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Flores Além da Fronteira

Dedico este livro ao meu Senhor, cuja inspiração e assistência foram


fundamentais nesta obra; sem Sua presença, ela simplesmente não teria
vida.

Dedico igualmente este livro a você, apreciador(a) de contos de amor. Que


este livro encontre um lugar especial em seu coração, assim como a magia
dos amores narrados aqui.
O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se
orgulha.

Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda
rancor.

O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade.

Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

— 1 Coríntios 13:4-7
Este mapa é provisório!
TODOS OS PERSONAGENS E ORGANIZAÇÕES NESTE LIVRO SÃO FICTÍCIAS.

Estas são imagens feitas por IA, apenas para os leitores do Wattped. Estão livres para
imaginá-los como quiserem.

Lydia Miller

Ivan Gerstner
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Prólogo

1891 - ESH / CYRA

Aloria, uma pequena e humilde cidade do Estado de Esh, localizada em Cyra1,


encontrava-se envolta por nuvens densas, prestes a despejar uma iminente e
abundante chuva sobre suas ruas, até então tranquilas. O ambiente estava
impregnado de uma atmosfera carregada, enquanto Lydia, a doce jovem de apenas
15 anos, caminhava de volta para casa mais tarde naquele dia, pois resolvera ficar um
pouco mais na classe para conseguir finalmente ler um pouco mais do livro que sua
colega levava todos os dias, um conto de fadas ao qual demorara demais para
finalizar, já que ainda tinha dificuldades com a leitura.

Enquanto os moradores se apressavam a se abrigar antes da chegada da tempestade,


Lydia, com seu humilde material em mãos, percorria as ruas conhecidas da cidade. As
casas, construídas com uma variedade de materiais que iam desde tijolos até
madeira, era um mosaico de cores e texturas. Exibiam uma arquitetura simples e
acolhedora, com fachadas desgastadas pelo tempo e janelas de diferentes tamanhos.
Os telhados de telha de barro, inclinados para escoar a água da chuva, davam um
charme ao bairro. As ruas estreitas eram pavimentadas com pedras irregulares, gastas
pelo constante vaivém de seus habitantes.

Observando as primeiras gotas de chuva começarem a marcar o caminho à sua frente,


Lydia sentiu a familiar sensação de antecipação que precedia a tempestade. O som
das gotas caindo nas calçadas de pedra ecoava pelas vielas vazias, criando uma trilha
sonora para sua jornada. O vento começava a soprar, trazendo consigo um ar fresco e
revigorante.

Com o aumento da intensidade das gotas, Lydia acelerou o passo, divertindo-se com
a ideia de chegar em casa toda molhada. Seu vestido, feito de um tecido leve e
colorido, já começava a se impregnar com a umidade da chuva. As mangas compridas

1
País fictício criado especificamente para o livro, assim como Celeste e todas as cidades presentes em
ambos os países.

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estavam encharcadas, grudando-se delicadamente em sua pele, enquanto a saia
rodada esvoaçava ao redor de suas pernas ágeis.

Lydia antecipava as brincadeiras do pai sobre sua chegada tardia, seguida pela
repreensão amorosa da mãe por não ter voltado no horário combinado naquele dia.
Mal podia esperar para compartilhar a emoção de ter finalizado o tão sonhado conto
de fadas que vinha lendo nas últimas semanas. Imaginava a expressão de orgulho nos
olhos de seu pai e o sorriso gentil de sua mãe enquanto ouviam suas palavras.

Com o coração cheio de expectativas e alegria, Lydia já conseguia imaginar o pai


pedindo, com sua característica gentileza, para a mãe preparar alguns biscoitos de
manteiga. Essa deliciosa iguaria, tão amada pela garota, era uma especialidade da
mãe. Os biscoitos, dourados e crocantes por fora, revelavam um interior macio e
derretido. O cheiro tentador se espalharia pela casa, tornando-se o prelúdio de um
momento de alegria e conforto ao som da chuva. Lydia sabia que, mesmo em meio à
tempestade que se iniciava do lado de fora, dentro de sua casa aguardava um refúgio
caloroso e acolhedor, onde as histórias fluíam tão naturalmente quanto a chuva que
molhava suas roupas.

Ao chegar de frente a sua casa, com risinhos, observou que sua mãe não estava na
porta a esperando com uma cara de poucos amigos, o que a aliviou, pensando em
escapar de uma bronca por ter tomado chuva e demorado demais para voltar para
casa.

— Mamãe? Papai? — Chamou ao passar pela porta já aberta, e encontrar um silêncio


desconcertante que pairava no ar. Mas nenhum som foi ouvido, exceto pela chuva
forte que batia nas janelas.

Quando entrou totalmente na casa surpreendeu-se, a mesa próxima à porta, que


costumava abrigar uma jarra de flores frescas, agora estava tomada por uma
desordem de papéis. Quadros que antes adornavam as paredes estavam agora
espalhados pelo chão, como se tivessem sido arrancados com brutalidade e Lydia
percebeu com angústia que as imagens retratavam apenas seus pais, sem qualquer
sinal de sua presença. Era como se ela tivesse sido apagada da história da família,
deixando-a ainda mais confusa e apreensiva.

O cheiro familiar de comida caseira que normalmente permeava a casa havia sido
substituído por um odor terrível de terra. O tapete felpudo que costumava ficar na

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porta, agora estava completamente sujo, testemunha silenciosa dos eventos
tumultuados que haviam ocorrido ali.

O coração de Lydia apertou-se com uma sensação de desconforto e apreensão. Uma


série de perguntas invadiu sua mente, mas ela não encontrava respostas imediatas
para aquela mudança tão drástica em seu lar. Os elementos que antes emanavam
aconchego e familiaridade agora eram testemunhas mudas de uma desordem que ela
não conseguia compreender.

Com passos que ecoavam pelo silêncio perturbador da casa, Lydia avançou pela sala,
observando os estragos com uma mistura de tristeza e perplexidade. Ela sentia-se
como se estivesse em um pesadelo, incapaz de compreender como tudo havia
mudado tão rapidamente. A sensação de perplexidade crescia a cada passo, e Lydia
sentiu o nó apertar-se em sua garganta, tornando difícil até mesmo respirar diante da
incerteza do que havia acontecido naquele curto período de tempo.

Em busca de respostas, correu em direção ao quarto dos pais e, chegando lá, seus
olhos se arregalaram ao deparar-se com seu pai, Abner, caído no chão sobre sua mãe,
Dália. O chão antes branco estava manchado de vermelho, marcado pelo sangue das
pessoas que ela mais amava.

Enquanto a chuva batia nas janelas como uma sinfonia triste, Lydia ajoelhou-se ao
lado dos corpos, abraçando a dor que a envolvia. A sensação de estar sozinha no
mundo, pesava em seu coração. Não havia mais mãos para segurar as suas, nenhum
olhar acolhedor para secar suas lágrimas. Ela estava mergulhada no luto, em um
imenso abismo de tristeza.

Cada objeto revirado na casa ecoava a desordem que agora reinava em seu interior,
refletindo a tempestade que assolava sua alma. Os quadros caídos eram como
metáforas da família quebrada que agora se desfazia diante de seus olhos inocentes.
As fotos de seus pais, antes símbolos de amor e união, agora eram apenas retratos
silenciosos de um passado que jamais voltaria.

Lydia, impotente diante da realidade cruel, sentiu-se à deriva em um oceano perigoso.


Não havia mais conselhos maternos, nem palavras sábias do pai para guiar seus
passos. A Bíblia que antes estava ao lado do corpo dos pais, tornou-se uma
testemunha da fé que seus pais guardavam e que agora ela precisava encontrar
dentro de si mesma.

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A noite que se seguiu foi marcada por um silêncio sombrio, interrompido apenas pelo
som da chuva e pelos soluços solitários de Lydia. No escuro do quarto, ela se
encolheu, sentindo o vazio ao seu redor, como se o céu também chorasse a perda de
seus entes queridos. Com apenas 15 anos, Lydia enfrentava um mundo quebrado, sem
ninguém para confiar, sem ninguém para compartilhar o fardo de sua dor.

Lembrou-se então da conversa terrível que tivera com a família dias atrás.

Abner chamou a família para uma conversa quando chegou em casa após o trabalho,
reunidos então ao redor da mesa de jantar, iniciou com uma pequena oração
agradecendo pelo dia e por poder encontrar a família no final do dia.

— Exultai e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim
perseguiram os profetas que foram antes de vós 2— Recitou Mateus 5:12 quando
finalizou a oração, olhando de maneira séria para a família. Dália já entendendo do que
se tratava, pôs a mão sobre a do marido mostrando que estava a par do assunto. —
Johanan o novo rei de Cyra declarou que todos aqueles que adorarem a qualquer ser
que não seja a ele, serão considerados traidores e a pena é a de morte. — Suspirou antes
de continuar. - Frisou que pior seriam aqueles que adoram "aquele tal de Jesus" — usou
as mesmas palavras que lera no jornal e ouvira os colegas de trabalho falarem. — Vamos
orar fervorosamente a partir de agora, pedindo para que não sejamos como Pedro, e
não neguemos o nosso Senhor quando chegar nossa hora. Conversei com meu chefe e
estamos planejando uma forma de saímos do país se for necessário. — Continuou com
pesar na voz. Lydia então, entendendo a preocupação do pai, passou a fazer uma
oração baixinha, com medo. — Mas, caso aconteça algo à nossa família, morreremos
lembrando de 2 Timóteo capítulo 4, do verso 7 ao 8, certo?

Dália e Lydia assentem e se entreolham com lágrimas nos olhos, todos compartilhando
da mesma angústia.

— Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé. Desde agora, a coroa da
justiça me está guardada, a qual o Senhor, justo juiz, me dará naquele Dia; e não
somente a mim, mas também a todos os que amarem a sua vinda. — Abner com os olhos
fechados, entrelaçou a mão na da esposa, e puxou a filha para fazer o mesmo com a

2
Mateus 5:12

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outra mão. E novamente iniciou outra oração pedindo por proteção e misericórdia pela
família.3

3
2 Timóteo 4:7 - 8

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Capítulo 1

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1892 - CYRA

ANO 1

Apenas um ano se passou desde a tragédia que transformou a vida de Lydia. A cada
dia, ela carregava consigo as cicatrizes profundas da perda e a memória dolorosa
daquele momento terrível. Os rostos de seus pais, uma vez cheios de vida e amor,
permaneciam vívidos em sua mente, e a visão do quarto silencioso e manchado de
sangue ainda a assombrava.

Naquele dia fatídico, quando os fiéis de Johanan roubaram a vida de seus entes
queridos, Lydia se viu confrontada com a urgência de tomar decisões que
determinariam sua sobrevivência. Enquanto observava os corpos sem vida de seus
pais no chão do que outrora era um lar cheio de amor, ela sentiu o peso esmagador
da realidade. A incerteza pairava no ar, mas Lydia, sabia que precisava traçar seu
próprio caminho.

A bolsa da mãe, com seu tamanho modesto, tornou-se o recipiente para os elementos
essenciais que agora compunham a bagagem de Lydia. A Bíblia do pai, manchada de
sangue, era uma lembrança tangível de sua fé e força, uma foto onde estava com os
pais. Algumas mudas de roupa da mãe, escolhidas com carinho, agora eram os únicos
vestígios de sua presença. Um cantil cheio de água, e um mapa desgastado tornaram-
se aliados cruciais. O mapa, marcado pelo pai em um momento de esperança, guiou
Lydia em sua busca pela liberdade, apontando o caminho para a fronteira com o País
Celeste.

O conhecimento de que alguns dias após o ocorrido, algumas pessoas começaram a


conspirar para encontrá-la pesava sobre Lydia. Descobriram que naquela casa
moravam três pessoas, e a notícia se espalhou como fogo em palha seca. Era claro que
ela precisava se tornar uma sombra, uma presença que passasse despercebida aos
olhos daqueles que agora a caçavam. O instinto de sobrevivência aguçado, Lydia, a
partir daquele momento, passou a viver sorrateiramente ao anoitecer, quando o país
adormecia e as ruas esvaziavam.

Durante o dia, enquanto a luz do sol era uma ameaça, ela permanecia escondida nos
recantos mais sombrios, mantendo-se vigilante contra os perigos iminentes. À noite,
porém, era sua aliada. Com passos silenciosos, Lydia explorava os becos e vielas em
busca de casas mais acessíveis, procurando furtivamente por alimentos que
pudessem sustentar sua jornada. Não era um orgulho que a guiava, mas sim a
necessidade implacável de sobreviver.

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Cada refeição improvisada era uma vitória conquistada na penumbra. Lydia, como
uma sombra persistente, aprendeu a dançar com as trevas, a esgueirar-se pelas ruas
sem chamar a atenção. As linhas desenhadas pelo pai em seu mapa tornaram-se não
apenas um guia físico, mas também uma linha de esperança que a impulsionava
através da escuridão.

O inverno, sem dúvidas, a estação mais cruel e impiedosa quando não se tem um lar
para se abrigar, um lugar para reclinar a cabeça e encontrar algum conforto. A neve
caía de maneira constante e incansável sob a cabeça de Lydia, cobrindo seus longos
cabelos com um manto frio e branco. Seus lábios, já roxos, tremiam de frio, mas,
apesar disso, ela continuava a correr.

Enquanto corria, seus olhos captavam pelas janelas imagens de famílias se reunindo
para comemorar a noite de Natal, uma celebração que já não tinha mais o mesmo
significado para eles. Era uma triste realidade que, agora, neste país, não se podia
mais comemorar o nascimento de Jesus. E, ao ver essas famílias, lágrimas quentes e
salgadas escorriam pelo rosto de Lydia, marcando caminhos em sua pele fria.

Essas lágrimas não eram apenas de tristeza, mas também de saudade, de uma vida
que não voltará mais. Era a lembrança dolorosa de um tempo em que ela mesma se
reunia em torno da mesa de Natal, sentindo o calor e a alegria que agora pareciam tão
distantes. Cada risada, cada abraço, tudo isso agora era apenas uma lembrança, uma
lembrança que Lydia guardava em seu coração enquanto continuava a correr,
tentando encontrar algum abrigo, algum calor, em meio ao frio impiedoso do inverno.

Lá estava ela, sozinha e vulnerável, com fome que a consumia, frio que a fazia tremer
e sede que a queimava por dentro. Mas, apesar disso, ia murmurando para si mesma
— "Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados.1"

Os seus planos eram simples, porém arriscados. Pretendia passar rapidamente por
Awon, Estado ao lado de Esh, e depois correr o mais rápido possível para a capital do
país. Ela sabia que na capital, Arar, teria mais dificuldades para se esconder. Afinal,
era lá que ficava o grandioso palácio do Johanan. Mas, mesmo assim, estava
determinada a seguir o plano.

No entanto, assim que chegou a Awon, seu coração disparou. Eram três figuras
ameaçadoras, armadas e perigosas, paradas em um local estratégico, observando

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Mateus 5:4

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atentamente os caminhos de fuga. Eram quase 21 horas, a hora em que o perigo se
tornava mais palpável.

— Quantas pessoas são? — O primeiro homem, o mais alto e imponente deles,


perguntou.

— Até o momento, cinco pessoas de Esh, senhor. — A resposta veio rápida e direta.

— Certo, fiquem atentos, não deixem ninguém passar, ou então quem morrerá
seremos nós. — A determinação em sua voz era inegável. Os outros dois assentiram
com a cabeça e voltaram a mirar para os lugares por onde alguém poderia tentar
passar.

Lydia, com o coração batendo forte no peito e a mente correndo a mil por hora, não
sabia o que fazer. Em um impulso, escalou uma casa o mais silenciosamente possível
e se aninhou no telhado, na esperança de passar despercebida. E enquanto o frio a
consumia, ela começou a maquinar um plano, esperando uma possível mudança de
turno de seus perseguidores.

Perto das 4 da manhã, Lydia foi despertada por murmúrios altos ecoando na direção
dos homens que patrulhavam. Mal percebera, mas estava tão exausta que cochilou
sob a cobertura da neve que a envolvia como um manto gélido. Consciente da
necessidade de se manter silenciosa, segurou com firmeza o impulso de espirrar,
evitando chamar a atenção dos homens que vigiavam a área. Levemente, ela se
ajoelhou no telhado coberto de neve, espreitando através da escuridão para entender
o que se desenrolava abaixo. Suas mãos trêmulas do frio e nervosismo repousavam
sobre a fina camada de gelo que cobria as telhas.

Como suspeitava, uma troca de patrulha estava prestes a ocorrer. Os homens estavam
distraídos, imersos em uma conversa casual enquanto aguardavam os substitutos
que em breve chegariam. O mais alto, que Lydia presumiu ser o líder, impacientava-
se, lançando olhares frequentes ao relógio. Os outros dois, menos expressivos,
descansavam os braços ao lado do corpo, suas armas descansando no chão. A
dinâmica parecia fornecer a oportunidade perfeita para Lydia escapar do seu
esconderijo no telhado.

Aproveitando-se do momento de distração, Lydia desceu silenciosamente, seus


passos cuidadosos minimizando qualquer ruído que pudesse delatá-la. Entre

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arbustos e casas, ela avançava abaixada, contornando o perímetro. Os murmúrios dos
homens distantes, alheios à presença furtiva dela, proporcionavam uma cobertura
sonora. Lydia caminhou, fazendo uma volta estratégica até posicionar-se nas costas
dos perseguidores. Ela continuou seu percurso até que finalmente se sentiu segura o
suficiente para se levantar e acelerar.

1893 - CYRA

ANO 2

Lydia enfrenta o imenso e contínuo desafio de deixar Awon, especialmente


considerando que Esh, era notoriamente habitada por cristãos confessos. Os
perseguidores, sempre à espreita, tentavam encontrar qualquer suspeito que
pudessem condenar. Lydia sentia a ameaça constante pairando sobre ela, sempre
trombando com algum dos seguidores de Johanan, com cada vez mais fotos e
informações daqueles que deveriam roubar a vida.

Lydia cogitou procurar refúgio entre os cristãos assumidos de Esh, aqueles com quem
costumava cultuar, mas a desconfiança se instalou em seu coração, uma vez que
ouviu relatos de que até mesmo colegas "cristãos" estavam delatando seus irmãos
em Cristo. A traição vinda de dentro da própria comunidade lançou uma sombra de
desconfiança sobre Lydia, tornando-a relutante em confiar em qualquer um, além de
Deus.

Dois anos se passaram desde que Lydia deixou Esh, e a ausência de comunhão
humana começava a pesar em sua alma. Trocar uma palavra ou confiar em alguém,
eram luxos que ela não se permitia. Inevitavelmente a solidão tornou-se sua
constante companheira, trazendo consigo uma melancolia profunda e, às vezes, o
medo insidioso que pairava sobre sua existência. A garota de 17 anos não
compreendia completamente como podia permanecer viva, senão por um milagre
divino que parecia sustentá-la dia após dia.

Cada passo em direção à liberdade era permeado por uma mistura de coragem e
temor, enquanto Lydia seguia adiante, com a fé como sua única âncora em um mundo

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repleto de incertezas. O caminho solitário que ela trilhava, embora árduo e muitas
vezes assustador, era permeado pela crença de que chegaria a seu destino no fim das
contas, não importando se seria Celeste ou de fato o céu.

A necessidade de atravessar aquele território extenso pelo caminho mais demorado


estava deixando-a exausta, aumentando o seu cansaço e a sua fome. Numa tentativa
de prolongar seus recursos, racionava cuidadosamente a água do seu cantil,
permitindo-se beber apenas quando absolutamente necessário e, em seguida,
buscava maneiras de reabastecê-lo. Como agora, quando tentava abrir a janela de
uma grande e imponente casa na cidade mais rica de Awon.

Em circunstâncias normais, poderia ser perigoso se aventurar por lá, mas naquele
momento, a atenção estava mais voltada para encontrar fugitivos escondidos pelos
cantos da cidade, do que para proteger os mais abastados. Era a brecha que ela
precisava para se infiltrar em casas como esta.

Uma majestosa mansão de dois andares, adornada por colunas imponentes e janelas
que refletiam a prosperidade das pessoas que ali moravam. O jardim bem cuidado era
um testemunho visual da riqueza que se escondia por trás da fachada. A entrada
principal, guardada por uma porta maciça de madeira esculpida, exalava um ar de
prestígio que contrastava vividamente com o ambiente hostil de Awon.

Afastando-se da entrada principal, Lydia se aproximou de uma janela lateral,


buscando uma maneira discreta de entrar. Feliz comemorou baixinho por não haver
sinais de cachorros ou qualquer animal que pudesse delatá-la. Com cautela,
examinou as janelas, finalmente encontrando uma que não estava trancada.
Silenciosamente, deslizou a janela e entrou na sala de estar, revelando um ambiente
sofisticado e ricamente decorado.

Com passos leves, Lydia adentrou a casa, sua respiração contida enquanto explorava
os corredores silenciosos. Ela se encontrou diante da entrada para a cozinha, e sua
respiração presa escapou em um suspiro de alívio.

Cozinha esta, que apresentava armários de madeira escura trabalhados à mão, uma
ilha central com uma bancada de mármore branco e eletrodomésticos de aço. Com a
fraca luz dos postes da rua filtrando pelas janelas, Lydia conseguiu vislumbrar uma
geladeira, à direita do extenso armário da cozinha. Movendo-se rapidamente e em

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completo silêncio, ela se dirigiu até lá, abrindo a geladeira para revelar um verdadeiro
banquete diante de seus olhos famintos.

Dentro da geladeira, Lydia encontrou uma variedade de iguarias que contrastavam


drasticamente com a escassez que ela enfrentara nos últimos dias. Suas mãos
famintas se estenderam para pegar pedaços suculentos de carne, cuidadosamente
embalados e etiquetados. Ela descobriu fatias finas de presunto defumado e pedaços
generosos de queijo envelhecido, proporcionando um aroma tentador que preenchia
o ar ao seu redor.

Lydia, sentindo o gosto da abundância em sua boca, saboreou cada mordida como
um presente divino. Naquela cozinha luxuosa, ela se permitiu um breve momento de
alívio e deleite, aproveitando a oportunidade rara de nutrir seu corpo cansado com a
generosidade inesperada encontrada na geladeira recheada de tesouros
gastronômicos.

Entre cada mordida furtiva e cada sabor delicioso que preenchia sua boca, não se
esquecia de expressar sua gratidão a Deus. Mesmo ciente de que suas ações podiam
ser interpretadas como um erro, ela reconhecia a oportunidade providenciada para
saciar sua fome como um presente.

Cada pedaço de alimento, embora obtido de maneira questionável, era recebido com
um coração grato. Lydia, em silêncio, murmurava palavras de agradecimento pelo
sustento que aquela geladeira repleta proporcionava. A dualidade entre o
reconhecimento da transgressão e a gratidão pelo alívio temporário permeava seus
pensamentos enquanto ela continuava a se alimentar. Seus suspiros de
agradecimento eram como orações sussurradas. Apesar de reconhecer a
complexidade moral de suas ações, encontrava consolo na crença de que Deus
compreendia o desespero que a impulsionava.

Após sentir-se satisfeita, fechou a porta da geladeira e não hesitou em pegar um


pedaço de baguete fresca, que estava convenientemente disposta em uma cesta ao
lado da geladeira. Guardou-o na bolsa e se voltou para sair, no entanto, sua breve
sensação de alívio transformou-se em ansiedade quando as luzes da sala
repentinamente se acenderam. O coração de Lydia disparou enquanto ela se via
congelada no lugar, consciente de que sua presença clandestina poderia ser
descoberta. Rapidamente, como um instinto de sobrevivência, ela se agachou atrás
de uma ilha na cozinha, mantendo-se escondida nas sombras.

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A tensão aumentou enquanto Lydia, aflita, aguardava pacientemente que as luzes se
apagassem novamente. Cada segundo parecia uma eternidade, e ela podia ouvir os
batimentos acelerados do próprio coração.

Finalmente, após longos minutos, as luzes se extinguiram, mergulhando novamente


a cozinha na penumbra. Com movimentos calculados e rápidos, Lydia se ergueu e se
preparou para deixar o lugar. Com determinação, ela deslizou pela janela entreaberta
novamente, desaparecendo na escuridão da noite, levando consigo o alívio de ter
garantido, pelo menos por ora, uma pausa para seu corpo cansado.

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19
Capítulo 2

1894 - CYRA

ANO 3

Alguns anos atrás, quando Lydia sonhava acordada sobre seu futuro, ela nunca
imaginaria que estaria desesperadamente fugindo de homens armados, em plena
capital, Arar, onde ela sonhava com um futuro tranquilo e próspero. Numa corrida
frenética, com homens armados em seu encalço1, ela se encontrava em uma situação
impensável. Seus pulmões ardiam, clamando por ar fresco, suas pernas pediam
desesperadamente por repouso, e seu coração pulsava descontroladamente, como
um metrônomo acelerado.

Em meio ao caos, a garota viu uma oportunidade de escapar, desviando por entre as
casas e adentrando uma viela escura e estreita. O local era tão escuro que mal podia
ver o próprio caminho, os postes de luz estavam todos apagados. Ela aproveitou a
escuridão para ganhar alguns preciosos segundos de respiro.

Os homens armados se aproximavam, e Lydia, ao ouvir suas vozes ao longe, decidiu


continuar sua fuga. Planejando sair da viela pelo outro lado, ela se viu diante da
dificuldade de não encontrar um local para se esconder enquanto caminhava.
Determinada, continuou a andar, tentando evitar fazer barulho que denunciasse sua
posição.

— Continue pela viela, eu vou para a direita. Esqueça o resto, atire mesmo em
movimento. — A voz ordenadora ecoou. — Você, vá com ele para instruí-lo.

Passos ofegantes aproximavam-se por trás dela.

— Aqui está muito escuro, cara, eu não vou acertar. — disse um deles, claramente
apreensivo.

1
vestígio, pista, rasto.

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— Relaxa, você pega o jeito. Minha primeira vez foi um desastre também.

— E se ela estiver aqui? — Lydia prendeu a respiração, seus passos intensificando-se,


mesmo com sinais de cãibra em sua coxa.

— Sem medo, cara, é só atirar.

À medida que Lydia avançava, avistou uma tênue iluminação no final da viela.
Preparando-se para correr novamente, contou mentalmente até dez antes de iniciar
uma corrida desesperada, segurando a alça de sua mochila com firmeza.

— Maldição! — os dois homens também começaram a correr.

Um tiro ecoou, mas não foi em direção a Lydia. Ela se recusou a olhar para trás,
temendo ser atingida. Enquanto corria desesperadamente, suas preces ecoavam em
sussurros: "Tem misericórdia de mim, ó Deus, tem misericórdia de mim.2" As lágrimas
se misturavam ao suor, e ela sussurrava o salmo em busca de proteção.

— Pare aí, pedacinho de merda! — o perseguidor gritava, impulsionando-a a continuar


sua fuga.

— Clamarei ao Deus altíssimo, ao Deus que por mim tudo executa. — Mesmo
tropeçando, Lydia recuperava o equilíbrio, ziguezagueando pelas ruas e becos
escuros para despistar seus perseguidores. — Ele enviará desde os céus e me salvará
do desprezo daquele que procurava devorar-me. Deus enviará a sua misericórdia e a
sua verdade. A minha alma está entre leões, e eu estou entre aqueles que estão
abrasados, filhos dos homens, cujos dentes são lanças e flechas, e a sua língua, espada
afiada.

— Atire! — o perseguidor gritou, desencadeando uma sequência de tiros


desordenados, intercalados com momentos de corrida.

— Sê exaltado, ó Deus, sobre os céus; seja a tua glória sobre toda a terra. — Lydia
fechou os olhos ao ouvir os disparos, mas ao abri-los, avistou uma casa com muros
baixos e discretos, ideais para sua fuga. Acelerou seus passos e pulou para o quintal,
sentindo-se à beira de um colapso cardíaco.

2
Salmo 57:1-5

21
Sentada no chão do quintal, Lydia tentou acalmar-se, massageando as pernas e os
pés doloridos. Enquanto os perseguidores a procuravam, ela podia ouvi-los do lado
de fora, discutindo entre si, mas decidiu permanecer onde estava, agradecida por
permanecer viva, embora ainda chorasse devido à intensa dor física e emocional.

Com os primeiros raios de sol estalando no horizonte, Lydia despertou no quintal de


uma casa desconhecida, onde havia se refugiado na noite anterior, exausta e
desesperada. Seu sono foi interrompido pelo calor matinal e pelos sons típicos da
manhã que se iniciava. A lembrança de que os moradores locais poderiam descobri-
la ali, vulnerável, invadiu sua mente.

Ao se preparar para se levantar, Lydia lançou um olhar ao redor, tomando nota da


casa simples que se destacava naquele pedaço de Arar. O local parecia ser modesto,
com características que denotavam uma vida humilde. A entrada principal tinha uma
porta de madeira envelhecida, com vestígios de uma pintura que um dia foi vibrante,
mas agora estava desbotada. Ao lado da entrada, uma pequena janela com cortinas
gastas permitia a entrada de luz natural. No entanto, a vegetação ao redor da casa
indicava certo descuido, com ervas daninhas teimosas brotando ao derredor.

A simplicidade e o desgaste da casa tornavam evidente a luta diária dos seus


habitantes. Lydia, ainda ciente do perigo iminente, ponderou sobre o equilíbrio
precário entre encontrar um refúgio temporário e invadir a privacidade alheia.

— Bom dia, mocinha. — Já em pé, a garota travou os pés no lugar, sem reação para se
mexer, ao ouvir uma voz masculina da janela. — Tenha calma, não irei machucá-la, na
verdade pensei em te acordar para dormir aqui dentro, mas estava dormindo tão
profundamente que desisti. — Apesar da estranheza, pode sentir carinho da voz do
homem. Fechou os olhos tentando lembrar os cantos da casa, pensando nos próximos
passos para fugir dali. — Minha esposa preparou o café da manhã para você.

E então magicamente o coração de Lydia amoleceu, relaxou e finalmente cruzou os


olhos com o do homem mais velho. Que mantinha um olhar acolhedor. A estranheza
inicial de Lydia foi amenizada pela ternura na voz do homem. Ele se afastou da janela
e, em seguida, dirigiu-se até a porta, onde a abriu para a garota perplexa no quintal.

22
— Não irei denunciá-la, ou eu morreria também.

A oferta, com um sorriso cúmplice, lançou um fio de confiança que a fez aceitar o
convite a contragosto. Com uma mistura de relutância e desconfiança persistente,
Lydia atravessou a porta, adentrando a casa desconhecida. A sala de estar era
pequena, mas emanava um ambiente acolhedor e familiar. Um grande tapete surrado
se estendia diante de um pequeno sofá e duas poltronas, proporcionando um toque
aconchegante. Nas paredes, quadros espalhados contavam a história de uma família.
O homem que a convidara para dentro era retratado ao lado de uma mulher
igualmente grisalha. Outras fotografias exibiam momentos mais jovens do casal, ao
lado de uma criança, um menino que se assemelhava muito à mulher.

A barba grande e os cabelos grisalhos do homem contribuíam para a sua aparência


amigável, enquanto a mulher, ao seu lado, irradiava uma doçura que Lydia não
esperava encontrar naquele momento tumultuado. A presença de uma criança nas
fotos adicionou um toque de calor e familiaridade ao ambiente, contrastando com a
situação tensa do lado de fora.

Sentou-se no sofá, a pedido do mais velho, que igualmente se sentou na poltrona ao


lado do sofá. De uma mesinha ao lado, pegou uma Bíblia e a colocou sobre o colo.

— Aqui está, querida. — A mulher, cuja imagem Lydia contemplara nas fotos, surgiu
na sala carregando uma bandeja. Com habilidade e cuidado, ela equilibrava três
xícaras sobre a bandeja, as xícaras continham café fresco, emanando um aroma
irresistível que preenchia o ambiente, ao lado das xícaras, uma pequena cesta de
pães, uma tigela de frutas e uma geleia.

— Me chamo Thomas, e esta é minha esposa Sarah. — O homem apresentou-a


enquanto ela colocava a bandeja em cima da mesinha de centro, na minha frente e
sentava-se ao meu lado. — Não tenha receio, você pode comer. — Falou quando
percebeu que Lydia encarava a comida.

Ainda sem respondê-lo permaneceu sem mexer-se, encarando o alimento que tanto
desejava.

— Nós também somos cristãos querida. — A senhora ao seu lado então começou
chamando a atenção da menina, que já havia percebido tal fato. Sarah vendo a

23
confusão no rosto de Lydia voltou a falar. — Deus tem sido bom conosco, nunca
saímos daqui desde que a perseguição começou.

— Quem sabe fosse por causa deste momento. — Thomas, já degustando o café,
acrescentou.

— Como? — Sussurrou Lydia.

— Nenhum dos seguidores de Johanan veio até a nossa casa, descobrimos que nem
perguntam por nós. — Sarah passou a geleia no pão e ofereceu a Lydia. — Então
também nunca tentamos fugir daqui.

Lydia, finalmente aceitando o pão, agradeceu mentalmente pela refeição. O ambiente


ficou silencioso enquanto Thomas iniciou uma oração, agradecendo a comida e
pedindo misericórdia para aqueles que desejavam saciar sua fome, seja de comida ou
de espírito. O "Amém" coletivo encerrou a oração, e Lydia, de olhos fechados,
saboreou o pão, desejando que aquele momento pudesse se estender
indefinidamente.

— Vocês não cogitam fugir mesmo assim? em algum momento eles descobrirão. —
Perguntou pausadamente, com a boca cheia.

— O Senhor me mandou ficar. — Disse Thomas, recebendo um pão com geleia de


Sarah.

Dessa maneira simples, explicou o homem que Deus o orientara a permanecer ali para
ajudar pessoas como Lydia, desesperadas por liberdade. Até o momento, não
encontrara ninguém que pedisse ajuda, nem identificara alguém suspeito, como ela,
que acabara invadindo a casa. O dia logo passou e Lydia acabou se banhando e
dormindo naquele lugar acolhedor, tendo a oportunidade de ter boas conversas com
o casal, sendo alimentada pelo conhecimento do homem sábio que residia naquela
simples casa.

Já na noite do dia seguinte, Thomas e Sarah acompanharam Lydia até a porta quando
ela decidiu que seria o momento para ir, mesmo com a insistência de ambos para ficar
um pouco mais.

24
— Lembre-se, Lydia, — disse o senhor ao lado da esposa. — Porque estou certo de que
nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem
o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra
criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso
Senhor! 3— Completou, antes de Lydia seguir seu caminho em direção a Celeste.

3
Romanos 8:38-39

25
26
Capítulo 3

1895 - CYRA

Ano 4

No dia em que tomou a decisão de fugir, segurando o mapa deixado pelo pai, Lydia
não poderia imaginar a jornada árdua que a esperava. Quatro anos se passaram desde
então, e ela se viu sozinha, enfrentando desafios que jamais imaginara.
Surpreendentemente, descobriu que escapar de Awon seria uma tarefa mais
demorada e difícil do que fugir de Arar. Além disso, percebeu que era mais fácil passar
despercebida em lugares como Shéqer e Raav, onde a influência cristã era escassa e a
proximidade com a Floresta G'vul a tornava mais motivada para correr ainda mais.

Ignorando a fome e a exaustão, Lydia pressionava adiante, fazendo pausas apenas


quando absolutamente necessário para procurar por suprimentos básicos. Cada
segundo ganho na corrida era um passo mais próximo da liberdade almejada, e ela
estava disposta a sacrificar qualquer conforto em sua busca pela segurança e pela
oportunidade de uma vida sem perseguição.

Os dias se transformaram em semanas, e as semanas em meses, mas Lydia persistia,


alimentando-se da esperança de um futuro melhor. Seu corpo estava marcado pelas
cicatrizes das provações enfrentadas, mas sua determinação permanecia inabalável.
Agora, cada vez mais perto de seu objetivo, mais forte e mais astuta, Lydia corria em
direção a floresta. Floresta essa mais conhecida como o caminho para a fronteira, era
um território traiçoeiro, habitado por sombras e suspiros de esperança. Oficiais de
ambos os reinos patrulhavam essa linha imaginária, determinados a impedir que
qualquer suspeito atravessasse o limiar entre Cyra e Celeste.

Ainda a uma leve distância, Lydia já se movia com a cautela, tentando minimizar
qualquer indício de sua presença. Quando a exaustão começou a pesar em seus
passos, ela decidiu repousar em um galho de uma árvore, onde as pequenas frestas
da luz da lua atravessavam entre as folhas da arvore, lançando um manto de
serenidade. Sentada ali, Lydia bebeu as últimas gotas de água de seu cantil

27
envelhecido e retirou a Bíblia da bolsa. E a ansiedade pairava no ar, afinal em poucos
quilômetros de distância saberia se estava chegando a sua liberdade ou a morte.

— Não andem ansiosos por coisa alguma, mas em tudo, por meio da oração e da
súplica, com ação de graças, apresentem os seus pedidos a Deus. Então, a paz de
Deus, que excede todo o entendimento, guardará o coração e os pensamentos de
vocês em Cristo Jesus. 1— Recita baixinho, deixando as palavras penetrarem fundo em
seu coração aflito. No entanto, a tensão persistia, e Lydia, com lágrimas nos castanhos
olhos cansados, sussurrava suas próprias súplicas ao céu. — Meu Senhor, rogo-te que
venha ao meu socorro, traz calmaria para meu coração aflito. Estou com medo e
preciso do Senhor. Consciente estou de que questionei muito nos últimos anos, mas
sei que és o mesmo hoje e sempre, Pai. Como estiveste com os israelitas quando
fugiram do Egito, peço que faça o mesmo por mim.

E assim adormeceu, esperando que logo pudesse finalmente encontrar a tão esperada
liberdade.

Naquela madrugada, Lydia foi arrancada abruptamente de seus sonhos ao som de


latidos de cachorros e uivos de lobos. O som ecoou em seus ouvidos, fazendo com que
seu coração disparasse e sua mente entrasse em alerta. Ela se lembrou de uma
conversa que ouviu enquanto estava escondida, procurando um lugar para
descansar. A conversa dizia que perto da fronteira os oficiais estavam sempre
acompanhados de lobos e cachorros, ela não tinha certeza se era um fato ou apenas
uma especulação.

Agora, a 9 quilômetros de distância da fronteira sob a luz da lua, Lydia tinha certeza
de que essas histórias não poderiam ser apenas especulações. O som dos latidos e
uivos eram reais, assim como o perigo que representavam. Claro, ela sempre soube
que teria que escapar de homens armados e vigilantes, mas agora percebeu que teria
que enfrentar um desafio adicional. Teria que despistar os olfatos aguçados desses
animais, que estavam sempre em alerta, esperando para detectar um cheiro estranho.

1
Filipenses 4:6-7

28
Ao ouvir falar sobre a presença dos animais na região, ela decidiu tomar precauções
para evitar ser rastreada por eles. Com esse objetivo em mente, começou a procurar
por maneiras eficazes de despistá-los. Passou horas coletando ervas na densa floresta
e sempre que entrava em uma casa em busca de comida, procurava por esses
elementos, acreditando que ajudariam a camuflar seu cheiro.

Ainda aninhada no galho da árvore onde adormecera, retirou de sua mochila um item
de enorme significado emocional - o vestido favorito de sua mãe. Este vestido, preto
com detalhes arabescos em dourado, tinha um comprimento abaixo do joelho,
conferindo-lhe elegância discreta e atemporal.

Junto com o vestido, ela retirou uma pequena bolsa de moedas. Não sem um certo
sentimento de vergonha, já que se recordou de tê-la encontrado no lixo. Dentro dela,
guardava folhas de sálvia, cedro e manjericão, conhecidas por suas propriedades
aromáticas e medicinais.

Com delicadeza, esfregou as folhas no vestido, na esperança de que os odores


naturais das plantas mascarassem seu próprio cheiro e confundissem os animais que
porventura cruzassem seu caminho. Ela também passou as folhas pelos cabelos,
antes de guardar o que restou novamente na bolsa. Mesmo estando a uma distância
segura, ela sabia que precaução nunca era demais e tentaria ao máximo não ser
encontrada.

Por fim, ela trançou parte do cabelo para trás, numa tentativa de parecer mais
apresentável. Caso fosse pega, ela planejava se passar por uma moradora de Celeste.
Sabia que teria que trabalhar em seu disfarce, pois seu forte sotaque Cyraniano
poderia denunciá-la facilmente.

Vestindo o vestido, deu uma última olhada no mapa antes de guardá-lo com cuidado.
Agora com a bolsa nas costas, desceu da árvore com agilidade e se pôs em alerta,
atenta a qualquer som.

Correu incansavelmente por 4 quilômetros antes de decidir reduzir a velocidade.


Sabia que, a essa distância, os animais selvagens podiam detectar sua presença. A
proximidade de Celeste a fez sorrir, mesmo enquanto tentava recuperar o fôlego
perdido durante a corrida.

29
Agora, a apenas 30 minutos da fronteira, Lydia sentia uma mistura de antecipação e
nervosismo. Seu coração batia forte não apenas pelo esforço físico, mas também pela
ansiedade do que a aguardava em Celeste. No entanto, a esperança de uma nova vida,
livre das ameaças, impulsionava-a adiante. Era um sorriso refletindo não apenas a
alegria do momento, mas também a coragem de enfrentar o desconhecido. Lydia
estava prestes a dar um passo decisivo em direção à sua liberdade, ansiosa para
descobrir o que o futuro em Celeste lhe reservava.

Gotas de chuva caíam levemente do céu, trazendo à lembrança daquele dia em 1891.
Talvez a chuva fosse o fim de um ciclo ou o início de outro. Lydia, com cada movimento
calculado, esgueirava-se furtivamente pelas árvores.

À medida que se aproximava, deparou-se com uma surpresa que escapara de suas
considerações e que agora parecia óbvia demais para não ter imaginado. Duas
grandes torres, suas luzes intensas rompendo a escuridão da floresta como faróis. A
visão intrigante fez Lydia congelar por um instante, ponderando sobre a presença de
oficiais e dos animais de guarda que ela antecipava encontrar em breve. Entre as
sombras das árvores altas, Lydia agachou-se, esperando pacientemente enquanto
observava os holofotes desenharem padrões. Quando o momento certo chegou, e
uma das luzes virou novamente para o lado oposto, Lydia avançou, seu corpo
moldado pela prática constante da furtividade, deslocava-se sem emitir sons altos.
Habilmente, ela desviava-se dos feixes de luz, movendo-se entre as árvores com a
graça de uma criatura noturna. Seus ouvidos sintonizavam-se com os sons sutis da
floresta, decifrando os ruídos naturais. No entanto, sua progressão silenciosa foi
interrompida por uma risada alta.

Ao focar sua atenção na fonte do som, Lydia deparou-se com dois homens vestidos
com uniformes militares Cyranianos, em verde oliva com detalhes em amarelo. Junto
a eles, dois cães compunham a patrulha noturna. As palavras zombeteiras dos
homens revelavam uma crueldade impiedosa.

— Você está brincando? Uma família inteira tentando passar a fronteira é uma piada
mesmo. — Um dos homens gargalhava, revelando uma crueldade desumana. — Eu
queria ter visto isso. — Limpa os olhos que lagrimejavam de tanto rir.

— Os Celestinos acharam que iam impedir que fizéssemos algo, ficaram gritando que
não era necessário, eram novatos. Me segurei para não atirar neles também. —
Expressou sua raiva.

30
A conversa dos homens revelava uma hostilidade que fez Lydia sentir calafrios. Mesmo
assim, ela forçou-se a continuar seu caminho. Contudo, ao pisar em um pequeno
galho, chamou a atenção dos patrulheiros. O riso cessou, substituído por uma tensão
palpável. Logo um lobo apareceu ao lado dos cachorros, que farejando o ar em busca
de qualquer vestígio estranho. Lydia, apreensiva, virou-se e encostou as costas no
tronco da árvore que se esgueirava segundos atrás. Sem saber o que fazer, fechou os
olhos e prendeu a respiração, ouvindo apenas os latidos e o ranger da chuva que
aumentava sua intensidade.

Quando não aguentava mais segurar o ar, abriu novamente os olhos.


Surpreendentemente diferente do que imaginou, nada aconteceu, os animais
aproximaram-se um pouco mais dela, mas não avançaram totalmente, ainda
farejando o ar, mas agora para o seu lado direito. Lydia tentou seguir com os olhos em
direção ao lugar em que eles farejavam e com muito esforço pode ver ali um sapo,
emitindo seu som característico. Era a distração perfeita.

Aproveitando o momento, a menina observou que a luz da torre logo giraria para a
direção contrária, contou os segundos e quando a luz finalmente virou, com cautela,
ela avançou silenciosamente, desejando encontrar a localização da segunda torre,
agora presumivelmente em terras Celestinas.

O caminho sinuoso2 levava Lydia até uma parte mais densa da floresta, onde as
árvores se enlaçavam, formando uma espécie de túnel natural. Ela avançava com
cuidado, sempre alerta para os sons dos passos e dos latidos que reverberavam entre
as árvores altas. O cheiro da terra molhada impregnava o ar, misturando-se com a
tensão palpável da fuga iminente.

Com a segunda torre totalmente à vista, não conteve dar um singelo sorriso. A
promessa de liberdade, oculta sob as sombras da noite, guiava cada passo dela. À
medida que se aproximava do ponto crítico, onde Cyra se encontrava com Celeste, a
tensão no ar crescia.

Respirando profundamente, Lydia adentrou Celeste, onde as sombras da floresta


deram lugar à promessa de um novo começo. A lua, testemunha silenciosa de sua
travessia, continuava a derramar sua luz sobre a jovem fugitiva, agora livre para
moldar seu próprio destino além da fronteira que um dia a aprisionou.

2
descreve curvas, volteia.

31
Lydia repetiu o mesmo percurso com a nova torre, aguardando que ela iluminasse
outro canto da floresta antes de avançar um pouco mais. Ao se deparar com os
guardas de Celeste, com fardas mais chamativas em vermelho com detalhes em
amarelo, também acompanhados por cães e lobos, ela sentiu um alívio. Mesmo sendo
do país inimigo, os Celestinos estavam tentando evitar que uma família morresse na
floresta oposta, como os homens de Cyra haviam mencionado.

Mesmo mais calma, ela manteve o mesmo nível de furtividade ao passar entre os
guardas Celestinos. A chuva continuava a cair, e as lágrimas de Lydia se misturavam
com as gotas que escorriam por seu rosto angelical. Essas lágrimas, agora, eram uma
expressão de todas as dores e sofrimentos dos anos passados, transformando-se na
paz que habitava em seu coração. Era uma paz inexplicável, que a deixava confusa,
mas também grata.

Perto do amanhecer, Lydia continuava a caminhar, procurando por um abrigo


temporário, já distante dos homens que outrora lançavam medo em seus
pensamentos. A certa distância, avistou uma pequena estrada de terra, com algumas
pedras. Sentindo uma leve dor nos pés descalços, seguiu o caminho, encontrando um
campo de flores mistas. Postes de luz iluminavam todo o ambiente, criando uma
atmosfera mágica.

Ao adentrar o campo de flores, sentindo as delicadas flores roçarem em suas


panturrilhas, Lydia maravilhou-se com a cena. No meio do campo, descortinava-se3
uma pitoresca4 casa de dois andares, rústica, mas incrivelmente bonita. A construção
revelava uma arquitetura majestosa, com detalhes que contavam histórias de tempos
passados. A pintura desgastada pelo tempo apenas acrescentava charme à morada, e
o conjunto de janelas adornadas com cortinas leves permitia que a luz do amanhecer
espreitasse de maneira acolhedora.

Lydia, emocionada, aproximou-se da casa, sentindo-se como se tivesse encontrado


um refúgio seguro. As flores ao redor, encharcadas pela chuva noturna, exalavam um
perfume fresco que impregnava o ar. Ela contemplou a casa, imaginando as histórias
que aquele lar poderia contar, e ao mesmo tempo, visualizando um capítulo novo e
esperançoso que estava prestes a escrever. Com passos cautelosos, ela subiu os

3
enxergava, patenteava, distinguia, notava, descobria, avistava.
4
Inusitado ou interessante; que se sobressai pela excentricidade.

32
degraus que levavam à porta principal, ansiosa por descobrir o que Deus havia
reservado para ela naquele recanto acolhedor de Celeste.

33
34
Capítulo 4

Lydia cuidadosamente arrumava o vestido quadriculado, cujas cores vermelho e branco


se destacavam em perfeita harmonia. O tecido leve acariciava sua pele, e os detalhes
minuciosos do bordado revelavam o capricho dedicado à peça. A escolha da roupa era
uma expressão do anseio e da expectativa que transbordavam no coração da jovem.

A cesta, meticulosamente organizada, revelava um banquete preparado com amor. Os


pães, exalavam um aroma irresistível. Os pedaços de queijo, cuidadosamente cortados,
formavam uma exibição de formas e texturas. Frutas suculentas completavam a
seleção, contribuindo com cores vibrantes.

A mãe, Dália, compartilhava do entusiasmo da filha, colaborando para criar uma


atmosfera de celebração. Ambas, imersas na preparação, contavam os minutos para a
chegada do pai, que prometera um piquenique como presente de aniversário para
Lydia.

— Mamãe, ele já está chegando? — Perguntou pela milésima vez.

— Em alguns minutos.

Entretanto, as horas se estenderam e a antecipação transformou-se em uma pontada


de desilusão. O ponteiro do relógio avançava para as 18 horas, e o horário combinado
já havia passado, mas o pai não dava sinal de chegar. A frustração começou a se
instalar, desenhando sombras no rosto animado de Lydia.

Já desistindo do piquenique, ela caminhava para o quarto para se desfazer do vestido,


quando ouviu a porta de entrada se abrir e um molho de chaves ser colocado sobre a
mesa perto da porta. Virou-se rapidamente e correu para então ver o pai, a camisa social
branca, suja de graxa, evidenciava os contratempos que ele enfrentara. E com um
sorriso amarelo mostrou as mãos sujas, indicando que não poderia abraçá-la naquele
momento.

35
Apressado lavou as mãos e trocou de roupa, só para então abraçar a filha apertado. O
pai, com sinceridade, explicou os problemas mecânicos que enfrentou com o carro,
pedindo desculpas pelo atraso.

— Infelizmente não poderemos ir ao parque hoje, — olha para o relógio — mas ainda
podemos fazer o piquenique lá fora, o que acha? — Olha para a filha com esperança,
tendo o apoio da esposa.

Mesmo triste com a notícia, assentiu com a cabeça com um sorriso incerto.

Do lado de fora, a manta xadrez foi estendida, e a cesta que Lydia e Dália prepararam,
finalmente se abriu.

Embora o parque tenha sido substituído pelo quintal, o divertimento entre os três
transcendeu as circunstâncias. As piadas sem graça do pai provocavam risadas, mesmo
diante dos olhares repreensivos de Dália, fazia a mais nova rir até doer a barriga. Entre
mordidas em frutas frescas e pães recheados, um contador de histórias habilidoso,
encantou-as com contos mágicos, que transportavam a todos para mundos
imaginários.

Os olhos de Lydia brilhavam com uma admiração inocente, absorvendo cada palavra
com fascínio. Sua mãe, observando o cenário, sorria, saboreando não apenas os
alimentos deliciosos, mas também a felicidade que emanava daquele piquenique
improvisado.

Lydia acorda assustada, ao ouvir uma porta batendo, revelando a presença de mais
alguém ali.

Enquanto acordava, lentamente, a memória da madrugada que se passou começou a


se desenrolar em sua mente. Ela recordava vividamente a sensação de maravilha ao
caminhar em direção àquela casa deslumbrante que agora servia como seu refúgio.

A beleza do lugar a tinha impactado tanto, que até tentou entrar na casa pela porta de
entrada, mas assim que tentou abri-la o esperado aconteceu, estava trancada. Mas
habilmente procurou por uma janela com alguma brecha que a ajudaria a entrar, o que
também foi um desafio, visto que nenhuma das janelas do andar de baixo estavam
abertas, fazendo-a fazer algo drástico como escalar uma arvore que a faria ficar perto
de uma janela do segundo andar.

36
Tendo êxito dessa vez, entrou num lindo quarto, a decoração era uma mistura
harmoniosa de luxo e modéstia, cada detalhe era uma obra-prima em madeira.

As paredes exibiam painéis de madeira trabalhada, esculpidos com padrões


intrincados. Um grande tapete vermelho, cobria o chão de madeira polida. Na cama de
casal, um dossel de madeira com cortinas vermelhas e brancas, fez com que Lydia
sentisse como se tivesse entrado em um conto de fadas.

O quarto era elegante, mas não excessivamente extravagante. Uma cômoda adornada
com detalhes entalhados ocupava um canto, enquanto uma escrivaninha imponente
ocupava outro, completada por papéis e uma pena, sugerindo um ambiente propício
para reflexões e escrita.

Uma lareira adornava a parede oposta à cama, com brasas ainda crepitantes,
proporcionando uma atmosfera acolhedora e calorosa ao quarto. Lydia podia sentir o
cheiro suave de madeira queimada no ar.

Adentrando um pouco mais, caminhou pelo quarto, e sem conter a curiosidade abriu
uma segunda porta ao lado da escrivaninha, levando-a a um grande closet, repleto de
roupas sociais caras, relógios e sapatos que jamais pensara ver na vida. Lydia notou um
espelho de corpo inteiro em um dos cantos, e ao aproximar-se, viu refletida uma imagem
que parecia deslocada da realidade daquele ambiente. Seu vestido desgastado com
manchas de terra e os pés descalços contrastavam fortemente com a opulência do
quarto.

Mas então passou a ouvir vozes vindo em direção ao quarto, fazendo-a se desesperar, e
num impulso correu para o lugar novamente e escorregou para baixo da cama.

O coração de Lydia batia descompassado, ecoando no silêncio do quarto enquanto ela


se encolhia em seu esconderijo improvisado. As vozes, cada vez mais próximas, a
provocavam uma sensação de pânico.

A porta do quarto se abriu suavemente, revelando uma conversa que Lydia não
esperava ouvir. O desconforto de Lydia crescia à medida que ela escutava, temendo ser
descoberta a qualquer momento.

— Não será necessário, Zev. Ficarei fora dos negócios esta semana — a voz, profunda e
aveludada, pertencia a alguém de importância. Lydia fechou os olhos, prendendo a

37
respiração, enquanto tentava assimilar as palavras que fluíam na sala. — Mande Josias
em meu lugar desta vez.

Uma crescente curiosidade se acendeu em Lydia. Quem era a figura que morava nesta
casa tão magnifica?

— Sim, senhor. Enviarei um comunicado a Josias assim que amanhecer — respondeu


Zev, cuja voz soava como a de um homem leal e experiente em seus afazeres.

— Certo, você está dispensado, vá descansar.

A porta se fechou suavemente. O som dos passos de Zev se afastando se dissipou no


corredor, mas a tensão no ar persistia. E passos largos ainda soaram no quarto, indo
para o closet que Lydia não havia terminado de explorar. Sem saber o que fazer, ficou
lá, pensando em como sairia daquela situação.

No entanto, acabou adormecendo de pura exaustão. Acordando agora, com a porta


do quarto fechando-se, indicando que o homem que despertara sua curiosidade já
havia deixado o recinto.

Ainda sonolenta, arrastou-se para fora do esconderijo de baixo da cama e ergueu-se


com cuidado. A cama permanecia impecavelmente arrumada, mal denunciando a
presença do homem que possivelmente compartilhara o mesmo espaço para
descanso. Mas parou de analisar o ambiente quando sentiu uma tremenda vontade
de fazer xixi. Com um senso de urgência cômico, ela se desesperou à medida que a
vontade aumentava. "Onde diabos fica o banheiro neste lugar?" pensou. Foi então
que recordou do closet, um espaço que não tivera a oportunidade de explorar
completamente, e dirigiu-se para lá, apertando as pernas enquanto segurava sua
bolsa.

Cambaleando para dentro do closet, percebeu, próximo ao final do corredor, um


vapor escapando de uma porta fechada. Deduzindo que se tratava do tão desejado
banheiro, apressou-se em direção a ele, abrindo a porta e deparando-se com uma
visão de um banheiro, tão opulento quanto o quarto e o closet, era uma obra-prima
da elegância. Os azulejos do piso e das paredes eram meticulosamente trabalhados,
em tons de bege e detalhes refinados em dourados. A luz suave emanava de
candelabros pendurados, criando uma atmosfera calorosa e acolhedora.

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A banheira, no canto direito do banheiro, era uma verdadeira peça de destaque. Feita
de ferro fundido, ela possuía curvas graciosas e pés ornamentados, e a torneira,
adornada com detalhes em ouro.

Ao redor, uma variedade de itens de higiene pessoal estava disposta em um armário


sem portas de mármore. Frascos de perfume e pentes de marfim completavam a
atmosfera luxuosa.

Um espelho de parede, emoldurado em madeira ricamente entalhada, refletia a


imagem de Lydia enquanto ela, ainda meio sonolenta, caminhava mais para dentro.
Toalhas macias e perfumadas estavam penduradas próximo à banheira, convidando-
a a desfrutar de um banho relaxante.

Com um suspiro de alívio, fechou a porta atrás de si, soltou a bolsa e apressou-se para
aliviar a bexiga. Observou, então, o ambiente com mais detalhes, sentindo-se tentada
pela luxuosa banheira, ainda aquecida pelo banho recente do homem. A hesitação
persistia, mas a necessidade de relaxar e limpar-se era irresistível.

Despiu-se lentamente, revelando uma figura marcada por anos de jornadas solitárias.
Deixou suas roupas sujas e gastas cuidadosamente dobradas sobre um banco
próximo à banheira. Deixou que a água escorresse toda a água que já estava na
banheira, e tornou a enche-lo novamente. Com um passo hesitante, adentrou a água,
sentindo o calor acolhedor envolver seu corpo cansado.

A imersão na banheira luxuosa proporcionou a Lydia uma sensação reconfortante de


conforto e agradecimento. De olhos fechados, deixou-se envolver pela calma que a
água quente proporcionava, esquecendo momentaneamente as agruras do passado
recente.

Enquanto as gotas d'água escorriam pelo seu corpo, Lydia refletia sobre os eventos
que a levaram até aquele lugar desconhecido. Pensava em como cada passo parecia
ser guiado por uma força superior, um milagre providenciado por seu Criador. A
chuva, que supostamente deveria ter apagado qualquer vestígio do odor das ervas
que usou para despistar seu cheiro, não surtiu o efeito esperado. Foi como se uma
mão invisível a protegesse, permitindo que ela continuasse seu caminho sem ser
detectada.

39
Lembrava-se do momento em que pisou em um galho na floresta, temendo ter sido
descoberta pelos lobos e cachorros que patrulhavam a fronteira. Contudo, para sua
surpresa, os animais e oficiais pareceram interpretar o som como algo mais inocente,
um simples sapo.

Mas o maior milagre de todos foi ter encontrado aquela casa. Um lugar que, por um
breve momento, proporcionava-lhe um luxo inesperado. A beleza do lugar, o quarto,
o closet e o banheiro deslumbrantes — tudo parecia uma dádiva. Lydia não podia
deixar de se sentir grata por cada reviravolta que a levou até ali, onde podia desfrutar
de um breve refúgio e repouso. Cada detalhe da casa era como um presente do alto,
uma demonstração de que, mesmo em meio à adversidade, a providência de Deus
estava presente em sua jornada.

— Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus,
daqueles que são chamados segundo o seu propósito.1 — Não pode deixar de sorris
ao sussurrar para si mesma.

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Romanos 8:28

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