havia dito.
Ele ainda acreditava que seriam enviados para um orfanato.
O garoto não sabia como conseguiria trabalhar, fazer sua
fortuna e podercuidar das irmãs pequenas.
Lorde Morsey teve que resistir ao impulso de tomar a
criança em seus braços. Teria sido a coisa errada a fazer. Ele
sentou-se à beira da cama e concordou que esse problema
era de ambos, pois eles eram os dois homens dessa família.
Não poderia mais prover para a sua falecida irmã, ele havia
explicado, mas poderia prover para os filhos dela e seria
capaz de fazer isso por tempo suficiente, desde que ele já era
um homem crescido e já tinha fortuna. Talvez Rupert
pudesse fazer sua parte amando suas irmãs, aprendendo
bem suas lições para que ele pudesse se tornar um cavalheiro
educado e informado e fazendo sua parte para assentar suas
irmãs bem na vida depois que estivessem crescidos.
Rupert secou suas lágrimas e eles apertaram as mãos
em um acordo de cavalheiros. Uma coisa estava clara,
pensou Lorde Morsey quando foi ao quarto das meninas. Ele
não poderia abandonar essas crianças em uma de suas
propriedades com apenas uma babá competente como
companhia. Teria realmente desejado fazer isso alguma vez?
― Em lágrimas ―, ele murmurou para Lady Carlyle,
fazendo um gesto com a cabeça na direção do quarto de

232
Rupert. ― Angustiado sobre como ele era responsável e
provedor de suas irmãs. Comportando-se como um
verdadeiro homem.
― Em lágrimas ―, ela murmurou em resposta, seus
olhos indicando Patricia na cama atrás dela. ― Quando se
deu conta de que sua mãe nunca voltará. ― Ela tinha
atravessado a sala correndo.
A menorzinha estava olhando para ele com seus olhos
enormes. Patricia estava deitada com olhos fechados e rosto
composto.
― Boa noite, Caroline ―, ele disse suavemente,
inclinando-se sobre a pequena e tocando as costas de seus
dedos em sua bochecha macia e gorda. Quem poderia saber o
que se passava na mente de uma criança tímida e
imaginativa? ― Você sempre estará segura. O tio Timothy e a
tia Úrsula vão te manter sempre a salvo, querida .
Ela não sorriu nem respondeu a ele. Ela havia
involuntariamente bocejado enormemente.
Patricia não se moveu nem abriu os olhos quando ele foi
até a cama dela. Ele imaginou que Lady Carlyle deveria ter
dito algo para confortá-la.
― Sua mãe era a coisa mais linda quando tinha sua
idade ―, disse ele. ― Ela tinha o cabelo de Caroline e seu
rosto bonito. Ela era minha irmã assim como você e Caroline
são irmãs de Rupert. Eu a amava muito .
Suas pálpebras vibraram e se levantaram. ― Tia Úrsula
disse que a primeira vez que papaiolhou para ela já se
apaixonou ―, disse ela.

233
Ou pelo dote que vinha com ela. Mas quem era ele para
saber o que motivou o determinado cortejo de Adrian Parr
sobre aquela vertiginosa jovem de dezessete anos?
Ele sorriu. ― Lembro-me de uma vez que... ― Ele
começou a contar a suas memórias de infância que ele só se
lembrou assim que começou a contar.
E agora eles estavam sentados na sala de desenho, ele e
Lady Carlyle, tomando chá e conversando novamente como
dois estranhos civilizados. Exceto que os silêncios entre os
temas estavam se alongando.
No entanto, por causa do olhar em seu rosto, ele
imaginou que ela estava inconsciente dessa estranheza.
― O que foi? ―, Ele perguntou quando ela olhou para ele
com os olhos vagos depois de um desses silêncios.
Seus olhos se concentraram nele. ― Nada ―, disse ela.
Ele deveria ter deixado isso assim. Ele não queria fazer
parte de sua vida de nenhuma maneira. Não mais. Não
quando levou tantos anos para tirá-la da sua própria vida.
― Parece ser uma noite para tristeza ―, disse ele. ― Meu
palpite é que nós demos às crianças um dia feliz e as
liberamos do luto formal e apropriado que foi instilado nelas
durante anos de instrução severa. Lágrimas no final do que
foi um dia de prazer. Você acha que fizemos a coisa errada,
afinal?
Ele pensou que ela não iria responder. Ela olhava para
longe, no outro lado da sala. ― Não ―, ela disse finalmente. ―
Não. Eles tinham pais, por mais que tivessem visto muito
pouco deles. Eles eram uma âncora, uma fonte de segurança

234
para as crianças. Se a perda dessas coisas fosse deixada
adormecida dentro delas, poderia causar danos irreparáveis.
Eu acho que as lágrimas eram necessárias. E talvez seja a
cura. Podemos apenas esperar por isso.
― Vou levá-los comigo ―, ele disse abruptamente,
surpreendendo-se. ― Você não precisa se preocupar em ter
seu modo de vida atrapalhado com demandas indesejadas
feitas sobre seu tempo ou seus recursos. Eu terei os levarei
para viver comigo, onde quer que eu esteja.
― Oh, não, você não vai. ― Seus olhos brilharam
queimando os dele e seus cabelos também pareciam se
acender. Ele juraria que brilhava mais aceso. ― Eles são
meus sobrinhos, bem como seus, devo lhe lembrar, milorde.
Vou levá-los para viver comigo. Você pode visitá-los
ocasionalmente. E os meus recursos são bastante adequados
para a criação de três crianças. Agora sou uma mulher rica,
caso não saiba .
― Humm. ― Ele recostou-se na cadeira e olhou para o
rosto irritado dela. ― Talvez possamos permitir que nossos
advogados lidem com esse assunto, Úrsula. Mas não
disputaremos as crianças. Elas são pessoas, não propriedade.
― Precisamente ―, ela disse, mas a raiva morreu de seus
olhos e ela ficou visivelmente relaxada. Seus olhos passearam
vagos mais uma vez.
― O que foi? ― Ele perguntou novamente suavemente.
Ela levou seus olhos até os dele e se demorou ali. ― Eu
tenho sido tão crítica e cheia de juízos ―, disse ela. ― Eu me
deixei sufocar o amor para fazer o que era certo e apropriado.

235
Seu coração pulou desconfortavelmente até ela
continuar. ― Ele apostou e perdeu a casa da nossa infância
―, disse ela. ― Eu senti como se uma parte da minha
identidade tivesse ido junto, minhas raízes. Não pude perdoá-
lo. E então ele sempre estava pedindo coisas, implorando
empréstimos. Sempre empréstimos. E ele arruinou minha
vida. ― Ela mordeu o lábio e fechou os olhos, talvez
percebendo o que ela admitiu. ― Ele sempre foi fraco e
rebelde, descuidado e egoísta. Mas eu costumava amá-lo. Ele
era meu único irmão. E talvez eu estivesse errada sobre uma
coisa pelo menos. Talvez ele a amasse. Você acha que sim?
― Eu me fiz a mesma pergunta ―, disse ele. ― Quando
descobri que o dinheiro que eu tinha dado à Marjorie para
cuidar das crianças ― havia apenas dois deles naquela época
― havia sido perdidonuma mesa de jogos, eu disse a ela para
nunca mais voltar. Eu disse que minhas portas estariam
fechadas para ela para sempre e que todas as cartas que me
enviasse seriam devolvidas sem serem lidas. Não era uma
apenas uma ameaça. E eles mereceram esse tratamento de
nós dois -possivelmente. Mas ela era minha única irmã.
Ensinei-a a andar, a nadar e a escalar árvores. Quando ela
era bem pequena, costumava dar risadinhas como Caroline.
Ele se casou com ela por seu dote? Pensei nisso no momento,
e você também, embora você não admitisse isso para mim
naquele momento. Ou ele a amava? Eles eram totalmente
egoístas e negligenciaram seus filhos. Mas talvez eles se
amassem. Eles estiveram sempre juntos, até mesmo no final.

236
― Eu queria ―, disse ela, ― poder voltar no tempo e
dizer-lhe que não haveria mais dinheiro, mas que minha
porta sempre estaria aberta para ambos para amizade,
conforto e amor. Gostaria de ter conhecido as crianças desde
o início .
― Não podemos voltar ―, disse ele.
― Não.
Ele só percebeu que ela estava chorando quando ela se
levantou bruscamente e virou em direção da porta. Mas,
tomando essa direção, teria que passar pela cadeira dele. Ela
virou-se bruscamente para ficar de pé de frente para o fogo
da lareira.
― Oh, ― ela riu tremendo. ― Deve ter caído algo em
meus olhos. ― Ela pegou seu lenço e deu batidinhas no canto
dos seus olhos.
Ele se levantou e deu os poucos passos que os
separavam. Ele colocou as mãos nos ombros dela, por trás. ―
Eu acho que você estava certa, Úrsula ―, disse ele. ― Eu acho
que a tristeza da noite veio da felicidade do dia. Libertando-
nos deliberadamente do luto puramente convencional hoje,
percebemos o quanto realmente sentimos sua falta. E nós
lembramos que eles eram pessoas e que tocaram nossas
vidas e que deram vida a essas três crianças que dormem no
andar de cima. Mesmo sendo totalmente egoístas e
irresponsáveis como eram, é certo que eles devem ser
lamentados totalmente por nós. Você não precisa ter
vergonha de suas lágrimas .

237
Ele esperava que ela se virasse e afundasse em seus
braços. E se ela tivesse feito isso, ele a teria mantido lá e isso
confortaria tanto ela como ele também. Mas ele estava feliz
por ela não ter feito isso. Ele não a queria em seus braços.
Ele não queria que compartilhassem o sofrimento tão
intimamente. Ele sentiu que ela se colocava gradualmente
sob controle.
― Você está certo ―, disse ela finalmente. ― Obrigada.
Mas ele não conseguia mais deixar como estava. Suas
emoções estavam à flor da pele. E ela já tinha significado
muito para ele. Todo o seu mundo.
― Por que você não esperou que eu voltasse para você,
Úrsula? ―, Ele perguntou. ― Você sabia que eu voltaria para
você. Por que você não voltou para mim?
Ela girou, os olhos arregalados, molhados e bastante
vermelhos. ― Esperar? ― Sua voz estava incrédula. ― Você
teria voltado? Você esperava que eu...? Eu teria batido na sua
cara.
― Foi um casamento por amor com Carlyle, então? ―,
Perguntou. Parecia incrível, mas ele sempre se perguntou se
tinha sido. Não que ele quisesse realmente saber a resposta.
Não até recentemente. Agora ele acreditava que isso não
podia mais machucar.
― Claro que foi um casamento por amor ―, disse ela,
mas seus olhos não eram capazes mais de se manterem nos
dele ― Claro. O que você pensava?
― E foi um bom casamento? ―, Perguntou ele. Carlyle
frequentava círculos diferentes dos seus. Ele nunca gostou do

238
homem, talvez porque ele era o marido de Úrsula. Ele não
poderia dar outro motivo para a antipatia que sentira por um
homem que parecia ser perfeitamente amável.
― Sim, foi um bom casamento ―, disse ela. ― Foi muito
bom. O melhor. Foi maravilhoso. A melhor coisa que já fiz na
minha vida .
Seus olhos estavam assombrados. Porque Carlyle tinha
morrido e o maravilhoso casamento tinha chegado ao fim? Ou
porque ela estava mentindo? Se tivesse sido tão maravilhoso,
ela não teria dito a ele que cuidasse da sua própria vida e
teria encerrado o assunto?
― Não que o meu casamento seja da sua conta ―,
acrescentou.
― Não ―, disse ele. ― Como não foi meu casamento, não
é da minha conta. Devo agradecer por pelo menos isso. Mais
dois dias e, se o tempo o permitir, podemos pensar em sair
daqui. Vou levar as crianças comigo e você pode voltar à vida
que você gosta tanto. Podemos permanecer civis por mais
dois dias, o que você acha? Acho que já conseguimos muito
bem hoje .
― Nunca foi difícil para mim, ser civil e cordial ―, disse
ela rigidamente. ― E eles retornarão comigo. Você pode
providenciar para que seu advogado encontre-se com o meu
em Londres, milorde. Mas eu aviso-te que se for assim,
haveráuma dura batalha à frente.
― E com essa amável nota, eu lhe oferecerei meu braço,
milady, e a escoltarei para o seu quarto ―, disse ele. ― Eu

239
odiaria que prolongássemos mais essa noite apenas para
descobrir que estragamos o dia começando a brigar .
― Uma ideia admirável ―, disse ela, pegando o braço,
quase furiosa e marchando na direção da porta.
O problema com Úrsula, pensou pesarosamente, era que
ela sempre ficava tentadoramente desejável quando estava
irritada. No entanto, de alguma forma, ele teria que ter uma
boa noite de sono em uma cama que deveria estar a poucos
metros da dela. Era uma boa coisa, pelo menos, que havia
uma parede grossa entre essas duas camas. Uma coisa muito
boa.

Eles deixaram o bebê dormindo em sua pequena


caminha. A babá cuidaria dele, caso acordasse e chorasse
enquanto eles estivessem longe. Não ficariam longe por muito
tempo. Era importante que eles voltassem em breve para que
ele visse que tinha uma mamãe e um papai, um irmão e duas
irmãs e para que compreendesse que nunca mais ficariam
longe dele por muito tempo. Especialmente mamãe e papai.
Eles sempre estariam lá para ele quando fosse dormir ou
quando acordasse. Eles sempre fariam dragões de neve com
ele, ririam com ele,o manteriam aquecido dentro de seus
próprios casacos e diriam que ele estaria seguro para sempre
e todo sempre.
E ela lhe contaria as mesmas coisas. Ela era sua irmã
mais velha e cuidaria dele. Ele nunca teria que acordar, como
240
ela costumava fazer, e perguntar-se onde mamãe e papai
estavam. Porque eles estariam lá, na casa com eles. O bebê
tinha cabelos vermelhos, como os de Patricia, os olhos azuis
como os de Rupert. Seus cabelos tinham cachos como os
seus. E ele sugava o polegar. Isso não era uma coisa ruim a
fazer. Ela sabia que isso lhe proporcionava conforto. Quando
ele fosse mais velho, ela explicaria a ele que apenas bebês
sugavam seus polegares e ele logo pararia. Mas agora ele era
um bebê.
Seu nome era Jesus.
Eles teriam uma festa surpresa pronta para ele. Era o
que estavam fazendo agora. Era por isso que tinham que
deixá-lo dormindo em sua caminha. Sua festa de aniversário
seria amanhã, embora ele fosse um bebê muito pequeno.
O dia de Natal era seu aniversário.
Ela estava se sentindo no topo do mundo, muito acima
de Rupert e Patricia e até mesmo da tia Úrsula. Ela estava
andando de cavalinho sobre os ombros do tio Timothy, com o
braço segurando firme em sua cabeça. Ela estava
empurrando o chapéu dele para frente de seus olhos, ele riu e
disse aos outros que o guiassem pela mão porque
estavaficando cego.
E então eles chegaramaos arbustos de azevinho, e ela foi
colocada com os outros no chão enquanto o tio Timothy
cortava alguns galhos dele para que levassem de volta à casa
e a decorassem para a festa. Somente as folhas de azevinho
eram afiadas ― ela deveria ter avisado, mas não pensou nisso
até que fosse tarde demais ― e ele gritou que tinha cortado

241
seu dedo e poderia sangrar até a morte. Ele colocou o dedo
em sua boca e sugou-o depois de ter tirado sua luva de
couro. Tia Úrsula disse-lhe para não ser tão tolo, que ele
estava assustando Caroline. Mas ela estava errada.
Caroline sabia que ele estava apenas fingindo.
E então eles se arrastaram um pouco mais na neve até
encontrarem um pinheiro e o tio Timothy cortou alguns dos
galhos menores que poderiam carregar.
― Não podemos cortar muito ―, disse ele, ― ou
destruiremos as árvores, ou então faremos com que elas
fiquem tão tortas que alguém sentirá pena delas e quererão
derrubá-las .
Rupert, com os braços estendidos curvou-se para trás
com os olhos vesgos e a língua para fora, fingiu ser uma
árvore torta e cambaleou quando alguém tentou cortá-lo. A
babá lhe teria dito de forma sisuda que se lembrasse de se
comportar direito e agisse de acordo com a sua idade. Mas tio
Timothy riu-se e Patricia também fingiu ser outra árvore
capenga.
Caroline também tentou. Foi divertido. Foi ainda mais
divertido quando o tio Timothy se juntou a eles e, de fato,
caiu na neve quando foi derrubado.
― Realmente ―, disse tia Úrsula, com as mãos nos
quadris, ― nunca assisti a um comportamento tão indigno em
toda minha vida .
Mas havia algo em seu rosto que tio Timothy também
viu. ― Você não pode nos repreender e rir ao mesmo tempo,

242
milady ―, disse ele. ― O efeito da repreensão fica
imediatamente anulado .
E então tia Úrsula riu e disse que tinha uns sobrinhos
muito estranhos eessa estranheza deve vindo do lado dele da
família. O tio Timothy disse que, por sorte, eles eram
afortunados então de não terem puxado totalmente pro lado
da família dela e, por um momento, Caroline ficou intrigada.
Havia algo por trás das palavras e do riso que ela não
entendia bem. Mas passou mesmo antes que pudesse pensar.
Tia Úrsula jogou uma bola de neve nele que jogou seu chapéu
de lado e a luta começou novamente. Só que desta vez não
jogaram bolas de neve no tio Timothy, mas pularam sobre ele
enquanto ele ainda estava no chão ― todos, exceto a tia
Úrsula ― e então, tentaram empurrá-lo e fazê-lo rolar na
neve.
Todos eles rolaram na neve. Caroline riu com tanta força
que pensou que não conseguiria mais recuperar o fôlego.
― Basta ―, disse tia Úrsula. ― Você é a criança mais
arteira de todos, Timothy .
Tio Timothy virou as costas para ela enquanto batia a
neve de suas roupas e virou o rosto para eles fazendo uma
careta, fazendo-os rir com mais força.
E então ele se lembrou do visco. O Natal simplesmente
não seria Natal sem visco, ele declarou, e então foram
caminhando para ver se encontravam, deixando o azevinho e
os ramos de pinheiro no chão para que pegassem mais tarde.
Mas o visco não era fácil de encontrar. Não crescia por si só,
como as outras vegetações. Caroline ficou ansiosa e segurou

243
a mão da tia Úrsula quando foi ela lhe ofereceu. Eles
precisavam encontrar alguns se fosse tão essencialpara o
Natal. A festa de amanhã deveria ser perfeita.
Mas tudo deu certo. Tia Úrsula viu alguns raminhos em
dois velhos carvalhos que cresciam lado a lado, e tio Timothy
e Rupert subiram para pegar. Caroline teve que esconder o
rosto contra o manto da tia Úrsula por medo de que
caíssemquando subiram. Foi um alívio quando eles desceram
novamente e trazendo o visco precioso com eles, então a festa
de aniversário do bebê não seria arruinada depois de tudo.
Tio Timothy a olhou e sorriu. ― O problema é ―, disse
ele, ― que nem todo o visco é visco de Natal. Eu terei que
experimentar para ver se esse funciona. .
Ela sentiu a ansiedade instantânea novamente. Se não
fosse um visco de Natal, onde encontrariam algum? Tio
Timothy inclinou-se para baixo, ergueu o braço acima de sua
cabeça com um galho do visco e beijou brevemente seus
lábios. Caroline olhou para ele. Seu nariz contra sua
bochecha estava frio.
― Sim ―, disse ele. ― Funciona perfeitamente.
Caroline suspirou aliviada.
― É claro ―, ele disse, virando-se e sorrindo para
Patricia, ― também é bom ter certeza. Um homem deve poder
beijar várias damas debaixo do visco, você vê. Deixe-me ver
se funciona com Patricia também .
Funcionou, era o visco de Natal, então. Mas talvez eles
devessem ter bastante certeza. Ela puxou o casaco do tio

244
Timothy e inclinou a cabeça para cima querendo olhar para
ele.
― Tente na tia Úrsula ―, ela sussurrou.
Ela deveria ter ficado quieta. Podia ver pela expressão do
rosto dele quando lhe olhou de volta que ele não queria tentar
isso com a tia Úrsula, e pôde ver também quando olhou para
sua tia Úrsula que ela parecia prestes a desmaiar. E se tinha
funcionado tanto com ela e com Patricia, deveria mesmo ser o
visco de Natal.
― Uma boa ideia ―, disse o tio Timothy por fim. ― É
preciso ser minucioso sobre assuntos tão importantes .
Tia Úrsula tinha se apoiado em uma das árvores, as
mãos firmemente contra o tronco. Caroline teve a impressão
de que ela teria gostado de se afundar dentro do tronco se
pudesse. Tio Timothy aproximou-se dela, levantou o visco
sobre suas cabeças e a beijou. Ele se demorou mais nesse
beijo do que tinha feito com ela e com Patricia, e quando ele
terminou, ele não se virou imediatamente ou disse qualquer
coisa.TiaÚrsula também não. Eles estavam olhando um nos
olhos do outro, e Caroline começou a se preocupar
novamente. Talvez o visco não funcionasse depois de tudo e
eles precisariam continuar a procurar. Mas tio Timothy se
virou e sorriu quando primeiro Rupert e então Patricia
começaram a rir baixinho.
― Bem ―, ele disse, ― Está resolvido. Certamente,
funciona. Não há dúvida sobre isso ― este é um visco de
Natal .

245
Mas sua voz saiu quase sem fôlego e os lábios da tia
Úrsula estavam tremendo e parecia que explodiria em
lágrimas a qualquer momento. Havia algo que Caroline não
entendia, mas não devia ser algo ruim, tinha certeza. E o
visco tinha funcionado.
Eles voltaram para casa então, carregando o máximo
que podiam. O tio Timothy voltaria para buscar o resto. Eles
iriam decorar a sala de desenho. Todos eles, Caroline
também. A tia Úrsula disse que a levantariam para que ela
pudesse ajudar a decorar a lareira e as pinturas com o
azevinho. Eles não disseram, como a babá costumava fazer,
que ela era muito pequena e só atrapalharia e que seria mais
rápido fazer as coisas enquanto ela ficava fora do caminho e
observava.
Ela pensou que a tia Úrsula e o tio Timothy eram as
pessoas mais maravilhosas do mundo. Ela os amava.
Estava feliz por eles serem a mamãe e o papai do bebê.
Ela estava feliz porque agora eles eram a mamãe e o papai
dela, de Rupert e de Patricia. Ela estava feliz por serem uma
família e que todos viveriam juntos para sempre e sempre.
― Amém ―, ela sussurrou.
Ela estava procurando por sanidade. Apenas dois dias
atrás, estivera viajando deLondres e ela tinha sido
inteiramente ela mesma. Estava confiante e satisfeita – tinha
apenas um problema para lidar. Ela sabia o que estava sendo
feliz com a forma como sua vida estava se desenvolvendo.
Dois dias atrás, ela estava vivendo sua vida de acordo com a
razão, e não com sentimentos. Viver sendo assaltada por

246
emoções era uma maneira terrível de viver. Ela parou de viver
dessa maneira anos antes, e estava mais feliz por isso.
Dois dias atrás, ela saiu da carruagem e se encontrou
em um mundo diferente. Talvez em um universo diferente.
Ela não estava mais certa de nada e sua mente estava em
uma grande turbulência a descontento. Ela não estava mais
certa de que sua vida anterior –anterior!Como se isso tivesse
sido anos atrás ― não era maçante e estéril. Neste mundo,
neste universo, ela estava vivendo muito pelas emoções; e
havia algo terrivelmente inquietante sobre isso. E algo
maravilhoso também. Ela descobriu que gostava de crianças,
afinal. Ela descobriu que amava essas três crianças. Não
podia suportar a ideia de se separar deles novamente depois
do Natal, e ainda assim ela tinha certeza de que ele lutaria
contra ela por eles.
Ela lutaria com ele, com unhas e dentes.
Ela tinha tido a certeza de que nenhum homem mais
poderia despertar seus sentimentos novamente, toda a
segurança de que nunca mais desejaria nenhum homem. E
ela gostou de viver dessa maneira. Sua vida estava sendo
pacífica há vários anos, especialmente desde a morte de
Carlyle.
Mas ele a tinha beijado debaixo do visco ao ar livre em
plena presença das crianças, e mesmo este novo universo
tinha virado de cabeça para baixo. Ao longo da caminhada de
volta para casae as duas horas que passaram decorando a
sala, além das horas extras que tinham passado desenhando
e pintando uma grande estrela de madeira para pendurar ao

247
lado do visco na frente do fogo, porque Caroline perguntou
sobre uma estrela com um olhar irresistivelmente desejoso
em seus olhos ― por tudo isso, ela estivera intensamente
consciente dele, de sua atratividade, de sua masculinidade. E
seu corpo estava reagindo a ele de uma maneira que
realmente não reagira desde Vauxhall. Mesmo na noite de
casamento, não tinha reagido assim.
Ela o queria. Ela queria sentir a boca dele sobre a dela
novamente. Ela queria sentir seu corpo contra o seu. Ela
queria suas mãos sobre ela. Ela o queria dentro de seu corpo.
Ela desejava isso, mesmo que suas únicas experiências de
intimidade ― durante o primeiro mês de seu casamento ―
tivessem sido decepcionantes, na melhor das hipóteses,
desagradáveis na pior delas.
Ela o queria. Mas ela não queria desejá-lo. Quando
estivesse de volta aseu próprio mundo ― nos próximos dias ―
ela não mais o desejaria. Sua vida voltaria ao normal.
Mas ela queria ter bebês próprios. Seu corpo doía pela
experiência da maternidade, o que não lhe acontecia por
quase nove anos. Mas já tinha vinte e sete anos. Era tarde
demais. Ela nunca seria mãe.
Ela queria um filho dele. Ele faria um pai tão
maravilhoso.
E então ela procurou a sanidade quando partiram para
a igreja durante a noite. Eles caminharam, já que a distância
não era grande e a neve ainda estava profunda. Rupert e
Patricia foram de mãos dadas com ela e Caroline nos braços

248
de Timothy, o seu casaco envolvendo-a lhe dando um calor
extra.
Se ela não se segurasse com firmeza à sanidade, pensou
enquanto se sentavam em um banco na frente e admiravam a
cena da natividade instalada diante do altar e ouviam os
sinos que soavam do campanário ― se ela não mantivesse
contato muito firme com a realidade, começaria a imaginar
que eles realmente eram uma família. Caroline tinha sido
transferida para seu colo. Patricia estava de um lado dela;
Rupert estava do outro lado de Timothy. Mas eles estavam
um ao lado do outro, seus ombros quase tocando. Ela podia
sentir o calor do corpo dele.
Ela podia sentir o cheiro de rapé e sabão dele.
O Natal sempre era um momento agradável porque era
um tempo de atividades sociais mais intensas e muita
comida. O serviço da igreja sempre agradável porque todos os
que ficaram na vila iriam para lá, a maioria deles na mesma
igreja, e eles sempre se encontravam lá fora para conversar
depois. Ela sempre gostou do feriado.
Ela nunca tinha percebido até agora que era um feriado
tão familiar. Que era sobre nascimento, maternidade e amor.
Sobre esperança e compromisso. Ela se deu conta disso esta
noite.
E a sanidade desapareceu sem deixar rastro.
Quando o serviço terminou, Caroline estava dormindo
contra o peito dela, a boca preguiçosa envolvendo o polegar
que ela tinha sugado, e Patricia estava dormindo contra o

249
braço dela. Rupert estava encostado a Timothy, mas estava
acordado e sentou-se valentemente.
― Você consegue levá-la? ―, Perguntou Timothy, virando
a cabeça, a poucos centímetros de distância da dela, e
acenando com a cabeça para Caroline. ― Levarei Patricia .
E então eles caminharam lado a lado, cada um
carregando uma criança, enquanto Rupert caminhava se
arrastando entre eles, negando firmemente que ele estivesse
cansado. E eles levaram as garotas até o berçário, e ela ficou
para ajudar a babá a trocá-las e colocá-las na cama. Ela as
beijou e sorriu com ternura para elas, mesmo que ambas
estivessem mais do que meio adormecidos.
― Boa noite, tia Úrsula ―, murmurou Patricia.
― A festa será amanhã? ― Caroline perguntou com sono.
Ela bocejou. ― O bebê ficará surpreso. Não ficará, mamãe?
Ela tocou as costas dos dedos no cabelo da criança e se
perguntou em que mundo maravilhoso de sonhos ela estava.
Um sentimento queimou e embargou sua garganta.
― Maravilhosamente surpreso ―, disse ela, antes de
entrar no quarto de Rupert para lhe desejar uma boa noite e
assegurar-lhe em resposta a sua pergunta que sim, ela
realmente acreditava que poderia haver presentes pela
manhã para suas irmãs. E talvez para ele também.
Ela encontrou Timothy no corredor e pegou o braço
oferecido. Mas ele a levou até a escada em vez de para seu
quarto, tarde da noite como estava.
― Ponche de Natal ―, disse ele, ― antes de nos
retirarmos .

250
Ela permitiu que ele a conduzisse para baixo sem
protestar. Mas havia uma decisão a fazer, ela sentiu.Em
breve. Sanidade ou loucura. Ela tentou dizer a si mesma para
ser forte e permanecer sã.
Mas ela queria muito a loucura. Loucura agora,depois e
sempre.

Ela tinha lhe ferido uma vez. Tinha doído muito. Ele se
perguntara por um tempo se conseguiria sobreviver, embora
tivesse percebido mesmo naquela época que o pensamento
era bastante ridículo. Uma pessoa não morria de coração
partido.
E a culpa tinha sido sua em grande medida. Ele tinha
gritado e brigado com ela quando Marjorie fugiu com seu
irmão, fazendo acusações que quase poderiam colocar seus
cabelos em pé, numa retrospectiva.
A diferença era que no caso dele, tinha sido apenas
temperamento fora do controle. No caso dela tinha sido uma
aversão real e indiferença. Ela se voltou para outro homem
como se o relacionamento deles nunca tivesse significado
nada, se casou e provavelmente viveu feliz nesse casamento
por sete anos.
Ele não se preocupou em lembrar a dor que ela havia
lhe causado. Era uma dor que havia prometido que nunca se
repetiria. Ele nunca se permitiria amar de novo.

251
Apenas há dois dias a simples visão dela o irritara. Ele
não queria nada com ela. E os dois dias haviam progredido de
forma nada simples. Eles haviam sido civilizados um com o
outro por causa das crianças, mas a hostilidade tinha
ocasionalmente escapado através da fina camada de
civilização.
Ele deveria manter seus lábios firmemente fechados até
que pudessem se afastar um do outro nos próximos dois dias.
Ele poderia ver as coisas com mais claramente quando
voltasse para seu próprio mundo ― com as crianças. Não
havia nada sobre a terra que o fizesse permitir que ela levasse
as crianças para longe dele.
Ele os amava.
Por que o diabo ele a trouxe para baixo com a ideia de
tomar ponche, ele se perguntou, quando já era depois da
meia-noite e não queria ficar sozinho com ela? Soltou-se do
seu braço quando entrou no salão, esqueceu-se do ponche,
que estava quente e convidativo numa tigela no aparador, e
cruzou a sala para ficar inconsciente sob o visco ― e a estrela
do Natal ― e descansando um cotovelo sobre o mármore da
lareira. Ele olhou para as chamas do fogo.
― Eles precisam de pais, Úrsula ―, ele se ouviu dizer. ―
Não uma mãe. Não um pai. Ambos. Pais. Plural.
― Sim ―, ela disse suavemente de algum lugar atrás
dele.
E ele sabia que havia saltado irrevogavelmente para o
desconhecido.
― Você e eu ―, disse ele.

252
― Sim.
Sua mão se abriu e fechou sobre a lareira. ― Não por
alguns meses com um e depois outros meses com outro ―,
disse ele. ― Com os dois em uma casa o tempo todo .
― Sim.
O que o diabo estava dizendo? O que diabos ele estava
fazendo? Mas fosse o que fosse, já era tarde demais para
voltar. Ele não sabia mais o que poderia dizer, exceto as
palavras finais. A última pergunta.
Mas eles se odiavam, ou não?
Ele virou a cabeça e olhou para ela. Ela estava parada
no meio da sala, com os braços soltos, nas laterais. Seu rosto
estava pálido. Seus olhos pareciam assombrados.
― Úrsula ―, ele perguntou a ela, ― por que você se
casou com ele? .
― Eu não sei. ― Ele a viu engolir. ― Houve aquele
escândalo do meu irmão. Poderia haver ostracismo. Você se
foi. Eu me vi tomada pela dor. E ele fez a proposta. Eu achei
que era uma boa ideia.
― Pobre demônio ―, disse ele, embora ainda não
pudesse sentir nada além de uma aversão intensa ao seu
falecido marido.
― Eu acredito que ele também me usou ―, disse ela. ―
Nós fomos merecedores um do outro. Não foi... bem, não foi
realmente um casamento. Não depois das primeiras semanas.
Não houve filhos. Não havia realmente ― ― ela corou ― ―
qualquer possibilidade disso .

253
Em sete anos, Carlyle se deitou com ela apenas nas
primeiras semanas? Por quê?
― Nós tivemos o que queríamos juntos ―, disse ela. ―
Nós dois conseguimos o que buscávamos naquele casamento,
eu acredito .
― O que você queria? ―, Perguntou-lhe.
― Paz ―, disse ela. ― Eu queria parar de sentir. Os
sentimentos me machucavam. O amor machuca.
― Sim ―, disse ele.
Os olhos dela estavam cheios de dor de repente. ― Você
disse que teria voltado para mim ―, disse ela. ― Você
realmente voltaria?
― É claro que eu voltaria ―, disse ele. ― Eu te amava.
Eu sofri como se estivesse no inferno em sua noite de
casamento.
― Ah. ― Ela cobriu o rosto com as mãos.
― Você realmente tinha acreditado que tudo entre nós
havia acabado? ― Ele perguntou a ela.
― Sim. ― Sua voz estava embotada e fraca contra suas
mãos.
― O que você sentiu? ― Ele sentia sua agonia.
― Eu não queria mais viver ―, disse ela. ― Eu não sabia
como conseguiria me arrastar pelos próximos cinquenta anos
ou mais de existência .
Houve um longo silêncio, que ele não tinha ideia de
como quebrar. Ela ficou onde estava e manteve as mãos
sobre o rosto.

254
― Úrsula ―, ele finalmente disse e esperou que ela
olhasse para ele com olhos tristes. Ele estendeu o braço livre.
― Venha aqui.
Ela veio devagar e não parou até que seu corpo
descansasse contra o dele e seu rosto estivesse aninhado nas
dobras do seu lenço. Ele a sentiu respirar profundamente e
soltar o ar devagar pela boca. Ele fechou os braços em volta
dela.
― Se fizermos o que você sugere por causa das crianças
―, disse ela, ― será apenas por causa delas. Ou talvez não? .
Ele entendeu a incerteza por trás da questão, a
necessidade de reafirmação. A necessidade de ele dizer as
três palavras mais difíceis de dizer. Embora não tenha tido
nenhum problema em pronunciá-las uma vez.
― As crianças são mais importantes do que você ou eu
―, disse ele. ― Suas necessidades de amor, segurança e pais
para se apoiar é quase uma coisa tangível. Nós podemos
fornecer essa necessidade, e nós devemos fazer isso .
― Sim ―, disse ela.
Ele abaixou a cabeça para esfregar o rosto contra os
cabelos dela. Era tão suave e sedoso como quando se
lembrava.
― Eles serão a nossa família ―, disse ela. ― Quase como
planejamos. Mas... .
― Mas? ―, Ele disse quando ela não continuou.
Suas mãos apertaram as lapelas de seu casaco.
Firmemente.

255
― Eu queria ter esperado que você voltasse pra mim ―,
disse ela. ― Eu queria ter sabido que você voltaria. Nós
poderíamos ter nos amado e ter uma família nossa. É tarde
demais agora.
― Muito tarde? ― Ele a afastou apenas o suficiente para
que pudesse olhar bem em seu rosto. ― Quantos anos você
tem, Úrsula? Vinte sete? Vinte oito?
― Vinte e sete ―, disse ela.
― Eu não sabia ―, disse ele, ― que os anos férteis de
uma mulher acabavam tão cedo. E não notei nenhuma
tendência à impotência em mim, mesmo que tenha passado
do meu trigésimo aniversário .
Ela corou e suas mãos alcançaram o botão superior de
seu colete. Assim como Caroline. Os olhos dela olhavam para
suas mãos.
Ele aproximou sua cabeça da dela. ― Talvez devêssemos
tentar ―, ele murmurou para ela, ― e descobrir se, mesmo em
nossas idades avançadas, podemos produzir uma criança
nossa. Devemos? .
Ela mordeu o lábio inferior.
― Ou crianças ―, disse ele. ― Devemos ser realmente
inteligentes e tentar produzir dois? Ou quatro? Um menino,
depois uma menina- .
― -e um menino e uma menina ―, ela terminou para ele
e riu suavemente, embora seus olhos e mãos ainda
estivessem no botão dele.

256
― Não torça isso tão forte ―, disse ele. ― Meu valete
ficará incrivelmente bravo se eu chegar com o colete no andar
de cima faltando um botão .
Suas mãos se acalmaram e ela colocou a recostou sua
testa nele.
― Timothy ―, ela disse, ― Estes dois dias foram os mais
felizes da minha vida .
Ele a ouviu com alguma surpresa. Mas ela estava certa.
Eles tinham sido os mais felizes dele também. E isso incluiu
todos os três meses entre seu primeiro encontro com ela e a
quebra de seu noivado.
― E os meus também ―, disse ele. Houve uma pequena
pausa. ― Devo dizer isso primeiro?
― Sim, por favor ―, disse ela. ― Eu me sentirei muito
tola se eu disser isso primeiro e descobrir que não era o que
você estava prestes a dizer .
― Mas está tudo certo que eu faça um tolo de mim
mesmo ―, disse ele. Timothy esfregou o maxilar contra o topo
da cabeça dela. ― Eu te amo, Úrsula .
― Eu te amo, Timothy ―, ela disse tão rapidamente que
eles terminaram de dizer quase juntos.
― Você se casará comigo? ―, Perguntou ele. ― Você quer
que eu me ponha de joelhos?
― Não ―, disse ela. ― Que tolo! E sim. Não sobre se pôr
de joelhos, e sim sobre me casar com você. Vamos nos
arrepender, você acha? Quando o Natal acabar e estivermos
de volta à nossas casas e tudo isso for uma lembrança?

257
― As crianças não desaparecerão quando o Natal acabar
―, disse ele. ― E meu amor também não. Ou o seu. Nunca foi
embora, não é, assim como o meu também não .
― Não. ― Ela suspirou e levantou o rosto finalmente
para olhar para ele. Oh, tão perto. ― Nunca deixei de te amar.
A única maneira de lidar com isso era matar todos os
sentimentos em mim. E convencer-me de que o que eu senti
― ou não sentia ― era paz e contentamento. Eu nunca parei
de te amar. E nunca vou.
Ele engoliu em seco. Se isso fosse uma ilusão, ele nunca
mais queria o mundo real de volta. Fechou a pouca distância
que separava suas bocas.
Eles gemeram em uníssono e então tiveram que se
afastar para rir juntos. E olhar para os olhos um do outro.
E para retornar ao sério negócio de abraçar.
Muito tempo depois ele levantou a cabeça e suspirou. ―
Eu acredito que é melhor irmos para a cama ―, disse ele. ―
Separadamente, embora o fato possa me matar e a você
também se eu estiver lendo os sinais corretamente. Mas seria
de mau gosto fazermos algo aqui ― uma noção que passou
por ambas as mentes nos últimos minutos. E seria de mau
gosto compartilhar a mesma cama na casa de nossos
sobrinhos. Você pode esperar até a nossa noite de núpcias?
― Quanto tempo? ―, Perguntou ela.
― Aproximadamente vinte e quatro horas após
encontrarmos o meio mais rápido de voltar para Londres ―,
disse ele.
― Você vai atiçar seus cavalos? ―, Perguntou ela.

258
― Na verdade ―, ele disse, ― eu vou fazê-los criar asas .
Ele tocou o nariz dela com o dele ambos riram do
absurdo.
― Vamos fazer amor pela primeira vez na nossa noite de
núpcias ―, disse ele. ― Durma agora e pelas próximas noites,
enquanto você pode. Pois te manterei muito ocupada depois
que estivermos casados.
― Você vai? ― Ela enterrou seu rosto contra o lenço dele
mais uma vez. ― Quão maravilhoso isso soa. Promete?
Ele riu e abraçou-a firmemente contra ele antes de
soltá-la e oferecer seu braço.
― Propriedade, milady ― disse ele. ― Propriedade.
― Sim, milorde ―, ela disse mansamente, colocando o
braço sobre o dele.
Eles caminharam para o andar de cima em silêncio. Ele
a beijou diante da porta do quarto e, relutantemente, afastou-
se dela. Os olhos dela brilhavam tão cheios de amor que, por
um momento, ele sentiu seus joelhos enfraquecerem.
― Feliz Natal, Timothy ―, disse ela.
― Feliz Natal, Úrsula ―, disse ele, fazendo-lhe uma meia
reverência. ― O visco funciona bastante bem, por sinal .
― Meu coração.
― Meu amor.
Eles riram silenciosamente. Uma risadinhaquase igual
às risadas das crianças no início do dia. Eles estavam sendo
infantis. Parecia maravilhoso. Ele lhe assoprou um beijo. Ela
lhe mandou um de volta.
Ele abriu sua própria porta e entrou.

259
― Basta ―, disse ele.
― Concordo.
Ela fechou a porta antes dele.

A babá ajudou-as a se vestirem e escovou os cachos dela


e estava penteando o cabelo de Patricia com mais esmero. Ela
estava dizendo a Patricia que parasse de se mexer tanto, mas
estava dizendo isso em sua voz amável. Patricia estava muito
animada para ficar quieta. Caroline também estava excitada,
mas conseguia manter a emoção profundamente dentro de si
mesma para que ninguém a chamasse de boba.
E então Rupert entrou no quarto delas. Ele estava
vestido, de banho tomado e penteado e estava prestes a
explodir de emoção. Geralmente não era permitido a ele
entrar no quarto das meninas. Não era adequado, a babá
sempre dizia. Mas nada foi dito hoje. A babá até sorriu para
ele quando lhe deu bom dia.
― Você acha, Rupert? ― Patricia perguntou, seus olhos
encontrando os dele no espelho. ― Você acha que vai ter
alguma coisa?
― Não tenho certeza ―, disse Rupert. Ele adotou sua voz
de menino crescido. ― Eu não ligo, conquanto Caroline
receba pelo menos um. E espero que haja um para você
também, Patricia.

260
― Oh, mas eu não quero, a menos que haja um para
você também ―, disse ela. ― Caroline é a mais importante.
Ela tem apenas quatro anos .
Caroline sabia que eles estavam falando sobre os
presentes. Mas ela realmente não se importava se não
houvesse nenhum. Não era seu aniversário, afinal, mas o do
bebê. E eles haviam decorado a sala de estar no andar de
baixo para ele como uma surpresa. Eles iriam levá-lo para lá
depois e todos iriam desejar-lhe um feliz aniversário. E todos
iriam beijá-lo e arrulhar sobre ele. Ela iria girar a estrela de
Natal para ele procurar. E mamãe e papai estariam lá, e ele
ficaria seguro.
Ela ficaria segura. Ela já estava. Papai havia dito que a
manteria segura para sempre e sempre. Mas o bebê não o
ouviu.
― Tia Úrsula disse que estava quase certa de que
haveria ―, disse Rupert. Sua voz era de menino de novo, e
estava trêmulaentão Caroline sabia que ele queria muito que
tivesse presentes. ― Para todos nós.
― Oh, ― Patricia disse em um suspiro. ― Você acha,
Rupert? Você acha que ela sempre está certa?
― Eu acho que talvez sim ―, disse Rupert
cuidadosamente.
E então a porta se abriu novamente e tia Úrsula e tio
Timothy estavam lá, de mãos dadas e sorrindo. A babá deixou
o quarto em silêncio.
― Eu acho ―, disse a tia Úrsula depois de terem trocado
saudações, ― que é melhor vocês irem até a nossa sala de

261
estar. Existem alguns pacotes estranhos lá embaixo. E cada
um de seus nomes parece estar em mais de um deles.
Patricia gritou.
Rupert saltitou três vezes sem sair do lugar.
― Claro, só se estiverem interessados... ― Tio Timothy
disse. Ele estava sorrindo.
Rupert e Patricia colidiram na porta e desapareceram de
vista. Tia Úrsula riu.
― Venha, carinho ―, ela disse e estendeu a mão para
Caroline.
Mas Caroline não foi. ― Eu tenho que ir ao berçário ―,
disse ela. ― Vocês podem ir e eu irei depois .
Tanto a tia Úrsula quanto o tio Timothy a observaram
atentamente. Ainda estavam de mãos dadas, percebeu
Caroline. Pareciaalgo muito legal.
― Muito bem ―, disse o tio Timothy. ― Vamos segurar as
tropas lá embaixo até você chegar .
Então, Caroline foi até o berçário e entrou na ponta dos
pés e se inclinou sobre a caminha. O bebê estava olhando
para ela, uma das mãos acenando no ar. Ela sorriu para ele e
ergueu-o cuidadosamente em seus braços. Ela o levou até o
andar de baixo, com os braços estendidos cuidadosamente na
frente dela. Ela desceu as escadas lentamente, um degrau de
cada vez, de modo que ela não tropeçasse ou caísse. Eles
deixaram a porta da sala de estar aberta para ela.
― Aqui está ela ―, disse tio Timothy. Ele estava de pé
junto ao fogo, debaixo do visco. Tia Úrsula estava ao lado
dele.

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― Caroline. Olhe. ― A voz de Patricia ainda era um
guincho.
― Presentes ―, Rupert exclamou na voz mais bonita de
menino. ― Para todos nós, Caroline .
Mas Caroline entrou na sala e não olhou nem para a
direita nem para a esquerda.
― O que foi? ―, Tia Úrsula perguntou gentilmente.
― Você machucou suas mãos? ―, Perguntou o tio
Timothy, um olhar de preocupação em seu rosto.
― Eu trouxe o bebê ―, disse Caroline.
― O bebê. ― Tia Úrsula parecia não ter entendido. Ela
olhou para o tio Timothy e ele olhou para ela.
― É a festa de aniversário dele ―, disse Caroline. ― Nós
decoramos a sala para ele. Olha, ele está acordado. Ele quer a
mamãe .
― Mamãe? ― O tio Timothy ficou intrigado por um
momento mais, mas apenas por um momento. Caroline pôde
ver que ele entendeu então, como sabia que o faria. E tia
Úrsula também. Ela se inclinou e esticou os braços.
― É melhor você entregar ele a mim, então ―, disse ela.
― Oh, mas quelindo bebê. ― Ela pegou o bebê
cuidadosamente em seus próprios braços e sorriu para ele e o
balançou. ― Olhe para ele, Timothy .
― Ele não sabe que tem uma mamãe e um papai e que
ele será mantido seguro para sempre e todo sempre ―,
explicou Caroline. ― Mas agora ele saberá .
Ela ficou surpresa quando viu que a tia Úrsula estava
chorando e que tio Timothy estava piscando freneticamente

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os olhos. Mas não eram lágrimas tristes. Ela podia sentir
isso.
― Sim, agora ele saberá ―, disse o tio Timothy. ― Ele
saberá que tem uma mamãe e papai e uma casa onde eles
estarão sempre com ele até que ele seja um homem. E o
amarão todos os dias de sua vida.E seu irmão e suas irmãs
também. Sua mamãe e seu papai vão se casar e viver juntos
para sempre para que sua família estejasempre unida .
― Nós realmente vamos morar com vocês? ―, Disse
Rupert. ― Sempre? Realmente não iremos para um orfanato?
― Nós vamos estar com vocês e brincar com vocês todos
os dias? ― Patricia perguntou.
A tia Úrsula assentiu e sorriu. Ela teria limpado suas
lágrimas, Caroline sabia, se ela não estivesse segurando o
bebê.
― Qual o nome do bebê? ― Patricia perguntou
educadamente.
― Jesus,é claro ―, tia Úrsula disse antes que Caroline
pudesse abrir a boca para falar.
― Sob a estrela de Belém ―, tio Timothy disse, olhando
para cima, ― onde alguém esperaria encontrá-lo .
― Caroline tem tanta imaginação ―, disse Rupert com
carinho, mas em tom de desculpas. ― Ela crescerá e parará
com isso .
― Espero que não ― ― disse tia Úrsula com um sorriso.
― E como este bebê é pequeno demais para abrir
presentes ou até mesmo apreciá-los ―, disse o tio Timothy, ―
O que vocês acham, crianças, de abrirem seus pacotes?

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Rupert e Patricia se dirigiram para a borda da janela e
aos pacotes com algazarra prazerosa. Caroline esperou
alguns minutos para assistir tio Timothy sorrir para os olhos
da tia Úrsula e se inclinar cuidadosamente sobre o bebê para
beijá-la nos lábios.

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Figura 1 ― Touca de renda

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Figura 2 ― Meninos de rua ― conhecidos
como ― street urchin

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Figura 3 Beijo sob o visco

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