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Para Laura, em memória dos velhos tempos.

Nossos parentes
construíam templos para neles
aos deuses que conhecemos orar;
mas eram as pequenas casas adoráveis
que eles escolhiam para morar.
Rupert Brooke*

* Tradução livre de versos de: “The song of the Pilgrims”, do poeta inglês Rupert Chawner
Brooke (1887-1915). (N.T.)
–F inalmente, não preciso mais lidar com a geometria,
nem para aprender, nem para ensinar – disse Anne
Shirley, com um ar ligeiramente vingativo, enquanto
colocava em um baú de livros um volume já bem desgastado de
Euclides.* Em seguida, fechou a tampa triunfalmente e sentou-se
sobre a arca, olhando para Diana Wright, no outro lado do quarto do
sótão leste de Green Gables. Os olhos de Anne estavam
acinzentados como o céu da manhã.
O cômodo era pouco iluminado, sugestivo e encantador como
todos os sótãos deveriam ser. Pela janela aberta, perto de Anne,
entrava o ar doce, perfumado e morno da tarde de agosto. Lá fora,
os galhos dos álamos balançavam e farfalhavam, movidos pelo
vento. Mais adiante ficavam o bosque – por onde a Vereda dos
Apaixonados serpenteava sedutoramente – e o antigo pomar de
macieiras, que ainda exibia generosamente seus frutos rosados.
Acima de tudo isso, uma cordilheira de nuvens brancas contrastava
com o céu anil. Pela outra janela avistava-se a distância um mar
azul salpicado de branco: o belo Saint Lawrence Gulf, no qual
flutuava, como uma joia magnífica, a ilha Abegweit, cujo antigo
nome indígena, mais suave e doce, tinha sido abandonado para
ceder lugar ao menos charmoso título de Prince Edward Island.
Diana Wright, três anos mais velha que na última vez em que a
vimos, havia adquirido uma aparência levemente matronal.
Entretanto, seus olhos permaneciam tão negros e brilhantes, suas
bochechas tão coradas e suas covinhas tão fascinantes quanto nos
velhos tempos, naquele dia em que ela e Anne Shirley prometeram
solenemente, no jardim de Orchard Slope, que seriam eternamente
amigas fiéis.
Ela segurava nos braços uma pequena e adormecida criatura de
cachos negros que há dois anos felizes era conhecida como “a
pequena Anne Cordelia”. Os moradores de Avonlea sabiam o
motivo de Diana ter escolhido “Anne”, claro, mas todos ficaram
intrigados com “Cordelia”. Nunca tinha havido ninguém com esse
nome entre os familiares e amigos dos Wright ou dos Barry. E
quando a senhora Harmon Andrews disse supor que Diana tinha
encontrado esse nome em algum romance fajuto e que se
perguntava por que Fred havia sido insensato o suficiente para
permitir que o desse a sua filha, as duas amigas apenas se
entreolharam e sorriram: ambas sabiam bem a razão de a pequena
Anne Cordelia ter sido batizada assim.
– Você sempre detestou geometria – Diana comentou,
lembrando-se do passado. – E eu diria até que está bem contente
por não lecionar mais.
– Sempre gostei de dar aulas, Diana, exceto as de geometria.
Esses últimos três anos em Summerside foram muito prazerosos.
Quando voltei para casa, a senhora Harmon me avisou que,
contrariando minhas expectativas, era bem provável que eu não
achasse a vida de casada muito mais interessante que a de
professora. É evidente que ela compartilha da opinião de Hamlet de
que pode ser melhor aceitarmos os males conhecidos em vez de
buscarmos refúgio naqueles sobre os quais nada sabemos.
A risada de Anne, tão jovial e irresistível quanto antigamente, mas
com um acréscimo de maturidade e doçura, atravessou as paredes
do sótão. Marilla, no andar de baixo preparando uma conserva de
ameixas, escutou e sorriu. Depois, suspirou ao pensar que nos
próximos anos aquela risada tão querida raramente ecoaria nos
cômodos de Green Gables.
Nada em toda a sua vida tinha trazido mais felicidade a Marilla do
que saber que Anne se casaria com Gilbert Blythe. Contudo, toda
alegria traz sempre consigo uma sombra de pesar. Durante os três
anos que passou em Summerside, Anne tinha estado
frequentemente em Avonlea, nas férias ou em fins de semana, mas
a partir de agora o máximo que se podia esperar eram duas visitas
por ano.
– Você não pode deixar que as coisas que a senhora Harmon diz
a preocupem – afirmou Diana, com a segurança tranquila de quem
já tinha quatro anos de casada. – Obviamente, a vida conjugal tem
seus altos e baixos; não se deve ter a expectativa de que tudo vai
sempre correr maravilhosamente bem. Mas posso lhe garantir,
Anne, que é uma vida feliz se você está casada com o homem
certo.
Anne reprimiu um sorriso. Os ares de vasta experiência de Diana
sempre a divertiram. “Ouso pensar que também vou assumi-los
quando já estiver casada por quatro anos”, ela pensou. “Se bem que
com certeza meu senso de humor vai me poupar disso.”
– Vocês já sabem onde vão morar? – Diana perguntou,
acariciando a pequena Anne Cordelia com o gesto maternal
inimitável que sempre despertava no coração de Anne – cheio de
fantasias e esperanças doces e nunca relatadas – uma emoção que
era, em parte, uma felicidade sublime e, ao mesmo tempo, uma dor
estranha, indefinível.
– Sim, era isso que eu queria contar quando telefonei e pedi que
você viesse aqui hoje. A propósito, ainda não me acostumei com a
ideia de que agora temos telefones em Avonlea. Isso parece tão
absurdamente inovador e moderno para um lugar antigo e
adoravelmente pacato como este!
– Podemos agradecer à Sociedade para Melhorias em Avonlea –
Diana explicou. – Nós nunca teríamos conseguido as linhas se ela
não tivesse assumido e lutado até o fim por esse progresso. Houve
bastante oposição, e muitos moradores tentaram desencorajar os
membros da sociedade. Contudo, eles se mantiveram firmes em seu
propósito. Você realizou algo esplêndido para Avonlea quando
fundou essa organização, Anne. Como nos divertimos nas reuniões!
Algum dia você vai se esquecer do azul profundo e brilhante com
que o clube foi pintado, ou do plano de Judson Parker para colocar
anúncios de pílulas e curativos ao longo de sua cerca?
– No caso do telefone, tenho dúvidas se sou totalmente grata à
Sociedade para Melhorias – disse Anne. – Ora, sei que ele é muito
conveniente... Bem mais que nosso antigo método de nos
comunicarmos por flashes de luz de vela! E, como a senhora Rachel
costuma dizer, “Avonlea precisa acompanhar a procissão; essa é a
verdade”. No entanto, de alguma forma, sinto-me como se não
quisesse que nossa comunidade fosse estragada por aquilo a que o
senhor Harrison, quando quer ser espirituoso, se refere como
“inconveniências modernas”. Eu gostaria que ela permanecesse
para sempre como era nos velhos e bons tempos. Mas entendo que
é um desejo tolo, sentimental, impossível, e que agora preciso ficar
sábia, prática e realista. O telefone, como o senhor Harrison admite,
é “uma coisa terrivelmente boa”, apesar de estarmos cientes de que,
provavelmente, uma meia dúzia de pessoas esteja sempre ouvindo
atentamente nossa conversa.
– Esse é o lado ruim – Diana suspirou. – É tão irritante perceber
que há vizinhos escutando tudo o que falamos ao telefone! Dizem
que a senhora Harmon Andrews insistiu que seu aparelho fosse
instalado na cozinha unicamente para que ela possa ouvir todas as
conversas enquanto prepara as refeições. Hoje, quando você me
ligou, escutei nitidamente aquela batida esquisita do relógio dos
Pye. Certamente Josie ou Gertie estavam ouvindo o que dizíamos.
– Então foi por isso que você indagou se tínhamos um relógio
novo em Green Gables?! Eu não havia entendido sua pergunta.
Escutei um clique imediatamente depois que você falou isso.
Suponho que tenha sido o telefone dos Pye sendo desligado com
um vigor profano. Bem, vamos deixá-los de lado. Como a Sra.
Rachel Lynde diz, “Pye eles sempre foram, e Pye eles sempre serão
até o fim do mundo, amém”. Quero falar de coisas mais agradáveis.
Está tudo resolvido quanto a onde minha casa nova vai ser.
– Oh, Anne, onde? Espero que seja perto daqui.
– Nã... não, esse é o único inconveniente. Gilbert vai se
estabelecer em Four Winds Harbor... a quase cem quilômetros
daqui.
– Cem?! Ora, poderia muito bem ser mil – Diana suspirou
novamente. – Não faria diferença, pois o mais longe que posso ir
agora é até Charlottetown.
– Pois você vai ter de ir a Four Winds. É o porto mais bonito de
toda a ilha. Atrás dele tem uma vila chamada Glen Saint Mary, onde
o doutor David Blythe vem atendendo pacientes há cinquenta anos.
Ele é tio-avô de Gilbert e vai se aposentar. Gilbert vai herdar seu
consultório. Porém, o doutor Blythe quer continuar morando na
mesma casa, e por isso vamos precisar encontrar outra para nós.
Ainda não sei como nem onde ela vai ser, mas tenho uma pequena
casa dos sonhos, toda mobiliada, em minha imaginação... Um
pequeno e adorável castelo na Espanha.
– Para onde vocês vão viajar na lua de mel?
– Lugar nenhum. Oh, não faça essa expressão de pavor, Diana
querida. Parece uma atitude da senhora Harmon Andrews. Ela, sem
dúvida nenhuma, vai me olhar assim e depois observar
arrogantemente que as pessoas que não podem arcar com as
despesas de uma viagem de “niúpcias” têm de ser sensatas e abrir
mão desse luxo. Porém, logo em seguida vai me lembrar de que
Jane passou sua lua de mel na Europa. Pois eu quero a minha em
Four Winds, na casa de meus sonhos.
– Você decidiu mesmo não ter nenhuma madrinha?
– Não há nenhuma disponível. Madrinhas têm de ser solteiras,
não é? Ora, você, Phil e Priscilla se casaram antes de mim, e Stella
mora e leciona em Vancouver. Não tenho outra “alma irmã”, e não
quero uma madrinha qualquer.
– Mas vai usar um véu, não vai? – Diana perguntou
ansiosamente.
– Sim, claro. Sem um véu eu não me sentiria uma noiva
autêntica. Nunca vou me esquecer de quando eu disse a Matthew,
naquele dia em que ele me trouxe para Green Gables, que não tinha
nenhuma esperança de ser uma noiva no futuro, porque eu era tão
sem graça que ninguém jamais iria querer casar comigo... a não ser,
talvez, um missionário estrangeiro. Eu achava que os missionários
não podiam ser muito exigentes quanto à aparência de suas
esposas, já que elas teriam de arriscar sua vida entre canibais.
Diana, você precisava ter visto o missionário estrangeiro com quem
Priscilla se casou. Ele é tão bonito, dono de um olhar tão
impenetrável quanto aqueles com quem planejávamos nos casar
nos devaneios que tínhamos antigamente, Diana. É o homem mais
bem-vestido que já conheci, e venera a “beleza sublime e dourada”
de Priscilla. E, além do mais, é lógico que não há canibais no Japão.
– Anne, seu vestido de noiva é um sonho! – Diana exclamou,
encantada. – Você vai parecer uma verdadeira rainha com ele... É
tão alta e esbelta! Como consegue se manter magra assim? Estou
mais gorda do que nunca... Logo, logo, não terei mais cintura
nenhuma.
– Parece que a magreza é uma predestinação – disse Anne. –
Em todo caso, pelo menos a senhora Harmon Andrews não pode
falar com você o que ela me disse quando voltei de Summerside:
“Bem, Anne, você continua magricela como sempre”. Acho até
romântico ouvir que sou “esbelta”, mas “magricela” não soa nada
agradável.
– A senhora Harmon tem feito comentários a respeito de seu
enxoval. Ela admite que é tão lindo quanto o de Jane, embora faça
questão de ressaltar que a filha se casou com um milionário e que
seu noivo é “apenas um pobre médico jovem, sem nenhuma posse”.
Anne riu.
– Meus vestidos são lindos. Gosto de coisas belas. Eu me lembro
do primeiro vestido bonito que tive... Ele tinha um tom de marrom
suave, e o tecido era macio e brilhante como a seda. Foi Matthew
que me deu, para eu ir ao nosso recital na escola. Todas as roupas
que tive antes disso eram muito feias. Naquela noite, me senti como
se estivesse entrando em um mundo novo.
– Foi a noite em que Gilbert recitou “Bingen no Reno”** e olhou
para você quando disse o verso: “E existe outra, que não é uma
irmã”. Você ficou furiosa porque ele pegou a rosa que tinha caído de
seu cabelo e pôs no bolso do casaco! Você não tinha nenhuma ideia
de que um dia se casaria com ele.
– Bem, esse é outro tipo de predestinação – Anne riu enquanto
elas desciam a escada.
H
avia mais emoção e entusiasmo no ar de Green Gables do
que já se vira em toda a sua história. Até Marilla estava tão
empolgada que não conseguia evitar que a emoção
transparecesse em sua fisionomia, e isso era algo realmente
extraordinário.
– Nunca tivemos um casamento nesta casa – ela falou com a
senhora Lynde de um jeito que deu a impressão de que tentava se
desculpar. – Quando eu era criança, ouvi um velho pastor dizer que
uma casa só se torna um lar verdadeiro depois de consagrada por
um nascimento, um casamento e uma morte. Houve mortes aqui...
Meus pais faleceram em Green Gables, assim como Matthew. E até
já tivemos um nascimento também. Há muito tempo, logo que
mudamos para cá, contamos por algum tempo com um casal de
empregados, e a mulher teve um bebê aqui. Porém, nunca foi
realizado nenhum casamento nesta casa. É tão estranho pensar
que Anne está se casando! De algum jeito, para mim ela ainda é
aquela criança que Matthew trouxe da estação há quatorze anos.
Não me convenço de que agora Anne é adulta. Nunca vou me
esquecer do que senti quando vi Matthew chegar com uma menina.
Às vezes me pergunto o que foi feito do garoto que teríamos criado
se não tivesse havido aquele engano. Gostaria de saber que destino
ele teve.
– Bem, foi um erro afortunado – a senhora Rachel Lynde
reconheceu –, embora tenha havido um tempo em que eu não
pensava assim, como no dia em que vim até aqui para conhecê-la e
ela nos brindou com aquela cena terrível. Muitas coisas mudaram
desde então, essa é a verdade.
A senhora Rachel suspirou e depois se empolgou novamente.
Quando se tratava de casamentos, ela estava sempre pronta a
deixar os antigos conflitos adormecidos no passado.
– Vou dar duas de minhas colchas de tricô para Anne –
prosseguiu. – Uma com listras cor de tabaco e outra com estampa
de flores de macieira. Ela me disse que essas colchas estão sendo
muito valorizadas de novo. Bem, estando ou não na moda outra vez,
as colchas com estampas de folhas são o que há de mais bonito
para cobrir a cama de um quarto de hóspedes, essa é a verdade.
Preciso lavá-las logo; elas permanecem fechadas em sacos de
algodão desde que Thomas morreu e, sem dúvida, devem estar
com uma cor horrorosa. Porém, ainda falta um mês, e deixá-las
expostas ao sol e ao orvalho vai trazer resultados maravilhosos.
– Apenas um mês! – Marilla suspirou e disse, orgulhosa: – Vou
presentear Anne com aquela meia dúzia de tapetes de fios
trançados que tenho guardados lá em cima. Nunca imaginei que ela
iria querê-los... São bem antiquados, e hoje em dia as pessoas
parecem se interessar apenas por tapetes bordados. No entanto,
Anne me pediu para ficar com eles, dizendo que os prefere a
quaisquer outros para colocar no chão de sua casa nova. Os
tapetes são realmente lindos. Quando eu os fiz, criei os fios com os
retalhos mais bonitos que eu tinha, e, além disso, eles foram muito
úteis nos invernos mais recentes. Vou preparar também um estoque
de geleia de ameixa para ela que vai dar para pelo menos um ano.
É tão estranho pensar que aquelas ameixeiras não floresceram por
três anos, tanto que cheguei a pensar em cortá-las, e que agora,
nesta última primavera, ficaram cobertas de flores brancas e deram
uma safra de ameixas que não me lembro de ter visto outra tão
grande em Green Gables.
– Bem, temos de ficar felizes e gratas porque finalmente Anne e
Gilbert vão se casar. Sempre orei para que isso acontecesse – disse
a senhora Rachel, com o tom de voz de quem tem a agradável
certeza de que suas preces tinham sido extremamente valiosas. –
Foi um grande alívio quando ela não aceitou se casar com aquele
rapaz de Kingsport. Sei que não podemos deixar de pensar que Roy
Gardner é muito rico, e Gilbert é pobre... Pelo menos por enquanto.
Contudo, ele é um garoto daqui, de nossa ilha.
– Ele é Gilbert Blythe! – Marilla exclamou, satisfeita.
Marilla morreria sem expressar o pensamento que lhe vinha à
mente, desde que Gilbert era uma criança, sempre que ela o via ou
pensava nele: a ideia de que, se não fosse por seu orgulho
obstinado, muito, muito tempo atrás, ele poderia ter sido filho dela.
Marilla sentia que, de alguma maneira estranha, o casamento de
Gilbert com Anne corrigiria um erro antigo. Algo magnífico tinha
dado lugar àquela amargura horrível do passado.
Anne, por sua vez, estava tão feliz que quase sentia medo. De
acordo com uma antiga superstição, os deuses não gostam de ver
mortais excessivamente satisfeitos. O que não se pode negar, no
entanto, é que pelo menos alguns seres humanos não gostam
mesmo disso. Durante um crepúsculo arroxeado, duas pessoas
desse tipo foram a Green Gables com a intenção de desiludir Anne.
Afinal, se a moça achava que casar-se com o jovem doutor Blythe
era como receber um grande prêmio, ou se pensava que ele ainda
era tão apaixonado por ela quanto poderia ter sido na época em que
era inexperiente e despreocupado, obviamente era uma obrigação
mostrar-lhe o lado desagradável de sua situação.
Na verdade, essas duas dignas senhoras não eram inimigas de
Anne; ao contrário, realmente gostavam muito dela e a teriam
defendido do mesmo modo que fariam com seus próprios filhos
caso qualquer outra pessoa a atacasse. O fato é que a natureza
humana nem sempre é coerente.
A senhora Inglis – “nascida Jane Andrews”, conforme o periódico
Daily Enterprise – acompanhou sua mãe e a senhora Jasper Bell
nessa visita. Mas em Jane a bondade humana não havia sido
estragada por anos de conflitos matrimoniais, portanto seus
comentários foram mais amáveis e sensatos. Apesar de haver se
casado com um milionário – como diria a senhora Rachel Lynde –,
sua vida conjugal era feliz. Ela não tinha sido corrompida pela
riqueza: ainda era tão serena e meiga (e suas bochechas, tão
rosadas) quanto a Jane do antigo quarteto. Alegrava-se com a
felicidade de sua velha amiga e se interessava entusiasticamente
por todos os pequenos detalhes do enxoval de Anne, como se ele
pudesse ser comparado ao seu próprio, com todo aquele esplendor
de joias e sedas.
Jane não era uma pessoa brilhante e provavelmente nunca havia
feito uma observação que valesse a pena ser ouvida. Entretanto,
jamais disse algo que ferisse os sentimentos de alguém, o que pode
até ser uma característica negativa, mas, por outro lado, também
rara e invejável.
– Então, por fim, Gilbert não desistiu de você?! – disse a senhora
Harmon Andrews, acrescentando propositalmente um tom de
surpresa à sua fala. – Bem, os Blythe geralmente fazem o que
prometem, haja o que houver. Deixe-me pensar... você está com
vinte e cinco anos, não é, Anne? Quando eu era garota, essa idade
era considerada o primeiro marco. Porém, você tem a aparência
bastante juvenil; isso é comum nas pessoas ruivas.
– O cabelo ruivo está muito na moda hoje em dia – Anne
respondeu, tentando sorrir, mas falando friamente. A vida havia
desenvolvido nela um senso de humor que a ajudava a enfrentar as
dificuldades, embora até aquele dia nada tivesse conseguido
fortalecê-la contra as referências ao seu cabelo.
– Sim, está... Está mesmo – a senhora Harmon admitiu. – Nunca
há como prever que rumos estranhos a moda vai tomar. Bem, Anne,
seu enxoval está muito bonito e muito adequado à sua posição na
sociedade, não acha, Jane? Espero que você seja verdadeiramente
feliz. Tenha certeza de que pode contar com meus melhores votos
de sucesso em seu casamento. Um noivado longo não costuma
acabar bem, contudo é lógico que em seu caso essa espera não
poderia ter sido evitada.
– Gilbert parece novo demais para um médico. Receio que as
pessoas não tenham muita confiança nele – a senhora Jasper Bell
falou, melancólica.
Em seguida se calou completamente, como se já tivesse
cumprido o que considerava ser seu dever e estivesse com a
consciência tranquila a partir daquele momento. Ela era uma
daquelas mulheres que sempre usavam uma pluma preta, fina e
comprida no chapéu, e mechas de cabelo soltas sobre a nuca.
O encantamento aparente de Anne por seu belo enxoval pareceu
ter sido temporariamente encoberto por uma nuvem negra, porém a
felicidade profunda que a moça trazia em seu coração logo impediu
que esse prazer fosse perturbado. E as pequenas “ferroadas” dadas
pelas madames Bell e Andrews foram totalmente esquecidas assim
que Gilbert chegou e os dois caminharam ao longo da margem do
riacho, entre as bétulas, que eram bem novas quando Anne chegou
a Green Gables pela primeira vez, mas agora pareciam colunas
altas de marfim em um palácio de fadas, crepúsculo e estrelas. À
sombra dessas árvores, o casal conversou apaixonadamente a
respeito de seu novo lar e da nova vida como marido e mulher.
– Encontrei um ninho de amor para nós, Anne.
– Onde? Espero que não seja no meio da vila; eu não gostaria
nem um pouco se fosse.
– Não é. Não há nenhum imóvel disponível por lá. Vamos morar
em uma pequena casa branca na costa, perto do porto. Fica no
meio do caminho entre Glen Saint Mary e o pontal de Four Winds. É
um pouco fora de mão, mas quando instalarmos um telefone isso
não vai ser um problema. O lugar é lindo! Da casa podemos ver o
pôr do sol e, diante dela, o grande porto azul. As dunas de areia não
ficam muito distantes; os ventos marítimos sopram sobre elas e as
deixam cheias de gotículas de água do oceano.
– E a casa, Gilbert? Nosso primeiro lar. Como é?
– Não é grande, mas tem espaço suficiente para nós. No andar
de baixo, há uma sala de estar magnífica, com uma lareira
igualmente esplêndida; uma sala de jantar que oferece vista para o
porto e um cômodo menor, perfeito para ser meu consultório. A casa
tem cerca de sessenta anos e é a mais antiga de Four Winds.
Contudo, sempre foi mantida em bom estado e passou por uma
grande reforma uns quinze anos atrás: o telhado e o piso foram
trocados, e todas as paredes ganharam uma pintura nova. Sua
estrutura é muito sólida. Ouvi falar de uma história romântica ligada
à sua origem, mas o homem que me alugou o imóvel não soube
contá-la: disse que o capitão Jim é a única pessoa que pode narrar
o que aconteceu na época.
– Quem é o capitão Jim?
– O encarregado da manutenção do farol do pontal de Four
Winds. Você vai adorar o farol, Anne. A torre é giratória, e a luz
brilha como uma estrela magnífica durante o pôr do sol e quando
amanhece. Podemos vê-lo pelas janelas da sala de estar ou pela
porta da frente.
– De quem é a casa?
– Bem, atualmente ela é da Igreja Presbiteriana de Glen Saint
Mary, e foi o conselho de administradores que a alugou para nós.
Porém, até recentemente o imóvel pertenceu a uma mulher idosa, a
senhorita Elizabeth Russel. Ela morreu na primavera passada e,
como não tinha nenhum parente próximo, doou a propriedade para
a igreja. A mobília ainda está lá, e comprei quase todos os móveis.
Por uma ninharia, pode-se dizer, pois são tão antiquados que os
locadores estavam profundamente interessados em vendê-los.
Parece que os moradores de Glen Saint Mary preferem
estofamentos felpudos e brilhantes, e aparadores decorados e com
espelhos. Entretanto, a mobília da senhorita Russel é muito boa, e
tenho certeza de que vai apreciá-la, Anne.
– Por enquanto, gostei de tudo – disse Anne, em uma aprovação
cautelosa –, mas não se pode viver só de móveis, Gilbert. Você
ainda não mencionou uma coisa muito importante: existem árvores
perto da casa?
– Muitas, minha dríade! Há um bosque grande de abetos atrás
dela, duas fileiras de álamos ao longo da alameda da entrada e um
círculo de bétulas brancas ao redor de um jardim encantador. Nossa
porta da frente se abre direto para esse jardim, mas temos também
outra entrada para ele: um portão pequeno preso a dois pinheiros;
as dobradiças estão fixadas em um tronco e a trava, no outro. Além
disso, os galhos dos dois formam um arco acima do portão.
– Oh, estou tão feliz, Gilbert! Eu não poderia viver onde não
houvesse árvores: algo vital em mim definharia. Bom, depois disso,
nem adianta perguntar se temos um riacho por perto. Seria querer
demais...
– Mas, Anne, de fato, há um riacho! E ele atravessa um canto do
nosso jardim.
– Então – ela afirmou, com um longo suspiro de suprema
satisfação –, essa casa que você encontrou, e nenhuma outra, é a
minha casa dos sonhos.
J
á resolveu quem você quer em seu casamento, Anne? –
indagou a senhora Rachel Lynde, enquanto costurava
cuidadosamente barrados de crochê em guardanapos. – Já está
passando da hora de enviar os convites, mesmo que eles sejam
informais.
– Não pretendo chamar muita gente – Anne respondeu. – Só
queremos que venham as pessoas que mais amamos: os parentes
e amigos mais próximos de Gilbert, o senhor e a senhora Allan, o
senhor e a senhora Harrison...
– Houve um tempo em que você dificilmente incluiria o senhor
Harrison em seu grupo de amigos mais queridos – Marilla falou, com
um ar sério.
– Bem, eu não me tornei uma grande admiradora dele quando o
conheci – reconheceu Anne, dando uma risada ao se lembrar de
seu primeiro encontro com o vizinho. – Porém, o senhor Harrison
mudou bastante desde aquele dia, e a senhora Harrison é adorável.
Ah, é lógico que também vou convidar a senhorita Lavendar e Paul.
– Eles decidiram passar o verão na ilha? Pensei que tinham
planos de visitar a Europa.
– Sim, mas mudaram de ideia quando escrevi contando que iria
me casar. Recebi uma carta de Paul hoje. Ele diz que tem de estar
presente em meu casamento, haja o que houver na Europa.
– Aquele menino sempre idolatrou você – a senhora Rachel
comentou.
– Aquele “menino” hoje é um rapaz de dezenove anos, senhora
Lynde.
– Como o tempo voa! – foi a resposta original e brilhante de
Rachel Lynde.
– Talvez Charlotta Quarta venha com eles. Ela pediu a Paul que
me dissesse que viria se o marido permitisse. Gostaria de saber se
Charlotta ainda usa aqueles laços azuis enormes e se o marido a
chama de Leonora. Eu adoraria vê-la aqui. Em um passado que
agora parece remoto, fomos juntas a um casamento. Eles
pretendem chegar a Echo Lodge na semana que vem. Também
convidei Phil e o reverendo Jo...
– Não acho correto você se referir dessa maneira a um pastor – a
senhora Lynde a interrompeu severamente.
– A esposa dele o chama assim.
– Pois Philippa deveria ter mais respeito pelo ofício sagrado do
marido – retrucou a senhora Rachel.
– Já ouvi a senhora criticar pastores duramente – Anne provocou.
– Sim, mas faço isso com reverência – protestou a senhora
Lynde. – Você nunca me viu usar um apelido para falar de um
pastor.
Anne reprimiu um sorriso.
– Bem, ainda temos Diana, Fred, o pequeno Fred e a pequena
Anne Cordelia... e Jane Andrews. Queria que a senhorita Stacey, tia
Jamesina, Stella e Priscilla também viessem, mas Stella se encontra
em Vancouver, e Pris, no Japão; a senhorita Stacey está casada na
Califórnia; e tia Jamesina foi à Índia, apesar do pavor que tem de
cobras, para conhecer o local onde a filha está cumprindo sua
missão cristã. É realmente terrível o modo como as pessoas se
espalham pelo planeta.
– Nosso Senhor nunca desejou isso, essa é a verdade – afirmou
a senhora Rachel, com sua reconhecida autoridade. – Quando eu
era jovem, as pessoas cresciam, se casavam e se estabeleciam no
lugar onde haviam nascido, ou perto dele. Felizmente, você vai
morar na ilha, Anne. Tive receio de que Gilbert insistisse em se
mudar para algum lugar no fim do mundo assim que terminasse seu
curso de medicina e a arrastasse com ele.
– Se todas as pessoas permanecessem onde nasceram, alguns
lugares logo ficariam lotados, senhora Lynde.
– Ora, não vou discutir com você, Anne. Não tenho curso
superior. A que hora do dia vai ser a cerimônia?
– Optamos pelo meio-dia... meio-dia em ponto, como costumam
dizer os colunistas sociais. Dessa forma, vamos poder pegar o trem
da tarde para Glen Saint Mary.
– Vão se casar na sala de visitas?
– Não, a não ser que chova. Queremos que seja no pomar, com o
céu azul sobre nós e os raios do sol ao nosso redor. Sabem quando
e onde eu gostaria de me casar, se pudesse? Seria ao amanhecer...
em um dia de junho. O sol nasceria gloriosamente, e rosas
desabrochariam nos jardins. Eu me encontraria com Gilbert e
iríamos juntos até o coração do bosque de faias, e lá, sob os arcos
verdes que pareceriam uma catedral magnífica, nós nos
casaríamos.
Marilla suspirou com alguma impaciência. A senhora Lynde
pareceu chocada.
– Isso seria horrivelmente estranho, Anne. Ora, nem sequer seria
um casamento legítimo. Já imaginou o que a senhora Harmon
Andrews diria?
– Esse é o problema. Há tantas coisas na vida que não podemos
fazer por temor do que a senhora Harmon Andrews diria! “É
realmente uma pena, uma pena realmente.” Quantas coisas
adoráveis poderíamos fazer se não fosse a senhora Harmon
Andrews!
– Às vezes, chego a duvidar que entendo você, Anne – a senhora
Lynde se queixou.
– Anne sempre foi romântica, você sabe – disse Marilla,
praticamente se desculpando.
– Bem, é bastante provável que a vida de casada cure isso – a
senhora Rachel respondeu em tom consolador.
Anne riu, deixou a sala discretamente e foi se encontrar com
Gilbert na Vereda dos Apaixonados. Nenhum dos dois demonstrava
ter medo ou esperança de que a vida conjugal os curasse do
romantismo.
O pessoal de Echo Lodge chegou na semana seguinte, e Green
Gables se encheu de alegria. A senhorita Lavendar havia mudado
tão pouco, que os três anos transcorridos desde sua última visita à
ilha se passaram “como a vigília da noite”.*** Contudo, Anne ficou
verdadeiramente surpresa ao ver Paul. Poderia esse homem lindo,
com um metro e oitenta de altura, ser o pequeno Paul da escola de
Avonlea?
– Você faz com que eu me sinta verdadeiramente velha, Paul! –
Anne exclamou. – Preciso erguer os olhos para ver seu rosto.
– A senhorita nunca vai envelhecer, professora – disse o rapaz. –
É um dos mortais afortunados que encontraram a fonte da juventude
e beberam de sua água. A senhorita e minha mãe Lavendar. Preciso
lhe dizer que quando já estiver casada não vou chamá-la de
senhora Blythe. Para mim, a senhorita vai ser sempre “professora”...
a professora das melhores lições que já aprendi. Bem, quero lhe
mostrar isto aqui.
“Isto aqui” era um livro de bolso de poemas. Paul havia
expressado em versos algumas de suas belas fantasias, e os
editores de revistas não tinham sido tão depreciativos quanto, às
vezes, se supõe que sejam.
Anne leu os poemas de Paul com verdadeiro fascínio. Eram
cheios de encantamento e realmente promissores.
– Você ainda vai ser famoso, Paul. Sempre desejei ver um ex-
aluno ter seu talento reconhecido. – Eu achava que ele seria um
reitor de universidade, mas um grande poeta era muito melhor. –
Um dia ainda vou me gabar de haver castigado severamente o
ilustre Paul Irving. Entretanto, pensando bem, nunca precisei puni-
lo, não é verdade, Paul? Que oportunidade perdida! Mas acho que o
proibi uma vez de sair da sala de aula durante o recreio.
– A senhorita é que pode ficar famosa um dia, professora. Nos
últimos três anos, tenho lido muitas histórias suas.
– Não, Paul. Sei o que posso ou não fazer. Escrevo contos
pequenos, bonitos e fantasiosos que as crianças adoram ler e pelos
quais os editores me enviam cheques bem-vindos. Mas não vou
criar nada grandioso. Minha única chance de imortalidade terrena é
ser citada em seu livro de memórias.
Charlotta Quarta não usava mais os laços de fita azul, mas sua
quantidade de sardas não havia diminuído.
– Nunca imaginei que acabaria me casando com um ianque,
madame senhorita Shirley – ela declarou. – Porém, nunca sabemos
o que nos espera, não é? E ele não tem culpa de ter nascido assim.
– Você mesma é uma ianque agora, Charlotta, desde que se
casou com um.
– Madame senhorita Shirley, não sou! E não seria nem se me
casasse com uma dúzia de ianques! Tom é um homem bom. Além
disso, achei melhor não ser exigente demais, pois talvez eu não
tivesse outra oportunidade. Meu marido não bebe e não reclama de
trabalhar entre as refeições. Então, no fim das contas, estou
satisfeita, madame senhorita Shirley.
– Ele a chama de Leonora?
– É lógico que não! Eu nem saberia com quem ele estaria
falando. Obviamente, no dia em que nos casamos Tom precisou
dizer: “Recebo-te, Leonora...”. E admito que desde aquele momento
vivo com uma sensação terrível de que não era comigo que ele
estava falando, e de que não me casei adequadamente. Agora
chegou sua vez, madame senhorita Shirley! Eu sempre pensei que
gostaria de me casar com um médico. Isso seria tão útil quando as
crianças tivessem sarampo e problemas na garganta... Tom é
apenas um pedreiro, mas é muito calmo e paciente. Quando eu lhe
disse: “Posso ir ao casamento da senhorita Shirley? Pretendo ir de
qualquer modo, mas gostaria de ter seu consentimento”, ele
respondeu simplesmente: “O que for melhor para você, Charlotta,
vai ser melhor para mim também”. Esse é um tipo de marido
realmente satisfatório, madame senhorita Shirley.
Philippa e seu reverendo Jo chegaram a Green Gables na
véspera da cerimônia. Anne e Phil tiveram um encontro
emocionante, que foi seguido de uma conversa agradável e
confidencial sobre tudo o que havia acontecido e o que estava por
vir.
– Rainha Anne, você está tão majestosa como sempre. Já eu
fiquei assustadoramente magra depois que os bebês nasceram.
Perdi grande parte de minha beleza, mas acho que Jo gosta disso:
não há mais tanto contraste entre nós dois. Oh, foi magnífico saber
que você vai se casar com Gilbert! Sua união com Roy Gardner não
daria certo de jeito nenhum... Não mesmo! Agora vejo claramente,
embora tenha ficado bastante desapontada na época. Anne, você
sabe que maltratou Roy, não sabe?
– Pelo que ouvi dizer, ele superou isso perfeitamente – Anne
sorriu.
– Sim, está casado; sua esposa é adorável, e eles são muito
felizes. “Todas as coisas contribuem juntamente para o bem”.**** Jo e
a Bíblia dizem isso, e são grandes autoridades no assunto.
– Alec e Alonzo já se casaram?
– Alec sim, Alonzo, não. Como aqueles velhos e queridos tempos
em Patty’s Place voltam à memória quando converso com você,
Anne! Nós nos divertimos tanto naquela época!
– Você esteve em Patty’s Place recentemente?
– Claro, vou lá com muita frequência. A senhorita Patty e a
senhorita Maria ainda se sentam perto da lareira e tricotam. Ah, isso
me fez lembrar uma coisa... Trouxemos um presente de casamento
que elas mandaram para você. Adivinhe o que é?!
– Eu jamais conseguiria. Como elas souberam que vou me
casar?
– Eu contei. Fui vê-las na semana passada, e elas ficaram
bastante entusiasmadas com a notícia. Então, dois dias atrás a
senhorita Patty enviou um bilhete me pedindo para ir até lá. Durante
a visita, ela me perguntou se eu poderia trazer um presente para
você. Anne, o que há em Patty’s Place que você mais gostaria de
possuir?
– Você não está me dizendo que a senhorita Patty me deu os
cachorros de porcelana, está?
– Acertou em cheio! Eles estão em meu baú neste exato
momento. E tenho também uma carta para você. Espere um pouco,
vou buscá-la.
Cara senhorita Shirley – a senhorita Patty havia escrito –, Maria e
eu ficamos muito contentes em saber de suas núpcias em breve.
Fazemos os melhores votos para que seja muito feliz. Maria e eu
nunca casamos, mas não temos nenhuma objeção ao vínculo
conjugal. Philippa vai lhe entregar nosso presente: os cães de
porcelana. Eu planejava deixá-los em seu nome em meu
testamento, porque sempre demonstrou nutrir uma afeição sincera
por eles. Entretanto, como Maria e eu pretendemos (com a
permissão de Deus) viver muitos anos ainda, decidi doá-los à
senhorita enquanto ainda é jovem. Espero que não tenha se
esquecido de que Gog olha para a direita e Magog, para a
esquerda.
– Imagine aqueles cachorros adoráveis acomodados em cada
lado da lareira da sala de estar de minha casa dos sonhos – disse
Anne, enlevada. – Vai ser esplêndido. Nunca pensei que isso
aconteceria.
Durante toda a tarde, Green Gables vibrou com os preparativos
para o dia seguinte. E quando o sol começou a se pôr, Anne saiu de
casa furtivamente: tinha uma peregrinação importante a fazer no
último dia daquela etapa de sua vida e precisava ir sozinha. Visitou
o túmulo de Matthew, sob a sombra dos álamos, no pequeno
cemitério de Avonlea, e lá teve um encontro silencioso com
lembranças antigas e amores imortais.
– Como Matthew ficaria feliz amanhã, se ainda estivesse
conosco! – ela sussurrou. – Contudo, acredito que, em algum lugar,
ele sabe de tudo e está contente por mim. Li uma vez que “nossos
mortos só morrem para nós quando nos esquecemos deles”.*****
Matthew nunca vai morrer para mim, pois jamais vou me esquecer
dele.
Anne pôs na sepultura as flores que tinha levado e, em seguida,
desceu lentamente a grande colina. Era um belo fim de tarde,
repleto de luzes e sombras encantadoras. A oeste, o céu tinha
nuvens em tons de vermelho e amarelo entre faixas compridas da
cor de maçãs verdes. Mais adiante, o brilho cintilante do pôr do sol
sobre o mar e a voz incessante das ondas quebrando na praia. Ao
seu redor, em meio ao silêncio agradavelmente tranquilo,
repousavam as colinas, os campos e os bosques que ela já
conhecia e amava havia tanto tempo.
– A história se repete – disse Gilbert, juntando-se a Anne quando
ela passou diante do portão da propriedade dos Blythe. – Você se
lembra da primeira vez que descemos esta colina? Na verdade, foi
nossa primeira caminhada juntos, Anne.
– Eu voltava do túmulo de Matthew durante o crepúsculo e o vi
atravessar o portão; naquele momento, engoli o orgulho de anos e
falei com você.
– E todo o paraíso se abriu diante de mim! – Gilbert exclamou. –
Dali em diante vivi com expectativas para o futuro. Quando a deixei
no portão de Green Gables naquela noite e voltei para casa, eu era
a pessoa mais feliz do mundo. Anne havia me perdoado!
– Acho que era você quem tinha mais o que perdoar. Fui uma
pestinha ingrata... mesmo depois de você haver literalmente salvado
minha vida no lago. Como odiei, no início, dever isso a você! Às
vezes penso que não mereço a felicidade que tenho hoje.
Gilbert riu e apertou com mais força a mão da moça que trazia
sua aliança. O anel de noivado de Anne era de pérolas. Ela havia se
recusado a usar um diamante.
– Desde que descobri que os diamantes não têm a adorável cor
roxa com a qual eu havia sonhado, nunca mais gostei
verdadeiramente deles. Sempre vão me lembrar de minha velha
decepção.
– Mas a antiga tradição diz que as pérolas representam as
lágrimas – Gilbert havia argumentado.
– Não tenho medo disso. As lágrimas podem ser tanto de alegria
quanto de tristeza. Nos momentos mais felizes de minha vida, eu
tinha lágrimas nos olhos: quando Marilla falou que eu poderia ficar
em Green Gables; quando Matthew me deu o primeiro vestido
bonito que possuí; quando soube que você ficaria curado da febre
tifoide. Portanto, me dê um anel de pérolas como aliança de noivado
e prometo aceitar sem objeção as coisas ruins da vida, assim como
as boas.
Porém, naquela noite nosso casal apaixonado só teve
pensamentos alegres. Afinal, seu casamento se realizaria no dia
seguinte, e sua casa dos sonhos esperava por eles no litoral
arroxeado e coberto de brumas de Four Winds Harbor.
Q
uando despertou na manhã do dia de seu casamento, Anne
viu raios de sol atravessando a janela de seu pequeno quarto
no sótão e uma brisa de setembro dançando com a cortina.
“Estou tão contente em saber que o sol vai brilhar para mim hoje”,
pensou alegremente.
Depois se lembrou da primeira manhã em que acordou naquele
mesmo quarto, com a luz do sol inundando sua cama e a brisa
suave trazendo o perfume delicioso das flores que cobriam a velha
Rainha da Neve. Aquele não tinha sido um despertar feliz, pois
trouxera consigo o amargo desapontamento da noite anterior.
Entretanto, desde então esse pequeno cômodo havia sido
consagrado e adorado por anos de uma infância e uma juventude
felizes, repletas de sonhos e cenas imaginárias.
Para lá, Anne havia voltado com entusiasmo após cada uma de
suas ausências. Diante daquela janela, tinha se ajoelhado durante
as horas de enorme sofrimento em que acreditou que Gilbert estava
à beira da morte, assim como na noite indescritivelmente feliz de
seu noivado. Muitas vigílias de alegria e algumas de tristeza tinham
sido vividas naquele cômodo, e agora ela o deixaria para sempre. E,
dali em diante, ele não seria mais dela. Dora, já com quinze anos, o
herdaria, e Anne não desejava que fosse diferente. O quarto do
sótão do leste pertencia a meninas e adolescentes; a um passado
que seria encerrado naquele dia, para dar lugar a um novo capítulo
que se abria: sua vida de casada.
Green Gables esteve cheia de movimento e animação naquela
manhã. Diana chegou cedo, trazendo os pequenos Fred e Anne
Cordelia, para ajudar com os preparativos, e os gêmeos Davy e
Dora levaram as crianças para o jardim.
– Não deixem Anne Cordelia sujar ou amassar a roupa – Diana
pediu ansiosamente.
– Você não precisa ter receio de confiá-la a Dora – disse Marilla.
– Essa menina é mais sensata e cuidadosa que a maioria das mães
que conheci. Ela é realmente maravilhosa nesse aspecto; bem
diferente do que era, na mesma idade, uma garota impulsiva que
também criei.
Por cima da salada de frango que preparava, Marilla sorriu para
Anne. E ficou bastante evidente que, na verdade, ela gostava mais
da garota impulsiva.
– Esses gêmeos são muito virtuosos – disse a senhora Rachel
quando teve certeza de que eles não a escutariam. – Dora é muito
amável e prestativa, e Davy está se revelando um ótimo rapaz. Ele
não é mais terrivelmente travesso como costumava ser.
– Nunca tive tanto trabalho em toda a minha vida como nos
primeiros seis meses que Davy passou aqui conosco – Marilla
declarou. – Acho que depois eu me acostumei a ele. O garoto tem
aprendido muito sobre fazendas, ultimamente, e quer que eu o deixe
administrar a nossa no ano que vem. Talvez eu concorde, já que o
senhor Barry está pensando em não alugá-la por muito tempo mais,
e algum outro arranjo terá de ser feito.
– Você teve muita sorte ao marcar seu casamento para hoje,
Anne – Diana comentou enquanto colocava um avental imenso
sobre seu vestido de seda. – Não poderia ser um dia mais bonito,
nem se você o tivesse encomendado na Eaton’s.
– Com efeito, há dinheiro demais saindo de nossa ilha para
enriquecer essa Eaton’s – disse a senhora Lynde, indignada: tinha
opiniões claramente desfavoráveis sobre as grandes lojas de
departamentos e nunca perdia uma oportunidade de expressá-las. –
Quanto aos catálogos dessa Eaton’s, eles agora viraram a Bíblia
das garotas de Avonlea, essa é a verdade. Elas se debruçam
durante horas sobre essas revistas aos domingos, em vez de
estudar as Sagradas Escrituras.
– Bem, eles são ótimos para distrair as crianças – Diana falou. –
Fred e a pequena Anne passam muito tempo olhando as figuras.
– Ora, eu distraí dez crianças sem nenhuma ajuda dos catálogos
da Eaton’s – disse severamente a senhora Rachel.
– Por favor, não briguem por causa dessa bobagem – Anne
pediu, animada. Esse é um dia muito especial para mim. Estou
profundamente feliz e quero que todas as pessoas fiquem contentes
também.
– Com certeza, desejo que sua felicidade dure para sempre,
criança – a senhora Rachel suspirou.
Ela desejava verdadeiramente isso e acreditava que assim seria,
mas temia que alguém que ostentasse sua felicidade muito
abertamente poderia estar desafiando a Providência, por isso Anne,
para seu próprio bem, deveria se conter um pouco.
No entanto, foi uma noiva linda e radiante que, no fim da manhã
daquele dia de setembro, desceu a escada antiga, com degraus
cobertos por um carpete rústico. A primeira noiva a se casar em
Green Gables era esbelta, tinha olhos que brilhavam
esplendidamente sob o véu e trazia nos braços um grande buquê de
rosas. Gilbert, esperando no hall, admirou-a com um olhar
apaixonado. A Anne evasiva, tão desejada e pacientemente
esperada por anos, finalmente seria sua. Era para ele que ela
caminhava agora; era a ele que havia por fim se rendido docemente.
Será que a merecia? Será que poderia fazê-la tão feliz como era
seu desejo? E se falhasse? Se não correspondesse ao seu ideal de
marido? Entretanto, quando ela lhe estendeu a mão e os olhares
dos dois se encontraram, todas as dúvidas foram substituídas por
uma certeza abençoada: eles pertenciam um ao outro, e,
independentemente do que a vida reservava para os dois, nada
jamais poderia alterar isso. A felicidade de um estava nas mãos do
outro, e ambos estavam seguros e confiantes.
Anne e Gilbert se casaram no velho pomar, à luz do sol, rodeados
por amigos afetuosos e muito queridos. O senhor Allan celebrou a
cerimônia, e o reverendo Jo fez o que posteriormente a senhora
Rachel Lynde afirmou ser a “prece de casamento mais bonita” que
já tinha ouvido.
Em geral, pássaros não cantam em setembro, mas um gorjeou
melodiosamente – em algum galho que não estava à vista – no
exato momento em que os noivos trocavam seus votos de amor
eterno. Anne escutou e vibrou, emocionada; Gilbert ouviu e se
perguntou apenas por que todos os pássaros do mundo não haviam
se juntado àquele em um só canto repleto de júbilo. Paul escutou e
mais tarde escreveu versos para aquela canção, os quais se
tornaram uns dos mais admirados de seu primeiro livro de poemas.
Charlotta Quarta ouviu e ficou animadamente certa de que aquela
música trazia boa sorte para sua adorada “madame senhorita
Shirley”. O pássaro cantou até o fim da cerimônia e depois se
despediu com um belo e breve trinado.
Nunca aquela velha casa verde-acinzentada, cercada por
pomares, tinha conhecido uma tarde mais alegre e animada. Todos
os gracejos e comentários espirituosos que certamente haviam sido
feitos em casamentos desde os tempos do Éden estiveram
presentes e pareceram tão originais, brilhantes e engraçados quanto
se nunca tivessem sido ditos antes. O regozijo e as risadas tiveram
seu lugar na festa. E quando Anne e Gilbert partiram para tomar o
trem que os levaria a Carmody, tendo Paul como condutor da
charrete, os gêmeos já estavam prontos para lançar os tradicionais
grãos de arroz e sapatos velhos, atividade na qual Charlotta Quarta
e o senhor Harrison tiveram uma participação valorosa.
Marilla ficou próxima ao portão observando a charrete percorrer a
longa alameda ladeada por flores amarelas, e, antes de sumir do
alcance da vista, Anne se virou e acenou um último adeus. Agora
estava indo embora mesmo; Green Gables não era mais seu lar. O
rosto de Marilla pareceu sombrio e envelhecido quando ela voltou
para dentro da casa que Anne havia preenchido por quatorze anos –
até mesmo durante suas ausências – com tanta vida e luz.
Felizmente, Diana e sua pequena prole, o pessoal de Echo Lodge
e o senhor e a senhora Allan ficaram ali para ajudar as duas
senhoras a superar a solidão da primeira noite, e tiveram um jantar
tranquilo, agradável e longo. Os amigos ficaram sentados ao redor
da mesa falando sobre os acontecimentos do dia, e, enquanto eles
conversavam, Anne e Gilbert desceram do trem em Glen Saint
Mary.
Odoutor David Blythe tinha enviado sua charrete e o cavalo para
receber Gilbert e Anne na estação, e o rapaz que os levou se
despediu com um sorriso gentil, deixando-lhes o prazer de seguir a
sós, naquele fim de tarde esplêndido, até seu novo lar.
Anne nunca esqueceu a beleza da vista que se apresentou diante
deles no momento em que chegaram ao topo da colina atrás da vila.
Ainda não era possível ver a casa onde morariam, mas à sua frente
estava Four Winds Harbor, como um grande e brilhante espelho em
tons de rosa e prateado. E ela avistou, lá embaixo, a entrada do
porto, entre uma barreira de dunas de areia, de um lado, e um
rochedo alto e íngreme de arenito vermelho, do outro. Para além
das dunas, o mar calmo e austero sonhava durante o crepúsculo.
A pequena vila de pescadores na enseada onde as dunas se
encontravam com a praia do porto lembrava uma opala enorme sob
uma névoa tênue. Acima dos dois, o céu parecia uma taça
cravejada de joias da qual o crepúsculo era derramado; o ar fresco
tinha o cheiro agradável do mar, e toda a paisagem estava
impregnada com as sutilezas características da noite no litoral.
Alguns barcos a vela flutuavam ao longo da costa – escura e repleta
de abetos – onde ficava o porto.
Um sino tocou na torre de uma igrejinha branca a distância;
suave e docemente, o tilintar chegou até o casal misturado aos
gemidos do oceano. A luz da grande torre giratória do farol no
penhasco próximo ao canal cintilava, dourada, destacando-se no
céu límpido do norte como o piscar de uma estrela que anuncia
bons presságios. Bem longe no horizonte havia uma faixa cinzenta e
crespa da fumaça de um barco a vapor que passava.
– Oh, que lindo! Lindo! – Anne exclamou em voz baixa – Vou
amar Four Winds, Gilbert. Onde é nossa casa?
– Ainda não é possível vê-la... Está escondida pelas fileiras de
bétulas ali naquela pequena enseada. Ela fica a uns três
quilômetros de Glen Saint Mary e a aproximadamente um
quilômetro e meio do farol. Não vamos ter muitos vizinhos, Anne. Só
tem uma casa perto da nossa, e não sei quem mora nela. Você acha
que vai se sentir solitária quando eu estiver fora?
– Não; vou ter o farol e toda esta beleza como companhia. Quem
vive naquela casa ali, Gilbert?
– Não sei. Tenho, de algum modo, a impressão de que seus
ocupantes não são almas irmãs, Anne... Você não acha?
A casa era um imóvel grande e sólido, pintado em um tom de
verde tão vivo que, em contraste com ele, a paisagem parecia meio
desbotada. Havia um pomar atrás dela e um gramado muito bem-
cuidado à sua frente. Entretanto, parecia que faltava alguma coisa,
sensação esta que talvez fosse causada pelo esmero com que tudo
ali era conservado. Toda a propriedade – casa, celeiros, pomar,
jardim, gramado e alameda de acesso – era perfeitamente
impecável.
– Acho improvável que alguém com este gosto para tintas possua
uma alma realmente irmã – Anne concordou –, a não ser que tenha
sido por acidente, como no caso de nosso clube, quando foi pintado
de azul. Tenho certeza, porém, de que não existem crianças ali; o
lugar é ainda mais limpo e arrumado que a propriedade das velhas
meninas Copp na Estrada dos Conservadores. Gilbert, nunca
esperei ver nada mais rigorosamente asseado que aquilo.
Eles não haviam encontrado ninguém na estrada úmida e
vermelha que serpenteava ao longo da costa do porto, mas, pouco
antes de chegarem às fileiras de bétulas que ocultavam sua casa,
Anne viu uma garota que conduzia um bando de gansos brancos
como a neve ao longo do topo de uma colina verde aveludada à
direita. Abetos majestosos cresciam espalhados por essa colina e,
entre seus troncos, era possível avistar fragmentos de campos de
colheita amarelos, dunas douradas de areia e recortes de mar azul.
A garota era alta, usava um vestido estampado azul-claro e
caminhava com elegância nos passos e postura ereta. Ela e seus
gansos atravessavam o portão ao pé da colina quando Anne e
Gilbert passaram. A moça ficou parada, apoiando uma das mãos
sobre o trinco do portão e olhando fixamente para os dois, com uma
expressão que dificilmente seria definida como de interesse ou
mesmo de curiosidade.
Anne teve a impressão, por um breve momento, de que havia
naquele olhar alguma hostilidade dissimulada. Contudo, foi a beleza
da moça que a fez suspirar, admirada. Era uma beleza tão marcante
que certamente chamaria a atenção em qualquer lugar. Ela não
usava chapéu, mas duas tranças grossas de cabelo brilhante da cor
do trigo maduro estavam presas ao redor de sua cabeça, lembrando
uma coroa. Os olhos eram azuis e reluzentes como as estrelas. Sua
silhueta, mesmo coberta por um vestido estampado muito simples,
era magnífica. Os lábios tinham um tom tão vermelho quanto o das
papoulas que ela usava presas à cintura.
– Gilbert, quem é aquela moça por quem acabamos de passar? –
Anne murmurou.
– Não vi nenhuma garota – respondeu Gilbert, que só tinha olhos
para a esposa.
– Ela estava parada diante do portão... Não, não olhe para trás!
Ela ainda está nos observando. Nunca vi um rosto tão belo.
– Não me lembro de ter deparado com nenhuma garota muito
bonita enquanto estive aqui. Há algumas moças formosas em Glen,
mas eu dificilmente afirmaria que são lindas.
– Essa é. Você realmente não deve tê-la visto, senão se
lembraria. Ninguém jamais poderia se esquecer. Nunca vi um rosto
como aquele, exceto em imagens. E o cabelo, então... Sabe, me fez
pensar no “cordão de ouro” e na “serpente magnífica” de
Browning.******
– Pode ser que ela esteja apenas visitando Four Winds...
Provavelmente está hospedada naquele hotel grande de veraneio,
que fica para lá do porto.
– Ela usava um avental branco e conduzia gansos.
– Talvez esteja fazendo isso somente por diversão. Veja, Anne, ali
está nossa casa.
Anne viu... e por algum tempo se esqueceu da garota de olhos
maravilhosos e ligeiramente ameaçadores. O primeiro vislumbre de
seu novo lar foi um deleite para os olhos e o espírito. A casa parecia
uma concha enorme e clara encalhada na praia do porto. As fileiras
púrpuras e imponentes de álamos altos ao longo de sua alameda
destacavam-se no horizonte. Atrás da casa, protegendo seu jardim
contra os sopros muito fortes que vinham do mar, via-se um bosque
sombrio de abetos no qual os ventos podiam fazer todos os tipos de
música estranha e assustadora.
Como todos os bosques, esse também parecia conter e ocultar
segredos – segredos a cujo encanto só se pode ter acesso entrando
nele e procurando com determinação. Externamente, braços verde-
escuros os mantinham imunes aos olhares curiosos ou indiferentes.
Enquanto Anne e Gilbert percorriam a alameda da entrada, os
ventos da noite começavam sua dança selvagem atrás da barreira
de dunas, e a vila de pescadores, do outro lado do porto, ficava
progressivamente salpicada de luzes.
Então, a porta da pequena casa se abriu e o brilho aconchegante
do fogo na lareira se destacou em meio ao crepúsculo. Gilbert
carregou Anne para fora da charrete; em seguida, o casal passou
pelo portão entre os abetos com pontas avermelhadas, atravessou o
jardim e percorreu o caminho encantador de chão vermelho até o
degrau de arenito.
– Bem-vinda ao nosso lar – ele sussurrou, e de mãos dadas os
dois cruzaram a soleira de sua casa dos sonhos.
O“velho doutor Dave” e a “senhora doutor Dave” vieram
cumprimentar o casal. O médico era um senhor idoso, grande,
alegre, com um farto bigode branco; e a senhora doutor Dave, uma
mulher elegante, pequena, com bochechas rosadas e cabelo
grisalho, que abraçou Anne e a adorou imediatamente.
– Estou tão contente em vê-la, querida! Vocês devem estar
exaustos. Fizemos algumas coisas para o jantar, e o capitão Jim
trouxe trutas para vocês. Capitão Jim! Onde está você? Ora,
suponho que tenha escapado para cuidar dos cavalos. Venha,
Anne, vamos levar suas coisas lá para cima.
Anne observou tudo ao seu redor com olhos brilhantes,
deslumbrada, enquanto subia a escada com a senhora doutor Dave.
À primeira vista, gostou muito de seu novo lar, que parecia ter a
atmosfera de Green Gables e o sabor de suas velhas tradições.
– Suponho que eu teria encontrado na senhorita Elizabeth Russel
uma alma irmã – ela murmurou, quando estava sozinha em seu
quarto.
Havia duas janelas no quarto; uma ficava sobre o telhado e tinha
vista para um pedaço do porto, a barreira de dunas e o farol de Four
Winds.
– Uma janela mágica que se abre para a espuma
de mares perigosos em remotas terras encantadas,*******
Anne citou docemente.
A outra janela dava para um pequeno vale onde, por sua cor,
ficava claro que tinha havido uma colheita recente, e pelo qual
passava um riacho. A cerca de oitocentos metros, seguindo esse
curso de água, estava a única casa à vista. Era antiga, irregular e
cinzenta, cercada por salgueiros enormes, através dos quais as
janelas pareciam espreitar – como se fossem olhos tímidos e
curiosos – o crepúsculo. Anne se perguntou quem morava lá; afinal,
seriam seus vizinhos mais próximos, e ela esperava que fossem
pessoas simpáticas e bondosas.
De repente, Anne se viu pensando novamente na garota linda e
seus gansos brancos. “Gilbert acha que ela não é daqui”, refletiu,
“mas eu tenho certeza de que é. Alguma coisa naquela moça dizia
que ela pertence a este mar, este céu, este porto... Four Winds está
no sangue dela”.
Quando Anne desceu, Gilbert estava diante da lareira
conversando com um desconhecido. Ambos se viraram assim que
ela chegou.
– Anne, este é o capitão Boyd. Capitão Boyd, minha esposa.
Foi a primeira vez que Gilbert disse “minha esposa” a alguém que
não fosse a própria Anne, e por pouco ele não explodiu de orgulho.
O velho capitão estendeu sua mão forte para cumprimentá-la, os
dois sorriram e ficaram amigos a partir daquele momento. Em geral,
almas irmãs se reconhecem logo.
– É um prazer enorme conhecê-la, senhora Blythe; espero que
seja tão feliz quanto a primeira jovem recém-casada que morou
aqui. É impossível lhe desejar qualquer coisa melhor do que isso.
Mas seu marido não me apresentou pelo nome que tenho no dia a
dia. Sou o “capitão Jim”, e a senhora pode começar me tratando
dessa maneira, pois é como mais cedo ou mais tarde vai me
chamar. A senhora é mesmo uma jovem bonita! Olho para a
senhora e sinto que, digamos, de algum jeito eu também acabei de
me casar.
Em meio às gargalhadas que se seguiram, a esposa do doutor
Dave insistiu para que o capitão Jim jantasse com eles.
– Obrigado, de coração. Vai ser um regalo, senhora doutor Dave.
Quase sempre como sozinho... tendo como companhia só o reflexo
de minha velha fisionomia num espelho do outro lado da mesa. Não
é sempre que tenho a chance de me sentar com duas senhoras tão
bonitas e amáveis.
Os elogios do capitão Jim podem parecer banais no papel, mas
ele os fazia com uma expressão nos olhos e um tom de voz tão
respeitosos, gentis e graciosos, que a mulher a quem eram
dedicados sentia que estava recebendo uma homenagem
majestosa, digna de uma rainha.
O capitão Jim era um homem simples, de alma nobre; era idoso,
mas demonstrava uma juventude eterna nos olhos e no coração.
Era alto, meio curvado e ligeiramente desajeitado, embora
parecesse ter muita energia e resistência. O rosto, bronzeado e com
a barba sempre cuidadosamente feita, tinha rugas profundas. O
cabelo na altura dos ombros era espesso e grisalho. Tinha olhos
incrivelmente azuis e profundos que às vezes cintilavam, às vezes
sonhavam e outras vezes olhavam para o mar em uma busca
melancólica, como se estivessem procurando algo precioso que
haviam perdido. Um dia Anne ainda saberia o que o capitão Jim
procurava naqueles momentos.
Seria impossível negar que o Capitão Jim tinha uma aparência
pouco atraente. A mandíbula proeminente, os lábios ásperos e a
testa grande não constavam dos padrões de beleza, e, além disso,
ele já havia enfrentado muitas adversidades e tristezas que tinham
deixado marcas tanto em seu corpo quanto em sua alma. No
entanto, apesar de tê-lo considerado feioso à primeira vista, Anne
nunca mais enxergou essa característica no capitão, pois o espírito
que brilhava naquele corpo ligeiramente tosco o embelezava com
perfeição.
Todos se reuniram alegremente ao redor da mesa de jantar.
Embora o fogo na lareira espantasse o frio da noite de setembro, a
janela da sala estava aberta, e a brisa que vinha do mar entrava
conforme sua doce vontade. A vista era magnífica, abrangendo o
porto e a série de colinas baixas e arroxeadas mais adiante. A mesa
estava repleta de iguarias preparadas pela esposa do doutor Dave,
mas o prato principal era, sem dúvida, a travessa com as trutas
trazidas pelo capitão Jim.
– Achei que seriam, digamos, ainda mais saborosas depois da
viagem que o senhor e a senhora fizeram – ele disse. – Estão
realmente frescas, senhora Blythe; duas horas atrás ainda nadavam
em Glen Pond.
– Quem está cuidando do farol esta noite, Capitão Jim? –
perguntou o doutor Dave.
– Meu sobrinho Alec. Ele sabe fazer isso tão bem quanto eu.
Devo reconhecer que fiquei muito feliz por terem me convidado para
jantar. Estou faminto. Não almocei muito bem hoje.
– Creio que você frequentemente passa fome lá naquele farol – a
esposa do doutor Dave falou severamente. – Nem se dá ao trabalho
de fazer uma refeição decente.
– Oh, na verdade, faço sim, senhora doutor Dave – protestou o
capitão Jim. Geralmente vivo como um rei. Ontem à noite fui até
Glen e levei para casa um quilo de carne. Pretendia ter um almoço
fantástico hoje.
– E o que aconteceu com a carne? – a esposa do doutor Dave
indagou. – Por acaso, você a perdeu no caminho de casa?
– Não – o capitão Jim pareceu encabulado. – Bem na hora que
eu ia para a cama, um pobre cão se aproximou, e achei que ele
queria abrigo por uma noite. Suponho que pertence a um dos
pescadores que moram ao longo da costa. Ora, eu não poderia
expulsar o coitado, ele estava com uma pata machucada. Então, o
acomodei na varanda, sobre um saco velho de pano, e fui para a
cama, mas não consegui dormir e, digamos que pensando bem,
lembrei que o cachorro parecia ter fome.
– Por isso, levantou-se da cama e deu a carne para ele... toda a
carne! – disse a esposa do doutor Dave, com ar de triunfo e
reprovação.
– Bem, não tinha mais nada para lhe dar – o capitão Jim explicou,
quase se desculpando. – Quer dizer, nada que um cão quisesse
comer. E devo dizer que ele estava mesmo faminto, pois acabou
com a carne em duas mordidas. Dormi bem pelo resto da noite,
porém meu almoço hoje foi, digamos, escasso: batatas e ponto final,
como se costuma dizer. O cachorro foi embora bem cedo, esta
manhã. E pelo menos posso afirmar que definitivamente ele não é
vegetariano.
– Que ideia! Passar fome por causa de um cachorro sem valor
nenhum – resmungou a esposa do doutor Dave.
– Ele pode ter um valor enorme para alguém – argumentou o
capitão. – Não me pareceu um animal valioso, mas não se deve
julgar um cão por sua aparência, não é? Afinal, assim como eu, ele
pode ter muita beleza interior. O Primeiro Imediato não o aprovou,
tenho de admitir; seu modo de se expressar deixou isso bastante
claro. Contudo, o Primeiro Imediato é preconceituoso. Não há como
levar a sério a opinião de um gato a respeito de um cachorro. De
qualquer modo, o fato é que perdi meu almoço fantástico, portanto
esta mesa cheia de comida boa e essas companhias tão agradáveis
me proporcionam uma alegria enorme. Como é ótimo ter bons
vizinhos!
– Capitão Jim, quem mora naquela casa entre os salgueiros lá
em cima, perto do rio? – Anne perguntou.
– A senhora Dick Moore – ele respondeu – e seu marido –
acrescentou, como se tivesse se lembrado disso posteriormente.
Anne sorriu e logo criou uma figura mental da senhora Dick
Moore, com base na maneira como o capitão havia falado dela;
evidentemente, era uma segunda senhora Rachel Lynde.
– Não há muitos vizinhos por aqui, senhora Blythe – o capitão Jim
prosseguiu. – Este lado do porto é bem pouco povoado. A maior
parte dessas terras é do senhor Howard, que vive para lá de Glen, e
ele as aluga como pasto. Agora, o outro lado do porto é cheio de
habitantes, principalmente os MacAllister. Existe ali uma autêntica
colônia de MacAllister; não se pode atirar uma pedra sem acertar
um deles. Outro dia, eu estava conversando com o velho Leon
Blacquiere – ele veio trabalhar no porto durante todo o verão – e
Leon me disse: “Lá quase todo mundo é MacAllister. Tem Neil
MacAllister, Sandy MacAllister, William MacAllister, Alec MacAllister,
Angus MacAllister... e acredito que tenha até Diabo MacAllister!”.
– Há também quase a mesma quantidade de moradores das
famílias Elliot e Crawford – afirmou o doutor Dave depois que as
risadas diminuíram. – Sabe, Gilbert, nós, os habitantes deste lado
do porto, temos uma prece antiga que diz: “Da vaidade dos Elliot, do
orgulho dos MacAllister e da arrogância dos Crawford, que o bom
Deus nos livre”.
– Mas existem muitas pessoas boas entre eles – protestou o
capitão Jim. – Naveguei com William Crawford por muitos anos e
posso dizer que não existe um homem sequer com a mesma
coragem, a mesma perseverança e a mesma honestidade que ele.
O fato é que o pessoal que vive do outro lado de Four Winds é
inteligente. Talvez seja por isso que somos de certa maneira
inclinados a, digamos, implicar com eles. É estranho o modo como
as pessoas parecem se ressentir de alguém ter nascido um pouco
mais inteligente que elas, não acham?
O doutor Dave, que tinha quarenta anos de rixa com os
habitantes do outro lado do porto, riu e se calou.
– Quem mora naquela casa verde, brilhante como uma
esmeralda, a uns oitocentos metros daqui? – perguntou Gilbert.
O capitão sorriu, entusiasmado.
– A senhorita Cornelia Bryant. Ela provavelmente vai visitá-los em
breve, já que são presbiterianos. Se fossem metodistas, ela não
viria. Cornelia tem um verdadeiro horror de metodistas.
– Ela é uma personagem e tanto! – o doutor Dave deu uma
risadinha. – E odeia terrivelmente todos os homens.
– Uvas verdes, como na fábula da raposa? – perguntou Gilbert,
com malícia.
– Não, não é o caso – disse o capitão, sério. – Quando era jovem,
Cornelia poderia ter escolhido o homem que quisesse. Até hoje,
bastaria ela dizer uma palavra e os viúvos da redondeza viriam
correndo. Parece que Cornelia simplesmente já nasceu com uma
espécie de aversão crônica aos homens e aos metodistas. Ela tem a
língua mais afiada e o coração mais bondoso de Four Winds. Onde
quer que haja algum problema, lá está Cornelia Bryant fazendo o
que pode para ajudar da maneira mais afetuosa. Nunca pronuncia
uma palavra dura sobre outra mulher, e se ela considera todos os
homens uns patifes e nos trata como tais, acho que podemos e
devemos suportar de bom grado.
– Cornelia sempre fala bem de você, capitão Jim – a esposa do
doutor afirmou.
– Pois é, receio que sim, e não gosto nem um pouco disso. Fica
parecendo que há algo, digamos, de errado comigo.
Q
uem foi a primeira noiva que veio morar aqui, capitão
Jim? – Anne perguntou enquanto se sentavam ao redor da
lareira após o jantar.
– Ela fez parte da história que ouvi dizer que existe sobre esta
casa? – perguntou Gilbert. – Alguém me disse que o senhor saberia
contá-la, capitão.
– Bem, sim, eu conheço a história. Acho que atualmente sou a
única pessoa viva em Four Winds que se lembra da noiva do
professor exatamente como ela era quando veio para cá. Ela morreu
há trinta anos, mas era uma daquelas mulheres que a gente nunca
vai esquecer.
– Conte a história para nós – Anne pediu. – Quero saber tudo
sobre as mulheres que viveram nesta casa antes de mim.
– Só foram três: Elizabeth Russel, a senhora Ned Russel e a
noiva do professor. Elizabeth Russel era uma criatura bondosa,
bonita e inteligente, e a senhora Ned também era uma boa pessoa.
Contudo, nenhuma nunca foi nem parecida com a noiva do
professor. O nome dele era John Selwyn. Veio da Europa para
lecionar em Glen quando eu era um jovem de dezesseis anos, e não
se parecia nada com os outros professores irresponsáveis que
costumavam vir trabalhar em Prince Edward Island naquela época.
Quase todos eram criaturas inteligentes, porém alcoólatras, que
ensinavam as crianças a ler, escrever e fazer operações
matemáticas quando estavam sóbrios mas as espancavam durante
o resto do tempo. Contudo, John Selwyn era um rapaz bonito e
bom. Se hospedou na casa de meu pai e nos tornamos amigos,
embora ele fosse dez anos mais velho que eu. Nós conversámos
muito, líamos e caminhávamos juntos com frequência. Ele conhecia
todos os poemas que já foram escritos, suponho, e costumava
recitá-los para mim na praia todas as noites. Papai achava que era
tudo uma perda de tempo terrível, mas, digamos, suportava, com a
esperança de que aquilo me levasse a deixar de lado a ideia de ir
para o mar. Ora, nada poderia me fazer desistir de ser marinheiro.
Mamãe veio de uma família de marujos e já nasci com essa
vocação. Mesmo assim, eu adorava ouvir John ler e declamar. Foi
há quase sessenta anos, mas eu saberia repetir várias poesias que
aprendi com ele. Imaginem, praticamente sessenta anos!
O capitão Jim ficou em silêncio por algum tempo, contemplando o
brilho do fogo e buscando o passado. Depois, com um suspiro,
retomou sua história.
– Eu me lembro de uma noite de primavera em que o encontrei
nas dunas. Ele estava, digamos, enlevado... Assim como o senhor,
doutor Blythe, quando chegou com sua esposa hoje. Pensei nele no
mesmo instante em que o vi. Ele me falou que tinha uma amada na
sua terra e que ela viria para cá, iam morar juntos. Não fiquei
contente, jovem ranzinza e egoísta que era. Achei que, depois que
ela chegasse, ele não seria mais tão meu amigo. Porém, tive
decência suficiente para não deixar que ele percebesse. John me
contou tudo sobre ela. Seu nome era Persis Leigh, e ela teria vindo
junto com ele se não fosse por seu tio. O velho estava muito doente
e, como tinha sido quem a criara depois da morte de seus pais, ela
não o deixaria por nada neste mundo. Com a morte do velho, ela
estava livre, então, para se casar com o professor. Mas naquela
época a viagem para cá não era nada fácil, principalmente para uma
mulher. É preciso lembrar que não existiam barcos a vapor naquele
tempo. “Quando é que ela vem?”, perguntei. “Vai embarcar no Royal
William no dia 20 de junho”, ele disse, “e então deve chegar aqui em
meados de julho. Preciso contratar o carpinteiro Johnson para
construir uma casa para nós. A carta dela chegou hoje; eu sabia
antes de ler que trazia boas notícias. Eu vi Persis poucas noites
atrás”. No momento, não entendi aquilo, mas ele me explicou,
embora eu ainda assim não tenha compreendido muito melhor.
Disse que possuía um dom... ou uma maldição. Essas foram suas
palavras, senhora Blythe: “Um dom ou uma maldição”. Ele não sabia
qual das duas coisas era, apenas me falou que uma tataravó sua
também tinha esse poder e foi queimada como uma bruxa por causa
disso. John comentou que de vez em quando tinha essas visões
estranhas, uma espécie de transe... Acho que foi esse o nome que
ele usou: transe. Isso existe mesmo, doutor?
– Há pessoas que certamente estão sujeitas a transes –
respondeu Gilbert. – Mas esse assunto está mais na área de
pesquisa psíquica do que médica. Como eram esses transes do
professor?
– Certamente como sonhos – sugeriu com ceticismo o doutor
Dave.
– Ele afirmou que podia ver coisas quando estava nesse estado –
o capitão Jim respondeu lentamente. – Prestem bem atenção, estou
relatando exatamente o que ele me disse... Via coisas que estavam
acontecendo... e coisas que ainda iriam acontecer. Falou que isso
às vezes lhe trazia felicidade, outras vezes, pavor. Quatro noites
antes desse nosso encontro na praia, ele havia tido uma dessas
visões. Aconteceu enquanto observava o fogo. John enxergou
Persis Leigh em um cômodo antigo e grande que ele conhecia bem,
na Inglaterra; ela estava muito alegre e sorridente, estendendo os
braços para seu amado. Foi então que soube que receberia boas
notícias dela.
– Ora, um sonho... Um sonho – caçoou o velho médico.
– Provavelmente... Provavelmente – o capitão admitiu. – Foi o
que eu lhe disse naquele momento. Era imensamente mais
confortável pensar assim; afinal, eu não gostava da ideia de que ele
via coisas desse jeito. Era realmente esquisito. “Não”, o professor
retrucou, “não foi um sonho, mas, por favor, não vamos mais falar
sobre isso; você pode acabar deixando de ser meu amigo se pensar
muito nessas coisas”. Imediatamente, declarei que nada poderia
prejudicar minha amizade por ele, mas John balançou a cabeça e
falou: “Rapaz, sei o que estou dizendo. Já perdi amigos antes por
causa disso. E não os culpo. Há momentos em que, por conta disso,
eu mesmo tenho dificuldade em gostar de mim. Esse poder tem um
pouco de divindade em si, seja ela boa ou má; quem pode saber? E
todos nós, os mortais, evitamos um contato muito próximo tanto com
Deus quanto com o diabo”. Foram suas palavras. Lembro-me delas
como se tudo tivesse acontecido ontem, embora eu não soubesse
ao certo o que ele quis dizer. O que o senhor acha que isso
realmente significava, doutor?
– Duvido que ele próprio saberia explicar – o doutor Dave afirmou
rispidamente.
– Acho que eu entendo – sussurrou Anne.
Anne ouvia tudo em sua antiga atitude de manter os lábios
apertados e os olhos brilhantes. O capitão Jim proporcionou a si
mesmo um sorriso de admiração antes de continuar sua história.
– Bem, logo, logo, todo mundo de Glen e de Four Winds já sabia
que a noiva do professor estava a caminho da ilha, e todos se
sentiam muito felizes, porque não havia quem não gostasse dele.
Além disso, todos estavam interessados em conhecer sua nova
casa... esta casa. Ele havia escolhido este lugar porque aqui se
pode ver o porto e ouvir o mar. John fez aquele jardim ali para sua
noiva, porém não foi ele quem plantou os álamos. Foi a senhora
Ned Russel. E aquelas duas fileiras de roseiras no jardim foram as
meninas que frequentavam a escola de Glen que plantaram para a
noiva do professor. Ele entendeu que eram cor-de-rosa para
homenagear as bochechas de Persis; brancas, para representar sua
pele; e vermelhas para homenagear seus lábios. John costumava
recitar poemas com tanta frequência que, digamos, adquiriu o hábito
de fazê-los também, eu acho. Quase todos os moradores da região
enviaram algum presente para ajudá-lo a montar a casa. Quando os
Russel vieram para cá, eles a mobiliaram lindamente, como podem
ver, pois eram bem ricos, mas os primeiros móveis colocados aqui
eram bastante simples. Contudo, essa pequena casa era
verdadeiramente rica em amor. As mulheres da região mandaram
colchas, toalhas de mesa e de banho; um homem fez uma cômoda,
outro fez uma mesa... e assim por diante. Até a velha e cega tia
Margaret Boyd trançou uma cesta com a grama deliciosamente
perfumada que colheu nas dunas. A esposa do professor usou essa
cesta durante anos para guardar seus lenços. Bem, por fim, tudo
ficou pronto... Até a lenha estava na lareira, pronta para ser acesa.
Na verdade, não era exatamente esta lareira, embora estivesse no
mesmo lugar. A senhorita Elizabeth mandou colocar a atual quando
reformou a casa, quinze anos atrás. Era uma lareira grande e
antiga, onde se podia até assar um boi. Muitas vezes eu me sentei
aqui e contei histórias, assim como estou fazendo esta noite.
Mais uma vez, houve um breve silêncio enquanto o capitão Jim
se encontrava com visitantes que Anne e Gilbert não eram capazes
de ver: as pessoas que haviam se sentado com ele ao redor
daquela lareira em um passado distante, com alegria e júbilo nupcial
brilhando nos olhos, repousavam para sempre sob o gramado do
cemitério ou no fundo do mar. Ali, em noites de um tempo já remoto,
crianças haviam dado risadas, correndo de um lado para o outro;
amigos tinham se reunido em fins de tardes de inverno; música,
dança e gracejos haviam marcado presença; rapazes e moças
tinham sonhado. Para o capitão Jim, aquela pequena casa estava
repleta de detalhes que despertavam lembranças preciosas.
– A casa ficou pronta no dia 1º de julho, e a partir de então o
professor começou a contar as horas. Costumávamos vê-lo
caminhar ao longo da praia e dizíamos: “Logo ela vai estar aqui com
ele”. A noiva de John era esperada para o meio do mês, mas não
chegou. No entanto, ninguém se preocupou, pois os navios sempre
atrasavam dias ou até semanas. Porém, o Royal William atrasou
uma semana... Duas... Três... Todos nós começamos a ficar cada
vez mais amedrontados. Por fim, eu já não podia mais olhar para os
olhos de John Selwyn. Sabe, senhora Blythe – o capitão abaixou a
voz –, eu sempre me lembrava da tataravó dele e imaginava que
seus olhos estavam do mesmo jeito que quando ela morreu
queimada. Ele não falava muito; dava suas aulas como se estivesse
em um sonho e depois corria para o litoral. Foram muitas as noites
em que caminhou pela praia desde o crepúsculo até o amanhecer.
As pessoas diziam que ele estava enlouquecendo. Ninguém mais
alimentava esperanças, o Royal William estava com oito semanas
de atraso. E como a noiva do professor ainda não havia chegado
em meados de setembro, pensávamos que ela não viria mais.
Então, veio uma tempestade que durou três dias. Na noite seguinte
ao temporal, fui até a praia e encontrei o professor apoiado em uma
pedra grande, com os braços cruzados, observando o mar. Falei
com ele, mas o homem não respondeu. Seus olhos pareciam
enxergar algo que eu não via. O rosto estava imóvel como o de uma
pessoa morta. “John! John!”, chamei – assim mesmo, como uma
criança assustada –; “acorde, acorde!” Então aquela coisa estranha,
terrível em seus olhos pareceu, digamos, se dissipar. Ele virou a
cabeça e olhou para mim. Nunca me esqueci da expressão em seu
rosto... Jamais vou esquecer, até embarcar na minha última viagem.
“Está tudo bem, amigo”, ele falou. “Vi o Royal William se aproximar
do leste do pontal; vai chegar aqui ao nascer do sol. Amanhã à noite
vou me sentar com minha noiva diante de minha própria lareira.”
Acham que ele viu mesmo? – o capitão Jim perguntou
abruptamente.
– Só Deus sabe – Gilbert falou, pensativo. – Não sabemos do que
um grande amor e uma grande dor são capazes.
– Tenho certeza de que viu – afirmou Anne seriamente.
– Bobagem – disse o Dr. Dave, porém com bem menos convicção
que anteriormente.
– O fato é que – o capitão falou solenemente – o Royal William
chegou a Four Winds Harbor ao amanhecer do dia seguinte. Todas
as pessoas que viviam em Glen e ao longo da costa estavam no
antigo cais para conhecer a noiva. O professor tinha passado a noite
toda lá, observando o mar. Oh, como aplaudimos ao ver o navio
cruzar o canal! – Quando se lembrou disso, os olhos do capitão
brilharam: estavam enxergando o Four Winds Harbor de sessenta
anos atrás e uma embarcação velha e danificada navegando rumo a
ele em meio ao esplendor do nascer do sol.
– Persis Leigh estava a bordo? – Anne indagou ansiosamente.
– Sim... ela e a esposa do capitão do navio. Tinham feito uma
viagem horrível, com uma tempestade após outra e, além disso, as
provisões haviam acabado. Mas finalmente chegaram a seu destino.
Quando Persis Leigh pisou no antigo cais e John Selwyn a pegou
nos braços, as pessoas pararam de bater palmas e começaram a
chorar. Eu mesmo chorei, mas anos se passaram, vejam bem, anos,
antes que eu admitisse isso. Não é engraçado o modo como os
garotos têm vergonha de derramar lágrimas?
– Persis Leigh era uma moça linda? – perguntou Anne.
– Bem, não sei se a senhora diria que ela era exatamente linda...
Eu... não... sei – o capitão respondeu vagarosamente. – Por alguma
razão, nunca chegamos a nos perguntar se ela era bonita ou não;
isso simplesmente não importava. Havia algo tão doce e encantador
na senhorita Leigh que, digamos, era impossível não amá-la à
primeira vista. Mas posso dizer que sua aparência era fascinante.
Seus olhos eram da cor das avelãs, grandes e brilhantes; o cabelo
era castanho, farto e sedoso; e a pele, tipicamente inglesa. John e
ela se casaram em nossa casa, no fim daquele mesmo dia, à luz de
velas. Todos os vizinhos, de longe e de perto, estavam lá, e nós os
trouxemos para cá depois da cerimônia. A senhora Selwyn acendeu
o fogo e fomos embora, deixando os dois sentados aqui,
exatamente como John tinha previsto naquela visão. Uma coisa
estranha... Muito estranha! No entanto, devo admitir que já vi
montes de coisas estranhas nesta minha vida – o capitão Jim
concluiu, com ar de sabedoria, balançando a cabeça.
– É uma história linda! – exclamou Anne, sentindo que ali havia
romantismo suficiente para satisfazê-la. – Quanto tempo eles
viveram aqui?
– Quinze anos. Fugi para o mar logo depois que se casaram,
jovem audacioso que eu era. Porém, sempre que voltava de uma
viagem, eu vinha vê-los, antes mesmo de ir até minha casa, e
contava para a senhora Selwyn as aventuras que tinha vivido.
Foram quinze anos maravilhosos! Aqueles dois tinham uma espécie
de talento para a felicidade, sabem? Algumas pessoas são assim, já
perceberam? Eles não conseguiam ficar tristes por muito tempo,
não importava o que acontecesse, embora brigassem às vezes, pois
ambos eram temperamentais. Porém a senhora Selwyn me disse
numa ocasião, rindo com aquele seu jeito gracioso: “Eu me sinto
muito mal sempre que John e eu nos desentendemos, mas, no
fundo, fico muito satisfeita quando penso que tenho um marido tão
bom, com quem posso ter desavenças e fazer as pazes em
seguida”. Depois de algum tempo eles se mudaram para
Charlottetown. Ned Russell comprou esta casa e trouxe sua noiva
para cá. Eu me lembro deles como um casal jovem e alegre. A
senhorita Elizabeth Russel era irmã de Alec. Ela veio morar com os
dois mais ou menos um ano mais tarde, e também era uma criatura
muito bem-humorada. As paredes desta casa devem estar,
digamos, encharcadas de risos e bons momentos. A senhora é a
terceira noiva que vi chegar aqui, senhora Blythe... E a mais bonita.
O capitão Jim esforçou-se para que seu elogio tivesse a
delicadeza de uma violeta, e Anne o recebeu como tal, docemente.
Estava com sua melhor aparência naquela noite, com o tom rosado
da felicidade nupcial nas bochechas e a luz do amor nos olhos. Até
mesmo o ranzinza doutor Dave, em certo momento, olhou-a com
aprovação e disse à esposa, enquanto voltavam para casa, que
aquela moça ruiva do garoto era uma verdadeira beldade.
– Preciso voltar para o farol agora – anunciou o capitão. – Saibam
que esta noite foi tremendamente divertida.
– O senhor deveria nos visitar com frequência – Anne sugeriu.
– Será que a senhorita faria esse convite se soubesse o quanto
estou disposto a aceitá-lo? – o capitão Jim indagou, com um sorriso
bem-humorado.
– Isso quer dizer que está se perguntando se fui sincera, não é? –
Anne sorriu e continuou. – Sim, fui, e juro pelo que há de mais
sagrado, como costumávamos dizer quando eu era aluna da escola
de Avonlea.
– Sendo assim, virei. Podem esperar que eu os importune a
qualquer momento. E vou ficar orgulhoso se vierem me visitar de
vez em quando também. Geralmente, não tenho ninguém com
quem falar, exceto o Primeiro Imediato. Bendito seja seu coração
sociável! Ele é um ouvinte excelente, e garanto que já se esqueceu
de muitas coisas que nenhum MacAllister jamais soube, mas não é
muito conversador. A senhora é jovem e eu sou velho, mas nossas
almas têm mais ou menos a mesma idade, suponho, senhora
Blythe, pois ambos pertencemos à raça que conhece Joseph, como
diria Cornelia Bryant.
– A raça que conhece Joseph?! – Anne falou, intrigada.
– Sim. Cornelia divide todas as pessoas do mundo em dois
grupos: a raça que conhece Joseph e a que não o conhece. Se
alguém, digamos, tem ideias e opiniões semelhantes às suas a
respeito das coisas, e o mesmo senso de humor, então essa pessoa
pertence à raça que conhece Joseph.
– Ah, entendi! – Anne exclamou, iluminando-se. – É o que eu
costumava chamar... e ainda chamo, entre aspas, de “almas irmãs”.
– Exatamente... Isso mesmo! – concordou o capitão. – Somos
isso, seja lá o que isso for. Quando a vi hoje, senhora Blythe, eu
disse a mim mesmo: “Ela é da raça que conhece Joseph”. Fiquei
extremamente grato por isso, pois, se não fosse assim, não
poderíamos ficar contentes na companhia um do outro. Aqueles que
conhecem Joseph são o sal da terra,******** acho eu.
A lua havia acabado de nascer quando Anne e Gilbert
acompanharam suas visitas até a porta. Four Winds Harbor
começava a se tornar um local de sonhos, fascínio e encantamento;
um refúgio abençoado que nenhuma tempestade poderia destruir.
Os álamos ao longo da alameda, altos, imponentes e sombrios
como se fossem sacerdotes de algum grupo místico, tinham suas
extremidades realçadas pela luz prateada do luar.
– Sempre gostei de álamos – disse o capitão Jim, apontando para
eles com o braço longo. – São as árvores das princesas, mas estão
fora de moda atualmente. As pessoas reclamam que as folhas do
topo morrem, e então eles ficam feios. Ora, ficam mesmo... No
entanto, ficam assim se ninguém arrisca o pescoço subindo em uma
escada leve e alta, a cada primavera, para apará-los. Eu sempre
fazia isso para a senhorita Elizabeth, e os dela nunca ficavam
desalinhados. Ela tinha um carinho especial por eles, sabe?
Admirava sua dignidade e altivez. Eles não se misturam com
ninguém. Os bordos nos fazem companhia, senhora Blythe, mas os
álamos não, eles pertencem à sociedade.
– Que noite linda! – a esposa do doutor Dave exclamou enquanto
subia na charrete.
– Quase todas as noites são bonitas – disse o capitão Jim –, mas
reconheço que o luar sobre Four Winds me faz, digamos, pensar
sobre o que pode ter ainda restado para o paraíso. A lua é uma
grande amiga minha, senhora Blythe. Eu a amo desde criança.
Quando era um menino de oito anos, adormeci no jardim durante o
crepúsculo e ninguém sentiu minha falta. Acordei no meio da noite e
quase morri de medo. Quantas sombras e barulhos estranhos havia
ao meu redor! Não ousei nem me mover. Fiquei quieto, agachado,
tremendo... Pobre criança! Parecia que não tinha ninguém além de
mim no mundo, e que ele era imensamente grande. Então, de
repente vi a lua lá em cima me olhando por entre os ramos da
macieira como se fosse, digamos, uma velha amiga. Na mesma
hora me senti confortado. Levantei-me e caminhei até minha casa,
sempre olhando para ela e me sentindo valente como um leão.
Foram muitas as noites em que fiquei no deque de meu navio
observando a lua no céu sobre mares muito distantes daqui. Epa,
por que ninguém ainda me mandou parar de tagarelar e ir embora?!
As risadas das despedidas desapareceram. Anne e Gilbert
caminharam de mãos dadas por seu jardim. A água cristalina do
riacho em um dos cantos fluía brilhando entre as sombras das
bétulas. Nas margens, as papoulas se assemelhavam a taças rasas
repletas de luar. As flores que haviam sido plantadas pelas mãos da
noiva do professor lançavam seu aroma doce no ar sombrio,
trazendo a beleza e a bênção de um passado sublime. Anne parou
para apreciar seu perfume e disse:
– Adoro sentir o aroma das flores no escuro: é quando temos
acesso a suas almas. Oh, Gilbert esta pequena casa é tudo com o
que sonhei. E estou tão contente por saber que não somos o
primeiro casal a fazer dela seu primeiro ninho de amor!
A
quele setembro foi um mês de névoas douradas e brumas
roxas em Four Winds Harbor; um mês com dias de sol e noites
enluaradas e plenas de estrelas. Nenhuma tempestade tirou
sua paz, nenhum vento soprou mais forte. Anne e Gilbert puseram
seu ninho de amor em ordem, caminharam nas praias, navegaram
no mar, passearam em Four Winds, em Glen e pelas trilhas –
praticamente desertas e margeadas por samambaias – do bosque
ao redor do porto. Em suma, tiveram uma lua de mel que qualquer
casal do mundo poderia invejar.
– Se a vida acabasse subitamente neste momento, ainda assim
ela teria valido muito a pena, apenas pela felicidade das últimas
quatro semanas, não acha, Gilbert? – disse Anne. – Suponho que
nunca mais vamos ter novamente quatro semanas perfeitas como
essas; mas agora já as tivemos. O vento, o clima, as pessoas, a
casa dos sonhos... Tudo conspirou para tornar nossa lua de mel
deliciosa. Não houve nem mesmo um dia chuvoso desde que
chegamos aqui.
– E também não nos desentendemos nenhuma vez – brincou
Gilbert.
– Bem, como se costuma dizer, esse prazer será ainda maior
quando vier, pelo fato de ter demorado a chegar – Anne comentou,
rindo. – Estou tão contente por termos decidido passar a lua de mel
aqui! Nossas lembranças deste tempo vão sempre pertencer à
nossa casa dos sonhos, em vez de estar espalhadas por lugares
estranhos.
Havia, na atmosfera de seu novo lar, um sabor de romance e
aventura que Anne nunca tinha sentido em Avonlea. Lá, embora ela
também pudesse ver o oceano, ele não parecia ter participado tão
intimamente de sua vida. Em Four Winds, o mar a cercava e a
chamava constantemente. De cada janela de sua casa nova ela via
um aspecto diferente dele, e seu murmúrio persistente estava
sempre nos ouvidos de Anne. Embarcações chegavam todos os
dias ao cais, em Glen, ou partiam, navegando ao pôr do sol com
destino a outros portos que poderiam estar até do outro lado do
planeta. Todas as manhãs, barcos de pesca com suas velas
brancas atravessavam o canal e retornavam carregados no fim do
dia. Marinheiros e pescadores percorriam, despreocupados e
contentes, as ruas vermelhas e sinuosas do porto.
Frequentemente Anne tinha a sensação de haver coisas prestes
a acontecer: aventuras, viagens... A vida em Four Winds era menos
sóbria, recolhida e monótona que em Avonlea; ventos de mudança
sopravam sobre as pessoas; o mar convidava os moradores da
costa a visitá-lo, e mesmo aqueles que não atendiam ao seu
chamado sentiam a emoção, o êxtase, o mistério e as possibilidades
que ele oferecia.
– Agora compreendo por que alguns homens precisam ir para o
mar – Anne falou. – Aquele desejo que todos nós sentimos às vezes
de navegar para além do pôr do sol deve ser absolutamente
irresistível quando já nasce com a pessoa. Não é de admirar que o
Capitão Jim tenha fugido por causa disso. Nunca vi um navio saindo
do canal, ou uma gaivota voando alto sobre as dunas, sem desejar
estar a bordo do navio ou ter asas – não como as de uma pomba,
“para voar e estar em descanso”,******** mas como as da gaivota, para
alcançar o coração de uma tempestade.
– Você vai ficar exatamente aqui comigo, Anne – Gilbert garantiu
romanticamente. – Não vou deixar que voe para longe de mim, rumo
ao coração de tempestade nenhuma.
Era um fim de tarde, e os dois estavam sentados no degrau de
arenito vermelho da soleira da porta. Uma grande tranquilidade
reinava – na terra, no mar e no céu. Gaivotas prateadas voavam
sobre eles. Delicadas como a renda, faixas longas de nuvens cor-
de-rosa enfeitavam o horizonte. O silêncio era entremeado com o
murmúrio melodioso de ventos e ondas do oceano. Flores pálidas
se destacavam nos prados secos e enevoados entre a casa dos
sonhos e o porto.
– Médicos que têm de passar a noite inteira cuidando de um
paciente não podem se sentir muito aventureiros, acho – Anne falou,
compreensiva. – Se você tivesse dormido algumas horas de ontem
para hoje, Gilbert, agora estaria tão pronto quanto eu para dar asas
à imaginação.
– Fiz um bom trabalho esta noite, Anne – Gilbert argumentou
calmamente. – Com a graça de Deus, salvei uma vida. É a primeira
vez que posso realmente afirmar isso. Em outros casos, apenas
ajudei; porém, se eu não tivesse permanecido durante todas
aquelas horas na residência dos Allonby lutando bravamente contra
a morte, aquela mulher teria partido antes do amanhecer. Tentei um
procedimento que certamente nunca havia sido feito em Four
Winds. Duvido até que ele já tenha sido realizado em qualquer outro
lugar fora de um hospital. Foi uma técnica nova desenvolvida em
Kingsport no inverno passado. Eu jamais ousaria utilizá-la aqui se
não estivesse absolutamente seguro de que não havia alternativa.
Arrisquei e deu certo. Como resultado, uma boa esposa e mãe
dedicada foi salva e tem pela frente longos anos de felicidade e
préstimo. Enquanto eu voltava para casa essa manhã e o sol nascia
sobre o porto, agradeci a Deus por ter escolhido ser médico. Lutei
uma batalha árdua e venci... Pense nisto, Anne, eu venci o grande
ceifador de vidas! É algo com que vinha sonhando havia muito
tempo, desde quando conversamos sobre nossas aspirações na
vida, lembra? Pois bem, aquele meu ideal se tornou realidade essa
manhã.
– Esse foi o único de seus sonhos que se realizou? – indagou
Anne, que sabia muito bem qual seria sua resposta, mas queria
ouvi-la novamente.
– Você sabe que não, Anne – disse Gilbert com um sorriso.
Naquele momento, sem dúvida havia duas pessoas perfeitamente
felizes sentadas na soleira da porta de uma pequena casa branca
na costa de Four Winds Harbor.
Minutos depois, Gilbert falou, mudando o tom de voz:
– Estou ou não vendo um veleiro totalmente equipado navegando
sobre nossa alameda?
Anne olhou e se levantou imediatamente.
– Aquela deve ser a senhorita Cornelia Bryant, ou a senhora
Moore, que vem nos visitar – concluiu.
– Vou entrar em meu consultório; se for a senhorita Cornelia,
saiba que pretendo escutar vocês – Gilbert avisou. – Por tudo o que
já ouvi a respeito dela, suponho que a conversa não vai ser, no
mínimo, nem um pouco enfadonha.
– Pode ser a senhora Moore.
– Não creio que a senhora Moore tenha essa silhueta. Eu a vi
trabalhando em seu jardim outro dia e, embora a distância não me
permitisse uma visão muito clara, achei-a bem magra. Além disso,
ela não parece inclinada a se socializar, já que ainda não nos
visitou, mesmo sendo nossa vizinha mais próxima.
– Então, afinal, ela não pode ser como a senhora Lynde, pois a
curiosidade já a teria trazido até aqui – disse Anne. – Acho que essa
visita é a senhorita Cornelia.
Era mesmo a senhorita Cornelia. E não tinha vindo fazer uma
visita breve e de cortesia aos recém-casados. Trazia seu trabalho
manual em um pacote grande debaixo do braço e, quando Anne a
convidou a entrar e se sentar, tirou imediatamente o enorme chapéu
de sol que, apesar das brisas irreverentes que sopravam, estava
bem preso à sua cabeça por uma tira de elástico atada sob um
coque pequeno e louro. Nada de alfinetes de chapéu para a
senhorita Cornelia; de jeito nenhum. Tiras de elástico haviam sido
suficientemente boas para sua mãe e, portanto, eram eficientes para
ela também.
Seu rosto era saudável, redondo e rosado, e os olhos eram
castanhos e alegres. Ela não se parecia de modo algum com a
imagem tradicional de uma solteirona, e alguma coisa em sua
expressão conquistou instantaneamente Anne, que, com sua
rapidez instintiva em reconhecer almas irmãs, logo soube que
gostaria da senhorita Cornelia, apesar de ela ter algumas opiniões
estranhas e contestáveis e se vestir de forma incontestavelmente
esquisita.
Ninguém, exceto a senhorita Cornelia, teria feito uma visita
usando um avental listrado de azul e branco sobre um vestido
marrom largo e comprido, com estampa de flores cor-de-rosa
enormes. E ninguém, exceto a senhorita Cornelia, poderia parecer
digna e adequadamente vestida dessa maneira. Se ela entrasse em
um palácio para visitar a noiva de um príncipe, teria a mesma
aparência distinta e o mesmo domínio da situação; arrastaria a barra
do vestido salpicado de flores sobre o piso de mármore com a
mesma despreocupação e cumpriria, com a mesma calma, seu
dever de desiludir a princesa da ideia de que a mera posse de um
homem, fosse ele príncipe ou camponês, seria motivo para se
gabar.
– Trouxe meu trabalho, senhora Blythe querida – ela comentou,
desenrolando um tecido delicado. – Tenho pressa de terminar isso;
não há tempo a perder.
Anne olhou agradavelmente surpreendida para a pequena
vestimenta branca estendida sobre o colo amplo da senhorita
Cornelia. Era certamente um belo traje de bebê, feito
caprichosamente com pregas e babados minúsculos. A mulher
ajustou seus óculos e começou a bordá-lo com pontos primorosos.
– Isto é para a senhora Fred Proctor, que mora em Glen –
anunciou. – Ela espera seu oitavo bebê para qualquer momento e
não possui sequer uma peça de roupa pronta para ele. Os outros
sete usaram as que ela fez para o primeiro até desgastá-las
totalmente, e a coitada nunca mais teve tempo, força ou ânimo para
confeccionar nenhuma outra. Aquela mulher é uma verdadeira
mártir, senhora Blythe, acredite em mim. Quando se casou com
Fred Proctor eu já imaginava o que aconteceria. Até então, ele era
um daqueles homens malvados e fascinantes que costumam
encantar vocês. Mas, depois que se casou, deixou de ser fascinante
e continuou malvado. Só bebe e negligencia sua família. Não é uma
atitude típica dos homens? Não sei como a senhora Proctor
conseguiria manter os filhos decentemente vestidos se os vizinhos
não a ajudassem.
Entretanto, como Anne soube posteriormente, a senhorita
Cornelia era a única vizinha que se importava realmente com a
decência das roupas da prole dos Proctor.
– Quando eu soube que esse oitavo bebê estava a caminho
decidi fazer um pequeno enxoval para ele – a senhorita Cornelia
prosseguiu. – Esta é a última peça, e quero terminá-la hoje.
– Sem dúvida, está muito bonita! – Anne exclamou. – Vou buscar
minha caixa de costura para nós duas fazermos uma festa do dedal.
É muito habilidosa, senhorita Bryant.
– Sim, sou a melhor costureira da região – afirmou a senhorita
Cornelia, com um tom de grande naturalidade. – Eu tinha de ser!
Oh, Senhor, fiz mais vestimentas como esta do que se eu mesma
tivesse dado à luz cem filhos, acredite em mim! Suponho que eu
seja uma tola por bordar à mão esta roupa para um oitavo filho. No
entanto, senhora Blythe querida, não se pode culpar um bebê por
ser o oitavo, e, de alguma maneira, eu quis que ele tivesse algo
realmente bonito para vestir, exatamente como se fosse desejado.
Ninguém quer o pobrezinho... Só por isso, dediquei uma atenção
especial a ele.
– Qualquer bebê pode se sentir orgulhoso dessa vestimenta –
disse Anne, ainda mais convicta de que gostava da senhorita
Cornelia.
– Suponho que andou pensando que eu não nunca viria visitá-la
– a mulher prosseguiu. – O fato é que, como sabe, este é o mês da
colheita, e tenho estado bastante ocupada. Há muitos empregados
temporários circulando por minha propriedade e comendo mais que
trabalhando... Uma atitude típica dos homens. Eu planejava vir
ontem, mas tive de ir ao funeral da senhora Roderick MacAllister. A
princípio achei que se eu fosse não me divertiria, pois estava
verdadeiramente atormentada por uma dor de cabeça horrível. No
entanto, a senhora Roderick tinha cem anos de idade, e eu havia
prometido a mim mesma, várias vezes, que iria ao funeral dela.
– Foi uma cerimônia bonita? – indagou Anne, percebendo que a
porta do consultório estava entreaberta.
– Como? Oh, sim, foi um funeral fantástico. Ela era muito bem
relacionada socialmente. Havia mais de cento e vinte charretes no
cortejo. E aconteceram algumas coisas interessantes. Por exemplo,
pensei que eu morreria ao ver o velho Joe Bradshaw – que é um
cristão infiel e nunca atravessa a porta da igreja – cantar “A salvo
nos braços de Jesus” com grande satisfação e fervor. Ele adora
cantar, por isso nunca perde um funeral. A coitada da senhora
Bradshaw não parecia muito disposta a acompanhá-lo; tive a
impressão de que estava exausta, ela trabalha como uma escrava!
O velho Joe sai de vez em quando e compra um presente para a
esposa... alguma máquina agrícola lançada recentemente. Não é
uma atitude típica dos homens? Porém, o que mais se poderia
esperar de um homem que nunca vai à igreja, mesmo sendo um
metodista? Fiquei muito contente ao ver a senhora e o jovem doutor
na igreja presbiteriana em seu primeiro domingo aqui. Não quero um
médico que não seja presbiteriano.
– Fomos à igreja metodista no domingo passado – disse Anne
maliciosamente.
– Sim, suponho que o doutor Blythe tenha de ir à igreja metodista
às vezes para manter uma boa clientela.
– Gostamos muito do sermão – Anne declarou ousadamente. –
Achei a prece do pastor metodista uma das mais bonitas que já
ouvi.
– Oh, não tenho a menor dúvida de que ele sabe orar. Nunca vi
ninguém fazer preces mais encantadoras que o velho Simon
Bentley, que estava sempre bêbado ou querendo ficar; e quanto
mais embriagado ficava, melhor ele orava.
– O pastor metodista é muito bonito – disse Anne, de modo a ser
ouvida do outro lado da porta entreaberta do consultório.
– Sim, ele é bastante ornamental – a senhorita Cornelia
concordou. – E muito vaidoso; acha que todas as garotas que o
conhecem se apaixonam por ele... Como se um pastor metodista,
que vaga por aí como qualquer judeu, fosse um prêmio maravilhoso!
Se a senhora e o jovem médico quiserem seguir meu conselho, não
devem se envolver muito com os metodistas. Meu lema é: se você é
um presbiteriano, seja um presbiteriano.
– A senhorita não acha que os metodistas vão para o céu, assim
como os presbiterianos? – perguntou Anne com uma expressão
séria.
– Isso não cabe a nós decidir, e sim a um poder bem superior ao
nosso – a senhorita Cornelia respondeu solenemente. – Entretanto,
não vou me associar a eles na terra, independentemente do que eu
tenha de fazer no céu. Esse pastor metodista não é casado, mas o
último que eles tiveram era, e sua esposa era a mulher mais tola e
volúvel que já vi. Uma vez falei com o pastor que ele deveria ter
esperado até que ela amadurecesse para pedi-la em casamento, e
ele me disse que queria treinar sua esposa. Não foi uma atitude
típica dos homens?
– É difícil saber exatamente quando as pessoas amadurecem –
Anne riu.
– Isso é verdade, querida. Algumas já nascem maduras, e outras
chegam aos oitenta anos sem adquirir um mínimo de sensatez,
acredite em mim. A própria senhora Roderick, de quem eu estava
falando, nunca amadureceu. Era tão ingênua aos cem anos de
idade quanto tinha sido aos dez.
– Talvez seja por isso mesmo que ela viveu tanto – sugeriu Anne.
– Talvez. No entanto, eu preferiria viver cinquenta anos de
sensatez a cem anos de imaturidade.
– Já pensou em como o mundo seria sem graça se todas as
pessoas fossem sensatas? – Anne argumentou.
A senhorita Cornelia detestava qualquer discussão sobre
assuntos polêmicos ou desafiadores.
– A senhora Roderick era uma Milgrave, e os Milgrave nunca
tiveram muito juízo. O sobrinho dela, Ebenezer Milgrave, viveu louco
por muitos anos. Acreditava que estava morto e costumava ficar
furioso com a esposa porque ela se recusava a enterrá-lo. Bem, eu
teria feito isso.
A senhorita Bryant pareceu tão friamente convicta do que dizia
que Anne quase pôde vê-la segurando uma pá.
– A senhorita não conhece nenhum marido bom?
– Oh, sim, muitos... Todos eles estão ali – disse a senhorita
Cornelia apontando pela janela aberta para o pequeno cemitério da
igreja, do outro lado do porto.
– E entre os vivos? Alguém que ande, fale... – Anne insistiu.
– Sim, há alguns, apenas para provar que, com Deus, tudo é
possível – a senhorita Cornelia admitiu, relutante. – Não nego que
um homem diferente, aqui ou ali, se foi treinado adequadamente e
se sua mãe lhe deu umas boas surras desde cedo, pode se tornar
um ser decente. Seu marido, por exemplo, pelo que ouço dizer, não
é tão ruim, levando em consideração o fato de que é um homem.
Suponho que – nesse momento, a senhorita Cornelia olhou
severamente para Anne por cima dos óculos – a senhora crê que
não há no mundo ninguém como ele.
– Não há – disse Anne prontamente.
– Bem, uma vez escutei outra recém-casada afirmar isso – a
senhorita Cornelia suspirou. – Quando se casou, Jennie Dean
pensava que não havia neste mundo ninguém como o marido dela.
E estava certa... Não havia mesmo! Ainda bem, acredite em mim! O
homem proporcionou a ela uma vida horrível. Além disso, já
cortejava sua segunda esposa enquanto Jennie agonizava. Não foi
uma atitude típica dos homens? No entanto, espero que sua
confiança no marido seja sempre justificada, querida. O jovem
doutor está se saindo realmente bem. No começo, temi que isso não
acontecesse, pois as pessoas daqui sempre acharam que o velho
doutor Dave era o único médico do planeta. Na verdade, o doutor
Dave nem tinha muito tato; estava sempre falando sobre cordas em
casas onde alguém havia se enforcado. Porém, as pessoas se
esquecem de sentimentos feridos quando estão com uma dor de
barriga. Se ele fosse um pastor, em vez de médico, jamais seria
perdoado. Uma dor na alma não incomoda tanto quanto uma dor no
estômago. Senhora Blythe, já que ambas somos presbiterianas e
não há nenhum metodista por perto, a senhora me diria qual é sua
opinião a respeito de nosso pastor?
– Hum... na realidade... eu... bem... – Anne hesitou.
A senhorita Cornelia balançou a cabeça.
– Exatamente! Concordo, querida. Cometemos um erro quando o
escolhemos. O rosto dele é bastante semelhante a uma daquelas
pedras compridas e estreitas que vemos no cemitério, não é?
Deveria estar escrito em sua testa: in memoriam. Nunca vou me
esquecer do primeiro sermão que ele pregou depois que veio para
cá. Era sobre cada um fazer aquilo para o que tem vocação. Um
ótimo assunto, claro. Contudo, a senhora precisava ver as
comparações que ele fez. Disse: “Se vocês tivessem uma vaca e
uma macieira, amarrassem a macieira no estábulo e prendessem a
vaca, com as pernas para cima, no pomar, qual seria a quantidade
de leite que conseguiriam tirar da macieira e quantas frutas
colheriam da vaca?”. Já ouviu algo parecido em toda a sua vida,
querida? Fiquei tão grata por não haver naquele dia nenhum
metodista por ali... No entanto, o que menos gosto nele é o hábito
de concordar com todas as pessoas, não importa o que elas digam.
Se a senhora o chamasse de patife, ele responderia, com aquele
sorriso tranquilo: “Sim, é isso o que sou”. Um pastor deve ter mais
firmeza de caráter. Em síntese, eu o considero um reverendo idiota.
Mas isso deve ficar só entre nós duas. Quando há metodistas
escutando, eu o elogio o máximo que posso. Algumas pessoas
comentam que a esposa dele se veste espalhafatosamente demais,
mas eu digo que, tendo de conviver diariamente com um rosto como
aquele, ela precisa de alguma coisa para animá-la. A senhora nunca
vai me ouvir condenar uma mulher pelo modo como se veste. Fico
até grata ao marido dela por não ser egoísta e mesquinho a ponto
de implicar com seu modo de se vestir. Não que eu me importe com
roupas; afinal, mulheres se vestem pensando em agradar os
homens, porém eu jamais me rebaixaria a isso. Sempre tive uma
vida realmente tranquila e confortável, querida, exatamente porque
nunca me importei nem um pouco com a opinião dos homens a meu
respeito.
– Por que odeia tanto os homens, senhorita Bryant?
– Não, querida! Isso não é verdade. Eles não valem meu ódio. Eu
simplesmente os desprezo. Até penso que vou gostar de seu
marido, se ele continuar a agir como vem fazendo até agora. Porém,
com exceção dele, os únicos homens no mundo que merecem
minha estima são o velho médico e o capitão Jim.
– O capitão Jim é mesmo esplêndido – Anne concordou
calorosamente.
– É um homem bom, mas de certo modo é irritante também. Não
se consegue deixá-lo irritado. Venho tentando há vinte anos, e ele
continua tranquilo e sereno. Isso me perturba. E suponho que a
mulher que deveria ser sua esposa acabou se casando com um
homem que tem ataques de raiva duas vezes por dia.
– Quem era ela?
– Oh, não sei, querida. Não me lembro de ter visto o capitão Jim
namorar ninguém, nem de ter ouvido dizer que ele tinha algum
amor. Até onde minha memória pode ir, ele já era velho. Está com
setenta e seis anos, a senhora sabe. Eu nunca entendi por que ele
ficou solteiro, mas deve haver uma razão, acredite em mim. O
capitão navegou durante toda a sua vida, até cinco anos atrás, e
não há um canto neste mundo em que não tenha posto os pés. Ele
e Elizabeth Russel foram grandes amigos, a vida toda, mas nunca
tiveram nenhum relacionamento de outro tipo. Elizabeth nunca se
casou, apesar de ter tido várias oportunidades. Era muito bonita
quando jovem. No ano em que o príncipe de Gales veio aqui na ilha,
ela estava visitando o tio em Charlottetown, e, como ele era um alto
funcionário do governo, toda a família foi convidada para o grande
baile. Elizabeth era a garota mais bonita da festa, e o príncipe
dançou com ela. Todas as outras moças com quem ele não dançou
ficaram furiosas, pois ocupavam uma posição social mais elevada
que a dela e não aceitaram ter sido preteridas. Ela sempre
demonstrava ter muito orgulho daquela dança. Algumas pessoas
maldosas diziam que este era o motivo pelo qual Elizabeth não se
casou: após haver dançado com um príncipe, ela não aceitaria um
homem comum para marido. Porém, isso não é verdade. Uma vez
ela me contou qual era o real obstáculo; disse que, por causa de
seu temperamento, temia que fosse incapaz de conviver
pacificamente com qualquer homem. Imagine que ela tinha um
gênio tão horroroso que costumava ter de subir até seu quarto e dar
mordidas na cômoda, para se acalmar. Então eu lhe disse que essa
não deveria ser uma razão para não se casar, se era isso o que ela
realmente queria. Não há por que permitirmos que só os homens
tenham sempre o direito de ostentar um temperamento difícil, não é,
senhora Blythe querida?
– Eu mesma tenho um temperamento impulsivo, às vezes – Anne
suspirou.
– É bom que seja assim, querida. Isso ajuda a senhora a ter bem
menos probabilidade de ser maltratada, acredite em mim! Nossa,
como aquelas margaridas amarelas estão florescendo lindamente!
Seu jardim está ótimo. A pobre Elizabeth cuidava tão bem dele!
– Adoro este jardim – Anne falou. – Fico contente por ele ser
repleto de flores antiquadas. Por falar em jardinagem, queremos
arranjar um homem para preparar aquela pequena porção de terra
atrás do bosque de abetos e plantar morangos para nós. Gilbert
está tão ocupado que definitivamente não vai ter tempo para fazer
isso neste outono. A senhorita conhece alguém que possamos
contratar?
– Bem, Henry Hammond, de Glen, costuma fazer isso. Talvez ele
aceite o trabalho. Aquele lá está sempre bem mais interessado no
pagamento que no serviço. Uma atitude típica dos homens... E ele
tem um raciocínio tão lento que fica parado cinco minutos até
perceber que interrompeu a tarefa que cumpria. O pai jogou um
pedaço de pau no coitado quando ele ainda era criança. Um belo
míssil; muito suave, não acha? Típico dos homens... É claro que o
garoto nunca superou isso. Contudo, é realmente a única pessoa
que posso recomendar. Ele pintou minha casa na primavera
passada. E ela ficou muito bonita, não acha?
Anne foi salva pelo anúncio do relógio de que eram cinco horas.
– Senhor, já é tão tarde?! – exclamou a senhorita Cornelia. –
Como o tempo voa quando estamos nos divertindo! Bem, preciso
voltar para casa.
– Não, de modo algum. Vai ficar e tomar o chá conosco – Anne
falou entusiasticamente.
– Está me convidando porque acha que deve ou porque deseja
verdadeiramente que eu fique?
– Porque quero mesmo que tome o chá conosco.
– Sendo assim, vou ficar. Afinal, a senhora pertence à raça que
conhece Joseph.
– Sei que vamos nos tornar amigas – Anne falou, com aquele
sorriso que somente os domésticos da fé******** já tinham visto.
– Sim, nós vamos, querida. É uma bênção podermos escolher
nossos amigos. Temos de aceitar os parentes do jeito que são e
ficar gratos quando não há criminosos entre eles. Não que eu tenha
muitos familiares... Nenhum mais próximo que primos de segundo
grau. Sou uma espécie de alma solitária, senhora Blythe.
Havia um tom melancólico na voz da senhorita Cornelia.
– Gostaria que me chamasse de Anne, apenas! – a moça
exclamou, sem refletir. – Pareceria mais informal. Todos aqui em
Four Winds, exceto meu marido, me chamam de senhora Blythe, e
isso faz com que eu me sinta uma forasteira. Sabia que seu nome é
muito parecido com o que desejei muito que fosse o meu? Eu
detestava “Anne” e, na imaginação, fazia de conta que me chamava
Cordelia.
– Gosto de Anne. Era o nome de minha mãe. Em minha opinião
os nomes antigos são os melhores e os mais doces. Se vai buscar o
chá, deveria mandar o jovem doutor vir falar comigo. Ele está
deitado no sofá de seu consultório desde que cheguei, morrendo de
rir de tudo que digo.
– Como sabe? – exclamou Anne, tão perplexa com a inesperada
perspicácia da senhorita Cornelia que nem pôde negar
educadamente.
– Ora, eu o vi sentado aqui ao seu lado quando percorri a
alameda; e conheço bem os truques dos homens – a senhorita
Cornelia retrucou. – Pronto, terminei minha pequena peça de roupa,
querida, e o oitavo bebê já pode chegar quando quiser.
Omês de setembro estava acabando quando finalmente Anne e
Gilbert puderam fazer a prometida visita ao farol de Four Winds.
Eles planejaram várias vezes ir até lá, mas sempre surgia algum
obstáculo. Por outro lado, o capitão Jim já havia “aparecido”
bastante na pequena casa branca.
– Não sou do tipo de gente que faz cerimônia, senhora Blythe –
ele declarou a Anne. – Para mim, é um verdadeiro prazer vir aqui, e
não vou abrir mão disso só porque a senhora e o doutor ainda não
foram me visitar. Não deve haver esse tipo de acordo entre as
pessoas da raça que conhece Joseph. Venho quando puder e vocês
vão quando puderem. Contanto que tenhamos nossas conversas
tão agradáveis, não importa que telhado esteja sobre nós.
O capitão Jim adorou Gog e Magog, que reinavam na casa, um
em cada lado da lareira, com tanta dignidade e elegância quanto
haviam feito em Patty’s Place.
– Não são camaradas encantadores? – costumava dizer,
fascinado, e os cumprimentava e se despedia deles tão solene e
invariavelmente quanto fazia com seus anfitriões. O capitão Jim
jamais ofenderia as divindades domésticas com qualquer falta de
reverência ou cerimônia.
– A senhora deixou esta casa simplesmente perfeita – elogiou. –
Ela nunca foi tão bela. A senhora Selwyn tinha bom gosto e fez
maravilhas aqui. No entanto, as pessoas naquela época não tinham
as cortinas, os quadros e os enfeites lindos que a senhora possui.
Já Elizabeth vivia no passado. A senhora, digamos, trouxe o futuro
para cá. Eu ficaria muito feliz mesmo que não pudéssemos
conversar enquanto estou aqui. Só me sentar e olhar para a
senhora, seus quadros e suas flores já seria um deleite suficiente. É
tudo lindo... lindo!
O capitão Jim era um apreciador inveterado da beleza. Cada
coisa adorável ouvida ou vista lhe propiciava uma alegria interior
profunda e sutil, que iluminava sua vida. Tinha plena consciência de
sua própria falta de formosura exterior e lamentava isso.
– As pessoas dizem que sou um homem bom – comentou
inesperadamente em certa ocasião. – Porém, às vezes eu gostaria
que o Senhor tivesse me feito só metade bom e investido a outra
metade em minha aparência. Mas reconheço que Ele sabia o que
estava fazendo, como um bom capitão. Alguns precisam ser
feiosos... ou os bonitos, como a senhora Blythe aqui, não
pareceriam ainda mais belos.
Era um fim de tarde quando Anne e Gilbert caminharam até o
farol. O dia tinha amanhecido sombrio, com nuvens cinzentas e
bastante névoa, mas terminava com um grande brilho vermelho e
dourado. Sobre as colinas a oeste, para lá do porto, havia diversas
tonalidades de amarelo, e a água na beira do mar estava cristalina à
luz do pôr do sol. Ao norte, diversas nuvens pequenas e rosadas
encobriam o céu. Raios avermelhados pousavam sobre as velas de
um barco que deslizava pelo canal, com destino a um porto ao sul,
em uma terra cheia de palmeiras. Mais adiante, os raios coloriam e
davam brilho às dunas brancas e sem vegetação. À direita, recaíam
sobre a velha casa entre os salgueiros, perto do riacho, e, por um
breve espaço de tempo, suas janelas se assemelharam aos mais
esplêndidos vitrais de uma catedral antiga: sobressaíram, em
contraste com a quietude das paredes cinzentas, como
pensamentos atormentados de uma alma intensa aprisionada em
um ambiente monótono.
– Aquela casa velha próxima ao riacho sempre parece tão
solitária! – Anne falou. – Nunca vejo visitantes lá. É claro que o
portão da alameda de acesso se abre para a rua de cima, mas,
ainda assim, não creio que haja muitas idas e vindas por ali. É
estranho não termos nos encontrado com os Moore até hoje, sendo
que apenas quinze minutos de caminhada nos separam da
residência deles. Acho muito provável que eu os tenha visto na
igreja, lógico, mas, se isso realmente aconteceu, não os identifiquei.
É uma pena não serem sociáveis, pois são nossos únicos vizinhos
próximos.
– Evidentemente, não pertencem à raça que conhece Joseph –
Gilbert riu. – Já descobriu quem era aquela garota que você achou
tão bonita no dia em que chegamos aqui?
– Não. Por alguma razão, nunca me lembrei de perguntar sobre
ela. Porém, como não a vi mais em lugar nenhum, suponho que era
mesmo alguém de fora. Oh, o sol acaba de sumir... E ali está o farol!
À medida que o céu escurecia, os feixes de luz do grande farol
percorriam – em círculos – os campos, o porto, as dunas de areia e
o golfo.
– Sinto como se esta luz pudesse me capturar de repente e me
transportar por quilômetros mar adentro – Anne falou, em um dos
momentos em que os dois estavam banhados de luminosidade, e
ficou bastante aliviada quando chegaram tão perto do farol que
aqueles flashes recorrentes e estonteantes não os alcançavam
mais.
Quando entraram na pequena trilha que atravessava o campo e
levava ao pontal, Anne e Gilbert se depararam com um homem que
vinha em sentido contrário. Ele tinha uma aparência tão
extraordinária que, por alguns segundos, o casal ficou parado,
observando-o. Era sem dúvida um indivíduo bonito: alto, com
ombros largos, feições harmônicas, nariz bem delineado e olhos
cinzentos e sinceros; estava vestido com o que seria a melhor roupa
de domingo de um fazendeiro próspero. Até aí, poderia ser qualquer
habitante de Four Winds ou Glen, mas, cobrindo todo o peito e
quase chegando aos joelhos, havia uma barba castanha e crespa; e
nas costas, sob um chapéu de feltro comum, descia uma cascata de
cabelos castanhos, grossos e ondulados.
– Anne – Gilbert murmurou quando o indivíduo já não poderia
ouvi-lo –, você não misturou o que tio Dave chama de “elixir
escocês” naquela limonada que me deu pouco antes de sairmos de
casa, misturou?
– Não, claro que não – Anne respondeu, reprimindo uma risada,
por medo de ser ouvida pelo “enigma”. – Quem será esse homem?
– Não faço a menor ideia, mas, se o capitão Jim recebe aparições
como esta no pontal, suponho que vou ter de carregar um amuleto
no bolso toda vez que vier aqui. Se fosse um marinheiro, sua
aparência excêntrica até poderia ser perdoada, porém não creio que
seja; acho que ele faz parte de algum dos clãs que vivem no outro
lado do porto. Tio Dave costuma dizer que há vários malucos por lá.
– Tio Dave não é um pouco preconceituoso? Você sabe que
todos os habitantes do outro lado do porto que frequentam a igreja
de Glen parecem pessoas boas e normais. Oh, Gilbert, veja que
maravilha!
O farol de Four Winds ficava no topo de um penhasco de arenito
vermelho que se projetava no golfo. De um lado, para lá do canal,
estendia-se uma praia de areia reluzente; do outro, ficava uma costa
longa e curva, com rochas íngremes e vermelhas que se erguiam
abruptamente nas enseadas cobertas por seixos. Era um litoral que
conhecia bem a magia e o mistério das tempestades e das estrelas.
Há sempre uma solidão muito grande em lugares assim.
Já os bosques nunca são solitários: vivem repletos de vida, com
seus sussurros e convites amigáveis. Entretanto, o mar é uma alma
poderosa; sempre se lamentando de uma tristeza que é enorme e
não pode ser compartilhada, vive eternamente fechada em si
mesma. Jamais conseguimos penetrar em seu mistério infinito;
podemos apenas vagar, admirados e encantados, ao seu redor. Os
bosques nos chamam com sua centena de vozes, mas o mar só tem
uma: uma voz potente que inunda nossa alma de sua música
majestosa. Os bosques são humanos, mas o oceano pertence ao
grupo dos arcanjos.
Anne e Gilbert encontraram o capitão Jim sentado em um banco
próximo ao farol, dando os retoques finais a uma miniatura de barco
a vela completo e primoroso. Ele se levantou e os recebeu com a
costumeira cortesia natural.
– Hoje tem sido um dia muito bom, senhora Blythe, e agora ele
me traz seu melhor acontecimento. Gostariam de se sentar aqui fora
um pouco, enquanto ainda há luz? Acabei de terminar este
brinquedo para meu sobrinho-neto, Joe, que mora em Glen. Depois
que prometi isto para ele, eu, digamos, me arrependi, porque a mãe
do garoto ficou zangada comigo. Ela teme que o filho queira ir para
o mar quando crescer mais um pouco, e não quer que seja
encorajado a ter esse desejo. Mas o que eu poderia fazer, senhora
Blythe? Eu já tinha prometido o barco e penso que é uma verdadeira
covardia quebrar uma promessa feita a uma criança. Venham,
sentem-se, uma hora em um lugar agradável passa muito depressa.
O vento soprava do litoral para o mar, formando longas
ondulações prateadas na água e criando sombras brilhantes que
voavam sobre as rochas e os penhascos como se tivessem asas
transparentes. O crepúsculo parecia lançar um manto arroxeado
sobre as dunas de areia e as pedras onde as gaivotas se
amontoavam. O céu estava levemente coberto por um vapor
semelhante a um grande lenço de seda. As nuvens eram como
barcos ancorados ao longo do horizonte, e a estrela vespertina
observava tudo.
– Esta não é uma paisagem que vale a pena contemplar? – disse
o capitão Jim, com o orgulho de um proprietário apaixonado por sua
posse. – Aqui tudo é belo e distante do comércio. Não há compras,
vendas ou lucros. Não é preciso pagar por nada; todo este mar e
este céu são gratuitos... “sem dinheiro e sem preço”.******** A lua vai
nascer daqui a pouco. Nunca me canso de descobrir como pode ser
o trajeto da lua no céu, sobre as rochas, o mar e o porto: sempre há
uma nova surpresa.
Os três assistiram em silêncio ao maravilhoso e mágico nascer da
lua, esquecidos do mundo e uns dos outros. Em seguida subiram
para a torre do farol. Lá, o capitão Jim mostrou e explicou o
mecanismo da grande luz. Finalmente, foram para a sala de jantar,
onde um fogo – alimentado com pedaços de madeira vindos do mar
e encontrados na praia – tecia chamas de tons oscilantes e
indescritíveis.
– Eu mesmo construí essa lareira – comentou o capitão. – O
governo não oferece luxos assim aos encarregados do farol. Vejam
as cores que essa madeira produz! Se quiser lenha vinda do mar
para seu fogo, senhora Blythe, posso levar um bom feixe à sua casa
qualquer dia desses. Sentem-se! Vou preparar um chá.
O capitão Jim ofereceu uma cadeira para Anne, depois de
expulsar de cima dela um enorme gato alaranjado e um jornal.
– Desça daí, companheiro! O sofá é o seu lugar. Preciso guardar
este jornal em um local seguro até encontrar tempo para acabar de
ler a história que há nele. Chama-se “Um louco amor”. Não é meu
tipo favorito de ficção, mas estou acompanhando os capítulos só
para ver até onde a autora consegue ir. Já chegamos ao sessenta e
dois e, pelo jeito, o casamento ainda não está nem um pouco mais
próximo do que se encontrava nas primeiras páginas. Quando o
pequeno Joe vem me visitar, tenho de ler aventuras de piratas para
ele. Não é estranho criaturas pequenas e inocentes como as
crianças gostarem de histórias cheias de derramamento de sangue?
– Meu garoto Davy lá em Green Gables é assim também – disse
Anne. – Só quer contos que até cheirem a sangue.
O chá do capitão Jim estava delicioso, e o ex-marujo ficou tão
contente quanto uma criança com os elogios de Anne, embora
tenha demonstrado uma ligeira indiferença.
– O segredo é não ser avarento em relação ao creme – comentou
docemente.
O capitão nunca tinha ouvido falar de Oliver Wendell Holmes,********
mas era evidente que concordava com a opinião desse escritor de
que “corações grandes nunca gostaram de potes pequenos de
creme”.
– Encontramos um homem com uma aparência bem esquisita
saindo por sua alameda – Gilbert falou enquanto bebericavam. –
Quem é ele?
O capitão Jim sorriu.
– Aquele é Marshall Elliot, um homem muito bom, com, digamos,
um toque de maluquice. Suponho que se perguntaram por que
razão ele se tornou uma espécie de peça de museu.
– Seria ele um religioso fanático moderno ou um profeta hebreu
que restou dos tempos antigos? – Anne perguntou.
– Nem uma coisa nem outra. É a política que está por trás disso.
Todos os Elliot, Crawford e MacAllister são políticos obstinados. Já
nascem liberais ou conservadores, dependendo do caso, e assim
vivem e morrem. O que vão fazer no céu, onde provavelmente não
há política, está além de minha compreensão. Marshall Elliot é um
conservador de nascença. Eu mesmo também sou um deles, mas
com moderação; no entanto, para Marshall essa palavra não existe.
Quinze anos atrás houve por aqui uma eleição geral especialmente
complicada, e ele lutou com unhas e dentes por seu partido. Estava
absolutamente convencido de que os liberais venceriam, e
acreditava tanto nisso que se levantou em uma reunião aberta ao
público e jurou que não faria a barba nem cortaria o cabelo
enquanto seu partido não estivesse no poder. Bem, os liberais não
foram vitoriosos naquela época... e em nenhuma outra até hoje. O
resultado foi o que viram ao percorrer minha alameda: Marshall
cumpriu sua palavra.
– O que a esposa dele pensa sobre isso? – indagou Anne.
– Ele é solteiro. Entretanto, se tivesse uma esposa, não creio que
ela conseguiria fazê-lo quebrar o juramento. Aquela família dos Elliot
sempre foi mais teimosa do que se pode imaginar. O irmão de
Marshall, Alexander, tinha um cachorro pelo qual era apaixonado.
Quando o animal morreu, Alexander insistiu veementemente para
que ele fosse enterrado no cemitério, “junto com os outros cristãos”.
E como logicamente não teve permissão para isso, o homem
sepultou o cachorro no lado de fora da cerca do cemitério e nunca
mais cruzou a porta da igreja. Aos domingos, quando levava a
família para assistir ao culto, ficava sentado ao lado do túmulo do
animal, lendo a Bíblia durante todo o tempo em que a cerimônia
acontecia lá dentro. Dizem que, quando estava morrendo, Alexander
pediu à esposa que o enterrasse ao lado do cão. A mulher tinha
uma alma dócil, mas ficou furiosa ao ouvir isso. Respondeu que ela
não seria sepultada ao lado de cachorro nenhum e que, se ele
preferisse que seu último local de repouso fosse perto de um bicho,
em vez de junto com ela, que assim fosse. Alexander Elliot era
teimoso como uma mula, mas amava a esposa, então cedeu,
dizendo: “Bem, que se dane tudo, me enterre onde achar melhor.
Porém, quando a trombeta do arcanjo Gabriel soar, espero que meu
cachorro suba com todos nós, pois ele tinha tanta alma quanto os
malditos Elliot, Crawford ou MacAllister que andam empertigados
por aí”. Foram suas últimas palavras. Quanto a Marshall, já estamos
todos acostumados com ele, mas quem vem de fora deve realmente
considerar sua aparência bastante estranha. Eu o conheço desde
que ele tinha dez anos de idade... Tem por volta de cinquenta,
agora... E gosto dele. Nós fomos pescar bacalhau hoje. Isto é tudo
em que sou bom atualmente: pesca de truta e, ocasionalmente, de
bacalhau. No entanto, nem sempre foi assim... De jeito nenhum! Eu
fazia muitas outras coisas, e sei que qualquer pessoa reconheceria
isso se lesse o meu livro da vida.
Anne estava prestes a perguntar o que era seu “livro da vida”
quando o Primeiro Imediato, com um salto súbito sobre os joelhos
do capitão Jim, distraiu sua atenção. Era um animal lindo, com um
rosto redondo como a lua cheia, olhos verdes e brilhantes, e patas
brancas imensas. O capitão Jim acariciou suavemente suas costas
de pelo aveludado.
– Nunca gostei muito de gatos até encontrar o Primeiro Imediato
– explicou, seguido por animados ronrons. – Salvei a vida dele, e,
quando alguém salva a vida de uma criatura, está fadado a amá-la.
É o que existe de mais próximo a gerar uma vida. Há muitas
pessoas terrivelmente egoístas no mundo, senhora Blythe. Alguns
moradores da cidade que possuem casas de veraneio na região do
porto são tão egoístas que chegam a ser cruéis. Este é o pior tipo
de crueldade: a indiferença em relação aos outros seres vivos. É
impossível lidar com isso. Eles ficam com os gatos no verão;
alimentam, afagam, embonecam com belos laços de fita e coleiras.
Depois, quando chega o outono e vão embora, deixam que os
pobres animais morram de fome ou frio. Meu sangue chega a ferver
quando penso nisso, senhora Blythe. Um dia, no inverno passado,
deparei com uma pobre gata morta na praia, abraçada aos corpos
esqueléticos de suas três crias pequeninas. Ela perdeu a vida
tentando abrigá-las; tinha suas patas rígidas ao redor delas. Senhor!
Eu chorei. Em seguida, praguejei e, por fim, levei os pobres filhotes
para casa, dei comida e encontrei lares decentes para eles. Eu
conhecia a mulher que havia abandonado a gata, e quando ela
voltou, no último verão, fui até lá e lhe disse tudo o que eu pensava
a seu respeito. Sei que foi uma verdadeira intromissão, mas
realmente adoro interferir, se é por uma boa causa.
– Como ela reagiu? – Gilbert perguntou.
– Chorou e disse que fez aquilo “sem pensar”. Então falei: “A
senhora acha que isso vai ser uma boa desculpa no dia do
julgamento final, quando tiver de prestar contas do que fez com a
vida daquela pobre mãe? Certamente o Senhor vai perguntar para
que lhe deu um cérebro, se não foi para pensar, suponho”. Depois
disso, acho que ela nunca mais vai deixar nenhum gato morrer de
fome.
– O Primeiro Imediato era um filhote abandonado? – Anne
perguntou, aproximando-se do gato, que a recebeu graciosamente,
embora com alguma condescendência.
– Sim, eu o encontrei em um dia muito frio de inverno; estava
preso nos galhos de uma árvore por uma dessas coleiras ridículas
de fita. E quase morto de fome. Se a senhora pudesse ver os olhos
do coitado, senhora Blythe! Era apenas um filhotinho e, de alguma
forma, tinha conseguido sobreviver desde o dia em que o
abandonaram até o momento em que ficou agarrado naqueles
galhos. Quando eu consegui soltá-lo, ele deslizou sua pequena
língua vermelha sobre minha mão, em um gesto de agradecimento.
Não era este marujo esperto que estão vendo agora: não, ele era
manso como Moisés. Isso foi há nove anos. Em se tratando de
gatos, sua vida na Terra tem sido longa. O Primeiro Imediato é um
velho e bom camarada... É mesmo!
– Imaginei que teria um cachorro, capitão Jim – Gilbert
reconheceu.
O homem balançou a cabeça.
– Já tive um, doutor. E gostava tanto dele que quando meu
cachorro morreu não suportei a ideia de pôr outro em seu lugar. Ele
era um verdadeiro amigo, sabe, senhora Blythe? O Imediato é um
companheiro. Tenho muita estima pelo Imediato; em grande parte,
pelo tempero diabólico que há nele... Como existe em todos os
gatos, não é? Mas eu amava meu cachorro. Sempre tive uma
afinidade secreta com Alexander Elliott, por causa de seu cachorro.
Não há maldade em um cachorro. É por isso que eles são mais
adoráveis do que os gatos, eu acho. Porém – diabos me levem se
eu estiver errado –, digamos que os gatos são mais interessantes.
Epa, já estou falando demais! Por que não me mandam calar a
boca? Quando tenho a chance de conversar com alguém, acabo
tagarelando sem parar. Se já terminaram de beber seu chá, eu
gostaria que vissem algumas coisinhas que tenho aqui; são objetos
que eu trouxe de lugares exóticos que costumava visitar.
As “coisinhas” do capitão Jim formavam uma atraente coleção de
raridades bonitas, excêntricas, às vezes medonhas. E quase todas
traziam consigo uma história fantástica.
Anne nunca se esqueceu do prazer com que escutou tantos
casos antigos naquela noite enluarada, diante daquele fogo
fascinante alimentado por madeira achada na praia, enquanto o mar
prateado os chamava pela janela aberta e soluçava junto às pedras
lá embaixo. O capitão Jim nunca se vangloriou de nada, mas era
impossível deixar de ver que herói o homem tinha sido: corajoso,
digno, habilidoso, altruísta. Ele ficou sentado em seu pequeno
cômodo e fez aqueles objetos reviverem para seus ouvintes.
Levantando a sobrancelha, torcendo os lábios, fazendo um gesto,
escolhendo uma palavra ou outra, ele pintou cenas e pessoas de
modo que Anne e Gilbert as vissem exatamente como tinham sido.
Algumas das aventuras do capitão eram tão incríveis que o casal
se perguntou secretamente se ele não estaria exagerando às custas
da credulidade dos dois. Entretanto, nesse aspecto, como vieram a
descobrir posteriormente, a suspeita tinha sido injusta. Todos os
casos eram literalmente verdadeiros. O fato é que o capitão Jim
tinha um dom para contar histórias, talento com o qual coisas
antigas e longínquas podiam ser apresentadas vividamente a seus
ouvintes, com todos os sentimentos envolvidos completamente
inalterados.
Anne e Gilbert riram e se emocionaram com o que haviam
escutado, e em certo momento ela se viu chorando. O capitão
contemplou suas lágrimas com um prazer que irradiava de seu
rosto.
– Gosto de ver uma pessoa chorar desse jeito – comentou. – É
um elogio. Contudo, não posso fazer jus a tudo que presenciei ou
contribuí para que acontecesse. Tudo isso está anotado em meu
livro da vida, mas infelizmente não tenho talento para escrever. Se,
pelo menos, pudesse encontrar as palavras certas e encadear as
ideias adequadamente no papel, eu poderia criar um livro fantástico.
A história faria muito mais sucesso que “Um louco amor”, e creio
que Joe gostaria dele tanto quanto das histórias de piratas. Sim, tive
algumas aventuras nos velhos tempos; e sabe, senhora Blythe,
ainda sinto uma grande falta delas! Ora, mesmo velho e inútil como
sou, às vezes tenho um desejo terrível de navegar para longe...
muito longe... e por todo o sempre.
– Como Ulysses, o senhor iria
Navegar para além do pôr do sol e do mergulho
de todas as estrelas ocidentais até morrer,********
disse Anne sonhadoramente.
– Ulysses? Sim, já li sobre ele. E é exatamente como me sinto...
Exatamente como todos nós, velhos marujos, nos sentimos, eu
creio. E suponho que no fim das contas vou acabar morrendo em
terra firme. Bem, o que tiver de ser será. Durante toda a sua vida, o
velho William Ford, de Glen, não nadou nem navegou, pois tinha
medo de se afogar. Uma vidente havia previsto que ele morreria
assim. Um dia, o homem desmaiou no estábulo, caiu com a cabeça
dentro do cocho com água para os animais e morreu afogado. Ah, já
precisam ir? Bem, voltem logo e venham sempre. O médico é quem
vai falar na próxima vez; ele sabe um monte de coisas que desejo
descobrir. Às vezes, eu me sinto, digamos, meio solitário aqui. Isso
piorou desde que Elizabeth Russel morreu. Nós dois éramos tão
unidos!
A voz do capitão Jim veio com o tom melancólico dos idosos que
veem partir, um a um, todos os velhos amigos, aqueles cujo lugar
nunca pode ser totalmente preenchido por outros de uma geração
mais jovem, mesmo quando estes últimos pertencem à raça que
conhece Joseph. Anne e Gilbert prometeram voltar logo e sempre.
– É um homem raro, não é? – perguntou Gilbert, enquanto
voltavam para casa.
– Por alguma razão, acho difícil conciliar sua personalidade
simples, calma e amável com a vida agitada, cheia de aventuras,
que ele levou – Anne comentou.
– Você não pensaria assim se tivesse visto o capitão na vila de
pescadores outro dia. Um dos homens do barco de Peter Gautier
fez um comentário desagradável sobre uma garota que caminhava
ao longo da costa. Anne, o capitão Jim praticamente chamuscou o
infeliz, apenas com o olhar. Ele parecia transformado. Não disse
muita coisa, mas pelo jeito como falou você pensaria que ele estava
a ponto de arrancar a carne dos ossos do sujeito. Naquele momento
tive certeza de que o Capitão Jim jamais permitiria que nenhuma
palavra contra qualquer mulher fosse proferida em sua presença.
– Gostaria de saber por que ele nunca se casou. Deveria ter
filhos com barcos no mar agora, e netos subindo em seu colo para
ouvir suas histórias; ele é esse tipo de homem. Em vez disso, não
tem nada além de um gato magnífico.
Contudo, Anne estava enganada. O capitão Jim tinha muito mais
que isso. Ele tinha uma memória.
V
ou fazer uma caminhada na praia hoje – Anne disse a Gog
e Magog em um fim de tarde de outubro.
Ela não tinha com quem mais falar, pois Gilbert havia ido
até o porto. Seu pequeno domínio estava imaculadamente limpo e
arrumado, como qualquer um esperaria de alguém criado por Marilla
Cuthbert, e ela sentiu que poderia perambular pelo litoral com a
consciência tranquila. Muitos e deliciosos haviam sido seus
passeios à beira do mar, às vezes com Gilbert, às vezes com o
capitão Jim, e outras vezes a sós com pensamentos e sonhos –
novos e agradavelmente doces e coloridos como o arco-íris – que
começavam a preencher sua vida.
Ela adorava a praia do porto, sempre suavemente encoberta pela
névoa, e a costa de areia prateada, assombrada pelo vento. No
entanto, acima de tudo, Anne amava o litoral rochoso, com seus
penhascos, grutas, pilhas de pedras desgastadas pelas ondas e
enseadas onde os seixos brilhavam sob as poças; e foi para lá que
se dirigiu naquele entardecer.
Havia caído uma tempestade de outono que durou três dias. Os
choques das ondas nos rochedos foram estrondosos; os borrifos de
espuma do mar sobre as dunas, assustadores. A antiga paz azul de
Four Winds Harbor tinha sido dilacerada pelo temporal turbulento e
nebuloso. Porém, tudo tinha terminado, e as praias repousavam
limpas depois da tempestade; nenhum vento soprava, embora ainda
houvesse ondas finas quebrando na areia e nas pedras, em um
pequeno e esplêndido turbilhão esbranquiçado – a única coisa
agitada na grande e profunda paz reinante.
– Oh, este é um momento pelo qual até vale a pena viver
semanas de tempestade e tensão – exclamou Anne, maravilhada,
no topo do penhasco de onde observava a água inquieta.
Em seguida, desceu o caminho íngreme até a pequena enseada,
onde ficou cercada apenas por pedras, mar e céu.
– Vou cantar e dançar! – exclamou. – Não há ninguém aqui para
me ver. As gaivotas não podem contar histórias sobre isso. Posso
fazer as maluquices que eu quiser.
Então, segurou a saia e fez piruetas ao longo da faixa de areia
firme, bem no limite do alcance da espuma das ondas, que por
pouco não tocou seus pés. Rodopiando e rindo como uma criança,
Anne alcançou o pequeno cabo que se estendia a leste da enseada.
Então parou de repente, bastante ruborizada. Tinha acabado de
descobrir que não estava sozinha: havia uma testemunha de sua
dança e suas risadas.
A garota de cabelo dourado e olhos azuis da cor do mar estava
sentada sobre uma pedra no cabo, meio escondida por uma rocha
mais saliente. Olhava diretamente para Anne com uma expressão
estranha: havia, ao mesmo tempo, fascínio, simpatia e – seria
possível?! – inveja. Sua cabeça estava descoberta, e seu cabelo
lindo, mais do que nunca parecido com a “serpente magnífica” de
Browning, estava preso por uma fita vermelha. Usava um vestido
escuro muito simples, mas, enrolada em volta da cintura, delineando
suas curvas finas, havia uma tira de seda em um tom vivo de
vermelho. As mãos, cruzadas sobre o joelho, eram morenas e
ligeiramente endurecidas pelo trabalho; no entanto, a pele do
pescoço e as bochechas eram brancas como a neve. Um raio
brilhante do sol poente rompeu uma nuvem baixa e caiu sobre seu
cabelo. Por um momento, a garota pareceu personificar o espírito do
oceano com todo o seu mistério, toda a sua paixão, todo o seu
charme misterioso.
– Você... Você deve achar que sou louca... – balbuciou Anne,
tentando se recompor; afinal, ela, a digna esposa do doutor Blythe,
ser vista por aquela moça majestosa, durante aquela entrega total à
infantilidade, era algo terrível!
– Não. Não acho – a outra respondeu.
Depois não disse mais nada. Sua voz foi inexpressiva; sua
postura, pouco receptiva; mas havia algo em seus olhos – ansiosos,
apesar de tímidos; desafiadores, embora suplicantes – que desviou
Anne de seu propósito de ir embora. Em vez disso, sentou-se na
pedra, ao lado da moça.
– Vamos nos apresentar – disse, com seu antigo sorriso que
sempre conquistava confiança e simpatia. – Sou a senhora Blythe e
moro naquela pequena casa branca na praia do porto.
– Sim, eu sei – disse a garota. – Sou Leslie Moore... A senhora
Dick Moore – acrescentou em tom formal.
Anne ficou alguns instantes em silêncio, de puro espanto. Não lhe
havia ocorrido que aquela moça fosse casada. Não tinha nada nela
que a caracterizasse como uma esposa nem, menos ainda, algo
que indicasse que ela poderia ser a vizinha que Anne havia
imaginado ser uma dona de casa como qualquer outra de Four
Winds. Era quase impossível ajustar rapidamente os pensamentos a
essa mudança inesperada.
– Então... Então você mora naquela casa cinza próxima ao
riacho?! – perguntou, perplexa.
– Sim. E já deveria ter lhe feito uma visita há muito tempo – disse
a outra; mas não apresentou nenhuma explicação ou desculpa para
não ter ido.
– Eu gostaria que você fosse – Anne afirmou, ligeiramente
recuperada do susto. – Somos vizinhas tão próximas que
deveríamos ser amigas. Este é o único defeito de Four Winds: há
poucos vizinhos. Com exceção disso, tudo é perfeito.
– Você gosta daqui?
– Se gosto? Eu adoro! É o lugar mais lindo que já vi.
– Nunca visitei muitos lugares – Leslie Moore falou lentamente –,
mas sempre achei Four Winds adorável. Eu... Eu também adoro
viver aqui.
Ela falava do jeito que olhava: ao mesmo tempo, tímida e
avidamente. Anne sentiu que aquela garota estranha – a palavra
“garota” persistia – teria muito a dizer, se quisesse.
– Sempre venho à praia – ela acrescentou.
– Eu também – disse Anne. – É de admirar que não tenhamos
nos encontrado aqui antes.
– Provavelmente você vem mais cedo que eu. Em geral venho
mais tarde... Quando já está quase escuro. E amo vir após uma
tempestade como essa última que tivemos. Não gosto tanto do mar
quando ele está calmo e sossegado. Prefiro sua agitação, o choque
da água nos rochedos, o barulho...
– Gosto dele em todos os seus estados – Anne declarou. – Para
mim, o mar em Four Winds é como a Vereda dos Apaixonados lá
em minha terra. Hoje ele me pareceu tão livre, tão indomável, que
alguma coisa se libertou em mim também, inspirada por ele. Foi por
isso que dancei ao longo da praia daquela forma maluca. Não
imaginei que alguém estivesse olhando, claro. Se a senhorita
Cornelia Bryant tivesse me visto fazendo piruetas daquele jeito, ela
teria pressentido que o futuro do jovem doutor Blythe seria terrível,
coitado.
– Você conhece a senhorita Cornelia? – perguntou Leslie, rindo.
Foi uma risada primorosa, que veio súbita e inesperadamente,
com um contentamento delicioso que se assemelhava ao de um
bebê. Anne riu também.
– Sim, ela já esteve em minha casa dos sonhos várias vezes.
– Sua “casa dos sonhos”?
– Bem, é um nome bobo, mas muito querido, que Gilbert e eu
criamos para nossa casa. Só a chamamos assim entre nós dois.
Falei sem pensar.
– Então a pequena casa branca da senhorita Russel é sua casa
dos sonhos?! – Leslie exclamou, admirada. – Também já tive uma
casa dos sonhos... Porém, ela era um palácio – acrescentou, com
outra risada, cuja doçura estava dessa vez alterada por um pequeno
toque de zombaria.
– Oh, já sonhei com um palácio no passado – Anne admitiu. –
Suponho que acontece com todas as meninas. Com o passar do
tempo, nós nos acomodamos alegremente em casas de oito
cômodos que parecem satisfazer todos os desejos de nosso
coração porque nosso príncipe está lá. No entanto, você sim deveria
realmente morar em um palácio, pois é tão linda! Tem de me permitir
dizer isso. É algo que precisa ser dito. Estou quase explodindo de
tanta admiração. Você é a coisa mais bonita que já vi, senhora
Moore.
– Se vamos ser amigas, você deveria me chamar de Leslie –
disse a moça, com uma emoção indecifrável.
– Lógico, vou fazer isso. E meus amigos me tratam por Anne.
– Suponho que eu seja mesmo bonita – Leslie prosseguiu,
lançando um olhar atormentado para o oceano. – Odeio minha
beleza. Gostaria de ter sempre sido tão morena e comum quanto a
mais morena e a mais comum de todas as garotas lá da vila de
pescadores. Bem, o que acha da senhorita Cornelia?
A mudança súbita de assunto fechou as portas para qualquer
outra confidência.
– A senhorita Cornelia é um encanto, não é? – Anne respondeu.
– Gilbert e eu fomos convidados para um chá na casa dela semana
passada. Certamente, você já ouviu falar em “mesas generosas”.
– Tenho a impressão de ter visto essa expressão nos jornais, em
notícias de festas de casamentos – disse Leslie, sorrindo.
– Ora, a da senhorita Cornelia era assim; pelo menos, estava
verdadeiramente farta. Foi difícil acreditar que ela tinha preparado
tanta comida para apenas duas pessoas. Havia todos os tipos de
torta que você puder imaginar... Exceto de limão. Ela contou que
dez anos atrás sua torta de limão foi premiada em uma feira de
Charlottetown, e que a partir disso nunca mais fez uma, por medo
de perder a reputação.
– Você conseguiu comer uma quantidade de fatias suficiente para
agradá-la?
– Não fui capaz. Porém, Gilbert a conquistou pelo tanto que
comeu... Nem vou mencionar quanto. Ela comentou que nunca
conheceu um homem que não gostasse mais de tortas que de sua
Bíblia. Oh, eu adoro a senhorita Cornelia!
– Eu também – Leslie falou. – Ela é a melhor amiga que tenho no
mundo.
Anne se perguntou secretamente por qual motivo a senhorita
Cornelia nunca tinha mencionado a senhora Dick Moore em suas
conversas. Sem dúvida, ela já havia falado livremente a respeito de
qualquer outro indivíduo que vivia em, ou perto de, Four Winds.
– Veja que lindo! – exclamou Leslie após um breve silêncio,
apontando para o efeito deslumbrante de um raio de luz que
atravessava uma fenda na rocha atrás delas e pousava sobre uma
poça de água verde-escura em sua base. – Se eu tivesse vindo aqui
e não visto nada além disso, ainda assim voltaria satisfeita para
casa.
– Os efeitos de luz e sombra ao longo de todas essas praias são
fascinantes – Anne concordou. – Meu pequeno quarto de costura dá
vista para o porto, e quando me sento diante da janela meus olhos
se deleitam. As cores e os reflexos nunca são os mesmos por dois
minutos seguidos.
– Você nunca sente solidão? – Leslie perguntou repentinamente.
– Nem mesmo nos momentos em que fica sozinha?
– Não. Creio que nunca me senti solitária em toda a minha vida –
respondeu Anne. – Mesmo quando estou só, tenho ótimas
companhias: a imaginação, os sonhos, as fantasias... Eu gosto de
ficar sozinha às vezes, para simplesmente pensar sobre as coisas e
saboreá-las. Entretanto, adoro ter amigos e passar momentos
agradáveis e divertidos com as pessoas. Leslie, você não vai me
visitar frequentemente? Vá sim, por favor! Acho – acrescentou rindo
– que você gostaria de mim se me conhecesse melhor.
– Será que você gostaria de mim? – retrucou Leslie, séria.
Ela não estava em busca de elogios; virou o rosto para o mar,
que começava a ser enfeitado com flores de espuma das ondas
iluminadas pela lua, e seus olhos se encheram de sombras.
– Tenho certeza de que sim – Anne afirmou. – E, por favor, não
pense que sou completamente irresponsável só porque me viu
dançando na praia durante o pôr do sol. Sem dúvida vou me tornar
mais digna após algum tempo. Sabe, sou recém-casada, e de vez
em quando ainda me sinto uma adolescente ou até mesmo uma
criança.
– Estou casada há doze anos – disse Leslie.
Outro fato inacreditável.
– Nossa! Você não pode ter a mesma idade que eu! – exclamou
Anne. – Deve ter se casado quando ainda era uma menina.
– Eu tinha dezesseis anos – explicou Leslie, levantando-se e
pegando o gorro e o casaco ao seu lado. – Estou com vinte e oito
agora. Bem, preciso voltar para casa.
– Eu também. É provável que Gilbert já tenha chegado. Estou
muito contente por termos vindo à praia esta noite e nos conhecido.
Leslie não disse nada, e Anne ficou um pouco desapontada.
Tinha oferecido sinceramente sua amizade, mas ela não havia sido
muito bem aceita, se é que não fora absolutamente recusada.
Em silêncio, as duas escalaram os penhascos e atravessaram um
pasto onde, sob o luar, a vegetação macia e esbranquiçada parecia
um tapete de veludo claro. Quando chegaram à estrada, Leslie
falou:
– Agora vou seguir para este lado aqui, senhora Blythe. Vai me
visitar qualquer dia desses, não vai?
Anne sentiu que o convite havia sido feito sem espontaneidade;
teve a impressão de que Leslie Moore havia falado relutantemente.
– Vou se realmente quiser me receber – respondeu com alguma
frieza.
– Sim, quero... Quero mesmo! – Leslie exclamou, com uma
avidez surpreendente que pareceu superar qualquer restrição que
lhe houvesse sido imposta.
– Então eu vou. Boa noite... Leslie.
– Boa noite, senhora Blythe.
***
Anne caminhou para casa absorta em pensamentos, e ao chegar
contou a Gilbert o que havia acontecido.
– Então quer dizer que a senhora Dick Moore não faz parte da
raça que conhece Joseph?! – ele falou, provocador.
– Na verdade, não... Não exatamente. Apesar de tudo, acho que
já fez parte sim, no passado, mas se exilou... ou foi exilada – Anne
retrucou, pensativa. – Com certeza, ela é diferente das outras
mulheres daqui. É impossível conversar com Leslie sobre ovos ou
manteiga. E pensar que a imaginei como uma segunda senhora
Rachel Lynde! Você já viu Dick Moore alguma vez, Gilbert?
– Vi vários homens trabalhando nos campos, mas não sei qual
deles era Moore.
– Ela não o mencionou nenhuma vez. Sei que Leslie não é feliz.
– Pelo que você me falou, suponho que ela tenha se casado
antes de ser suficientemente madura para conhecer bem sua mente
ou seu coração, e descobriu tarde demais que havia cometido um
erro. É uma tragédia bastante comum, Anne. Uma mulher mais
sensata teria lidado melhor com essa situação; a senhora Moore, no
entanto, evidentemente deixou que isso a tornasse uma pessoa
ressentida e amargurada.
– Não devemos julgá-la até sabermos a verdade – Anne falou. –
Não acredito que o caso dela seja assim tão comum. Você vai
entender o fascínio dessa moça quando a conhecer, Gilbert. É algo
que vai muito além de sua beleza. Sinto que ela tem uma
personalidade rica, na qual uma amiga pode entrar como em um
reino; porém, por alguma razão, ela bloqueia a passagem de
qualquer pessoa e fecha todas as suas possibilidades em si mesma,
para que elas não possam se desenvolver e florescer. Pronto! Estou
lutando para defini-la para mim mesma desde que a deixei, e essa é
a definição mais próxima a que consigo chegar. Vou perguntar à
senhorita Cornelia sobre essa garota.
S
im, o oitavo bebê chegou duas semanas atrás – disse a
senhorita Cornelia, sentada em uma cadeira de balanço
diante do fogo na lareira da pequena casa branca, em uma
tarde gelada de outubro. – É uma menina. Fred ficou furioso; disse
que queria um menino, quando a verdade é que ele não queria bebê
nenhum. Se tivesse vindo um menino, teria ficado enfurecido porque
não havia sido uma menina. Eles já tinham quatro filhas e três filhos;
sendo assim, acho que o fato de agora terem uma coisa ou a outra
não faz muita diferença. Contudo, é óbvio que Fred tinha de ser
rabugento; uma atitude típica dos homens. A criança é realmente
bonita; ficou encantadora com aquelas roupinhas delicadas do
pequeno enxoval que fiz para ela. Tem olhos negros e mãos
minúsculas e adoráveis.
– Preciso ir vê-la. Eu simplesmente amo bebês – disse Anne,
sorrindo para si mesma diante de um pensamento querido e
sagrado demais para ser colocado em palavras.
– Concordo que eles são admiráveis – admitiu a senhorita
Cornelia –, mas algumas pessoas parecem ter mais do que
realmente precisam, acredite em mim. Minha pobre prima Flora, lá
de Glen, teve onze, e você não imagina a escrava que ela é! O
marido suicidou-se há três anos. Uma atitude típica dos homens!
– O que o levou a fazer isso? – indagou Anne, chocada.
– Fracassou em um objetivo, então pulou no poço. Uma bela
solução! Era um tirano de nascença. E, é claro, arruinou o poço.
Flora nunca mais suportou a ideia de usar a água dali novamente,
pobrezinha! Teve de mandar construir outro, que lhe custou uma
fortuna e, ainda por cima, cuja água era muito ruim. Se ele tinha de
se afogar, havia bastante água no porto, não havia? Não tenho
paciência com homens assim. Pelo que me lembro, só tivemos dois
suicídios em Four Winds. O outro foi o de Frank West, o pai de
Leslie Moore. A propósito, Leslie já veio visitá-la?
– Não veio, mas nos encontramos na praia uma noite dessas e
conversamos um pouco – disse Anne, aguçando os ouvidos.
A senhorita Cornelia acenou a cabeça em sinal de aprovação.
– Fico contente com isso, querida. Eu desejava muito que vocês
se conhecessem. O que achou dela?
– É uma garota linda.
– Sim, obviamente. Nunca houve ninguém em toda a região de
Four Winds que a superasse em beleza. Reparou em seu cabelo?
Chega aos pés quando ela o solta. Mas o que eu quis saber foi se
gostou dela.
– Creio que eu poderia gostar muito de Leslie, se ela permitisse –
Anne falou lentamente.
– Entretanto, ela não deixa, não é? Repeliu-a e a manteve o
tempo todo a alguma distância. Pobre Leslie! Você não ficaria muito
surpresa se soubesse como tem sido a vida dessa moça. Uma
tragédia!... Uma tragédia! – a senhorita Cornelia repetiu
enfaticamente.
– Eu gostaria que me contasse tudo sobre ela; quer dizer, se
puder fazer isso sem trair a confiança de Leslie.
– Ora, minha querida, todos em Four Winds sabem a história da
pobre Leslie. Não é nenhum segredo; pelo menos, aquilo que se
refere aos fatos. Ninguém sabe o que está por trás de tudo, exceto a
própria Leslie, mas essa parte ela não confia a ninguém. Sou
praticamente a melhor amiga que ela possui no mundo, suponho, e
nunca a ouvi pronunciar nenhuma reclamação sequer. Você já viu
Dick Moore?
– Não.
– Bem, é melhor começar pelo início e lhe contar toda a história
de uma vez; assim, vai entender tudo. Como eu já disse, o pai de
Leslie era Frank West. Ele era inteligente e malandro...
Características típicas dos homens. Nossa, que perspicácia ele
tinha! No entanto, isso não o ajudou em nada. Frank começou a
frequentar uma faculdade e fez isso por dois anos. Então teve de
interromper o curso porque sua saúde piorou; sabe, todos os West
têm uma tendência a contrair tuberculose. Bem, ele voltou para casa
e se dedicou à agricultura. Em seguida se casou com Rose Elliot,
que veio do outro lado do porto. Rose era considerada a beldade de
Four Winds; Leslie herdou a aparência da mãe, mas tem dez vezes
mais disposição e força e é ainda mais bonita. Sabe, Anne, eu
sempre parto do princípio de que nós, mulheres, temos de nos
apoiar mutuamente. Já basta o que somos obrigadas a suportar nas
mãos dos homens, nosso Senhor sabe, então eu afirmo que não
devemos falar mal umas das outras. Vai ser bem raro você me ouvir
criticar outra mulher. Contudo, nunca gostei muito de Rose Elliot.
Para começar, ela era mimada, acredite em mim, e nada além de
uma criatura preguiçosa, egoísta e mal-humorada. Frank não
gostava de trabalhar, por isso os dois eram muito pobres. Muito!
Viviam de batatas e ponto final, acredite em mim. Tiveram dois
filhos: Leslie e Kenneth. Leslie se parece fisicamente com a mãe e
possui a inteligência do pai, além de algo mais, que não foi herdado
de nenhum dos dois. Ela tem muitos traços da avó West, uma
mulher esplêndida. Quando criança, Leslie era a criatura mais
brilhante, simpática e alegre que se possa imaginar, Anne. Todos a
adoravam. Era a favorita do pai e o amava acima de tudo. Os dois
eram “companheiros inseparáveis”, como ela costumava dizer. Não
conseguia enxergar nenhum dos defeitos do pai; e, de fato, ele era
um homem cativante em alguns aspectos.
Houve uma breve pausa.
– Quando Leslie estava com doze anos, a primeira coisa terrível
aconteceu. A menina era louca pelo pequeno Kenneth, que tinha
quatro anos a menos que ela e era um garoto verdadeiramente
adorável. Foi quando ele morreu. Caiu de cima de uma carga bem
grande de feno que estava sendo levada para o celeiro; a roda da
carroça passou sobre o menino e o matou. E, imagine, Anne, Leslie
viu o acidente. Ela estava olhando pela janela do depósito e soltou
um grito tão desesperado, que o empregado da propriedade disse
que jamais havia escutado algo semelhante em toda a sua vida, e
que aquele berro ficaria em seus ouvidos até o dia em que a
trombeta do arcanjo Gabriel soasse para levá-lo. Porém ela nunca
mais gritou ou chorou por aquilo. Leslie imediatamente pulou sobre
o feno; em seguida, saltou para o chão e agarrou o pequeno corpo
sangrando, ainda quente, mas já sem vida, Anne. Foi preciso
arrancá-lo dos braços dela. Então, mandaram me chamar e... Oh,
não consigo mais falar sobre isso.
A senhorita Cornelia enxugou as lágrimas que corriam de seus
bondosos olhos castanhos e, em um silêncio amargurado, costurou
por alguns minutos.
– Bem – retomou –, fizeram o que tinha de ser feito. Enterraram o
pequeno Kenneth naquele cemitério do outro lado do porto, e depois
de um tempo Leslie voltou para a escola e os estudos. Nunca mais
mencionou o nome de Kenneth; pelo menos, daquele dia em diante,
eu jamais a ouvi dizê-lo. Acho que aquela velha ferida ainda dói e
queima, às vezes. Porém, ela era apenas uma criança, e o tempo é
muito bom para as crianças, Anne. Posteriormente, ela começou a
rir de novo; tinha a risada mais bonita que já vi. Ninguém a ouve
com frequência, agora.
– Escutei uma vez, na noite em que nos encontramos na praia –
disse Anne. – É mesmo uma risada linda!
– Frank West começou a decair após a morte de Kenneth. Não
era muito forte, e aquilo foi um choque muito grande para ele, pois,
embora Leslie fosse sua favorita, como já mencionei, ele gostava
muito do menino também. Ficou abatido e melancólico, e não
conseguia ou não queria mais trabalhar. Um dia, quando Leslie
estava com quatorze anos, ele se enforcou... Na sala, imagine,
amarrado ao lustre, bem no meio do teto. Não foi uma atitude típica
dos homens? Além de tudo, era o dia de seu aniversário de
casamento. Uma data escolhida cuidadosamente para isso, não
acha? E, claro, a pobre Leslie tinha de ser a primeira pessoa a
encontrá-lo. Ela entrou cantando na sala naquela manhã,
carregando flores frescas para colocar nos vasos, e lá estava o pai
pendurado no teto, o rosto preto como carvão. Foi uma coisa
horrível, acredite em mim!
– Que tragédia! – exclamou Anne, sentindo um arrepio. – Pobre,
pobre criança!
– Leslie não derramou mais lágrimas no funeral do pai que no de
Kenneth. Rose, no entanto, chorou e gritou pelas duas, e a garota
fez o que pôde para tentar acalmar e confortar a mãe. Eu e todas as
outras pessoas ficamos indignadas com o comportamento de Rose,
mas Leslie não perdeu a paciência por um segundo sequer. Ela
amava a mãe. E era muito ligada à família; a seus olhos, nenhum
parente fazia nada errado. Então, sepultaram Frank ao lado de
Kenneth, e Rose mandou erguer um monumento enorme para ele,
maior que seu caráter, acredite em mim! E maior também do que
Rose podia pagar, pois a fazenda estava hipotecada por um valor
mais alto do que realmente tinha. Entretanto, pouco tempo depois a
avó West de Leslie faleceu e lhe deixou algum dinheiro, o suficiente
para ela frequentar a Queen’s Academy por um ano. Ela havia
decidido se tornar professora, se pudesse, e em seguida
economizar o bastante para cursar Redmond College. Esse tinha
sido o plano do pai para ela; Frank queria que a filha conquistasse o
que ele não havia conseguido. A cabeça e o coração de Leslie
estavam repletos de planos e ambições. Ela se matriculou na
Queen’s, fez dois anos de curso em apenas um, formou-se e,
quando voltou para casa, foi contratada para trabalhar na escola de
Glen. Estava tão feliz, esperançosa e cheia de vida e expectativas,
Anne! Quando penso em como ela era na época e no que ela é
agora, eu digo: malditos homens!
A senhorita Cornelia cortou a linha da costura violentamente,
como se, ao estilo de Nero, estivesse cortando a cabeça de todos
os homens com um só golpe.
– Foi naquele verão que Dick Moore entrou na vida de Leslie. O
pai dele, Abner Moore, era proprietário de uma loja em Glen, mas
Dick havia herdado da família da mãe uma atração incontrolável
pelo mar. Por isso, costumava navegar no verão e trabalhar no
estabelecimento do pai durante o inverno. Era um homem grande e
bonito com uma alma pequena e feia. Sempre queria alguma coisa
até obtê-la; a partir daí, já não a desejava mais... Uma atitude típica
dos homens. Não costumava ficar mal-humorado e era muito
amável e simpático quando tudo estava de acordo com sua vontade.
Só que bebia muito, e havia histórias bastante desagradáveis a
respeito dele e uma garota da vila de pescadores. Em resumo, ele
não servia nem como capacho para Leslie. E além de tudo, era
metodista! Mas estava profundamente apaixonado por ela. Em
primeiro lugar, por causa de sua beleza, e em segundo lugar porque
ela não tinha o menor interesse por ele. Dick jurou que se casaria
com Leslie, e conseguiu!
– De que maneira?
– Por meio de uma maldade. Nunca vou perdoar Rose West!
Imagine, querida, que a fazenda dos West tinha sido hipotecada a
Abner Moore, e já fazia alguns anos que o pagamento dos juros
estava atrasado. Então, Dick simplesmente disse à senhora West
que, se Leslie não se casasse com ele, seu pai tomaria a
propriedade delas. Rose ficou desesperada; desmaiou, chorou e
implorou à filha que não permitisse que ela fosse expulsa de sua
fazenda. Disse que seu coração ficaria estraçalhado se tivesse de
deixar a casa à qual chegou recém-casada. Eu não a culpei por se
sentir tão terrivelmente mal nessa situação, mas jamais pensaria
que fosse tão egoísta a ponto de sacrificar sua própria filha por
causa disso, não acha? Bem, ela foi. E Leslie cedeu; amava tanto a
mãe que faria qualquer coisa para aliviar sua dor. Portanto, casou-
se com Dick Moore. Na época, ninguém entendeu por que tinha feito
isso. Só muito tempo depois eu soube o quanto sua mãe a
atormentara para que aceitasse a proposta. Porém, até então
sempre tive certeza de que havia algo errado ali, pois eu tinha visto
Leslie menosprezá-lo várias vezes, e não era do feitio dela mudar
seu comportamento assim, total e repentinamente. Além disso, eu
sabia também que Dick Moore não era o tipo de homem por quem
ela pudesse se apaixonar um dia, apesar de sua boa aparência e de
seu jeito sedutor. Obviamente, não houve festa, mas Rose me pediu
para estar presente no momento em que eles assinassem os papéis
do casamento. Eu fui, mas me arrependi. Já tinha visto a expressão
no rosto de Leslie durante o funeral do irmão e o do pai; naquele
dia, me pareceu que ela estava no próprio funeral. Por outro lado,
Rose sorria alegremente o tempo todo, acredite em mim!
A senhorita Cornelia respirou fundo.
– Dick foi morar com Leslie e a mãe na residência dos West;
Rose não suportaria se separar de sua filha querida! Viveram juntos
durante todo o inverno. Na primavera, Rose contraiu uma
pneumonia e morreu... Com um ano de atraso, infelizmente. A moça
ficou inconsolável, coitada. Não é terrível a maneira como algumas
pessoas são amadas sem merecimento, enquanto outras, que
merecem isso bem mais, nunca recebem muito afeto? Quanto a
Dick, logo se cansou da vida pacata de casado. Uma atitude típica
dos homens! Gostava de novidades e decidiu ir à Nova Escócia
visitar parentes; o pai dele tinha vindo da Nova Escócia. Quando
estava por lá, escreveu a Leslie dizendo que seu primo, George
Moore, faria uma viagem a Havana, e ele iria junto. Informou que o
nome do navio no qual embarcariam era Four Sisters e que
voltariam dentro de nove semanas. Imagino que deve ter sido um
alívio para Leslie, mas ela nunca falou nada sobre isso. A partir do
dia de seu casamento, ela se tornou exatamente o que é hoje: fria,
orgulhosa e determinada a manter todos, exceto eu, a distância.
Não aceitei ficar a distância, acredite em mim! Simplesmente me
mantive o mais perto dela quanto pude, apesar de tudo.
– Leslie me disse que a senhorita é a melhor amiga que ela tem –
Anne revelou.
– Ela falou? – exclamou alegremente a senhorita Cornelia. –
Bem, fico muito grata por ouvir isso. Às vezes me pergunto se ela
realmente me quer por perto: afinal, nunca demonstra nenhuma
afeição. Você deve tê-la sensibilizado mais do que imagina, ou ela
não teria lhe dito isso. Oh, pobre moça infeliz! Nunca vejo Dick
Moore, mas tenho vontade de atravessar uma faca no corpo dele.
A senhorita Cornelia enxugou os olhos novamente e, tendo
aliviado seus sentimentos através desse desejo sangrento, retomou
a narrativa.
– Leslie ficou abandonada e sozinha. Dick havia semeado os
campos, e o velho Abner cuidou da plantação. Entretanto, o verão
se foi e o Four Sisters não retornou. Os Moore da Nova Escócia
investigaram o que havia acontecido e ficaram sabendo que o navio
tinha chegado a Havana, deixado sua carga, recebido outro
carregamento e partido de volta para casa. Isso foi tudo o que
puderam descobrir. Com o passar do tempo, as pessoas
começaram a falar de Dick Moore como um homem morto. Quase
todo mundo pensava que ele estava mesmo, embora ninguém
tivesse certeza, pois alguns marujos já haviam reaparecido aqui no
porto depois de passar anos sem dar nenhuma notícia. Leslie nunca
acreditou que ele havia morrido... E estava certa. Infelizmente! No
verão seguinte, o capitão Jim esteve em Havana. Isso foi antes do
momento em que resolveu parar de navegar, claro. Estando por lá,
ele achou que deveria pesquisar um pouco... O capitão sempre foi
intrometido; uma característica típica dos homens. Então, começou
a perguntar em hospedarias de marinheiros e lugares assim, para
ver se conseguia descobrir alguma coisa sobre a tripulação do Four
Sisters. Em minha opinião, seria melhor se ele tivesse deixado tudo
como estava. Bem, um dia o capitão Jim foi a um lugar isolado e lá
encontrou um homem que ele soube à primeira vista, apesar da
barba enorme, que era Dick Moore. Ele conseguiu fazer o homem
tirar a barba, e depois disso não houve mais dúvida nenhuma: era
mesmo Dick Moore! Ou pelo menos seu corpo. A mente não estava
lá, e, quanto à alma, penso que ele nunca teve uma.
– O que havia acontecido com ele?
– Ninguém sabe ao certo. Tudo o que os responsáveis pela
hospedaria puderam informar foi que cerca de um ano antes eles o
haviam encontrado, certa manhã, deitado na porta do
estabelecimento e em um péssimo estado. A cabeça estava muito
machucada, e acharam que ele tinha se ferido em uma briga de
bêbados. Provavelmente, essa é a verdade. Eles o levaram para
dentro e cuidaram do homem, apesar de não acreditarem que ele
sobreviveria. Porém, Dick se recuperou, mas, quando ficou bem,
sua mente se assemelhava à de uma criança; não tinha memória,
nem intelecto, nem discernimento. Tentaram descobrir quem era ele,
mas nunca haviam conseguido. Ele não era sequer capaz de dizer
seu nome, só falava algumas – bem poucas – palavras simples.
Encontraram uma carta em seu bolso que começava com “Querido
Dick” e era assinada por “Leslie”, mas não trazia nenhum endereço
e não estava em um envelope. Eles o deixaram ficar na hospedaria,
e ele aprendeu a fazer alguns serviços ocasionais por lá. Foi assim
que o capitão Jim encontrou o marido de Leslie e o trouxe para
casa. Sempre falei que foi uma besteira, embora eu suponha que
não houvesse alternativa. O capitão imaginou que, quando Dick
chegasse em casa e visse seu antigo ambiente e rostos familiares,
talvez recuperasse a memória. No entanto, não foi o que aconteceu.
E, desde então, lá está ele, na casa próxima ao riacho. Anne, a
cabeça do homem é igual à de uma criança, sem diferença alguma.
De vez em quando ele tem acessos de mau humor, mas em geral é
apenas distraído, bem-humorado e inofensivo. E pode fugir
facilmente se não for vigiado. Esse é o fardo que Leslie vem
carregando há onze anos... completamente sozinha. O velho Abner
Moore morreu logo depois que Dick foi trazido de volta, e descobriu-
se que ele estava praticamente falido. No fim das contas, não
sobrou nada para Leslie e Dick, exceto a antiga fazenda dos West.
Leslie a alugou para John Ward, e esse é todo o dinheiro que ela
tem para viver. Às vezes, ela recebe um hóspede durante o verão,
para ajudar nas despesas. No entanto, a maioria dos turistas prefere
ficar no outro lado do porto, onde estão os hotéis e as casas de
veraneio; a residência de Leslie é longe demais da praia de
banhistas. Ela cuida de Dick e nunca se afastou dele nesses onze
anos... Está presa àquele imbecil pelo resto da vida. E pensar que
um dia teve tantos sonhos e tantas esperanças! Você pode
imaginar, Anne, o que a vida tem sido para ela... Uma moça com
tanta beleza e inteligência, tanto vigor e amor-próprio. Tem sido uma
morte em vida.
– Coitada! Pobre garota! – Anne exclamou, sentindo vergonha de
sua própria felicidade; que direito tinha ela de ser tão feliz enquanto
outro ser humano sofria tanto?
– Você poderia me contar exatamente o que Leslie disse e como
se comportou na noite em que a conheceu na praia? – pediu a
senhorita Cornelia.
A mulher escutou tudo atentamente e, com um aceno de cabeça,
demonstrou sua satisfação.
– Você pensou que ela foi fria e distante, Anne, mas,
conhecendo-a bem, posso afirmar que Leslie se abriu
maravilhosamente. Deve ter realmente gostado de você. Estou
muito contente. Você pode ser capaz de ajudá-la muito. Fiquei grata
quando soube que um casal jovem ia se mudar para esta casa, pois
tive a esperança de que isso significasse a chegada de amigos para
Leslie, especialmente se vocês pertencessem à raça que conhece
Joseph. Você vai ser amiga dela, não vai, Anne?
– É lógico que sim, se ela deixar – respondeu Anne, com toda a
sua doce e impulsiva sinceridade.
– Não, você tem de ser sua amiga, quer ela permita ou não – a
senhorita Cornelia protestou, determinada. – Não se importe se ela
for dura algumas vezes... não dê atenção a isso. Lembre-se de
como foi a vida dela... e ainda é... E vai ser para sempre, suponho,
pois criaturas como Dick Moore vivem eternamente, eu acho. Você
precisa ver como ele ficou gordo depois que voltou para casa.
Antigamente, era bastante esbelto. Simplesmente faça com que ela
se torne sua amiga; você tem capacidade para isso, é uma daquelas
pessoas que possuem esse dom. Só não seja muito sensível. E não
ligue se ela não quiser que você frequente sua casa. Leslie sabe
que algumas mulheres não gostam de estar no mesmo lugar que
Dick: reclamam que ele lhes causa arrepios. Convide-a para vir aqui
sempre que puder. Ela não pode sair com frequência; não pode
deixar o marido sozinho por um longo período de tempo, pois só
nosso Senhor sabe o que ele faria... É provável que queimasse
completamente a casa. À noite, depois que ele adormece, é quando
ela tem algum tempo livre. Ele sempre se deita cedo e dorme
pesadamente até a manhã seguinte. Certamente, foi por isso que
você a encontrou na praia: ela geralmente passeia por lá nesse
horário.
– Vou fazer por ela tudo o que eu puder – Anne prometeu.
Seu interesse em Leslie Moore, que já era grande desde que a
vira conduzindo seus gansos na colina, foi mil vezes intensificado
pela narrativa da senhorita Cornelia. A beleza, o sofrimento e a
solidão da moça a deixaram irresistivelmente fascinada. Anne nunca
havia conhecido alguém como ela; até então, suas amigas tinham
sido garotas saudáveis, normais e alegres, tendo apenas o luto e as
provações comuns aos seres humanos para obscurecer seus
sonhos juvenis. Leslie Moore era muito diferente; destacava-se
como um exemplo trágico – e ao mesmo tempo atraente – de
feminilidade frustrada. Anne decidiu que obteria acesso ao reino
daquela alma solitária e lá encontraria a amizade que ela podia lhe
oferecer tão fartamente, se não fossem as correntes cruéis que a
mantinham aprisionada, não por sua culpa, por tantos anos.
– E lembre-se sempre disto, Anne – concluiu a senhorita
Cornelia, para ficar completamente aliviada –, você não deve pensar
que Leslie não é uma cristã fiel só porque ela quase nunca vai à
igreja; ou mesmo achar que ela é uma metodista. Leslie não pode
levar Dick aos cultos, é claro; não que ele tenha sido um
frequentador assíduo da igreja em seus melhores dias. Mas lembre
que, no coração, ela é uma presbiteriana muito convicta e ardorosa,
Anne.
L
eslie foi à casa dos sonhos em uma noite muito fria de outubro,
quando a névoa, iluminada pela lua, pairava sobre o porto e
seguia ondulando vagarosamente como fitas prateadas rumo
aos vales. Gilbert abriu a porta, e ela pareceu arrepender-se de
estar ali, mas Anne passou rapidamente por ele e a conduziu para a
sala.
– Estou tão contente por você ter escolhido esta noite para vir
aqui – disse alegremente. – Fiz uma grande quantidade de um doce
delicioso de chocolate esta tarde, e queremos alguém para nos
ajudar a comê-lo diante do fogo, enquanto contamos e ouvimos
histórias. Talvez o capitão Jim apareça também. Este é o dia da
semana em que ele costuma vir à noite.
– Não. O capitão Jim está no farol – disse Leslie. – Ele... Ele me
convenceu a vir aqui hoje – acrescentou, em tom ligeiramente
desafiador.
– Vou agradecê-lo por isso quando me encontrar com ele – Anne
respondeu, puxando poltronas para perto do fogo.
– Oh, eu não quis dizer que não queria vir – Leslie protestou, um
pouco ruborizada. – Tenho pensado em visitá-la, mas nem sempre
posso sair de casa.
– Sim, claro, deve ser difícil você deixar o senhor Moore sozinho
– Anne falou em um tom casual.
Havia decidido que seria melhor mencionar Dick Moore
naturalmente em vez de evitar o assunto, o que daria a ele uma
morbidez indevida. E Anne estava certa, pois o ar de
constrangimento de Leslie logo desapareceu. Evidentemente, a
moça já tinha se perguntado o quanto Anne sabia a respeito de suas
condições de vida e, por isso, ficou aliviada ao constatar que
nenhuma explicação seria necessária. Deixou que seu gorro e seu
casaco fossem pendurados no cabide e acomodou-se
graciosamente na grande poltrona ao lado de Magog. Estava bela e
cuidadosamente vestida, com o habitual toque colorido: um gerânio
vermelho preso ao pescoço muito branco. À luz do fogo
aconchegante, seu lindo cabelo reluzia como ouro. Os olhos azuis
da cor do mar estavam repletos de brilho e fascinação. Naquele
momento, sob a influência da pequena casa dos sonhos, Leslie se
tornou uma menina novamente, uma garota esquecida do que
deixou para trás e da amargura que aquilo lhe trazia.
A atmosfera dos muitos amores que haviam santificado a
pequena casa pairava ao redor de Leslie; a companhia de dois
jovens saudáveis e felizes que pertenciam à sua geração a envolvia;
ela sentiu e se rendeu à magia do ambiente. A senhorita Cornelia e
o capitão Jim quase não a teriam reconhecido naquela noite. Anne
achou difícil acreditar que a garota animada que falava e ouvia com
a avidez de uma alma faminta era a mesma mulher fria e indiferente
que havia encontrado na praia. E com que enorme apetite os olhos
de Leslie contemplavam os livros nas estantes entre as janelas!
– Nossa biblioteca não é muito ampla – disse Anne –, mas cada
livro é um amigo. Nós os escolhemos ao longo dos anos, aqui e ali,
nunca comprando um até que o tivéssemos lido pela primeira vez e
sabido que ele pertencia à raça de Joseph.
Leslie riu. Foi uma bela risada, que certamente expressava toda a
alegria das gargalhadas que, no passado, haviam ecoado na
pequena casa branca.
– Tenho alguns livros que eram de meu pai... Não são muitos –
contou. – Eu os li até saber seu conteúdo quase todo de cor. Não
tenho acesso a muitos livros; há uma loja em Glen que recebe uma
biblioteca itinerante, mas acho que a comissão que escolhe os livros
para o senhor Parker não sabe quais deles são da raça de Joseph...
Ou talvez não se importe com isso. Era tão raro encontrar um de
que eu realmente gostasse que acabei desistindo de procurar.
– Espero que considere estes livros aqui como seus – Anne
ofereceu. – Você é total e sinceramente bem-vinda para levar
qualquer um emprestado.
– Desse jeito você está colocando um banquete delicioso diante
de mim! – exclamou Leslie, radiante.
Quando o relógio soou dez horas, ela se levantou, meio contra a
vontade.
– Preciso ir. Não imaginei que já era tão tarde. O capitão Jim
sempre diz que uma hora em um lugar agradável passa muito
depressa. Mas já estou aqui há duas... – falou. – E me diverti muito!
– acrescentou, com sinceridade.
– Venha sempre – disseram Anne e Gilbert.
Os dois também haviam se levantado e estavam juntos diante do
brilho do fogo. Leslie olhou para o casal: jovem, esperançoso, feliz,
simbolizando tudo o que ela havia perdido e jamais teria. A luz
sumiu de seu rosto e de seus olhos; a garota desapareceu; foi a
mulher triste e desiludida que respondeu ao convite quase com
frieza e saiu com uma pressa lamentável.
Anne observou-a até não vê-la mais entre as sombras da noite
gelada e nebulosa. Em seguida, voltou vagarosamente para o brilho
de seu querido lar.
– Ela não é adorável, Gilbert? Seu cabelo me fascina. A senhorita
Cornelia disse que ele chega até os pés. Ruby Gilles também tinha
um cabelo lindo... Mas o de Leslie tem vida! Cada fio dele parece
ouro vivo.
– Ela é muito bonita! – Gilbert concordou tão entusiasticamente
que Anne quase desejou que ele fosse um pouco menos veemente.
– Gilbert, você gostaria mais de meu cabelo se ele fosse como o
de Leslie? – indagou ansiosamente.
– Por nada neste mundo eu gostaria que seu cabelo fosse de
qualquer outra cor que não esta – respondeu Gilbert, com um ou
dois gestos convincentes. – Você não seria Anne se tivesse cabelo
dourado... Ou de qualquer outra cor que não fosse...
– Vermelho – Anne completou, conformada e satisfeita.
– Sim, vermelho, para dar calor à pele branca como o leite e aos
olhos verdes-acinzentados que você possui. Um cabelo louro não
ficaria bem em você de jeito nenhum, rainha Anne... Minha rainha
Anne... Rainha de meu coração, de minha vida e de meu lar.
– Sendo assim, você pode admirar Leslie o quanto quiser – disse
Anne generosamente.
C
erto fim de tarde, uma semana depois, Anne decidiu
atravessar os campos rumo à casa próxima ao riacho para
uma visita informal. Era um crepúsculo em que um nevoeiro
cinza que tinha vindo do golfo envolvia o porto, cobria os vales e
pairava pesadamente sobre os prados. Em meio a ele, o mar se
agitava ruidosamente. Anne viu Four Winds sob um novo aspecto e
achou tudo estranho, misterioso e, ao mesmo tempo, fascinante;
mas também teve uma leve sensação de solidão.
Gilbert estava ausente e só retornaria no dia seguinte, pois tinha
ido participar de um encontro de médicos em Charlottetown. Anne
ansiava por uma hora de conversa com alguma amiga. O Capitão
Jim e a senhorita Cornelia eram “bons companheiros”, cada um à
sua maneira, mas é natural a juventude almejar juventude.
– Se ao menos Diana, Phil, Pris ou Stella pudessem chegar para
conversarmos – disse para si mesma –, seria magnífico! Esta é
realmente uma noite fantasmagórica. Tenho certeza de que se
aquela névoa toda pudesse ser repentinamente afastada, todas as
embarcações que já partiram de Four Winds e naufragaram no
caminho poderiam ser vistas esta noite próximas ao porto, e suas
respectivas tripulações afogadas estariam de pé em seus deques.
Sinto que toda essa neblina esconde inúmeros mistérios... É como
se eu estivesse cercada por fantasmas das gerações antigas de
Four Winds, pessoas olhando para mim através desse véu cinzento.
Se alguma vez as queridas e falecidas senhoras que habitaram esta
pequena casa voltassem para revisitá-la, seria em uma noite como a
de hoje. Se eu ficar aqui por mais tempo, sei que vou ver uma delas
ali na minha frente, sentada na cadeira de Gilbert. Este lugar não
está exatamente agradável agora. Até Gog e Magog parecem
aguçar os ouvidos para escutar os passos de convidados invisíveis.
Vou imediatamente fazer uma visita a Leslie, antes que eu me
apavore com minhas próprias fantasias, como aconteceu muito
tempo atrás, quando atravessei o Bosque Assombrado depois que o
sol já tinha se posto. Vou sair e deixar que minha casa dos sonhos
dê as boas-vindas a seus antigos habitantes. O fogo na lareira vai
lhes transmitir minha hospitalidade e minhas saudações. Quando eu
voltar, eles já terão partido, e minha casa vai me pertencer
novamente. Não tenho dúvida nenhuma de que hoje ela tem um
encontro marcado com o passado.
Rindo de sua fantasia, mas ao mesmo tempo com uma sensação
assustadora na coluna vertebral, Anne soprou um beijo para Gog e
Magog e saiu em meio à névoa, levando debaixo do braço algumas
revistas novas para Leslie.
– Leslie é louca por livros e revistas – a senhorita Cornelia havia
contado –, mas raramente tem acesso a eles, pois não possui
dinheiro suficiente para comprar ou assinar revistas. Ela é real e
lamentavelmente pobre, Anne. Não entendo como consegue viver
com a pequena renda que o aluguel da fazenda lhe proporciona. Ela
nem sequer insinua uma reclamação sobre sua pobreza, mas sei
como deve ser sua vida. A coitada tem carregado essa cruz por toda
a vida. Leslie não se importava muito com isso quando era livre e
ambiciosa, entretanto a pobreza deve entristecê-la muito de uns
tempos para cá, acredite em mim. Fico contente por ela ter parecido
tão animada e alegre na noite em que esteve em sua casa. O
capitão Jim me contou que teve de colocar o gorro e o casaco em
Leslie e praticamente empurrá-la pela porta para vir aqui. Não
demore muito para visitá-la também, Anne. Caso contrário, Leslie
vai pensar que é porque você não gosta de ver Dick, e então vai se
isolar novamente em sua concha. Dick é um bebê grande e
inofensivo, mas aquele sorriso bobo no rosto e suas risadinhas
irritam algumas pessoas. Felizmente, ele não me incomoda. Até
gosto mais de Dick Moore agora do que quando ele estava em seu
juízo perfeito... Embora nosso Senhor saiba que isso não quer dizer
muita coisa. Outro dia, fui até a casa deles, na hora da faxina, para
ajudar Leslie. Enquanto eu fritava uns bolinhos, Dick ficou, como de
costume, circulando pela cozinha até poder pegar um; assim que
conseguiu pôr a mão em um bolinho escaldante que eu havia
acabado de tirar da frigideira, ele aproveitou que eu estava curvada
e jogou-o em minha nuca. Então, riu até se cansar. Acredite em
mim, Anne, foi preciso toda a graça de Deus em meu coração para
me impedir de simplesmente pegar aquela panela e derramar toda a
gordura fervente sobre a cabeça dele.
Enquanto atravessava a escuridão apressadamente, Anne riu
com a lembrança da fúria da senhorita Cornelia. Porém, risadas não
combinavam com aquela noite, e Anne estava bastante séria
quando chegou à casa entre os salgueiros. Tudo ali parecia
silencioso. A parte da frente do imóvel estava escura e deserta, por
isso Anne deu a volta até alcançar a porta lateral, que se abria da
varanda para uma pequena sala de estar. Chegando lá, ela parou
em silêncio.
A porta estava aberta, e dentro da sala mal-iluminada Anne viu
Leslie Moore: estava com os braços estendidos sobre a mesa e a
cabeça inclinada sobre eles. A moça chorava sem parar, com
soluços baixos, sufocados e sofridos, como se alguma agonia
tentasse se libertar de dentro dela. Um cachorro preto e idoso
estava sentado ao seu lado, o focinho pousado em seu colo e os
olhos, grandes e suplicantes, cheios de solidariedade e devoção
mudas.
Anne recuou, consternada. Sentiu que não deveria interferir
naquela cena de amargura. Seu coração doía com uma compaixão
que não podia expressar. Entrar naquele momento seria fechar
definitivamente a porta para qualquer possível ajuda ou amizade
futuras. Seu instinto a preveniu de que aquela mulher orgulhosa e
atormentada jamais perdoaria quem a surpreendesse em seu
abandono desesperado.
Saiu sorrateiramente da varanda e, enquanto atravessava o
jardim, escutou vozes na penumbra e viu o brilho de uma luz fraca.
Ao chegar ao portão, encontrou dois homens: o capitão Jim,
segurando uma lamparina, e outro indivíduo que deduziu que só
poderia ser Dick Moore; era grande e muito gordo, com um rosto
largo, redondo e vermelho e um olhar vago. Mesmo com a pouca
intensidade da luz, Anne teve a impressão de que havia algo
incomum nos olhos daquele homem.
– Senhora Blythe? – disse o capitão. – Ora, ora, não deveria estar
vagando sozinha por aqui em uma noite como esta. Pode facilmente
ficar perdida em meio a esta névoa. Espere até eu levar Dick
seguramente para dentro de casa; em seguida, vou iluminar seu
caminho de volta pelos campos. Não posso permitir que, ao retornar
para casa, o doutor Blythe saiba que a senhora atravessou o Cabo
Leforce no meio de um nevoeiro como este. Uma mulher fez isso
uma vez, quarenta anos atrás, e o resultado foi o pior possível.
Quando voltou, o capitão disse:
– A senhora veio ver Leslie, estou certo?
– Sim, mas não entrei – e Anne contou o que tinha visto.
O capitão Jim suspirou.
– Pobre, pobre garota! Ela não chora frequentemente, senhora
Blythe. É valente demais para isso. Quando cede ao pranto é
porque está se sentindo péssima de verdade. Uma noite como esta
é muito difícil para mulheres que carregam grande tristeza. Tem algo
no ar que, digamos, evoca tudo o que sofremos... ou tememos.
– Esta noite está cheia de fantasmas – afirmou Anne, com um
arrepio. – Foi por isso que vim até aqui. Queria apertar a mão e
ouvir a voz de um ser humano. Hoje parece haver tantas presenças
vindas do além nesta região... Até minha própria e tão querida casa
estava repleta delas. Tive a impressão de que me expulsavam de lá.
Por isso fugi para cá: estava em busca de uma companhia
semelhante a mim.
– Contudo, agiu bem ao não entrar, senhora Blythe. Leslie não
teria gostado. Também não acharia nada bom me ver atravessar a
porta com Dick, como eu teria feito se não a houvesse encontrado.
Fiquei fora com ele o dia todo. Tento mantê-lo longe daqui o máximo
possível, para ajudar Leslie um pouco.
– Não tem algo estranho em relação aos olhos dele? – Anne
perguntou.
– A senhora percebeu? Sim, um é azul e o outro é cor de avelã.
O pai dele também tinha essa característica. É uma peculiaridade
dos Moore. Foi isso que me fez descobrir que ele era Dick Moore
logo que o vi em Cuba. Se não fosse por isso, talvez eu não o
tivesse reconhecido, pois tinha uma barba enorme e estava muito
gordo. A senhora sabe, imagino, que fui eu que o encontrei e trouxe
para casa. A senhorita Cornelia sempre diz que eu não deveria ter
feito isso, mas não posso concordar com ela. Era a coisa certa a
fazer; a única coisa! Não tenho nenhuma dúvida a esse respeito.
Porém, meu velho coração dói por Leslie. Ela tem apenas vinte e
oito anos e já sofreu mais que a maioria das mulheres de oitenta.
Caminharam em silêncio por algum tempo, depois Anne falou:
– Sabe, Capitão Jim, não gosto de andar na escuridão com uma
lamparina acesa. Sempre tenho a sensação realmente estranha de
que, do lado de fora do círculo de luz, logo acima do anel de sua
borda, estou cercada, na escuridão, por coisas furtivas e sinistras
que me olham com hostilidade por entre as sombras. Tenho essa
sensação desde a infância. Qual é a razão para isso? Nunca me
sinto assim quando estou na escuridão total; nesse caso, não fico
nem um pouco assustada.
– Também tenho um sentimento bem parecido – admitiu o capitão
Jim. – Suponho que, quando a escuridão está bem perto de nós, ela
é uma amiga. Porém, no momento em que a afastamos de nós; em
que, digamos, nos divorciamos dela por meio da luz de uma
lamparina, por exemplo, ela se torna uma inimiga. Mas olhe,
senhora Blythe, a névoa está se dissipando. Há um vento agradável
soprando do oeste, percebeu? As estrelas já devem estar brilhando
no céu quando chegarmos a sua casa.
E estavam. Ao entrar novamente na sala, Anne constatou que as
brasas vermelhas ainda brilhavam na lareira de sua casa dos
sonhos e que todas as presenças assustadoras haviam partido.
N
o fim do outono, o esplendor de cores que havia embelezado
por semanas o litoral de Four Winds tinha dado lugar ao suave
azul-acinzentado das colinas. Houve muitos dias em que os
campos e as praias ficaram sombrios com a chuva e a névoa, ou
tremulantes com o sopro de um vento marinho melancólico. E houve
também noites de tormenta e tempestade, nas quais Anne acordou e
orou para que nenhum navio se chocasse com os rochedos da costa
norte, pois, se assim fosse, nem mesmo a grande e fiel luz do farol
girando bravamente na escuridão poderia guiá-lo até um porto
seguro.
– Em novembro eu às vezes me sinto como se a primavera nunca
mais fosse voltar – ela murmurou um dia, com um suspiro,
lamentando a situação deplorável de seus canteiros de flores
congelados e sujos.
O pequeno e alegre jardim da noiva do professor era agora um
lugar triste e sem graça, e os álamos e as bétulas pareciam “mastros
de navios em que as velas não foram içadas”, como definiu o capitão
Jim. Porém, o bosque de abetos atrás da pequena casa branca
continuava verde e belo; e mesmo em novembro e dezembro houve
alguns dias bonitos de sol e brumas arroxeadas, quando o porto
brilhava tão alegremente quanto no meio do verão, e o golfo ficava
levemente azul e tão bonito, que a tempestade e o vento selvagem
pareciam apenas coisas de um longo sonho que tinha ficado para
trás.
Anne e Gilbert passaram muitos fins de tarde de outono no farol,
um lugar sempre alegre e divertido. Mesmo quando o vento leste
soprava com uma intensidade menor e o mar ficava parado e
cinzento, raios de sol pareciam estar à espreita em cada canto.
Talvez fosse assim porque o Primeiro Imediato sempre desfilava por
ali com seu pelo alaranjado e farto que lembrava um manto real
dourado. O gato era tão grande e reluzente que quase ofuscava a
pouca luz do sol naquela época do ano, e seus ronronados
retumbantes constituíam um acompanhamento agradável para as
risadas e conversas que ocorriam ao redor da lareira do capitão Jim.
Gilbert e o capitão tiveram muitas e longas conversas e
discussões sobre assuntos que iam além da compreensão de gatos
e reis.
– Gosto de refletir sobre todos os tipos de problemas, embora não
possa resolvê-los – disse o capitão Jim. – Meu pai sempre acreditou
que nunca devemos falar a respeito de coisas que não
compreendemos; no entanto, se for assim, doutor, vão sobrar bem
poucos assuntos para nossas conversas, não acha? Imagino que os
deuses riem frequentemente ao nos ouvir, mas o que isso importa,
contanto que nos lembremos de que somos apenas homens, e não
pensemos que somos deuses e conhecemos o bem e o mal? Acho
que nossas trocas de ideias não vão nos prejudicar nem incomodar
ninguém; portanto, doutor, que tal tentarmos hoje mais uma
discussão daquelas sobre “de onde, por que e para onde”?
Enquanto eles “tentavam”, Anne escutava ou sonhava. Às vezes,
Leslie ia ao farol com eles, e então ela e Anne caminhavam ao longo
da costa durante os crepúsculos misteriosos ou sentavam-se nas
pedras abaixo do farol e ali ficavam até que a escuridão as
mandasse de volta para o fogo aconchegante alimentado pela lenha
vinda do oceano. Nessas ocasiões, o capitão Jim preparava um chá
para eles e lhes contava
[...] histórias de terra e mar
e tudo o mais que podia acontecer
no imenso mundo esquecido lá fora.********
Leslie sempre se divertia muito nessas reuniões animadas,
durante as quais ela parecia desabrochar: ficava espirituosa, dava
boas risadas e, mesmo quando estava em silêncio, seus olhos
tinham um brilho especial que inspirava os outros. Se Leslie estava
presente, as conversas tinham um sabor ainda mais agradável, as
histórias do capitão ficavam ainda mais interessantes, e os
argumentos e réplicas de Gilbert se tornavam mais convincentes.
Além disso, sob a influência da personalidade de Leslie, a
imaginação e as fantasias de Anne fluíam mais facilmente até seus
lábios. Por isso, todos sentiam sua falta quando ela estava ausente.
– Aquela garota nasceu para ser uma líder em círculos sociais e
intelectuais bem distantes de Four Winds – Anne disse a Gilbert em
uma dessas noites, enquanto caminhavam de volta para casa. – Ela
está simplesmente desperdiçada aqui... Desperdiçada!
– Você não ouviu o capitão Jim e este seu querido esposo quando
conversávamos outro dia sobre esse assunto de modo mais geral?
Chegamos à reconfortante conclusão de que provavelmente o
Criador sabe administrar Seu universo tão bem quanto nós
gerenciamos o nosso, e que, afinal de contas, não existem vidas
“desperdiçadas”, exceto no caso de indivíduos que deliberadamente
arruínam sua própria vida, o que Leslie Moore certamente não fez. E
algumas pessoas poderiam muito bem achar que certa moça
graduada pelo Redmond College, a quem os editores começam a
dar bastante valor, está “desperdiçada” como a mera esposa de um
médico esforçado, em início de carreira na comunidade rural de Four
Winds.
– Gilbert!
– Se você tivesse se casado com Roy Gardner – continuou Gilbert
impiedosamente –, agora poderia “ser uma líder em círculos sociais
e intelectuais bem distantes de Four Winds”.
– Gilbert Blythe!
– Você sabe, já foi apaixonada por ele no passado, Anne.
– Gilbert, você está sendo cruel; “uma atitude típica dos homens”,
como a senhorita Cornelia costuma dizer. Nunca fui apaixonada por
Roy. Apenas pensei que era. E você sabe disso. E sabe também que
prefiro ser sua esposa, em nossa casa dos sonhos realizados, a ser
uma rainha em um palácio.
A resposta de Gilbert não veio em palavras. E receio que ambos
tenham se esquecido completamente da pobre Leslie, que percorria
rapidamente seu caminho solitário pelos campos rumo a uma casa
que não era nem um palácio nem um sonho realizado.
A lua subia no céu sobre o mar escuro e triste atrás deles e o
transformava. Sua luz ainda não havia chegado ao porto, cuja parte
mais afastada permanecia escura e sugestiva, com enseadas
sombrias e pequenos pontos luminosos que brilhavam como joias.
– Como as luzes das casas se destacam esta noite em meio à
escuridão! – exclamou Anne. – Aquela fileira atrás do porto parece
um colar. E como elas cintilam, em Glen! Oh, veja, Gilbert: ali está a
nossa. Estou tão contente porque a deixamos acesa. Detesto chegar
e encontrar a casa toda na escuridão. Ali está a luz do nosso lar,
Gilbert! Não acha adorável vê-la?
– É apenas um entre muitos milhões de lares, Anne... Mas é o
nosso... nosso!... Nosso refúgio neste mundo perverso. Quando um
homem possui um lar e, dentro dele, uma adorada esposa ruiva, o
que mais ele precisa pedir à vida?
– Bem, ele pode pedir só mais uma coisa – Anne sussurrou
alegremente. – Gilbert, tenho a impressão de que não consigo mais
esperar pela primavera.
Aprincípio, Anne e Gilbert pretendiam ir para Avonlea, no Natal,
mas depois decidiram ficar em Four Winds.
– Quero estar em nossa própria casa no primeiro Natal de nossa
vida juntos – decretou Anne.
Por isso, Marilla, a senhora Rachel Lynde e os gêmeos foram
passar o Natal em Four Winds. Quando chegaram, Marilla tinha a
aparência de uma mulher que havia dado a volta ao mundo em um
navio. Ela nunca tinha ido mais longe do que cem quilômetros de
casa; e jamais havia comido uma ceia de Natal em qualquer outro
lugar que não fosse Green Gables.
A senhora Rachel levou um pudim de ameixa enorme. Nada
havia sido suficiente para convencê-la de que alguém que fazia
parte de uma geração mais jovem e possuía um diploma de curso
superior seria capaz de preparar um bom pudim de ameixa natalino.
Entretanto, por outro lado, a senhora Lynde aprovou sinceramente o
lar de Anne.
– Ela é uma boa dona de casa – disse a Marilla no quarto de
hóspedes na primeira noite das duas em Four Winds. – Olhei a
cesta de pão e a lixeira dela. Sempre julgo uma dona de casa com
base nesses itens, essa é a verdade. Não encontrei nada na lixeira
que não deveria ter sido descartado, e também não havia pedaços
de pão velho e duro na cesta. É claro que não podemos nos
esquecer de que Anne foi educada por você, Marilla, mas depois
disso foi cursar a faculdade. Notei ainda que ela colocou nesta cama
aqui a colcha com listas cor de tabaco que lhe dei; e aquela esteira
redonda grande que você trançou para ela está diante da lareira da
sala de estar. Essas coisas realmente fazem com que eu me sinta à
vontade aqui.
O primeiro Natal de Anne em sua própria casa foi tão adorável
quanto ela poderia ter desejado. O dia amanheceu claro e bonito; os
primeiros flocos de neve haviam caído na véspera e tornado o
mundo maravilhoso; o porto ainda estava aberto e cintilante.
O capitão Jim e a senhorita Cornelia vieram para o almoço. Leslie
e Dick também haviam sido convidados, mas Leslie pediu desculpa
por não poder comparecer, pois – alegou – sempre passavam o
Natal na casa de seu tio Isaac West.
– Leslie prefere que seja assim – a senhorita Cornelia explicou a
Anne. – Ela detesta levar Dick a lugares onde há pessoas que não o
conhecem. E o Natal é sempre uma data dolorosa para Leslie. Ela e
o pai adoravam celebrá-lo juntos.
No início, a senhorita Cornelia e a senhora Rachel não tiveram
uma grande simpatia mútua. Afinal, duas estrelas não se
movimentam na mesma órbita. Contudo, não houve absolutamente
nenhum atrito entre elas, pois, enquanto a senhora Rachel ajudava
Anne e Marilla na cozinha com os preparativos do almoço, coube a
Gilbert entreter o capitão Jim e a senhorita Cornelia, ou melhor, ser
entretido por eles, já que uma conversa entre esses dois velhos
amigos e antagonistas certamente nunca era entediante.
– Faz muitos anos desde que houve um almoço de Natal nesta
casa, senhora Blythe – disse o capitão, mais tarde. – Nesta época
do ano, a senhorita Russel sempre ia para a casa de amigos na
cidade. Porém, eu estava presente no primeiro almoço de Natal que
foi servido aqui. Foi a noiva do professor que o preparou. Isso
aconteceu sessenta anos atrás, senhora Blythe, e foi um dia muito
parecido com o de hoje; havia neve suficiente para deixar as colinas
brancas, e o porto estava tão azul quanto fica em junho. Eu era
apenas um garoto e nunca tinha sido convidado para um almoço;
fiquei tão tímido que nem comi o suficiente. Mas isso é algo que já
superei há muito tempo.
– Como acontece com a maioria dos homens – a senhorita
Cornelia comentou, enquanto costurava incessantemente.
A senhorita Cornelia não ficaria sentada com as mãos ociosas
nem mesmo no Natal. Os bebês chegam sem nenhuma
consideração pelos feriados, e havia um sendo esperado a qualquer
momento em um lar extremamente pobre de Glen Saint Mary. A
senhorita Cornelia tinha enviado um almoço farto para aquela
família numerosa e, portanto, pretendia comer o seu próprio com a
consciência completamente tranquila.
– Sabe como é: o caminho para o coração de um homem é
através de seu estômago, Cornelia – o capitão Jim explicou.
– Sim, acredito nisso... quando ele possui um coração – retrucou
a senhorita Cornelia. – Suponho que seja por isso que tantas
mulheres se consomem na cozinha... Exatamente como fez Amelia
Baxter. Ela morreu na manhã de Natal do ano passado. Pouco
tempo antes, havia afirmado que era a primeira vez, desde que tinha
se casado, que não teria de preparar um almoço com vinte pratos.
Deve ter sido uma mudança muito agradável para ela. Bem, como
faz um ano que ela se foi, logo vocês vão ouvir falar de Horace
Baxter retomando sua vida social.
– Escutei alguém dizer que ele já está fazendo isso – disse o
capitão, piscando para Gilbert. – Ele não esteve em sua casa
recentemente, em um domingo desses, usando roupas pretas e
colarinho engomado?
– Não, não esteve. E nem adiantaria ir: já pude tê-lo há muito
tempo, quando ainda era jovem; e além disso não quero bens de
segunda mão, acredite em mim. Quanto a Horace Baxter, digo ainda
que estava com dificuldades financeiras no verão passado e orou
para que nosso Senhor o ajudasse. Quando a esposa morreu e ele
recebeu o seguro de vida dela, afirmou que acreditava que aquilo
tinha sido uma resposta a suas preces. Não é uma atitude típica dos
homens?
– Você possui realmente alguma prova de que ele falou isso,
Cornelia?
– Tenho a palavra do pastor metodista, se é que você considera
isso uma prova real. Robert Baxter também me contou a mesma
coisa, embora eu admita que essa não é uma prova confiável.
Robert Baxter não é conhecido por só dizer a verdade.
– Ora, ora, Cornelia, acho que em geral ele não mente; o
problema é que muda de opinião com tanta frequência que às vezes
dá a impressão de que não falou a verdade anteriormente.
– Parece que quase sempre é isso mesmo que acontece,
acredite em mim. Entretanto, é preciso ter em mente que um
homem sempre defende outro. Robert Baxter não tem nenhuma
serventia para mim. Tornou-se metodista só porque, devido a uma
mera coincidência, o coral presbiteriano cantava o hino “Eis que
chega o noivo” quando ele e Margaret entraram na igreja no
domingo seguinte ao casamento deles. Foi bem merecido! Quem
mandou chegar atrasado para a cerimônia? Robert insiste até hoje
que o coral fez de propósito para insultá-lo, como se ele tivesse
mesmo tanta importância. Aquela família toda sempre se achou
mais prestigiada do que realmente é. O irmão dele, Eliphalet,
imaginava que o diabo estava o tempo todo ao lado dele. Ora,
nunca acreditei que o diabo desperdiçaria tanto tempo com um
Baxter!
– Eu... Não... Não sei... – disse o capitão Jim, pensativo. –
Eliphalet Baxter viveu muito sozinho; não tinha nem mesmo um gato
ou um cachorro para mantê-lo humano. Quando um homem é tão só
assim, fica bastante apto a conviver com o demônio, caso não
esteja com Deus. Ele tem de escolher na companhia de quem
prefere permanecer, suponho. Se o diabo realmente se mantinha ao
lado de Life Baxter, deve ter sido porque Life gostava de tê-lo ali.
– Uma atitude típica dos homens! – a senhorita Cornelia
exclamou; em seguida ficou em silêncio e se dedicou a um arranjo
complicado de babados em sua costura, até que o capitão Jim a
provocasse deliberadamente mais uma vez, com um comentário em
tom casual:
– Fui à igreja metodista na manhã de domingo passado.
– Teria sido melhor se houvesse ficado em casa lendo sua Bíblia
– foi a resposta da senhorita Cornelia.
– Ora, ora, Cornelia, não vejo mal nenhum em irmos à igreja
metodista quando não há nenhum culto em nossa própria igreja.
Sou presbiteriano há setenta e seis anos, e não é provável que
minha teologia mude a esta altura tardia da vida.
– Está dando um mau exemplo – a senhorita Cornelia falou,
severa.
– Além disso – continuou maliciosamente o capitão –, eu queria
ouvir um bom coral. O dos metodistas é ótimo e você não pode
negar, Cornelia, que o de nossa igreja está péssimo desde que foi
dividido.
– Que importância tem o coral não ser excelente? Os cantores
estão dando o melhor de si, e Deus não vê diferença entre a voz de
um corvo e a de um rouxinol.
– Bem, Cornelia – disse o capitão suavemente –, eu tenho uma
opinião melhor que essa a respeito do ouvido musical do Todo-
Poderoso.
– O que causou a divisão em nosso coral? – perguntou Gilbert,
que sofria tentando não rir.
– Tudo começou três anos atrás, com a ideia da construção da
igreja nova – o capitão Jim contou. – Tivemos um problema terrível
com relação ao local onde ela seria, embora os dois terrenos em
questão não fossem mais que cem metros distantes um do outro.
Entretanto, pela dimensão da briga, qualquer um pensaria que se
tratava de pelo menos um quilômetro. Ficamos divididos em três
grupos: um queria que ela fosse erguida no terreno ao leste; outro,
no que ficava ao sul; e o terceiro achava que a igreja nova deveria
ser no mesmo local da antiga. As discussões aconteciam na cama e
à mesa, na igreja e no mercado. Todos os escândalos que
envolveram três gerações foram desenterrados e divulgados aos
quatro ventos. Três casamentos foram arruinados. E as reuniões
que tivemos para resolver a questão?! Cornelia, algum dia você vai
se esquecer daquela em que o velho Luther Burns se levantou e fez
um discurso? Ele expressou suas opiniões com uma veemência
inacreditável.
– Fale aberta e francamente, capitão. Na verdade, você quer
dizer que ele ficou furioso e censurou todos severamente. Disse o
que eles mereciam ouvir... Um bando de incompetentes! Mas o que
poderia ser esperado de um comitê de homens? Fizeram vinte e
sete reuniões, e ao fim da vigésima sétima não estávamos nem um
pouco mais perto de ter uma igreja nova do que quando
começaram. De fato, nossa situação tinha ficado ainda pior, pois,
em um ímpeto de pressa para resolver a questão, demoliram o
imóvel antigo e, portanto, ficamos sem igreja, sem um local para
orar, exceto o salão do clube.
– Os metodistas nos ofereceram a igreja deles, Cornelia.
– A igreja de Glen Saint Mary não teria sido construída até hoje –
prosseguiu a senhorita Cornelia, ignorando o capitão Jim – se nós,
mulheres, não tivéssemos interferido e nos responsabilizado pelo
assunto. Dissemos que, se eles queriam brigar até o dia do Juízo
Final, nós pretendíamos ter uma igreja logo e estávamos cansadas
de ser alvo de chacota dos metodistas. Em seguida, fizemos uma
reunião, elegemos um comitê e fomos bem-sucedidas na
arrecadação de donativos. Quando algum homem ousava se
intrometer e nos importunar, falávamos que eles haviam tentado, por
dois anos, construir uma igreja; agora era nossa vez. Conseguimos
fazer com que se calassem, acreditem em mim, e em seis meses já
tínhamos nossa igreja. É óbvio que quando viram que estávamos
realmente determinadas, os homens pararam de brigar e
trabalharam também: entenderam que tinham de ajudar ou deixar
de dar ordens. Uma atitude típica dos homens! Sim, mulheres não
podem pregar nem ser membros da administração da paróquia, mas
elas podem arrecadar dinheiro e construir igrejas!
– Os metodistas permitem que as mulheres preguem – o capitão
Jim insistiu.
A senhorita Cornelia olhou seriamente para ele.
– Eu nunca afirmei que os metodistas não têm bom senso,
capitão. O que digo é que duvido que eles tenham muita fé religiosa.
– Suponho que seja a favor do voto feminino, senhorita Cornelia –
disse Gilbert.
– Não anseio pelo direito de votar, acredite em mim – ela
respondeu com desdém. – Sei o que significa limpar a sujeira que
os homens fazem. Porém, qualquer dia desses, quando finalmente
se cansarem da bagunça que fizeram no mundo e se derem conta
de que não conseguem se livrar dela, eles vão ficar felizes em nos
conceder o voto e deixar que solucionemos os problemas que
criaram. Esse é plano deles. Ainda bem que pelo menos as
mulheres são pacientes, acreditem em mim!
– E quanto a Jó? O que me diz? – sugeriu o capitão.
– Jó! Era tão raro encontrar um homem paciente que, quando
acharam um, decidiram que ele jamais deveria ser esquecido –
retrucou triunfalmente a senhorita Cornelia. – De qualquer maneira,
a virtude não vem junto com o nome. Ainda está para nascer um
homem tão impaciente quanto o velho Jó Taylor, lá do outro lado do
porto.
– Bem, você sabe, Cornelia, o quanto a paciência dele foi testada
todos os dias. Nem você defenderia a esposa de Jó Taylor. Sempre
me lembro do que o velho William MacAllister disse no funeral dela:
“Não há dúvida de que era uma mulher cristã, mas tinha o
temperamento do demônio em pessoa”.
– Suponho que ela irritava o marido bastante mesmo... – a
senhorita Cornelia admitiu, relutante –, embora isso não justifique o
que Jó falou quando ela morreu. Após o funeral, ele voltou do
cemitério para casa junto com meu pai. Não pronunciou uma
palavra até chegarem perto de sua residência. Ali, ele suspirou
longa e profundamente e declarou: “Você pode não acreditar nisso,
Stephen, mas este é o dia mais feliz de minha vida!”. Não foi uma
atitude típica dos homens?
– Creio que a pobre senhora Taylor tenha mesmo, digamos,
infernizado a vida dele – refletiu o capitão Jim.
– Entretanto, existe uma coisa chamada decência, não existe?
Um homem pode até ter seu coração transbordando alegria pela
morte da esposa, mas não precisa proclamar isso. Além disso, dia
feliz ou não, a verdade é que todos sabem que Jó Taylor não
demorou a se casar novamente. E a segunda esposa soube lidar
melhor com ele; o homem teve de satisfazer todas as suas
vontades, acreditem em mim! A primeira coisa que ela fez foi obrigá-
lo a erguer imediatamente uma lápide para a primeira senhora Jó...
E a deixar um espaço nessa pedra para o nome dela, com a
justificativa de que não haveria ninguém para convencer Jó a
mandar construir um monumento para ela.
– Por falar nos Taylor, como está a senhora Lewis Taylor de Glen,
doutor? – indagou o capitão Jim.
– Vem melhorando lentamente... Mas a coitada tem de trabalhar
sempre duramente – Gilbert respondeu.
– O marido se esforça muito também. Cria porcos para concursos
– disse a senhorita Cornelia. – É famoso por seus belos suínos, e
sente bem mais orgulho deles que dos próprios filhos. Bem, com
certeza, seus porcos são os melhores possíveis, enquanto os filhos,
por outro lado, não valem muito mesmo. Ele escolheu uma mãe
pobre para eles e a deixou passar fome enquanto os gerava e
criava. Os porcos recebiam a nata, e seus filhos, o leite aguado.
– Há momentos, Cornelia, em que tenho de concordar com você,
embora isso fira meus sentimentos – o capitão reconheceu. – Essa
é a mais pura verdade a respeito de Lewis Taylor. Quando vejo
aquelas crianças tristes e miseráveis, privadas de tudo o que
deveriam ter, fico com o coração apertado, e isso atrapalha minhas
refeições durante dias.
Gilbert foi até a cozinha em resposta a um aceno de Anne, que
fechou a porta e o repreendeu:
– Gilbert, você e o capitão Jim têm de parar de provocar a
senhorita Cornelia. Estou ouvindo vocês daqui... E simplesmente
não vou permitir isso!
– Anne, a senhorita Cornelia está se divertindo imensamente.
Você sabe que ela está.
– Não importa. O fato é que não precisam instigá-la dessa
maneira. Bem, o almoço está pronto e, Gilbert, não permita que a
senhora Rachel corte os gansos. Sei que ela vai se oferecer para
fazer isso porque acha que você não consegue parti-los
apropriadamente. Mostre a ela que é capaz.
– Tenho de ser; passei todo o último mês estudando os
diagramas que mostram passo a passo como fazer isso: A, B, C,
D... – disse Gilbert. – Apenas não fale comigo durante esse
processo, Anne, pois, se as letras se embaralharem em minha
cabeça, vou ficar em uma situação mais difícil do que você, nos
velhos tempos da geometria, quando o professor Philips trocava as
letras dos teoremas.
Gilbert cortou as aves com perfeição. Até a senhora Rachel teve
de admitir isso. E todos comeram e gostaram muito. O primeiro
almoço de Natal de Anne foi um grande sucesso, e ela sorriu muito
para seus convidados, orgulhosa de suas prendas domésticas. O
banquete foi alegre e longo; quando terminou, todos se reuniram em
torno do fogo vermelho e acolhedor da lareira, e o capitão Jim
contou histórias até o momento em que o sol alaranjado desceu
sobre o porto de Four Winds e as sombras compridas e azuis dos
álamos pousaram sobre a neve na estrada.
– Preciso voltar para o farol – ele anunciou, por fim. – Tenho
apenas o tempo suficiente para caminhar até minha casa antes de
escurecer. Obrigado pelo lindo Natal, senhora Blythe. Levem mestre
Davy ao farol uma noite dessas antes que ele volte para Avonlea.
– Quero ver os tais deuses de pedra! – exclamou Davy
animadamente.
O
s moradores de Green Gables voltaram para casa depois do
Natal, mas Marilla prometeu solenemente que retornaria para
passar um mês com Anne durante a primavera. Nevou muito
até a véspera do Ano-Novo, e o porto congelou, mas, para além dos
campos cobertos por uma espessa camada branca, o golfo ainda
estava livre. O último dia do ano velho foi um daqueles claros e frios
de inverno que nos deslumbram com seu brilho e despertam nossa
admiração e nunca nosso amor.
O céu estava azul e sem nuvens; os diamantes de neve
cintilavam insistentemente; as árvores desfolhadas, nuas,
ostentavam uma espécie de beleza sem pudor; e era como se as
colinas arremessassem lanças de cristal no ar. Até as sombras eram
mais claras e bem-definidas, como nenhuma sombra deveria ser.
Tudo o que era bonito parecia dez vezes mais belo e atraente em
meio ao esplendor dos raios luminosos; e o que era feio parecia dez
vezes mais feio, de modo que todas as coisas eram feias ou
bonitas. Não havia contrastes gradativos, escuridão suave ou névoa
instável: era apenas um brilho intenso. Só os abetos mantinham a
própria individualidade, pois são árvores de segredos e mistérios, e
jamais cedem às ousadas invasões da luz.
Finalmente, o dia se deu conta de que estava envelhecendo.
Então, certo pesar desceu sobre sua beleza e a ofuscou, mas,
também e ao mesmo tempo, fez com que ela se tornasse ainda
mais intensa. Ângulos agudos e pontos cintilantes transformaram-se
em curvas e centelhas sedutoras. O porto, que até então estava
branco, adquiriu tons suaves de cinza e rosa, e as colinas distantes
assemelharam-se a ametistas.
– O ano velho está partindo lindamente – disse Anne.
Ela, Leslie e Gilbert estavam a caminho do pontal de Four Winds,
pois haviam aceitado o convite do capitão Jim para passar a virada
do ano no farol. O sol já tinha se posto, e no céu do sudoeste
pairava o planeta Vênus, dourado e glorioso, tendo se aproximado
da irmã Terra o máximo que pôde. Pela primeira vez, Anne e Gilbert
viram a sombra da brilhante Estrela d’Alva: uma sombra fraca e
misteriosa, que só podia ser apreciada quando havia a brancura da
neve para deixá-la visível – ainda assim, com um olhar enviesado,
pois ela desaparecia quando observada diretamente.
– É como se fosse o espírito de uma sombra, não acham? –
sussurrou Anne. – Fica claramente visível quando olhamos de lado,
mas se nos viramos e o encaramos... pronto, ele não está mais lá.
– Ouvi dizer que só podemos ver a sombra de Vênus uma vez em
toda a nossa existência e que, um ano depois que a vemos, o
presente mais maravilhoso de nossa vida nos é dado – Leslie
comentou, ligeiramente melancólica; talvez acreditasse que nem
mesmo a sombra de Vênus poderia lhe trazer uma grande dádiva.
Anne sorriu na penumbra suave que os rodeava; sentiu que sabia
bem o que aquela sombra mística havia lhe prometido.
Quando chegaram ao farol, encontraram Marshall Elliot com o
capitão. A princípio, Anne se viu inclinada a não gostar da intrusão
daquele homem excêntrico, de barba e cabelo compridos, no
pequeno círculo familiar. No entanto, Marshall Elliot logo provou que
era um membro legítimo da raça que conhecia Joseph. Era sábio,
inteligente e culto, e rivalizava com o capitão Jim no talento para
contar uma boa história. Então, todos ficaram contentes quando ele
concordou em se despedir do ano junto com eles.
Joe, o pequeno sobrinho do capitão, tinha vindo passar o
réveillon com o tio-avô e estava adormecido no sofá, com o Primeiro
Imediato encolhido a seus pés, parecendo uma grande bola
alaranjada.
– Não é um homenzinho adorável? – disse o capitão Jim,
encantado. – Realmente, amo ver uma criança dormindo, senhora
Blythe. É o que há de mais lindo no mundo, eu acho. Joe fica muito
feliz quando pode passar a noite aqui porque eu permito que ele
durma comigo. Em casa, ele tem de dividir o quarto com dois outros
garotos e não gosta disso. “Por que não posso dormir com o papai,
tio Jim?”, pergunta. “Todos na Bíblia dormiam com seus pais.” Creio
que nem o pastor pode responder às perguntas que este menino
faz... Elas me deixam verdadeiramente perplexo. “Tio Jim, se eu não
fosse eu, quem eu seria?”; “Tio Jim, o que aconteceria se Deus
morresse?” Ele me bombardeou com essas duas hoje, antes de cair
no sono. E sua imaginação? Digamos que ela navega para bem
longe de tudo o que existe por aqui. Joe cria os enredos mais
impressionantes, e a mãe o prende no quarto para castigá-lo por
contar mentiras. Nessas ocasiões, ele cria outra história para relatar
à mãe quando ela o liberta. Tinha uma pronta para mim quando
chegou aqui hoje. “Tio Jim”, falou, solene como um túmulo, “tive
uma aventura em Glen hoje”. “O que aconteceu?”, perguntei,
esperando algo surpreendente, mas de forma nenhuma preparado
para o que realmente ouvi. “Encontrei um lobo na rua”, ele contou,
“um lobo enorme, com uma boca vermelha imensa e dentes
terrivelmente compridos, tio Jim”. “Eu não sabia que há lobos em
Glen”, falei. “Oh, ele veio de muito, muito longe”, disse Joe, “e
pensei que ia me comer inteiro, tio Jim”. “Você sentiu medo?” “Não,
porque eu tinha uma arma grande e atirei nele; o lobo morreu, ficou
completamente morto”; e concluiu: “foi para o céu e deu uma
dentada em Deus”. Fiquei estarrecido, senhora Blythe!
As horas fluíram repletas de alegria ao redor do fogo na lareira. O
capitão Jim narrou vários casos, e Marshall Elliot cantou baladas
escocesas antigas com uma bela voz de tenor. Depois, o capitão
tirou da parede seu velho violino marrom e começou a tocar. Ele
tinha uma habilidade bastante boa para o instrumento, e todos
gostaram de ouvi-lo, exceto o Primeiro Imediato, que saltou do sofá
como se tivesse tomado um tiro, emitiu um grito esganiçado de
protesto e subiu a escada velozmente.
– Não consigo cultivar um ouvido musical nesse gato de jeito
nenhum – o capitão explicou. – Ele nunca permanece na sala por
tempo suficiente para aprender a gostar de qualquer melodia.
Quando conseguimos um órgão para a igreja de Glen, o velho Elder
Richards pulou para fora de seu assento no exato segundo em que
o músico começou a tocar e saiu correndo o mais rapidamente que
pôde, para bem longe dali. Aquilo me lembrou tão perfeitamente as
fugas do Primeiro Imediato sempre que começo a tocar meu violino,
que estive muito perto de dar uma gargalhada bem alta na igreja,
mais do que me aconteceu antes ou depois daquele dia.
Havia algo tão contagiante nas melodias animadas que o capitão
Jim tocou que logo, logo, os pés de Elliot começaram a se mexer.
Na juventude, ele havia sido um dançarino notável. Então, o homem
se levantou e estendeu as mãos para Leslie; ela aceitou
imediatamente, e os dois dançaram na sala iluminada pelo fogo,
ambos com uma elegância rítmica e uma leveza maravilhosas. Os
doces momentos de abandono propiciados pela música pareciam
ter se apoderado da moça.
Anne a observou com admiração e fascínio. Nunca tinha visto
Leslie assim. A riqueza, a cor e o encanto próprios de sua natureza
pareciam ter se libertado inteiramente e transbordado em
bochechas avermelhadas, olhos brilhantes e graça de movimentos.
Nem mesmo o aspecto de Marshall Elliott, com sua barba e cabelo
longos, poderia estragar aquela imagem: pelo contrário, parecia
realçá-la. Marshall Elliott lembrava um viking dançando com uma
das filhas – de olhos azuis e cabelos dourados – das terras
nórdicas.
– Foi a dança mais linda que já vi, e saibam que presenciei
muitas na vida – declarou o capitão Jim quando finalmente sua mão
cansada soltou o arco do violino.
Leslie, ofegante e sorridente, se deixou cair sobre a cadeira.
– Eu amo dançar – disse reservadamente a Anne. – Não fazia
isso desde que tinha dezesseis anos, mas simplesmente amo!
Parece que a música entra e corre em minhas veias... Eu me
esqueço de tudo: vivo apenas o prazer de acompanhá-la. Sinto que
não há mais chão sob meus pés, nem paredes ao meu redor, nem
teto sobre minha cabeça. Apenas flutuo entre as estrelas.
O capitão Jim pendurou o violino na parede, ao lado de uma
moldura grande que protegia diversas notas no valor de dez dólares.
– Existe mais alguém em seus círculos de conhecidos que pode
se dar ao luxo de enfeitar a parede com notas? – perguntou. – Há
vinte cédulas de dez dólares ali, mas elas não valem nem o vidro
que as cobre. São do antigo Banco de Prince Edward Island. Eu as
possuía quando o banco faliu e decidi colocá-las na moldura e na
parede, em parte para me lembrar de não confiar em bancos, em
parte para me dar uma sensação de riqueza e luxo. Olá, Imediato,
não tenha medo, pode voltar agora! A música e a agitação
terminaram por esta noite. O ano velho só tem mais uma hora para
ficar conosco. Já vi setenta e seis anos-novos chegarem naquele
golfo ali, senhora Blythe.
– Vai ver cem – afirmou Marshall Elliot.
O capitão Jim balançou a cabeça.
– Não. Nem quero... Pelo menos, acho que não. A morte vai se
tornando uma amiga à medida que envelhecemos. Não que algum
de nós deseje morrer, claro que não, Marshall. O poeta Alfred
Tennyson estava certo quando disse isso. Veja o caso da velha
senhora Wallace, de Glen. Teve montes de problemas a vida inteira,
pobre alma, e perdeu quase todas as pessoas a quem amava. Ela
sempre fala que vai ficar contente quando sua hora chegar, que não
quer mais permanecer neste vale de lágrimas. Porém, quando
adoece, faz um estardalhaço! Chama médicos e enfermeiras da
cidade e manda comprar medicamentos suficientes para matar um
cachorro. A vida pode até ser um vale de lágrimas, mas pelo visto
existem pessoas que gostam de derramá-las.
Passaram a última hora do ano calmamente, ao redor do fogo.
Poucos minutos antes da meia-noite, o capitão Jim se levantou e
abriu a porta.
– Temos de deixar o ano novo entrar – explicou.
Lá fora, a noite estava azul e linda. Uma faixa cintilante de luar
enfeitava o golfo. Ao lado da barreira de dunas, o porto brilhava
como se estivesse revestido de pérolas. Todos pararam diante da
porta e esperaram: o capitão Jim, com sua maturidade e ampla
experiência de vida; Marshall Elliot, em sua meia-idade, cheio de
vigor mas vazio de vivências; Gilbert e Anne, com suas lembranças
preciosas e esperanças primorosas; e Leslie, com seu passado de
anos de carência e um futuro sombrio. Logo, o relógio sobre a
pequena prateleira na parede anunciou a meia-noite.
– Seja bem-vindo, ano novo – disse o capitão Jim enquanto a
última badalada ecoava. – Desejo a vocês o melhor ano de suas
vidas, amigos. Acredito que, o que quer que este novo período de
tempo nos traga, será o melhor que o Grande Capitão tem para nós;
e, de uma forma ou de outra, todos vamos ancorar em um bom
porto.
Oano começou com um inverno bastante rigoroso. Grandes montes
de neve se formaram ao redor da pequena casa branca, e a geada
cobriu suas janelas. O gelo no porto foi ficando cada vez mais duro
e espesso, até que as pessoas começaram a transitar sobre ele,
como sempre faziam nessa estação do ano. Os caminhos seguros
foram cuidadosamente demarcados com arbustos pela
administração pública, e o tilintar alegre dos sinos dos trenós era
ouvido dia e noite. Nas noites de luar, Anne os escutava em sua
casa dos sonhos como se fossem sons criados por fadas.
O golfo também congelou, e a luz do farol de Four Winds não
brilhava mais. Durante os meses em que não era possível navegar,
o trabalho no escritório do capitão Jim também era interrompido.
– O Primeiro Imediato e eu não vamos ter nada para fazer até o
retorno da primavera, exceto nos mantermos aquecidos e nos
divertirmos. O faroleiro anterior costumava se mudar para Glen no
inverno, mas prefiro permanecer no pontal. O Primeiro Imediato
poderia ser envenenado ou mastigado por cães em Glen. É lógico
que vamos ficar um pouco solitários, não tendo o farol nem a água
como companhia, mas, se nossos amigos nos visitarem com
frequência, poderemos suportar isso facilmente.
O capitão possuía um trenó a vela e levou Gilbert, Anne e Leslie
para muitos passeios incríveis e gloriosos sobre o gelo liso e
escorregadio do porto. Anne e Leslie, com sapatos próprios para a
neve, também fizeram longas caminhadas; andaram sobre os
campos, pelo porto após as nevascas, ou nos bosques mais adiante
de Glen. Eram excelentes companheiras em suas perambulações e
conversas junto ao fogo. Cada uma tinha algo para oferecer à outra;
cada uma sentia que a vida ficava mais rica quando trocavam ideias
amigavelmente ou se mantinham em um silêncio cordial; cada uma
contemplava os campos brancos entre seus lares com a consciência
agradável de que havia uma amiga do outro lado. Entretanto, apesar
de tudo isso, Anne sentia sempre uma barreira entre Leslie e ela,
um obstáculo que nunca desaparecia completamente.
– Não sei por que não consigo me aproximar mais dela – Anne
comentou com o capitão Jim certa noite. – Gosto tanto de Leslie! E
a admiro tanto! Eu quero trazê-la para dentro de meu coração e
entrar no dela também; no entanto, é impossível transpor uma
barreira que ela parece manter entre nós.
– Você foi muito feliz por toda a vida, senhora Blythe – o capitão
falou pensativamente. – Suponho que seja por isso que a alma da
senhora e a de Leslie nunca ficam realmente próximas. Essa
barreira entre as duas é a experiência dela com dificuldades e muito
sofrimento. Ela não tem culpa disso, nem a senhora. Mas a barreira
está lá, e nenhuma das duas consegue ultrapassá-la.
– Minha infância não foi exatamente feliz até eu me mudar para
Green Gables – disse Anne, olhando séria para a janela e vendo a
beleza estática, triste e sem vida das sombras das árvores sem
folhas em meio à neve e sob o luar.
– Talvez não; mas era apenas a infelicidade usual de uma criança
que não tem ninguém para cuidar dela adequadamente. Não houve
nenhuma tragédia em sua vida, senhora Blythe. Já a da pobre Leslie
tem sido quase toda uma grande catástrofe. Eu acho que, embora
seja bastante provável que ela nem saiba disso, Leslie sente que há
uma enorme quantidade de coisas na vida dela que a senhora não
poderia compreender. Então, ela tem de mantê-la longe de tudo,
impedir a senhora de, digamos, feri-la. Se há alguma parte de nosso
corpo que dói, fazemos o possível para evitar que alguém a toque
ou se aproxime dela. Penso que é assim com nossa alma também.
A de Leslie deve estar muito machucada. Não é de admirar que ela
a oculte.
– Se essa fosse realmente a única explicação, eu não me
importaria, capitão Jim. Simplesmente compreenderia. Mas existem
momentos... Não é sempre, só de vez em quando... Momentos em
que sou praticamente obrigada a acreditar que Leslie não... não
gosta de mim. Às vezes me surpreendo com um olhar dela que
parece expressar ressentimento e hostilidade; acontece muito
rapidamente, porém tenho certeza de que já vi isso. E me dói,
capitão. Não estou acostumada a não gostarem de mim. Além
disso, tentei tão arduamente conquistar a amizade de Leslie...
– E conseguiu, senhora Blythe. Não acalente nenhum
pensamento tolo de que não a conquistou. Se fosse assim ela não
teria nenhuma ligação com a senhora, muito menos seria sua amiga
do modo que é. Conheço Leslie Moore bem demais e não tenho
dúvidas quanto a isso.
– A primeira vez que a vi foi no dia de minha chegada a Four
Winds. Ela conduzia seus gansos colina abaixo e olhou para mim
com essa mesma expressão de ressentimento – insistiu Anne. –
Percebi isso, apesar de toda a minha admiração por sua beleza. Ela
me encarou com hostilidade. Tenho certeza, capitão Jim.
– O ressentimento deve ter sido por algum outro motivo, e a
senhora o sentiu somente porque estava passando por ela naquele
instante. Leslie realmente tem acessos de rancor ocasionais, pobre
moça. Não posso culpá-la, sabendo o que ela precisa suportar. Não
entendo por que isso é permitido. O doutor e eu temos conversado
bastante sobre a origem do mal, mas ainda não sabemos muito a
respeito. Existem tantas coisas incompreensíveis na vida, não é
verdade, senhora Blythe? Às vezes, tudo parece dar inteiramente
certo, como no caso da senhora e do doutor. Outras vezes,
acontece o contrário, e tudo dá totalmente errado. Lá está Leslie,
tão inteligente e bonita que pensaríamos que nasceu para ser uma
rainha; no entanto, está predestinada a ser infeliz, carente de quase
tudo o que uma mulher poderia desejar, e sem nenhuma
perspectiva, exceto cuidar de Dick Moore pelo resto da vida. Mesmo
assim, acredite, senhora Blythe, ouso dizer que, se ela tivesse de
escolher, Leslie preferiria a situação atual, do jeito que é, à que
viveu com Dick antes do desaparecimento dele. Isso é assunto em
que a língua de um marinheiro velho e desajeitado não deveria se
intrometer, mas tenho de falar que a senhora ajudou muito a pobre
Leslie: ela se tornou uma criatura diferente depois que a senhora
veio para Four Winds. Apenas nós, os velhos amigos, podemos ver
a diferença. A senhorita Cornelia e eu conversamos sobre isso outro
dia, e esse é um dos pouquíssimos pontos em que nós dois
concordamos. Portanto, simplesmente descarte qualquer ideia de
que ela não gosta da senhora.
Anne não conseguiu rejeitar completamente aquele pensamento,
pois havia ocasiões em que sentia, com um instinto que não podia
ser combatido pela razão, que inegavelmente Leslie abrigava um
ressentimento estranho e indefinível contra ela. De vez em quando,
essa certeza secreta estragava o prazer da convivência entre as
duas; outras vezes, isso ficava quase esquecido. Contudo, Anne
nunca deixava de sentir que havia um espinho escondido ali e que
ele poderia picá-la a qualquer momento. E foi no dia em que contou
a Leslie o que esperava que a primavera trouxesse para sua
pequena casa dos sonhos que sentiu a fincada cruel. Leslie a fitou
com um olhar duro, amargo e hostil.
– Então você vai ter isso também?! – falou, com a voz
embargada.
Em seguida, sem mais nenhuma palavra, virou-se e atravessou
os campos rumo a sua casa. Anne ficou profundamente ferida e
chegou a sentir que jamais poderia gostar de Leslie novamente.
Porém, quando voltou a visitá-la, poucos dias depois, a moça estava
tão agradável, tão amável, sincera, espirituosa e encantadora, que
Anne se deixou levar pelo perdão e pelo esquecimento. Mas nunca
mais mencionou a Leslie sua esperança tão querida, nem Leslie se
referiu novamente ao assunto.
Algum tempo depois, quando o fim do inverno aguardava a
chegada da primavera, Leslie foi até a pequena casa para uma
conversa durante o crepúsculo, e quando foi embora deixou uma
caixa branca e pequena sobre a mesa. Anne, que só a encontrou
quando a amiga já tinha ido embora, abriu-a, intrigada. Dentro da
caixa, havia um vestido branco minúsculo confeccionado com muito
capricho – bordados delicados, pregas maravilhosas, acabamento
adorável; cada ponto tinha sido feito à mão, e os pequenos babados
de renda no decote e nas mangas eram magníficos. Sobre ele havia
um cartão onde se lia: “Com o amor de Leslie”.
– Quantas horas de trabalho ela deve ter dedicado a esta obra de
arte! – exclamou Anne. – E todo este material certamente custou
muito mais do que ela podia pagar. Quanta gentileza! Entretanto,
Leslie foi rude e lacônica quando Anne lhe agradeceu. E mais uma
vez Anne se sentiu rejeitada.
O presente de Leslie não foi o único a chegar à casa dos Blythe.
A senhorita Cornelia havia interrompido temporariamente sua
costura para oitavos bebês indesejados e desprezados e iniciado a
confecção de um enxoval para um primeiro filho muito desejado e
bem-vindo cuja chegada traria uma grande felicidade. Philippa Blake
enviou uma vestimenta maravilhosa, e Diana Wright também
presenteou Anne com outra, encantadora; e a senhora Rachel
Lynde mandou várias, nas quais um bom material e pontos
primorosos substituíram os bordados e os babados. A própria Anne
fez diversas peças, sendo que nenhuma foi profanada pelo uso de
máquinas; dedicou a elas as horas mais alegres daquele inverno
feliz.
O capitão Jim era o visitante mais frequente da casa, e também o
mais bem-vindo. A cada dia Anne gostava mais do velho marinheiro
de alma simples e coração sincero, tão agradável quanto a brisa do
mar, tão interessante quanto uma crônica antiga. Ela nunca se
cansava de ouvir suas histórias, e as opiniões e os comentários
excêntricos do amigo eram uma diversão sem fim para Anne. O
capitão Jim era uma daquelas pessoas convenientes e raras que
mesmo caladas sempre diziam alguma coisa. O leite da bondade
humana******** e a prudência das serpentes******** compunham seu
caráter com perfeição. Nada parecia aborrecê-lo ou deprimi-lo.
– Digamos que eu adquiri o hábito de desfrutar das coisas – ele
respondeu uma vez, quando Anne comentou a respeito de sua
alegria permanente. Isso se tornou tão enraizado que acredito que
gosto até das coisas desagradáveis. É muito divertido pensar que
elas não podem durar. “Velho reumatismo”, eu digo nas ocasiões em
que ele me ataca, “você tem de parar de doer algum dia. Quanto
pior você ficar, mais próximo vai estar o momento em que vai
embora. Vou vencê-lo mais cedo ou mais tarde, seja neste corpo ou
fora dele”.
Certa noite, diante da lareira do farol, Anne teve acesso ao “livro
da vida” do capitão Jim. Ele não precisou de nenhuma persuasão
para mostrá-lo e o entregou orgulhosamente a ela.
– Escrevo estas memórias para deixar para o pequeno Joe –
disse. – Não gosto da ideia de que tudo o que fiz e vi possa ficar
totalmente esquecido depois que eu zarpar para minha última
viagem. Com este livro, Joe vai se lembrar de minhas histórias e
contá-las a seus filhos.
Era um caderno antigo, com capa de couro, onde estavam
registradas suas viagens e aventuras. Anne pensou em como aquilo
seria um tesouro precioso para um escritor. Cada frase era uma
pepita de ouro, embora literariamente o livro não possuísse nenhum
mérito, pois o talento do capitão Jim para contar histórias falhava
quando ele as escrevia: só conseguia anotar o esboço de seus
contos famosos, e tanto a grafia quanto a gramática eram
tristemente repletas de erros.
Entretanto, Anne sentiu que se alguém com o dom da escrita
pudesse refazer aquele registro simples de uma vida corajosa e
aventureira, tirando das entrelinhas as histórias dos perigos
enfrentados com firmeza e dos deveres honradamente cumpridos,
uma história maravilhosa poderia ser feita a partir daquilo. Uma
comédia muito rica e, ao mesmo tempo, uma tragédia emocionante
estavam escondidas no “livro da vida” do capitão Jim, apenas
esperando o toque da mão de um escritor para despertar o riso, a
dor e o horror de milhares de leitores.
Anne mencionou alguma coisa a respeito enquanto ela e Gilbert
voltavam para casa.
– Por que você mesma não tenta reescrever as memórias do
capitão Jim?
Anne balançou a cabeça.
– Não; quem me dera eu fosse capaz, mas isso não se encaixa
em meu talento, Gilbert. Você sabe qual é o meu forte: o mundo da
fantasia, das fadas, da magia e da beleza. Para que o livro da vida
do capitão Jim seja escrito como merece, isso tem de ser feito por
alguém que tenha um estilo vigoroso e sutil ao mesmo tempo, que
seja um psicólogo sagaz e sensível, um humorista por natureza, um
autor de tragédias. É preciso haver uma combinação de talentos
extraordinária. Paul poderia fazer isso, se fosse um pouco mais
velho; mas, de qualquer forma, vou convidá-lo para nos visitar no
próximo verão e conhecer o capitão Jim.
“Venha a este litoral”, Anne escreveu para Paul. “Receio que não
vá encontrar Nora, a Dama Dourada ou os Marinheiros Gêmeos por
aqui, mas vou lhe apresentar um velho marinheiro que tem histórias
maravilhosas para contar.” Porém, Paul respondeu dizendo que
infelizmente não poderia ir a Four Winds naquele ano: ia fazer um
curso no exterior durante dois anos. “Prometo visitá-la logo que eu
voltar, professora”, escreveu.
– O fato é que enquanto isso o capitão Jim vai continuar
envelhecendo – disse Anne, pesarosa –, e não há ninguém para
escrever suas memórias.
S
ob o sol de março, o gelo formado no porto foi aos poucos se
tornando sujo e fino. Em abril, a água do mar já era azul outra
vez. No golfo, o vento soprava novamente, e só se viam
algumas manchas brancas. A luz do farol de Four Winds voltou a
embelezar ainda mais os crepúsculos.
– Estou tão contente por vê-lo aceso de novo! – exclamou Anne
na primeira noite em que o farol voltou a brilhar. – Senti saudade de
seu esplendor durante todo o inverno. O céu do noroeste parecia
vazio e solitário sem sua luminosidade.
A vegetação estava tenra, com folhas bem novas, em tons de
verde e dourado, e havia uma névoa cor de esmeralda nos bosques
para lá de Glen. Ao amanhecer, os vales na direção do mar ficavam
cheios de brumas mágicas. Ventos vibrantes iam e vinham, com
espuma salgada na respiração. Altivo e sedutor, o mar ria, brilhava
como uma mulher bela e atraente. Os arenques voltaram a povoar o
oceano, e a vila de pescadores despertou. O porto fervilhava de
velas brancas navegando rumo ao canal. Os navios recomeçaram a
entrar e sair.
– Em um dia de primavera como este – disse Anne –, sei
exatamente como minha alma vai se sentir na manhã da
ressurreição.
– Existem momentos na primavera em que, digamos, tenho a
impressão de que eu poderia ter sido um poeta se tivesse me
dedicado a essa arte desde jovem – o capitão Jim comentou. –
Nessas ocasiões, eu me lembro de versos que ouvi o professor
recitar sessenta anos atrás. Eles não me incomodam nas outras
estações do ano, mas agora sinto como se tivesse de ir até as
rochas, os campos ou o mar e declamá-los.
O capitão havia vindo naquela tarde presentear Anne com uma
grande quantidade de conchas para seu jardim e um pequeno
buquê de galhos de erva-doce que havia colhido durante uma
caminhada pelas dunas de areia.
– Esta planta está cada vez mais escassa aqui no litoral – falou. –
Quando eu era garoto, havia bastante, por toda parte, mas agora ela
só é encontrada de vez em quando, e nunca se a procuramos. É
preciso andar pela areia sem nem se lembrar de que ela existe.
Então, de repente sentimos seu perfume no ar e nos damos conta
de que ela está bem ali, sob nossos pés. Adoro o cheiro da erva-
doce. Ele sempre me faz pensar em minha mãe.
– Ela gostava muito? – indagou Anne.
– Não que eu saiba; nem sei se ela a conheceu. Digo isso porque
é um perfume maternal, não é juvenil demais e parece experiente,
benéfico, confiável... Exatamente como são as mães. A noiva do
professor sempre mantinha alguns ramos pequenos entre seus
lenços. A senhora pode pôr estes entre os seus. Não gosto dos
aromas comprados, mas o de um galho de erva-doce sempre
combina com uma mulher nobre.
Anne não tinha ficado especialmente entusiasmada com a ideia
de conchas de moluscos ao redor de seus canteiros: como objetos
de decoração, elas não a fascinaram à primeira vista. No entanto,
não feriria os sentimentos do Capitão Jim por nada; sendo assim,
fez de conta que havia adorado o presente e agradeceu de coração.
Porém, quando o capitão cercou orgulhosamente cada canteiro com
uma fileira de conchas grandes e brancas como o leite, Anne
descobriu, para sua surpresa, que tinha gostado do efeito. Em um
parque na cidade, ou mesmo em Glen, elas não teriam ficado nada
bem, mas no antiquado jardim à beira-mar da pequena casa dos
sonhos elas se harmonizaram perfeitamente com a paisagem.
– Ficou realmente muito bonito – disse com sinceridade.
– A noiva do professor sempre tinha conchas em volta dos
canteiros – o capitão contou. – Ela possuía uma habilidade especial
para lidar com as flores; olhava para elas e as tocava... assim... e
então elas cresciam maravilhosamente. Algumas pessoas têm esse
dom, e suponho que nasceu com ele também, senhora Blythe.
– Não sei; só posso dizer que amo meu jardim e adoro trabalhar
nele. Cuidar de plantas, vê-las crescer e observar os brotos novos e
encantadores que surgem a cada dia é como ter uma influência
sobre a natureza, eu acho. Por enquanto, meu jardim é como a fé:
“O firme fundamento das coisas que se esperam”;******** mas aguarde
algum tempo.
– Sempre fico admirado ao ver as sementes tão pequenas,
enrugadas e marrons, e pensar no arco-íris que há dentro delas –
disse o capitão Jim. – Quando reflito sobre elas, não acho nem um
pouco difícil acreditar que temos uma alma que vai viver em outros
mundos. Seria quase impossível crer que existe vida naquelas
coisas minúsculas, algumas do tamanho de um grão de poeira, sem
falar da cor e do cheiro, se não tivéssemos visto o milagre, não é
verdade?
Anne, que estava contando os dias como se fossem as contas de
um rosário de prata, já não podia fazer uma longa caminhada até o
farol ou pela estrada de Glen. Contudo, a senhorita Cornelia e o
capitão Jim visitavam frequentemente a pequena casa. A senhorita
Cornelia era a alegria da existência de Anne e Gilbert. Após cada
visita, o casal dava longas gargalhadas lembrando-se de suas falas.
E quando ela e o capitão os visitavam ao mesmo tempo, era
imensamente divertido ouvi-los, pois os dois travavam uma
verdadeira guerra verbal: ela no ataque e ele na defesa.
Certa vez, Anne repreendeu o capitão por suas provocações à
senhorita Cornelia.
– Ora, eu realmente adoro instigá-la, senhora Blythe – o pecador
nada arrependido riu. – É o melhor entretenimento que tenho na
vida. Aquela língua dela poderia ferir uma pedra. E a senhora e o
jovem e esperto doutor bem que gostam tanto quanto eu de ouvi-la!
Em outro fim de tarde, o capitão Jim foi à pequena casa branca
levar flores de maio para Anne. O jardim estava inundado pelo ar
úmido e perfumado de um crepúsculo marítimo de primavera. Na
beira do mar, uma névoa muito branca era beijada por uma lua
jovem, e um brilho alegre e prateado das estrelas pairava sobre
Glen. Do outro lado do porto o sino da igreja tocava doce e
sonhadoramente. Sua música flutuava pelo céu para se misturar ao
suave gemido primaveril do mar. As flores do capitão Jim
adicionaram o toque final ao encanto da noite.
– Ainda não tinha visto nenhuma nesta primavera, e estava
sentindo a falta delas – disse Anne, mergulhando o rosto no buquê.
– Elas não podem ser encontradas na região de Four Winds,
apenas nas terras áridas para lá de Glen. Fiz uma pequena viagem
hoje à Terra-do-nada-a-fazer e as colhi para a senhora. Acho que
são as únicas que vai ver nesta primavera, pois restam muito
poucas.
– Quanta consideração e gentileza, capitão Jim! Ninguém mais,
nem mesmo Gilbert – Anne olhou para o médico e balançou a
cabeça –, lembrou que eu sempre anseio por flores de maio na
primavera.
– Bem, eu tinha outra tarefa também: queria levar algumas trutas
para o senhor Howard. Ele gosta de uma truta de vez em quando, e
é tudo o que posso fazer para retribuir um favor que ele me fez no
passado. Ficamos a tarde toda conversando. Ele gosta de falar
comigo, embora seja um homem altamente culto e eu, apenas um
velho marinheiro ignorante. O fato é que o senhor Howard é uma
daquelas pessoas que precisam falar, senão ficam infelizes, e os
ouvintes são raros por aqui. Os habitantes de Glen o evitam porque
acham que ele é um infiel. No entanto, ele não é; não exatamente.
Poucos homens vão assim tão longe, suponho. Ele é apenas,
digamos, o que se pode chamar de um herege. Os hereges são
profanos, mas também extremamente interessantes. Apenas se
perderam na busca por Ele, acreditando que é difícil encontrá-lo, o
que de modo algum é verdade. A maior parte deles se depara com
Deus mais cedo ou mais tarde, suponho. Não acho que ouvir os
argumentos do senhor Howard possa me causar algum mal. Vejam
bem, eu acredito no que fui criado para acreditar. Isso evita muitos
aborrecimentos, e, afinal, Deus é bom. O problema com o senhor
Howard é que ele é um pouco inteligente demais. Pensa que está
fadado a viver à altura de sua mente, e que é melhor descobrir uma
nova maneira de chegar ao céu do que seguir as velhas trilhas que
as pessoas comuns e ignorantes percorrem. Mas ele vai chegar lá
algum dia, e então vai rir de si mesmo.
– É preciso lembrar que o senhor Howard era um metodista –
disse a senhorita Cornelia, como se isso bastasse para
praticamente classificá-lo como um herege.
– Sabe, Cornelia – o capitão Jim falou seriamente –, sempre
pensei que, se eu não fosse um presbiteriano, seria um metodista.
– Bem – admitiu a senhorita Cornelia –, se você não fosse um
presbiteriano, qualquer outra opção que escolhesse não importaria
muito. Por falar em heresia, acabo de me lembrar, doutor: eu trouxe
aquele livro que me emprestou, A lei natural no mundo
espiritual.******** Não li mais que um terço dele. Posso ler tanto as
obras sensatas quanto as insensatas, mas essa não é nem uma
coisa nem outra.
– Esse livro é realmente considerado ateu por algumas pessoas –
Gilbert admitiu –, mas eu a preveni, senhorita Cornelia.
– Na verdade eu não me importaria com isso. Posso tolerar as
heresias, mas não suporto as tolices – a senhorita Cornelia afirmou
calmamente, em um tom que deixava claro que não tinha mais nada
a dizer sobre A lei natural.
– Por falar em livros, “Um louco amor” finalmente terminou, duas
semanas atrás – comentou o capitão Jim, pensativo. – Imaginem
que chegou ao capítulo cento e três. Assim que eles se casaram, a
história acabou, portanto suponho que todos os problemas também
terminaram. É muito bom que seja assim nos livros, não é? Mesmo
que as coisas não aconteçam dessa maneira em nenhum outro
lugar.
– Nunca leio romances – a senhorita Cornelia declarou. – Teve
notícias de Geordie Russel hoje, capitão Jim?
– Sim, quando eu estava voltando para casa passei lá para vê-lo.
Ele está se recuperando bem, porém continua mergulhado em
problemas, como sempre. Pobre homem! É claro que o próprio
Geordie cria todos esses transtornos, mas suponho que isso não os
torna mais fáceis de suportar.
– É um pessimista terrível – disse a senhorita Cornelia.
– Bem, não, ele não é exatamente um pessimista, Cornelia.
Digamos que apenas nunca encontra nada que lhe sirva.
– Isso não é ser pessimista?
– Não, não. O pessimista é aquele que nunca espera encontrar
algo que o agrade. Geordie ainda não chegou a esse ponto.
– Você encontraria alguma qualidade para citar até no próprio
diabo, Jim Boyd.
– Bem, você sabe a história da velha senhora que disse que ele é
perseverante... Mas, não, Cornelia, não tenho nada de bom a dizer
sobre o demônio.
– Afinal, você acredita na existência dele? – perguntou
seriamente a senhorita Cornelia.
– Como pode perguntar isso sabendo o quanto sou um bom
presbiteriano, Cornelia? Por acaso, um presbiteriano conseguiria
viver sem um diabo?
– Você acredita? – insistiu a senhorita Cornelia.
O capitão ficou sério subitamente.
– Creio naquilo que certa vez escutei um pastor definir como
“uma força do mal poderosa, nociva e inteligente que interfere no
universo” – ele respondeu solenemente. – Acredito nisso, Cornelia.
Você pode chamá-la de diabo, origem do mal, demônio ou qualquer
outro nome que quiser. O fato é que essa força está aí, e nenhum
herege, nenhum ateu neste mundo pode provar o contrário com
argumentos, assim como é impossível negar a existência de Deus.
Ela está presente no mundo, e funciona. No entanto, Cornelia, creio
que ela vai levar a pior, no fim das contas.
– Tenho certeza de que é o que espero – disse a senhorita
Cornelia, não tão confiante. – Mas falando sobre o diabo, não tenho
nenhuma dúvida de que Billy Booth está possuído por ele
atualmente. Você ouviu dizer alguma coisa sobre sua atitude mais
recente?
– Não. O que foi que ele fez?
– Pôs fogo no conjunto de casimira marrom novo pelo qual a
esposa pagou uma fortuna em Charlottetown. Alegou que os
homens a olharam com muita admiração quando ela o usou pela
primeira vez para ir à igreja. Não foi uma atitude típica dos homens?
– A senhora Booth é linda, e marrom é a cor que mais combina
com ela – o capitão comentou.
– Isso é uma boa razão para ele concluir que pode colocar a
roupa nova dela no fogo? Billy Booth é um tolo ciumento que faz
com que sua esposa tenha uma vida verdadeiramente infeliz. Ela
chorou a semana inteira por causa do conjunto de casimira. Anne,
eu gostaria tanto de escrever bem como você. Acredite em mim, eu
criticaria severamente alguns homens dessas redondezas!
– Aquela família Booth é toda meio esquisita – afirmou o capitão
Jim. – Billy parecia ser o mais normal de todos até se casar e esse
ciúme doentio tomar conta dele. Já o irmão, Daniel, sempre foi
estranho.
– Tinha acessos frequentes de mau humor e se recusava a sair
da cama – a senhorita Cornelia acrescentou, com entusiasmo. – A
esposa tinha de fazer todo o trabalho da fazenda até que o ataque
passasse. Quando Daniel faleceu, as pessoas escreveram cartas de
pêsames para ela; se eu tivesse escrito alguma coisa, teria sido
uma mensagem de felicitações. O pai deles, o velho Abram Booth,
era um alcoólatra asqueroso. Estava bêbado no funeral da esposa;
ficou o tempo todo cambaleando e dizendo entre soluços: “Eu... não
be... be... bi muito, mas me sinto ter... ter... terrivelmente es... es...
tranho”. Quando ele passou perto de mim, eu lhe dei uma boa
cutucada nas costas com minha sombrinha, e isso o deixou sóbrio
até o momento em que levaram o caixão. E imaginem que o jovem
Johnny Booth ia se casar ontem, mas não pôde porque contraiu
caxumba! Não foi uma atitude típica dos homens?
– Como o pobre infeliz poderia ter evitado isso, Cornelia?
– Eu o deixaria realmente infeliz se fosse Kate Sterns. Não sei
como ele poderia evitar a caxumba, mas sei muito bem que o
banquete do casamento estava pronto e toda a comida vai estar
estragada antes que ele se cure. Que desperdício! Johnny deveria
ter contraído caxumba quando era garoto.
– Nossa, Cornelia, não acha que está sendo ligeiramente
insensata?
A senhorita Cornelia não se deu ao trabalho de responder; em
vez disso, virou-se para Susan Baker, uma mulher de Glen – idosa,
de bom coração e expressão carrancuda – que havia sido instalada
na pequena casa branca como criada para serviços gerais por
algumas semanas. Susan havia ido a Glen para fazer uma visita e
tinha acabado de chegar de lá.
– Como está a velha e pobre tia Mandy hoje?
– Muito mal... Muito mal, Cornelia. Receio que muito em breve vai
estar no céu, coitada!
– Não, certamente não é tão grave assim! – exclamou
solidariamente a senhorita Cornelia.
O capitão Jim e Gilbert se entreolharam. Em seguida levantaram-
se subitamente e saíram da sala.
– Há momentos – disse o capitão Jim, entre gargalhadas – em
que seria um pecado não rir. Essas duas mulheres são hilárias!
N
o início de junho, quando lindas rosas silvestres enfeitavam as
dunas de areia e as macieiras de Glen exibiam a beleza e o
perfume de suas flores, Marilla chegou à pequena casa
branca, acompanhada por um baú preto estofado com crina de
cavalo e tachas de latão que havia repousado serenamente em um
cômodo de Green Gables por meio século. Susan Baker, que,
apesar de estar ali havia poucas semanas, venerava a “jovem
esposa do doutor” – como se referia a Anne – com uma adoração
cega, a princípio olhou de soslaio para Marilla, enciumada. No
entanto, como Marilla não tentou interferir nos assuntos da cozinha
e não mostrou nenhum desejo de perturbar o auxílio de Susan à
jovem esposa do doutor, a boa criada aceitou bem sua presença e
disse a seus amigos em Glen que a senhorita Cuthbert era uma boa
senhora e conhecia seu lugar.
Em um fim de tarde, quando o céu estava límpido e colorido por
uma gloriosa luz vermelha e dourada, e os pássaros alegravam o
crepúsculo com hinos jubilosos às estrelas que começavam a surgir,
houve uma comoção repentina na pequena casa dos sonhos.
Mensagens telefônicas foram enviadas a Glen; o doutor Dave e uma
enfermeira usando um gorro branco chegaram apressados; Marilla
andava de um lado para o outro no jardim, entre as conchas de
moluscos em volta dos canteiros, murmurando preces com os lábios
entreabertos; e Susan ficou sentada na cozinha com chumaços de
algodão nos ouvidos e a saia do avental sobre a cabeça. Leslie
observava de sua casa próxima ao riacho, e, tendo visto que todas
as janelas estavam iluminadas, não dormiu.
As noites de junho eram curtas, mas aquela pareceu uma
eternidade para quem esperava e assistia aos acontecimentos.
– Isso não vai acabar nunca? – Marilla indagou.
Contudo, ao ver o quanto a enfermeira e o doutor Dave pareciam
preocupados, ela não ousou fazer mais perguntas. Suponha que
Anne... Não, Marilla não conseguia supor isso.
– Não me diga – disse Susan impetuosamente, ao ver a angústia
nos olhos de Marilla – que Deus poderia ser tão cruel a ponto de
levá-la embora, mesmo sabendo o quanto todos nós a amamos.
– Ele já levou outras pessoas tão amadas quanto ela – Marilla
falou rispidamente.
Porém, ao amanhecer, quando o sol nascente dissipou as brumas
que pairavam sobre a barreira de dunas e as transformou em um
arco-íris, a alegria invadiu a pequena casa branca. Anne estava
salva, e uma pequena criatura muito branca, com olhos grandes
como os da mãe, estava deitada a seu lado. Gilbert, com o rosto
pálido e abatido por causa da noite de agonia, desceu para dar a
notícia a Marilla e Susan.
– Graças a Deus – Marilla falou, tremendo.
Susan se levantou e tirou o algodão dos ouvidos.
– Agora, café da manhã – disse, animada. – Creio que nós todos
vamos ficar contentes em comer e beber. Digam à jovem esposa do
doutor para não se preocupar com absolutamente nada... Susan
está ao leme. Ela deve pensar apenas em seu bebê.
Gilbert sorriu tristemente ao deixar a sala. Anne, com o rosto
pálido e desfigurado pela dor e os olhos brilhando com a paixão
sagrada da maternidade, não precisava que lhe dissessem para se
concentrar no bebê. Ela não pensava em mais nada. Por algumas
horas, sentiu o gosto de uma felicidade tão rara e profunda que
chegou a se perguntar se os anjos no céu não a invejavam.
– Pequena Joyce – murmurou, quando Marilla entrou no quarto
para ver o bebê. – Planejamos chamá-la assim se fosse uma
menina. Havia tantas pessoas queridas para homenagear que não
conseguimos escolher uma, por isso decidimos lhe dar o nome de
Joyce. Podemos apelidá-la de Joy... Joy combina tanto com ela! Oh,
Marilla, eu achava que era feliz; agora sei que vivi só um sonho
agradável de contentamento. Esta é a felicidade real.
– Você não deve falar, Anne... Espere até ficar mais forte – Marilla
aconselhou.
– Sabe o quanto não falar é difícil para mim, Marilla – Anne sorriu.
A princípio ela se sentia fraca e feliz demais para perceber que
Gilbert e a enfermeira estavam bastante sérios, e Marilla, pesarosa.
Então, sutil, fria e impiedosamente como uma névoa marinha que se
aproxima da terra, o medo invadiu seu coração. Por que Gilbert não
estava tão feliz? Por que ele não falava nada sobre o bebê? Por que
eles não a deixaram ficar com a filha depois daquela primeira hora
de alegria celestial? Havia... Havia algo errado?
– Gilbert – sussurrou Anne, em tom suplicante. – O bebê... o
bebê está bem... não está? Fale... fale a verdade.
Gilbert demorou muito para se virar; em seguida, curvou-se sobre
Anne e olhou diretamente em seus olhos. Marilla, ouvindo
apavorada do lado de fora da porta, escutou um lamento de dor e
coração partido, e fugiu para a cozinha, onde Susan chorava.
– Oh, pobrezinha... pobrezinha! Como ela vai poder suportar isso,
senhorita Cuthbert? Receio que ela não aguente. Estava tão feliz,
ansiosa e cheia de planos para o bebê! Não há mesmo nada que
possa ser feito, senhorita Cuthbert?
– Acho que infelizmente não, Susan. Gilbert afirmou que não
devemos ter esperanças. Ele soube desde o começo que a menina
não sobreviveria.
– É um bebê tão adorável... – Susan soluçou – Nunca vi um tão
branquinho; geralmente são vermelhos ou amarelos. E abriu seus
olhos grandes como se já tivesse meses de idade. Tão pequenina, a
pobrezinha! Oh, coitada da jovem esposa do doutor!
Durante o pôr do sol, a pequena alma que havia chegado junto
com o amanhecer se foi, deixando para trás muito sofrimento. A
senhorita Cornelia tirou a delicada criatura das mãos gentis, mas
pouco familiares, da enfermeira e a vestiu com o lindo traje que
Leslie havia feito para ela. Foi a própria Leslie que pediu isso. Em
seguida a bebê foi posta novamente ao lado da pobre mãe, que
tinha o coração despedaçado e os olhos inundados de lágrimas.
– “O Senhor o deu, e o Senhor o tomou”, querida – a senhorita
Cornelia citou, entre suas próprias lágrimas –; “bendito seja o nome
do Senhor”.********
Então saiu e deixou Anne e Gilbert juntos e a sós com o corpo
sem vida da filha recém-nascida.
No dia seguinte, a pequena Joy foi posta em um caixão forrado
com veludo – e enfeitado por Leslie com flores de macieira – e
levada para o cemitério da igreja do outro lado do porto. A senhorita
Cornelia e Marilla guardaram todas as vestimentas feitas com
grande amor, juntamente com o berço que havia sido adornado com
babados, rendas e fitas para abrigar um adorado bebê bonito e
saudável. A pequena Joy nunca dormiria ali; tinha encontrado uma
cama mais fria e mais estreita.
– Foi uma decepção enorme para mim – a senhorita Cornelia
suspirou. – Eu estava tão ansiosa por receber essa criança... E
como desejei também que fosse uma menina!
– Só penso em agradecer ao Senhor por ter poupado a vida de
Anne – disse Marilla, sentindo um calafrio ao se lembrar daquelas
horas de terror em que a garota que ela tanto amava andava pelo
vale da sombra da morte.********
– Pobrezinha! Seu coração está partido – lamentou Susan.
– Eu invejo Anne – Leslie declarou súbita e impetuosamente. – E
a invejaria até mesmo se ela tivesse morrido! Ela foi mãe por um
belo dia. Daria minha vida alegremente em troca desse prazer.
– Não diga isso, Leslie querida – disse severamente a senhorita
Cornelia, temendo que a digna senhorita Cuthbert pensasse que
Leslie era uma pessoa horrível.
A convalescença de Anne foi demorada, e muitas coisas a
tornaram ainda mais amarga. As flores e a luz do sol de Four Winds
a irritavam terrivelmente; porém, quando a chuva caía forte, ela a
imaginava batendo impiedosamente naquela pequena sepultura do
outro lado do porto; e se o vento soprava ao redor dos beirais, Anne
ouvia nele vozes tristes que nunca tinha escutado antes.
Visitantes bondosos a incomodavam também, com as bem-
intencionadas banalidades que diziam, esforçando-se para amenizar
a dor do luto. Uma carta de Phil Blake foi um ferrão a mais. Philippa
tinha ouvido falar do nascimento do bebê, mas não de sua morte e,
portanto, escreveu a Anne uma mensagem doce e alegre de
felicitações que a feriu profundamente.
– Eu teria dado gargalhadas ao ler esta carta se meu bebê
estivesse aqui comigo – ela falou com Marilla. – Mas, como não o
tenho mais, isso parece uma crueldade proposital, embora eu saiba
que Phil não me magoaria por nada neste mundo. Oh, Marilla, não
vejo como algum dia vou poder ser feliz de novo... Tudo vai me
machucar terrivelmente pelo resto de minha vida.
– O tempo vai ajudar – tentou consolá-la Marilla, que estava
atormentada pela compaixão, mas nunca aprendera a expressar
esse sentimento de outro modo que não fosse através de frases
feitas, antigas e sem nenhuma originalidade.
– Não me parece justo – Anne protestou, inconformada. –
Quantos bebês nascem e vivem onde são indesejados, onde vão
ser negligenciados, onde não vão ter nenhuma chance... Eu teria
amado tanto o meu, teria cuidado dele tão carinhosamente e feito
tudo para lhe proporcionar todas as chances de fazer o bem e ser
feliz... Entretanto, não tive permissão para ficar com minha filha.
– Foi a vontade de Deus, Anne – disse Marilla, impotente diante
do enigma do universo: o porquê da dor imerecida. – E a pequena
Joy está melhor onde quer que seja.
– Não posso acreditar nisso! – Anne exclamou amargamente.
Depois, constatando que Marilla parecia chocada, acrescentou,
exaltada: – Afinal, por que ela deveria nascer então? Por que
qualquer pessoa deveria nascer, se estaria melhor morta? Não creio
que é melhor para um bebê morrer quando nasce do que viver uma
vida inteira... amar e ser amado... sofrer e ser feliz... trabalhar...
desenvolver um caráter que lhe garanta um lugar na eternidade. E
como é que a senhora sabe que foi a vontade de Deus? Talvez
tenha sido apenas o poder do mal contrariando um propósito do
Senhor. Ninguém pode esperar que simplesmente nos resignemos a
isso.
– Não fale assim, Anne – Marilla suplicou, verdadeiramente
alarmada com a possibilidade de Anne ser levada por uma corrente
de águas turvas, profundas e perigosas. – Não podemos entender,
mas devemos ter fé. Precisamos acreditar que tudo é para o melhor.
Eu sei que você acha difícil se conformar agora, mas tente ser
corajosa... Pelo bem de Gilbert. Ele está realmente preocupado;
você não está se recuperando tão depressa quanto deveria.
– Sei que estou sendo muito egoísta – Anne suspirou. – Amo
Gilbert mais do que nunca, e quero viver por ele. Contudo, parece
que uma parte de mim foi enterrada naquele pequeno cemitério para
lá do porto. E sinto uma dor tão profunda, que tenho medo da vida.
– Não vai doer tanto assim para sempre, Anne.
– Às vezes, o pensamento de que a dor pode ir embora fere mais
que todo o resto, Marilla.
– Sim, eu sei. Já passei por isso também, por outros motivos.
Mas todos nós amamos você, Anne. O capitão Jim vem aqui todos
os dias para perguntar por você; a senhora Moore fica rondando a
casa; a senhorita Bryant passa a maior parte de seu tempo,
suponho, preparando comidas gostosas e nutritivas para você.
Susan não gosta muito disso: ela acha que cozinha tão bem quanto
a senhorita Bryant.
– Oh, a minha querida Susan! Todos têm sido tão gentis,
bondosos e adoráveis comigo, Marilla! Não sou ingrata: quem sabe,
depois que esse sofrimento horroroso diminuir um pouco, vou
descobrir que posso continuar a viver.
A
nne constatou que podia continuar vivendo; chegou o dia em
que ela até sorriu novamente, ao ouvir uma das falas da
senhorita Cornelia. Porém, havia algo em seu sorriso que
nunca estivera lá antes e que jamais se ausentaria dali.
No primeiro dia em que ela pôde sair de casa, Gilbert a levou até
o pontal de Four Winds e a deixou com o capitão Jim enquanto ele
atravessava o canal a remo e atendia um paciente na vila de
pescadores. Um vento alegre e animado deslizava pelo porto e
pelas dunas, formando cristas brancas na água e lavando a praia
com faixas longas de ondas prateadas.
– Estou realmente feliz em vê-la aqui de novo, senhora Blythe –
disse o capitão. – Sente-se, sente-se. Receio que minha casa esteja
bastante empoeirada hoje, mas não há necessidade de olhar para a
sujeira quando se tem à frente uma paisagem como essa, não é?
– Não me importo com poeira, capitão Jim – Anne respondeu –,
mas Gilbert diz que preciso ficar ao ar livre. Acho que vou me sentar
nas pedras lá embaixo.
– Gostaria de ter companhia ou prefere ficar sozinha?
– Se a companhia a que se refere é a sua, com certeza prefiro tê-
la a ficar só – disse Anne sorrindo.
Em seguida, ela suspirou. Nunca havia se incomodado com a
solidão, mas agora tinha medo dela. Nos últimos tempos, quando
estava sozinha, sentia-se horrivelmente solitária.
– Aqui é um bom local, o vento não vai chegar até a senhora –
disse o capitão Jim quando chegaram às pedras. – Eu sempre me
sento neste lugar. Ele é ótimo para simplesmente ficar e sonhar.
– Oh, os sonhos! – Anne suspirou novamente. – Não consigo
sonhar mais, capitão Jim... Para mim, os sonhos acabaram.
– Não, isso não é verdade, senhora Blythe... Não acabaram, não
– afirmou pensativamente o capitão. – Sei como se sente neste
momento... Mas, se continuar vivendo, vai ser feliz de novo e,
quando menos esperar, vai se surpreender sonhando outra vez. O
Senhor seja louvado por isso! Se não fosse por nossos sonhos,
seria melhor que fôssemos enterrados logo. Como poderíamos viver
sem nosso sonho de imortalidade? E esse é um sonho que
inevitavelmente vai se realizar, senhora Blythe. Um dia a senhora
vai ver sua pequena Joyce de novo.
– Entretanto, ela não vai ser meu bebê – disse Anne, com os
lábios trêmulos. – Ela pode até ser, como disse Longfellow, “uma
linda donzela cercada pela graça celestial”,******** mas será uma
estranha para mim.
– Deus vai fazer melhor que isso, eu acredito.
Permaneceram em silêncio por algum tempo. Em seguida, o
capitão Jim perguntou:
– Senhora Blythe, posso lhe falar sobre Margaret desaparecida?
– Sim, claro – Anne respondeu gentilmente.
Ela não sabia quem era “Margaret desaparecida”, mas intuiu que
iria ouvir o capitão contar o romance de sua vida.
– Eu sempre quis conversar com a senhora a respeito dela – o
capitão Jim prosseguiu. – Sabe por que, senhora Blythe? Porque
quero que alguém se lembre de Margaret e pense nela às vezes,
depois que eu tiver partido. Não suporto a ideia de seu nome ser
esquecido por todas as almas humanas. Atualmente ninguém mais,
exceto eu, se lembra de Margaret desaparecida.
Então ele contou a história. Era um caso muito antigo e já
esquecido, pois mais de cinquenta anos haviam se passado desde o
desaparecimento de Margaret. A conclusão a que todos chegaram,
na época – pois nunca se soube nada a respeito de seu destino –,
foi que ela havia adormecido na canoa de seu pai e o barco tinha
sido levado pela corrente para fora do canal, para além da barreira
de dunas, e ela teria morrido durante o trágico temporal com raios,
trovões e ventos intensos que caiu repentinamente naquela
longínqua tarde de verão. No entanto, para o capitão Jim era como
se Margaret tivesse desaparecido no dia anterior.
– Caminhei pelo litoral por meses depois daquela tarde – ele falou
tristemente –, tentando encontrar seu pequeno, doce e querido
corpo, mas o mar nunca o devolveu para mim. No entanto, sei que
ainda vou encontrar Margaret algum dia, senhora Blythe... Ainda vou
encontrá-la algum dia. Ela está à minha espera. Eu gostaria de
poder descrevê-la para a senhora exatamente como era, mas não
posso. Já vi uma névoa suave e prateada pairando sobre as dunas
ao amanhecer que se parecia com ela; em outra ocasião, vi uma
bétula branca no bosque atrás do porto que me fez pensar nela.
Margaret tinha cabelo castanho-claro, um rosto pequeno, branco e
doce, e dedos longos e finos como os seus, senhora Blythe, só que
mais morenos, porque ela era uma garota da costa. Às vezes eu
acordo no meio da noite e escuto o mar me chamando como
antigamente; então tenho a sensação de que Margaret
desaparecida está ali, invocando meu nome. E se há uma
tempestade e as ondas soluçam e gemem, eu a ouço lamentando
entre elas. Mas quando elas riem em um dia alegre, é a risada
dela... A doce e travessa risada de Margaret. O mar a levou de mim,
mas um dia vou encontrá-la, senhora Blythe. Ele não pode nos
manter separados para sempre.
– Estou contente por ter me falado sobre ela – disse Anne. –
Muitas vezes me perguntei por que o senhor viveu sozinho toda a
sua vida.
– Nunca pude me interessar por ninguém mais. Margaret
desaparecida levou meu coração junto com ela – disse o eterno
apaixonado, que por cinquenta anos havia sido fiel à namorada que
se perdeu no mar. – Não vai se importar se eu falar sempre sobre
ela, vai, senhora Blythe? É um prazer para mim, pois há anos toda a
dor sumiu das lembranças que tenho: hoje resta apenas a bênção
que foi tê-la em minha vida. Sei que a senhora jamais a esquecerá.
E se os anos trouxerem, como espero que aconteça, outras crianças
para seu lar, gostaria que me prometesse que vai contar a elas a
história de Margaret desaparecida, para que seu nome nunca seja
esquecido pela humanidade.
A
nne – disse Leslie, quebrando subitamente o silêncio –,
você não sabe o quanto é bom estar aqui em seu jardim, ao
seu lado novamente, trabalhando, conversando e ficando
caladas juntas.
As duas estavam sentadas sobre a relva salpicada com
pequenas flores azuis que pareciam estrelas, na margem do riacho.
A água cintilava e sussurrava ao passar por elas; as sombras das
bétulas manchavam o chão, e rosas desabrochavam nos canteiros.
O sol começava a baixar no céu, e o ar estava cheio de melodias
que se harmonizavam: uma do vento nos abetos atrás da casa,
outra das ondas do mar, e ainda outra do distante sino da igreja,
perto da qual uma pequenina e muito branca criança dormia seu
sono eterno. Anne adorava aquele sino, embora ele agora lhe
trouxesse pensamentos tristes.
Ela olhou com curiosidade para Leslie, que havia posto de lado a
costura e falava com uma espontaneidade que não lhe era habitual.
– Naquela noite horrível em que você estava tão doente – Leslie
continuou –, fiquei pensando que talvez não tivéssemos mais
conversas, caminhadas e trabalhos juntas. Então percebi o que sua
amizade havia passado a significar para mim; mais exatamente, o
que você significava em minha vida... e que besta abominável eu
tinha sido.
– Leslie! Leslie! Nunca permito que falem mal assim de meus
amigos.
– É verdade. É exatamente o que sou: uma besta abominável.
Existe algo que tenho de lhe confessar, Anne. Suponho que vai me
desprezar, mas preciso lhe dizer isto. Anne, houve momentos no
inverno passado e na primavera em que odiei você.
– Eu sei – disse Anne calmamente.
– Sabe?
– Sim, vi em seus olhos.
– E mesmo assim continuou a gostar de mim e ser minha amiga...
– Bem, era só de vez em quando que você me odiava. Entre uma
dessas vezes e a seguinte você me amava, eu acho.
– Claro, com certeza. Entretanto, aquele outro sentimento
medonho estava sempre lá, no fundo de meu coração, estragando
tudo. Eu o mantinha escondido, chegava até a me esquecer dele,
mas de repente ele se fortalecia e me dominava. Eu a odiava
porque tinha inveja de você. Oh, como eu a invejei algumas vezes!
Você tinha um lar adorável, amor, felicidade, sonhos maravilhosos...
Tudo o que eu sempre quis, nunca tive e jamais poderia ter, jamais!
Era isso que me torturava. Eu não teria invejado você se tivesse
alguma esperança de que um dia a vida seria diferente para mim.
Mas eu não tinha... Não tinha nenhuma, e isso não me parecia justo.
Isso me deixava revoltada, me machucava... Então, nessas
ocasiões, eu odiava você. Oh, senti tanta vergonha disso! E estou
morrendo de vergonha agora, mas eu não conseguia vencer essa
revolta. Naquela noite, quando tive medo de que você não
sobrevivesse, pensei que eu estava sendo castigada por minha
maldade. E te amei mais do que tudo! Anne, Anne, nunca mais tive
a quem amar depois que minha mãe morreu, a não ser o velho cão
de Dick. É tão triste não ter ninguém para amar... A vida fica tão
vazia! Não existe nada pior que o vazio. Oh, eu poderia tê-la amado
tanto se aquela coisa horrível não tivesse arruinado tudo...
Leslie tremia, e a violência de sua emoção a tornava quase
incoerente.
– Pare, Leslie! – Anne implorou – Por favor, pare! Eu
compreendo. Não fale mais sobre isso.
– Eu preciso... Preciso. Quando soube que você viveria, jurei que
iria lhe dizer tudo assim que se recuperasse; que não aceitaria mais
sua amizade e sua companhia sem antes lhe contar como fui
indigna de sua afeição por mim. E como temi que você não me
perdoasse!
– Você não precisa ter medo disso, Leslie.
– Que bom, isso me deixa tão contente! Tão contente, Anne –
Leslie uniu com força as mãos bronzeadas e calejadas pelo trabalho
duro para minimizar o tremor. – Mas quero lhe contar tudo, agora
que comecei. Você não se lembra da primeira vez em que a vi,
suponho. Não foi naquela noite na praia.
– Não: foi quando eu e Gilbert chegamos a Four Winds. Você
guiava seus gansos colina abaixo. Devo dizer que me lembro muito
bem disso. Achei você tão bonita que passei as semanas seguintes
desejando descobrir quem era.
– Eu sabia quem você era, embora nunca tivesse visto nenhum
de vocês dois antes. Já tinha ouvido falar do novo médico e sua
esposa que chegariam para morar na pequena casa da senhorita
Russel. Eu... Eu comecei a odiá-la naquele exato momento, Anne.
– Percebi o ressentimento em seus olhos. Depois duvidei, achei
que eu só poderia estar enganada: afinal, por que você teria rancor
contra mim?
– Porque você parecia feliz demais. Anne, agora vai concordar
comigo que sou uma besta abominável. Odiar uma mulher só
porque ela é feliz, quando a felicidade dela não prejudica você em
nada?! Foi por isso que eu nunca vim visitá-la. Eu sabia
perfeitamente que deveria vir. Até nossos costumes mais simples
em Four Winds exigem isso. Contudo, eu não podia. Costumava
observá-la pela janela; via você e seu marido passeando aqui pelo
jardim nos finais de tarde; ou você correndo pela alameda margeada
de álamos para encontrá-lo. E tudo aquilo me feria. Mas ainda
assim, de alguma forma, desejei vir; sentia que se eu não fosse tão
infeliz, teria gostado de você; teria encontrado em você o que nunca
tive em toda a minha vida: uma amiga íntima e verdadeira, com a
mesma idade que eu. Depois veio aquela noite na praia, lembra?
Você receou que eu a considerasse uma louca, mas deve ter
pensado que eu é que era a doida.
– Não, apenas não consegui entendê-la, Leslie. Primeiro, você
deixava que eu me aproximasse, depois me repelia.
– Eu estava muito triste naquela noite. Meu dia havia sido duro
demais. Dick tinha sido bastante... bastante difícil de acalmar.
Geralmente ele é bem tranquilo e facilmente controlável, você sabe,
Anne. Porém, há dias em que ele fica muito diferente. Eu estava tão
desolada! Fugi para o litoral assim que ele foi dormir. Era meu único
refúgio. Fiquei lá, sentada, pensando em como meu pobre pai havia
dado um fim à própria vida e me perguntando se eu não seria
levada a fazer o mesmo algum dia desses. Oh, eu estava cheia de
pensamentos sombrios! Então você apareceu dançando na enseada
como uma criança alegre e despreocupada. Naquele momento, eu...
eu a odiei mais do que nunca. E mesmo assim desejei sua amizade.
Um sentimento prevalecia em certos instantes, mas logo em
seguida o outro já era mais forte. Quando cheguei à minha casa,
naquela noite, chorei de vergonha daquilo que você certamente
havia pensado a meu respeito. E em todas as vezes que vim até
aqui sempre foi exatamente assim. Em algumas, fiquei contente e
aproveitei minha visita; em outras, aquela sensação horrível
estragou minha alegria. Houve momentos em que tudo sobre você e
sua casa me magoou. Você possui tantas coisas adoráveis que não
posso ter! É ridículo, mas eu tinha um ódio especial por aqueles
seus cachorros de porcelana. Houve momentos em que desejei
agarrar Gog e Magog e bater seus focinhos pretos atrevidos um no
outro! Ah, você ri, Anne, mas nada disso teve graça nenhuma para
mim. Eu costumava ver você e Gilbert com seus livros e suas flores,
seus objetos mais estimados, suas brincadeiras carinhosas. E,
sobretudo, o amor que um sente pelo outro e que fica evidente em
cada olhar, cada palavra, mesmo quando vocês nem percebem isso.
Depois eu voltava para minha casa para... você sabe bem o que me
esperava em casa! Anne, não acredito que eu seja ciumenta e
invejosa por natureza. Quando eu era menina, carecia de muitas
coisas que meus colegas de escola tinham, mas nunca me importei,
nunca deixei de gostar deles por isso. Mas agora pareço ter ficado
tão rancorosa!
– Leslie querida, pare de se culpar. Você não é rancorosa, nem
ciumenta ou invejosa. Talvez a vida que tem sido obrigada a levar
por tantos anos tenha desvirtuado um pouco sua personalidade,
porém teria feito muito mais mal a alguém com uma natureza menos
nobre e bondosa que a sua. Só permito que me diga tudo isso
porque acredito que é melhor você desabafar e livrar sua alma
desse sofrimento. Mas não se culpe mais.
– Está bem. Eu só queria que me conhecesse do jeito que sou.
Aquela ocasião em que você me contou sua expectativa tão querida
para a primavera foi a pior de todas, Anne. Jamais vou me perdoar
pela maneira com que me comportei naquele dia. Chorei de
arrependimento. E depositei muitos pensamentos ternos e
amorosos naquele pequeno traje que confeccionei. Mas eu deveria
saber que qualquer coisa que eu fizesse só poderia se tornar uma
mortalha, no fim da história.
– Leslie, isso que está dizendo é amargo e mórbido. Abandone
essas ideias. Fiquei tão contente quando você trouxe aquela
vestimenta linda. E já que tive de perder a pequena Joyce, gosto de
pensar que o vestido que ela usou foi o que você fez enquanto se
permitia gostar de mim.
– Sabe, Anne, creio que depois disso vou amá-la para sempre.
Acho que nunca mais vou ter aquele sentimento horrível em relação
a você. De algum modo, parece que falar sobre ele foi como matá-
lo. Isso é tão estranho... E eu achava tudo tão real e doloroso... É
como abrir a porta de um quarto escuro para ver uma criatura
medonha que você acreditava estar lá, mas, quando a luz entra no
cômodo, você descobre que seu monstro era apenas uma sombra
que desapareceu na claridade. Essa coisa horripilante nunca mais
vai se colocar entre nós.
– Nunca mais, Leslie. Agora somos amigas de verdade, e estou
muito satisfeita.
– Espero que me compreenda se eu disser mais uma coisa,
Anne. Fiquei profundamente desolada quando você perdeu seu
bebê; se eu pudesse salvá-la em troca de cortar uma de minhas
mãos, eu teria feito isso. No entanto, por outro lado, sua dor nos
aproximou mais. Sua felicidade perfeita não é mais uma barreira
entre nós. Por favor, não me entenda mal, minha querida. Não estou
dizendo que me alegro por sua felicidade não ser perfeita mais;
posso assegurar que não. Entretanto, o fato é que não existe mais
um abismo entre nós.
– Entendo perfeitamente isso também, Leslie. Agora vamos
simplesmente deixar o passado para trás e esquecer o que foi
desagradável nele. Agora tudo vai ser diferente. Afinal, nós duas
pertencemos à raça de Joseph. Eu acho que você tem sido
maravilhosa... maravilhosa! E, Leslie, não posso deixar de acreditar
que a vida ainda lhe reserva algo bom e belo.
Leslie balançou a cabeça.
– Não – afirmou sombriamente. – Não há nenhuma esperança.
Dick nunca ficará melhor, e, mesmo se sua memória voltasse, Anne,
seria pior, ainda pior do que é atualmente. Isso é algo que você não
consegue entender, pois é uma esposa feliz. Anne, a senhorita
Cornelia alguma vez lhe contou como me casei com Dick?
– Sim.
– Fico contente; eu queria conversar sobre isso, mas não
conseguiria tocar no assunto se você já não soubesse. Anne, sinto
que desde os meus doze anos de idade a vida tem sido perversa
comigo. Até então, tive uma infância feliz. Éramos muito pobres,
mas não nos importávamos. Papai era esplêndido; tão inteligente,
afetuoso, compreensivo... Fomos muito próximos um do outro desde
quando eu consigo me lembrar. E mamãe era tão doce... Ela era,
muito, muito bonita. Sou parecida com mamãe, mas não tão linda
quanto ela.
– A senhorita Cornelia me disse que você é ainda mais bonita.
– Ela está enganada... ou sendo preconceituosa. Eu acho que
minha silhueta tem uma aparência melhor; mamãe era bem magra e
curvada, por causa do trabalho árduo, mas tinha um rosto angelical.
Eu costumava olhar para ela com veneração. Nós todos a
adorávamos: papai, Kenneth e eu.
Anne se lembrou de que a senhorita Cornelia havia lhe dado uma
descrição bem diferente da mãe de Leslie. Mas a visão de quem
ama não seria a mais verdadeira? Porém, não se pode negar que
Rose West foi egoísta ao fazer com que sua filha se casasse com
Dick Moore.
– Kenneth era meu irmão – Leslie prosseguiu. – Anne, é
impossível dizer o quanto eu o amava. E ele foi morto cruelmente.
Você sabe como?
– Sei.
– Eu vi seu rostinho quando a roda passou por cima dele. Ele
caiu de costas. Anne, eu posso ver a cena agora. Vou vê-la para
sempre. Tudo o que peço aos céus, Anne, é que essa lembrança
seja apagada de minha memória. Quanta dor!
– Leslie, não fale sobre isso. Eu conheço a história; não entre em
detalhes que vão apenas atormentar sua alma inutilmente. Essa
imagem vai ser apagada.
Após um momento de esforço, Leslie recuperou um pouco de
autocontrole.
– A partir de então, a saúde de papai piorou, e ele ficou cada vez
mais deprimido e mentalmente desequilibrado. Você já sabia de
tudo isso também?
– Sim.
– Então só me restou mamãe em minha vida. Mas eu era
bastante ambiciosa; queria lecionar e juntar dinheiro para cursar
uma faculdade. Meu objetivo era chegar ao topo mais alto... Não,
não vou falar mais sobre isso; não adianta nada. Você sabe o que
houve. Eu não suportaria ver minha adorada e sofrida mãe, que
tinha sido praticamente uma escrava por toda a vida, ser expulsa de
seu lar. Obviamente eu poderia ganhar dinheiro suficiente para
nosso sustento. No entanto mamãe não suportaria deixar nossa
casa. Ela chegou lá recém-casada, Anne. E amava papai
loucamente. Todas as suas lembranças estavam ali. Até hoje,
quando penso que possibilitei que seu último ano de vida fosse feliz,
não me arrependo do que fiz. Quanto a Dick, eu não o odiava
quando nos casamos; apenas tinha por ele o mesmo sentimento de
simpatia e indiferença que caracterizava meu relacionamento com a
maioria de meus colegas de escola. Eu sabia que ele gostava de
bebidas alcoólicas, mas nunca havia escutado nada sobre a tal
garota da vila dos pescadores. Se eu soubesse da existência dela,
não teria me casado com ele, nem mesmo por minha mãe. Depois,
comecei a odiá-lo realmente, mas ela jamais teve conhecimento
disso. Então, ela morreu e fiquei sozinha. Eu tinha apenas
dezessete anos e estava só. Dick tinha viajado no Four Sisters, e eu
desejava que, após sua volta, ele não ficasse muito tempo em casa:
afinal, o mar sempre esteve em seu sangue. Isso era o que eu mais
esperava que acontecesse. Bem, o capitão Jim o trouxe de volta,
como você sabe, e isso é tudo o que há para ser dito. Anne, agora
você me conhece, sabe o que existe de pior em mim. As barreiras
caíram. Você ainda quer ser minha amiga? Anne ergueu a cabeça e
olhou por entre as bétulas para a meia-lua que surgia perto do golfo
durante o pôr do sol. Havia uma expressão muito doce em seu
rosto.
– Vamos ser eternamente amigas, Leslie – disse. – Você é uma
amiga diferente de todas as que já tive. Possuo muitas e adoradas
amigas, mas há algo em você que nunca encontrei em nenhuma
outra. Você tem mais a me oferecer, com essa sua personalidade
tão rica, e sinto que eu também tenho mais para lhe proporcionar do
que aquilo que tinha em minha juventude despreocupada. Nós duas
somos mulheres... e amigas para sempre.
Elas deram as mãos e sorriram uma para a outra, em meio às
lágrimas que enchiam os olhos cinzentos e os azuis.
G
ilbert insistiu para que eles mantivessem Susan na pequena
casa durante o verão. No início, Anne protestou.
– A vida aqui com apenas nós dois é tão boa, Gilbert. Uma
pessoa a mais estraga um pouco nossa felicidade. Susan é
adorável, mas é uma estranha. Não me incomodo de fazer o
trabalho doméstico.
– Você tem de seguir as recomendações de seu médico – Gilbert
argumentou. – Há um provérbio antigo que diz que “as esposas dos
sapateiros andam descalças, e as dos médicos morrem jovens”.
Não quero que isso seja comprovado em minha própria casa. Susan
vai ficar aqui até que a velha primavera venha bater à sua porta e
essas cavidades em suas bochechas sejam preenchidas.
– Tenha calma, querida esposa do doutor – disse Susan,
entrando subitamente. – Divirta-se e não se preocupe com a
despensa. Susan está ao leme. Para que encarregar-se das tarefas,
se tem alguém para fazê-las? Vou levar seu café da manhã para a
senhora todos os dias.
– De jeito nenhum! – Anne riu. – Concordo com a senhorita
Cornelia que é inaceitável uma mulher que não está doente tomar
seu café da manhã na cama. Isso quase justifica os atos ultrajantes
que os homens cometem.
– Ora, a Cornelia! – Susan exclamou com um descaso
indescritível. – Acho que tem sensatez suficiente, querida esposa do
doutor, para não levar tão a sério as coisas que Cornelia Bryant diz.
Não consigo entender por que ela vive criticando os homens, sendo
que nem se casou. Também sou uma solteirona, mas ninguém me
ouve falar mal dos homens. Eu gosto dos homens. Teria me casado
com um, se tivesse sido possível. Não é estranho nenhum homem
ter me pedido em casamento, querida esposa do doutor? Não sou
nenhuma beldade, mas minha aparência não é pior que a da maior
parte das mulheres casadas que circulam por aí. Entretanto, nunca
tive um namorado. A senhora imagina qual é a razão para isso?
– Pode ser predestinação – sugeriu Anne, em tom extremamente
solene.
Susan concordou com um aceno de cabeça.
– É o que sempre pensei, querida esposa do doutor, e isso é um
grande conforto. Não me importo de não ter sido escolhida por
nenhum homem, se foi o Todo-Poderoso que decretou isso por Seus
próprios e sábios propósitos. Porém, às vezes a dúvida se insinua e
me pergunto se talvez o demônio não seja o principal responsável
por isso. Nesses momentos, não consigo me sentir resignada. Mas,
quem sabe – acrescentou Susan, animando-se –, ainda vou ter a
chance de me casar. Frequentemente me lembro dos versos que
minha tia costumava repetir:
Nunca houve uma gansa tão só e sombria,
mas por fim chegou seu dia.
Um ganso honesto cruzou seu caminho
E a levou para seu ninho!
Enquanto estiver viva, uma mulher nunca pode ter certeza de que
não vai se casar, querida esposa do doutor, e enquanto isso vou
fazer uma fornada de tortas de cereja. Percebi que o doutor tem
uma preferência por elas, e eu realmente gosto de cozinhar para um
homem que aprecia os alimentos que preparo.
Naquela tarde, a senhorita Cornelia chegou ligeiramente
ofegante.
– Não ligo muito para o mundo ou o diabo, mas a carne me
incomoda bastante – admitiu. – Você está sempre tão tranquila,
Anne. Sinto cheiro de torta de cereja? Se é isso mesmo, peço que
me convide para o chá. Ainda não saboreei nenhuma torta de cereja
neste verão. Todas as minhas cerejas foram roubadas pelos
meninos Gilman, aqueles moleques lá de Glen.
– Ora, ora, Cornelia – protestou o capitão Jim, que estava lendo
um romance de aventuras marítimas em um canto da sala –, você
não deveria acusar assim aqueles dois pobres garotos sem mãe, a
não ser que tenha provas concretas. É verdade que o pai deles não
é nenhum exemplo de honestidade, mas isso não é motivo para
chamá-los de ladrões. É muito mais provável que os pássaros
tenham atacado suas cerejas. Há uma enorme quantidade deles por
aqui este ano.
– Pássaros! – a senhorita Cornelia exclamou com desdém. – Sei!
Pássaros com duas pernas, acredite em mim!
– Ora, a grande maioria das aves de Four Winds segue esse
modelo – disse o capitão, muito sério.
A senhorita Cornelia o encarou por alguns instantes. Em seguida,
recostou-se na cadeira de balanço em que estava e riu, longa e
livremente.
– Bem, dessa vez você me venceu, Jim Boyd, tenho de
reconhecer. Veja como ele está satisfeito, Anne, sorrindo como o
Gato de Cheshire.******** Quanto aos pássaros, se eles realmente
possuem pernas compridas e bronzeadas e as vestem com calças
esfarrapadas, como aquelas que vi em minha cerejeira certo
amanhecer da semana passada, vou pedir perdão aos garotos
Gilman. Quando cheguei lá, já haviam ido embora. Eu não tinha
entendido como desapareceram tão rapidamente, mas agora o
capitão Jim me explicou: voaram, claro.
O capitão riu e foi embora, recusando pesarosamente um convite
para ficar para o jantar e desfrutar a torta de cereja.
– Vou à casa de Leslie para vê-la e perguntar se ela aceita um
pensionista – a senhorita Cornelia prosseguiu. – Ontem recebi uma
carta de uma senhora Daly, de Toronto, que se hospedou em minha
casa dois anos atrás. Ela queria que eu recebesse um amigo dela
no verão. O nome dele é Owen Ford; é um jornalista e, ao que
parece, também é neto do professor que construiu esta casa. A filha
mais velha de John Selwyn se casou com um homem de Ontario
cujo sobrenome era Ford, e Owen é filho deles. Quer conhecer o
antigo lugar onde seus avós viveram. Ele teve febre tifoide durante a
primavera e ainda não está totalmente curado, por isso seu médico
lhe recomendou uma temporada perto do mar. Ele não quer ficar no
hotel; prefere um lar tranquilo. Não posso hospedá-lo porque vou ter
de me ausentar em agosto. Fui nomeada para participar da
convenção da Sociedade de Ajuda Humanitária da Igreja, que vai se
realizar em Kingsport, e pretendo ir. Não sei se Leslie vai querer ser
incomodada com a presença dele, mas não há outro lugar; se ela
não aceitar recebê-lo, ele vai ter de se hospedar do outro lado do
porto.
– Depois de conversar com ela, volte e nos ajude a comer nossa
torta de cereja – Anne convidou. – Traga Leslie e Dick também, se
eles puderem vir. Então a senhora vai a Kingsport?! Vai gostar muito
da viagem. Vou lhe pedir que leve uma carta a uma amiga minha
que mora lá, a senhora Jonas Blake.
– Convenci a senhora Thomas Holt a ir comigo – disse
bondosamente a senhorita Cornelia. – Ela precisa demais de algum
descanso, acreditem em mim. Está se matando de trabalhar. Tom
Holt sabe fazer um belo crochê, mas não consegue sustentar a
família. Parece que nunca é capaz de se levantar suficientemente
cedo para realizar algum trabalho, embora eu já tenha notado que,
se é para pescar, ele madruga facilmente. Não é uma atitude típica
dos homens?
Anne sorriu. Tinha aprendido a não levar muito a sério as
opiniões da senhorita Cornelia a respeito dos homens de Four
Winds. Caso contrário, teria de acreditar que eles eram o mais
infame grupo de incompetentes e inúteis do mundo, com
verdadeiras escravas e mártires como esposas. Anne sabia que
esse Tom Holt, por exemplo, era um marido atencioso, um pai
adorado e um excelente vizinho. Se tinha uma tendência a ser
preguiçoso, gostando mais da pesca, para a qual nasceu, que da
agricultura, para a qual não tinha nenhuma vocação, e se tinha um
talento excêntrico e inofensivo para os trabalhos manuais, ninguém,
exceto a senhorita Cornelia, parecia culpá-lo. A esposa era uma
“trabalhadora ativa e enérgica” que se vangloriava dessas
qualidades; a família levava uma vida confortável financiada pelos
lucros da fazenda; e seus filhos e filhas, fortes e sadios, tendo
herdado o vigor da mãe, estavam todos preparados para ser
honestamente bem-sucedidos na vida. Em resumo, não havia
família mais feliz em Glen Saint Mary que a dos Holt.
A senhorita Cornelia voltou satisfeita da casa próxima ao riacho.
– Leslie vai hospedá-lo – anunciou. – Aceitou imediatamente. Ela
precisa de dinheiro para reformar o telhado durante o outono e não
sabia como consegui-lo. Suponho que o capitão Jim vai ficar mais
do que interessado quando souber que um neto dos Selwyn vem
passar uma temporada aqui. Anne, Leslie pediu para lhe dizer que
está ávida por uma torta de cereja, mas não pôde vir para o chá
porque tinha de procurar seus perus: eles fugiram. Entretanto, falou
também que, se sobrasse uma fatia e você pudesse guardá-la na
despensa, ela correria até aqui à noite, que é quando pode
escapulir, e a buscaria. Você não sabe, Anne, o bem que fez ao meu
coração ouvir Leslie lhe mandar um recado como esse, rindo como
costumava fazer muito tempo atrás. Ela mudou bastante
ultimamente; ri e brinca como uma menina, e, pelo que me diz,
parece que tem vindo aqui com frequência.
– Todos os dias, quando não sou eu que vou até lá – Anne
informou. – Não sei o que eu faria sem Leslie, especialmente agora
que Gilbert vive ocupado. Ele quase nunca fica em casa, exceto por
algumas horas na madrugada. Ele está realmente se matando de
trabalhar. Atualmente, muitas pessoas do outro lado do porto
mandam buscá-lo.
– Seria melhor se elas se contentassem com seu próprio médico
– disse a senhorita Cornelia –, embora eu tenha de admitir que não
posso culpá-las, pois ele é um metodista. Desde que o doutor Blythe
curou a senhora Allonby, todos acham que ele pode ressuscitar os
mortos. Creio que o doutor Dave está com um pouco de ciúme;
atitude típica dos homens. Ele acha que o doutor Blythe tem práticas
modernas demais! “Ora”, eu disse a ele, “foi uma prática moderna
demais que salvou Rhoda Allonby”. Se o senhor tivesse cuidado do
caso, ela teria morrido e ganhado uma lápide dizendo que levá-la
embora tinha sido um propósito de Deus. Oh, eu gosto de falar o
que penso com o doutor Dave! Ele comandou Glen por anos e acha
que perdeu uma autoridade maior do que muitas pessoas jamais
imaginaram que ele tivesse. E por falar em médicos, eu gostaria que
o doutor Blythe fosse até lá e examinasse aquele furúnculo no
pescoço de Dick Moore. Leslie já não sabe mais o que fazer com
aquilo. Só faltava Dick Moore começar a ter abcessos agora, como
se já não criasse problemas suficientes para ela!
– A senhorita sabe que Dick simpatizou comigo? – Anne falou. –
Ele me segue aonde eu vou, como um cachorro faz com o dono, e
sorri como uma criança quando lhe dou atenção.
– Ele lhe causa arrepios?
– Do modo nenhum. Na verdade, até gosto do pobre Dick Moore.
Ele parece digno de piedade e, ao mesmo tempo e de alguma
forma, é uma pessoa interessante.
– Você não o acharia nem um pouco interessante se visse Dick
nos dias em que ele está mal-humorado, acredite em mim. Mas fico
contente por saber que ele não a incomoda; isso é muito bom para
Leslie. Ela vai ter muito trabalho quando o pensionista chegar.
Espero que ele seja uma criatura decente. Você provavelmente vai
se dar bem com ele, pois é escritor.
– Eu gostaria de saber por que as pessoas geralmente supõem
que, se dois indivíduos são escritores, consequentemente são
parecidos – comentou Anne, ligeiramente irônica. – Ninguém espera
que dois ferreiros se sintam extremamente atraídos um pelo outro
simplesmente porque ambos são ferreiros.
No entanto, ela aguardou a chegada de Owen Ford com uma
expectativa prazerosa. Se ele fosse jovem e agradável, poderia ser
um acréscimo verdadeiramente bem-vindo à sociedade de Four
Winds. A porta da pequena casa branca estava sempre aberta para
quem pertencia à raça de Joseph.
C
erto entardecer, a senhorita Cornelia telefonou para Anne.
– O escritor acabou de aparecer aqui. Vou levá-lo até sua
casa e gostaria que você lhe mostrasse o caminho para a
residência de Leslie. Assim, ele vai chegar mais rapidamente do que
se fosse pela outra estrada. Estou com uma pressa enorme: o bebê
dos Reese caiu em uma bacia cheia de água quente em Glen e
quase morreu escaldado. Eles querem que eu vá para lá
imediatamente... Para pôr uma pele nova na criança, presumo. A
senhora Reese é sempre descuidada demais, e depois espera que
as outras pessoas consertem seus erros. Você não se importa de
fazer isso, se importa, querida? O baú dele pode ir amanhã.
– Está bem – disse Anne. – Como ele é, senhorita Cornelia?
– Vai ver como ele é por fora quando chegarmos aí. Quanto a
suas características interiores, somente Nosso Senhor, que o fez,
sabe a resposta. Não vou dizer mais nenhuma palavra, pois todos
os aparelhos de telefone de Glen estão fora da base.
– A senhorita Cornelia obviamente não encontrou muitos defeitos
na aparência do senhor Ford, caso contrário teria feito algum
comentário, mesmo sabendo que tinha outros ouvintes – Anne
afirmou. – Portanto, Susan, acho que o senhor Ford não é feio; ao
contrário.
– Bem, querida esposa do doutor, eu realmente gosto de ver um
homem bonito – Susan falou sinceramente. – Não seria melhor eu
preparar um lanche para ele? Tem uma torta de morango que
derreteria em sua boca.
– Não, Leslie está esperando por ele com o jantar pronto. Além
disso, quero aquela torta para o meu pobre homem. Gilbert vai
chegar tarde, então separe a torta e um copo de leite para ele,
Susan.
– É o que vou fazer, querida esposa do doutor. Susan está ao
leme. Afinal de contas, é melhor oferecer uma torta para seu próprio
homem do que para algum estranho que pode querer apenas
devorá-la apressadamente; e o doutor é um homem tão bonito
quanto os que vemos por aí.
Quando Owen Ford chegou, Anne admitiu secretamente,
enquanto a senhorita Cornelia o conduzia para a sala, que ele era
mesmo muito bonito. Era alto, tinha ombros largos, cabelo castanho
volumoso, nariz e queixo bem delineados e olhos cinza-escuros
grandes e brilhantes.
– A senhora reparou nas orelhas e nos dentes dele, querida
esposa do doutor? – indagou Susan mais tarde. – Ele tem as
orelhas mais formosas que já vi na cabeça de um homem. Tenho
um fraco por orelhas. Quando eu era jovem temia ter de me casar
com um homem com orelhas de abano. Mas foi uma preocupação
inútil, pois nunca tive chance com nenhum tipo de orelhas.
Anne não havia prestado atenção nas orelhas de Owen Ford,
mas viu claramente os dentes do escritor quando seus lábios se
separaram em um sorriso espontâneo e amigável. Quando estava
sério, seu rosto era triste ou sem nenhuma expressão, não muito
diferente daquele do melancólico e misterioso herói de Anne em
seus sonhos de adolescência. Entretanto, quando ele sorria, ficava
iluminado, irradiando júbilo, disposição e charme. Com certeza, “por
fora”, como disse a senhorita Cornelia, Owen Ford era um homem
com ótima aparência.
– Não pode imaginar o quanto me alegra estar aqui, senhora
Blythe – ele declarou, lançando um olhar interessado e ansioso ao
seu redor. – Tenho uma sensação estranha de estar em casa. Minha
mãe nasceu e passou sua infância aqui, a senhora sabe. Ela
costumava me falar frequentemente de sua antiga moradia.
Conheço as características desta casa tão bem quanto as daquela
em que vivi. É claro que ela me contou também a história de sua
construção e da espera aflita de meu avô pelo Royal William. Pensei
que uma casa tão antiga já havia desaparecido há anos; se eu
soubesse, já teria vindo vê-la antes.
– Casas antigas não somem facilmente neste litoral encantado –
Anne sorriu. – Esta é uma “terra onde todas as coisas parecem
estar sempre iguais”********... Pelo menos, quase sempre. A casa de
John Selwyn nem foi muito modificada, e lá fora as roseiras que seu
avô plantou para a noiva estão floridas neste exato momento.
– Como este pensamento me liga a eles! Preciso explorar todo o
local, em breve; com sua permissão, claro.
– Nossa porta vai estar sempre aberta para o senhor – Anne
prometeu. – Sabia que o velho capitão do mar que é responsável
pelo farol de Four Winds conheceu muito John Selwyn e sua noiva,
quando era jovem? Ele me contou a história dos dois na noite em
que cheguei aqui. Sou a terceira noiva a morar nesta velha casa.
– Como isso pode ser possível? Esta é uma grande descoberta.
Preciso procurá-lo.
– Não vai ser difícil encontrar o capitão Jim. Somos todos muito
amigos. Ele vai ficar tão ansioso para conhecê-lo quanto o senhor
está para falar com ele. Sua avó brilha como uma estrela na
memória do capitão. Mas agora suponho que a senhora Moore o
esteja esperando. Vou lhe mostrar o caminho mais curto.
Anne o acompanhou até a casa de Leslie. Atravessaram um
campo coberto de margaridas brancas como a neve, e havia, do
outro lado do porto, um barco com muitas pessoas cantando. O som
fluía sobre o mar como uma música fraca e sublime soprada pelo
vento. O céu estava estrelado, e os raios de luz do farol giravam e
brilhavam. Owen Ford olhou ao seu redor com satisfação.
– Então isto é Four Winds! – exclamou. – Eu não estava
preparado para ver um lugar tão bonito, apesar de todos os elogios
feitos por minha mãe. Que cores! Que cenário! Que encanto! Em
breve vou estar forte como um touro. E se é verdade que a
inspiração vem da beleza, certamente estarei apto a começar meu
grande romance canadense aqui mesmo.
– Ainda não começou o livro? – Anne perguntou.
– Quem me dera! Não, ainda não consegui encontrar a ideia
central perfeita para ele. Ela me espia a distância, me seduz, acena,
e então recua... Eu quase a alcanço, mas nesse momento ela
desaparece. Talvez, em meio a essa paz e beleza, eu seja capaz de
capturá-la. A senhorita Bryant me disse que você também escreve.
– Na verdade, faço apenas algumas coisas para crianças. Desde
que me casei, não escrevi muito. E não tenho nenhuma intenção de
criar um grande romance canadense – Anne riu. Isso está muito
além de meu talento literário.
Owen Ford riu também.
– Ouso dizer que está além do meu também. Porém, apesar
disso, pretendo tentar um dia, se eu tiver tempo. Um jornalista não
tem muitas oportunidades para realizar esse tipo de coisa. Escrevi
muitos contos para revistas, mas nunca tive o tempo que parece
necessário para escrever um livro. Agora, com três meses de
liberdade, devo começar, se puder encontrar o tema central, a alma
do livro.
Uma ideia passou rapidamente pela cabeça de Anne de uma
forma tão súbita que ela deu um salto. Contudo, ela não expressou
seu pensamento, pois haviam chegado à residência dos Moore.
Enquanto atravessavam o jardim, Leslie saiu pela porta lateral da
varanda e espiou na penumbra, em busca de algum sinal de seu
hóspede. Estava exatamente onde a luz amarela que saía pela
porta aberta inundava sua silhueta. Usava um vestido simples de
algodão, tingido de creme, e a habitual faixa vermelha. Leslie nunca
estava sem algum acessório dessa cor. Havia dito a Anne que não
se sentia satisfeita se não houvesse um brilho vermelho em seu
corpo, mesmo que fosse somente uma flor. Para Anne, isso sempre
simbolizou a personalidade brilhante, mas reprimida de Leslie, sem
nenhuma possibilidade de expressão exceto através daquele
detalhe cintilante.
O vestido de Leslie tinha um pequeno decote e mangas curtas.
Seus braços pareciam ter sido feitos de mármore cor de marfim.
Como estava contra a luz, cada uma de suas curvas primorosas
estava suavemente delineada suavemente na escuridão. Seu
cabelo brilhava como uma chama, e atrás dela via-se um céu roxo,
adornado com estrelas sobre o porto.
Anne ouviu Owen Ford suspirar. Embora estivesse escuro, ela
pôde ver o assombro e a admiração no rosto dele.
– Quem é essa criatura linda? – ele indagou.
– É a senhora Moore – Anne respondeu. – Ela é muito bonita,
não é?
– Eu... eu nunca vi nada igual – ele respondeu, bastante
impressionado. – Não estava preparado... não esperava... Nossa!
Ninguém espera ter uma deusa como alguém que vai lhe alugar um
quarto! Ora, se estivesse usando um vestido azul-arroxeado e uma
tiara de ametistas no cabelo, ela seria uma verdadeira rainha do
mar. No entanto, aceita hóspedes!
– Até as deusas precisam sobreviver – disse Anne. – E Leslie não
é uma deusa. É só uma bela mulher, tão humana quanto todos nós.
A senhorita Bryant lhe falou sobre o senhor Moore?
– Sim, ele tem uma deficiência mental ou algo parecido, não é?
Mas ela não me disse nada sobre a senhora Moore, e imaginei que
ela fosse uma dona de casa rural típica, que aceita hóspedes para
ganhar algum dinheiro de um modo honesto.
– Bem, é exatamente isso que Leslie está fazendo – disse Anne
objetivamente. – E não é uma coisa totalmente agradável para ela.
Espero que o senhor não se importe com Dick. Se o fizer, por favor,
não deixe Leslie perceber. Isso a machucaria terrivelmente. Ele é
apenas um bebê grande, e às vezes fica bastante inconveniente.
– Não se preocupe, ele não vai me incomodar. De qualquer
maneira, não vou ficar muito tempo em casa, a não ser para as
refeições. Mas que pena! A vida dela deve ser extremamente difícil.
– É. Entretanto, Leslie não gosta que sintam pena dela.
Leslie tinha entrado na casa outra vez, e em seguida se
encontrou com eles na porta da frente. Cumprimentou Owen Ford
com uma cordialidade fria e lhe disse, em tom profissional, que o
quarto e o jantar estavam prontos para ele. Dick, com um sorriso
tranquilo, subiu as escadas com um passo arrastado, levando a
valise. Owen Ford foi instalado como hóspede da velha casa entre
os salgueiros.
T
enho uma ideia que é como um casulo marrom com
possibilidade de se tornar uma borboleta magnífica, a
realização de dois sonhos – Anne contou a Gilbert quando
voltou para casa.
Ele havia chegado antes do previsto e saboreava a torta de
cereja de Susan. A própria Susan permanecia em um canto, como
um espírito guardião severo, mas benéfico, e sentia tanto prazer em
ver Gilbert deleitar-se com a torta quanto ele ao comê-la.
– Qual é sua ideia? – ele perguntou.
– Não vou lhe contar ainda... não até eu saber se posso
concretizá-la.
– Que tipo de sujeito é Ford?
– Muito simpático e bem bonito.
– E que belas orelhas, querido doutor! – exclamou Susan, com
um suspiro.
– Tem uns trinta a trinta e cinco anos, acho, e quer escrever um
romance. Sua voz é agradável, o sorriso é encantador, e ele sabe se
vestir bem. Entretanto, dá a impressão de que sua vida não é
exatamente fácil.
Owen Ford fez uma visita no fim da tarde do dia seguinte,
levando um bilhete de Leslie. Eles assistiram ao pôr do sol no jardim
e em seguida foram navegar nas redondezas do porto, sob o luar,
no barco que Gilbert tinha conseguido para os passeios de verão.
Gilbert e Anne gostaram imensamente de Owen e tiveram a
sensação de que já o conheciam havia muitos anos, o que indicava
que ele pertencia à raça dos que conheciam Joseph.
– Ele é tão cativante quanto suas orelhas, querida esposa do
doutor – afirmou Susan, depois que o jornalista saiu.
Owen tinha dito a Susan que nunca havia provado nada como
sua torta de morango, e com isso conquistou o coração sensível
dela para sempre.
– Ele tem algo especial – ela refletiu, enquanto tirava o que havia
restado na mesa do jantar. – É muito estranho que ele não seja
casado, pois um homem como aquele poderia ter qualquer esposa
que desejasse. Bem, talvez ele seja como eu: ainda não encontrou
a pessoa certa.
E enquanto lavava a louça, Susan ficou bastante romântica em
suas reflexões.
Duas noites depois, Anne levou Owen Ford até Four Winds para
apresentá-lo ao capitão Jim. Os campos de trevos ao longo da costa
do porto embranqueciam com o vento ocidental, e naquele dia o
capitão Jim pôde exibir um de seus mais fascinantes pores do sol.
Ele tinha acabado de voltar de uma jornada ao outro lado do porto.
– Tive de ir até lá para dizer a Henry Pollack que ele está
morrendo. Todas as outras pessoas estavam receosas de lhe contar
isso. Temiam que ele tivesse uma reação horrível, porque o homem
parecia estar realmente determinado a viver, e até fazia planos
infindáveis para o outono. A esposa achou que ele deveria saber e
que eu seria a melhor pessoa para lhe dar a má notícia de que não
vai se recuperar. Henry e eu somos velhos amigos, navegamos
juntos no Gray Gull por muitos anos. Bem, fui lá, sentei-me ao lado
da cama dele e falei, simples e diretamente, pois se uma coisa
precisa ser dita é melhor que seja assim. “Companheiro”, eu disse,
“creio que desta vez você foi convocado para zarpar rumo a sua
última viagem”. Eu estava, digamos, tremendo por dentro; afinal, é
muito duro ter de contar a um homem, que nem imagina que está
morrendo, que na verdade seus dias estão contados. Mas eis que –
imagine, senhora Blythe – Henry olha para mim, com aqueles olhos
negros e brilhantes no rosto enrugado e fala: “Jim Boyd, se você
quiser me dar informações, diga algo que não sei; já estou ciente
disso há uma semana”. Fiquei espantado demais para falar qualquer
coisa, e Henry riu. “Foi muito engraçado ver você chegar aqui com
uma expressão no rosto solene como um túmulo”, ele disse, “sentar-
se aí com as mãos entrelaçadas sobre o estômago e me contar uma
novidade mofada de tão antiga como essa! Até um gato poderia rir
disso, Jim Boyd”. “Quem te contou?”, perguntei estupidamente.
“Ninguém”, ele respondeu. “Na noite de terça-feira da semana
passada, eu estava deitado aqui, acordado, e simplesmente entendi.
Já suspeitava antes, mas naquele momento eu soube. Mantive
segredo por causa de minha esposa, e porque queria acabar de
construir aquele celeiro, pois Eben é incapaz de fazer isso do jeito
certo. Porém, de qualquer modo, já que agora você acalmou sua
mente, Jim, sorria e me conte algo interessante.” Bem, foi isso. As
pessoas estavam com tanto medo de falar com Henry, e ele sabia o
tempo todo. Não é estranho como a natureza cuida de nós e nos
revela o que devemos saber na hora certa? Já lhe contei a história
do anzol no nariz de Henry, senhora Blythe?
– Não.
– Bem, ele e eu demos umas gargalhadas por conta dessa
história hoje. Ela aconteceu cerca de trinta anos atrás. Nós dois e
mais vários outros homens estávamos pescando cavalinhas. Foi um
grande dia para a pesca, pois nunca vi no golfo um cardume de
cavalinhas como aquele. Ora, em meio ao entusiasmo geral, Henry
ficou tão descontrolado que conseguiu atravessar um anzol em um
dos lados de seu nariz. Bem, lá estava ele, com uma extremidade
curva e pontiaguda para fora da narina e um pedaço de chumbo
para dentro, de modo que era impossível tirar aquele gancho dali.
Quisemos levá-lo para a terra firme imediatamente, mas Henry se
recusou a ir; disse que seria amaldiçoado se não tirasse proveito
daquele cardume, a não ser que corresse o risco de contrair tétano.
E continuou pescando energeticamente e gemendo entre um puxão
e outro. Por fim, o bando de peixes se foi e voltamos com uma carga
enorme de cavalinhas. Quando chegamos à praia, peguei uma lima
e comecei a serrar o anzol. Tentei ser o mais cuidadoso possível,
mas vocês precisavam ter ouvido Henry... Quer dizer, não, não
deveriam ouvi-lo. Ainda bem que não havia nenhuma mulher por
perto. Henry não costumava praguejar ou falar palavrões, mas tinha
ouvido alguns terríveis quando conviveu com outros marujos, e
parece que pescou todos no passado e os jogou em mim.
Finalmente, ele declarou que não aguentava mais e que eu não
tinha nenhuma compaixão. Então eu o levei a um médico em
Charlottetown, a pouco menos de sessenta quilômetros daqui
(naquela época não havia nenhum mais perto), com aquele bendito
gancho ainda pendurado no nariz. Quando chegamos lá, o velho
doutor Crabb pegou uma lima e serrou o gancho da mesma forma
que eu tinha feito, só que ele não foi nada preocupado em ser
cauteloso!
A visita do capitão Jim ao velho amigo havia reavivado sua
memória, e agora ele estava cheio de lembranças.
– Henry me perguntou hoje se eu já tinha me esquecido da
ocasião em que o antigo reverendo Chiniquy abençoou o barco de
Alexander MacAllister. Outra história esquisita... e verdadeira como
o evangelho. Eu mesmo estava naquele barco. Saímos, eu e ele, no
barco de Alexander MacAllister durante o nascer do sol. Além de
nós, havia um garoto francês na embarcação – católico, claro.
Sabem, o antigo reverendo Chiniquy tinha se tornado protestante,
portanto não tinha muito valor para os católicos. Bem, ficamos no
golfo, sob um sol escaldante, até o meio-dia, e não pescamos um
peixe sequer. Quando desembarcamos, o velho reverendo Chiniquy
teve de ir embora, então falou, com aquele jeito amável que tinha:
“Sinto muito não poder acompanhá-lo de novo hoje, senhor
MacAllister, mas lhe deixo minha bênção. Vai pegar mil peixes esta
tarde!”. Bem, não pescamos mil, mas voltamos com exatamente
novecentos e noventa e nove... A maior quantidade fisgada por um
barco pequeno em todo o litoral norte naquele verão. Interessante,
não? Alexander MacAllister perguntou a Andrew Peters: “E agora, o
que acha do reverendo Chiniquy?”. “Bem”, rosnou Andrew, “penso
que ainda tinha sobrado uma última bênção para aquele velho
diabo”. Nossa, como Henry deu risadas ao se lembrar disso hoje!
– Sabe quem é o senhor Ford, capitão Jim? – Anne perguntou,
tendo constatado que a fonte de recordações do capitão tinha se
esgotado naquele momento. – Quero que adivinhe.
O capitão Jim balançou a cabeça.
– Nunca fui bom em adivinhações, senhora Blythe. Porém, de
alguma forma, quando me deparei com ele pensei: “Onde já vi
esses olhos antes? Tenho certeza de que já os vi”.
– Lembre-se de certa manhã de setembro, muitos anos atrás –
Anne falou suavemente. – Pense em um navio chegando ao porto...
um navio aguardado desesperadamente por muito tempo. Pense no
dia em que o Royal William chegou e o senhor viu pela primeira vez
a noiva do professor.
O capitão levantou-se subitamente.
– São os olhos de Persis Selwyn – quase gritou. – Você não pode
ser filho dela... deve ser seu...
– Neto; sim, sou filho de Alice Selwyn.
O capitão Jim se aproximou de Owen Ford e apertou sua mão
novamente.
– Filho de Alice Selwyn! Senhor, como é bem-vindo! Quantas
vezes eu me perguntei onde os descendentes do professor estariam
vivendo... Sabia que não tinha nenhum na ilha. Alice! Alice foi o
primeiro bebê a nascer naquela pequena casa. Nenhum outro
trouxe tanta alegria. Embalei seu sono uma centena de vezes. E foi
segurando em meus joelhos que ela deu seus primeiros passos
sozinha. Posso ver perfeitamente o rosto de Persis observando-a –
isso foi sessenta anos atrás. Ela ainda vive?
– Não, morreu quando eu ainda era garoto.
– Ora, não parece certo eu estar vivo para escutar isso – suspirou
o capitão Jim. – Mas estou muito feliz em vê-lo. Isso trouxe minha
juventude de volta por alguns instantes. Você ainda não sabe a
dádiva que isso representa. A senhora Blythe aqui ao meu lado tem
o dom: frequentemente ela faz isso por mim.
O capitão ficou ainda mais empolgado quando descobriu que
Owen Ford era o que ele chamava de um “escritor de verdade”.
Olhou para o jornalista como se este fosse um ser superior. O
capitão Jim sabia que Anne escrevia, mas nunca levara esse fato
muito a sério. Achava que as mulheres eram criaturas adoráveis,
com corações abençoados e que deveriam ter o direito ao voto e a
tudo o mais que desejassem, mas não acreditava que elas eram
capazes de escrever obras literárias.
– Vejam “Um louco amor”, por exemplo – costumava argumentar.
– A história foi escrita por uma mulher, e o que ela fez? Cento e três
capítulos para contar uma história que poderia ter sido narrada em
dez. Uma escritora nunca sabe quando deve parar, esse é o
problema. O segredo para escrever bem é justamente saber quando
parar.
– O senhor Ford quer ouvir algumas de suas histórias, capitão
Jim – disse Anne. – Conte-lhe aquela sobre o capitão que
enlouqueceu e imaginou que era o Holandês Voador.********
Essa era a melhor história do capitão Jim. Era uma mistura de
horror e humor, e, embora Anne a tivesse ouvido diversas vezes, ela
gargalhou com tanto entusiasmo e ficou tão assustada com seus
acontecimentos quanto o senhor Ford. Outros casos se seguiram,
pois o capitão estava diante de uma audiência realmente
interessada no que tinha para contar. Narrou como sua embarcação
havia sido atropelada por um barco a vapor; como tinha sido
atacado por piratas da Malásia; como seu navio tinha pegado fogo;
como havia ajudado um prisioneiro político a fugir da África do Sul;
como havia naufragado nas Ilhas da Madalena, no outono, e ficado
preso lá durante todo o inverno; como um tigre tinha fugido da jaula
a bordo de seu navio; como sua tripulação havia organizado um
motim e o abandonado em uma ilha árida e deserta... Essas e
muitas outras histórias – trágicas ou engraçadas ou grotescas – o
capitão Jim relatou.
O mistério do mar, o fascínio das terras distantes, o poder de
sedução da aventura, as coisas belas do mundo: tudo isso seus
ouvintes compreenderam e sentiram. Owen Ford escutou
atentamente, com a cabeça apoiada em uma das mãos, os olhos
brilhantes fixos no rosto enrugado e expressivo do capitão Jim, com
o Primeiro Imediato ronronando próximo a seus joelhos.
– Não vai mostrar seu livro da vida para o senhor Ford, capitão? –
Anne perguntou, quando o faroleiro finalmente declarou que aquela
sessão de histórias deveria terminar ali.
– Ora, ele não quer ser incomodado com isso – protestou o
capitão Jim, que estava secretamente ansioso para mostrar seu
caderno ao jornalista.
– Não há nada que eu deseje mais agora do que ver seu livro,
capitão Boyd – disse Owen. – Se ele for minimamente interessante
quanto suas histórias, é lógico que vale a pena conhecê-lo.
Com relutância simulada, o capitão Jim tirou seu livro da vida de
um velho baú e o entregou a Owen Ford.
– Suponho que não vai querer desperdiçar muito tempo
decifrando minha caligrafia. Nunca tive muita escolaridade – ele
comentou humildemente. – Só escrevi essas coisas para agradar
meu sobrinho Joe. Ele sempre pede histórias. Veio aqui ontem e
disse com ar de reprovação, quando me viu tirar do meu barco um
bacalhau de quase dez quilos: “Tio Jim, o bacalhau não é um animal
inofensivo?”. Eu tinha ensinado a ele que devemos ser gentis com
os animais inofensivos e nunca machucá-los. Consegui me livrar
daquela situação embaraçosa dizendo que os bacalhaus eram
realmente inofensivos, mas não eram animais. Obviamente, Joe não
ficou satisfeito, e eu também não. Temos de ser extremamente
cautelosos com o que dizemos a essas pequenas criaturas. Elas
são muito espertas.
Enquanto falava, o capitão Jim observava discretamente Owen
Ford examinar o livro. A certa altura, constatando que seu visitante
estava concentrado na leitura de suas páginas, virou-se, sorrindo, e
se dedicou a preparar um chá. Owen se separou do livro da vida
com tanta relutância quanto um avarento se distancia de seu ouro,
apenas pelo tempo necessário para tomar seu chá, e logo o pegou
de volta avidamente.
– Pode levar essa coisa com você, se quiser – disse o capitão
Jim, como se a “coisa” não fosse seu bem mais precioso. – Preciso
ir lá embaixo prender melhor meu barco. Há uma ventania se
aproximando. Repararam no céu esta noite?
Escamas de cavalinha e caudas de éguas
fazem barcos altos baixarem as velas.********
Owen Ford aceitou a oferta alegremente. A caminho de casa,
Anne lhe contou a história de Margaret desaparecida.
– O velho capitão é um sujeito maravilhoso – ele comentou. –
Que vida esse homem levou! Ora, ele teve mais aventuras em uma
semana que a maioria de nós tem durante a vida inteira. Vocês
acham realmente que suas histórias são todas reais?
– Eu acredito que sim. Tenho certeza de que o capitão Jim não
mentiria; além disso, todas as pessoas por aqui dizem que tudo
aconteceu exatamente como ele relata. Muitos de seus antigos
companheiros ainda vivos confirmam a veracidade de seus casos.
Ele é um dos últimos representantes do antigo tipo de capitães do
mar de Prince Edward Island. Eles estão quase extintos, agora.
N
a manhã seguinte, Owen Ford chegou muito empolgado à
pequena casa.
– Senhora Blythe, este é um material maravilhoso;
absolutamente maravilhoso! Se eu pudesse ficar com ele e usá-lo
para um livro, tenho certeza de que poderia fazer o romance do ano.
A senhora acha que o capitão Jim me deixaria fazer isso?
– Está me perguntando se ele deixaria? Tenho certeza de que o
capitão Jim ficaria encantado! – exclamou Anne. – Admito que era
isso que estava em minha cabeça quando o levei até ele ontem à
noite. O capitão Jim sempre desejou encontrar alguém que
escrevesse adequadamente seu livro da vida.
– Pode ir comigo até o pontal no fim da tarde, senhora Blythe? Eu
mesmo pretendo pedir permissão para escrever o romance, mas
gostaria que a senhora lhe dissesse que me contou a história de
Margaret desaparecida e lhe perguntasse se posso usá-la como fio
narrativo para tecer as partes do livro da vida e constituir um todo
harmonioso.
O capitão Jim ficou mais entusiasmado do que nunca quando
Owen lhe falou sobre seus planos. Finalmente, seu sonho mais
querido seria realizado, e seu “livro da vida”, oferecido ao mundo.
Também ficou satisfeito com a ideia de Margaret desaparecida ser o
ponto central do enredo.
– Isso não vai deixar que seu nome seja esquecido – concluiu,
pensativo.
– Exatamente. E podemos trabalhar juntos – Owen sugeriu
animadamente. – O senhor vai colaborar fornecendo a alma da obra
e eu, o corpo. Nós dois vamos escrever um livro que vai ficar
famoso, capitão Jim. E temos de começar a trabalhar o mais
depressa possível.
– E pensar que meu livro vai ser escrito pelo neto do professor! –
exclamou o capitão Jim. – Rapaz, seu avô era meu melhor amigo.
Eu achava que não existia ninguém como ele. Agora vejo por que
tive de esperar tanto. O livro não poderia ser feito enquanto o
homem certo não aparecesse. Você pertence a este lugar aqui. Tem
a alma deste velho litoral norte. É a única pessoa que poderia
escrever esse livro.
Ficou combinado que o pequeno cômodo ao lado da sala de estar
do farol seria o escritório de Owen. Era necessário que o capitão
Jim estivesse por perto enquanto o livro fosse escrito, pois teria de
ser consultado a respeito da navegação marítima e das tradições do
golfo, assuntos que Owen ignorava completamente.
Já no dia seguinte Owen começou a escrever, tendo se dedicado
completamente ao trabalho. E o capitão Jim foi muito feliz naquele
verão; olhava sempre com adoração para o pequeno escritório,
como se fosse um local sagrado. Owen conversava com ele sobre
todas as histórias, mas nunca o deixava ver o manuscrito.
– O senhor vai ter de esperar até que ele seja publicado – dizia. –
Então vai tê-lo pronto em suas mãos, imediatamente e em seu
melhor formato.
O escritor examinou minuciosa e pacientemente todos os
tesouros contidos no livro da vida do capitão e usou-os livremente.
Imaginou e sonhou com Margaret desaparecida até ela se tornar
nítida e real para ele e reviver em suas páginas. Quanto mais o livro
progredia, mais ele se apoderava de Owen, que trabalhava com um
empenho desmedido. Anne e Leslie tinham permissão para ler e
criticar o manuscrito; e o último capítulo do livro – que
posteriormente os críticos gostaram de descrever como idílico – foi
desenvolvido a partir de uma sugestão de Leslie.
Anne ficou bastante orgulhosa de si mesma por causa do
sucesso de sua ideia.
– Quando vi Owen Ford, eu soube que ele era a pessoa certa
para fazer isso – disse a Gilbert. – Tanto o humor quanto a
sensibilidade estavam evidentes em sua fisionomia, e isso, junto
com o talento para se expressar, era exatamente o necessário para
escrever um livro como esse. Como diria a senhora Rachel, ele
estava predestinado a isso.
Owen Ford trabalhava durante as manhãs. As tardes eram
geralmente dedicadas a passeios divertidos com os Blythe. Leslie
costumava ir com eles, pois o capitão Jim se encarregava
frequentemente de ficar com Dick para deixá-la livre. Navegavam na
região do porto e nos três belos rios que desaguavam ali perto;
faziam piqueniques de frutos do mar na praia e nas pedras; colhiam
morangos nas dunas de areia; saíam para pescar bacalhau com o
capitão Jim; e – pelo menos os homens – caçavam patos selvagens,
entre outras aves, na enseada e seus arredores.
À noite, perambulavam pelos campos litorâneos cobertos de
margaridas, sob uma lua dourada, ou sentavam-se na sala de estar
da pequena casa, onde muitas vezes o frescor da brisa do mar
justificava um fogo aconchegante na lareira, e conversavam sobre
as mil e uma coisas que jovens felizes, animados e inteligentes
sempre podem encontrar para falar.
Desde o dia em que fez sua confissão a Anne, Leslie tinha se
tornado uma pessoa diferente. Não havia mais resquícios nem
sombras da frieza, do distanciamento e da amargura anteriores. A
juventude que lhe havia sido roubada pareceu ter voltado para
conviver em perfeita sintonia com sua maturidade. Leslie
desabrochou como uma flor repleta de calor e perfume; nenhuma
risada era mais imediata que a dela, nenhuma vivacidade, mais ágil,
nas reuniões durante os crepúsculos daquele verão encantado.
Quando ela não podia estar com os outros, eles sentiam que faltava
um tempero especial em suas conversas. Sua beleza estava
iluminada pela alma que havia despertado em seu interior, como
uma lâmpada rosada brilharia através de um primoroso vaso de
alabastro. Havia horas em que os olhos de Anne pareciam doer com
o esplendor de Leslie.
Quanto a Owen Ford, a “Margaret” de seu livro – embora tivesse
o cabelo castanho macio e o rosto angelical da garota que havia
desaparecido tanto tempo atrás, e certamente estaria “repousando
onde dorme a Atlântida perdida” – tinha a personalidade de Leslie
Moore, tal como se revelou a ele naqueles dias felizes em Four
Winds Harbor.
Resumindo, foi um verão inesquecível; um daqueles verões que
raramente encantam a vida de alguém, mas que, quando isso
acontece, deixam uma herança rica de belas e preciosas memórias;
um daqueles verões que, em uma combinação primorosa de clima
agradável, amigos adoráveis e atividades deliciosas, chegam o mais
perto da perfeição possível neste mundo.
– Bom demais para durar eternamente – disse Anne a si mesma,
com um pequeno suspiro, no dia de setembro em que certo sopro
do vento e um tom de azul intenso nas águas do golfo indicavam
que o outono estava muito próximo.
Nesse mesmo dia, Owen comunicou a todos que havia terminado
o livro e que suas férias acabavam ali.
– Ainda tenho muito a fazer com ele: revisar, eliminar ou modificar
algumas coisas, e assim por diante – explicou –, mas o mais
importante está pronto. Escrevi a última frase hoje de manhã. Se eu
conseguir encontrar um editor interessado, é provável que o livro
saia no próximo verão ou, o mais tardar, no outono seguinte.
Owen não tinha muitas dúvidas de que encontraria um bom
editor. Sabia que havia criado um livro maravilhoso, um livro que
faria um grande sucesso, que chegaria para ficar e lhe traria fama e
fortuna. Entretanto, no momento em que acabou de escrever a
última linha, o escritor pôs a cabeça sobre o manuscrito e ficou
assim por um longo tempo. Porém, seus pensamentos não eram
sobre o ótimo trabalho que havia feito.
I
nfelizmente Gilbert não está em casa – Anne falou. – Teve de
sair. Allen Lyons, de Glen, teve um acidente sério. É provável
que Gilbert demore bastante a voltar para casa. Contudo, me pediu
para lhe dizer que vai estar de pé bem cedo, amanhã, para se
despedir de você. É uma grande pena, pois Susan e eu havíamos
preparado uma pequena e adorável festa de despedida para sua
última noite em Four Winds.
Ela estava sentada perto do riacho, no jardim, em um pequeno
banco rústico que Gilbert tinha feito. Owen Ford estava diante dela,
encostado no tronco de uma bétula amarela que parecia feito de
bronze. Estava muito pálido, e seu rosto trazia as marcas da noite
sem dormir. Olhando para ele, Anne se perguntou se, afinal, o verão
havia trazido ao jornalista a força de que precisava. Será que ele
havia trabalhado duro demais em seu livro? Ela se lembrou de que
já fazia uma semana que ele não parecia estar realmente bem.
– Fico contente em saber que o doutor não está – admitiu Owen
lentamente. – Desejava vê-la a sós, senhora Blythe. Existe algo que
preciso contar a alguém, senão acho que vou enlouquecer. Faz uma
semana que venho tentando enfrentar isso, sem obter nenhum
êxito. Sei que posso confiar na senhora e que, além do mais, vai me
entender. Uma mulher com olhos como os seus sempre
compreende. A senhora é uma daquelas pessoas a quem contamos
as coisas instintivamente. Senhora Blythe, estou apaixonado por
Leslie. Eu a amo! E essa ainda parece uma palavra fraca para
expressar meu sentimento por ela!
Após declarar a paixão reprimida, a voz de Owen se calou
subitamente. Ele virou a cabeça e tampou o rosto com o braço. Todo
o seu corpo tremia. Pálida e perplexa, Anne ficou olhando para o
rapaz. Isso nunca havia passado por sua cabeça. Como é que
nunca tinha pensado nessa possibilidade? Agora tudo parecia tão
natural e inevitável! Ela se surpreendeu com a própria cegueira.
Entretanto... entretanto, coisas como essa não deveriam acontecer
em Four Winds. Em qualquer outro lugar do mundo as paixões
humanas poderiam desafiar as convenções e leis humanas, mas,
com certeza, não ali. Além disso, Leslie havia mantido pensionistas
de verão intermitentes por dez anos, e nada semelhante havia
ocorrido. Porém, era possível que eles não fossem como Owen
Ford; e, sem dúvida nenhuma, a vívida e encantadora Leslie desse
verão não era a mesma garota fria e taciturna dos anos anteriores.
Alguém deveria ter pensado nisso! Por que a senhorita Cornelia não
imaginou algo pelo menos parecido? Ela estava sempre
suficientemente pronta para acionar o alarme quando o assunto
eram os homens. Anne sentiu um rancor irracional contra a
senhorita Cornelia. Em seguida, soltou um gemido baixinho.
Não importava de quem era a culpa: o mal estava feito. E Leslie?
E quanto a Leslie? Foi com a amiga que Anne ficou mais
preocupada.
– Leslie sabe disso, senhor Ford? – perguntou em voz baixa.
– Não! Não, a não ser que tenha intuído. Obviamente, a senhora
não acha que eu seria deliberadamente desrespeitoso e canalha o
bastante para dizer a ela, acha? Não pude evitar meu amor... a
verdade é essa. E meu sofrimento tem sido maior do que posso
suportar.
– Ela corresponde a esse sentimento? – Anne perguntou.
No mesmo instante em que a pergunta atravessou seus lábios,
sentiu que não deveria tê-la feito. Owen Ford respondeu com um
protesto veemente:
– Não. Não mesmo. É lógico que não! Mas eu poderia conquistar
seu coração, se ela fosse livre. Sei que poderia.
“Ela o ama e ele sabe disso”, pensou Anne. Em voz alta, disse,
solidária mas com firmeza:
– Contudo, ela não é livre, senhor Ford. E a única coisa que o
senhor pode fazer é ir embora em silêncio e deixá-la levar sua vida.
– Eu sei... Eu sei – lamentou Owen.
Então ele se sentou na margem gramada do riacho e olhou
fixamente para a água cor de âmbar à sua frente.
– Sei que não há mais nada a fazer; nada exceto dizer-lhe
convencionalmente: “Adeus, senhora Moore. Obrigado por toda a
gentileza com que me recebeu neste verão”, exatamente como eu
falaria com a dona de casa rechonchuda, agitada e perspicaz que
eu esperava quando cheguei. Depois, vou pagar o que devo por
minha hospedagem, como qualquer pensionista faria, e partir. Oh, é
tudo muito simples! Sem dúvidas, sem perplexidade... Um caminho
direto para o fim do mundo. Mas vou percorrê-lo; não precisa ter
receio, senhora Blythe. Apenas seria mais fácil caminhar sobre uma
lâmina de arado em brasa.
Anne se emocionou com a dor na voz dele. Havia muito pouco a
ser dito que fosse adequado àquela situação. Culpá-lo estava fora
de questão; aconselhá-lo não era necessário: só poderia solidarizar-
se, sentir-se, como ele, em um labirinto de angústia e compaixão.
Seu coração doía por Leslie. A pobre garota já não sofria demais
para ainda ter de passar por isso?
– Não seria tão doloroso ir embora e deixá-la se pelo menos ela
fosse feliz – Owen prosseguiu, inconformado. – Mas sabendo de
sua morte em vida; compreendendo o que ela vai ter de enfrentar
todos os dias... isso é o pior de tudo. Eu daria minha própria vida
para fazê-la feliz; no entanto, não posso fazer nada para ajudá-la.
Nada! Ela está ligada para sempre àquele pobre infeliz, sem
nenhuma expectativa para o futuro senão envelhecer em uma
sucessão de anos vazios, difíceis e sem sentido. Fico louco só de
pensar nisso. Devo seguir minha vida sem nunca mais vê-la, mas
sempre sabendo o que ela suporta a cada dia. É horrível! Horrível!
– É muito ruim – Anne concordou tristemente. – Nós, os amigos
dela aqui de Four Winds, todos sabemos o quanto é difícil para ela.
– E Leslie poderia ter uma vida tão intensa! – Owen exclamou,
revoltado. – A beleza é seu menor dote, mas ainda assim ela é a
mulher mais linda que já conheci. Ah, aquela risada! Fiz tudo o que
pude durante o verão para provocar aquela risada, apenas pelo
prazer de ouvi-la. E seus olhos? São azuis e fascinantes como o
golfo ali fora. Nunca vi um azul como aquele – e dourado! Já viu o
cabelo dela solto, senhora Blythe?
– Não.
– Eu vi uma vez. Tinha ido ao pontal, para pescar com o capitão
Jim, mas o clima não estava favorável, por isso voltei para casa. Ela
havia pensado que ficaria a tarde toda a sós e aproveitado a
oportunidade para lavá-lo. Quando cheguei, ela estava em pé na
varanda secando-o ao sol. Ele caía sobre seu corpo e chegava até
os pés, como se fosse uma cascata de fios reluzentes de ouro.
Quando Leslie me viu, entrou apressada, e o vento enrolou o cabelo
ao seu redor. Aquela visão me trouxe à memória Dânae e sua
nuvem.******** De alguma forma, exatamente naquele momento me dei
conta de que a amava e compreendi que havia me apaixonado por
ela na primeira vez em que a vi, em meio à escuridão, com um
facho de luz amarela por trás, mostrando apenas sua silhueta.
Agora vou partir e ela tem de ficar aqui, cuidando de Dick e
acalmando-o, enfrentando dificuldades e economizando para
sobreviver. Vou passar minha vida ansiando em vão por ela, e
impedido, por isso mesmo, de pelo menos lhe dar a pequena ajuda
que um amigo poderia oferecer. Caminhei pela praia ontem à noite,
quase até o amanhecer, e refleti muito sobre tudo isso. Sabe,
apesar de tudo, não consigo encontrar em meu coração nenhum
arrependimento por ter vindo passar essa temporada em Four
Winds. Sinto que, por pior que sejam as coisas, seria ainda mais
horrível nunca ter conhecido Leslie. Amá-la e ter de deixá-la é algo
que me causa uma dor lancinante, mas não ter me apaixonado por
ela é impensável. Suponho que tudo isso parece uma grande
loucura. Todas essas emoções ruins sempre soam verdadeiramente
insensatas quando as expressamos com nossas palavras
inadequadas. Elas não existem para ser ditas, e sim apenas
sentidas e suportadas. Eu não deveria ter falado nada com a
senhora, no entanto, desabafar me ajudou... um pouco. Pelo menos,
me deu força para ir embora amanhã pela manhã, respeitosamente,
sem fazer nenhuma cena. Vai me escrever de vez em quando e me
dar notícias dela, não vai, senhora Blythe?
– Claro que sim – disse Anne. – Lamento que esteja indo embora.
Vamos sentir muito a sua falta. Todos nós temos sido tão amigos!
Se não fosse por esse impedimento, o senhor poderia voltar em
outros verões. Quem sabe, quando tiver esquecido essa paixão...
– Nunca vou esquecê-la e jamais voltarei a Four Winds – Owen
afirmou sucintamente.
O silêncio e o crepúsculo pousaram sobre o jardim. A distância, o
mar lambia, suave e monotonamente, a areia. O vento do fim do dia
soprava sobre os álamos, soando como uma melodia triste,
estranha; algum sonho desfeito, memórias antigas... Um álamo
jovem, esguio e formoso se erguia diante deles contrastando com os
tons de amarelo, verde-esmeralda e rosa-pálido do céu a oeste, que
conferiam a cada ramo e folha um contorno trêmulo, mágico e
fascinante.
– Isso não é lindo? – disse Owen, apontando para o álamo, com
o ar de um homem que põe um ponto final em uma conversa.
– É tão bonito que dói em mim – Anne falou docemente. – Coisas
perfeitas como esta sempre me provocaram dor. Eu me lembro de
que costumava chamá-la de “dor estranha” quando era criança. Por
que será que esse tipo de dor parece inseparável da perfeição?
Seria essa a dor da finalização que sentimos quando entendemos
que não existe nada melhor e a única opção é o retrocesso?
– Talvez – respondeu Owen sonhadoramente. – É o infinito
aprisionado em nós clamando por um infinito irmão, que está
nitidamente visível naquela perfeição.
– Parece que o senhor está resfriado. É melhor esfregar um
pouco de sebo no nariz quando for para a cama – disse a senhorita
Cornelia, que havia entrado pelo pequeno portão entre os abetos a
tempo de ouvir o último comentário de Owen.
A senhorita Cornelia gostava dele, mas para ela era uma questão
de princípios retribuir com desdém qualquer fala pomposa que
viesse de um homem; ela personificava a comédia que está sempre
à espreita nas tragédias da vida. Anne, cujos nervos estavam à flor
da pele, riu histericamente, e até mesmo Owen abriu um sorriso.
Sem dúvida, as grandes emoções e paixões costumavam sumir de
vista na presença da senhorita Cornelia. Portanto, para Anne nada
parecia mais tão desesperador, sombrio e doloroso como tinha sido
momentos antes. Porém, o sono ficou longe dela naquela noite.
O
wen Ford foi embora de Four Winds na manhã seguinte. No
fim da tarde, Anne foi visitar Leslie, mas não encontrou
ninguém. As portas estavam trancadas, e não havia luz em
nenhuma janela. Parecia uma casa sem alma. E Leslie não foi vê-la
no dia seguinte, o que Anne achou um mau sinal.
Como Gilbert iria à enseada de pesca, decidiu ir com ele até o
pontal, a fim de ficar algum tempo com o capitão Jim. Mas o grande
farol, com suas faixas de luz atravessando a névoa da noite de
outono, estava aos cuidados de Alec Boyd, pois o capitão Jim havia
saído.
– O que vai fazer? – perguntou Gilbert. – Quer vir comigo?
– Não, quero ir à enseada. Mas vou atravessar o canal com você
e caminhar perto da barreira de dunas até sua volta. O litoral
rochoso está muito escorregadio e sombrio hoje.
Sozinha na areia, Anne se rendeu ao encanto enigmático da
noite. O clima estava quente para setembro, e o anoitecer tinha sido
bastante nebuloso. Contudo, a lua cheia havia amenizado um pouco
a névoa e transformado o porto, o golfo e seus arredores em um
mundo estranho, fantástico e irreal, pálido de névoa prateada, no
qual tudo parecia fantasmagórico. A escuna preta do capitão Josiah
Crawford, navegando pelo canal carregada de batatas para os
portos de Bluenose, era um navio espectral rumo a uma terra
desconhecida e inalcançável. Os gritos das gaivotas invisíveis no
céu eram lamentos das almas de marinheiros amaldiçoados. As
pequenas porções de espuma que chegavam à areia eram elfos
vindos das grutas no fundo do mar. As grandes e arredondadas
dunas de areia eram os gigantes adormecidos de alguma lenda
nórdica. As luzes que tremeluziam pálidas do outro lado do porto
eram faróis ilusórios em algum litoral da terra das fadas.
Anne se divertia com uma centena de fantasias enquanto
caminhava em meio à névoa. Era adorável, romântico, misterioso
vagar a sós ali, naquela costa encantada. Mas... estava mesmo
sozinha? Subitamente, algo surgiu diante dela, tomou forma e veio
em sua direção, andando sobre a areia molhada pelas ondas.
– Leslie! – exclamou Anne, espantada. – O que está fazendo aqui
a esta hora?
– Ora, se a pergunta é essa, eu a devolvo: o que é que você está
fazendo aqui? – disse Leslie, tentando rir.
Porém, o esforço foi em vão. Ela estava muito pálida e parecia
cansada, embora os cachos adoráveis de seu cabelo sob o gorro
vermelho enfeitassem seu rosto como pequenos e reluzentes anéis
de ouro.
– Esperando Gilbert... Ele está na enseada. Eu tinha a intenção
de ficar no farol, mas o capitão Jim não estava lá.
– Bem, eu vim aqui porque desejava caminhar... caminhar... e
caminhar – disse Leslie, agitada. – Não poderia fazer isso no litoral
rochoso, pois a maré estava muito alta e as pedras me
aprisionariam. Tive de vir para cá... ou enlouqueceria, acho.
Atravessei o canal a remo, no barco do capitão Jim. Faz uma hora
que estou aqui. Venha, venha comigo, vamos caminhar. Não
consigo ficar parada. Oh, Anne!
– Leslie, querida, qual é o problema? – Anne perguntou, apesar
de já saber muito bem o que estava acontecendo.
– Não posso lhe dizer. Não me pergunte. Eu não me importaria se
você soubesse. Na verdade, eu queria que você soubesse, mas não
posso lhe dizer. Não posso contar a ninguém. Tenho sido tão tola,
Anne! E dói terrivelmente ser boba assim... Não há nada tão
doloroso no mundo.
Leslie riu amargamente. Anne pôs o braço em torno dos ombros
da amiga.
– Leslie, está se referindo ao fato de ter se apaixonado pelo
senhor Ford?
A moça se virou imediatamente.
– Como sabe disso?! – exclamou. – Anne, como você soube
disso? Está escrito em meu rosto para qualquer pessoa ver? É tão
óbvio assim?
– Não, não. Eu... eu não posso lhe dizer como soube. De algum
modo, isso veio à minha mente. Leslie, não me olhe assim!
– Você me despreza? – indagou Leslie em um tom de voz baixo e
impetuoso. – Você me acha má... uma mulher indigna? Ou pensa
que sou simplesmente uma grande boba?
– Não acho nada disso. Venha, querida, vamos conversar
sensatamente sobre isso, como falaríamos a respeito de qualquer
outra das grandes crises que fazem parte da vida. Você tem se
afligido com essa situação e se deixado levar por uma visão
mórbida do assunto. Possui uma tendência a fazer isso com tudo o
que dá errado e já me prometeu que lutaria contra ela.
– Mas... ah, é tão... tão vergonhoso – Leslie murmurou. – Amá-
lo... sem ter desejado e sem estar livre para amar ninguém.
– Não há nada de vergonhoso nisso. Entretanto, lamento muito
que você tenha aprendido a amar Owen, porque, do jeito que as
coisas são, esse sentimento só vai te deixar mais infeliz.
– Eu não aprendi a amá-lo – protestou Leslie, caminhando
indignada. – Se fosse assim, eu poderia ter evitado. Jamais sonhei
com uma coisa dessas até aquele dia, na semana passada, em que
ele me contou que havia terminado de escrever seu livro e iria
embora brevemente. Naquele momento... naquele momento me dei
conta. Senti como se alguém tivesse me dado um golpe horrível. Eu
não disse nada. Não consegui falar nem imagino com que aparência
fiquei. Tenho tanto medo de meu rosto ter me traído! Morreria de
vergonha se pensasse que ele sabe ou suspeita.
Anne permaneceu tristemente silenciosa, absorta nas deduções
que fez a partir de sua conversa com Owen. Leslie prosseguiu
agitadamente, como se encontrasse alívio na fala.
– Fui tão feliz durante todo o verão, Anne! Mais feliz do que
nunca, em toda a minha vida. Pensei que era porque tudo estava
esclarecido entre você e eu, e que era nossa amizade que fazia com
que a vida parecesse tão bonita e plena outra vez. E realmente
era... em parte... mas não completamente. Havia muito mais que
isso. Agora sei por que tudo ficou tão diferente. Porém, acabou. Ele
se foi. Como vou viver daqui em diante, Anne? Quando entrei em
casa nesta manhã, depois da partida dele, a solidão me atingiu
como uma pancada na cabeça.
– Logo, logo não vai parecer tão difícil assim, querida – murmurou
Anne, que sempre sentia a dor de suas amigas tão intensamente
que nunca conseguia encontrar palavras de consolo; além disso, ela
se lembrava de como os discursos bem-intencionados a magoaram
em sua própria tristeza, e por isso estava insegura sobre o que
deveria dizer.
– Pois minha sensação é de que cada dia vai ser mais doloroso
do que o anterior – Leslie afirmou, desolada. – Não tenho mais
nenhuma expectativa. As manhãs vão se suceder, uma após a
outra, e Owen não vai voltar. Ele nunca mais vai voltar. Oh, quando
penso que nunca mais o verei, sinto como se uma imensa mão
tivesse entrado em meu peito e estivesse arrancando brutalmente
meu coração. Uma vez, muito tempo atrás, sonhei com o amor e
pensei que ele deveria ser um sentimento lindo; no entanto, agora
que o encontrei, é assim... Ao se despedir de mim ontem de manhã,
Owen estava frio e distante. Disse apenas: “Adeus, senhora Moore”,
no tom mais indiferente que se possa imaginar, como se não
tivéssemos sido nem mesmo amigos, como se eu não significasse
absolutamente nada para ele. Sei que não... eu não esperava que
ele se importasse comigo, mas pelo menos poderia ter sido um
pouco mais amável.
“Como eu gostaria que Gilbert chegasse logo”, pensou Anne.
Estava dividida entre a compaixão pela amiga e a necessidade de
evitar qualquer coisa que traísse a confiança de Owen. Sabia por
que o adeus dele tinha sido tão frio; por que não poderia ter a
cordialidade que a boa amizade entre eles exigia. Contudo, não
podia contar nada a Leslie.
– Não pude evitar, Anne... não pude! – lamentou a pobre Leslie.
– Eu sei.
– Você me incrimina horrivelmente?
– Não a culpo por nada.
– E não vai... não vai dizer nada a Gilbert sobre isso, vai?
– Leslie! Você acha que eu faria uma coisa dessas?!
– Ah, não sei. Você e Gilbert são tão íntimos. Não vejo como
poderia deixar de lhe contar tudo.
– Certamente, mas apenas tudo o que diz respeito a mim. Jamais
comentaria os segredos de minhas amigas.
– Acho que não suportaria se ele soubesse. Porém, fico contente
porque você tem conhecimento do que está se passando comigo.
Eu me sentiria culpada se houvesse algo que eu tivesse vergonha
de lhe contar. Espero que a senhorita Cornelia não descubra nada.
Às vezes, me parece que aqueles olhos castanhos espertos e gentis
dela leem até minha alma. Sabe, gostaria que essa névoa nunca se
dissipasse; gostaria de ficar em meio a ela para sempre, escondida
e distante de todos os seres vivos. Não sei como vou viver daqui por
diante. Os dias deste último verão foram tão intensos, quase não
fiquei sozinha. Antes da chegada de Owen, costumava haver
momentos terríveis, sobretudo quando você, Gilbert e eu estávamos
juntos e eu tinha de deixá-los. Vocês dois caminhavam juntos para
sua casa, e eu ia completamente só para a minha. Depois que
Owen veio, ele estava sempre ali para caminhar comigo. Ríamos e
conversávamos da mesma maneira que vocês faziam. Para mim,
não havia mais momentos de solidão e inveja. E agora?! Sim, fui
uma tola. Vamos parar de falar sobre minha insensatez. Nunca mais
vou aborrecê-la com isso novamente.
– Aí vem Gilbert, e você vai voltar conosco – determinou Anne,
que não tinha nenhuma intenção de deixar Leslie perambular
sozinha na barreira de dunas, em uma noite daquelas e com aquele
estado de espírito. – Há espaço de sobra para três pessoas em
nosso barco, e podemos amarrar o outro atrás dele.
– Suponho que tenho de me conformar outra vez em ser a intrusa
– lastimou a pobre Leslie, com mais uma risada amarga. – Perdão,
Anne, isso foi detestável. Eu deveria estar grata... e estou... por ter
dois bons amigos que se alegram em me ter ao seu lado. Não dê
importância a minhas falas odiosas. É que estou sentindo uma dor
muito grande e tudo me machuca.
– Leslie me pareceu muito triste esta noite – disse Gilbert quando
ele e Anne já estavam em casa. Afinal, o que ela estava fazendo
sozinha naquele lugar?
– Oh, ela estava cansada, e você sabe que ela gosta de andar na
praia depois de um dos dias ruins de Dick.
– É uma pena ela não ter conhecido e se casado há muito tempo
com um sujeito como Ford – Gilbert comentou. – Eles teriam
formado um casal perfeito, não acha?
– Por favor, Gilbert, não se torne um casamenteiro. É uma
profissão abominável para um homem! – exclamou Anne de forma
bastante severa, temendo que ele acabasse descobrindo a verdade.
– Fique calma, Anne, não estou planejando nada – protestou
Gilbert, bastante surpreso com o tom de voz da esposa. – Estava
somente pensando em um caso de “poderia ter sido”.
– Bem, não pense nisso, é perda de tempo – ela falou; em
seguida acrescentou: – Ah, Gilbert, queria tanto que todos
pudessem ser felizes como nós!
E
stava lendo o obituário – disse a senhorita Cornelia, pondo
de lado o jornal Daily Enterprise e retomando sua costura.
O porto estava escuro e solitário sob um céu pesado de
novembro; as folhas mortas grudavam, encharcadas, no parapeito
das janelas. No entanto, a pequena casa branca estava alegre,
iluminada pelo fogo e colorida pelas samambaias e os gerânios de
Anne, que lhe davam um ar de primavera.
– Parece que é sempre verão aqui, Anne – Leslie havia
comentado um dia; e todos os que frequentavam aquela casa dos
sonhos também tinham essa sensação.
– Acho que ultimamente o Enterprise está registrando todos os
óbitos – disse a senhorita Cornelia. – Sempre há algumas colunas
com informações sobre eles, e eu leio tudo, linha por linha. É uma
de minhas diversões, especialmente quando existe algum poema
original junto com elas. Aqui está um exemplo para vocês:
Estará com o Criador eternamente
e nunca mais por aqui vai vagar
nem brincar e cantar alegremente
a doce canção do lar, doce lar.
Quem foi que disse que não temos nenhum talento poético aqui
na ilha?! Já reparou como é grande a quantidade de gente boa que
morre, querida Anne? Chega a ser deplorável. Há dez obituários
aqui, e todos eles são de pessoas santas, com conduta exemplar;
até mesmo os homens. Ouçam o que está escrito sobre o velho
Peter Stimson: “Deixa um amplo círculo de amigos para lamentar
sua partida prematura”. Jesus, aquele homem tinha oitenta anos, e
todos os que o conheciam desejavam sua morte há trinta! Leia
obituários quando estiver triste, Anne; sobretudo o de gente que
conheceu. Se você tiver um mínimo que seja de senso de humor,
eles vão alegrá-la, acredite em mim. Como eu queria poder escrever
o obituário de algumas pessoas! A propósito, “obituário” não é uma
palavra horrorosa? Esse Peter mesmo que acabei de mencionar
tinha cara de um “obituário”. Sempre que eu olhava para ele, essa
palavra logo me vinha à mente. Só conheço uma palavra mais feia
que essa: “viúva”. Jesus, Anne, posso ser uma solteirona, mas há
um conforto nisso: nunca vou ser “viúva” de nenhum homem.
– É realmente uma palavra feia – Anne concordou, rindo. – O
cemitério de Avonlea está cheio de lápides antigas consagradas “à
memória de Fulana de Tal, ‘viúva’ do falecido Sicrano de Tal”. Isso
sempre me fazia pensar em algo desgastado e comido por traças.
Por que será que grande parte das palavras ligadas à morte são tão
desagradáveis? Eu queria muito que o costume de se referir ao
corpo de alguém que faleceu como “restos mortais” fosse abolido.
Eu literalmente estremeço toda vez que escuto em um funeral:
“Todos os que desejam ver os restos mortais devem vir por aqui, por
favor”. Sempre me dá a impressão horrível de que estou prestes a
ver uma cena de banquete canibal.
– Bem, só espero que – disse calmamente a senhorita Cornelia –
quando eu morrer ninguém me chame de “nossa finada irmã”.
Adquiri uma verdadeira aversão a essa história de “irmãos e irmãs”
cinco anos atrás, quando houve um evangelista promovendo
encontros em Glen. Antipatizei com ele desde o começo. Senti que
tinha alguma coisa errada nele. E tinha mesmo. Imaginem que ele
estava fingindo ser presbiteriano... presbitiriano, dizia. Pois bem, era
metodista o tempo todo! E chamava todo mundo de irmão e irmã. E
tinha um círculo bem grande de amigos, aquele homem tinha! Certa
noite, ele agarrou minha mão fervorosamente e disse, em tom de
súplica: “Minha querida irmã Bryant, você é cristã?”. Eu
simplesmente o encarei por alguns instantes, depois respondi
tranquilamente: “O único irmão que tive, senhor Fiske, foi sepultado
quinze anos atrás, e desde então não adotei nenhum. Quanto a ser
cristã, sou, espero e creio, desde que o senhor ainda engatinhava
pelo chão e usava fraldas”. Aquilo o silenciou imediatamente,
acredite em mim. Entenda, Anne, não sou contra todos os
evangelistas. Tivemos alguns por aqui que eram homens realmente
sérios e honestos, que praticavam o bem e fizeram velhos
pecadores se contorcerem de arrependimento. Mas aquele Fiske
não era um deles. Houve um dia também em que dei boas risadas
comigo mesma. Fiske tinha pedido que todos os cristãos ficassem
de pé. Não fiquei, acredite em mim. Nunca dei valor para esse tipo
de coisa. Porém, a maioria das pessoas se levantou, e em seguida
ele solicitou que quem quisesse se tornar cristão que ficasse de pé.
Como ninguém se mexeu por algum tempo, ele começou a entoar
um hino no tom mais alto que sua voz permitia. O pobre e pequeno
Ilkey Baker estava sentado bem à minha frente, no banco dos
Millison. Era um garoto de dez anos apenas, mas já empregado de
Millison, que quase o matava de tanto trabalhar. A pobre criaturinha
estava sempre tão cansada, que adormecia imediatamente sempre
que ia à igreja ou a qualquer lugar onde pudesse ficar sentado por
alguns minutos. Até aquele momento, Ilkey tinha dormido durante
toda a reunião, e eu estava grata por ver a pobre criança
descansando, acredite em mim. Bem, quando a voz de Fiske atingiu
seu volume máximo e todos se juntaram a ele, o pobre Ilkey
acordou sobressaltado e pensou que era apenas um canto comum e
que todos deveriam se levantar. Então ele ficou de pé rapidamente,
sabendo que receberia um castigo de Maria Millison por dormir em
um culto. Quando Fiske o viu, parou de cantar e gritou: “Outra alma
salva! Glória! Aleluia!”. E lá estava o pobre e assustado Ilkey,
apenas meio acordado e bocejando, sem sequer se lembrar de que
possuía uma alma. Coitadinho, nunca tinha tempo para pensar em
nada a não ser seu corpinho sobrecarregado e exausto. Leslie foi a
uma dessas reuniões uma vez e Fiske logo se interessou por ela;
afinal, ele era especialmente preocupado com as almas das moças
bonitas, acredite em mim. No entanto, ele feriu os sentimentos dela,
e Leslie nunca mais voltou lá. Daí em diante, Fiske orou todas as
noites, em público, para que o Senhor abrandasse seu coração de
pedra. Por fim, procurei o senhor Leavitt, nosso pastor na época, e
lhe disse que, se ele não convencesse Fiske a parar de fazer aquilo,
eu iria simplesmente me levantar na noite seguinte e jogar meu livro
de hinos sobre aquele homem quando ele mencionasse “aquela
jovem bela, porém impenitente”. Eu teria mesmo feito isso, acredite
em mim. Felizmente o senhor Leavitt pôs um fim naquilo, mas Fiske
continuou com suas reuniões até que Charley Douglas encerrou sua
carreira em Glen. A senhora Charley havia passado todo o inverno
na Califórnia. Tinha ficado bastante melancólica no outono;
melancolia religiosa, muito frequente na família dela. O pai de Rose,
por exemplo, se afligiu tanto com a crença de que havia cometido
um pecado imperdoável que acabou morrendo no manicômio.
Então, quando ela ficou naquele estado, Charley a levou para visitar
a irmã em Los Angeles. Lá ela se recuperou perfeitamente bem e
voltou para casa exatamente quando as pregações de Fiske
estavam no auge. Rose desceu alegre e sorridente do trem em
Glen, e a primeira coisa que viu diante dela, na fachada preta do
galpão de cargas, foi uma pergunta em letras brancas, com
sessenta centímetros de altura: “Para onde vais: para o céu ou para
o inferno?”. Tinha sido uma das ideias de Fiske, que pedira a Henry
Hammond para pintá-la. Rose deu um grito esganiçado e desmaiou.
E quando ela voltou a si, já em casa, estava pior do que nunca.
Então Charley Douglas procurou o senhor Leavitt e lhe disse que
todos os Douglas abandonariam a igreja se Fiske continuasse na
região por mais tempo. Diante disso, o pastor teve de tomar uma
atitude, pois a família Douglas pagava metade de seu salário. Sendo
assim Fiske foi embora, e tivemos de depender de nossas Bíblias
novamente para obter instruções sobre como chegar ao céu. Depois
de sua partida, o senhor Leavitt descobriu que Fiske era nada mais,
nada menos que um metodista disfarçado. O pastor se sentiu muito
mal com tudo isso, acredite em mim. É verdade que o senhor Leavitt
falhou em alguns aspectos, mas ele era um bom e sólido
presbiteriano.
– Oh, quase me esqueço de dizer que recebi uma carta do
senhor Ford ontem – Anne falou. – Ele me pediu para lhe mandar as
mais sinceras lembranças.
– Não quero nenhuma lembrança dele – a senhorita Cornelia
respondeu curta e secamente.
– Por quê? – Anne indagou, admirada. – Pensei que gostasse
dele.
– Sim, eu gostava de certa forma. Mas nunca vou perdoá-lo pelo
que fez com Leslie. Lá está a pobre criança se debulhando em
lágrimas por causa dele, como se já não tivesse problemas em
excesso. E não tenho dúvidas de que, enquanto isso, Owen Ford
está passeando e se divertindo em Toronto, como sempre. Uma
atitude típica dos homens!
– Oh, senhorita Cornelia, como soube?
– Cristo, Anne! Tenho olhos, não tenho? Conheço Leslie desde
que era um bebê. Há um novo tipo de tristeza em seus olhos neste
outono, e sei que aquele homem, aquele escritor, está por trás
disso, de alguma forma. Jamais vou me perdoar por ter participação
na hospedagem dele aqui. Ora, nunca esperei que ele fosse assim.
Achei que era como os outros homens que Leslie já hospedou:
jovens idiotas e convencidos, todos eles, pelos quais ela nunca teve
nenhum interesse. Um deles tentou flertar com ela uma vez, e ela o
tratou com tanta frieza que tenho certeza de que ele não se refez do
susto até hoje. Por isso nunca pensei em nenhum perigo.
– Não deixe Leslie suspeitar que a senhorita conhece o segredo
dela – pediu Anne, ansiosa. – Acho que ficaria chateada.
– Confie em mim, Anne, eu não nasci ontem. Oh, que se danem
todos os homens! Primeiro, um deles arruinou a vida de Leslie; e
agora vem outro da tribo e a torna ainda mais infeliz. Anne, este
mundo é um lugar terrível, acredite em mim.
– Há no mundo algo errado
que logo será decifrado,********
Anne citou sonhadoramente.
– Só se for em um mundo onde não há nenhum homem –
retrucou a senhorita Cornelia, sombria.
– O que foi que os homens fizeram dessa vez? – perguntou
Gilbert, entrando na sala.
– Maldade... Maldade! O que mais eles fazem?
– Foi Eva que comeu a maçã, senhorita Cornelia.
– Mas foi ele, um homem, que a tentou – respondeu a senhorita
Cornelia, triunfante.
Depois que a angústia inicial passou, Leslie descobriu que era
possível continuar vivendo; afinal, é o que acontece com a maioria
de nós, não importa qual tenha sido nosso tormento particular. E é
possível que ela tenha até se divertido nos momentos em que fez
parte do alegre círculo de amigos na pequena casa dos sonhos.
Mas, se Anne esperava que Leslie se esquecesse de Owen Ford, a
fome furtiva nos olhos da amiga sempre que o nome do escritor era
mencionado não a deixou, em momento algum, acreditar que ele
estava mesmo saindo do coração dela. Solidária com essa fome,
Anne sempre encontrava uma oportunidade para contar ao capitão
Jim ou a Gilbert, quando Leslie estava com eles, alguma novidade
que havia lido nas cartas de Owen. O rubor e a palidez da garota
nesses momentos falavam com muita eloquência da emoção que
tomava conta de seu ser. Mas ela nunca mais se referiu ao escritor
nas conversas com Anne, nem mencionou aquela noite na barreira
de dunas de areia.
Um dia, o velho cão de Leslie morreu, e ela sofreu amargamente
pela perda.
– Ele foi meu companheiro por tanto tempo – disse tristemente a
Anne. – Era o cachorro de Dick, você sabe. Quando nos casamos,
Dick já o tinha fazia um ano ou pouco mais. Ele o deixou comigo
quando partiu no Four Sisters. Carlo gostava muito de mim, e seu
amor me ajudou durante aquele primeiro ano terrível após a morte
de minha mãe, pois fiquei completamente sozinha. Quando soube
que Dick voltaria, tive medo de que Carlo não fosse mais tão meu.
Mas ele nunca pareceu se importar com Dick, embora gostasse
muito dele antes da viagem. Ele latia e rosnava para meu marido
como se ele fosse um estranho. Fiquei contente com isso. Era bom
ter algo cujo amor era todo meu. Aquele velho cão me confortava
tanto, Anne! O coitado ficou tão fraco no outono que pensei que não
viveria muito tempo mais. Mesmo assim, acreditei que pudesse
tratá-lo durante o inverno. Carlo parecia tão bem hoje de manhã!
Estava deitado no tapete diante do fogo da lareira. De repente se
levantou e se aproximou de mim, colocou a cabeça no meu colo e
me lançou um olhar amoroso com aqueles olhos grandes e suaves;
em seguida, estremeceu e morreu. Vou sentir muito a sua falta.
– Permita que eu lhe dê outro cão, Leslie – pediu Anne. – Estou
comprando um adorável setter gordon para dar a Gilbert como
presente de Natal. Deixe-me dar um a você também.
Leslie balançou a cabeça.
– Agora não, Anne, obrigada. Ainda não sinto vontade de ter
outro cachorro. Acho que não me restou nenhuma afeição para
dedicar a outro, por enquanto. Talvez daqui a algum tempo eu
queira que você me dê um. Na verdade, preciso ter um como
proteção. Mas havia alguma coisa quase humana em Carlo: não
seria correto preencher seu lugar tão apressadamente. Oh, meu
companheiro tão querido...
Anne viajou para Avonlea uma semana antes do Natal e
permaneceu lá até que terminassem os feriados. Gilbert foi buscá-
la, e houve uma alegre celebração de Ano-Novo em Green Gables,
na qual os Barry, os Blythe e os Wright se reuniram e devoraram um
almoço que havia custado à senhora Rachel e a Marilla um
planejamento cuidadoso e uma preparação primorosa.
Quando Anne e Gilbert voltaram para Four Winds, a pequena
casa branca estava quase encoberta pela neve, pois a terceira
nevasca de um inverno que se revelaria extraordinariamente
tempestuoso havia causado danos no porto e formado montes de
neve enormes em todos os lugares onde caiu. Porém, o capitão Jim
tinha limpado as passagens e desobstruído as janelas, e a senhorita
Cornelia havia gentilmente acendido o fogo na lareira.
– Que bom vê-la de volta, Anne! Já viu uma nevasca
semelhante? Nem é possível enxergar a residência dos Moore, a
não ser do andar de cima. Leslie vai adorar saber que você chegou.
Está quase enterrada viva lá no alto. Felizmente Dick consegue
remover a neve com uma pá e acha que é um trabalho muito
divertido. Susan me mandou um recado avisando que vem amanhã.
Para onde você vai agora, capitão?
– Acho que vou me aventurar pela neve até Glen e ficar um
pouco com o velho Martin Strong. Ele não está longe do fim e se
sente bastante solitário. Martin não tem muitos amigos: esteve
ocupado demais a vida toda e não teve tempo para fazer amizades.
No entanto, fez montes de dinheiro.
– Bem, ele pensou que, já que não poderia servir a Deus e a
Mamon,******** seria melhor se ater a Mamon – disse a senhorita
Cornelia secamente. – Portanto, não deveria reclamar se agora não
encontrar em Mamon uma companhia muito boa.
O capitão Jim saiu, mas quando estava no jardim lembrou-se de
alguma coisa e voltou.
– Recebi uma carta do senhor Ford, senhora Blythe, e ele disse
que o livro da vida foi aceito e vai ser publicado no próximo outono.
Fiquei bastante animado com a notícia. Como é bom pensar que
finalmente vou vê-lo impresso!
– Aquele homem é completamente louco no que se refere a esse
livro de vocês – disse a senhorita Cornelia, compadecida. – Se
querem saber, em minha opinião há livros demais no mundo
atualmente.
G
ilbert pôs de lado o volumoso livro de medicina sobre o qual
havia se debruçado até ser interrompido pela chegada do
crepúsculo. Em seguida recostou-se na cadeira e olhou,
pensativo, para fora da janela. Era o início da primavera,
provavelmente a época menos bonita do ano. Nem mesmo o pôr do
sol podia compensar a paisagem sombria e encharcada nem o gelo
sujo e escuro no porto, para onde ele olhava no momento. Nenhum
sinal de vida era aparente, exceto um grande corvo negro voando
solitário sobre um campo cinzento. Gilbert especulou ociosamente
sobre aquela ave. Teria ele uma família, uma fêmea negra e
atraente esperando-o no bosque para lá de Glen? Ou seria, quem
sabe, um corvo jovem, com penas brilhantes e intenção de flertar?
Ou mesmo um corvo solteiro e descrente, achando que viaja mais
rápido quem voa sozinho? Fosse o que fosse, a ave logo
desapareceu em meio a uma escuridão agradável, e Gilbert se
voltou para uma visão mais alegre dentro da casa dos sonhos.
A luz do fogo cintilava intermitente em todo o cômodo, brilhando
sobre os casacos brancos e verdes de Gog e Magog, a cabeça
marrom e lustrosa do belo cão setter se aquecendo no tapete, as
molduras dos quadros nas paredes, o vaso na janela com narcisos
colhidos no jardim, e Anne, sentada à sua pequena mesa, com a
costura ao lado e as mãos cruzadas sobre os joelhos enquanto
visualizava figuras no fogo: castelos espanhóis cujas torres
perfuravam nuvens iluminadas pela lua e pelos últimos raios do sol
poente, e barcos navegando de Haven of Good Hopes diretamente
para Four Winds Harbor, trazendo cargas preciosas. Anne era
novamente uma grande sonhadora, embora um temor sinistro a
acompanhasse noite e dia, obscurecendo e assombrando suas
fantasias.
Gilbert estava acostumado a se referir a si mesmo como “um
velho homem casado”. Entretanto, ainda via Anne com os olhos
incrédulos de um eterno apaixonado. Ainda não conseguia acreditar
totalmente que ela era mesmo sua. Afinal, tudo poderia ser apenas
um sonho, uma parte integrante daquela mágica casa dos sonhos.
Sua alma ainda pisava em ovos, para que o encanto não fosse
quebrado e o sonho, dissipado.
– Anne – falou lentamente –, preciso falar com você. Quero
conversar sobre uma coisa.
Anne olhou para ele através da penumbra iluminada pelo fogo.
– O que é? – perguntou alegremente. – Você parece
assustadoramente solene, Gilbert. Garanto que não fiz nenhuma
travessura hoje. Pode perguntar a Susan.
– Não é sobre você nem sobre nós que desejo falar. É a respeito
de Dick Moore.
– Dick Moore?! – Anne repetiu, olhando atentamente para ele. –
Ora, mas o que é que você tem a dizer sobre Dick Moore?
– Tenho pensado bastante nele ultimamente. Você se lembra
daquela vez, no verão passado, que tratei aquelas infecções no
pescoço dele?
– Sim, claro.
– Aproveitei a oportunidade para examinar cuidadosamente as
cicatrizes em sua cabeça. Sempre achei que Dick era um caso
muito interessante, do ponto de vista médico. Nos últimos tempos,
tenho estudado uma nova técnica de intervenção cirúrgica no crânio
humano, chamada “trefinação”, e os casos em que ela tem sido
empregada. Anne, cheguei à conclusão de que, se Dick Moore
fosse levado a um bom hospital e essa cirurgia fosse realizada em
vários pontos de sua cabeça, a memória e as faculdades mentais
dele poderiam ser restauradas.
– Gilbert! – a voz de Anne tinha um tom de protesto veemente. –
É claro que você não pretende levar isso adiante!
– Na verdade, pretendo sim. E decidi que é minha obrigação
discutir essa questão com Leslie.
– Gilbert Blythe, você não vai fazer uma coisa dessas! – Anne
exclamou enfaticamente. – Oh, Gilbert, não faça isso... Não faça.
Você não pode ser tão cruel. Prometa que vai mudar de ideia.
– Ora, Anne, não imaginei que você teria essa reação. Seja
sensata...
– Não vou ser sensata... não posso ser sensata... eu sou sensata.
Você é que está sendo irracional. Gilbert! Já pensou ao menos uma
vez o que significaria para Leslie ter Dick em perfeitas condições
mentais novamente? Apenas pare e pense! Ela já é suficientemente
infeliz hoje; ainda assim, a vida como enfermeira e cuidadora de
Dick é mil vezes mais fácil para ela do que uma vida como esposa
dele. Eu sei... Como sei! É impensável. Não se intrometa nesse
assunto. Deixe as coisas como estão.
– Pensei cuidadosamente sobre esse aspecto do caso, Anne.
Porém, acredito que um médico é obrigado a colocar a saúde
mental e corporal de um paciente acima de todas as outras
considerações, não importa quais sejam as consequências. Creio
que é seu dever esforçar-se para restaurar a sanidade do paciente,
se houver alguma esperança disso.
– Mas Dick não é seu paciente nesse aspecto – retrucou Anne,
mudando de estratégia. – Se Leslie tivesse lhe perguntado se há
algo que possa ser feito por ele, então poderia ser sua obrigação
dizer-lhe o que você realmente pensa. Como não foi o que ocorreu,
você não tem o direito de se intrometer.
– Não considero isso uma intromissão. Tio Dave informou Leslie,
doze anos atrás, que nada poderia ser feito por Dick. E é o que ela
acredita, claro.
– Por que tio Dave disse isso a ela, se não era verdade? – Anne
perguntou, triunfante. – Ele não sabe tanto quanto você a esse
respeito?
– Acho que não, embora possa parecer que estou sendo
convencido e presunçoso ao dizer isso. E você sabe tão bem quanto
eu que tio Dave tem um verdadeiro preconceito contra o que ele
chama de “essas técnicas modernosas de cortar e remendar”. Ele
se opõe até mesmo à cirurgia para retirada de apêndice.
– Ele está certo! – exclamou Anne, mudando novamente de
tática. Também acho que vocês, os médicos modernos, são
excessivamente afeiçoados a fazer experiências com o corpo
humano.
– Rhoda Allonby não estaria viva hoje se eu tivesse ficado com
medo de fazer uma experiência – argumentou Gilbert. – Eu corri o
risco e salvei a vida dela.
– Já estou exausta de ouvir sobre Rhoda Allonby – disse Anne,
muito injustamente, pois Gilbert nunca mais havia mencionado
aquela senhora desde o dia em que lhe contou seu sucesso; e ele
não poderia ser culpado pelos comentários das outras pessoas.
Gilbert se sentiu bastante magoado.
– Eu realmente não esperava que você visse as coisas desse
modo, Anne – falou um pouco secamente, levantando-se e
dirigindo-se ao consultório.
Foi a primeira vez que chegaram perto de ter uma briga.
Entretanto, Anne correu atrás dele e o trouxe de volta à sala.
– Gilbert, você não pode sair assim. Sente-se aqui e vou me
desculpar completamente. Eu não deveria ter dito isso. Mas, ah, se
você soubesse...
Anne se controlou bem a tempo. Estava prestes a trair o segredo
de Leslie.
– Se soubesse o que uma mulher sente a respeito disso –
concluiu, sem muita convicção.
– Creio que sei, sim. Analisei o caso por todos os pontos de vista,
e tenho certeza de que é meu dever dizer a Leslie que acredito ser
possível que Dick seja curado; aí termina minha responsabilidade.
Cabe a ela decidir o que fazer.
– Em minha opinião, você não tem o direito de pôr tamanha
responsabilidade nas mãos dela. Leslie já tem muito o que suportar.
Além disso, ela é pobre; como poderia financiar uma cirurgia como
essa?
– Essa é uma decisão dela – retrucou Gilbert teimosamente.
– Você diz que pensa que Dick pode ser curado. Mas tem certeza
disso?
– É claro que não. Ninguém pode ter certeza de uma coisa dessa.
Pode ter havido, no próprio cérebro, lesões cujos efeitos nunca vão
poder ser revertidos. Mas se eu estiver certo, e sua perda de
memória e de outras faculdades se dever meramente a uma
pressão sobre certas áreas do cérebro, ele pode, sim, ser curado.
– Mas é só uma possibilidade! – Anne insistiu. – Suponha que
você conte tudo a Leslie e ela decida pela cirurgia. Vai custar uma
fortuna. Ela vai ter de pedir dinheiro emprestado, ou mesmo vender
sua pequena propriedade. Agora suponha que a operação não seja
bem-sucedida, e Dick permaneça como está. Como Leslie vai pagar
o dinheiro que pegou emprestado, ou sustentar a si mesma e àquela
criatura grande e inútil, se tiver vendido a fazenda?
– Oh, Anne, eu sei... eu sei. Mas é meu dever informá-la da
possibilidade. Não consigo anular essa convicção.
– Sim, conheço a teimosia dos Blythe – lamentou Anne. – Porém,
não assuma essa responsabilidade sozinho. Consulte o tio Dave.
– Já fiz isso – respondeu Gilbert relutantemente.
– E qual é a opinião dele?
– Resumindo, a mesma sua: deixe tudo como está. Além de seu
preconceito contra as práticas “modernosas”, receio que ele encare
o caso pelo mesmo ponto de vista que você: não faça isso, pelo
bem de Leslie.
– Está vendo? – Anne falou triunfalmente. – Eu realmente penso
que você deveria acatar o julgamento de um homem de quase
oitenta anos que já viu muita coisa e salvou dezenas de vidas.
Obviamente, sua opinião deve pesar mais que a de um simples
rapaz.
– Obrigado.
– Não ria. O assunto é bastante sério.
– É exatamente esta a minha preocupação: é sério. Estamos
falando de um homem que é incapaz, um fardo, mas que pode
recuperar a razão e ser produtivo...
– Ah, ele era tão útil antes do acidente! – Anne o interrompeu
ironicamente.
– Ele pode ter a chance de ser um homem bom e se redimir do
mal que fez no passado. Sua esposa não sabe disso, mas eu sei.
Portanto, é meu dever informar-lhe que existe essa possibilidade. É
isto: minha decisão está tomada.
– Não diga “decisão”, ainda, Gilbert. Consulte mais alguém.
Pergunte ao capitão Jim o que pensa a respeito disso.
– Tudo bem. No entanto, não prometo fazer o que ele me
aconselhar, Anne. Essa é uma decisão que um homem tem de
tomar por si mesmo. Minha consciência jamais ficaria tranquila se
eu me calasse sobre esse assunto.
– Ora, sua consciência! – resmungou Anne. – Suponho que tio
Dave também tenha uma consciência, não é?
– Sim, mas não sou guardião da consciência dele. Pense bem,
Anne, se essa questão não afetasse Leslie... Se fosse puramente
um caso abstrato, você concordaria comigo... E sabe disso.
– Não, não concordaria – afirmou Anne, tentando acreditar em si
mesma. – Você pode passar a noite toda argumentando, Gilbert,
mas não vai me convencer. Pergunte também à senhorita Cornelia o
que ela pensa de tudo isso.
– Você está jogando a última cartada, Anne, quando recorre à
senhorita Cornelia como reforço para sua opinião. Ela vai dizer:
“Uma atitude típica dos homens”, e ficar furiosa. Não adiantaria
nada. Isso não é um assunto para ser discutido com a senhorita
Cornelia. Leslie deve decidir sozinha.
– Você sabe muito bem o que ela vai fazer – disse Anne quase
chorando. – Ela também tem ideais de dever. Não entendo como
você pode assumir uma responsabilidade como essa. Eu não
conseguiria.
– Porque o certo é o certo, e é sábio
fazer o certo, apesar das consequências,********
citou Gilbert.
– Acha mesmo que dois versos de poesia constituem um
argumento convincente? – Anne debochou. – É uma atitude tão
típica de um homem!
Em seguida, riu de si mesma. Afinal, aquilo pareceu um eco da
fala da senhorita Cornelia.
– Bem, se você não aceita Tennyson como uma autoridade,
talvez creia nas palavras de um ser superior a ele – disse Gilbert
seriamente. – “E conhecereis a verdade e a verdade vos
libertará”.******** Creio nisso, Anne, no fundo de meu coração. Esse
é o maior e o mais magnífico versículo da Bíblia ou de qualquer
outro livro. E é o mais verdadeiro também, se é que existem graus
comparativos da verdade. O dever mais importante de um homem é
dizer a verdade, da forma como ele a vê e nela acredita.
– Nesse caso específico, a verdade não vai libertar a pobre Leslie
– Anne suspirou. – Provavelmente, vai provocar uma escravidão
ainda mais amarga para ela. Oh, Gilbert, não consigo achar que
você está certo.
D
urante os quinze dias que se seguiram, uma súbita epidemia
de gripe em Glen e na vila dos pescadores deixou Gilbert tão
ocupado, que ele não teve tempo de fazer a visita ao capitão,
como havia prometido a Anne. E ela, apegada à última esperança,
achava possível o marido ter abandonado aquela intenção a
respeito de Dick Moore e, tendo decidido não “mexer em casa de
marimbondo”, não tocou mais no assunto. Entretanto, pensou
incessantemente no caso.
“Será que eu deveria contar a Gilbert que Leslie se apaixonou por
Owen? Ele jamais deixaria transparecer que sabe e, portanto, ela
não ficaria constrangida. Isso poderia convencê-lo a deixar que Dick
Moore fique como está. Devo contar? Será? Não, não posso.
Promessas são sagradas, e não tenho o direito de trair o segredo de
Leslie. Oh, nunca em minha vida me senti tão preocupada com
alguma coisa como estou com essa história! Isso está estragando a
primavera. Está estragando tudo!”
Certo fim de tarde, Gilbert propôs repentinamente que fossem
visitar o capitão Jim. Com o coração apertado, Anne concordou, e
eles saíram. Duas semanas de sol e clima ameno haviam feito um
milagre na paisagem desolada sobre a qual o corvo de Gilbert tinha
voado. As colinas e os campos estavam secos e férteis, prontos
para a vegetação brotar e florescer; o porto era novamente sacudido
pelas gargalhadas; a longa estrada que levava até ele parecia uma
grande fita vermelha reluzente; nas dunas, um punhado de garotos
pescava e queimava a grama espessa e seca do verão anterior. As
chamas brilhavam intensamente sobre os montes de areia,
contrastando com o golfo escuro mais além e iluminando o canal e a
vila dos pescadores.
Tudo compunha uma cena fascinante que em outras ocasiões
teria encantado os olhos de Anne, mas ela não estava gostando
daquela caminhada. Gilbert, muito menos. Faltava o
companheirismo habitual; a semelhança de gostos e pontos de vista
que compartilhavam com a comunidade dos que pertenciam à raça
de Joseph estava ausente. A desaprovação de Anne em relação ao
projeto de Gilbert se manifestava na postura altiva de sua cabeça e
na cortesia estudada de seus comentários. Os lábios de Gilbert
manifestavam a obstinação dos Blythe, mas seus olhos revelavam
preocupação. Ele pretendia fazer o que acreditava ser seu dever,
mas um desentendimento com a esposa era um preço alto a pagar.
Ambos ficaram felizes quando chegaram ao farol – e com remorso
por isso.
O capitão Jim pôs de lado a rede de pescaria na qual trabalhava
e os recebeu alegremente. Em meio à luz do crepúsculo de
primavera, ele pareceu a Anne mais velho que nunca; o cabelo
estava bem mais grisalho, e as mãos fortes tremiam um pouco.
Entretanto, os olhos azuis continuavam claros e firmes, e a alma
pura olhava através deles, galante e destemida. Ele ouviu em um
silêncio perplexo tudo o que Gilbert tinha a dizer. Anne, que sabia o
quanto o velho marinheiro adorava Leslie, confiava bastante que ele
concordaria com ela, mas não tinha muitas esperanças de que isso
fosse influenciar Gilbert. Sendo assim, ficou realmente surpresa
quando o capitão Jim, lenta e pesarosamente, mas sem hesitar,
expressou a opinião de que Leslie deveria ser informada.
– Ora, capitão Jim, eu não esperava que dissesse isso! – ela
exclamou em tom de censura. – Pensei que o senhor não queria
criar mais problemas para ela.
O capitão balançou a cabeça.
– E não quero. Sei como se sente a esse respeito, senhora
Blythe... Exatamente como eu mesmo. Porém, não são nossos
sentimentos que devem nos guiar pela vida; não, não,
naufragaríamos muitas vezes se permitíssemos isso. Há apenas
uma bússola segura, e temos que definir nosso curso por ela: o que
é certo fazer. Concordo com o doutor Blythe. Se há uma chance
para Dick, Leslie deve ser informada. Em minha opinião, não há
dúvidas quanto a isso.
– Está bem – cedeu Anne, inconformada. – Esperem pela
reprimenda da senhorita Cornelia, homens!
– Com certeza, Cornelia vai nos censurar antes e depois – o
capitão Jim garantiu. – Vocês, mulheres, são criaturas adoráveis,
senhora Blythe, porém ligeiramente sem lógica. A senhora tem
diploma de faculdade e Cornelia, não, mas ambas são iguais
quando se trata disso. Não estou dizendo que é um defeito: a lógica
é uma coisa difícil e impiedosa, suponho. Agora, vou preparar um
chá, e vamos bebê-lo e acalmar um pouco nossas mentes falando
sobre coisas agradáveis.
Pelo menos, o chá e a conversa do capitão Jim acalmaram a
mente de Anne a tal ponto que ela não fez Gilbert sofrer tanto no
caminho para casa, como pretendia. Não se referiu Dick e Leslie
Moore em momento algum; falou amigavelmente sobre outros
assuntos, e Gilbert compreendeu que tinha sido perdoado, embora
sob protesto.
– O capitão Jim me parece muito fraco e curvado nesta
primavera. Acho que o inverno o envelheceu – disse Anne, com
tristeza. – Receio que em breve ele vá procurar Margaret
desaparecida. Não suporto nem pensar nisso.
– Four Winds não vai ser a mesma coisa depois que ele “zarpar”
– Gilbert concordou.
No fim da tarde seguinte, Gilbert foi até a casa próxima ao riacho.
Anne andou de um lado para outro, inquieta e angustiada, até a
volta do marido.
– E então? O que foi que Leslie disse? – perguntou quando ele
entrou em casa.
– Falou muito pouco. Acho que ela ficou extremamente confusa.
– Vai tentar a cirurgia?
– Quer pensar um pouco, mas pretende decidir logo.
Gilbert se jogou pesadamente na poltrona diante do fogo. Parecia
exausto. Não tinha sido fácil contar a verdade a Leslie. E o pavor
que surgiu em seus olhos quando ela se deu conta do significado
daquilo que acabara de ouvir não foi uma coisa agradável de ser
lembrada. E agora, quando a sorte já tinha sido lançada, ele foi
assaltado por dúvidas sobre a própria sabedoria.
Anne olhou para Gilbert com remorso. Depois, sentou-se no
tapete e pousou a cabeça sobre o braço dele.
– Gilbert, tenho sido bastante insuportável com relação a esse
assunto. Não vou ser assim mais. Por favor, me chame de ruiva e
me perdoe.
Diante disso, Gilbert compreendeu que, independentemente do
que viesse a acontecer, não haveria nenhum “eu bem que avisei”.
No entanto, não ficou totalmente confortado. Na teoria, o dever é
uma coisa; na prática, é outra bem diferente, especialmente quando
quem o cumpre é confrontado pelo olhar ferido de uma mulher.
Por instinto, Anne se manteve distante de Leslie nos três dias que
se seguiram. Na terceira noite, a vizinha foi à pequena casa dos
sonhos e comunicou a Gilbert sua decisão: levaria Dick a Montréal e
o submeteria à operação.
Leslie estava muito pálida e parecia ter se embrulhado
novamente no antigo manto de indiferença e distanciamento. Seus
olhos não tinham mais aquela expressão que assustara Gilbert:
estavam frios e brilhantes. Ela conversou secamente sobre os
detalhes da cirurgia, como se falasse de negócios. Havia planos a
serem feitos e muitas coisas a serem consideradas. Assim que
obteve todas as informações que queria, Leslie despediu-se, e Anne
quis acompanhá-la por alguns metros.
– É melhor não – ela respondeu bruscamente. – A chuva de hoje
encharcou o solo. Boa noite.
– Será que perdi minha amiga? – Anne perguntou, com um
suspiro. – Se a operação for bem-sucedida e Dick Moore voltar a ser
quem era, Leslie vai se refugiar em lugar remoto de sua alma, um
lugar em que nenhum de nós vai poder encontrá-la.
– Talvez ela o deixe – Gilbert sugeriu.
– Leslie nunca faria isso, Gilbert. Seu senso de dever é muito
forte. Uma vez ela me contou que sua avó West lhe dizia
frequentemente que, quando assumisse uma responsabilidade, não
deveria esquivar-se dela por motivo nenhum, independentemente
das possíveis consequências. Essa é uma de suas regras
fundamentais de conduta. A meu ver, isso é bastante antiquado.
– Não seja amarga, Anne. Você sabe que não considera isso
antiquado e que também acha que uma responsabilidade assumida
é sagrada. E está certa. Fugir das responsabilidades é a maldição
de nossa vida moderna, a causa de toda a agitação e todo o
descontentamento que estão arruinando o mundo.
– Assim disse o pregador – Anne zombou, apesar de, lá no fundo,
saber que ele estava certo e ela, desolada por Leslie.
Uma semana depois, a senhorita Cornelia entrou na casa dos
sonhos como uma avalanche. Gilbert não estava, e Anne foi
obrigada a suportar sozinha o choque do impacto.
A senhorita Cornelia mal esperou tirar o chapéu para começar.
– Anne, você pode me dizer se é verdade o que ouvi?! Que o
doutor Blythe falou com Leslie que Dick pode ser curado, e que ela
vai levá-lo a Montréal para ser operado?!
– Sim, é a pura verdade, senhorita Cornelia – Anne respondeu
bravamente.
– Bem, isso é uma crueldade desumana, isso é o que é – afirmou
a senhorita Cornelia, muito agitada. – Francamente, eu achava que
o doutor Blythe era um homem decente. Não pensei que ele
pudesse fazer uma coisa dessas.
– O doutor Blythe considerou que era seu dever contar a Leslie
que há uma chance para Dick – disse Anne calmamente. – E –
acrescentou, deixando que a lealdade a Gilbert fosse maior que
tudo o mais – eu concordo com ele.
– Oh, não, você não, querida! – protestou a senhorita Cornelia. –
Ninguém com um mínimo de compaixão poderia aceitar isso.
– O capitão Jim também pensa como nós.
– Não me interessa a opinião daquele velho tolo! – a senhorita
Cornelia exclamou. – Aliás, não me importa quem concorda ou não
com o médico. Pense... pense no que isso significa para aquela
pobre garota atormentada e exausta.
– Nós refletimos muito sobre isso. O fato é que Gilbert acredita
que um médico deve colocar a saúde física e mental de um paciente
acima de todas as outras considerações.
– Uma atitude típica dos homens. Contudo, eu esperava coisa
melhor de você, Anne – disse a senhorita Cornelia, mais em tom de
lamento do que raiva; em seguida, começou a bombardeá-la com
exatamente os mesmos argumentos com que Anne havia atacado
Gilbert. E Anne defendeu o marido valentemente, com as mesmas
armas que ele tinha usado em sua defesa. A discussão foi longa,
mas, por fim, a senhorita Cornelia concluiu, quase em lágrimas:
– É uma injustiça vergonhosa, uma perversidade. É isto que é:
uma injustiça vergonhosa. Pobre, pobre Leslie!
– A senhorita não acha que Dick também merece um pouco de
consideração? – Anne comentou.
– Dick! Dick Moore! Ele é suficientemente feliz. E se comporta
melhor, é um membro da sociedade com melhor reputação do que
antes. Ora, Dick era um bêbado, e talvez coisa pior. E agora vocês
vão soltá-lo de novo, para fazer as maldades que bem entender?!
– Ele pode se regenerar – disse a pobre Anne, atormentada por
inimigos externos e internos.
– Regenere sua avó! – retrucou a senhorita Cornelia. – Dick
Moore ficou como está em uma briga de bêbados. Ele merece esse
destino: foi dado a ele como castigo. Não acho correto o doutor
Blythe se intrometer nos propósitos de Deus.
– Ninguém sabe como Dick foi ferido, senhorita Cornelia. Pode
não ter sido em uma briga de bêbados, ele pode ter caído em uma
emboscada.
– Assim como bois podem voar, não é? – disse a senhorita
Cornelia. – Bem, a essência de tudo o que você me disse é que a
coisa está resolvida e não adianta falar mais nada. Portanto, vou
segurar minha língua; não pretendo desperdiçar meu tempo.
Quando vejo que uma coisa é inevitável, eu desisto – mas não sem
ter certeza de que ela tem de ser. Agora, vou devotar minhas
energias a confortar e ajudar Leslie. E, pensando bem –
acrescentou a senhorita Cornelia, animando-se com uma esperança
–, talvez nada possa ser feito por Dick.
T
endo decidido o que faria, Leslie agiu com a determinação e a
rapidez que lhe eram características. A faxina na casa tinha de
ser feita primeiro, não importava as outras questões
pendentes; fossem elas de vida ou de morte, teriam de esperar.
Sendo assim, a casa cinza próxima ao riacho foi posta em perfeita
ordem e limpeza, com a pronta ajuda da senhorita Cornelia. Esta,
depois de tudo o que disse a Anne e mais tarde a Gilbert e ao
capitão Jim – não poupando nenhum dos dois, que fique claro –,
nunca tocou no assunto com Leslie. Aceitou o fato de Dick ser
submetido à cirurgia, referia-se a isso somente quando necessário,
e sempre de modo prático, e ignorava o fato nas outras ocasiões.
Leslie, por sua vez, nunca tentou discutir o assunto. Ficou muito
distante, fria e calada durante aqueles dias bonitos de primavera.
Raramente visitava Anne e, embora fosse invariavelmente delicada
e cordial, a própria cordialidade representava uma barreira de gelo
entre ela e os habitantes da pequena casa. As antigas brincadeiras
e risadas e o velho companheirismo do dia a dia não podiam
atravessar esse obstáculo.
Anne se recusava a ficar magoada. Sabia que Leslie estava
dominada por um medo horrível, um pavor que a afastava de todas
as possibilidades de viver momentos de felicidade e prazer. Quando
um sentimento se apodera de uma alma, todos os outros são
amontoados e esquecidos em um canto qualquer. Nunca, em toda a
sua vida, Leslie Moore havia temido o futuro com uma intensidade
tão insuportável. Entretanto, ela seguiu adiante, no caminho pelo
qual optou, com a mesma firmeza que os mártires da Antiguidade
percorreram o trajeto escolhido, sabendo que no fim encontrariam a
agonia torturante da fogueira.
A questão financeira foi resolvida mais facilmente do que Anne
havia previsto. O capitão Jim emprestou o dinheiro necessário e, por
insistência de Leslie, aceitou a pequena fazenda como garantia de
quitação da dívida.
– Um problema a menos na mente da pobre garota – a senhorita
Cornelia disse a Anne –, e na minha também. Agora, se Dick ficar
bem o bastante para trabalhar de novo, ele vai ser capaz de ganhar
dinheiro suficiente para pagar o empréstimo. Caso ele não se
recupere, sei que o capitão Jim vai conseguir alguma maneira de
Leslie não precisar pagá-lo. Ele me falou isso. “Estou ficando velho,
Cornelia”, afirmou, “e não tenho esposa nem filhos. Leslie não vai
aceitar um presente de um homem vivo, mas talvez consinta em
receber uma dádiva de um morto”. Então, Anne, não há problema
nenhum em relação a isso. Espero que as outras coisas também
possam ser resolvidas tão satisfatoriamente. Quanto àquele traste
que é o Dick, sinto lhe contar que ele se comportou pessimamente
nos últimos dias. Estava com o diabo no corpo, acredite em mim!
Leslie e eu mal pudemos trabalhar, tantas foram as travessuras
dele. Imagine que outro dia o infeliz perseguiu os patos no quintal
até quase todos morrerem. Além disso, não nos ajudou em nada.
Você sabe, às vezes Dick fica bem prestativo: carrega baldes cheios
de água ou traz lenha para nós. No entanto, esta semana, quando o
mandávamos buscar água, ele tentava descer pelo poço. Em uma
dessas ocasiões, até pensei: “Se ele caísse de cabeça lá dentro,
tudo acabaria perfeitamente bem”.
– Oh, senhorita Cornelia!
– Ora, você não precisa me censurar, Anne. Qualquer pessoa
teria pensado o mesmo. Se os médicos de Montréal puderem fazer
de Dick Moore uma criatura racional, vou crer que são milagrosos.
Leslie levou Dick até Montréal no início de maio. Gilbert foi junto,
para ajudá-la e fazer os arranjos necessários. Quando voltou para
casa, contou que o cirurgião que haviam consultado concordou que
havia uma boa chance de Dick ser curado.
– Muito reconfortante – foi o comentário sarcástico da senhorita
Cornelia.
Anne apenas suspirou. Leslie estava muito fria quando eles
partiram, mas prometeu que escreveria. Dez dias após o retorno de
Gilbert, a carta chegou. Leslie contou que a operação tinha sido
bem-sucedida e que Dick estava se recuperando bem.
– O que ela quis dizer com “bem-sucedida”? – indagou Anne. –
Isso significa que Dick se lembrou de tudo?
– Provavelmente não, já que ela não menciona nada sobre isso –
Gilbert explicou. – Leslie usou o termo “bem-sucedida” referindo-se
ao aspecto clínico. Quer dizer que a cirurgia foi realizada com
sucesso e teve resultados normais. Contudo, ainda é muito cedo
para saber se as faculdades mentais de Dick vão ser finalmente
restabelecidas, completa ou parcialmente. Não devemos esperar
que sua memória volte imediatamente. O processo vai ser gradual,
se é que vai ocorrer. Isso é tudo o que ela escreveu?
– Sim, aqui está a carta dela. É muito curta. Pobre garota! Deve
estar terrivelmente tensa. Gilbert Blythe, há um monte de coisas que
desejo dizer a você, mas não vou fazer isso porque seria maldade.
– A senhorita Cornelia diz todas por você – retrucou Gilbert, com
um sorriso pesaroso. – Ela me recrimina toda vez que nos
encontramos. Deixa claro que me considera um pouco melhor que
um assassino, e que acha uma lástima o doutor Dave ter permitido
que eu assumisse seu lugar. Chegou até a dizer que prefere o
médico metodista que trabalha no outro lado do porto. Em se
tratando da senhorita Cornelia, não existe condenação pior.
– Se Cornelia Bryant estivesse doente, não seria o doutor Dave
nem o médico metodista que ela mandaria buscar – Susan
resmungou com desdém. – Ela interromperia seu descanso
merecido no meio da noite, caro doutor, caso tivesse alguma crise,
posso garantir. E depois ainda diria que seus honorários eram
absurdos. Não ligue para ela, caro doutor, o mundo é composto por
todos os tipos de gente.
Por algum tempo, nenhuma palavra mais veio de Leslie. Os dias
de maio se arrastaram em uma doce sucessão, e as margens do
porto de Four Winds esverdearam, floresceram e arroxearam. Um
dia, no fim de maio, Gilbert chegou em casa e foi recebido por
Susan perto do estábulo.
– Receio que alguma coisa tenha perturbado sua esposa, caro
doutor – disse, intrigada – Ela recebeu uma carta esta tarde e desde
então apenas caminha pelo jardim, falando sozinha. O senhor sabe
que ela não deve ficar tanto tempo de pé, caro doutor. Ela não quis
me dizer quais foram as notícias, e não sou bisbilhoteira, nunca fui,
mas está claro que algo a inquietou. E ficar agitada não é bom para
ela.
Ansioso, Gilbert se dirigiu apressadamente para o jardim. Teria
acontecido alguma coisa em Green Gables? No entanto, Anne,
sentada no banco rústico próximo ao riacho, não parecia aflita, mas,
sem dúvida, bastante empolgada. Seus olhos tinham o tom mais
cinza de todos, e havia um rubor excessivo em suas bochechas.
– O que aconteceu, Anne?
Ela deu uma risadinha estranha.
– Acho que você vai custar a crer quando eu lhe disser, Gilbert.
Eu mesma ainda não acreditei completamente. Como Susan disse
há alguns dias, “eu me sinto como uma mosca nascendo sob o sol:
atordoada”. É tudo tão surpreendente! Li a carta dezenas de vezes,
e em todas o relato era exatamente o mesmo. Não consigo crer em
meus próprios olhos. Oh, Gilbert, você estava certo. Absolutamente
certo! Agora posso ver claramente. E estou tão envergonhada de
mim mesma! Será que algum dia você vai poder realmente me
perdoar?
– Anne, vou sacudi-la se não falar com um mínimo de coerência.
Redmond teria vergonha de você. Afinal, o que foi que houve?
– Você não vai acreditar... Você simplesmente não vai acreditar...
– Vou telefonar para o tio Dave – disse Gilbert, fingindo que ia
entrar em casa.
– Sente-se, Gilbert, vou tentar lhe contar. Recebi uma carta,
Gilbert, e é tudo tão espantoso... tão incrivelmente espantoso...
nunca nos passou pela cabeça... nenhum de nós jamais sonhou...
– Suponho que – disse Gilbert, com ar resignado – a única coisa
a fazer em um caso desse tipo é ter paciência e tratar o assunto
categoricamente. De quem é a tal carta?
– Leslie. E, Gilbert...
– Leslie! Ufa! O que ela tem a dizer? Quais são as novidades a
respeito de Dick?
Anne ergueu a carta e a exibiu com uma espécie de calma
dramática.
– Não há Dick! O homem que pensávamos ser Dick Moore, que
todos em Four Winds acreditaram por doze anos que era Dick
Moore... é o primo dele, George Moore, da Nova Escócia! Ao que
tudo indica, era impressionantemente parecido com ele. Dick Moore
morreu de febre amarela treze anos atrás, em Cuba.
E
stá me dizendo, Anne, que Dick Moore não é Dick Moore,
mas outra pessoa?! Foi para me contar isso que telefonou
para minha casa hoje?!
– Sim, senhorita Cornelia. É realmente inacreditável, não acha?
– É... é... típico de um homem – respondeu a senhorita Cornelia,
perplexa.
Ela tirou o chapéu com os dedos trêmulos. Pela primeira vez na
vida, a senhorita Cornelia ficou inegavelmente atordoada.
– Isso parece não fazer sentido para mim, Anne – ela declarou. –
Ouvi o que me falou, e acredito em você. Mas não consigo
compreender. Dick Moore está morto... esteve morto durante todos
esses anos. Então Leslie está livre?
– Sim. A verdade a libertou. Gilbert estava certo quando disse
que aquele versículo é o mais magnífico da Bíblia.
– Conte-me tudo, Anne. Desde que recebi seu telefonema, estou
verdadeiramente confusa.
Cornelia Bryant nunca tinha ficado tão atônita.
– Não há muito o que contar. A carta de Leslie foi breve. Ela não
entrou em detalhes. Aquele homem, o tal George Moore, recobrou a
memória e sabe quem é. Disse que Dick contraiu febre amarela em
Cuba, e o Four Sisters teve de prosseguir a viagem sem ele. George
também não embarcou, ficou lá para cuidar do primo. Contudo, Dick
morreu pouco tempo depois que o navio zarpou. George não
escreveu para Leslie porque pretendia voltar logo e lhe dar a notícia
pessoalmente.
– E por que não veio?
– Suponho que o acidente tenha interferido em seus planos.
Gilbert diz que é bastante possível que George Moore não se
lembre de nada desse acontecimento, ou do que o causou, e talvez
nunca se lembre. Provavelmente ocorreu logo após a morte de Dick.
Podemos descobrir mais detalhes quando Leslie escrever
novamente.
– Ela diz na carta o que pretende fazer agora? Quando vai voltar
para casa?
– Falou que vai ficar com George até ele poder deixar o hospital.
Ela escreveu para a família dele na Nova Escócia. Parece que o
único parente próximo é uma irmã casada, bem mais velha que
George. Quando ele partiu no Four Sisters, ela estava viva, mas
obviamente não sabemos o que pode ter acontecido desde então. A
senhora conheceu George Moore, senhorita Cornelia?
– Sim. Estou me lembrando agora. George veio visitar seu tio
Abner dezoito anos atrás, quando ele e Dick tinham por volta de
dezessete anos. Os dois eram duplamente primos, isto é, os pais
deles eram irmãos e as mães eram irmãs gêmeas. Eles eram
incrivelmente parecidos. É lógico que – acrescentou a senhorita
Cornelia, com desdém – não era uma daquelas semelhanças
inverossímeis dos romances, em que duas pessoas se parecem
tanto que uma pode se passar pela outra e que nem os parentes e
amigos mais próximos podem distinguir quem é quem. Naquela
época, era fácil saber quem era George e quem era Dick, se eles
fossem vistos juntos, de perto. Separados, ou a alguma distância,
era mais difícil. Eles pregavam muitas peças nas pessoas e
achavam isso muito divertido, os dois patifes. George Moore era um
pouco mais alto e bem mais gordo que Dick, embora nenhum dos
dois fosse o que você chamaria de gordo, eram ambos esguios. A
pele de Dick era mais morena que a de George, e seu cabelo, um
pouco mais claro. Mas os traços eram bem semelhantes, e ambos
tinham aqueles olhos esquisitos, um azul e o outro, castanho. Por
outro lado, eles não eram muito parecidos em nenhum outro
aspecto. George era um rapaz muito bom, apesar das brincadeiras
de mau gosto em que se envolvia, e alguns diziam que ele
apreciava uma bebida alcoólica, mesmo sendo tão jovem. Mas todo
mundo gostava mais dele que de Dick. Ele passou cerca de um mês
aqui. Leslie nunca o viu: tinha apenas oito ou nove anos e passou
todo aquele inverno no outro lado do porto, com a avó West. O
capitão Jim estava fora, também: foi exatamente naquela época que
ele naufragou nas Ilhas da Madalena. Suponho que nem ele nem
Leslie nunca tenham ouvido falar que um primo de Dick, que vivia
na Nova Escócia, se parecia tanto com ele. Ninguém jamais pensou
nesse sujeito quando o capitão Jim trouxe Dick – George, devo dizer
– para casa. É claro que todos nós pensamos que Dick havia
mudado consideravelmente; afinal, ele ficou tão atarracado e gordo!
Simplesmente atribuímos isso ao que havia acontecido com ele, e
sem dúvida esse foi mesmo o motivo da mudança em sua
aparência, pois, como eu disse, George também não era gordo. E
não havia nenhuma outra maneira de sequer desconfiarmos de
alguma coisa, já que as faculdades mentais do homem haviam
sumido. Ora, não é de admirar que todos tenhamos sido enganados.
É inacreditável. E pensar que Leslie sacrificou os melhores anos de
sua vida cuidando de um homem que não tinha nenhum direito
sobre ela. Malditos homens! Não importa o que façam, é sempre a
coisa errada. E não importa quem sejam, são sempre quem não
deveriam ser. Eles realmente me exasperam.
– Gilbert e o Capitão Jim são homens, e foi por meio deles que a
verdade finalmente foi descoberta – argumentou Anne.
– Bem, reconheço isso – a senhorita Cornelia admitiu, relutante. –
Lamento ter repreendido tanto o doutor. É a primeira vez em minha
vida que me sinto envergonhada de algo que disse a um homem.
No entanto, não sei se vou dizer isso a ele: o doutor Blythe vai ter de
deduzir. Bem, Anne, é uma misericórdia o Senhor não atender a
todas as nossas preces. Orei muito para que a operação não
curasse Dick. Claro que não coloquei de forma tão clara, mas era o
que estava por trás de minhas orações, e não tenho dúvidas de que
o Senhor sabia disso.
– Ele concedeu o que realmente pedia em suas preces: na
verdade, a senhorita desejava que as coisas não fossem ainda mais
dificultadas para Leslie. Creio que, no fundo de meu coração, eu
também esperava que a cirurgia não tivesse sucesso, e agora estou
terrivelmente arrependida.
– Como acha que Leslie reagiu a tudo isso?
– Na carta ela parece extremamente confusa. Penso que, assim
como nós, ela mal se deu conta ainda. Leslie escreveu: “Tudo me
parece um sonho estranho, Anne”. Foi a única referência que fez a
si mesma.
– Pobre criança! Suponho que, quando se tiram as correntes de
um prisioneiro, ele se sente, por algum tempo, estranho e perdido
sem elas. Anne, este pensamento vem sempre à minha mente: e
quanto a Owen Ford? Ambas sabemos que ela se apaixonou por
ele. Já lhe ocorreu que talvez ele pudesse corresponder a esse
sentimento?
– Já, uma vez – Anne admitiu, sentindo que não seria errado
dizer apenas isso.
– Bem, não tenho nenhuma razão para pensar que ele gosta
dela, mas simplesmente me pareceu que ele a ama também. Agora,
Anne, o Senhor sabe que eu não sou casamenteira e que desprezo
todos esses arranjos. Entretanto, se eu fosse você, que escreve
regularmente para aquele Owen Ford, mencionaria, casualmente, o
que aconteceu. Isso é o que eu faria.
– É lógico que vou contar a ele – disse Anne, com um ar
ligeiramente distante.
De algum modo, achava que aquele era um assunto que não
poderia ser discutido com a senhorita Cornelia. No entanto, a
própria Anne tinha de admitir que o mesmo pensamento estava à
espreita em sua mente desde o dia em que soube da liberdade de
Leslie. Mas Anne não o profanaria expressando-o em palavras.
– Obviamente, não há muita pressa, querida. Mas lembre-se de
que Dick Moore está morto há treze anos, e Leslie já desperdiçou
com ele tempo suficiente de sua vida. Vamos ver o que vai resultar
disso. Quanto a esse George Moore, que partiu e voltou a viver
quando todos pensavam que estava morto e acabado, uma atitude
típica dos homens, eu sinto muito mesmo por ele. O coitado não vai
se encaixar em lugar nenhum neste mundo.
– Ele ainda é jovem, e se realmente recuperar sua saúde física e
mental, como parece bastante provável, George vai poder refazer
sua vida. Deve ser muito estranho para ele, pobre sujeito. Suponho
que todos esses anos que se passaram desde o acidente não
existem nem vão existir na mente dele.
D
uas semanas depois, Leslie retornou sozinha para a casa na
qual havia passado tantos anos amargos. Durante o
crepúsculo de um dia de junho, ela atravessou os campos
rumo à residência de Anne e apareceu subitamente, como um
fantasma, no jardim perfumado.
– Leslie! – exclamou Anne, surpresa. – De onde surgiu? Nem
imaginávamos que já tinha voltado. Por que não escreveu?
Teríamos ido encontrá-la na estação.
– Por algum motivo, não consegui escrever, Anne. Pareceu tão
sem propósito tentar dizer alguma coisa com caneta e tinta. Além
disso, eu queria chegar silenciosa e discretamente.
Anne abraçou e beijou Leslie, que retribuiu calorosamente os
afagos. Parecia pálida e cansada, e deu um pequeno suspiro
quando se sentou na grama ao lado de um grande canteiro de
narcisos que, à luz do pôr do sol prateado e pálido, brilhavam como
estrelas douradas.
– Voltou sozinha, Leslie?
– Sim. A irmã de George Moore foi a Montréal e o levou para sua
casa. O pobre homem lamentou ter de se separar de mim, embora
eu fosse apenas uma estranha quando sua memória voltou. Ele se
agarrou a mim naqueles primeiros dias difíceis, enquanto tentava
compreender que a morte de Dick não havia acontecido na véspera,
como lhe parecia. Foi muito difícil para George. Eu o ajudei em tudo
o que pude. Quando a irmã veio, as coisas ficaram mais fáceis,
porque ele tinha a impressão de tê-la visto pela última vez muito
recentemente. Por sorte ela não havia mudado muito, e isso o
ajudou também.
– É tudo tão estranho e maravilhoso ao mesmo tempo, Leslie.
Acho que nenhum de nós já se acostumou com a nova realidade.
– Eu não consigo. Quando entrei em casa, uma hora atrás,
pensei que tudo só poderia ser um sonho; que Dick estaria lá, com
seu sorriso infantil, exatamente como esteve por tanto tempo. Anne,
ainda estou chocada. Não me sinto alegre, nem triste, nem nada.
Parece que uma coisa foi arrancada repentinamente de minha vida,
deixando um vazio enorme. É como se eu não fosse eu; como se eu
tivesse me tornado outra pessoa e não pudesse me habituar. Isso
me dá uma sensação horrível de solidão, atordoamento e
desamparo. É muito bom vê-la de novo, Anne; parece que você foi
uma espécie de âncora para minha alma à deriva. Ah, agora eu
temo tudo: os mexericos, a perplexidade e os questionamentos.
Quando penso nisso, desejo não ter precisado voltar para casa.
Quando desci do trem, encontrei o doutor Dave na estação, e ele
me trouxe para casa. O coitado está inconformado porque me disse
há anos que nada poderia ser feito por Dick. “Acreditei sinceramente
nisso, Leslie”, ele me disse hoje, “mas deveria ter aconselhado você
a não se ater à minha opinião, a procurar um especialista. Se eu
tivesse feito isso, você teria sido poupada de muitos anos de
sofrimento, e o pobre George Moore, de muito tempo desperdiçado.
Eu me culpo muito, Leslie”. Então, falei para ele não pensar assim:
afinal, tinha feito o que achava certo. O doutor Dave sempre foi tão
bom para mim, eu não suportaria vê-lo se preocupando com isso.
– E Dick... quer dizer, George? A memória dele está totalmente
recuperada?
– Praticamente. É claro que existem vários detalhes dos quais ele
ainda não se lembrou, mas as recordações estão voltando aos
poucos. George me contou que, após o sepultamento de Dick, tinha
ido fazer uma caminhada no fim da tarde. Tinha consigo o dinheiro e
o relógio do primo; sua intenção era trazê-los para mim, junto com
minha carta. Ele admite que foi a um local onde os marinheiros se
reuniam; lembra-se de ter bebido... e isso é tudo. Anne, nunca vou
me esquecer do momento em que ele se recordou do próprio nome.
Olhava para mim com uma expressão de lucidez, mas também de
perplexidade. Eu disse: “Você me conhece, Dick?”. Ele respondeu:
“Nunca a vi antes. Quem é você? E meu nome não é Dick. Sou
George Moore; Dick morreu ontem de febre amarela! Onde estou?
O que aconteceu comigo?”. Eu... eu desmaiei, Anne. E desde então
sinto como se estivesse em um sonho.
– Em breve você vai se adaptar a essa nova situação, Leslie. E
você é jovem, tem a vida toda pela frente; ainda vai ser muito feliz.
– Talvez eu possa ver as coisas desse modo depois de algum
tempo, Anne. Neste exato momento, estou cansada e confusa
demais para pensar no futuro. Eu... eu me sinto solitária, Anne.
Sinto falta de Dick. Não é esquisito? Sabe, descobri que gostava
verdadeiramente do pobre Dick... George, acho que tenho de dizer...
exatamente como teria gostado de uma criança desamparada que
dependesse de mim para tudo. E eu jamais admitiria isso, pois tinha
vergonha desse sentimento, já que havia odiado e desprezado tanto
Dick antes de seu embarque no Four Sisters. Quando soube que o
capitão o traria de volta para casa, pensei que sentiria o mesmo por
ele, mas isso não aconteceu, embora eu continuasse a detestar a
pessoa que meu marido era antes. Desde o momento em que ele
voltou para casa, só senti pena, uma piedade que doía e me
atormentava. Pensei então que era apenas porque o acidente o
havia deixado tão diferente e incapaz. Entretanto, agora acredito
que foi porque realmente havia outra pessoa ali. Carlo sabia, Anne;
hoje estou certa de que o cachorro percebeu logo que o viu. Sempre
achei estranho Carlo não ter reconhecido Dick. Os cães são sempre
tão fiéis! A verdade é que ele sabia que não era seu dono que tinha
retornado, apesar de nenhum de nós ter percebido isso. Sabe, eu
nunca tinha visto George Moore antes, mas, outro dia, lembrei que
uma vez Dick havia mencionado casualmente que tinha um primo
na Nova Escócia tão parecido com ele quanto um irmão gêmeo.
Contudo, essa informação havia se perdido em minha memória e,
de qualquer forma, eu jamais teria pensado que ela tivesse alguma
importância. Em momento algum de todos esses anos me ocorreu
questionar a identidade de Dick. Eu interpretava qualquer mudança
nele apenas como resultado do acidente. Oh, Anne, é impossível
esquecer aquela noite, em abril, quando Gilbert me falou que Dick
poderia ser curado. Foi como se eu estivesse aprisionada em uma
horrível jaula de tortura, e então a porta tivesse sido aberta e eu
pudesse sair. Eu ainda estava acorrentada à jaula, mas já não me
encontrava dentro dela. Naquela noite, senti que uma mão
impiedosa me puxava de volta para a gaiola, de volta para uma
tortura ainda mais terrível do que antes. Não culpei Gilbert. Achei
que ele tinha razão. E ele foi muito generoso: disse que se, tendo
em vista os custos e a incerteza do resultado da cirurgia, eu
decidisse não arriscar, ele não me censuraria nem um pouco.
Porém, eu sabia o que deveria fazer, mas tinha medo de tomar a
decisão. Andei de um lado para o outro durante toda a noite, como
uma louca, tentando me obrigar a enfrentar aquela situação. Mas
não consegui, Anne, achei que não seria capaz. Quando o dia
amanheceu, eu estava determinada a não correr aquele risco.
Deixaria tudo como estava. Era uma atitude perversa, eu sei. Teria
sido punida merecidamente por aquela maldade se simplesmente
tivesse prosseguido com minha decisão. Mantive-a por todo o dia.
No fim da tarde, precisei ir a Glen para fazer umas compras. Como
tinha sido um dos dias calmos e sonolentos de Dick, eu o deixei
sozinho. Porém, estive fora por um pouco mais de tempo do que
esperava, e ele sentiu minha falta, sentiu-se solitário. Quando entrei
em casa, ele correu para me encontrar, como uma criança, com um
sorriso autenticamente satisfeito no rosto. De alguma forma, Anne,
eu simplesmente cedi. Aquele sorriso em seu pobre rosto vazio foi
mais do que eu poderia suportar. Foi como se eu estivesse negando
a uma criança a oportunidade de crescer e se desenvolver. Eu sabia
que deveria dar a ele essa chance, não importavam as
consequências. Então, vim até aqui e contei a Gilbert o que tinha
resolvido. Anne, você deve ter me achado odiosa nas semanas que
precederam minha viagem. Eu não tive a intenção de me comportar
daquela forma, mas não conseguia pensar em mais nada, exceto
em minha obrigação, e tudo e todos ao meu redor pareciam
somente sombras.
– Eu sei... eu compreendi, Leslie. Mas agora tudo terminou. Sua
corrente foi arrebentada e não há mais jaula.
– Não há mais jaula – Leslie repetiu distraidamente, puxando com
as mãos esguias e morenas as pequenas folhas da relva ao seu
lado. – Porém, parece que também não há mais nada, Anne. Você
se lembra do que eu disse sobre minha insensatez, naquela noite na
barreira de dunas? Acho que não se deixa de ser um tolo muito
depressa. Às vezes, acho que há pessoas que são insensatas a
vida toda. E ser um tolo desse tipo é quase tão ruim quanto ser
um... um cachorro acorrentado.
– Você vai se sentir bem melhor depois que superar o cansaço e
a perplexidade – disse Anne que, sabendo de certa coisa que Leslie
nem imaginava, não se sentiu obrigada a desperdiçar muita
solidariedade.
Leslie colocou a cabeça esplendidamente dourada sobre os
joelhos de Anne.
– De qualquer forma, eu tenho você – ela se consolou. – A vida
não pode ser totalmente vazia com uma amiga como você. Anne,
afague minha cabeça, como se eu fosse uma menina pequena; seja
minha mãe por alguns momentos... E deixe-me dizer, enquanto
minha língua teimosa está um pouco solta, o quanto você e sua
amizade têm significado para mim desde aquela noite em que a
conheci na praia.
U
ma manhã, quando o sol dourado nascia no céu do golfo e o
vento soprava em meio aos raios de luz, uma cegonha que
vinha da Terra das Estrelas Vespertinas sobrevoou o porto de
Four Winds. Sob sua asa estava uma pequena criatura sonolenta e
sonhadora. A cegonha estava cansada e olhava ansiosamente para
baixo. Sabia que estava próxima ao seu destino, mas ainda não
podia avistá-lo.
O grande farol branco no penhasco de arenito vermelho tinha
seus pontos positivos, porém nenhuma cegonha dotada de bom
senso deixaria ali um bebê tão novo e encantador. Uma casa antiga
e cinzenta, cercada por salgueiros e próxima a um riacho que
atravessava um vale florido era mais promissora, mas também não
parecia ser o lugar certo. A residência em tom de verde chamativo,
mais adiante, estava obviamente fora de questão.
Subitamente, a cegonha se animou, pois havia acabado de
avistar o lugar exato: uma pequena casa branca diante de um
grande bosque sussurrante de abetos e com uma espiral de fumaça
azul saindo da chaminé da cozinha; uma casa que parecia ter sido
feita para abrigar bebês. Então a cegonha deu um suspiro de
satisfação e pousou suavemente no telhado dela.
Meia hora depois, Gilbert desceu a escada apressadamente e, no
hall, bateu à porta do quarto de hóspedes. Uma voz sonolenta
respondeu ao chamado e logo depois o rosto pálido e assustado de
Marilla apareceu atrás da porta entreaberta.
– Marilla, Anne me pediu para lhe contar que certo cavalheiro
muito jovem chegou. Não trouxe muita bagagem, mas é evidente
que tem a intenção de ficar.
– Pelo que há de mais sagrado, Gilbert! – Marilla exclamou,
trêmula. – Você não está me dizendo que já aconteceu, está?! Por
que não me chamaram?!
– Anne não quis perturbá-la sem necessidade. Ninguém foi
chamado até duas horas atrás. Desta vez não houve nenhuma
“passagem perigosa”.
– E... e... Gilbert, esse bebê vai viver?
– Sim, com certeza. Ele pesa pouco mais de quatro quilos e...
escute! Não há nada de errado com seus pulmões, há? A
enfermeira acha que o cabelo dele vai ser ruivo. Anne está furiosa
com ela, e eu me sinto transbordar de felicidade.
Aquele foi um dia maravilhoso na pequena casa dos sonhos.
– O melhor sonho de todos se tornou realidade – disse Anne,
pálida e extasiada. – Oh, Marilla, mal me atrevo a acreditar, depois
daquele dia horrível no verão passado. Meu coração doía desde
então, mas agora passou.
– Este bebê vai preencher o lugar de Joy – Marilla comentou.
– Oh, não, não, não, Marilla! Ele não pode... nada jamais vai
poder fazer isso. Meu pequenino e tão amado filho homem tem seu
próprio lugar. E a pequena Joy tem o dela, e sempre vai ter. Se ela
tivesse vivido, estaria com mais de um ano, agora. Estaria andando
por aqui com seus pezinhos delicados e balbuciando algumas
palavras. Posso vê-la tão claramente, Marilla! Oh, agora sei que o
capitão Jim estava certo quando disse que acreditava que Deus
faria melhor do que permitir que minha Joyce pareça uma estranha
para mim quando eu a reencontrar. Aprendi isso neste último ano.
Acompanhei o desenvolvimento dela dia após dia, semana após
semana, e nunca vou deixar de fazê-lo. Vou saber exatamente como
ela vai crescer a cada ano; e quando eu a encontrar novamente, vou
reconhecê-la... Ela não vai ser uma estranha. Oh, Marilla, olhe para
os dedos dos pés dele: não são adoráveis? Não é estranho eles
serem tão perfeitos?
– Seria estranho se não fossem – disse Marilla secamente; como
tudo estava bem outra vez, Marilla já tinha voltado a ser ela mesma.
– Sim, eu sei; é que parece que sua formação poderia não ter
sido totalmente concluída, mas foi, até mesmo em suas unhas
minúsculas. E as mãos! Olhe só essas mãos, Marilla!
– Têm a aparência de mãos – reconheceu Marilla.
– Veja como ele se agarra ao meu dedo. Tenho certeza de que
ele já me conhece. Sabia que ele chora quando a enfermeira o leva
daqui? Oh, Marilla, você acha... não, você não acha, não é? Que o
cabelo dele vai ser ruivo?
– Não vejo muito cabelo de cor nenhuma – Marilla respondeu. –
E, se eu fosse você, não me preocuparia com isso enquanto ele não
se tornasse visível.
– Marilla, ele tem cabelo. Veja esses fios pequenos e finos atrás
de toda a sua cabeça. Bem, de qualquer modo, a enfermeira disse
que os olhos dele vão ser castanhos e que sua testa é exatamente
como a de Gilbert.
– Ele possui orelhas pequenas e lindas, querida esposa do doutor
– Susan elogiou. – A primeira coisa que fiz ao vê-lo foi observar
suas orelhas. O cabelo engana; o nariz e os olhos mudam;
entretanto, as orelhas são as mesmas do começo ao fim. A gente
sempre sabe qual vai ser seu futuro; basta olhar para a forma delas.
Além disso, as de seu bebê estão muito bem situadas em sua
pequena e preciosa cabeça. Nunca vai precisar ter vergonha de
suas orelhas, querida esposa do doutor.
O resguardo de Anne foi rápido e feliz. Os amigos visitavam a
casa dos sonhos e adoravam o bebê, assim como as pessoas vêm
se curvando diante do esplendor de um recém-nascido desde
muitos séculos antes do momento em que os reis magos do Oriente
se ajoelharam em homenagem ao menino Jesus na manjedoura de
Belém. Leslie, acostumando-se lentamente a suas novas condições
de vida, estava sempre por perto, lembrando uma bela madona com
uma coroa de ouro. A senhorita Cornelia cuidava dele com tanta
habilidade quanto qualquer mãe em Israel. O capitão Jim segurava
a pequena criatura em suas mãos grandes e morenas e a olhava
ternamente, com olhos que viam as crianças que ele nunca tivera.
– Como vão chamá-lo? – indagou a senhorita Cornelia.
– Anne escolheu o nome – Gilbert respondeu.
– James Matthew, em homenagem aos dois cavalheiros mais
admiráveis que já encontrei na vida... sem nem mesmo poupar sua
presença – acrescentou Anne, com um olhar malicioso para o
marido.
Gilbert sorriu.
– Não conheci Matthew muito bem: ele era tão tímido, que eu e
os outros garotos nunca pudemos nos aproximar muito. Entretanto,
concordo com você que o capitão Jim é uma das mais raras e
magníficas almas que Deus já criou. E como está feliz com o fato de
termos dado seu nome ao nosso bebê. Parece que ele não tem
mais nenhum homônimo.
– Bem, James Matthew é um nome forte, que certamente vai
resistir ao tempo e ao uso – disse a senhorita Cornelia. – Estou
contente por vocês não o terem oprimido com algum nome pomposo
ou romântico do qual ele poderia se envergonhar quando for avô. A
senhora William Drew, lá de Glen, chamou seu bebê de Bertie
Shakespeare. Não é uma combinação extravagante? E também me
alegra o fato de não terem tido muita dificuldade em decidir sobre
um nome, como acontece com algumas pessoas. Quando o
primeiro filho de Stanley Flaggs nasceu, por exemplo, houve tanta
discussão a respeito de quem seria homenageado na escolha de
seu nome, que a pobre pequena alma teve de viver dois anos sem
ter um. Então veio um irmão, e os dois se tornaram “Bebê Grande” e
“Bebê Pequeno”, respectivamente. Por fim, chamaram o “Bebê
Grande” de Peter, e o “Bebê Pequeno”, de Isaac, em homenagem
aos dois avôs. Ambos foram batizados juntos, e os dois competiram
para ver qual gritava mais alto do que o outro. E conhecem o caso
dos MacNab, que são provenientes das Terras Altas da Escócia e
moram atrás de Glen? O casal tem doze filhos homens, e o
primogênito e o caçula têm o mesmo nome: Neil; imaginem que na
mesma família há o Neil Grande e o Neil Pequeno. Bem, suponho
que o estoque de nomes dos MacNab tenha se esgotado após o
décimo primeiro filho.
– Eu li em algum lugar – Anne riu – que o primeiro filho é um
poema, mas o décimo é uma prosa trivial. Talvez a senhora MacNab
tenha pensado que o décimo segundo fosse meramente uma
história antiga recontada.
– Ora, famílias grandes têm vantagens que merecem ser levadas
em consideração – afirmou a senhorita Cornelia com um suspiro. –
Fui filha única durante oito anos e desejei verdadeiramente um
irmão e uma irmã. Mamãe me aconselhou a orar para conseguir
pelo menos um; e foi o que realmente fiz, acreditem em mim. Bem,
um dia tia Nelly me disse: “Cornelia, há um irmãozinho para você lá
no andar de cima, no quarto de sua mãe. Você pode ir até lá para
conhecê-lo”. Fiquei tão feliz e empolgada que praticamente voei
escada acima. Assim que entrei no quarto, uma velha senhora Flagg
ergueu o bebê para que eu pudesse vê-lo. Jesus, Anne, nunca
fiquei tão desapontada. O fato é que eu vinha orando por um irmão
dois anos mais velho do que eu.
– Quanto tempo foi preciso para a senhorita superar sua
decepção? – perguntou Anne, em meio a uma risada.
– Bem, senti rancor contra a Providência por um bom período, e
por semanas nem olhei para o bebê. Ninguém sabia por que, pois
eu nunca disse. Então ele começou a ficar realmente simpático e
gracioso, e a estender suas mãozinhas para mim. Com isso,
comecei a gostar dele. Mas não me reconciliei realmente com meu
irmão até o dia em que uma colega de escola veio vê-lo e disse que
o achava terrivelmente pequeno para a idade. Fiquei furiosa e a
ataquei verbalmente o quanto pude; falei que ela não reconhecia um
bebê primoroso quando via um, e que o nosso era o mais
encantador do mundo. Depois disso, passei a simplesmente adorá-
lo. Minha mãe morreu antes que ele tivesse três anos de idade, e eu
fui irmã e mãe para ele. Pobre garoto! Nunca foi forte e morreu
quando tinha pouco mais de vinte anos. Acho que eu teria dado
qualquer coisa neste mundo, Anne, para que ele vivesse.
A senhorita Cornelia suspirou mais uma vez. Gilbert já tinha
descido, e Leslie, que havia ninado o pequeno James Matthew perto
da janela, colocou-o adormecido no berço e foi para casa. Assim
que ela estava suficientemente distante para não escutar o que
fosse dito no quarto, a senhorita Cornelia se inclinou e sussurrou em
tom de conspiração:
– Anne, recebi uma carta de Owen ontem. Ele está em Vancouver
agora, mas quer saber se posso hospedá-lo por um mês em um
futuro próximo. Você sabe o que isso significa. Bem, espero que
estejamos agindo corretamente.
– Não temos nada a ver com isso, não poderíamos impedi-lo de
vir a Four Winds, se ele quisesse – disse Anne rapidamente.
Ela não gostou da sensação de casamenteira que os sussurros
da senhorita Cornelia lhe deram. Porém, segundos depois cedeu
facilmente.
– Não deixe Leslie saber da vinda de Owen até que ele chegue –
disse. – Se ela ao menos desconfiar, tenho certeza de que vai
embora imediatamente. De qualquer modo, ela já tem a intenção de
se mudar no outono. Leslie comentou comigo outro dia que
pretende estudar enfermagem em Montréal e fazer o que puder de
sua vida.
– Querida Anne – a senhorita Cornelia falou, acenando
sabiamente com a cabeça –, o que tiver de ser vai ser; você e eu
fizemos nossa parte e devemos deixar o resto para mãos
superiores.
Q
uando Anne foi ao andar de baixo novamente, Prince Edward
Island, assim como todo o Canadá, estava em plena e
inquietante campanha para as eleições gerais. Gilbert, que
era um conservador fervoroso, viu-se envolvido no processo, pois
era muito procurado para fazer discursos em vários comícios do
condado. Entretanto, a senhorita Cornelia não aprovava a
participação do médico nos eventos políticos e disse isso a Anne.
– O doutor Dave nunca fez isso. E mais cedo ou mais tarde o
doutor Blythe vai se dar conta de que está cometendo um erro,
acredite em mim. A política é uma coisa na qual nenhum homem
decente deve se intrometer.
– Então o governo do país deve ser deixado somente a cargo dos
patifes? – Anne retrucou.
– Sim... desde que sejam patifes conservadores – afirmou a
senhorita Cornelia, saindo-se triunfalmente da situação. – Os
homens e os políticos são todos farinha do mesmo saco; os liberais
têm mais impurezas misturadas ao pó (uma quantidade
consideravelmente maior de sujeira) que os conservadores, só isso.
Porém, seja ele liberal ou conservador, meu conselho para o doutor
Blythe é manter-se distante da política. Caso contrário, quando você
menos esperar, ele próprio vai disputar uma eleição.
Consequentemente vai ter de passar metade do ano em Ottawa e,
com isso, sua prática médica vai ficar terrivelmente prejudicada.
– Não devemos sofrer por antecipação – Anne argumentou. – Os
juros são altos demais. Em vez disso, vamos olhar para o pequeno
Jem. Ele não é perfeitamente lindo? Veja as covinhas em seus
cotovelos. Vamos criá-lo para ser um bom conservador; nós duas,
senhorita Cornelia.
– Eduque-o para ser um bom homem – disse a senhorita
Cornelia. – Eles são escassos e valiosos; mas preciso dizer também
que eu realmente não gostaria que ele se tornasse um liberal.
Quanto às eleições, você e eu podemos ficar gratas por não
morarmos no outro lado do porto. O ar por ali está pesado
atualmente. Cada um dos Elliot, dos Crawford e dos MacAllister está
extremamente exaltado, totalmente preparado para qualquer
confronto. O lado de cá é calmo e pacífico, visto que tem tão poucos
homens. O capitão Jim é um liberal, mas penso que ele tem
vergonha disso, pois nunca fala de política. Não há nenhuma
sombra de dúvida de que os conservadores vão ser eleitos outra
vez, e com uma grande maioria de votos.
A senhorita Cornelia estava enganada. Na manhã seguinte às
eleições, o capitão Jim visitou a pequena casa branca para contar a
novidade. Tão peçonhento é o vírus da política partidária, mesmo
em um senhor idoso e tranquilo, que suas bochechas estavam
vermelhas e seus olhos brilhavam com todo o fogo dos velhos
tempos.
– Senhora Blythe, os liberais foram eleitos com uma maioria
esmagadora de votos. Finalmente, após dezoito anos de má
administração pelos conservadores, este país oprimido vai ter uma
chance de se recuperar.
– Nunca tinha ouvido o senhor fazer um discurso partidário tão
rancoroso antes, Capitão Jim. Não pensei que houvesse tanto
ressentimento político no senhor – riu Anne, que não demonstrou
muito interesse pela notícia; afinal, o pequeno Jem havia dito “da-
da” naquela manhã, e o que eram principados e poderes, ascensões
e quedas de dinastias, vitórias e derrotas de conservadores ou
liberais, em comparação com aquele acontecimento milagroso?
– Isso vem se acumulando por um longo período de tempo –
explicou o capitão, com um sorriso envergonhado. – Achava que era
um liberal moderado, mas, quando recebi a notícia de que tínhamos
vencido, descobri o quanto eu realmente sou adepto do partido.
– O senhor sabe que meu marido e eu somos conservadores,
não sabe?
– Bem, esse é o único defeito que conheço de vocês, senhora
Blythe. Cornelia também é conservadora. Quando voltava de Glen,
passei na casa dela para lhe contar a novidade.
– Não pensou que estava pondo sua vida em risco?
– Sim, mas não pude resistir à tentação.
– Como ela reagiu?
– Calmamente, para minha surpresa, senhora Blythe;
calmamente. Olhou para mim e disse: “Bem, a Providência designa
tempos de humilhação para um país, assim como para os
indivíduos. Vocês, liberais, têm sentido frio e fome há muitos anos.
Contudo, apressem-se para se aquecerem e se alimentarem
bastante, pois não vão ficar no poder por muito tempo”. “Ora,
Cornelia”, falei, “talvez a Providência pense que o Canadá precisa
de um longo período de humilhação”. Ah, Susan, você já ouviu a
notícia? Os liberais venceram!
Susan tinha acabado de vir da cozinha, acompanhada pelo
aroma de pratos deliciosos que sempre parecia pairar ao seu redor.
– Ganharam as eleições? – ela disse, com total desinteresse. –
Bem, só sei que, quando os liberais estavam no poder, meu pão
cresceu tão bonito, leve e macio como quando não estavam. E se
algum partido, querida esposa do doutor, vai fazer chover antes do
fim da semana e salvar da ruína total nosso jardim em frente à
cozinha, esse é o partido que Susan vai apoiar. Enquanto isso, a
senhora poderia, por favor, apenas vir comigo e me dar sua opinião
sobre a carne para o jantar? Temo que esteja muito dura, e acho
que seria melhor pensarmos sobre uma mudança de açougueiro
também, além da troca em nosso governo.
Certo fim de tarde, uma semana depois, Anne caminhou até o
pontal, a fim de ver se conseguia algum peixe fresco com o capitão
Jim. Era a primeira vez que se separaria do pequeno Jem, e foi um
grande drama. E se ele chorasse? E se Susan não soubesse
exatamente o que fazer com ele? Entretanto, Susan estava calma e
serena.
– Tenho tanta experiência com ele quanto a senhora, querida
esposa do doutor, não tenho?
– Sim, com Jem, sim, mas não com outros bebês. Quanto a mim,
cuidei de três pares de gêmeos quando eu era apenas uma criança,
Susan. Quando eles choravam, eu lhes dava hortelã-pimenta ou
óleo de rícino. É bastante curioso lembrar agora como tratei
calmamente todos aqueles bebês e seus distúrbios.
– Se o pequeno Jem chorar, vou apenas pôr uma bolsa de água
quente sobre sua barriguinha – Susan prometeu.
– Não muito quente, você sabe, não é? – Anne recomendou
ansiosamente. – Será que é mesmo sensato eu ir até o farol agora?
– Não se preocupe, querida esposa do doutor. Susan não
queimaria um bebê. E este é abençoado, não chora por nada!
Por fim, Anne saiu e apreciou a caminhada até o pontal, em meio
às longas e belas sombras do pôr do sol. O capitão Jim não estava
na sala de estar do farol, mas havia outro homem lá. Era um
indivíduo bonito, de meia-idade, com um queixo forte e bem
barbeado que Anne desconhecia. No entanto, quando se sentou, o
homem começou a falar com ela com a segurança de um velho
conhecido. Não havia nada de errado no que ele disse ou na
maneira como falou, mas Anne estranhou a forma como aquele
desconhecido a tratou, e por isso suas respostas foram frias e
poucas, o quanto a boa educação exige. Nada constrangido, ele
falou por vários minutos; depois pediu licença e foi embora. Anne
poderia jurar que havia em seus olhos um brilho incômodo. Afinal,
quem era aquela criatura? Havia algo vagamente familiar nele, mas
ela estava certa de que nunca o tinha visto antes.
– Capitão Jim, quem é aquele homem que acabou de sair? –
perguntou quando o capitão entrou na sala.
– Marshall Elliot.
– Marshall Elliot! – Anne exclamou. – Oh, capitão Jim... não era...
sim, era a voz dele. Não o reconheci. E fui quase rude! Por que ele
não me disse? Não é possível que não tenha notado que não o
reconheci.
– Ele não diria uma palavra sequer sobre isso, pois suponho que
se divertiu com o fato. Não se preocupe por tê-lo tratado secamente,
ele deve ter achado tudo engraçado. Sim, Marshall finalmente tirou
a barba e cortou o cabelo. Seu partido venceu as eleições, a
senhora sabe. Eu também não o reconheci na primeira vez que o vi
com essa nova aparência. Na noite seguinte ao dia das eleições, ele
estava na loja de Carter Flagg, em Glen, junto com uma multidão de
pessoas, esperando pelas notícias. Por volta de meia-noite, o
telefonema chegou: os liberais conquistaram o poder. Marshall
simplesmente se levantou e saiu. Não vibrou nem gritou. Deixou que
os outros fizessem isso, e realmente eles quase arruinaram a loja de
Carter, acho. Já os conservadores estavam todos na loja de
Raymond Russell. Obviamente, lá não houve comemoração.
Determinado, Marshall desceu a rua até a porta lateral da barbearia
de Augustus Palmer. Augustus estava na cama, dormindo
profundamente, mas Marshall deu socos na porta até que ele se
levantou e desceu, querendo saber o que era toda aquela algazarra.
“Entre em sua loja e faça o melhor trabalho de sua vida, Gus”,
Marshall falou. “Os liberais venceram, e você vai barbear um bom
partidário deles antes do nascer do sol”. Gus ficou furioso; em parte,
porque tinha sido arrancado da cama, mas sobretudo por ser um
conservador. Assegurou que não trabalharia para homem nenhum
durante a madrugada. “Você vai fazer o que eu quero, rapaz”,
Marshall ordenou, “ou vai receber aquelas palmadas que sua mãe
se esqueceu de lhe dar”. Ele teria cumprido sua palavra, e Gus
sabia disso. Ora, Marshall é forte como um touro, ao passo que Gus
não passa de um nanico. Portanto, o homem cedeu, os dois
entraram no estabelecimento, e o barbeiro falou: “Ouça bem, vou
fazer meu trabalho, mas, se você me disser uma só palavra sobre a
vitória dos liberais, corto sua garganta com esta navalha”. Ninguém
pensaria que o pequeno e manso Gus poderia ser tão sanguinário,
pensaria? Isso mostra o que um partido político é capaz de fazer
com um homem. Marshall ficou quieto, livrou-se do cabelo e da
barba e foi para casa. Quando o ouviu subir a escada, sua velha
governanta espiou pela porta de seu quarto para ver se era ele ou o
garoto que trabalha para Marshall. Ao ver um homem estranho
caminhando pelo corredor com uma vela na mão, a mulher soltou
um berro altíssimo e desmaiou. Foi preciso chamar o médico para
fazê-la recuperar a consciência, e vários dias se passaram antes
que a governanta pudesse olhar para ele sem estremecer.
O capitão Jim não tinha nenhum peixe. Naquele verão, ele
raramente saíra para pescar, e já não fazia mais suas longas
expedições a pé. Passava grande parte de seu tempo diante da
janela que dava vista para o mar, olhando para o golfo, com a
cabeça, cujo cabelo embranquecia rapidamente, apoiada na mão.
Nesse dia, ele ficou sentado lá por muitos minutos silenciosos,
mantendo com o passado algum encontro que Anne não ousaria
perturbar. Em seguida, apontou para um arco-íris no Ocidente.
– Não é lindo, senhora Blythe? Porém, eu gostaria muito que a
senhora tivesse visto o sol nascer esta manhã. Foi algo
maravilhoso... maravilhoso! Já desfrutei de todos os tipos de
amanhecer ali naquele golfo. Viajei pelo mundo todo, senhora
Blythe, e vi muitas coisas belas, mas, levando todas em conta,
nenhuma se compara ao nascer do sol de verão sobre o golfo. Um
homem não pode escolher o dia de sua morte, senhora Blythe, tem
de simplesmente partir quando o Grande Capitão convocá-lo para
zarpar rumo a sua última viagem. No entanto, se eu pudesse, iria
quando a manhã surge sobre aquela água. Vi esse momento
diversas vezes e pensei em como seria magnífico atravessar aquele
grande esplendor branco para ir ao encontro do que quer que esteja
me esperando do outro lado... um mar que não está em nenhum
mapa. Acho, senhora Blythe, que lá eu encontraria Margaret
desaparecida.
Desde que contara a antiga história a Anne, o capitão Jim lhe
falava com frequência sobre Margaret desaparecida, e seu amor por
ela transparecia em cada palavra: um amor que nunca havia sido
esquecido nem perdido intensidade.
– De qualquer forma, espero que, quando chegar minha hora, eu
vá fácil e rapidamente. Não me considero um covarde, senhora
Blythe. Mais de uma vez encarei a possibilidade de ter uma morte
terrível sem sequer empalidecer. Mas o pensamento de uma partida
demorada realmente me causa uma sensação estranha e doentia
de pavor.
– Não fale sobre nos deixar, caro e muito querido capitão Jim –
Anne suplicou com a voz embargada, afagando a velha mão
morena, antes tão forte, mas agora muito frágil. – O que faríamos
sem o senhor?
O capitão sorriu graciosamente.
– Ora, vocês ficariam bem... muito bem. Mas a senhora nunca se
esqueceria completamente deste velho homem, não é verdade?
Não, acho que sempre vai se lembrar dele, senhora Blythe. Aqueles
que pertencem à raça de Joseph jamais se esquecem uns dos
outros. E vai ser uma lembrança que não vai doer. Gosto de pensar
que minha memória não vai machucar meus amigos; acredito nisso
e espero que ela seja sempre, digamos, agradável para eles. Agora
já não vai demorar muito para Margaret desaparecida me chamar
pela última vez. E vou estar pronto para responder. Bem, só estou
dizendo isso porque há um pequeno favor que quero lhe pedir. Aqui
está este meu pobre e velho amigo...
O capitão Jim estendeu uma das mãos e cutucou a grande,
quente e aveludada bola dourada sobre o sofá. Produzindo um
barulho gutural e agradável – meio miado, meio rom-rom –, Primeiro
Imediato esticou o corpo como uma mola, ergueu as patas no ar,
virou-se e se enrolou novamente. O capitão prosseguiu:
– Ele vai sentir minha falta quando eu zarpar. Não suporto a ideia
de deixar a pobre criatura morrendo de fome, como foi deixado
antes. Se alguma coisa acontecer comigo, pode dar-lhe comida e
um canto para dormir, senhora Blythe?
– Pode ter certeza de que farei isso.
– Bem, isso é tudo o que eu tinha em mente. Seu pequeno Jem
vai herdar alguns objetos interessantes que possuo; já cuidei disso.
E agora devo dizer que não gosto de ver lágrimas nesses lindos
olhos, senhora Blythe. Talvez eu ainda permaneça um bom tempo
por aqui. Eu a ouvi lendo um poema de Tennyson em um dia do
inverno passado. Digamos que gostaria de escutá-lo novamente
agora, se a senhora pudesse recitar para mim.
Doce e claramente, enquanto a brisa do mar atravessava a janela
e soprava sobre eles, Anne repetiu os belos versos do maravilhoso
canto do cisne******** de Tennyson: Crossing the Bar.******** O
velho capitão marcou o ritmo suavemente com a mão musculosa.
– Sim, sim, senhora Blythe – ele disse quando Anne terminou. –
É isso, isso mesmo. A senhora me falou que Tennyson não era
marinheiro, mas não entendo como, não sendo um, ele pôde
expressar tão bem os sentimentos de um velho marujo. Ele não
desejava nenhuma “tristeza da despedida”, e eu também não quero,
senhora Blythe... Tudo vai ficar bem comigo, e com os meus, para lá
da barreira.
A
lguma novidade sobre Green Gables, Anne?********
– Nada muito especial – respondeu Anne, dobrando a carta
de Marilla. – Jake Donnell esteve lá para reformar o telhado.
Ele é um carpinteiro muito competente agora, portanto parece que
conseguiu a profissão que queria. Você lembra que a mãe dele
queria que o filho fosse professor universitário? Nunca vou me
esquecer do dia em que ela foi até a escola e me repreendeu
porque eu não o chamava de Saint Clair.
– Alguém o trata por esse nome atualmente?
– É evidente que não. Parece que ele já superou essa questão
embaraçosa; até a mãe desistiu disso. Sempre achei que um garoto
com o queixo e a boca de Jake acabaria conseguindo tudo o que
quisesse. Diana me escreveu também e contou que Dora tem um
namorado. Pense bem nisso. Aquela criança, Gilbert!
– Dora já tem dezessete anos – ele respondeu. – Charlie Sloane
e eu éramos ambos apaixonados por você quando você estava com
essa idade, Anne.
– É verdade; estamos envelhecendo mesmo – disse Anne, com
um sorriso meio pesaroso. – As crianças que tinham seis anos
quando pensávamos que éramos adultos já têm idade suficiente
para namorar. O pretendente de Dora é Ralph Andrews, irmão de
Jane. Eu me lembro dele como um menino baixo e gordo, com
cabelo muito claro, e que era sempre o último da classe. Mas, pelo
que entendi, tornou-se um rapaz com ótima aparência.
– Dora provavelmente vai se casar jovem. Ela é do tipo de
Charlotta Quarta: jamais vai perder sua primeira oportunidade, por
receio de que não tenha outra.
– Bem, se ela se casar com Ralph, espero que ele seja um pouco
mais ativo que seu irmão Billy – Anne pensou em voz alta.
– Por exemplo – Gilbert riu –, esperemos que ele seja capaz de
propor casamento por conta própria. Anne, você teria se casado
com Billy se ele próprio tivesse feito o pedido, em vez de convencer
Jane a fazer isso por ele?
– Talvez – Anne deu uma gargalhada ao se lembrar de sua
primeira proposta de casamento. – O choque poderia ter me
hipnotizado e me levado a cometer um ato tão precipitado e tolo.
Vamos ser gratos por ele ter feito por procuração.
– Recebi uma carta de George Moore ontem – comentou Leslie,
que estava lendo em um canto da sala.
– Como ele está? – Anne perguntou com interesse, embora
tivesse a sensação esquisita de que pedia notícias de alguém que
não conhecia.
– Está bem, mas com muita dificuldade para se adaptar a todas
as mudanças de seu antigo lar e de seus velhos amigos. Na
primavera, vai para o mar novamente. Diz que essa necessidade de
navegar está em seu sangue, e que espera ansiosamente para
zarpar. E me contou também uma coisa que me deixou feliz por ele,
pobre rapaz. Antes de embarcar no Four Sisters, George estava
noivo de uma garota lá de onde ele morava. Não me falou nada
sobre isso em Montréal porque supôs que ela já o teria esquecido e
se casado com outro muito tempo atrás. Vocês sabem, para ele, o
noivado e o amor ainda eram algo do presente, e por isso foi muito
doloroso enfrentar essa situação. No entanto, para sua surpresa,
acabou descobrindo que ela nunca se casou e que ainda o ama.
Vão se casar no próximo outono. Vou pedir a George para trazê-la
aqui; ele diz que quer vir e ver o lugar onde viveu tantos anos sem
saber.
– Que história bonita! – exclamou Anne, em quem a paixão pelo
romantismo era imortal. – E pensar que – acrescentou, com um
suspiro de remorso – se tudo tivesse acontecido do meu jeito, a
identidade de George Moore nunca teria saído do túmulo em que
estava enterrada. Como lutei contra a sugestão de Gilbert! Bem, já
estou punida: nunca mais poderei ter uma opinião diferente da de
Gilbert! Se eu ao menos tentar, ele vai me calar lançando contra
mim o caso de George Moore!
– Como se isso fosse capaz de calar uma mulher! – zombou
Gilbert. – Mas, por favor, não se torne um eco de tudo o que eu
disser, Anne. Um pouco de oposição dá um tempero especial à vida.
Não quero uma esposa como a de John MacAllister, lá do outro lado
do porto. Não importa o que ele diga, ela imediatamente comenta
naquela vozinha monótona e sem vida dela: “Isso é a mais pura
verdade, meu querido John!”.
Anne e Leslie riram. Foi como se a risada de Anne fosse de prata
e a de Leslie, de ouro, e a combinação das duas criasse um som tão
belo quanto um acorde musical perfeito.
Entrando na sala exatamente ao fim das risadas, Susan as ecoou
com um suspiro ruidoso.
– Qual é o problema, Susan? – Gilbert indagou.
– Não tem nada errado com o pequeno Jem, tem, Susan? – Anne
falou, alarmada.
– Não, não, acalme-se, querida esposa do doutor. Mas aconteceu
uma coisa. Oh, nada deu certo para mim esta semana. Estraguei o
pão, como sabem muito bem; queimei a melhor camisa do doutor
com o ferro de passar roupa; e espatifei a sua travessa grande...
Agora, ainda por cima, chegou a notícia de que minha irmã Matilda
quebrou a perna e quer que eu fique algum tempo lá com ela.
– Que pena! – Anne exclamou. – Quer dizer, sinto muito por sua
irmã ter sofrido esse acidente – explicou em seguida.
– “O homem foi feito para lamentar”, querida esposa do doutor.
Soa como se estivesse na Bíblia, mas já me disseram que foi um tal
de Burns******** que escreveu isso. E não há nenhuma dúvida de
que nascemos para sofrer: isso é tão verdadeiro quanto dizer que as
fagulhas voam para cima. Quanto a Matilda, não sei o que pensar.
Ninguém de nossa família nunca quebrou uma perna antes. Porém,
o que quer que ela tenha feito, é minha irmã, e sinto que tenho o
dever de ir até lá e cuidar dela, se a querida esposa do doutor puder
me dispensar por algumas semanas.
– Claro que sim, Susan; é lógico. Posso conseguir alguém para
me ajudar enquanto você estiver fora.
– Se não conseguir, eu não vou, querida esposa do doutor,
apesar do problema de Matilda. Não quero que fique preocupada
nem que, por isso, aquela criança abençoada sofra. Não por causa
de perna nenhuma.
– Você tem de ir imediatamente para a casa de sua irmã, Susan.
Posso contratar uma garota da enseada para me ajudar
temporariamente.
– Anne, você me deixaria ficar com você enquanto Susan estiver
ausente? – Leslie perguntou ansiosamente. – Por favor! Eu
adoraria! E você estaria fazendo um ato de caridade. Tenho me
sentido tão horrivelmente solitária naquela casa enorme! Quase não
tenho o que fazer lá, e à noite me sinto ainda pior: fico nervosa e
tenho medo, apesar das portas trancadas. Havia um homem
estranho rondando a propriedade anteontem.
Anne concordou alegremente, e no dia seguinte Leslie já estava
instalada como moradora da pequena casa dos sonhos. A senhorita
Cornelia aprovou calorosamente a mudança.
– Parece providencial – ela confidenciou a Anne. – Sinto muito
por Matilda Clow, mas, como ela tinha mesmo de quebrar a perna,
isso não poderia ter acontecido em melhor hora. Agora, Leslie vai
permanecer aqui enquanto Owen Ford estiver em Four Winds, e
aqueles gatos velhos de Glen não vão ter a chance de miar, como
fariam se ela estivesse morando lá sozinha e Owen frequentasse a
casa para vê-la. Já estão falando dela o suficiente, comentando que
não está usando luto. Outro dia, falei com uma dessas
mexeriqueiras: “Se você quer dizer que ela deveria colocar luto por
George Moore, me parece mais apropriado pensar que houve uma
ressurreição, e não um funeral; e se é a Dick que você se refere,
confesso que não vejo sentido nenhum em expressar tristeza por
um homem que morreu treze anos atrás e que já foi tarde!”. E
quando a velha Louisa Baldwin comentou comigo que achava muito
estranho Leslie nunca ter suspeitado que aquele não era o marido,
eu disse: “Você nunca suspeitou que ele não era Dick Moore,
embora tenha sido vizinha dele a vida inteira; e, por natureza, você
é dez vezes mais desconfiada que Leslie”. Entretanto, não se pode
parar a língua de algumas pessoas, Anne, e estou muito grata por
Leslie estar sob seu teto enquanto Owen a corteja.
Owen Ford visitou a pequena casa branca em um fim de tarde de
agosto, quando Leslie e Anne estavam absortas em adorar o bebê.
Ele parou na soleira da porta aberta da sala de estar e, sem ser
visto pelas duas lá dentro, admirou avidamente a bela imagem.
Leslie estava em êxtase, sentada no chão com o bebê no colo,
dando tapinhas leves em suas mãos pequeninas e rechonchudas
enquanto ele as agitava no ar.
– Oh, lindo, encantador e amado bebê! – ela murmurou, pegando
uma das mãos de Jem e cobrindo-a de beijos.
– Ele não é o minininho mais quelido? – sussurrou
apaixonadamente Anne, debruçada sobre o braço da poltrona. – E
essas coisinhas piquinininhas aqui são as mãozinhas mais
adoláveis desse mundo gandão intêlo, não são, amozinho da
mamãe?
Durante os meses que precederam a chegada do filho, Anne se
debruçou diligentemente sobre vários livros considerados muito
sábios e fixou sua fé em um em especial, o Guia do Senhor Oráculo:
como cuidar de crianças e educá-las. O Senhor Oráculo implorava
aos pais, por tudo o que eles consideravam mais sagrado, que
nunca usassem “fala de bebê” ao conversar com seus filhos.
Segundo ele, os bebês devem ser sempre tratados com a
linguagem correta, desde o nascimento. Devem aprender, desde o
início, a falar a língua materna obedecendo a todas as suas normas.
“Como”, perguntava o Senhor Oráculo, “pode a mãe esperar que
seu filho aprenda a fala correta, quando ela continuamente
acostuma sua massa cinzenta, ainda extremamente impressionável,
a tais expressões absurdas e distorções de nossa nobre língua? Só
as mães desajuizadas impõem isso todos os dias às criaturas
indefesas que estão sob seu cuidado. Uma criança que é
constantemente chamada de ‘coisinha mais bunitinha’ pode algum
dia chegar a qualquer concepção adequada de seu próprio ser, suas
possibilidades e seu destino?”.
Anne ficou muito impressionada com isso e informou Gilbert que
pretendia tornar a regra inflexível e nunca, em nenhuma
circunstância, usar “fala de bebê” com seus filhos. Gilbert concordou
com ela, e ambos fizeram um pacto solene sobre o assunto, uma
combinação que Anne violou sem nenhum constrangimento no
primeiro instante em que o pequeno Jem foi colocado em seus
braços.
– Zente, que coisinha mais encantadola da mamãe! – Desde
então, Anne continuou a violar o pacto. E quando Gilbert a
provocava, ela ria do Senhor Oráculo com desprezo.
– Ele nunca teve seus próprios filhos, Gilbert. Tenho certeza de
que nunca foi pai; caso contrário, jamais escreveria uma bobagem
como essa. É inevitável falar assim com um bebê. Vem
naturalmente, e está certo. Não seria humano alguém se dirigir a
essas criaturas tão pequenas, belas, doces e fofas da mesma forma
que faria com meninos e meninas maiores. Bebês querem amor,
aconchego e toda a “fala de bebê” que puderem receber. O pequeno
Jem vai ter tudo isso. E que Deus abençoe o coraçãozinho do meu
neném!
– Mas, Anne, sua maneira de falar com ele é a pior que já ouvi –
protestou Gilbert, que, não sendo mãe, apenas pai, ainda não havia
se convencido totalmente de que o Senhor Oráculo estava errado. –
Nunca ouvi nada parecido com o modo como você fala com essa
criança.
– É bem provável que não tenha mesmo. Agora, saia daqui. Vá
embora. Pois não criei três pares de gêmeos Hammond antes dos
meus onze anos de idade? Você e o Senhor Oráculo não passam
de dois teóricos insensíveis. Gilbert, apenas olhe para ele! Está
sorrindo para mim, Jem sabe sobre o que estamos conversando. E
é clalo que essa coisinha adolável concorda com tudo o que mamãe
disse, num é, meu anjinho?
Gilbert abraçou os dois.
– Ora, as mães! Deus sabia o que estava fazendo quando criou
vocês.
E o pequeno Jem foi mimado, acariciado e amado; e assim ele
cresceu e se desenvolveu na pequena casa dos sonhos. Leslie
ficava tão derretida diante dele quanto Anne. Quando o trabalho
doméstico terminava e Gilbert estava fora, elas se deliciavam
brincando com o bebê e adorando-o sem limites, como na ocasião
em que Owen Ford as surpreendeu.
Leslie foi a primeira a vê-lo. E, apesar da pouca luz do
crepúsculo, Anne pôde perceber a palidez que invadiu o lindo rosto
da amiga, fazendo desaparecer o vermelho forte de seus lábios e
bochechas. Owen se aproximou ansiosamente, cego por um
momento à presença de Anne.
– Leslie! – exclamou, estendendo a mão. Era a primeira vez que
ele a chamava pelo nome.
Porém, a mão que Leslie lhe deu estava fria, e a moça
permaneceu quieta e calada durante todo o tempo em que Anne,
Gilbert e Owen conversaram e riram juntos. Antes que este se
despedisse, ela se desculpou e subiu para seu quarto.
Imediatamente, o ânimo e o bom humor de Owen se dissiparam, e
ele foi embora logo depois, com um ar abatido.
Gilbert olhou para a esposa e perguntou:
– Anne, o que você está tramando? Tem algo acontecendo, e eu
não sei direito o que é. O ambiente aqui hoje estava elétrico. Leslie
ficou sentada como a musa de uma tragédia; Owen Ford brincou e
riu superficialmente, mas observou Leslie o tempo todo com os
olhos da alma. Já você parecia estar explodindo de entusiasmo
reprimido. Confesse. Que segredo você esconde de seu marido
enganado?
– Não se faça de bobo, Gilbert – foi a resposta de Anne. – Leslie
se comportou de modo absurdo, e vou lá em cima dizer isso a ela.
Anne encontrou Leslie diante da janela de seu quarto. No
pequeno cômodo, ouvia-se claramente o ruído rítmico do mar. A
moça estava sentada, com as mãos entrelaçadas, contemplando a
névoa sobre o luar; uma presença bonita e acusadora.
– Anne – ela murmurou em tom de repreensão –, você sabia que
Owen viria a Four Winds?
– Sabia – Anne respondeu calmamente.
– Você deveria ter me contado, Anne – Leslie retrucou, zangada.
– Se eu ao menos imaginasse, teria ido embora antes. Não ficaria
aqui para encontrá-lo. Você deveria ter me avisado. Isso não foi uma
atitude fiel. Você não foi leal a mim, Anne!
Os lábios de Leslie tremiam, e todo o seu corpo estava tenso
devido à emoção. Entretanto, Anne riu impiedosamente. Em
seguida, inclinou-se e beijou o rosto erguido e reprovador de Leslie.
– Leslie, você é uma tola adorável. Owen Ford não viajou do
Pacífico para o Atlântico pelo desejo ardente de me ver. Também
não creio que ele tenha sido tomado por alguma paixão selvagem e
frenética pela senhorita Cornelia. Desfaça-se desse ar trágico,
minha amiga querida, dobre-o e guarde-o com um pouco de
lavanda. Você nunca mais vai precisar dele. Existem pessoas que
podem enxergar o que você não consegue ver. Não sou uma
profetisa, mas vou arriscar uma previsão. A amargura de sua vida
acabou. Daqui em diante só vão existir para você as alegrias e
esperanças (e ouso dizer: as tristezas, também) de uma mulher
feliz. O presságio da sombra de Vênus se tornou realidade para
você, Leslie. O ano em que você a viu lhe trouxe o melhor presente
de sua vida: seu amor por Owen Ford. Agora, vá direto para a cama
e durma bem.
Leslie obedeceu, mas pode-se questionar se dormiu muito. Não
creio que ousou sonhar acordada: a vida tinha sido tão difícil para a
pobre Leslie, o caminho que percorrera havia sido tão estreito, que
ela não conseguiria sussurrar para o próprio coração as esperanças
a respeito do que podia aguardá-la no futuro. Mas ela observou a
grande luz giratória iluminando as curtas horas da noite de verão, e
seus olhos se tornaram suaves, brilhantes e jovens mais uma vez. E
quando Owen Ford apareceu no dia seguinte convidando-a para um
passeio na praia, ela não recusou a oferta.
senhorita Cornelia visitou a pequena casa dos sonhos durante
A uma tarde monótona, quando o golfo tinha o tom de azul pálido e
desbotado dos mares de agosto, e os lírios alaranjados próximos ao
portão do jardim de Anne erguiam suas taças imperiais para serem
preenchidas com o ouro derretido do brilho do sol daquela época em
Four Winds. Entretanto, a senhorita Cornelia não se importava com
oceanos coloridos ou lírios sedentos de sol.
Ela se sentou em sua cadeira de balanço favorita e permaneceu
extraordinariamente inativa. Não costurou nem bordou, e também
não disse uma única palavra depreciativa a respeito de qualquer
integrante da humanidade. Em resumo, a conversa da senhorita
Cornelia foi singularmente desprovida de tempero naquele dia, e
Gilbert, que tinha ficado em casa para ouvi-la, em vez de ir pescar,
como pretendia, sentiu-se de certo modo ofendido. O que havia
acontecido com a senhorita Cornelia? Ela não parecia abatida ou
preocupada; pelo contrário, demonstrava um ar de júbilo e tensão
ao mesmo tempo.
– Onde está Leslie? – perguntou, embora isso também não
tivesse muita importância.
– Foi com Owen colher framboesas no bosque atrás da fazenda
dela – respondeu Anne. – Não vão voltar antes da hora do jantar...
Talvez bem depois.
– Eles parecem não ter ideia de que existe uma coisa conhecida
como relógio – disse Gilbert. – Ainda não descobri tudo a respeito
desse caso. Tenho certeza de que vocês, mulheres, têm alguma
participação nisso. Mas Anne, minha esposa desobediente, se
recusa a me contar. Vai me revelar o que sabe, senhorita Cornelia?
– Não, não vou – disse a senhorita Cornelia, com ar determinado
e ligeiramente nervoso. – Porém, vou revelar outra coisa. Vim aqui
hoje com esse propósito. Vou me casar.
Anne e Gilbert ficaram em silêncio. Se a senhorita Cornelia
tivesse comunicado sua intenção de ir até o canal e se afogar, a
novidade seria menos inacreditável. Aquela era surpreendente
demais. Por isso, os dois simplesmente aguardaram. Afinal, a
senhorita Cornelia só poderia ter cometido um engano.
– Vocês dois parecem bastante perplexos – disse a senhorita
Cornelia, com um brilho diferente nos olhos.
Agora que já havia dado a notícia inesperada, a senhorita
Cornelia era ela mesma outra vez.
– Acham que sou jovem e inexperiente demais para o
matrimônio?
– Na verdade, é um comunicado bem impressionante – comentou
Gilbert, tentando se recuperar do susto. – Afinal, ouvi a senhorita
dizer dezenas de vezes que não se casaria nem com o melhor
homem do mundo.
– Não vou me casar com o melhor homem do mundo – retrucou a
senhorita Cornelia. – Marshall Elliot está bem longe de ser o melhor.
– Vai se casar com Marshall Elliot?! – exclamou Anne,
recuperando, após esse segundo choque, a capacidade de falar.
– Sim, eu poderia ter me casado com ele a qualquer momento
nestes últimos vinte anos se tivesse simplesmente levantado meu
dedo. Mas vocês acham que eu entraria na igreja ao lado de um
espantalho ambulante como aquele?
– A senhorita pode ficar certa de que estamos muito contentes
com a notícia... e lhe desejamos toda a felicidade possível – Anne
falou de maneira muito direta e esquisita, que era como ela se
sentia; afinal, não estava nada preparada para tal situação, pois
nunca se imaginara oferecendo felicitações de casamento à
senhorita Cornelia.
– Obrigada. Eu sabia que ficariam felizes – respondeu a senhorita
Cornelia. – Vocês são os primeiros de meus amigos a saber.
– No entanto, vamos lamentar perdê-la, querida amiga – Anne
falou, começando a ficar um pouco triste e sentimental.
– Ora, não vão me perder – disse a senhorita Cornelia friamente.
– Não acham que eu moraria do outro lado do porto, com todos
aqueles MacAllister, Elliot e Crawford, acham? “Da vaidade dos
Elliot, do orgulho dos MacAllister e da arrogância dos Crawford, que
o bom Deus nos livre”. Marshall vem morar em minha casa. Estou
farta de empregados. Aquele Jim Hastings, que contratei neste
verão, é sem dúvida o pior da espécie. Ele levaria qualquer mulher a
se casar. O que pensam disso? Ontem ele derramou no jardim o
balde da batedeira cheio de nata. E não ficou nem um pouco
envergonhado! Apenas soltou uma risada tola e disse que o leite é
bom para o solo. Não foi uma atitude típica dos homens? Eu disse a
ele que não costumo fertilizar minha terra com nata.
– Bem, eu lhe desejo toda a felicidade do mundo, senhorita
Cornelia – Gilbert declarou solenemente –, mas – acrescentou,
incapaz de resistir à tentação de provocá-la, apesar dos olhos
suplicantes de Anne – receio que sua independência chegou ao fim.
Como a senhorita sabe, Marshall Elliot é um homem muito
determinado.
– Aprecio um homem decidido – retrucou a senhorita Cornelia. –
Amos Grant, que costumava me cortejar muito tempo atrás, não era.
Nunca existiu alguém mais instável. Imaginem que uma vez ele
pulou no lago para se afogar e depois mudou de ideia e nadou até a
margem. Não foi uma atitude típica dos homens? Marshall teria
persistido e se afogado.
– E dizem que ele tem um temperamento meio difícil – Gilbert
insistiu.
– Não seria um Elliot se não tivesse. E sou grata por ele ser
assim. Vai ser muito divertido enfurecê-lo. Além disso, podemos
conseguir qualquer coisa de um homem impulsivo quando chega a
hora do arrependimento. Por outro lado, não se pode obter nada de
um homem que simplesmente se mantém sempre irritantemente
plácido.
– A senhorita sabe que ele é um liberal.
– Sim, ele é – a senhorita Cornelia admitiu, pesarosa. – E é claro
que não tenho nenhuma esperança de transformá-lo em um
conservador. Mas pelo menos ele é presbiteriano. Portanto,
suponho que vou ter de me satisfazer com isso.
– Aceitaria se casar com Marshall Elliot se ele fosse metodista,
senhorita Cornelia?
– Não, não me casaria com ele. Política é coisa deste mundo
aqui, mas religião é de ambos.
– Agora a senhorita vai poder se tornar uma “viúva”.
– Eu não. Marshall vai viver mais que eu. Os Elliot alcançam
idades muito avançadas, e os Bryant, não.
– Quando vai ser o casamento? – Anne perguntou.
– Daqui a cerca de um mês. Meu vestido de noiva vai ser de seda
azul-marinho. E eu quero perguntar a você, Anne querida, se acha
que é apropriado usar véu com um vestido azul-marinho. Eu sempre
pensei que gostaria de usar véu se algum dia me casasse. Marshall
disse que, se eu quiser, devo usar. Não é uma atitude típica dos
homens?
– Por que a senhorita não deveria usar um véu, se é o que
deseja? – indagou Anne.
– Bem, não quero ser diferente das outras pessoas – explicou a
senhorita Cornelia, que notavelmente não se parecia com mais
ninguém na face da Terra. – Como já disse, gosto de véus. No
entanto, pode não ser adequado usar um com qualquer vestido que
não seja branco. Por favor, Anne querida, me diga sinceramente o
que você acha. Vou me guiar por seu conselho.
– Creio que geralmente os véus são usados apenas com vestidos
brancos – admitiu Anne –, mas isso é apenas uma convenção; e eu
penso como o senhor Elliott, senhorita Cornelia. Não vejo nenhuma
boa razão pela qual não deva usar um véu, se é isso o que deseja.
Entretanto, a senhorita Cornelia, que fazia suas visitas em roupas
de chita, balançou a cabeça.
– Se não for de bom-tom, não vou usar – afirmou, com um
suspiro de desgosto por um sonho desfeito.
– Já que está decidida a se casar, senhorita Cornelia – Gilbert
falou seriamente –, vou lhe contar quais são as “regras essenciais
para lidar com um marido” que minha avó ensinou a minha mãe
quando ela se casou com meu pai.
– Suponho que eu saiba lidar com Marshall Elliot – disse
calmamente a senhorita Cornelia. – Ainda assim, vamos ouvir suas
regras.
– A primeira é: fisgue-o.
– Já foi fisgado. Prossiga.
– A segunda é: alimente-o bem.
– Com bastante torta. Qual é a próxima?
– A terceira e quarta são: fique sempre de olho nele.
– Acredito em você – a senhorita Cornelia concluiu
enfaticamente.
jardim da pequena casa dos sonhos era um refúgio muito
O apreciado pelas abelhas, e naquele mês de agosto estava
colorido de vermelho pelas rosas tardias. Os moradores estavam
frequentemente por lá e costumavam fazer piqueniques, à noite, no
canto gramado que ficava depois do riacho, além de se sentarem ali
durante o crepúsculo, quando grandes mariposas noturnas
navegavam na escuridão aveludada. Uma noite, Owen Ford
encontrou Leslie sozinha. Anne e Gilbert tinham saído, e Susan, que
voltaria naquela noite, ainda não havia chegado.
O céu ao norte tinha tons de laranja, amarelo e verde-pálido
sobre o topo dos abetos. O ar estava fresco, pois agosto já cedia
lugar a setembro. Leslie usava um cachecol vermelho sobre um
vestido branco. Juntos, os dois caminharam em silêncio entre os
pequenos e simpáticos canteiros repletos de flores.
Owen teria de partir em breve. Suas férias estavam quase no fim.
Leslie sentiu o coração bater mais rápido. Sabia que aquele amado
jardim seria o cenário das palavras comprometedoras que deveriam
selar o relacionamento ainda não formalmente expresso entre os
dois.
– Há noites em que um aroma diferente se espalha no ar deste
jardim, como se fosse um perfume fantasma – disse Owen. – Nunca
fui capaz de descobrir de que flor exatamente ele vem. É
indescritível, marcante e maravilhosamente doce. Gosto de imaginar
que é a alma de minha avó Selwyn passando para uma pequena
visita ao antigo lugar que ela tanto amava. Deve haver vários
fantasmas amigáveis rondando esta pequena casa antiga.
– Faz apenas um mês que moro sob este teto – disse Leslie –,
mas eu o amo como amei aquela casa ali onde passei toda a minha
vida.
– Esta foi construída e consagrada pelo amor – Owen comentou.
– É inevitável que casas desse tipo exerçam uma influência sobre
seus habitantes. E este jardim, então... Ele tem mais de sessenta
anos, e a história de mil esperanças e alegrias está escrita em suas
flores. Algumas foram realmente plantadas pela noiva do professor,
que morreu há trinta anos. No entanto, elas continuam a
desabrochar a cada verão. Olhe para aquelas rosas vermelhas,
Leslie; veja como parecem rainhas em meio a todas as outras!
– Eu amo as rosas vermelhas – Leslie falou. – Anne prefere as
cor-de-rosa, e Gilbert gosta das brancas. Mas eu adoro as que têm
tons carmim. Elas satisfazem, como nenhuma outra flor, uma avidez
que existe em mim.
– Estas rosas são temporãs; elas desabrocham depois que todas
as outras já se foram, mas mantêm em si todo o calor e a alma do
verão – disse Owen, colhendo alguns botões brilhantes e
semiabertos. – As rosas são as flores do amor; o mundo todo
reconhece isso há séculos. As cor-de-rosa representam o amor
pleno de esperanças e expectativas; as rosas brancas retratam o
amor que se acabou ou foi abandonado... Porém, as vermelhas...
Ah, Leslie, o que significam as rosas vermelhas?
– O amor triunfante – disse Leslie em voz baixa.
– Sim, triunfante e perfeito. Leslie, você sabe... você entende. Eu
te amo desde o início. E sei que você me ama, não preciso
perguntar. Mas quero ouvir você dizer isso, minha querida. Meu
amor!
Leslie sussurrou alguma coisa com a voz trêmula. As mãos e os
lábios deles se encontraram. Foi o momento supremo da vida para
os dois, e enquanto estavam ali no antigo jardim, com seus muitos
anos de amor, deleite, tristeza e glória, ele coroou o cabelo brilhante
de Leslie com uma rosa vermelha do amor triunfante.
Pouco depois, Anne e Gilbert chegaram, acompanhados pelo
capitão Jim. Anne acendeu a lareira com lenha trazida da praia, e
todos se sentaram ao redor do fogo para apreciar as chamas
encantadas e desfrutar uma hora muito agradável de
companheirismo.
– Quando contemplo um fogo como esse, é fácil acreditar que
sou jovem outra vez – comentou o capitão.
– O senhor pode ler o futuro no fogo, capitão Jim? – Owen
indagou.
O capitão olhou para todos afetuosamente, depois mirou de novo
o rosto vívido e os olhos brilhantes de Leslie.
– Não preciso do fogo para ler o futuro de vocês – disse. – Vejo
felicidade para todos, todos vocês: para Leslie e o senhor Ford; o
doutor e a senhora Blythe; o pequeno Jem e as crianças que
certamente vão nascer. Muita felicidade para todos, embora,
prestem atenção, eu ache que também vão enfrentar problemas,
preocupações e tristezas. Eles virão, e nenhuma moradia, seja um
palácio ou uma pequena casa dos sonhos, pode impedi-los de
chegar. Mas eles não podem vencer vocês se os enfrentarem
juntos, com amor e confiança. Vocês podem resistir a qualquer
tempestade se tiverem o amor e a confiança como bússola e leme.
Então, o velho marinheiro se levantou subitamente e colocou uma
das mãos sobre a cabeça de Leslie e a outra sobre a de Anne.
– Duas mulheres bondosas e doces – falou. – Sinceras, leais e
confiáveis. Nos anos que estão por vir, seus maridos vão ser
honrados pela sociedade por causa de vocês, e seus filhos vão
crescer e considerá-las abençoadas.
Um ar estranhamente solene reinou durante aquela breve cena.
Anne e Leslie se curvaram como quem recebe uma bênção. Gilbert
passou a mão nos olhos; Owen Ford pareceu enlevado como se
tivesse tido uma visão. Todos ficaram em silêncio por um tempo.
Outro momento comovente e inesquecível tinha sido acrescentado
ao estoque de memórias da pequena casa dos sonhos.
Por fim, o capitão falou devagar:
– Agora preciso ir.
Em seguida, pegou seu chapéu e olhou demoradamente ao redor
da sala.
– Boa noite a todos – disse ao sair.
Anne, perturbada pela melancolia incomum daquela despedida,
correu para a porta.
– Volte logo, capitão Jim – gritou, enquanto ele atravessava o
pequeno portão preso aos dois pinheiros.
– Claro! Claro! – ele respondeu alegremente.
Mas o capitão Jim havia se sentado perto da lareira da casa dos
sonhos pela última vez.
Anne voltou lentamente para perto dos outros.
– É tão... tão triste pensar nele caminhando completamente
sozinho até aquele pontal solitário – lamentou. – E que não há
ninguém esperando por ele no farol...
– O capitão Jim é uma companhia tão boa para as outras
pessoas que se torna impossível imaginá-lo não sendo uma boa
companhia para si mesmo – afirmou Owen. – Mesmo assim, ele
deve se sentir solitário com frequência. Havia nele um toque de
profeta, esta noite: falou como alguém que tinha uma mensagem a
transmitir. Bom, tenho de ir também.
Anne e Gilbert se retiraram discretamente. Entretanto, quando
Owen já havia saído, Anne voltou e encontrou Leslie de pé diante da
lareira.
– Sim, Leslie, eu sei. E estou tão contente, querida – ela falou,
abraçando a amiga.
– Anne, toda essa minha felicidade me assusta – Leslie
murmurou. – Parece intensa demais para ser verdadeira. Sinto
medo de falar sobre ela... de pensar nela. Tenho a sensação de que
é apenas mais um dos sonhos desta casa e que vai desaparecer
quando eu sair daqui.
– Ora, você não vai sair daqui antes que Owen a leve embora.
Vai ficar comigo até esse momento chegar. Achou mesmo que eu a
deixaria voltar para aquele lugar triste e solitário?
– Obrigada, querida. Eu tinha a intenção de lhe pedir para ficar.
Não queria ir para lá de novo. Seria como se eu estivesse
retornando ao frio e à tristeza de minha antiga vida. Anne, Anne,
que amiga maravilhosa você tem sido para mim: “Uma mulher
bondosa e doce. Sincera, leal e confiável”. O capitão Jim a definiu
perfeitamente.
– Ele falou “mulheres”, e não “mulher” – Anne sorriu. – Talvez o
capitão nos veja através das lentes rosadas de seu amor por nós
duas. Mas podemos pelo menos tentar corresponder à imagem que
ele faz de nós.
– Você se lembra, Anne – disse Leslie, pensativa –, que naquela
noite em que nos conhecemos na praia eu lhe disse que odiava
minha beleza? Odiava mesmo, na época. Sempre me pareceu que,
se eu fosse desengonçada, Dick nunca teria nem pensado em mim.
Eu odiava minha beleza porque ela o atraiu, mas hoje... Oh, agora
estou feliz por tê-la. É tudo o que tenho a oferecer a Owen, e sua
alma de artista a venera. Eu me sinto como se não fosse até ele de
mãos vazias.
– É óbvio que ele adora sua beleza, Leslie. Quem não a
adoraria? No entanto, é uma tolice você dizer ou pensar que ela é
tudo o que você traz consigo. Owen vai lhe dizer isso; eu nem
precisava falar. Agora tenho de trancar as portas e janelas.
Esperava que Susan voltasse hoje à noite, mas ela não veio.
– Sim, aqui estou, querida esposa do doutor – declarou Susan,
saindo inesperadamente da cozinha –, ofegante como um atleta ao
término de uma competição. É uma longa caminhada desde Glen
até aqui.
– Que bom vê-la de novo, Susan! Como está sua irmã?
– Ela consegue se sentar, mas é lógico que ainda não anda.
Porém, pode muito bem se virar sem mim agora, pois a filha foi
passar as férias com ela. E me sinto grata por estar de volta,
querida esposa do doutor. A perna de Matilda estava quebrada, e
não há dúvida nenhuma sobre isso, mas sua língua, não. Ela fala
até termos dor de cabeça, embora eu sofra por ter de dizer isso de
minha própria irmã. Sempre teve fama de ser uma grande tagarela,
e ainda assim foi a primeira de nossa família a se casar. Matilda
realmente não se importava muito com o marido, mas não suportava
a ideia de decepcioná-lo. James é um bom homem; para mim, seu
maior defeito é sempre começar a agradecer ao Senhor pelas
refeições com um gemido tão sobrenatural, querida esposa do
doutor, que acaba afastando meu apetite para bem longe. A
propósito, é verdade que Cornelia Bryant vai se casar com Marshall
Elliott?
– Sim, é verdade, Susan.
– Bem, isso não me parece justo. Aqui estou eu que, sem nunca
ter pronunciado uma palavra sequer contra os homens, não consigo
me casar de jeito nenhum. E lá está Cornelia Bryant, que jamais se
cansou de depreciá-los, mas bastou estender a mão para poder
escolher um marido. Este é um mundo muito estranho, querida
esposa do doutor.
– Você sabe que há outro mundo, Susan.
– Sei – Susan retrucou, com um suspiro profundo –, porém não
existem casamentos por lá.
N
o fim de setembro, o livro de Owen Ford finalmente chegou. O
capitão Jim tinha visitado perseverantemente, todos os dias
durante um mês, o posto do correio em Glen, na expectativa
de recebê-lo. No entanto, exatamente nesse dia ele não pôde ir,
mas Leslie trouxe o volume do capitão para casa, junto com o dela e
o de Anne.
– Vamos levar para ele hoje no fim do dia – Anne decidiu,
entusiasmada como uma colegial.
A longa caminhada até o pontal naquele fim de tarde claro e
cativante ao longo da estrada vermelha do porto foi muito agradável.
Então, o sol se pôs atrás das colinas do oeste, em algum vale que
provavelmente estava cheio de pores do sol perdidos, e no mesmo
instante a grande luz giratória brilhou na torre branca.
– O capitão Jim nunca atrasa uma fração de segundo que seja –
comentou Leslie.
Nem Anne nem Leslie jamais se esqueceram do rosto do capitão
quando lhe entregaram o livro; o livro dele, transformado e
glorificado. As bochechas, que recentemente haviam se tornado
pálidas, ficaram coradas como as de um garoto; os olhos brilharam
com todo o fogo da juventude; mas suas mãos tremiam ao abri-lo.
O título era simplesmente O livro da vida do capitão Jim, e a capa
trazia os nomes de Owen Ford e James Boyd como colaboradores.
Na primeira página, estava uma fotografia do próprio Capitão Jim,
parado diante do farol, olhando para o golfo. Owen Ford tinha tirado
o retrato enquanto o livro estava sendo escrito. O capitão Jim sabia
disso, mas não sabia que estaria publicado no livro.
– Pensem nisto – ele disse. – O velho marinheiro bem ali, em um
livro impresso de verdade. Este é o dia do qual mais me orgulho em
toda a minha vida. Estou prestes a explodir, garotas. Não vai haver
sono para mim esta noite. Vou ler meu livro inteiro antes do nascer
do sol.
– Vamos embora imediatamente para deixá-lo livre para começar
a leitura – disse Anne.
Até esse momento, o capitão manuseou o livro com uma espécie
de êxtase e reverência. Ao ouvir as palavras de Anne, ele o fechou
decididamente e colocou-o de lado.
– Não, não vão sair daqui antes de tomar uma xícara de chá com
o velho marujo – protestou. – Eu não gostaria disso; e você,
Imediato? O livro da vida pode esperar, suponho. Esperei por ele
durante anos. Posso esperar mais um pouco, enquanto desfruto a
companhia de minhas amigas.
O capitão Jim pôs a água para ferver na chaleira e o pão e a
manteiga sobre a mesa. Apesar do entusiasmo, ele não se movia
com sua antiga vivacidade. Seus movimentos eram lentos e
hesitantes. No entanto, Anne e Leslie não se ofereceram para
ajudá-lo. Sabiam que isso poderia ferir seus sentimentos.
– Vocês escolheram a tarde certa para me visitar – ele disse,
tirando um bolo do armário. A mãe do pequeno Joe me mandou
hoje uma cesta grande, cheia de bolos e tortas. “Que todas as boas
cozinheiras sejam abençoadas”, falei. Vejam este bolo delicioso,
todo de glacê e nozes. Não é sempre que posso receber meus
convidados com todo este estilo. Vamos, meninas, acomodem-se!
Vamos beber “uma taça de bondade pelos velhos e bons
tempos”.********
As “meninas” se acomodaram animadamente. O chá foi o melhor
que o capitão Jim poderia servir, e o bolo feito pela mãe do pequeno
Joe era divino. O capitão Jim foi o príncipe dos anfitriões mais
adoráveis, nunca permitindo que seus olhos vagassem até o canto
onde estava o livro da vida, com toda a sua glória verde e dourada.
No entanto, quando sua porta finalmente se fechou atrás de Anne e
Leslie, elas sabiam que ele iria direto para lá; e enquanto
caminhavam para casa, imaginaram a alegria do velho senhor
debruçado sobre as páginas impressas, nas quais sua própria vida
estava registrada com todo o encanto e as cores da realidade.
– Gostaria de saber o que ele vai achar do final... o final que eu
sugeri – disse Leslie.
Ela nunca saberia. Na manhã seguinte, bem cedo, quando Anne
despertou, deparou com Gilbert curvado sobre ela, pronto para sair
e com uma expressão de ansiedade no rosto.
– Mandaram chamá-lo? – perguntou, sonolenta.
– Não. Anne, receio que haja algo errado no pontal. Já faz uma
hora que o sol nasceu, e o farol continua aceso. Você sabe que
sempre foi uma questão de honra para o capitão Jim ligá-lo no
momento em que o sol se põe e desligá-lo exatamente quando o dia
clareia.
Consternada, Anne sentou-se na cama. Pela janela, pôde ver o
farol piscando palidamente no céu azul do alvorecer.
– Talvez ele tenha adormecido sobre seu livro da vida – falou
ansiosamente –, ou ficado tão absorto na leitura que se esqueceu
do farol.
Gilbert balançou a cabeça.
– Isso não seria típico do Capitão Jim. De qualquer forma, vou até
lá para ver.
– Espere um pouco, vou com você – Anne decidiu. – Sim, é o que
devo fazer. O pequeno Jem ainda vai dormir por cerca de uma hora,
e vou chamar Susan. Você pode precisar da ajuda de uma mulher
se o capitão Jim estiver doente.
Era um amanhecer primoroso, repleto de cores delicadas, porém
intensas. O porto cintilava, brilhava como os olhos de uma criança
feliz. Gaivotas brancas voavam alto sobre as dunas. Para lá da
barreira, havia um mar maravilhoso, reluzente. Os campos
compridos próximos da costa estavam úmidos e frescos naquela
primeira luz do dia, uma claridade suave e encantadora. O vento
veio dançando e assobiando pelo canal, para substituir o lindo
silêncio por uma música ainda mais bonita. Se não fosse pela luz
sinistra na torre branca, aquela caminhada matinal teria sido um
deleite para Anne e Gilbert. Mas eles estavam temerosos.
As batidas à porta não tiveram resposta. Vendo que não estava
trancada, Gilbert abriu-a e eles entraram. O cômodo antigo estava
totalmente silencioso. Sobre a mesa encontravam-se os restos do
“banquete” da véspera. A lâmpada ainda estava acesa no canto da
sala. O Primeiro Imediato dormia perto do sofá, em um quadrado
iluminado por raios do sol.
O capitão Jim estava deitado no sofá, com as mãos cruzadas
sobre o livro da vida – aberto na última página – sobre o peito. Seus
olhos estavam fechados e em seu rosto havia uma expressão da
mais perfeita paz e felicidade: a expressão de quem há muito
buscava algo e finalmente encontrara.
– Ele está dormindo? – Anne sussurrou, trêmula.
Gilbert foi até o sofá, inclinou-se sobre ele e assim permaneceu
por alguns segundos. Depois, ergueu-se e disse:
– Sim... para sempre – acrescentou, em voz baixa. – Anne, o
capitão Jim cruzou a barreira.
Não foi possível determinar a que hora exatamente ele tinha
morrido, mas Anne sempre acreditou que o capitão Jim havia
realizado seu desejo e partido quando a manhã chegou ao golfo. Na
maré brilhante, seu espírito vagou sobre o mar de pérolas e prata do
nascer do sol, rumo ao refúgio – bem distante das tempestades e
calmarias – onde Margaret desaparecida o esperava.
capitão Jim foi sepultado no pequeno cemitério do outro lado do
O porto, muito perto de onde repousava a pequena e alva princesa
de Anne e Gilbert. Seus familiares ergueram no local um
“monumento” muito caro e feio, um jazigo do qual o capitão teria
zombado sarcasticamente se o tivesse visto. Contudo, seu
verdadeiro monumento estava no coração daqueles que o
conheceram e no livro que permaneceria por várias gerações.
Leslie lamentou que ele não tivesse vivido para ver o admirável
sucesso da obra.
– Como teria se deliciado com as críticas! São quase todas
extremamente favoráveis. Eu queria muito que ele tivesse visto seu
livro da vida encabeçando a lista dos mais vendidos. Ah, se ele
estivesse aqui para se alegrar com isso, Anne!
Entretanto, Anne, apesar de sua dor, foi mais sábia.
– Era do livro em si que ele gostava, Leslie, e não do que
pudesse ser dito a respeito da obra. E ele o viu pronto; ele o leu da
primeira à última página. Naquela última noite, o capitão Jim deve
ter sentido uma das maiores alegrias de sua vida – e teve um final
rápido e indolor pela manhã, exatamente como ele desejava. Fico
muito contente, por Owen e por você, que o livro seja um sucesso
tão grande, mas o capitão estava plenamente satisfeito... Sei disso.
A luz do farol manteve sua vigília noturna; um substituto,
encarregado de sua manutenção, havia sido enviado ao pontal, até
que o governo pudesse decidir qual dos muitos candidatos era o
mais adequado, ou tinha mais vocação, para o cargo. O Primeiro
Imediato encontrou um lar na pequena casa branca, onde era
amado por Anne, Gilbert e Leslie e tolerado por uma Susan que não
tinha muita afeição por gatos.
– Posso suportá-lo em homenagem ao capitão Jim, querida
esposa do doutor; porque eu gostava realmente do velho
marinheiro. Garanto que ele vai ter sempre o que comer e beber,
além de todos os ratos que as armadilhas apanharem. Porém, não
me peça mais do que isso, querida esposa do doutor. Gatos são
gatos, e, acredite em minha palavra, eles nunca vão ser outra coisa.
Mas, por favor, mantenha-o bem longe do rapazinho abençoado.
Imagine como seria horrível se ele sugasse o fôlego do nosso bebê.
– Eu cometeria um “gatocídio” – brincou Gilbert.
– Ora, o senhor pode rir, caro doutor, mas não teria graça
nenhuma.
– Gatos nunca sugam o fôlego de bebês – Gilbert afirmou. – Isso
é apenas uma velha superstição, Susan.
– Bem, pode ser ou não ser só uma superstição, caro doutor.
Porém, tudo o que sei é que já aconteceu. O gato da mulher do
sobrinho do marido de minha irmã sugou o fôlego do bebê deles, e o
pobre inocente estava quase morto quando descobriram. Por isso,
superstição ou não, se eu encontrar aquele felino amarelo
espreitando nosso Jem, vou bater nele com o atiçador de fogo,
querida esposa do doutor.
O senhor e a senhora Marshall Elliot já viviam confortável e
harmoniosamente na casa verde. Leslie estava bastante ocupada
preparando seu enxoval, pois ela e Owen se casariam no Natal.
Anne se perguntava o que faria quando Leslie fosse embora.
– Mudanças ocorrem o tempo todo. Assim que as coisas ficam
realmente boas, elas mudam – disse ela, com um suspiro.
– A antiga residência dos Morgan, lá em Glen, está à venda –
Gilbert falou, por nenhum motivo especial.
– Está? – Anne perguntou, indiferente.
– Sim. Agora que o senhor Morgan se foi, a viúva quer morar com
os filhos em Vancouver. Vai vender a propriedade por um preço
baixo, pois não é muito fácil se desfazer de um imóvel grande como
aquele em uma cidade pequena como Glen.
– É sem dúvida um lugar lindo, portanto é provável que ela
encontre um comprador – disse Anne distraidamente, pensando se
deveria bordar ou pespontar a barra das vestes curtas do pequeno
Jem. Ele não usaria mais as roupas compridas a partir da semana
seguinte, e Anne tinha vontade de chorar só de pensar nisso.
– E se nós a comprássemos, Anne? – Gilbert perguntou
calmamente.
Anne largou a costura e olhou fixamente para ele.
– Não está falando sério, está, Gilbert?
– Na verdade, estou, querida.
– E deixar para trás este lugar adorado? A nossa casa dos
sonhos? – protestou Anne, incrédula. – Gilbert, isso é... é
impensável!
– Ouça pacientemente o que vou dizer, meu amor. Sei bem como
você se sente sobre isso. Também sinto o mesmo. No entanto, nós
dois sempre soubemos que teríamos de nos mudar um dia.
– Mas não tão cedo, Gilbert... Ainda não!
– Anne, é possível que nunca mais consigamos uma
oportunidade como essa. Se não comprarmos a propriedade dos
Morgan, outra pessoa vai fazer isso. E não há mais nenhum outro
imóvel em Glen que gostaríamos de ter, tampouco algum terreno
onde possamos construir uma boa casa para morarmos. Esta aqui
é... bem, é e foi desde o começo o que nenhuma outra casa pode
ser para nós, admito, mas você também reconhece que este lugar é
realmente fora de mão para um médico. Já sabíamos desse
inconveniente, embora tenhamos lidado com isso da melhor
maneira possível até agora. Além do mais, já falta um pouco de
espaço aqui para nós. Talvez, dentro de poucos anos, quando Jem
quiser um quarto só para ele, esta casa vai ser incomodamente
pequena demais.
– Oh, eu sei... eu sei, Gilbert – disse Anne, com lágrimas nos
olhos. – Sei tudo o que pode ser dito contra ela, mas eu a amo
tanto... E aqui é tudo tão bonito!
– Você ficaria muito solitária neste lugar depois que Leslie for
embora. E o capitão Jim já se foi também. A propriedade dos
Morgan é linda; com o tempo, nós vamos nos apaixonar por ela.
Você sempre a admirou, Anne.
– Sim, mas... mas... Tudo isso parece ter surgido tão de repente,
Gilbert! Estou confusa. Dez minutos atrás, eu não pensava em
deixar este lugar amado. Estava planejando o que pretendia fazer
por ele na primavera; o que eu gostaria de mudar no jardim. E se
deixarmos este lugar, quem vai cuidar dele? Como é fora de mão, é
bastante provável que alguma família pobre, preguiçosa e errante o
alugue; e, pior, o destrua. Oh, isso seria uma profanação!... Isso me
machucaria horrivelmente.
– Eu compreendo. Porém, não devemos sacrificar nossos
próprios interesses por causa dessas considerações, Anne. A
propriedade dos Morgan vai nos servir em todos os aspectos
essenciais. Nós realmente não podemos perder uma chance como
essa. Pense naquele gramado enorme, com todas aquelas
magníficas árvores antigas, e no bosque esplêndido que existe atrás
da casa... Quase cinquenta quilômetros quadrados de mata. Que
local fantástico para nossos filhos brincarem! Há um belo pomar
também, e você sempre admirou aquele muro alto de tijolos ao
redor do jardim, com uma porta no meio; você achou que era
bastante parecido com um cenário de livros de histórias. E, por fim,
temos lá uma vista quase tão boa do porto e das dunas quanto a
daqui.
– Mas não é possível ver a luz do farol.
– Não é verdade. Podemos ver o farol se olharmos pela janela do
quarto do sótão. Essa é mais uma vantagem, Anne querida: você
adora sótãos grandes.
– Lá não vamos ter um riacho no jardim.
– Bem, não vamos; contudo, há um que atravessa o bosque de
bordos rumo ao lago de Glen, que não está longe da casa. Você
poderá imaginar que tem seu próprio Lago das Águas Brilhantes
outra vez.
– Gilbert, não diga mais nada a esse respeito agora. Preciso de
algum tempo para pensar, para me acostumar com a ideia.
– Está bem. Não há muita pressa, claro. Apenas... lembre-se de
que, se decidirmos comprar o imóvel, seria bom nos mudarmos e
nos instalarmos apropriadamente antes do inverno.
Gilbert se retirou, e Anne, com as mãos trêmulas, pôs de lado as
roupas do pequeno Jem. Não seria mais possível costurar naquele
dia. Com os olhos molhados de lágrimas, ela vagou por seu
pequeno domínio, onde havia reinado tão alegremente. A
propriedade dos Morgan era exatamente como Gilbert havia dito: o
lugar era lindo, e a casa suficientemente antiga para ter dignidade,
sossego e tradições, e ao mesmo tempo nova o bastante para ser
confortável e moderna. Anne sempre a admirara.
Porém, admirar não é amar, e ela amava muito sua casa dos
sonhos. Adorava tudo o que havia ali: o jardim do qual cuidou e que
tinha sido conservado carinhosamente por tantas mulheres antes
dela; o brilho e o encanto do pequeno riacho que corria tão
singelamente em um canto; o portão, entre os pinheiros, que rangia
ao ser aberto ou fechado; o velho degrau de arenito vermelho; os
álamos majestosos; as duas cristaleiras minúsculas sobre a lareira;
a porta da dispensa na cozinha; as duas janelas esquisitas no andar
de cima; o pequeno entalhe na escada. Ora, essas coisas já faziam
parte de Anne! Como poderia deixá-las para trás? E como esta
pequena casa, consagrada em outros tempos pelo amor e pela
alegria, tinha sido agora reconsagrada, para ela, por sua felicidade e
seu sofrimento! Ali ela havia passado sua lua de mel; ali a pequena
Joyce tinha vivido por um breve dia; ali a doçura da maternidade
havia chegado novamente com o pequeno Jem; ali ela tinha
escutado a melodia encantadora da risada meiga de seu bebê; ali
amigos queridos haviam se sentado ao redor da lareira. Alegria e
tristeza, nascimento e morte tornaram sagrada, para sempre, a
pequena casa dos sonhos.
E agora teria de deixá-la. Anne sabia disso, mesmo enquanto
argumentava com Gilbert para que ele desistisse da ideia. A casinha
havia ficado pequena demais. Os interesses de Gilbert tornaram a
mudança necessária; o trabalho dele, apesar de muito bem-
sucedido, havia sofrido prejuízos por sua localização. Anne entendia
que o fim de sua vida neste lugar tão querido se aproximava e que
deveria enfrentar o fato com bravura. Mas como seu coração doeu!
– Vai ser como se algo fosse arrancado de minha vida – soluçou.
– Se pelo menos eu pudesse ter esperanças de que pessoas boas
viriam morar aqui em nossa casa... Ou até mesmo que ela ficasse
vazia... Isso seria melhor do que ela ser invadida por algum bando
de gente que não sabe nada da geografia da terra dos sonhos nem
da história que deu a esta casa sua alma e sua identidade. E se
esses vândalos vierem morar aqui, o lugar vai ficar arruinado em
pouquíssimo tempo. Um imóvel antigo desmorona muito
rapidamente se não for cuidadosamente mantido. Vão aniquilar meu
jardim e deixar os álamos apodrecerem. E logo, logo a cerca vai
parecer uma boca com metade dos dentes faltando. O telhado vai
ter goteiras, e o gesso do teto vai cair. Oh, eles vão usar
travesseiros e trapos para preencher o espaço deixado pelos vidros
quebrados das janelas! E tudo vai estar perdido.
A imaginação de Anne retratou tão nitidamente a futura
destruição de sua amada casa dos sonhos, que isso a feriu de
maneira tão profunda quanto se já fosse um fato consumado. Então,
ela se sentou na escada e chorou, longa e amargamente. Susan a
encontrou ali e perguntou, bastante alarmada, qual era o problema.
– Não brigou com o doutor, brigou, querida esposa do doutor?
Ora, se foi isso, não se preocupe. É comum casais se
desentenderem; sei porque já me disseram muitas vezes, pois eu
mesma não tenho nenhuma experiência nesse assunto. Ele vai se
arrepender brevemente, e tudo vai ficar bem de novo.
– Não, não, Susan, nós não brigamos. É que... Gilbert vai
comprar a propriedade dos Morgan, e vamos ter de nos mudar e
morar em Glen. E isso vai partir meu coração.
Decididamente, Susan não compreendeu os sentimentos de
Anne. Ela ficou, na verdade, muito feliz com a perspectiva de morar
em Glen; afinal, sua única queixa contra a pequena casa branca era
a localização solitária.
– Ora, querida esposa do doutor, isso vai ser esplêndido. A casa
dos Morgan é linda e enorme.
– Odeio casas grandes – soluçou Anne.
– Bem, não vai odiá-las quando tiver meia dúzia de filhos – Susan
observou calmamente. – E esta casa aqui ficou pequena demais
para nós. Não temos um quarto de hóspedes desde que a senhora
Moore veio morar aqui; além disso, aquela despensa é o lugar mais
irritante em que já tentei trabalhar. Tem um canto em todos os
lugares para os quais você se vira. Para não dizer que este lugar
aqui é fora do mundo; não há nada, só paisagem natural.
– Talvez seja fora do seu mundo, Susan, mas não do meu – disse
Anne, com um sorriso quase imperceptível.
– Eu realmente não a entendo, querida esposa do doutor, mas
obviamente não tenho muito estudo. O que sei é que, se o doutor
Blythe comprar o imóvel dos Morgan, não vai ser um erro. Pode
confiar nisso. Eles têm água encanada, as despensas e os armários
são magníficos, e já ouvi dizer que não existe em toda a nossa ilha
outro porão tão bom quanto o de lá. Ora, querida esposa do doutor,
como bem sabe, o porão daqui é um sofrimento para mim.
– Oh, Susan, saia daqui, saia – disse Anne tristemente. – Porões,
despensas e armários não constituem um lar. Por que você não
chora com os que choram?********
– Nunca tive muita vocação para chorar, querida esposa do
doutor. Prefiro me dedicar a animar as pessoas em vez de chorar
junto com elas. Agora, pare de molhar esses belos olhos. Esta casa
é muito boa e cumpriu bem o seu propósito; entretanto, já passou da
hora de se mudarem para outra maior e ainda melhor.
A opinião de Susan parecia ser a da maioria das pessoas. Leslie
foi a única que se solidarizou de maneira compreensiva com Anne.
Ela também chorou muito quando soube da notícia. Em seguida, as
duas enxugaram as lágrimas e começaram a trabalhar nos
preparativos para a mudança.
– Já que temos de ir, vamos o quanto antes, para acabar logo
com isso – resignou-se a pobre Anne, desgostosa.
– Você sabe que vai amar aquela propriedade antiga e adorável
após ter vivido lá por tempo suficiente para tecer boas lembranças
do lugar, Anne – Leslie consolou-a. – Os amigos vão visitá-la, como
vieram aqui, e a felicidade vai glorificar o local. Agora ela é apenas
uma casa para você, mas os anos vão torná-la um lar.
Anne e Leslie tiveram outra crise de choro na semana seguinte,
quando o pequeno Jem passou a usar vestes curtas. Anne sofreu
até a noite, quando encontrou novamente seu bebê ao colocar nele
a camisola longa para dormir.
– Daqui a pouco vêm os macacões, depois as calças e, em um
piscar de olhos, ele vai ser um adulto – suspirou.
– Bem, querida esposa do doutor, não gostaria que ele fosse
eternamente um bebê, gostaria? – disse Susan. – Abençoado seja
seu coraçãozinho inocente! O pequeno Jem ficou tão encantador
com a veste curta e os pezinhos queridos e graciosos à mostra! E
pense na economia na hora de passar essas roupas, querida
esposa do doutor.
– Anne, acabei de receber uma carta de Owen – disse Leslie,
entrando no quarto com o rosto iluminado. – E tenho ótimas
notícias! Ele me escreveu dizendo que vai comprar esta casa e
mantê-la para passarmos nossas férias de verão. Anne, você não
está contente?
– Leslie, “contente” não é a palavra certa! Isso parece bom
demais para ser verdade. Não vou mais me sentir tão triste agora
que sei que este lugar adorado não vai ser destruído por uma tribo
de vândalos nem abandonado para ruir totalmente. Ora, isso é
maravilhoso! É magnífico!
Em um amanhecer de outubro, Anne despertou e percebeu que
havia dormido pela última vez sob o teto de sua casa dos sonhos.
Entretanto, o dia foi agitado demais para que tivesse a chance de se
entregar às lamentações, e quando a noite chegou a casa já estava
vazia. Anne e Gilbert ficaram lá, sozinhos, para se despedir,
enquanto Leslie, Susan e o pequeno Jem foram para Glen com a
última carga de móveis. A luz do pôr do sol entrava pelas janelas
sem cortinas.
– As paredes têm uma aparência triste e um ar de reprovação,
não acha, Gilbert? – Anne comentou. – Como vou me sentir
saudosa e nostálgica esta noite, em Glen!
– Fomos muito felizes aqui, não fomos, Anne? – disse Gilbert,
com a voz embargada.
Anne abafou um soluço, incapaz de responder.
Gilbert esperou no portão entre os pinheiros, enquanto Anne
percorreu toda a casa, despedindo-se de cada cômodo. Ela iria
embora, mas a pequena e antiga casa branca permaneceria lá,
contemplando o mar através de suas janelas pitorescas. As brisas
de outono soprariam tristemente em torno dela, a chuva cinzenta
cairia sobre ela, e as brumas brancas viriam do mar para envolvê-la.
O luar brilharia sobre ela e iluminaria os caminhos por onde o
professor e sua noiva haviam passado em outros tempos. Ali,
naquela velha costa do porto, o encanto da história permaneceria; o
vento ainda assobiaria sedutoramente sobre as dunas prateadas, e
as ondas continuariam a chegar às enseadas de rochas vermelhas.
– Mas nós não estaremos aqui – disse Anne, entre as lágrimas.
Então saiu, fechou e trancou a porta atrás de si. Gilbert a
esperava lá fora com um sorriso. A estrela do farol brilhava ao norte.
O pequeno jardim, onde apenas as calêndulas ainda floresciam, já
estava encoberto pelas sombras. Anne se ajoelhou e beijou o velho
e gasto degrau que havia cruzado como recém-casada.
– Adeus, minha adorada casinha dos sonhos!
* Pouco se sabe sobre Euclides, um matemático, professor e escritor provavelmente grego
que, aparentemente, viveu em Alexandria, no Egito, durante o século III a.C.; é conhecido
como o “pai da geometria”. (N.T.)
** “Bingen on the Rhine”, poema da autora inglesa Caroline Sheridan Norton (1808-1877).
(N.T.)
*** Referência ao versículo 90:4 (“Porque mil anos são aos teus olhos como o dia de ontem
que passou, e como a vigília da noite”) do livro de Salmos, do Antigo Testamento da
Bíblia Sagrada. (N.T.)
**** Parte do versículo 8:28 da Epístola aos Romanos, sexto livro do Novo Testamento.
(N.T.)
***** Tradução livre de frase da obra Adam Bede, de George Eliot, pseudônimo da escritora
inglesa Mary Ann Evans (1819-1880). (N.T.)
****** Fragmentos do poema “In a Gondola”, do escritor inglês Robert Browning (1812-
1889). (N.T.)
******* Tradução livre de versos do poema “Ode a um rouxinol”, do escritor inglês John
Keats (1795-1821). (N.T.)
******** Referência ao versículo 5:13 do livro de Mateus, do Novo Testamento da Bíblia
Sagrada. (N.T.)
******** Referência ao versículo 55:6 do livro de Salmos, do Antigo Testamento da Bíblia
Sagrada. (N.T.)
******** Referência ao versículo 6:10 do livro Aos Gálatas, do Novo Testamento da Bíblia
Sagrada. (N.T.)
******** Referência ao versículo 55:1 do livro de Isaías, do Novo Testamento da Bíblia
Sagrada. (N.T.)
******** Oliver Wendell Holmes (1809-1894) foi um médico, professor, palestrante e autor
norte-americano. (N.T.)
******** Tradução livre de versos do poema “Ulysses”, do escritor inglês Alfred Tennyson
(1809-1892). (N.T.)
******** Tradução livre de versos do poema “The hanging of the crane”, do escritor norte-
americano Henry Wadsworth Longfellow (1807-1882). (N.T.)
******** Tradução livre de fragmento da cena cinco, ato um, da peça Macbeth, de William
Shakespeare (1564-1616). (N.T.)
******** Referência ao versículo 10:16 do livro de Mateus, do Novo Testamento da Bíblia
Sagrada. (N.T.)
******** Parte do versículo 11:1 do livro Aos Hebreus, do Novo Testamento da Bíblia
Sagrada. (N.T.)
******** Referência à obra do evangelista, escritor e conferencista escocês Henry
Drummond (1851-1897). (N.T.)
******** Parte do versículo 1:21 do livro de Jó, do Antigo Testamento da Bíblia Sagrada.
(N.T.)
******** Referência ao versículo 23:4 do livro de Salmos, do Antigo Testamento da Bíblia
Sagrada. (N.T.)
******** Verso em tradução livre do poema “Resignation”, do escritor norte-americano Henry
Wadsworth Longfellow (1807-1882). (N.T.)
******** Referência ao personagem de Alice no País das Maravilhas, do escritor britânico
Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898), mais conhecido como Lewis Carroll. (N.T.)
******** Verso em tradução livre do poema “The Lotos-Eaters”, do escritor inglês Alfred
Tennyson (1809-1892). (N.T.)
******** Segundo uma lenda, Holandês Voador (Flying Dutchman) era o nome de um
capitão do mar (ou de seu navio) que certa vez se viu lutando para contornar o Cabo da
Boa Esperança durante uma tempestade violenta. Ele teria jurado que sobreviveria, nem
que tivesse de navegar até o dia do juízo final. Conta-se que o diabo ouviu e aceitou seu
juramento, e o capitão holandês foi condenado a ficar no mar para sempre. (N.T.)
******** Tradução livre de um antigo provérbio meteorológico náutico. Um céu com
“escamas de cavalinha” está coberto de nuvens pequenas e fofas, dispostas em um
padrão que lembra as costas desse peixe; já as “caudas de éguas” são nuvens finas e
altas. Para os marinheiros, um céu com essas características significava que uma
tempestade estava a caminho, logo, as velas deveriam ser arriadas. (N.T.)
******** Segundo a mitologia grega, Dânae era uma princesa muito bonita que foi trancada
pelo pai em uma torre bem alta para que ninguém se apaixonasse por ela. Porém Zeus,
ao vê-la, se enche de amor e, para encontrá-la, transforma-se em uma nuvem dourada.
(N.T.)
******** Tradução livre de versos do poema “The Miller’s Daughter”, do escritor inglês Alfred
Tennyson (1809-1892). (N.T.)
******** “Mamon”, termo usado na Bíblia Sagrada (Mateus, 6:24) para descrever riqueza
material, posses ou cobiça, quase sempre personificado como uma divindade. (N.T.)
******** Versos em tradução livre do poema “Oenone”, do escritor inglês Alfred Tennyson
(1809-1892). (N.T.)
******** Versículo 8:32 do livro de João, do Novo Testamento da Bíblia Sagrada. (N.T.)
******** Canto do cisne é referência à antiga crença de que os cisnes cantam muito mais
bela e tristemente quando estão prestes a morrer. (N.T.)
******** “Atravessando a barreira”, em tradução livre. (N.T.)
******** Referência ao versículo 61:3 do livro de Isaías, do Antigo Testamento da Bíblia
Sagrada. (N.T.)
******** Referência ao poema homônimo, do escocês Robert Burns (1759-1796). (N.T.)
******** Referência a versos em tradução livre do poema “Auld Lang Syne”, escrito pelo
escocês Robert Burns (1759-1796) em 1788 e adaptado para uma melodia muito popular
em países de língua inglesa. (N.T.)
******** Referência ao versículo 12:15 da Epístola aos Romanos, sexto livro do Novo
Testamento da Bíblia Sagrada. (N.T.)
ANNE DE GREEN GABLES
L. M. Montgomery

Quando os irmãos Marilla e Matthew Cuthbert, de Green Gables,


na Prince Edward Island, no Canadá, decidem adotar um órfão para
ajudá-los nos trabalhos da fazenda, não estão preparados para o
“erro” que mudará suas vidas: Anne Shirley, uma menina ruiva de 11
anos, acaba sendo enviada, por engano, pelo orfanato.
Apesar do acontecimento inesperado, a natureza expansiva,
sempre de bem com a vida, a curiosidade, a imaginação peculiar e a
tagarelice da menina conquistam rapidamente os relutantes pais
adotivos. O espírito combativo e questionador de Anne logo atrai o
interesse das pessoas do lugar – e muitos problemas também.
No entanto, Anne era uma espécie de Pollyanna, e sua
capacidade de ver sempre o lado bonito e positivo de tudo, seu
amor pela vida, pela natureza, pelos livros conquista a todos, e ela
acaba sendo “adotada” também pela comunidade.
Publicada pela primeira vez em 1908, esta história deliciosa, que
ilustra valores fundamentais como a ética, a solidariedade, a
honestidade e a importância do trabalho e da amizade, teve
numerosas edições, já tendo vendido mais de 50 milhões de cópias
em todo o mundo. Foi traduzida para mais de 20 idiomas e
adaptada para o teatro e o cinema.
ANNE DE AVONLEA
L. M. Montgomery

Anne Shirley agora tem 16 anos. Terminados os estudos de nível


médio, desistiu do curso superior para ficar com a mãe adotiva,
Marilla, em Green Gables.
É a nova professora da escola da vila, assim como vários de seus
amigos são professores em outros condados da ilha. Tem conceitos
idealistas e românticos sobre ensinar, mas acaba descobrindo quão
difícil – e gratificante – o ensino pode ser.
Quando Marilla “herda” dois parentes, órfãos de 6 anos, Anne
ajuda a criá-los. E encontra também outros desafios, desenvolvendo
alguns projetos de melhoria da vila, nem todos com resultados
positivos…
Apesar das responsabilidades e de já ser considerada adulta pela
sociedade, a história não deixa de mostrar o lado inocente, alegre e
inventivo de Anne Shirley, e seu amor pela vida, sempre cheia de
possibilidades.
Neste segundo volume, Lucy Maud Montgomery continua a nos
cativar com seu humor único, com pitadas de malícia, e com seus
personagens bem construídos, cujas ações são sempre permeadas
por valores essenciais à convivência e à consciência humanas.
ANNE DA ILHA
L. M. Montgomery

Com 18 anos, Anne Shirley agora é aluna do Redmond College,


na movimentada cidade de Kingsport, onde estão também seus
amigos de Avonlea Priscilla Grant e Gilbert Blythe. Anne conhece
pessoas interessantes, faz amigos, incluindo a rica, charmosa e
indecisa Philippa Gordon. Na companhia deles, vai estudar e
experimentar uma nova e emocionante vida social, com danças,
jantares e jogos de futebol. Independente e atraente, a jovem
conquistará muitos admiradores e receberá pedidos de casamento.
Suas aventuras românticas são cheias de drama e suspense, da
primeira à última página do livro. Muitas vezes, no entanto, as
lágrimas cedem lugar às gargalhadas, como quando Anne e suas
amigas se mudam para uma casa pequena e adorável, em uma rua
nobre de Kingsport, e um gato de rua rouba seu coração.
Os anos de faculdade certamente serão divertidos, mas serão
também um tempo para investigar a própria alma e tomar grandes
decisões. Anne descobrirá, da maneira mais difícil, que talvez seu
coração não esteja batendo de acordo com sua mente. A vida em
Kingsport será para ela uma rica jornada de descobertas e
crescimento pessoal.
ANNE DE WINDY POPLARS
L. M. Montgomery

As vivências e experiências de Anne em Anne of Windy Poplars


(1936) ocorrem ao longo dos três anos entre sua formatura no
Redmond College e o casamento com Gilbert Blythe. Enquanto
Gilbert está na faculdade de medicina, em Redmond, Anne trabalha
como diretora da Summerside High School, onde também dá aulas.
Mora em uma casa grande e adorável chamada Windy Poplars com
duas viúvas idosas, tia Kate e tia Chatty, junto com sua governanta,
Rebecca Dew, e um gato, Dusty Miller. As viúvas alugam para Anne
um confortável quarto na torre da casa, mas desde o início a jovem
é acolhida como se fosse da família, e é assim que se sente.
Durante seu tempo em Summerside, Anne precisa administrar a
rejeição de muitos dos habitantes de Summerside, incluindo a
arrogante família Pringle, sua amarga colega Katherine Brooke e
outras pessoas excêntricas. Mas também faz amizade com a
solitária menina Elizabeth Grayson, um membro sem mãe da família
Pringle que mora ao lado de Windy Poplars com a avó severa e
amarga. Nas férias, Anne visita Marilla em Green Gables.
Tudo isso e mais situações estranhas, ou engraçadas, ou
comoventes é contado ora nas cartas para Gilbert, ora na narrativa
propriamente dita: histórias deliciosas na linguagem também
deliciosa de Lucy. M. Montgomery.
Anne de Windy Poplars
Montgomery, Lucy Maud
9786588239858
288 páginas

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As vivências e experiências de Anne em Anne of Windy


Poplars (1936) ocorrem ao longo dos três anos entre sua
formatura no Redmond College e o casamento com Gilbert
Blythe. Enquanto Gilbert está na faculdade de medicina, em
Redmond, Anne trabalha como diretora da Summerside High
School, onde também dá aulas. Mora em uma casa grande e
adorável chamada Windy Poplars com duas viúvas idosas,
tia Kate e tia Chatty, junto com sua governanta, Rebecca
Dew, e um gato, Dusty Miller. As viúvas alugam para Anne
um confortável quarto na torre da casa, mas desde o início a
jovem é acolhida como se fosse da família, e é assim que se
sente. Durante seu tempo em Summerside, Anne precisa
administrar a rejeição de muitos dos habitantes de
Summerside, incluindo a arrogante família Pringle, sua
amarga colega Katherine Brooke e outras pessoas
excêntricas. Mas também faz amizade com a solitária
menina Elizabeth Grayson, um membro sem mãe da família
Pringle que mora ao lado de Windy Poplars com a avó
severa e amarga. Nas férias, Anne visita Marilla em Green
Gables. Tudo isso e mais situações estranhas, ou
engraçadas, ou comoventes é contado ora nas cartas para
Gilbert, ora na narrativa propriamente dita: histórias
deliciosas na linguagem também deliciosa de Lucy. M.
Montgomery.

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Anne de Avonlea
Montgomery, Lucy Maud
9788551308172
288 páginas

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Anne Shirley agora tem 16 anos. Terminados os estudos de


nível médio, desistiu do curso superior para ficar com a mãe
adotiva, Marilla, em Green Gables. É a nova professora da
escola da vila, assim como vários de seus amigos são
professores em outros condados da ilha. Tem conceitos
idealistas e românticos sobre ensinar, mas acaba
descobrindo quão difícil – e gratificante – o ensino pode ser.
Quando Marilla "herda" dois parentes, órfãos de 6 anos,
Anne ajuda a criá-los. E encontra também outros desafios,
desenvolvendo alguns projetos de melhoria da vila, nem
todos com resultados positivos… Apesar das
responsabilidades e de já ser considerada adulta pela
sociedade, a história não deixa de mostrar o lado inocente,
alegre e inventivo de Anne Shirley, e seu amor pela vida,
sempre cheia de possibilidades. Neste segundo volume,
Lucy Maud Montgomery continua a nos cativar com seu
humor único, com pitadas de malícia, e com seus
personagens bem construídos, cujas ações são sempre
permeadas por valores essenciais à convivência e à
consciência humanas.

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Anne da ilha
Montgomery, Lucy Maud
9786586040111
272 páginas

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Com 18 anos, Anne Shirley agora é aluna do Redmond


College, na movimentada cidade de Kingsport, onde estão
também seus amigos de Avonlea Priscilla Grant e Gilbert
Blythe. Anne conhece pessoas interessantes, faz amigos,
incluindo a rica, charmosa e indecisa Philippa Gordon. Na
companhia deles, vai estudar e experimentar uma nova e
emocionante vida social, com danças, jantares e jogos de
futebol. Independente e atraente, a jovem conquistará
muitos admiradores e receberá pedidos de casamento. Suas
aventuras românticas são cheias de drama e suspense, da
primeira à última página do livro. Muitas vezes, no entanto,
as lágrimas cedem lugar às gargalhadas, como quando
Anne e suas amigas se mudam para uma casa pequena e
adorável, em uma rua nobre de Kingsport, e um gato de rua
rouba seu coração. Os anos de faculdade certamente serão
divertidos, mas serão também um tempo para investigar a
própria alma e tomar grandes decisões. Anne descobrirá, da
maneira mais difícil, que talvez seu coração não esteja
batendo de acordo com sua mente. A vida em Kingsport
será para ela uma rica jornada de descobertas e
crescimento pessoal.

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Anne de Green Gables
Montgomery, Lucy Maud
9788551305959
320 páginas

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Se você gostou de Pollyanna, vai se apaixonar por Anne de


Green Gables. Quando os irmãos Marilla e Matthew
Cuthbert, de Green Gables, na Prince Edward Island, no
Canadá, decidem adotar um órfão para ajudá-los nos
trabalhos da fazenda, não estão preparados para o "erro"
que mudará suas vidas: Anne Shirley, uma menina ruiva de
11 anos, acaba sendo enviada, por engano, pelo orfanato.
Apesar do acontecimento inesperado, a natureza expansiva,
sempre de bem com a vida, a curiosidade, a imaginação
peculiar e a tagarelice da menina conquistam rapidamente
os relutantes pais adotivos. O espírito combativo e
questionador de Anne logo atrai o interesse das pessoas do
lugar – e muitos problemas também. No entanto, Anne era
uma espécie de Pollyanna, e sua capacidade de ver sempre
o lado bonito e positivo de tudo, seu amor pela vida, pela
natureza, pelos livros conquista a todos, e ela acaba sendo
"adotada" também pela comunidade. Publicada pela primeira
vez em 1908, esta história deliciosa, que ilustra valores
fundamentais como a ética, a solidariedade, a honestidade e
a importância do trabalho e da amizade, teve numerosas
edições, já tendo vendido mais de 50 milhões de cópias em
todo o mundo. Foi traduzida para mais de 20 idiomas e
adaptada para o teatro e o cinema. Mais recentemente,
inspirou também a série Anne com E, já com duas
temporadas na Netflix.

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Box Anne - (Texto integral -
Clássicos Autêntica)
Montgomery, Lucy Maud
9786586040722
880 páginas

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Há livros que não envelhecem, são eternos, tornam-se


clássicos. A série Anne Green Gables , da autora canadense
Lucy M. Montgomery, é um exemplo disso. Publicados a
partir de 1908, os livros da série são, no entanto,
atualíssimos, na medida em que apresentam temas
contemporâneos como adoção, bullying, feminismo – já que
as histórias são conduzidas por mulheres fortes, que lutam
por seus ideais e por seus desejos. Não por acaso,
inspiraram a famosa série Anne com E, da Netflix. Grande
sucesso desde sua publicação, a série "pega" o leitor pelo
coração e pela razão. Tem drama, fantasia, lirismo. Realça a
beleza e a força da natureza, mostra a importância da leitura
e dos livros, faz o leitor rir e chorar, refletir, se encantar.
Cativa com seus personagens bem construídos, com um
humor peculiar e com ações sempre permeadas por valores
essenciais à convivência e à consciência humanas. As
palavras da autora talvez expliquem a grande aceitação
desses livros e, principalmente, de Anne Shirley, a
personagem central das histórias: "Se dentro de mim
houvesse apenas uma Anne, seria tão mais confortável,
mas, por outro lado, nem pela metade tão interessante.". Em
Anne de Green Gables (1908), Anne Shirley, órfã de 11
anos, é adotada pelo casal de irmãos Marilla e Matthew
Cuthbert, da fazenda Green Gables, na Ilha Príncipe
Eduardo, no Canadá. Como uma espécie de Pollyanna, sua
capacidade de ver sempre o lado bonito e positivo de tudo,
seu amor pela vida, pela natureza, pelos livros, conquista a
todos, e Anne acaba sendo "adotada" também pela
comunidade. Em Anne de Avonlea (1909), aos 16 anos,
apesar de ter grandes responsabilidades e de já ser
considerada adulta pela sociedade, o lado inocente, alegre e
inventivo de Anne Shirley e seu amor pela vida, sempre
cheia de possibilidades, faz com que a história não perca o
encanto nem a capacidade de emocionar. Em Anne da Ilha
(1915), aos 18 anos, Anne Shirley é aluna da Redmond
College, na movimentada cidade de Kingsport, Os anos de
faculdade certamente serão divertidos, mas serão também
um tempo para investigar a própria alma e tomar grandes
decisões. Anne descobrirá, da maneira mais difícil, que
talvez seu coração e sua mente estejam em desacordo… A
vida em Kingsport será para ela uma rica jornada de
descobertas e crescimento pessoal.
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