Você está na página 1de 71

RABANADA

COLETÂNEA DE NATAL

Textos: Andressa de Sá, Arthur Guanaes,


Eric Jankowsky, Eline Sandes, Noemi Vilela

Ilustração: Arthur Guanaes

Capa: Andressa de Sá

Dezembro, 2021
SUMÁRIO

Prefácio, por Arthur Guanaes ................................................................ 4


O toquetoque, por Andressa de Sá 5
.................................................

Deus no arroz com passas, por Eline Sandes ..................... 8


Neve, por Eric Jankowsky .................................................................. 20
Deus conosco?, por Noemi Vilela .............................................. 26
O canário da discórdia, por Arthur Guanaes ................. 32
Manhã de dezembro, por Eline Sandes .............................. 55
O Natal é para os fracos, por Arthur Guanaes ............. 57
Doxologia, por Eric Jankowsky ................................................... 70
PREFÁCIO
Arthur Guanaes

O que faz uma história de Natal?


Nos fizemos essa pergunta quando nos pusemos a
escrever esses contos e poemas. A resposta clara e
intuitiva é que precisa ter a ver com o natalício de Jesus
Cristo. Conhecendo os autores que contribuíram,
dificilmente gastariam sua pena em histórias sobre
crianças céticas em busca do Papai Noel, ou aventuras
sobre salvar o Natal, sem circundar o que é o Natal. Tal
minha prova: há mais referência à música da Simone do
que ao bom velhinho (cace e me avise quando as
encontrar). Cada conto particular mostra de forma clara
como o Natal não é mera festividade; é coisa séria. É
ruptura, é ponto sem volta, é salvação.
Mas não há nas histórias apenas o indicativo do que
ocorreu na Natividade. Não, há também por que Jesus
teve de nascer. O Natal é uma introdução drástica do
divino no humano, porque a separação do divino com o
humano era drástica. Só há luz no Natal, porque
trouxemos as trevas.
Se eu pudesse resumir todos os contos em uma
ideia principal, seria: somos um bando de tolos, e por
isso Jesus veio à terra.
Um feliz Natal a todos os tolos que lerem essa
Coletânea.

4
O TOQUETOQUE
Andressa de Sá

D ormiu, rezou, abriu janela, se perguntou por ela.


Tão bela, sua esposa ainda abrindo as pestanas,
quis acordá-lo com um beijo. Mas ele, homem agoniado,
já estava de pé, distante da cama.
Jogou água no rosto, quis fruta pra começar o dia.
Seu moleque já corria no quintal antes do sol aparecer,
subiu no pé de tâmara tão ligeiro que o pai deu de
aborrecer. Havia de pegar um bocado e levar à mesa, é
evidente. Mas o homem nem lembrou da fome e com
firmeza se ouviu da casa:
— Desça já daí, menino, eu não tô de graça!
Calçou sandálias, pôs mão no arado. Saindo ao
campo, se perguntou se era amado. Ao meio dia ele
encontra seu cunhado, o amigo mais chegado, que lhe dá
recado:
— Como combinado, não esqueça meu bocado. Eu
te amo, até mais ver!
Com sol na cuca, já cansado, as palavras lhe
chegaram misturadas. “Eu te chamo, até mais ver!” e
numa sombra branda ele procura pausa. Dá uma
cochilada, sonha com a casa lotada. Uma criança
chorando, uma moçada encantada.

5
Dois jovens passam ao largo, falando mesmo muito
alto, ele desperta miúdo, com os olhos ainda fechados. Já
muito irritado, ouvindo seu nome ser difamado, finge
ainda não estar desperto, pra não ser pior o estrago. Os
rapazes inspirados, admiram o que veem.
— É ele mesmo, que dorme ali debaixo. É fé demais
dormir assim, tranquilo.
Passados os moços ele levanta com pouca paciência
“ora, essa gente comenta de tudo! Quem ‘fede demais’ é
esse povo bicudo!” Esperando não ter mais
importunação futura, volta ao seu trabalho sol a pino,
terra dura.
A mente sem calar-lhe as perguntas “Se há justiça
que se faça no mundo, se há pão pra quem não tem
fortuna, se há dos jovens respeito aos grisalhos, se há
beleza nesse mundo embaralhado. Se há salvação que
nasça, se tem brilho as estrelas dentre essas noites tão
nubladas.”
Lá de tardezinha, voltando antes que serene, passa
perto da cidade, pra saber se há novidade. O céu se
enche de beleza, as cores do pôr do sol dançando acima
de sua cabeça. Ele, contrariado, porque ao lado do
calçado, não encontrou flor de seu agrado que à sua casa
pudesse enfeitar.
Lembrando que o tempo tá raso, o fosso entulhado,
o menino danado, o dinheiro escasso, chuta o chão com
força, deixando a poeira alta. Não vê junto da terra
pairar no ar uma moeda de prata, levantada pela sua
sandália.
Chegando ali na cidade, a moça com quem busca
trigo, lhe recebe com um sorriso, como de costume.
Dessa vez lhe dá dose extra, pela amizade que assume.
Agradece gentilmente, a bolsa de moedas agora
inabitada, um senhor faminto lhe alerta muita fome. O
6
homem nem lhe percebe e correndo pra casa vai dar à
sua família o que se come e bebe.
Devagar, pesaroso, sujo e zarolho, rumando
finalmente ao descanso, nem o moço versando Isaías na
praça ele ouve. Fechou a porta atrás de si, na pressa de
murmurar. Deixou preso lá fora a mais bela melodia que
se fazia tocar.
A casa toda perfumada, agrado da esposa por
motivo algum. O homem entra depressa, tão baqueado
pelo dia passado que nem o cheiro agradável às suas
narinas se fez notar. O menino, ainda agitado, aponta da
janela maravilhado:
— Veja, pai! O céu está estrelado e aquela
pequenina parece inda mais forte brilhar!
Mas no mesmo momento havia um jarro quebrado,
e esse imprevisto ele não podia passar. Deixou o menino
de lado e os pedaços espalhados ele estava a juntar.
Enquanto prostrado no barro, a sua mulher, ouve
alertar.
— Há gente se achegando e à nossa porta vai tocar
— sua mulher olha da fresta com curiosidade singular
— quem será a essa hora que pode nos procurar?
— Tenha cuidado que a boa sorte não nos costuma
chamar.
— Vejo um homem!
— Um homem?
— E traz um burro!
— Como é? Ele levou um murro?
— Em cima, há uma mulher!
— Por ciúme da mulher?
— Ela está grávida!
— Misericórdia.
Se escuta a porta toquetoquear.

7
DEUS NO ARROZ
COM PASSAS
Eline Sandes

E star ao lado dele havia se tornado insustentável. A


cada dia eu me perguntava o porquê de ter
aceitado o pedido de casamento e começado uma vida ao
lado daquele homem. Onde eu estava com a cabeça?
Havia acabado de iniciar minha pós-graduação,
pretendia encaminhar para um mestrado sanduíche em
Portugal e de lá conquistar meu sonho de ser docente
em Teoria Política Clássica. Eu tinha tantos planos, e
abri mão de todos eles para casar-me com o homem dos
meus sonhos! Patético! Mas cá estávamos, pelo segundo
ano consecutivo, apertando a campainha do portão da
casa da minha sogra para celebrarmos o Natal em
família. Eu segurava a recém-nascida no colo como se
fosse um presente, embrulhada para que não pegasse
sereno. Era o primeiro Natal da nossa pequena e eu
odiava o sentimento efervescente de que ela era a causa
pela qual eu continuava atrelada àquele matrimônio.
Vinícius me olhava com aquele olhar tenro, o
mesmo que me conquistara cinco anos antes na festa de
um amigo em comum, época em que eu era livre e não
sabia. Não pude resistir e dei-lhe um sorriso plácido que
disfarçava minha angústia. Sim, sim, eu deveria estar
feliz: era Natal, não é mesmo? Eu deveria estar pulando
de alegria, jubilosa. Ainda mais com aquelas luzinhas
8
piscando em frente à casa, iluminando as samambaias de
frente às janelas e trazendo vigor àquele chão bruto e
cinza da edificação ainda inacabada.
— Abriu? — ouvimos a voz robótica de Hugo, meu
cunhado, vinda do aparelho. Vinícius forçou o portão.
Nada. — Peraí que vou pedir para abrirem com o
controle da garagem.
Dentro de dez segundos o motor barulhento
estalou e as cremalheiras foram se arrastando até abrir
um espaço generoso para entrarmos. Eu havia
engordado durante a gravidez, mas poxa, tudo aquilo já
era ofensivo! Dei uma última olhada para trás, só para
aferir se o carro estava estacionado corretamente. A rua
estava abarrotada de carros, e de todos os lados só se
ouvia vozes e risadas, a maioria de pessoas que já
estavam na segunda taça de vinho ou terceira latinha de
cerveja. Eu torcia para que ninguém arranhasse a lataria
do nosso SUV, quitado fazia apenas três semanas.
Limpamos os sapatos antes de entrar e, mal
havíamos aberto a porta, Camila, esposa de Hugo, já
estava pronta para nos cumprimentar.
— Oi, Carol... Vinícius... achávamos que vocês nem
vinham mais — disse ela enquanto nos abraçava e nos
dava um beijo de cada lado do rosto – quase que
começamos a ceia sem vocês.
A bebê percebeu o movimento e o calor repentinos
e acordou com um choro, desembrulhando a mantinha
com a qual eu a havia envolvido. Vinícius segurou o
pano enquanto eu ajeitava a criança, deixando-a como
que de pé. Ela continuou a se sacudir por um tempo até
parar de chorar e voltar ao seu estado quieta e
observadora. Camila veio abrindo os braços para recebê-
la no colo. A bebê se revoltou e virou a cabeça para mim.

9
— Ela está enjoadinha hoje... — afirmei — melhor
não...
Tamanho privilégio, ser um recém-nascido e não
dever satisfação a ninguém. Poder chorar e ter as
necessidades supridas como que em um passe de mágica.
Hugo apareceu na bancada que ligava a sala à
ampla cozinha. Era um rapaz que, assim como eu,
abdicou de um futuro promissor para estabelecer o
compromisso do casamento. Entretanto ele continuou a
trabalhar e ganhava bem, mesmo sem ter dado
continuidade ao MBA em Gestão de Negócios que havia
começado em São Paulo.
— Chegaram na hora certa, porque o peru acabou
de sair do forno. Graças a Deus não vou ter que
requentar.
Nesse momento os gritos agudos de crianças
retiniram dos fundos da casa. Não era bem um quintal,
mas o espaço era suficiente para que os três filhos de
Daniel, o irmão mais velho de Vinícius, e o shih-tzu,
fizessem a festa. Percebi que o motivo da algazarra era
minha sogra, que chegava com uma assadeira cheirando
a carne assada, e com um sorriso largo no rosto. Ela pôs
o peru em um apoiador de madeira, descalçou as luvas
térmicas e veio nos cumprimentar. Os cabelos pretos,
quase azuis, denunciavam o retoque recente das raízes.
Joguei-lhe um elogio, não por achar bonito, mas por
educação. Veja bem, minha sogra não era sequer feia
nem velhota, mas aquela tonalidade escura fechava o
rosto dela de maneira que não a favorecia. Vinícius me
contara bem no início de nosso relacionamento que a
mãe preferia ouvir mentiras que a engrandecessem a
lidar com verdades que a repreendessem, e eu me atinha
à regra de nunca contrariar a mãe de meu marido.

10
— E quem é a menininha mais linda da vovó? —
ela brincou com a bebê, única neta até então. — É você!
Depois de se recompor, voltou a nós, adultos,
primeiro ao filho e depois a mim:
— Isabela, minha filha, quase que o pessoal decide
começar a ceia sem vocês. Eu insisti que vocês estavam a
caminho e eles nem queriam me ouvir. Mas Deus
respondeu minhas orações e não deixou eles fisgarem
nada. Como é que foi na casa dos seus pais? Eles estão
bem?
Sentei-me no sofá, em um canto onde havia espaço
e, segurando a neném, narrei que havia sido bom e que
meus pais haviam mandado lembranças. Meu relato da
noite com meus pais e minha irmã foi resumida para que
os outros membros da família de meu marido não
começassem a jogar indiretas para mim — afinal, era
quase meia-noite e a maioria não devia ter se alimentado
decentemente desde o almoço. Sugeri que
conversássemos durante a refeição antes que a comida
esfriasse. As mulheres e Hugo ficaram de pé para ajudar
minha sogra com as comidas, as quais ficaram dispostas
no balcão da cozinha. Houve aquele tilintar de panelas
sendo abertas, conchas e colheres, pessoas afobadas de
um lado para outro enquanto organizavam a mesa com
os pratos. As crianças foram chamadas e entraram em
cena com a correria típica de quem tem menos de dez
anos de idade e é repleto de vigor. Enquanto isso eu
colocava minha pequena no bebê conforto que já estava
na sala na época que Vinícius e eu nos conhecemos.
Marília, esposa de Daniel, finalmente veio me
cumprimentar e me oferecer auxílio. Era uma mulher
paciente, com uns olhos distantes, moça de pouca
conversa e ensimesmada até mesmo em um ambiente
familiar como aquele. Ela afirmou que estava com dor de
11
cabeça, e por isso havia ficado no quartinho de hóspedes
até a hora da refeição.
— Pedro! — Daniel exclamou subitamente — Não
mexe na árvore de Natal, se não ela cai em cima de você.
Marília e eu olhamos na direção do pequeno, que
estava na fase de testar a paciência dos pais com suas
traquinagens. Eu sempre tive minhas suspeitas de que
todos os Pedros eram assim, na verdade. A mãe da
criança o repreendeu com o olhar e se distanciou de
mim. O burburinho das conversas continuou até que
minha sogra notou que algo faltava à mesa:
— O arroz! Alguém fez o arroz?
Todos se entreolharam. A família faminta, já
salivando por causa das carnes, reclamou como se fosse
uma pessoa só. Ninguém realmente fazia questão em
comer arroz, afinal, já tínhamos o principal para uma
ceia bem-sucedida: farofa de bacon, salpicão, salada de
manga, chester, peru, e de brinde haviam feito purê de
batata.
— Mãe — Hugo começou. — Precisa mesmo de
arroz? Olha o tanto de coisa que já tem na mesa!
Minha sogra pôs a mão na testa, como que
derrotada.
— Meu filho, o arroz não é por causa do que temos,
mas por causa do que não temos.
— Como assim, mãe? O que está faltando em meio
a tanta fartura?
A senhora calmamente baixou a cabeça e a
levantou, fitando todos. Por um momento ela ficou
quieta. Vinícius perguntou se ela estava se sentindo
bem, ao que ela apenas acenou com a fronte.
— Sei que todos queremos comer, mas vou contar o
porquê de eu me importar tanto com o arroz.

12
Ela apontou para a sala de estar, sugerindo que nos
sentássemos ali. Hugo foi logo fechando novamente as
assadeiras com o papel alumínio, ciente de que quando a
mãe cismava em suas confabulações, todos deveriam
parar e obedecê-la pelo tempo que durasse o relato.
Voltamos ao aconchego e nos acomodamos nos dois
sofás e duas poltronas. As crianças já começavam a fazer
birra, mas Daniel fez um “ó, se vocês não pararem a
gente vai conversar lá em casa.” Éramos dez pessoas:
sete adultos e três crianças. O espaço plano da sala
pareceu surtir uma espécie de eco, pois ouvi a chuva
chegando de longe com seu tamborilar de gotinhas. Pac-
tac-pac-tec.
Minha sogra estava em uma das poltronas. Eu
estava de frente a ela, de um ângulo estratégico que me
permitia manter os olhos nela, na bebê que já pegava no
sono, na mesa disposta elegantemente e no pinheirinho
de Natal. Eu ainda não havia prestado atenção na
decoração, mas até que estava bonita com as bolinhas
coloridas.
— Hugo, você provavelmente não lembra dessa
história, mas um dos teus tios já contou para vocês três
quando eram pequenos, quando o seu pai ainda era vivo
– Minha sogra se deu conta de que ele estava distraído e
chamou-lhe a atenção — Presta atenção, meu filho, e
crianças também.
— Vó, mas eu não gosto de arroz com passas. Não
quero ouvir essa história. – Tal foi o comentário sincero
de um dos filhos de Daniel.
— Mesmo assim, meu bem. É uma boa história da
época em que o mundo não era mundo.
Ela se ajeitou no assento e começou:
“Meu marido veio de uma família muito pobre.
Desde jovenzinho ele já tinha problemas relacionados à
13
falta de alimentação com nutrientes. Pensa em como era
viver no interior da Bahia na época que nem luz elétrica
as pessoas tinham nesses lugares. Sabe Vidas Secas,
aquele livro sobre a família retirante em que a
cachorrinha morre? Aí era o jeito que teu pai vivia,
Hugo. Comiam só farinha com toicinho e feijão tropeiro
que o pai dele comprava de um amigo, e o resto era luxo.
Tiveram uns irmãos dele que morreram por desnutrição
ainda crianças. Tá, aí vocês devem estar perguntando
que diacho que o arroz com passas tem a ver com a
história.
Bem, quando meu marido tinha uns doze anos —
aliás, ele não sabia a própria idade porque só foi
registrado adulto — ele foi trabalhar em Feira de
Santana. Ficou deslumbrado com aquele tanto de gente,
luz, carros, feira, comércio farturento e algazarra. Mas
só porque morava na cidade não queria dizer que ele
tinha dinheiro. Morava de favor num cortiço arranjado
por uma meretriz que disse que era amiga da mãe dele,
apesar de que ele suspeitava que fosse tia dele. Arranjou
uns trabalhos, e um dia estava em serviço na reforma de
uma igreja. Era dessas igrejas evangélicas simples, mas
bem ajeitadas. Nesse dia começou uma chuva e ele e os
outros colegas tiveram que entrar para se abrigarem. O
coral estava chegando para o ensaio, às pressas, todo
mundo correndo da chuva. Estavam ensaiando umas
músicas bonitas e meu marido, ainda novinho, ficou
encantado com a formação e a distribuição dos cantores.
Ele nem entendia nada de música, mas contava que
naquele dia ele se achou demais por apontar para os
outros rapazes que ‘ali no fundo ficam as vozes graves, e
no meio ficavam as mulheres de voz fina’.
A primeira música parecia estar em outra língua,
mas meu falecido marido achou bonito mesmo assim.
14
Quando o coro acabou a canção, ele disse que bateu
palmas com lágrimas nos olhos e foi à frente da nave da
igreja para perguntar que música era aquela. O regente
do coral se comoveu com a simplicidade do garoto e
respondeu que era Gloria in Excelsis Deo, ou Glória a
Deus nas Alturas. A letra estava em latim. Ele não sabia
o que era latim, mas perguntou se podia aprender a
cantar aquilo. O regente perguntou se ele sabia ler. Ele
não sabia. O regente falou que iria ensinar meu marido a
ler até o dia da cantata.”
— E ele aprendeu a ler, vovó? — Perguntou
apressado o filho do meio de Daniel
— Aprendeu. Seu avô era muito dedicado e se
empenhou muito em aprender a ler toda a letra da
música e a cantar com a sonoridade e entonação certas.
“Passado um mês, que era o tempo que faltava
inicialmente até o Natal, meu marido foi à igreja
apresentar a única canção que havia aprendido junto
com o regente. Dizendo ele que foi bonito, e a igreja
estava lotada. Naquele tempo ele já havia descoberto o
que era o Natal, e o moço da igreja, um bom evangelista,
contou a ele sobre quem era Jesus e qual a sua missão ao
vir aqui na terra como um bebê. Era seu primeiro Natal,
ele estava animado. Depois da primeira música ele
sentou no banco da frente e prestou atenção a cada
música que seguiu. De repente, ele conta, estava com
lágrimas nos olhos. Como a apresentação era em um
sábado, porque não podia tomar o horário do culto, o
coral se reuniu depois para uma ceia de Natal na casa de
um dos membros. O regente convidou meu marido para
ir junto e ele, que bem já havia aprendido que crente
gosta de comer bem, aceitou o convite.
Lá foram, e tinha uma mesa cheia de comida. Era
carne, batata, polenta, toicinho e coisa gostosa que não
15
pode faltar. Mas tinha um prato que chamou a atenção
dele. Era uma espécie de grão bem branquinho, mas
tinham uns grãos maiores, de um roxo quase preto, e
com umas veias que pareciam algo murcho. Ele ficou
curioso para descobrir o que era aquilo, mas não queria
dar uma de desentendido das comidas, afinal, já estava
morando na cidade fazia uns dois meses. Dizendo ele
que depois da oração encheu o prato com aqueles grãos,
ao passo que todos olharam para ele admirando seu
gosto por aquela comida. Ele devorou tudo com afinco.
Disse que um dos rapazes do coral, que também era bem
novinho, se surpreendeu com a coragem e enfiou uma
colherada na panela do arroz também. Conta que o pai
do rapaz olhou para ele e gritou bem alto: ‘glória a Deus!
Meu filho está comendo arroz com passas! É um
milagre!’.”
Todos interrompemos qualquer continuação da
narrativa para rirmos por um tempo prolongado.
“O melhor de tudo foi que ele não sabia o que era
arroz e o que eram passas. Gostou tanto do prato que a
partir daquele dia, em toda ocasião que tinha de comer
algo que não as marmitas de farofa e ovo, perguntava se
tinha arroz com passas para comer. O pior é que as
pessoas, decerto por pena dele, colocavam as passas para
acompanhar o arroz. Um ano depois, quase na mesma
época, ele foi à casa de uma senhora da igreja depois do
culto, para almoçar, e viu uma panelona de arroz em
cima do fogão. Disse que não pensou duas vezes e
começou a comer da panela mesmo, sem passar a comida
para o prato. Contou que na época não via aquilo como
algo estranho e inoportuno, mas era só mais um menino
faminto e ignorante do sertão que havia parado na
cidade. Disse que a mulher, vendo aquilo, se espantou e

16
saiu correndo de alegria gritando ‘fala, Senhor!
Obrigada! Esse é o sinal que eu precisava!’.
Depois de um tempo meu marido se converteu e
aprendeu a ler direito. Ganhou uma Bíblia de presente e,
ao ler sobre a história da viúva de Sarepta, se comoveu
com o relato e se identificou com ela. Naquele dia ele
reconheceu que Deus estava no arroz com passas da
mesma forma que estava em todas as outras situações da
vida. Em sua humildade, ele, ainda jovem, juntou um
dinheiro reservado à comida e comprou um saco de
arroz para entregar à sua família no interior. E ele foi à
pé até à casa dos pais e dos cinco irmãos vivos para
compartilhar as boas novas no arroz. As passas eram
caras, ele descobriu, mas os membros da igreja haviam
ficado tão comovidos que foram atrás do rapaz e
entregaram para ele dinheiro suficiente para comprar
meio quilo de passas. Seu tio de quem eu falei, Hugo, foi
quem contou que aquela foi a melhor janta da vida dele,
porque não só tinham arroz com passas, como tinham a
presença de Deus ali. E o que isso nos ensina?”
Crianças e adultos ficaram pensativos. A sala estava
em profundo silêncio, apesar da chuva lá fora. Ninguém
sabia.
“Nos ensina que devemos ser gratos por tudo,
inclusive pelo que não temos ou deixamos de ter, porque
mesmo nisso Deus é glorificado. Sabe, meus filhos,
minhas noras, meus netos, eu vejo vocês tão
preocupados com o que devem fazer, com os planos para
o ano, com a mensalidade das escolas das crianças... e
chega o Natal vocês querem fazer uma grande festa com
muita comida, e isso é bom, mas quais motivos vocês
têm no coração? Vocês sonham com grandeza, se
frustram quando os planos pessoais de vocês são
frustrados... mas pensem bem na humildade de comer
17
um arroz branco. Meu marido entendia o que era ser
humilde e compreendeu tão bem o sentido do Natal que
nunca deixou de fazer o arroz dele, porque isso o
lembrava de que Cristo deixou seu trono nos céus e se
humilhou, vindo à terra em forma humana e morrendo
uma morte cruel por amor a pessoas como nós, que não
somos nada legais.”
O silêncio continuou. Refleti sobre a repreensão da
minha sogra e avaliei meu coração. Qual fora a última
vez que eu havia me humilhado sem reclamar? O motivo
de eu tanto querer me separar de meu marido era tão
mesquinho e egoísta! Enquanto eu queria viver nas
regalias do banquete de títulos e cargos importantes,
tudo o que eu precisava estava ali. A simplicidade
deveria ser meu tesouro.
O impressionante relato durara menos de dez
minutos. Por providência divina as comidas
permaneciam quentes, então todos fomos à cozinha
preparar o tal arroz com passas do vô. Enquanto uns
colocavam a água para esquentar, outros descascavam e
amassavam o alho, outros procuravam as tais uvinhas
desidratadas para enfeitar a panela. Um verdadeiro
trabalho em equipe fez com que, intuitivamente,
concordássemos que o arroz seria o prato principal
naquele ano. Enquanto os famosos grãozinhos
cozinhavam, voltamos à sala de jantar para começar a
comer.
Juntei-me ao meu marido ao redor da mesa e ele me
ofereceu a mão direita. Segurei-a e a encarei. Não era tão
maior que a minha. Era quente, enquanto a minha era
permanentemente fria. Enquanto minha mão era áspera,
a dele era macia, como que envolta em cetim. Mesmo em
algo tão simples aquele homem me completava. Ele era
meu, e eu era dele, simples assim. Era por meio desses
18
contrastes ali observados que eu me lembrava do quanto
valeu a pena ter abdicado e adiado alguns de meus
planos para tornar-me um com o homem a quem eu
havia escolhido e jurado amar pelo resto dos meus dias.
As crianças (e dois adultos) já iam abocanhar o peru
quando minha sogra pronunciou que antes de comer
iríamos fazer uma oração. “Alguém pode orar pela nossa
ceia?”
Daniel era o candidato preferido de todos. Quiçá no
fundo acreditássemos que o seminarista da família era o
mais santo dentre nós. Mas ele não se voluntariou. Em
vez disso, surpreendi-me com minha voz:
“Pai amado, nós te agradecemos por mais um Natal
em família e por essa oportunidade de nos reunirmos em
torno de uma mesa tão bonita e farta. Te agradecemos
pelo alimento e pelas dádivas que o Senhor nos tem
dado diariamente, mas pedimos perdão por todas as
vezes em que não compreendemos isso. Grandioso és
por ter enviado Teu Filho a este mundo para se fazer
servo, sendo humilhado até o momento de sua morte,
para que em sua ressurreição tivéssemos remissão de
pecados e vida juntamente a ele. Quão pouca é a nossa
abnegação se comparado ao Deus que se fez homem para
viver como nós e sofrer em nosso lugar. Nos torne
brancos como o arroz, e que a tua presença continue
conosco por todo o sempre.”
E todos responderam em coro: “amém”.

19
NEVE
Eric Jankowski

1
O badalar dos sinos da catedral já marcava as 15h do dia 24
de dezembro (véspera da missa de Nosso Senhor Jesus Cristo,
amém!) quando Luciano saiu de lá a caminho da celebração que
ocorreria no Lago Sul. Não gostava de pompa, tinha problemas
com lidar com o clima de lugares abastados, e geralmente
escolhia entre seus compromissos aqueles que fossem mais
minimalistas. No entanto, dessa vez queria agradar a esposa
Hannah, que combinou de passar o Natal com outros membros
seculares da comunidade judaica local. Por alguma razão, algo
lhe dizia que essa celebração cheirava um pouco blasfema para
os judeus mais ortodoxos, mas não queria questionar, sabia que
haveria outros cristãos inclusive entre os judeus que talvez
entenderiam o verdadeiro significado do Natal naquele lugar.
Talvez nunca isso tenha parecido tão importante para
Luciano, que completava seu primeiro ano trabalhando como
Cavaleiro da Coroa, se entregando plenamente à defesa do
Brasil contra as trevas sobrenaturais desse mundo e jurando sua
alma para a Santa Igreja de Cristo. De certa forma, para ele,
sentia que o Natal era como o aniversário do patrão, do seu
chefe. Ironicamente, o calor que fazia nessa época no hemisfério
Sul mais o relembrava das chamas incessantes do Inferno
descritas em Apocalipse (perdão, Senhor, mas que calor desgraçado)
do que o refrigério da alma dos salvos tanto narrada nos
Salmos.

20
Ao menos, o caminho até o Lago seria relativamente
tranquilo apesar do Natal, acreditava ele. No entanto, a saída do
Plano para o Lago se encontrava inesperadamente
congestionada (Que trânsito infernal é esse?). Mas essa era a parte
fácil de compreender. O mais estranho seria percebido logo
depois: neve.
Sim, neve, pequenos flocos cristalinos caindo de nuvens
negras do céu acima do Lago Paranoá, formando um tapete
branco nos veículos à frente do carro de Luciano. Ela era
intercalada por pequenas lufadas de vento frio que
contrastavam com a sensação térmica anterior que o cavaleiro
da coroa sentira, soltando agora um pequeno bafo embaçado de
vapor de água condensado no ar. (Seria um milagre?)
Subitamente, a neve parecia cair em quantidades ainda
maiores, formando pequenos morros alvos por toda a rodovia.
Luciano decidiu sair do carro e ir observar a paisagem. (Nunca
pensei que diria isso, mas obrigado mãe pelo cachecol.) Os flocos
caíam nas suas faces e o faziam tremer, e ao observar o lago, ao
som de várias buzinas e observado por olhos tão surpresos
quanto os seus, ele reparou que aquilo era mais estranho ainda
do que pensava: a superfície do Lago Paranoá agora se
encontrava rígida, coberta por uma crosta de gelo, similar ao
lago do Central Park de Nova York ou de algum país nórdico.
Enquanto observava, Luciano ouviu um uivo, uma espécie
de gemido de choro trazido por uma lufada de neve mais longa,
que pareceu fazer a neve se intensificar e se tornar uma
verdadeira nevasca em questão de segundos. (Eu odeio calor, mas
isso é ridículo!) Olhando ao redor, percebeu que havia se formado
no lago, uma estrutura similar a um chalé, aparentemente todo
formado de cristais de gelo, quase como um iglu. (O som vem de
lá!) e seguiu para ela após pular a cerca de proteção.

21
2
Ao chegar na porta da casa de gelo, quase escorregando no
chão quebradiço, Luciano percebeu que as rajadas de vento
estavam tão grossas que ele não conseguia nem mais ver o seu
carro novamente. Sentia um frio intenso e agora se sentia mais
sortudo por viver usando o manto negro da Ordem dos
Cavaleiros de São Bosco. Bateu desesperadamente na porta da
estrutura, que parecia iluminada por algo em seu interior. Após
alguns segundos, a mesma se abriu com um rangido e ele pode
escutar o mesmo gemido de tristeza vindo lá de dentro como
um sussurro.
— Oi de casa! — gritou Luciano adentrando o recinto,
antes de ser surpreendido pela batida brusca da porta, que se
fechou com outra lufada.
Luciano seguiu para dentro do interior da casa de gelo com
cautela. Sacou a lanterna que carregava para emergências
(muito necessária quando se lida com as trevas, diria ele). Olhou
ao redor, e viu algumas tralhas, caixas de papelão, trapos,
roupas espalhadas, e no meio disso tudo, um disco de vinil
riscado com uma vitrola do lado. Parecia ser daquelas que
funcionava a pilha.
Curioso, Luciano colocou o disco para tocar e pode ouvir
um som furado da música We Wish You A Merry Christmas na
voz de Marilyn Monroe. De repente, o gemido que ele ouvia
antes foi substituído por um cantarolar acompanhando o ritmo
da música, ao qual ele seguiu até chegar numa salinha com um
candeeiro aceso e uma poltrona, com uma figura feminina de
meia idade, de traços orientais sentada nela coberta de roupas
de frio gastas e com uma xícara de chá na mão.
— Boa tarde, o que você deseja? – perguntou a mulher com
um sotaque levemente perceptível.

22
— Desculpa ir entrando assim, mas é que não encontramos
muitos iglus por aqui, sabe? – respondeu Luciano dando uma
leve risada.
— De fato, é um país bem quente, não é? – retrucou a
senhora dando um gole no chá.
— Pois é, ainda mais nessa época. Eu acho muito estranho
inclusive essa nevasca lá fora, a senhora não acha?
— Sente-se, por favor e tome um chá – disse ela apontando
pra uma cadeira que ficava no pequeno cômodo. Pode se
apresentar, por favor?
— Mil perdões, meu nome é Luciano e devo dizer, é um
trabalho bem impressionante.
— Não é um trabalho, é uma tentativa sem fruto de tentar
se lembrar.
— Não tá surpresa por eu pressupor que a senhora tá
envolvida com esse fenômeno natural?
— Eu ficaria surpresa se estivesse tentando esconder. Não
tenho nada a perder, já perdi tudo que amava. Agora só tenho
ela – disse a moça apontando com a xícara pra janela embaçada
pela nevasca.
— De onde a senhora vem? – disse Luciano, finalmente se
sentando na cadeira.
— Japão. Da parte norte, onde ficam as montanhas
nevadas. Me mudei pra cá a pouco tempo. Parecia ser um país
mais caloroso e receptivo quando ouvi falar. Meu pai sempre
gostou dessa música dos yankees.
— Seu pai era humano?
— Somos todos humanos, mas sim, herdei esse dom de
minha mãe, prometi não usá-lo mais aqui, queria ter uma vida
comum. E você, é humano? Vem de onde?
— Sim, acho que sou sim – Luciano riu sem graça. Sou
daqui mesmo, de Brasília.
— Deve estar louco para passar o Natal com sua família,
não é?

23
— Eu só tenho minha esposa aqui perto, a gente vai passar
com uns colegas dela...
— Não parece muito animado com a ideia.
— Talvez eu não esteja mesmo.
— Entendo.
— Você, você disse que tava fazendo essa neve toda pra
lembrar.
— Quando eu morava nas montanhas nevadas, meu pai
vivia dizendo que o Natal era a época em que os ocidentais
lembravam de ser bons, de quem amavam, de seus valores etc.
Ele se converteu ao Cristianismo quando eu ainda era pequena.
Na época, eu lembro que todos os anos, meus pais decoravam
nosso chalé, faziam uma grande refeição chamando toda a
família e vizinhos, com a lareira acesa, nós rezávamos e sempre
tinha a neve caindo lá de fora. Era tão bonita – ela hesitou por
um momento e tomou um gole do chá.
— E depois?
— Não tinha mais minha casa, eles a tomaram para
construir uma pousada. Não tinha mais decoração, tivemos que
deixar lá porque não tínhamos condição de carregar. Não tinha
mais uma grande refeição, pois já não tínhamos condições de
sustentar isso. A família e os vizinhos também não estavam
mais presentes depois que mudamos pra cá com esperança de
uma vida melhor. Depois de vir pra cá, não tínhamos mais
lareira aqui, é um país quente. Minha fé já não é mais a mesma,
desde que meus pais morreram. Tentei reconstruir tudo, mas
acabei falindo. Mas só sobrou uma coisa: a neve — lágrimas
começaram a cair das faces da mulher, se congelando em
pequenos cristais reluzentes.
— Bem, não vou dizer que desgosto completamente da
neve que você trouxe, até porque detesto o calor de verão daqui.
Mas você não pode colocar todas aquelas pessoas em risco por
causa disso.
— Você não tem medo? Digo, do que eu posso fazer?

24
— Por que eu deveria ter? Se eu tiver medo, não vou poder
ajudar pessoas como você a superar os seus. Eu sou um agente
da Igreja, preciso de coragem pra esse trabalho — Luciano
serviu um pouco de chá e tomou. — Olha, eu nunca gostei de
festas muito grandes. Sou bem fechado, admito. Eu tava a
caminho de uma antes de você fazer nevar. Sinceramente,
adoraria passar o Natal assim, tomando chá tranquilo, só
conversando. Mas acho que o que importa mais é saber que
temos pessoas que se importam conosco nesse meio. Se eu
puder te ajudar, a casa, a decoração, o banquete e as visitas eu já
tenho. Não tenho uma lareira, afinal é um país quente. Mas esse
crucifixo aí que você carrega — apontou ele para a mão dela.
Foi seu pai que lhe deu?
— Sim, foi ele sim, por quê?
— Bem, aí você tem parte do que faltava, porque com isso
pode se lembrar tanto da sua fé no aniversariante, o próprio
Cristo, e do seu pai que te deu isso pra você lembrar.
— Espera... você tá me convidando?
— Sim, mas com uma condição: que você desfaça toda essa
nevasca.
— Acha que isso basta?
— Eu não sei, só sei que quando queremos lembrar,
fazemos de tudo por isso, principalmente criar novas memórias
melhores que as antigas. A propósito, qual seu nome?
— Nataru — respondeu a mulher se levantando surpresa.
— É até que faz sentido – Luciano deu um leve sorriso.
Bem, fica o convite, eu também não vou passar o Natal
exatamente só com pessoas que eu quero.
Nataru se levantou e seguiu Luciano até a porta, quando,
de repente, a neve começou a cessar e todas as estruturas de
gelo começaram a derreter e ambos seguiram ao carro. O Sol
resplandeceu novamente sobre eles, como o calor de uma
grande lareira aquecendo seus corpos (era o que faltava).

25
DEUS CONOSCO?
Noemi Vilela

E ngraçado como quando somos crianças vemos o mundo


de forma diferente. Lembro que achava meu pai o
homem mais sábio do mundo e mamãe a mulher mais bela e
forte que existia. Papai sabia a resposta para todas as minhas
perguntas, fossem elas sobre animais, plantas, amizades ou
sobre a lei. Mas isso provavelmente porque ele não viveu o
bastante pra responder as perguntas que tenho agora.
Ele costumava me abraçar e me ensinava todos os dias.
Me abençoava com toda a variedade de bênçãos que decorava,
uma de suas bênçãos preferidas era: “O Senhor te responda no
dia da tribulação; o nome do Deus de Jacó te eleve em
segurança. Do seu santuário te envie socorro e desde Sião te
sustenha. Lembre-se de todas as tuas ofertas de manjares e
aceite os teus holocaustos. Conceda-te segundo o teu coração
e realize todos os teus desígnios.”
Como pode papai, naquela época já tão vivido, e ainda
acreditava nisso? Eu também acreditava em cada palavra que
ele dizia, tinha certeza que o Deus de Abraão, Isaque e Jacó
me guardaria e ouviria minhas orações. Hoje sei que isso não é
verdade, se fosse meus pais ainda estariam vivos aqui comigo.
Ao invés disso estou aqui sozinha, a pousada está lotada
hoje e eu estou aqui escondida dentro da despensa pensando
como seria minha vida se eles não tivessem morrido ou se
tivesse nascido em outra família, se fosse alguém importante.

26
Titia deve estar louca atrás de mim, a qualquer momento ela
deve me achar.
Você deve estar se perguntando se não me sinto culpada
por estar aqui me escondendo enquanto meus tios estão
tentando arrumar tudo para receber os hóspedes. A verdade é
que não! E tenho uma boa justificativa para isso. Essa semana
ninguém nessa casa trabalhou mais que eu. Não bastasse o
governador ter inventado esse recenseamento e por isso
termos que nos preparar para receber um grande número de
hóspedes, o empregado que cuida do estábulo ficou
terrivelmente doente. É claro que eu tive de ficar responsável
por dar comida para os animais e limpar o lugar, como se
alguém fosse notar.
Só queria ter nascido em uma família abastada, onde
minha única preocupação fosse ir à banquetes e comprar joias
e vestidos. Não me importaria nem se fosse uma família
romana. Titio falou que eles não têm a Lei do Senhor e que ela
vale mais do que ouro. Então porque ele não compra uma casa
nova com ela? De que adianta termos um monte de coisas
escritas se os romanos é que têm o poder e o dinheiro?

***

Titia me encontrou e tive que ir correndo acomodar


novos hóspedes nos últimos quartos, estamos lotados! Tio
Benjamim deve estar radiante de alegria e eu só consigo
pensar que será mais comida pra fazer e mais hóspedes para
servir! Não bastasse toda essa gente tia Rute deixou que um
casal, aparentemente bem pobre, se hospedasse no estábulo,
vê se pode! E quem teve que levá-los até lá e arrumar suas

27
“acomodações”? Eu, é claro! A mulher está grávida e parece
que pode dar à luz a qualquer momento.
Se essa criança nascer aqui terminará de arruinar minha
semana. Não me entenda mal, eu gosto de crianças, inclusive
já ajudei a cuidar de muitas na vizinhança, mas acontece que o
estábulo fica bem atrás do meu quarto! Uma criança chorando
a noite toda não me ajudará em nada tendo que acordar bem
mais cedo todas as manhãs para ajudar titia a preparar as
refeições de todos esses hóspedes!
Se o Deus de papai fosse real Ele não faria alguma coisa
por mim? Não é ele que defende o direito do órfão e do
necessitado. Bom, certamente eu necessito de muitas coisas
agora. Se Ele é real certamente está empenhado em garantir
que nada vá bem pra mim ou simplesmente não se importa
com a minha existência.

***

Como o previsto, acordei com o choro da criança, que ao


que tudo indica acabava de nascer. Depois de alguns minutos
o choro parou, mas meu sono já tinha ido completamente
embora e com certeza voltaria com tudo na hora de levantar
para tirar o leite pela manhã. Após me revirar muitas vezes na
cama a curiosidade venceu e me dirigi vagamente até o
estábulo. A noite estava estrelada e soprou em meu rosto um
ar gelado. A ideia era só espiar o mais novo habitante do
mundo.
Por uma brecha, vi que a mulher estava dormindo,
provavelmente exausta após o trabalho de parto. A criança,
que estava enrolada em panos que não posso chamar de
limpos, agora começava a chorar. O pai rapidamente o tomou
28
nos braços na tentativa de não acordar a esposa. Seus esforços
pareciam vãos e o choro ia aumentando de volume, acho que
era seu primeiro filho.
Sem pensar muito, num impulso, entrei no estábulo e
perguntei se ele precisava de alguma ajuda erguendo os
braços em direção a criança. Ele resistiu apenas por alguns
segundos, mas logo me entregou.
Eu tomei aquele pacotinho e o embalei em meus braços.
Senti seu corpinho tenro acomodar-se ao meu colo, tão frágil e
pequeno. Olhei seus olhos franzidos e boca aberta em choro
lentamente relaxarem e sua expressão tornar-se em
serenidade à medida que eu o ninava. Agora só sentia a
respiração rápida e a completa dependência daquele minúsculo
ser. Pensei comigo mesma como se ele pudesse me ouvir:
pobre criança, porque alguém ia querer te trazer a esse mundo
cheio de tragédias e tristeza para ser só mais um sofredor?
Em alguns minutos a criança dormiu e eu o coloquei de
volta em seu “berço” improvisado, que era na verdade o
comedouro dos animais. O pai com olhos sonolentos me
agradeceu e logo se deitou para dormir ao lado de sua mulher.
Antes de sair parei por alguns segundos e os fitei
atentamente. Aquela cena tão ordinária e ao mesmo tempo tão
terna dos pais dormindo junto a seu filho me fez lembrar da
minha própria família.
Me lembrei dos tempos felizes que passamos juntos e de
como parecia que Deus era tão real e presente em nossas
vidas. Depois fui tomada pela lembrança de suas mortes e da
falta que me faziam. Uma mistura de lembranças alegres e
tristes se emaranharam dentro de mim produzindo algo que
eu nem lembrava mais que existia. Uma pequena, pálida e

29
quase insignificante faísca de esperança que logo instalou um
nó na minha garganta.
Naqueles poucos segundos entre a manjedoura e a porta
da estrebaria essa faísca me levou a fazer algo que há muito eu
já não fazia. Uma oração. Menos como palavras articuladas e
mais como um pensamento furtivo, orei: “Yahweh, se faça
presente de novo em minha vida.” O frio da minha própria
lágrima tocando meu rosto me fez despertar e logo me
recompus engolindo a seco. “Que bobagem pensar nisso
depois de todo esse tempo!”
Apressei meu passo e antes que me afastasse
completamente do estábulo ouvi um barulho de muitos passos
se aproximando. O susto me fez parar bruscamente e me
escondi atrás do feno para observar. Alguns homens se
aproximavam com pressa. Assaltantes? Pensei num primeiro
momento. Não me surpreenderia com tanta gente nova
chegando em Belém. Mas eles estavam com roupas de campo
e cajados, pareciam pastores.
Estavam tão empolgados que no começo não consegui
entender nada pois todos falavam ao mesmo tempo. Os pais e
o bebê acordaram assustados. Depois de um momento de
exclamações indistinguíveis e simultâneas finalmente um
deles tomou a palavra para explicar o que estava acontecendo.
De fato eram pastores e o homem contou que enquanto
estavam com suas ovelhas no campo viram algo no céu.
Quando as palavras que eram emitidas por ele tocaram
meus ouvidos e finalmente se tornaram compreensíveis,
aquela faísca que havia nascido dentro de mim reacendeu sem
que eu tivesse tempo suficiente para apagá-la novamente. Ela
rapidamente se transformou em fogo, e regada pelo
combustível das promessas que papai me ensinara ainda na
30
infância logo se tornou em uma explosão, sim, de pura
esperança ao ouvi-lo dizer aquelas palavras.
O homem prosseguiu: “Não sei se vocês vão acreditar,
mas é verdade que todos nós o vimos e ele nos disse
claramente: ‘Não temais; eis aqui vos trago boa-nova de
grande alegria, que o será para todo o povo: é que hoje vos
nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor.
E isto vos servirá de sinal: encontrareis uma criança envolta
em faixas e deitada em manjedoura.’ E, subitamente, apareceu
com o anjo uma multidão da milícia celestial, louvando a Deus
e dizendo: ‘Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra
entre os homens, a quem ele quer bem’.”
Meu coração se recusava a acreditar no que os meus
ouvidos estavam ouvindo, mas ao mesmo tempo não podia
simplesmente deixar de considerar a questão. Será mesmo
esse pobre bebê, cercado de animais e palha, o Cristo? Yahweh
permitiria que seu enviado se humilhasse dessa forma? Deus
habitaria tão perto de mim? Mas se existe sequer a
possibilidade de que esse seja de fato o Emanuel então faz
sentido ter esperança.

31
O CANÁRIO
DA DISCÓRDIA
Arthur Guanaes
Uma peça de câmara, episódio na garrafa, para áudio ou
para ser apresentado num palco. Elementos cênicos: guarda-
chuva, árvore de natal, quatro caixas de presente, dois sofás
pequenos, uma mesa de centro, um prato com rabanada e
guardanapos de papel, um tapete claro, taças e vinho tinto.

CLARA
EDGAR
MÔNICA
PEDRO

ATO ÚNICO, INTERIOR, SALA DE ESTAR

Barulho de chuva e trovoadas lá fora, quatro pessoas entram


apressadas, se espremendo de baixo de um guarda-chuva só, rindo.

CLARA: Edgar, seu espaçoso.


EDGAR: Ei, eu tô na chuva aí, meu!
MÔNICA: Amor, fecha logo a porta vai.
PEDRO: Calma, calma, já vai!
32
A porta se fecha. Todos ofegam.
PEDRO: Enfim bem vindos! (Gargalham) Bem vindos ao
primeiro Natal dos Cavalcanti em terras mineiras. Podem
ficar à vontade, vamos sentando, vamos sentando...
MÔNICA: Gente, gente os sapatos, os sapatos molhados, isso,
obrigado. Cuidado com o tapete!
EDGAR: Finalmente debaixo de um teto! Vou te falar que o
presbitério tem que pagar uma graninha a mais. Pastor a pé
na chuva, Deus me livre!
PEDRO: Eles fazem o melhor que podem...
EDGAR: Tá bom, tá bom, Pedro... Vou me sentando hein.
Posso mesmo, ou já estrearam o sofá! Casal novo, sabe como é
que é não é não, não é não?
CLARA: Edgar!
EDGAR: Ih, que estresse, só brincadeira, pô. Depois que casa
pode!
PEDRO: Gente! Falando nisso, a gente tem um anunciado...
MÔNICA: Pedro, espera um pouco. Deixa eles sentarem, se
acomodarem...
PEDRO: Oi? Tá bem, tá bem.
Todos se sentam. Edgar aponta para os presentem debaixo da
árvore.
EDGAR: Ah, eles chegaram!
MÔNICA: Sim! Inclusive, muito obrigado pela ideia Edgar,
onde você ouviu ela?
EDGAR: Ah, hoje tudo tá na internet, sabe como é. E
imaginei que o primeiro Natal de vocês na cidade ia ser meio
solitário. E vocês deviam estar meio quebrados. Juntei isso
com um anúncio que eu vi de um amigo da onça secreto, e

33
pareceu uma boa ideia. Funciona assim, você compra a
quantidade de presentes necessária para o amigo da onça, só
que você não sabe que que vem, por que eles enviam por
correio tudo embalado, desse jeito aí. Então nós vamos pegar
os presentes sem saber qual é qual! E ainda sai barato.
CLARA, MÔNICA, PEDRO: (Em vozerio.) É, barato mesmo,
valeu a pena.
MÔNICA: Eu agradeço por vocês nos fazerem companhia,
gente.
CLARA: Não há de quê Mônica. É o tal do espírito do Natal.
EDGAR, MÔNICA, PEDRO: Ugh!
CLARA: Qual é!
Todos riem.
MÔNICA: Gente, um vinhozinho cairia bem agora, hein?
Vinho? (Aqui as outras personagens respondem afirmativamente
uma a uma.) Vinho? Vinho? Fechado, já volto!
PEDRO: Calma amor, você nem pode, fica aí-
MÔNICA: É já-zinho!
MÔNICA se levanta e vai para a cozinha.
PEDRO: E lá vai ela... Sabe que eu nunca gostei disso de
espírito de Natal? As pessoas ficam temporariamente gratas e
generosas. Mas elas nunca são generosas de verdade, e só
dura um tempo. E é uma gratidão que... Estão agradecendo a
quem?
EDGAR: Ué, Pedro. A Jesus. É o aniversário dele!
PEDRO: Ah Edgar, tá todo mundo cagando pra isso... A
minha família mesmo. Todo mundo finge que esquece as
brigas na noite de Natal. Mas ninguém esquece de verdade.
Ninguém se resolve. O Natal virou desculpa pra reunião

34
familiar infaltável. E por causa disso a gente fica preso a
passar todo dia 24 com gente que nem gosta da gente nem se
importa com a gente.
CLARA: Mas você gosta da gente e a gente gosta de você.
PEDRO: Isso é verdade, Deus é bom. Amigos mais chegados
que irmãos.
EDGAR: Isso aí! Amigos mais chegados que irmãos! Espírito
do natal!
Todos riem.
EDGAR: Aqui, vamos espantar essa negatividade, vamos falar
de coisa boa. Diz aí, Pedrão! Qual presente de Natal que você
mais gostou?
CLARA: Não vale a nossa presença aqui hoje, hein...
PEDRO: É Clarinha, esse realmente está no top 3. Mas eu
diria que... Luvas de goleiro. Meu pai me deu umas luvas de
goleiro quando eu tinha sete (?). Eu acho que foi isso. E o seu,
Edgar?
EDGAR: Um Phantom System. Com certeza.
CLARA, PEDRO: Uh! Phantom System, esse é bom, aí sim.
EDGAR: (Rindo) Pois é, só coisa boa, saudade. Clara?
CLARA: Quando eu tinha quinze, meu primo me deu um
abafador industrial de ruído, porque eu reclamava de barulho
e ele queria me zoar. No final foi muito útil.
PEDRO: (Rindo) Que doideira Clara!
MÔNICA chega com o vinho e as taças.
MÔNICA: Oi, licença gente, tá aqui.
EDGAR: Isso aí Clara, aprendiz de bibliotecária. Mônica?
MÔNICA: Oi? Era presente né, o tema... Sabe que eu não
gosto muito disso de ter que dar presente?
35
CLARA: Por quê, Mônica?
MÔNICA: Ah, a menos que você conheça a pessoa bem, ou
que ela tenha te pedido algo específico, você está gastando
dinheiro dando um tiro no escuro.
PEDRO: Ainda mais se o presente for uma obrigação,
querida.
MÔNICA: Exato! Quero dizer, na minha família o amigo
oculto te obrigava a dar presente para alguém que você às
vezes nem conhecia bem...
PEDRO: Nem gostava...
MÔNICA: Isso. O problema é que as pessoas acabam dando o
que elas gostariam de dar, e não o que a outra gostaria de
receber, entende?
CLARA: Faz sentido, Mônica...
MÔNICA: Por isso que lá em casa eles resolveram com um
simples amigo da onça! Assim todo mundo traz uma coisa
qualquer, e pronto. Gastamos pouco, pensamos pouco, e
ninguém sai frustrado, por que todo mundo sai frustrado. E pra
completar, todo mundo se sente muito natalino, porque
gastou dinheiro com alguma coisa.
CLARA: Fizemos isso lá em casa também. Mas adicionamos
outra mecânica. Um bingo. Isso faz o amigo da onça demorar
mais, e temos de gastar menos tempo conversando.
PEDRO: (Rindo) Nossa Clara, sua família é formada de várias
Claras?
CLARA: Qual é? Eu sou introvertida, mas sou sociável. Eu
até gosto de conversar com gente interessante, acontece que
minha família não é. Sem contar que são uns intrometidos,
você sabe bem como eles são. Depois da doença da minha irmã

36
e do meu pai ter deixado a gente, toda conversa era um campo
minado para ouvir coisas ruins.
PEDRO: Bom. No meu caso a minha família só decidiu não
dar mais presentes mesmo.
EDGAR: Caramba, então isso que amigo da onça significava
pra vocês. Qual é pessoal, não queria trazer desconforto e...
MÔNICA E PEDRO: Não! Imagina, que isso, jamais.
PEDRO: No nosso caso, o amigo da onça é bom porque vai
ser barato e divertido. Podemos dizer que... é o espírito do
natal!
MÔNICA: Ih rapaz! Falando em espírito do Natal, tenho que
ver o frango!
EDGAR: Vocês saíram e deixaram o frango no forno? Vocês
são doidos! Eu te ajudo!
PEDRO: Você acabou de ir na cozinha!
MÔNICA: (Saindo) Ô cabeça, acabei de ver a cozinha e
esqueci de conferir esse frango, menino, é uma coisa que vou
te contar, a cabeça anda num esquecimento...
MÔNICA e EDGAR saem apressados.
Na sala silêncio constrangedor.
CLARA: Lustre legal...
PEDRO: Oi?
CLARA: Não nada.
PEDRO: Ah, o lustre... Legal né...
Silêncio. Barulhos ritmados com a boca, olhares que não se cruzam,
línguas estalando.
PEDRO e CLARA dizem juntos:
PEDRO: Você tá bem?
CLARA: Almofada bonita.
37
PEDRO E CLARA: Oi? Ah nada...
Mais silêncio. Mais tiques de estranheza.
CLARA: Que que aqueles dois estão aprontan-
PEDRO: Você mudou de ideia?
CLARA: -do na cozinha?
CLARA: Pedro... Que pergunta é essa?
PEDRO: Ah, na época da faculdade, você tinha algumas ideias
sobre... casamento.
CLARA: O que você quer dizer Pedro?
PEDRO: Você sabe, Clara. Você me contou muita coisa. E
você não parece bem, parece esconder alguma coisa. Você
acha mesmo que está pronta pra isso?
CLARA: O casamento já está marcado. E você quem vai fazer,
ou será que esqueceu? Melhor anotar na agenda, então.
PEDRO: Qual é, Clara. Eu tô perguntado porque me
preocupo com vocês.
CLARA: Eu gostaria de acreditar.
PEDRO: Clara, não dificulte as coisas.
CLARA: Tá bem, Pedro. Já que se preocupa. O Edgar é um
cara legal. Eu sei, ele pode ser meio desbocado, mas... Ele é
bem leal. Eu não entendi o que você quer dizer com estar
pronta. Eu gosto dele, ele gosta de mim, a gente se conhece e
tem dinheiro pra casar, acabou. E eu já sou crescida para
tomar minhas próprias decisões tá.
PEDRO: Eu sei, mas...
EDGAR: (De fora) ...e começa outra vez. (Entra.) Então é
Natal! E o que você fez, hein Pedrão? Como está a turma do
fundão! Cuidado que a Simone vem te pegar, hein, Pedrão!

38
(Continua cantarolando “Então é Natal” enquanto as demais
personagens continuam a cena)

Então é Natal, a festa Cristã


Do velho e do novo
Do amor como um todo
Então bom Natal
E um Ano Novo também
Que seja feliz quem
Souber o que é o bem
Então é Natal, pro enfermo e pro são
Pro rico e pro pobre, num só coração
Então bom Natal, pro branco e pro negro
Amarelo e vermelho, pra paz afinal

MÔNICA entra com um prato na mão.


MÔNICA: Por pura sorte- Quer dizer, foi Deus né. Por pura
bênção de Deus, o frango não queimou. Vai mais um tempo.
Trouxe rabanada.
Comoção geral.
MÔNICA: Aqui pessoal, só cuidado com o tapete, viu gente.
Pedro, você ficou sabendo aí da novidade do Edgar? Não quer
contar pra gente, Edgar?
EDGAR: Calma que essa parte é a melhor ó: (Canta meio
falado, com ênfase nas palavras)
Então bom Natal, pro branco e pro negro
Amarelo e vermelho, pra paz afinal
MÔNICA: Eu digo então (tentando ser cortês.) Subiu de cargo.
Agora é só na (imitando) programação violenta, “codando

39
muito” como vocês falam né? Diz aí Edgar? É muito trabalho,
querido.
EDGAR: Desculpa, gente. Agora, vem a melhor parte.
Harehama, há quem ama...
MÔNICA: (Se contendo) Edgar... você realmente vai cantar a
música toda?
EDGAR: Mas eu nem cheguei no Hiroshima Nagasaki!
CLARA: Tá bom, querido, pega uma rabanada aqui.
EDGAR: Opa, passa pra cá!
PEDRO: (Enquanto os outros comem, fala baixo, direto para
MÔNICA) Obrigado pela rabanada, amor. Já quer contar a
novidade pra eles?
MÔNICA: (Alto, para todos) Gente, vamos jogar!
EDGAR: Isso, bora, tô doido pra abrir esses presentes.
CLARA: É, seria bom.
MÔNICA: Perfeito. Bora sortear a ordem.
EDGAR: Eu vou primeiro!
MÔNICA: Sor-tei-o. Onde tem papelzinhos?
CLARA: Vamos par ou ímpar americano.
MÔNICA E PEDRO: Isso, pronto, resolvido.
EDGAR: Precisa não, vou ser o primeiro mesmo.
MÔNICA: Vamos jogar, vamos.
TODOS: (Uníssono) Paroimpamerica-NO!
EDGAR põe 10 dedos. PEDRO põe 8. MÔNICA põe 4. CLARA
põe 1.
MÔNICA: Caramba, Edgar, dez dedos é brincadeira. Vamos
lá... Dez, oito-dezoito, tem um ali, dezenove, mais quatro,
vinte e... três! Vou contar, zero, um, dois, três, quatro, cinco...

40
EDGAR: Ok, vou ser eu.
MÔNICA: Deixa eu contar. Zero, um, dois, três, quatro,
cinco...
EDGAR: Isso mesmo, vou ser eu. Agora, tô falando sério. A
Clara é a número quatro, 24 é múltiplo de quatro, eu venho
um antes dela, vou ser eu.
MÔNICA tenta contar. PEDRO e CLARA contam em voz baixa.
MÔNICA: Pessoal, pessoal! Deixa eu contar. Zero, um, dois,
(até) doze... Tá bom, Edgar, você vai primeiro. Agora...
Zerinho ou um, né, pelo amor de Deus.
PEDRO: Isso, vamos lá.
CLARA, MÔNICA, PEDRO: (Uníssono) Zerinho ou um!
MÔNICA põe 2.
PEDRO: Meu bem, você colocou dois.
MÔNICA: Como assi- Ah! Zerinho ou um! Agora vai!
EDGAR: Isso não sai pra hoje...
PEDRO: Edgar, não enche. Bora lá.
CLARA, MÔNICA, PEDRO: (Uníssono) Zerinho ou um!
MÔNICA põe 0, os outros põe 1.
MÔNICA: Ha-ha!
PEDRO: Sobra nós então, Clara. Pedra, papel e tesoura?
CLARA: Óbvio. Sou mestre nisso.
PEDRO: Eu duvido, mas vamos ver.
CLARA E PEDRO: (Uníssono) Pedra, papel e tesoura!
CLARA põe pedra e PEDRO põe papel.
CLARA: Ah. Eu sempre ponho pedra... Porque-
PEDRO: “As pessoas sempre põem tesoura”, eu te conheço
Clara. Hora de mudar o repertório!

41
EDGAR: Tá bom, pedra, tesoura, ê (um ê irônico), vamos abrir
logo.
EDGAR se levanta, espreguiça, e olha os presentes.
MÔNICA: Pedro, dez reais que ele vai no pequenininho.
PEDRO: Seu dinheiro é o meu dinheiro, que que tu quer
apostar?
MÔNICA: Rápido, aceita?
PEDRO: Fechado. Eu aposto que ele vai no verde, da direita,
Palmeiras.
MÔNICA: Ih, ele vai no pequeno, vai no pequeno... Aê! Dez
reais.
Aplaudem e comemoram. EDGAR se senta. Balança a caixinha.
EDGAR: O que será?... Uma chave de um carro?! Um...
relógio de três mil reais?! Um milhão de reais em barras de
ouro que valem mais do que dinheiro?! (Abrindo) Ou será que
vai ser um simples chaveirinh...
PEDRO: Que foi? Mostra.
EDGAR: É... (Tirando da caixa) bonito. (Encantado)
CLARA: O que é isso? Alguém sabe que que é?
PEDRO: (Começa a rir) Não é possível. Isso só acontece com o
Edgar.
CLARA: Gente, é só um bonequinho, o que tem?
EDGAR: Não é só um bonequinho não, Clara.
MÔNICA: Isso é um daqueles bichinhos que bota no painel do
carro?
PEDRO: (Ainda rindo) É.
MÔNICA: E que dança com a luz?
PEDRO: (Rindo) É.
EDGAR: Só que é esse bonequinho versão Canarinho Pistola.
42
MÔNICA e CLARA exclamam um “ãn” de quem entendeu.
PEDRO ri ainda mais, depois respira e para de rir.
EDGAR: Mas quer saber? Gostei! Isso aqui vai pro nosso
carrinho hein, Clara!
MÔNICA: Tá bom, agora lá vou eu.
MÔNICA se levanta, e pega a caixa verde.
MÔNICA: Tã tanrantã... Rufem os tambores... E é... uma...
uau. Batedeira.
CLARA, EDGAR, PEDRO: Uau, que chique...
PEDRO: E aí, amor. Vai querer trocar?
EDGAR: Trocar? Como assim?
MÔNICA: (Ironizando) Hmm... Olha que dá vontade! Olha
que eu vou trocar hein! Cuidado que eu troco!
EDGAR: Como assim, gente, como trocar?
MÔNICA: (Séria) Mas quer saber? Eu quero trocar sim.
Edgar, passa aqui, toma a batedeira.
EDGAR: Gente, como assim trocar?
CLARA: Você não sabe como se brinca de amigo da onça? As
pessoas podem trocar os presentes com as que foram antes.
EDGAR: Ah! (Realmente chateado) Como assim? Que sem
graça! Ah, não gostei, não.
CLARA: Edgar, a gente está ganhando uma ba-te-dei-ra. Não
reclama.
EDGAR: Clara, batedeira tem em toda esquina, Canarinho
pistola de painel de carro não!
CLARA: Edgar...
EDGAR: Tá vai, toma logo.
PEDRO: Beleza! Eu vou agora. Vamos lá. (Cantarola “Então é
Natal”) Fica na cabeça mesmo hein... E eu vou... nessa aqui
43
grande! Vixe mas é levinha. (CLARA e MÔNICA riem) Vamos
abrir... (O que vem de dentro é recebido com comoção geral) Uma
cueca boxer... Mônica! Quero trocar.
Risos.
MÔNICA: (Irônica) Uau amor, agora sim. Agora vi utilidade.
Obrigado viu.
PEDRO: Vai, Clara.
CLARA: Ok, vamos lá... É o último, tem nem dúvida né. (Se
levanta para pegar)
MÔNICA: Sabe que eu nunca entendi que que Hiroshima tem
a ver com o Natal.
CLARA: É porque é tradução.
PEDRO: Como é?
EDGAR: Que mané tradução, Clara. É Simone.
CLARA: É, gente. Essa música é do John Lennon.
CLARA, MÔNICA E PEDRO: O quê?
CLARA: É, gente. É Natal hippie, crítica às guerras, por aí
vai. Inclusive critica o Vietnam, por isso ele fala da “paz pro
amarelo” e não sei que lá.
MÔNICA: Uau... Essa eu não sabia.
EDGAR: Hoje tudo em dia é tradução hein, não tem mais
artista, não.
CLARA: Então eu nem deveria falar pra vocês que “Era-um-
garoto-que-como-eu-amava-os-Beatles-e-os-Rolling –Stones”
também é tradução.
MÔNICA: Essa eu sabia!
PEDRO: Ah não, que terror...
CLARA: Bem, vamos abrir né. Vamos lá... E é... ok. Quase
útil. Uma tampa de cobrir prato no micro-ondas.
44
EDGAR: (Frustrado) Acho que vai um vinhozinho.
MÔNICA: (O mais gentil possível) Só cuidado o tapete, amigo.
CLARA: Mas não tão útil quanto um canarinho bravo de
carro. Pedrinho, passa pra cá.
EDGAR: Sério? Boa Clara! Passa pra cá seu pintinho, Pedro.
CLARA: Tá bom, Edgar, se controla.
EDGAR: Você é demais Clara. A gente vai poder por ele no
carro! Imagina ele dançando assim ó, assim! Não, e melhor! As
crianças! Nossa. Imagina a algazarra dos Edgarzinhos e das
Clarazinhas. A gente vai dizer que esse é o pintinho
amarelinho!
CLARA: Parece bom, Edgar, mas tudo a seu tempo né.
EDGAR: Uau, obrigado Clara. Inclusive, acho que tá faltando
isso né. Uma penca de criança correndo aqui, mexendo na
árvore. Cantando Então é Natal...
CLARA: (Insegura) É... Eu acho que é muito cedo pra pensar
nessas coisas né, Edgar. Vamos focar aqui passarinho.
EDGAR: Como assim? Nunca é cedo demais pra se preparar.
Depois de março é permitido, uma só carne, e só Deus sabe o
presentinho que vai vir no forno, né.
CLARA: Sim, Edgar, mas uma coisa de cada vez. A gente nem
pagou todos os fornecedores ainda e-
EDGAR: Clara, o que é isso? É Natal! Essa é a hora de pensar
em bebê. É bebê pra todo lado. É Natal das crianças, é Maria
grávida, é “Jesus nasceu”, é Jesus bebê...
CLARA: É Edgar, mas deixa isso pra lá, por favor.
EDGAR: Deixar pra lá? Eu realmente não tô te entendendo.
PEDRO: Tá bom, Edgar, depois vocês veem isso.
MÔNICA: Edgar, cuidado o tapete. Baixa a taça, pode ser?

45
EDGAR: Pera aí, não! Vamos aproveitar, Clara. O pastor já tá
aqui. Vamos resolver!
CLARA: Edgar, eu só disse pra gente aproveitar o momento,
sem pensar muito no futuro! Não põe coisa onde não tem!
EDGAR: Ah, não tem mais coisa né, Clara. Não tem?!
PEDRO: Calma Edgar, senta, vamos conversar com calma.
Vozes vão se sobrepondo e aumentando o volume.
PEDRO: Não vai se resolver assim, fica tranquilo, senta um
pouquinho.
CLARA: Edgar, não faz esse escândalo, por favor. Para com
esse drama. Que vexame você tá passando, meu Deus.
EDGAR: Eu tô calmo! Só tô com a vivacidade que o momento
exige. Eu sempre desconfiei que tinha coisa a mais. Mas você
sempre se esquiva. “Ah depois a gente conversa”, que depois?
Vamos agora, já tá o pastor aí. Ah, vai... Vou encher mais a
taça.
MÔNICA: Gente, o tapete, larga a taça, por favor.
Todos exalam um susto, silêncio súbito.
MÔNICA: AH!!! O tapete seu desgraçado!
PEDRO: Calma... calma... amor, é só um tapete. Não precisa
de-
MÔNICA: NÃO! Não é só um tapete! (Apontando na cara de
EDGAR) Edgar, seu imbecil, você sabe o que que eu passo?
Você sabe o quanto eu dou duro pra... Seu imprestável!
MÔNICA sai, soluçando em lágrimas.
EDGAR: (Humilde e envergonhado) Que merda. (Se abaixa)
Será se isso não sai? Vou resolver...
EDGAR sai.
PEDRO: Clara. Então você não mudou de ideia?
46
CLARA: Sério, Pedro? Você realmente quer fazer isso agora?
PEDRO: Sim. Agora. Você continua sem querer ter filhos, né.
Não acha injusto não ser sincera com ele?
CLARA: Nossa, você coloca de uma forma tão simplista.
PEDRO: O que eu disse de errado? Você não quer filhos e não
diz pro homem com quem vai se casar. O que que eu omiti?
CLARA: Não é simples, assim. Pedro. Não é que eu não queira
filhos...
PEDRO: Ah, pois eu acho que é exatamente isso. E sabe por
que você não quer ter filhos?
CLARA: Eu não acredito (!) que você realmente quer resolver
esse assunto agora.
PEDRO: Me parece que é o melhor momento. Pensa um
pouco.
CLARA: Eu tenho uma ideia. Mas quero ouvir o que você tem
a dizer pra ver só a besteira que você vai falar.
PEDRO: Você tem medo, Clara.
CLARA: Uau que analista você. Isso mesmo, você é um
grande leitor da psiquê humana. Esse era o seu grande trunfo,
que desvendaria tudo que eu tô passando?
PEDRO: Não, não é simples assim. Mas é isso! Você não tem
coragem. Você percebe que casar vai levar uma grande parte
de você, eu consigo perceber. E filhos então!
EDGAR entra novamente.
EDGAR: Não achei pano. Que que vocês estão discutindo,
hein, calma lá.
PEDRO: Edgar... Eu acho que é relevante pra você...
CLARA: Pedro, é sério isso?

47
PEDRO: Sim. Edgar, algo que a Clara me disse há muito
tempo...
CLARA: Ai Pedro! Você é um ri-di-cu-lo!
EDGAR: Pedro, não se intromete, por favor.
PEDRO: Não Edgar, você não queria a minha ajuda? E você
tem que levar isso em conta. Ela me falou, lá atrás. Ela não
quer ter filhos, cara.
EDGAR: Hm. Fala mais, que que ela te disse? Quando?
CLARA: Edgar, não ouve esse imbecil.
PEDRO: A gente se conhece desde sempre, você sabe. Eu sou
muito amigo dela e a gente passou muita coisa. Lembro de um
dia na faculdade, ela me falou que não queria ter filhos. Mas
Clara, eu te entendo. Com o histórico da sua família, eu
consigo entender por que você teria medo de ter filhos.
Lembra? Eu concordei quando você falou. Mas eu cresci, você
vai amadurecer também, e vai entender.
MÔNICA entra de fininho, ninguém percebe.
CLARA: Caramba, Pedro, por que você tem que ser tão duro?
Quem é você pra falar da minha família? Por que agora você
fala como se soubesse, como se me conhecesse melhor que eu?
Pra onde você foi depois que a gente formou, hein? Quando
minha irmã adoeceu, quando meu pai deixou a gente, quando
eu fiquei na merda, onde você tava?
EDGAR: Mas o Pedro tá certo, Clara, você não precisa achar
que nossa família vai ser como seus pais. Calma, você vai
mudar de ideia, vai por mim. Você vai amadurecer isso...
CLARA: Tá vendo? É isso que eu não suporto! Vocês me
tratam como uma criança. Vocês querem tomar todas as
decisões por mim, vocês querem dizer quais os motivos que eu
tenho pra pensar no que eu penso. E mais, por que vocês
48
querem tanto botar uma criança na minha barriga? É isso que
eu sou pra você, Edgar? Eu sou uma vaca de cria, pra ficar
prenhe e empurrar seus genes pra frente? Eu tenho um monte
de habilidades, eu sei fazer um monte de coisa, eu sou mais do
que um rostinho bonito e um corpo saudável pra reprodução,
poxa!
PEDRO: Clara, eu te entendo, você está confusa, é tudo muito
novo e assustador a você.
CLARA: Não Pedro! Você não me entende! Você não me
entende mesmo! Você sumiu da minha vida! Como você pode
saber de qualquer coisa que tá se passando na minha cabeça.
Mesmo agora que a gente se reaproximou, qual foi a última
vez que você parou pra me ouvir hein? Eu tô mal, Pedro. Você
acha que eu tô preparada pra lidar com o peso emocional de
engordar um arroba; de saber que uma vida humana depende
de mim! Pedro, e se ela quebrar meu coração que nem eu fiz
com minha mãe? E se ela tiver câncer e morrer antes de mim?
Pedro, você acha mesmo que eu estou preparada pra isso?
PEDRO: Clara, que que você está dizendo? Te falta coragem!
Todo mundo tem medo, e nem por isso a gente desiste.
MÔNICA: Pessoal...
CLARA: Viu. Claro que você nem pensou sobre isso, Pedro,
porque você não se importa. Você só finge. Mas você finge
muito bem! Você vem enganando todo mundo até aqui. Você
vem com esse seu sorriso, essa proatividade, esse seu histórico
de bom garoto, você chama a atenção, Pedro. Mas você não se
importa de verdade. Você só se importa com o fato das
pessoas perceberem que você se importa!
PEDRO: Por favor, Clara. Eu não me importo? Minha vida é
minha igreja e minha família. Você sabe quanto sangue eu dou

49
pra esse fim de mundo que nenhum seminarista da minha
turma quis pegar? Eu poderia estar andando de carro zero,
como meus amigos que foram pra capital, ou estudando fora,
mas eu quis trabalhar, Clara. Eu pensei nas pessoas.
MÔNICA: Pessoal.
CLARA: É isso. Eu te conheço, Pedro, você continua o
mesmo. Você realmente só se importa em ser o melhor da
turma, o funcionário do mês. Você quer uma plaquinha?
PEDRO: Tá bom, Clara. Não preciso da sua validação, tá
bem? Eu tenho uma igreja pra cuidar, uma mulher, e agora
um bebezinho na barriga. Tá aí, péssima forma de contar a
notícia, mas agora vocês sabem.
MÔNICA: Pessoal.
CLARA: Uau... Isso é... novidade. Eu te daria parabéns, mas
como se isso fosse impedimento pra alguma coisa né, Pedro?
Ter filho muda alguma coisa? Meu pai ligou pras filhas dele,
pra mulher dele que esperava ele todo fim de tarde com janta
quentinha? Mandou todo mundo pras cucuias quando viu o
rabo de saia certo. Casar não muda quem você é, e ter filhos
também não!
EDGAR: Então você está dizendo que o casamento não
mudar nada, Clara?
CLARA: Edgar... Não foi isso que...
EDGAR: Então pra sempre você vai me enrolar? Vai ficar
com esse medo de ter filho pra sempre? E se você nunca
mudar de ideia?
MÔNICA: Pessoal.
PEDRO: Tá vendo, Edgar? Pensa bem... Pensa bem...
MÔNICA: Pessoal! PESSOAL! JÁ CHEGA!
Silêncio abrupto.
50
MÔNICA: (Chorando) Eu sofri um aborto.
CLARA, EDGAR, PEDRO: Como assim? Agora?
CLARA: (Se aproximando) Meu bem! Você está bem? O que
você está sentindo?
MÔNICA: Não, agora estou bem. Foi quinta passada.
PEDRO: O quê?! Mônica, o que você tem na cabeça?
EDGAR: Que merda.
PEDRO: Mônica! Por que infernos você não me contou antes!
MÔNICA: Eu ia te contar depois do Ano Novo! Você
reclamou que era muita programação e...
PEDRO: Mônica, você é minha mulher com meu filho na
barriga! Que programação vai ser mais importante que isso,
meu Deus do céu?
CLARA: Pedro, dá um tempo, por favor.
MÔNICA: Quer saber, Pedro? A Clara tem razão. Você quer
que todos os olhos estejam sobre você. E você não põe os
olhos em mim! Eu dormi uma noite inteira fora de casa,
quando isso aconteceu...
PEDRO: Você falou que ia visitar uma irmã da igreja.
MÔNICA: É, mas eu senti dores, eu reclamei delas. Eu deixei
papel sujo de sangue na lixeira, pra ver se você perguntava.
Você só se importa com você, Pedro.
EDGAR: Que merda, eu vou é embora.
MÔNICA: É, vai mesmo.
EDGAR: Ih, olha o estresse.
MÔNICA: Mas é óbvio! Você tem sido um pé no útero esse
tempo todo! Eu não sei como o Pedro ainda é seu amigo!
Talvez pra se sentir um ser humano melhor e mais calibrado

51
por comparação. Ou pra olhar pra esse chilique ridículo da
Clara e se achar corajoso.
CLARA: Ei!
MÔNICA: Ah, cresce um par de ovários.
CLARA: Uau. Miss sororidade.
MÔNICA: A vida é difícil mesmo garota, você acha que eu
vou desistir de ter filhos por que não deu certo uma vez?
Ainda vou chorar muito por causa disso, mas a vida segue!
Agora, você, Edgar. Você é um insuportável. Você não ouve o
que a gente fala, sempre criando suas próprias regrinhas, com
suas piadas sem graça. Você se oferece pra ajudar, mas eu
preferiria que não. Você é um imprestável. E ainda por cima
manchou a porcaria do meu tapete!
EDGAR: (Bufa) Eu pago o reparo.
MÔNICA: Você realmente não entende. Não adianta, muda o
tapete, me compra a merda de um tapete persa, não adianta.
Esse tapete é o símbolo de quanto eu me doo pra essa casa. Eu
me despejo aqui pra ganhar migalhas da atenção de um
marido super ocupado, e quando eu engravido e ele finalmente
olha pra mim, eu perco essa merda dessa criança! Eu não
consigo segurar nada! E aqui tô eu! Quer saber? Não. Deixa
esse tapete mesmo. Manchado. Espero que a mancha crie
bolor e apodreça. É. Pra mostrar meu útero apodrecido e
morto!
EDGAR: Olha, me desculpa mesmo, mas isso já não é
problema meu, beleza? Eu tô indo, embora. E pelo cheiro, o
frango queimou.
MÔNICA: Ah, que queime no mármore do inferno, não me
importo. Espero que a casa queime e meu ventre podre
também.
52
EDGAR abre a porta.
PEDRO: Isso. Vai embora. Cadê o homem que queria resolver
tudo nesse mesmo instante?
EDGAR fecha a porta numa porrada.
EDGAR: Pedro, você não sabe como vocês são importantes
pra mim, tá legal. Eu não quero fugir de vocês, mas vocês não
me dão escolha. Isso aqui virou uma bagunça, eu não tenho
mais o que fazer. Não me chame de covarde.
PEDRO: (Cansado) Eu não te chamei de covarde, seu maluco.
EDGAR: Ah, eu sou maluco?
Vozes se sobrepõe a aumentam o volume.
EDGAR: Eu sou maluco? Eu vou te mostrar o que é maluco!
PEDRO: É sim! É sim! Você é pirado!
CLARA: Vocês são dois ridículos! Eu não acredito que eu
decidi passar o Natal com vocês.
PEDRO: Não se faça de vítima!
MÔNICA: Eu não acredito, que vocês estão discutindo depois
de eu falar que tive a merda de um aborto espontâneo.
A voz de EDGAR se sobressai.
EDGAR: Quer saber? Tudo por causa dessa merda de
canarinho! Vai pro inferno!
EDGAR arremessa ele brutalmente pela janela. Vidro quebrando. A
sala se enche com um silêncio e barulho de chuva e vento entrando.
PEDRO: Meu Deus, você abortou e eu nem percebi.
MÔNICA: Sim. E sofri um aborto e nem te contei.
PEDRO: É.
CLARA: Edgar, eu realmente gosto de você, mas a gente
precisa conversar sobre o meu medo de ter criança.
EDGAR: É verdade. E eu preciso ser menos insuportável, né.
53
CLARA: Nós somos os piores seres humanos vivos no estado
de Minas.
EDGAR: O páreo é duro, mas eu acho que sim.
PEDRO: Mas foi por esse lixo que Jesus morreu.
MÔNICA: (Chorando) Bom, se é assim, melhor a gente
agradecer direito... Olhai, admirados, a sua humildade...
Todos se juntam baixinho cantando o resto do hino:

Os anjos o louvam com grande fervor,


Pois veio conosco habitar encarnado;
Oh! Vinde, adoremos a nosso Senhor.

Por nós, das alturas celestes baixando,


Em forma de servo se fez, por amor,
E em glórias a vida nos dá, sempiterna;
Oh! Vinde, adoremos a nosso Senhor.

TODOS: (Em humildade, uns aos outros, em tom livre e


improvisado) Feliz Natal, acabou que foi bom né, às vezes
precisa mesmo, a rabanada tava boa, você tá realmente bem,
não precisa ir ao médico, não agora, depois a gente vai.
Alguém quer jogar imagem e ação?

54
MANHÃ DE DEZEMBRO
Eline Sandes

Ando por aí, cabelo ao vento


No silêncio, uma certeza:
O maior contentamento
É a graça de viver

É dezembro, que mês tão lindo!


Já vai-se contemplando
A beleza de mais um ano findo

Chega o Natal e com ele me deslumbro


Há alegria real
A Vida veio ao mundo
Amparar-nos com amor sacrificial

Simone

pergunta “o que você fez?”


Fiz pouco se comparado Àquele
Digno de cumprir todas as leis

É manhã de dezembro
(Será que mais tarde chove?)
A brisa e o céu cosendo
O brilhoso semblante jovem

55
Árvores de Natal por todo lado
Retomam o gosto de infância
As mangas caídas na calçada
Trazem uma bela lembrança

Árvores de verde sobrepujante


Ares puros
Ruas como diamante

Manhã de dezembro
Ó, que harmonia!
É lembrança do regozijo
De que ainda resta a alegria

Tempo de paz, de amor


Os sinos anunciam redenção
Eis que chega o salvador!
Ele habita em meu coração

Sem medo nem aspereza


Afirmo verdadeira esperança
Perdão em meio à tristeza

56
O NATAL É
PARA OS FRACOS
Arthur Guanaes

depois do vento, um terremoto;


depois do terremoto, um fogo;
e, depois do fogo, uma voz dum
suave silêncio
— 1 Reis 19

D esde de menino, sua maior preocupação era ser o


mais forte.
Por isso era arisco e travesso desde moço. E
depois foi levado a um mosteiro, com fim de converter
os modos. Ele mesmo nem reclamou muito, porque
prometiam que os moços monges trabalhavam muito em
madeira e peso, então arrazoou que ia exaurir em
trabalho sua ira. O único problema da vida de monge era
que conjunto à labuta vinha a ora. E essa orância lhe
dava nos nervos. No coro, seu latim era patego,
barbárico, e a melodia tortuosa fazia torcer no cova seo
Gregório que a compusera. Envergava o cantochão,
criando subvozes e contracantos não pretendidos. Em
sua leitura: o latim só seu, de sintaxe própria, emendava
palavras distantes, e separava palavras adjuntas. Das
portas da capela pra dentro, era pra ele tudo tedioso,
penoso, e, acima de tudo, fraco.
57
Lá fora, se fazia. Adorava as procissões, colher
frutas, carregar pedras, limpar esterco, cortar madeira
para novos chalés. Mas sua tarefa predileta era acordar
cedo e tocar o sino. Subia na torre, cobria os ouvidos
com lã, e sonava o toque requerido da hora sagrada.
Aqui, sim, era todo possante. Gostava do que tinha peso,
do que dava tremor. Rezava a Deus sempre pelo pior
tempo que pudesse o Senhor mandar. Jejuava para ver o
poder do divino. Quando a missa ou a hora sagrada
competiam com um vendaval qualquer, ele se perdia,
imaginando a tempestade levando as colunas
pedregulhosas da nave, e estourando os vitrais com
pungência, encharcando o assoalho.
Era época da natividade de Nosso Senhor, época
que o céu se enche dum perene lusfus, e a terra se afunda
em alvura gelada. Agora, o moço monge se divertia
andando na neve. Não ia a lugar algum, nem vinha de
lugar algum. Apenas queria sentir a friaca encharcando
as botas, gelando os membros inferiores. Na andança, se
perdeu em meio às árvores, pináceas que populavam as
encostas, todas encapuzadas dum hábito branco, talequal
o seu. E foi ali, num lugar como onde orava São Serafim,
que o monge viu um negrume de vulto. Pensou ser
cisco, mas fitando o coiso que ali se pusera, viu que era
visagem de meio dia. De dar em plena luz. Tremeu, não
de frio, mas de assombro. Se punha em sua frente, ali
perante seus olhos, uma sombra viva. Indescritível e
indesenhável. Tinha dois pontos vermelhos por olhos,
fulgurantes, penetrosos e ardentes. Quando ria, abria
algo que fosse como boca e desenrolava uma bifurcada
língua rubra. Era desforme e vazio, ainda que se pudesse
entender corpo como de humano, e pernas de bode, e
chifres de carneiro. Andava balouçando, arqueando aos

58
lados, abrindo largos os braços peludos. Aproximou-se a
passos ébrios, englobando a luz à sua volta.
— Não tem medo de mim, garoto? — a voz rouca,
ríspida, rasgada, escorregou pela garganta.
— E eu ter medo do senhor? O senhor só é feio.
E a figura guinchou um gargalho gutural. Ainda
que assombrado, o monge não tinha medo.
— O senhor tem nome?
— Chame-me Kalikântzaros.
O nome soou com estranheza, exótico.
Kalikântzaros, repetiu consigo o jovem.
— Você parece perdido, meu jovem. O que
procura?
— Meu senhor, procuro saber qual é a coisa mais
forte de todas.
— Nobre procura, jovem. Se eu te dissesse que sei
qual é a coisa mais forte, você acreditaria?
— E do que o senhor entende de força?
— Duvida, garoto? Pois cuide o caminho de casa, e
se fie em seu manto, pois verá o que entendo de força. —
Os olhos ignácios sorriram em malícia, e o vulto se
distanciou do rapaz, não antes sem parar para uma
última pergunta — e tu? Diz que é o quê a coisa mais
forte?
— Penso que o fogo, senhor.
— Perfeito — e desapareceu entre os pinheiros.
O jovem refez o caminho em direção à capela, após
ouvir sinos. Ia ruminando o inusitado encontro. O andar
bêbado, a voz dura, as palavras inesperadas. Viu se no
meio do caminho, quando o vento dobrou. Agarrou-se
ao manto de lã que usava por cima do alvo hábito e
apertou o passo. Uma geada fina começou a se
precipitar, como um fino véu. Com o tempo, engrossou,
e a neve caiu em flocos completos, até que o vento
59
trouxe a nevasca em plena potência. Tudo à sua frente
ficou numa névoa densa, uma branquíssima parede, não
sendo possível distinguir nada na pouca luz. O frio
entrava pelas vestes religiosas, empurrando-o para fora
da trilha, fazendo-o se apoiar num tronco, tentando
fugir do caminho do vento. O moço avançou mesmo
assim, resoluto, o gelo machucando-o cada vez mais. As
pontas dos dedos doíam, e o nariz ardia. Num desespero,
enquanto cambaleava em dor e tremor, pensou que seria
sua derradeira hora. Avançou mesmo sem esperança, até
que deu de cara com a grande porta de madeira da
capela. Assustados com o barulho, os irmãos que dentro
dela rezavam, correram para fora e o puxaram para
dentro, em alvoroço.
O prior lhe deu resto do dia de folga. O moço ficou
em sua cela, deitado, tremendo na cama, e olhando as
paredes de pedra fria. Os demais monges nesse dia
reforçaram a caldeira, esquentando a casa, e de meia em
meia hora vinha um irmão conferir sua saúde e rezar por
sua vida. À noite deixaram um prato com pão e sopa
quente e uma taça de vinho diluído. Tentaram
alimentar-lhe a sopa, mas ele finalmente apresentava
uma tranquilidade que lhe permitiria o sono, então lhe
deixaram dormir. No meio da noite acordou. Sentia-se
bem e faminto. Procurou a sopa, mas nada achou. O
prato estava rapado, e a taça seca, contudo não se
lembrava de ter comido ou bebido. Então ouviu passos, e
levantou os olhos. Num canto superior, numa quina do
teto, do lado mais distante de sua cela, dois pontos
escarlates reluziram na escuridão.
— Dormiu bem?
— O suficiente.
— Que tal a nevasca?
— Fria.
60
— Mas tu a sobreviveste.
— O senhor o diz. Como entrou aqui?
— Indouto... — sussurrou em desprezo. — Não
deveria orar?
O moço sabia que já não haveria mais hora sagrada
até o nascer do sol, e que dormiam todos. Mas sentiu-se
impelido a ir rezar, pois por mais que não fosse o maior
entusiasta da prática, os anos lhe haviam encucado tal
costume que a reza era pra ele quase que uma mania.
Levantou, foi até a porta da cela e a abriu. Tudo
escuro no corredor. Pegou um manto pesado, e se
dirigiu, mesmo no breu, para a capela. Caminhou silente
pela fileira de portas fechadas que se dispunham à sua
esquerda, enquanto à sua direita janelas grandes e
abobadadas mostravam o jardim coberto dum véu
albugíneo. Quando chegou ao pátio do claustro, por
baixo da fresta da porta, viu uma luz laranjada
escorregar. A mesma luz difusa entrava pelas janelas,
sentiu-se na antessala do inferno. À sua esquerda, outro
jovem monge passou correndo com um balde na mão,
abriu a porta e então ele pôde ver a fonte reluzente. Do
outro lado do átrio, a capela brilhava com um laranja
ferrugem, coroada pela glória de um grandioso incêndio.
As chamas subiam além do campanário e pareciam
maiores no fim da nave, onde se encontra o altar. Muitos
outros monges saíram de suas celas, como formigas dum
formigueiro, correndo e zunindo em velocidade quando
passavam do seu lado. O moço saiu e ficou num canto,
ao ar livre, roubando calor do fogaréu.
— Meu filho, deite! Você não está bem ainda! —
Disso o prior se aproximando dele.
Mas o moço ali permaneceu, quedo. Percebia o
poder do fogo, que consumia as estruturas da inabalável
e antiquíssima capela. Os demais corriam com baldes,
61
insignificantes. O poder do incêndio era maior. Ele
consumia o teto, queimava os ornamentos de dentro,
transformava em pó as belíssimas obras que adornavam
o tempo. A esse ponto, já se imaginava que os bancos
eram carvão, os panos do altar, cinzas, e o Santíssimo
incandescia deformado. Mais algum tempo adiante,
ouviu-se um estalo de madeira do campanário e um
estampido de metal. A estrutura se rompera e os sinos
haviam caído. O calor ia crescendo, e o ar quente,
pressurizando dentro da capela, até que estourou as
vidraças, lançando cacos em todos à volta. Alguns
monges, se recolheram, feridos. O fogo durou até
manhãzinha.
O sol não saiu com força, por ser alto inverno. Mas
os monges se reuniram no átrio, entre as portas do
claustro e a estorricada capela. A neve ainda caía,
branqueando o mundo, mas o restolho de fogo da capela
os aquecia. Assim oraram por todo o dia. Batia-se um
pequeno sino, agudo e sibilante, e os monges vinham de
todos os cantos para a reza da hora.
Olhos silenciosos de irmãos seus estiveram sobre o
monge todo o tempo. Sentia-se bem, saudável e forte, e
orgulhoso disso. Mas seus confrades fixavam atenção
nele, compassivos ou alertas. Ademais, todos, até ele,
pesavam o coração quando passavam pelos escombros e
viam as ruínas da casa de Deus. Condoeram-se todos de
seu pó. Ele, como coruja nos telhados, trabalhou com
força em trabalhos recônditos, pois quis sentir o suor, e
conseguiu. Mas toda vez que paravam para as rezas, e
entediava-se com os cantos e ter de ficar parado ali. No
ofício em que mais se lia, a homilia roubou-lhe a atenção.
A chacina dos nenéns. Sua mente divagou com a força
do basileu da Judéia e de seus homens, cavalgando e
espadando nenenzinhos. Abismou-se com a cólera e a
62
frieza, e com o sangue derramado na cólera dos
poderosos, pela lâmina dos valentes. Seria a maior força
o aço?
— É o que acha, garoto? — uma voz lhe
interrompeu seu trato de um pesado madeiro,
perguntando como se lesse seus pensamentos. No canto
da carpintaria uma sombra o observava.
— Estou ocupado.
— Mas pode conversar. É o aço?
Contrariado, sem levantar a cabeça — é o que me
parece. Resolvemos o fogo, não?
— Pois lhe rebato: é a carne. Que é do aço sem a
carne? Sozinho enferruja.
— O senhor faz sentido.
— Isso o sei, se não calaria.
— A conversa do senhor é confusa, não sei donde
vens, quem és, por que não és visto ou enxotado. Me
prometes uma lição, mas o senhor a dá a prazo, tão
parcelado que já me ponho a duvidar do que sabes.
— Viste meu poder, garoto.
— Mas ao que parece, te falta, senhor.
Então os olhos atiçaram, como se soprassem um
fole numa fornalha. Cresceram e lumiaram com luz
laranja toda a carpintaria. Os instrumentos pendurados
refletiram o esplendor. A sombra agigantou, disforme,
vazada, nula. A voz rouca tomou corpo, como um riacho
virando tromba, como um macaréu caudaloso.
— Quem sou? — Retumbou. — Sou um
Kalikântzaros, que por minha tremenda maldade fui
amaldiçoado a habitar no abismo. Vivo com outros
Kalikântzaroi trabalhando incessante para serrar a
árvore da vida, que vos alimenta e sustenta! E ainda
assim, somos soltos por duas dúzias de dias, no natalício
do inominável para vos atormentar! Somos vosso terror.
63
A negridão de vossas festas. O escorbuto de vossos
dentes. O câncer de vossas entranhas. Somos vós, e
sereis como nós. Duvida de meu poder e provarás de
minha ira!
Tais últimas palavras foram proferidas com
harmonias inumanas, irreproduzíveis, guturais,
entranháveis e submúndicas, como se fosse ouvido um
coro de sombras. O visagem retirou-se, fazendo a oficina
voltar à luz pálida. Um lene tremor correu pelo corpo do
moço e pelos móveis da carpintaria, de modo que
algumas ferramentas penduradas caíram, sonando
sibilos. Num calafrio, disse uma breve reza viciada, e
continuou o trabalho.
Os demais dias passou aéreo. Mal fez caso da
oitava, o dia da circuncisão, ou de qualquer outra
festividade invernal. Antes, andava quase vazio, sentia-
se leve. Não digo leve como se deve sentir. Leve como se
fora esvaziado. Em toda sombra que fitava, podia ver
dois pontos vibrantes, como quando se olha para o sol, e
ele se queima no fundo das retinas, sendo visto em todas
as coisas. A cada piscadela, via dois círculos, bem no
centro, transparentes e destacados. Os ratos no telhado
de sua cela roíam rouco como a voz. No silêncio terrível
do claustro, ainda podia ouvir o eco do retumbo da voz.
Que queria ele dizer com o que dissera? Mais mentiras?
Ou verdadejava, e regressaria numa nevasca qualquer,
ou num fogo qualquer, ou inovaria, vindo em desglória,
enegrecendo céu, desfazendo as nuvens com seus olhos
de fogo, derribando um terço das estrelas para que
caiam na terra e queimem os montes, e transmutando as
restantes em olhos fogáceos como os seus, e pisotearia
os inimigos com seus cascos, despejando o cálix de sua...

64
— Toma, meu rapaz. — Uma mão idosa e enrugada
cortou sua fabulação esticando-se com um presente. —
Toma e come.
O jovem, sentado no jardim do claustro em tempo
livre, desviou de momento os olhos da neve e observou
quem lhe presenteava. Era um senhor desconhecido,
vestia o hábito branco da ordem, mas servia-lhe mal na
barriga, cara de emprestado. Tinha a pele corada do sol,
uma grande barba branca, levava uma cruz pectoral de
estilo estrangeiro, assim como o era seu báculo, que em
formato de tau levava uma pequena cruz no cimo.
— Bispo! — Percebeu o moço. Pegou-lhe a mão —
a bênção, bispo.
Lembrou-se que, enquanto devaneava, lhe haviam
avisado da vinda deste senhor de mui longínquas terras.
Sempre que podia, os visitava e presentava os monges
com azeites e geleias, além de queijos e vinhos para a
dispensa. Não só, sua sacola vinha cheia de pares de
meia, gorros, mantos, ferramentas novas, e tudo mais
que necessitassem os monges. Oferecera um pote de
geleia ao moço, que agora lhe beijava o anel. Pôs a mão
na fronte do jovem e o abençoou — Deus te abençoe,
meu filho.
O rapaz levantou, e abriu o pote enquanto
caminhava. Os pés o guiaram para fora do claustro,
talvez por instinto, que lhe dizia que geleia era festivo
demais para se comer onde se dorme. Pousou no átrio,
olhando o potinho de substância roxa e doce. O velhinho
lhe dera juntamente uma colherinha de madeira, com a
qual o monge degustou a comida açucarada. Tudo era
pequeno e pueril que sentiu-se criança em sua vila. Pela
primeira vez em anos lembrou-se de algo da festividade
daquela data. Era tudo meio bobo, e em certo sentido
humilhante: comer geleia direto do pote. Sentiu-se
65
menino, e não homem forte. Mas sentiu-se alegre,
também.
Alegria que durou pouco. Pois um monge um par
de anos ou menos mais velho do que o jovem moço saiu
do claustro furioso, em passadas trovejantes, e derribou
de sua mão o pote. O jovem ficaria possesso, se não
ficasse confuso. Este monge mais velho então pegou-lhe
pela gola e o pôs de costas para a parede.
— Foi você! Você trouxe ele até aqui! Você deu
poder a ele! E por isso ele destruiu a capela! —
Esbravejou o atacante.
— O que eu fiz?! Me solta! — O moço dizia, posto
contra a parede.
— Você trouxe o demônio de volta! — E o
empurrava ainda mais forte contra a parede do claustro.
Começou com violência a empurrar a gola contra a
parede, sufocando com o tecido do hábito ao jovem
monge.
O moço sentiu o sangue ferver. Empurrou o
atacante para longe, que saiu num cambaleio bêbedo. O
moço bufava.
— É minha culpa? Então resolve isso! Vamos!
E se atracaram. O mais velho era maior, mas o
moço era mais forte. Juntaram-se ao mais velho outros
monges movidos por semelhante indignação. Gritavam
que tinha sido dele a culpa, que pagaria, que era lugar
santo, que seria expulso. O cercaram e o puseram contra
a parede de pedras. Desferiram socos e chutes,
empurraram sua cabeça contra a parede, mas repito e
afirmo que o moço era mais forte. Apoiando as costas
contra a parede, fincou o pé no peito de um dos
atacantes, arrojando-o longe, junto a mais uma turba de
três ou quatro que caíram ao chão. Então lançaram mãos
a ele, mas ele os agarrava, os lançava, socava, chutava e
66
desviava. Agora, fora da parede, percebia com agudez o
movimento de todos, e se sentia vivo. Socar-lhe era
socar vento. Movia-se entre os muitos como se levitasse,
desapercebido pelos golpes lentos e pesarosos. Todo
soco no ar era contrariado com outro mais possante, que
fazia o oponente vergar para trás. Divertiu-se desferindo
safanões corretivos nos assanhados monges que lhe
haviam desafiado. Tendo dado por fim cabo à
insurreição, mirou o primeiro atacante, investiu contra
ele e o derrubou. Forçando-o contra o chão nevado, o
socou, enquanto ele se debatia. Antes que se causasse
mais dano que um nariz quebrado e três dentes
perdidos, o moço cessou sua ira. Levantou, bufando. Ao
lado, o irmão da cozinha catava os dentes; mais adiante,
o copista jazia desmaiado, de susto mesmo, não levara
bufete; e outros aqui e acolá cuspiam sangue. O moço
ofegava satisfeito, por agora. Seu manto branquíssimo
salpicado do sangue de seus inimigos. Seu punho, rubro
e latejante. Os olhos arderam como se pegassem fogo.
Mas foi tirado desse êxtase violento por uma
bordoada no cocuruto. Ao mesmo gentil e firme.
— Atraso um dia, e vocês teriam se matado.
Era o velho bispo.
— Es virga tua et baculus tuus ipsa me consolata sunt...
— disse o moço, ajoelhando-se com o coração pesaroso
de vergonha.
— O meu báculo, não. — Disse o velho com tom
desproporcionalmente ameno. — Mas vejo que prestou
atenção em algum salmo, pelo menos. Receio que tenha
errado no seu presente. Não é de geleia que você precisa,
filho. Vem.
Um protesto quis erigir dos monges que assistiam
o espetáculo, mas o prior interveio:

67
— Até parece que nunca foi a vez de vocês. Vamos,
levem estes pras celas, cuidem deles, e o resto me ajuda
a limpar...
O bispo os guiou floresta adentro, contudo por um
caminho que lhe era desconhecido. Ele imaginava saber
todas as sendas entre os pinheiros, mas esta era nova, e
nunca depois conseguiu achá-la novamente. Pela
primeira vez o silêncio não o chateou. Antes, era ao
mesmo tempo reconfortante e humilhante. O nada falar
o fazia pensar no que fizera. Não só nos socos que
acabara de dar, ou de ter se cedido ao Kalikântzaros, ou
de talvez ter atiçado a entidade a tacar fogo na capela,
ou de tê-lo temido, ou admirado. Não. Pensava no que
fizera desde que era gente. Sentia-se humilhado de ser
quem era. De desejar o que desejava. Lembrou de
quando bateu em se primo, mordendo instintivamente
os lábios num reflexo de prazer, momento em que
excedeu-se e sangrou, porque mordera tanto os lábios
próprios lábios fruindo a violência que sangraram.
Mas sentia consolo no silêncio. Embora sentisse
vergonha em ser quem era, pela primeira vez sentia que
não precisava esconder seu gosto de violência com o
invólucro da produtividade. Não precisava se esforça
para canalizar nada, o que era doloroso. Podia dizer, ou
melhor, sentir (porque dizer, nem nada se dizia): “gosto
de violência”. Sim. De sangue, de socos e pontapés. Não
precisava mais mentir, esconder, porque ainda assim,
aquele velho não sumia do lado dele, mas o levava com
passos firmes, tranquilos. Indicava como a um amigo
com a ponta do bordão perigos, buracos debaixo da
neve, pedras pontiagudas escondidas, e se firmava nesse
básculo enquanto marchavam na neve.
Prosseguiram até uma clareira. Ao entrarem o
jovem limpava na manga a face, suja de sangue alheio,
68
com gosto ferrugíneo. O moço olhou para os lados e viu
estátuas de tamanho real encobertas de neve.
— Onde estamos?
— Estamos aqui. Seja paciente, filho. Vamos ao
lado, se proteja do vento.
Se acolheram ao lado dum grande cedro, então uma
brisa descendo a montanha pôde ser ouvida. Sibilava
quieta, como se não quisesse acordar as estátuas que
repousavam ali. Com gentileza, o vento retirou a neve
de cima das esculturas, revelando uma cena prosaica,
quotidiana.
— Vê. Não queres a força? Vê.
Quando o rapaz reentrou na clareira, saindo
debaixo do cedro, a brisa zuniu leve em seus ouvidos,
com a voz dum suave silêncio, que quedava seu coração,
seus pensamentos. Apenas a brisa lhe soprava amiga aos
ouvidos. Caminhou entre as imagens. Um burrico, uma
vaca, um homem sério, contemplando, uma mulher,
exausta, esperançosa. Um portal que imitava a entrada
dum estábulo, no cimo um varão alado, de trombeta na
mão. No centro, sob os olhos de todos, numa
manjedoura pobre, palhenta, discreta e modesta, a força
que lhe prometeram: Um frágil bebê.

69
DOXOLOGIA
Eric Jankowsky
De todos presentes que podia receber, recebi logo o
Melhor de Todos
Presente esse belo para os que O almejam, mas feio aos
olhos tolos
Pensava precisar de tudo nesse mundo, de toda prata e
ouro,
Mas a verdade é que só precisava desse Eterno Tesouro
O Papai que me trouxe esse presente não é o Noel,
Na verdade, Ele me trouxe algo muito maior, Ele me
trouxe Emanuel
Oh meu Deus! Me impressionei com todas essas luzes da
decoração,
Quase me esqueci que a Luz do Mundo, maior que
todas, brilha no meu coração
Vejo uma árvore, toda adornada e esverdeada
Me vejo uma árvore, toda destroçada e depredada
Também vejo o Jardineiro, a tornando restaurada e
renovada
O frio que antes sentia lá fora, o Sol da Justiça mandou
embora
Sim, Ele é a Estrela da Manhã que sobre mim reluz, e
que em mim, mil frutos produz
Obrigado, porque mesmo sendo Teu aniversário, eu sou
o abençoado

70
SE GOSTOU, LEIA TAMBÉM

Hidebehind: Uma coletânea de horror e suspense,


disponível em:
drive.google.com/file/d/15EeAf_G6TvXshY5ImStJTx
9CKCxSULUl/view?fbclid=IwAR38ZRCUS3ngzkXi1
BpckJoFH9BaNfjE4KZ8hOL7KB1ogO1amc8j1QoJk5Q

Você também pode gostar