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~1~

J.M. Darhower
#2 Reignite

Série Extinguish

Tradução e revisão: Lu

Leitura Final: Anne Pimenta

Data: 09/2016

Extinguish Copyright © 2014 J.M. Darhower

~2~
SINOPSE
No momento que o pequeno Apocalipse acabou, a vida voltou ao
normal. Os mortais continuaram com suas vidas ignorantes enquanto a
Terra se curava e flores cresciam outra vez, a devastação rapidamente
deixando de existir. Foi como se nunca tivesse acontecido.

Mas aconteceu.

Luce sabe. Ele está amaldiçoado a lembrar de cada momento,


forçado a viver com tudo que ele fez. Quando de repente se encontra
fora do seu confinamento, ele tem que encarar uma decisão: que lugar
chamar de ―lar‖. Liberdade acaba não sendo o que ele espera quando a
única coisa que ele quer não sabe que ele existe.

Serah acordou sem memória de onde ela veio ou quem ela era
antes desse momento. Lutando para se adaptar ao mundo como uma
mortal, ela é assombrada por um par de olhos azuis que parecem estar
sempre lhe observando. Ela não consegue afastar a sensação de que ele
poderia ser a sua salvação... se ao menos ela conseguir se lembrar dele
antes que seja tarde demais.

Lúcifer não perdeu sua Graça sozinho. Ele não é o único anjo com
um rancor, nem é o único fascinado pela sua bela mortal.

A estrada para o Inferno é pavimentada por boas intenções.

~3~
A SÉRIE

Série Extinguish

J.M. Darhower

~4~
Precisamos pagar caro pela imortalidade e morrermos várias
vezes enquanto ainda estamos vivos.

Friedrich Nietzsche

~5~
Prólogo
Baforadas de fumaça saíam da lâmina ardente enquanto a ponta
da espada estava enterrada no chão de mármore. Michael entrou na
câmara, seus pés descalços pesados e a cabeça baixa.

Ele parou quando alcançou a frente, seu olhar levantando


lentamente em direção ao trono vitoriano enorme. Ele combinava com o
resto do aposento – todo em veludo cor de vinho e dourado brilhante.

Seus olhos encontraram os do seu Pai, azul-claros como o dia.


Ele parecia calmo, à vontade, seu rosto eternamente jovem
inexpressivo. Michael o observou com cautela, incapaz de detectar
qualquer traço de emoção. Isso não era incomum... Ele nunca se abria.
Mas hoje, de todos os dias, Michael esperava achar alguma indicação do
que aconteceria a seguir.

Michael abriu a boca para falar, mas as palavras não saíram. Era
inútil tentar explicar, de qualquer maneira. Seu Pai via e sabia tudo. Ele
assistiu tudo que aconteceu.

Um momento se passou, então outro, o silêncio tenso, antes que


Ele finalmente falasse. — Você fez bem hoje.

Michael olhou para Ele. — Eu poupei um cretino.

— Você mostrou grande compaixão.

— Satanás ainda está aí fora...

— Não, ele não está. O dragão foi morto.

Confusão rastejou por Michael. Como poderia ser? Ele curou


Serah, a poupando da danação eterna em uma decisão impulsiva
alimentada por fraqueza e amor nostálgico, e tinha se dirigido ao Pai
deles no momento em que isso estava acabado. Ele deixou Satanás
sentado no meio da rua deserta, ainda segurando Serah nos braços, os
dois cobertos de sujeira.

Michael não teve a chance de matá-lo.

~6~
— Eu não entendo.

— Eu sei que não, filho.

Lentamente, Ele levantou sua mão, a girando no ar, e Michael


sentiu uma corrente de energia passar por ele quando seu Pai
facilmente limpou toda a sujeira sangrenta do seu corpo. O sol voltaria
a brilhar, as flores voltariam a desabrochar e a vida voltaria ao que
tinha sido antes.

Exceto que... agora ele não tinha mais Serah em sua vida.

— Eu só tentei obedecer suas ordens, Pai. Eu só queria cumprir


com o meu destino.

— O seu destino não era matar ele, Michael, — ele disse baixinho.
— Essa nunca foi a minha intenção. Na verdade, eu sequer tenho
certeza se você poderia ter feito isso. Há uma razão pela qual ele foi
aquele quem originalmente sentou ao lado do meu trono.

Essas palavras cortaram Michael profundamente, despertando


uma emoção humana em algum lugar dentro dele. Ciúmes.

— Eu só queria que o ódio dentro dele – o orgulho, a raiva, a


arrogância – que tudo isso finalmente fosse embora.

Seu Pai gesticulou na direção da cadeira ao lado do trono.


Michael instintivamente largou sua espada, o metal fazendo barulho ao
cair no chão, enquanto ele se adiantou e se sentou. Esse tinha sido o
seu lugar pelos últimos seis mil anos, dia após dia, noite após noite,
mas ele ainda sentia como se estivesse apenas o aquecendo para outra
pessoa. Ele ainda vivia na sombra de Lúcifer, julgado pelos incontáveis
pecados de Satanás.

— E então? — Michael perguntou. — O seu ódio foi embora?

Seu Pai inclinou a cabeça para o lado. — Eu não tenho certeza.

Michael olhou para Ele. Não tinha certeza? Ele era infalível. Ele
sabia tudo. Como Ele podia não ter certeza de algo como isso?

Seu Pai acenou a mão no ar novamente. Dessa vez o salão na


frente deles desapareceu e a rua deserta de Chorizon ficou à vista.
Estava tão limpo, tão perto, que era como se nada além de uma parede
de vidro fino os separasse.

— O seu irmão é peculiar.

~7~
— Meu irmão?

— Sim. Lúcifer.

Irmão. A palavra não trouxe a Michael nada além de dor de


cabeça. Seu irmão estava morto. Não estava?

— Apenas olhe para ele, — Ele continuou. — Ele está despido, e é


difícil saber o que ele vai se tornar quando suas paredes levantarem
novamente. Mas agora ele está ali sentando, a segurando em seus
braços – tão protetor, mas ainda totalmente indefeso. Ele sabe que
quando ela acordar não vai se lembrar dele, mas continua ali porque a
ama muito.

A voz de Michael foi um sussurro. — Eu a amei, também.

— Você amou, filho. E uma parte dela amou você. Mas há uma
razão pela qual eles dois receberam o mesmo nome.

Estrela da Manhã.

— E o que acontece agora? — Michael perguntou, olhando para a


imagem projetada. Lúcifer sentado em silêncio total, se agarrando a
Serah quando ela começou a se mexer. — Eu devo fazer com que ele
volte lá para baixo? Prendê-lo outra vez?

— Não, eu não acho que será necessário, — Ele disse. — Deixe


assim.

Michael ficou boquiaberto. Deixe assim?

— Sim, — Seu Pai disse, ouvindo os pensamentos de Michael,


sentindo a sua dúvida. — Vamos ver o que ele vai fazer agora que está
livre de novo.

~8~
Capítulo Um
O enorme castelo abandonado foi tomado pelo mal.

Demônios haviam vindo em bandos depois que o Apocalipse


chegou a um fim abrupto, descendo sobre o último lugar na Terra que
Lúcifer tinha chamado de casa. Eles consideravam essa a sua base,
esperando a palavra do seu líder. Ele não estava no Inferno, eles
pensaram, então onde mais poderia estar?

A Legião Negra, como eles se chamavam. Absurdo pra caralho.


Eles mais pareciam trapalhões idiotas e inúteis que ficavam sentados
esperando, brincando com os polegares como os bastardos sem valor
que eram.

Luce não tinha certeza se ficava lisonjeado ou frustrado. As mais


vis criaturas que já andaram sobre a Terra pareciam completamente
perdidas sem a sua liderança. Se Lire estivesse por perto, os teria
organizado como um exército de verdade, e ele não teria se deparado
com essa cena caótica quando chegou aqui.

Uma pena que Lire havia encontrado um fim trágico, sendo


transpassado pela espada de Michael. Luce quase lamentou não ter
protegido mais o poderoso demônio. Quase.

Isso o teria salvado dessa dor de cabeça, isso é certo.

Luce entrou no velho castelo. Os demônios imediatamente saíram


do seu caminho, a multidão se dividindo como se ele fosse Moisés e
eles, o Mar Vermelho.

Ele desejava poder afogar todos, essa desculpa patética de


exército.

Luce sempre exigiu que eles viessem a ele na forma humana, mas
a maioria agora ficava diante dele com a sua verdadeira natureza
exposta, a pura feiura em exibição para todos verem. Como eles
esqueciam fácil.

~9~
— Meu Senhor, — um demônio disse, um dos poucos que parecia
um mortal, uma solitária alma corajosa o bastante para entrar no seu
caminho e se dirigir a ele. Corajoso ou estúpido? O demônio baixou a
cabeça como sinal de respeito. — Bem-vindo de volta.

Luce empurrou a criatura, não se incomodando em responder, e


fez seu caminho diretamente até o trono de ouro. Ele se jogou no
assento, seus olhos brilhando no mar de monstros, enquanto ele
gesticulava para as grades portas duplas. — Saiam daqui.

Eles não hesitaram, se empurrando e puxando para sair da sala,


não esperando para encarar a raiva que podia ser ouvida na sua voz. A
criatura que tinha se dirigido a ele se demorou, olhando Luce com
curiosidade, enquanto dava alguns hesitantes passos para longe.

— Você, — Lúcifer disse, apontando para ele. — Como eles te


chamam?

— Volac, — o demônio disse.

— Você vai ficar no lugar de Lire enquanto ele está no seu retiro
sabático, — Luce disse. — Mantenha os outros longe de mim e me
informe quando Michael se aproximar.

— Sim, Meu Senhor, — o demônio disse, se curvando. — Tudo


que desejar.

Luce acenou para ele ir. — Agora vá.

Ele ficou ali sentado, tentando segurar tudo dentro de si,


enquanto esperava o castelo ser limpo, que as criaturas fossem embora
antes de tudo explodir. Energia se derramava dele em ondas, o chão
tremendo como um abalo sísmico, a pura força disso o suficiente para
estourar o que restava dos antigos vitrais. O vidro se partiu em milhões
de minúsculos fragmentos, voando milhas de distância como balas
irregulares, cortando e arranhando tudo que encontravam. A escuridão
tomou o castelo, o céu acima uma massa de nuvens negras, raios
luminosos as cortando enquanto chuva molhava a terra ao redor,
incitada por sua raiva amarga.

Os olhos de Luce arderam.

Ele uma vez disse a Serah que ele podia chorar, mas não fazia
isso. Depois de tudo, pelo que Satanás iria chorar? Nada.

Mas ninguém disse que ele era honesto.

~ 10 ~
Não importa o quanto ele lutasse, as lágrimas caíram dos seus
olhos, a umidade amarga e salgada escorrendo pelas suas bochechas,
alimentando a sua agressividade. Era assim que tinha que ser – ela era
um sacrifício que ele teve que fazer, um dano colateral na sua busca por
retaliação – mas não era como deveria acabar.

Ele não deveria perder tudo.

Ela não deveria significar tanto para ele.

Luce destruiu o castelo em um ataque de raiva, trazendo a


estrutura medieval aos seus pés enquanto as outras torres
desmoronavam como peças de dominó. Construído para um rei, mas
que não era páreo para o Rei do Inferno quando ele soltava a sua besta.
Ele desabou, a pedra se tornando poeira, soprada para longe pelo vento
com a força de um furacão que sua fúria despertou.

Ele não parou aí.

A terra ao seu redor foi aniquilada por um tornado furioso,


árvores foram arrancadas, a vida arruinada. Ele iria destruir metade do
mundo se isso fizesse com que ele erradicasse esses sentimentos. Ele
pulou de um lugar para outro, destruindo, desolando e liquidando
cidades a nada antes de se mover para a próxima. Uma e outra vez, isso
durou horas, um dia se transformando no seguinte. Ele aparatou de
volta na área remota no meio da Europa por volta do nascer do sol, o
mesmo lugar onde seu ataque de fúria começou, onde o castelo estava
uma vez.

Ou melhor, onde o castelo ainda estava.

A estrutura estava de volta no lugar, alta e robusta, exatamente


como tinha sido antes que ele a demolisse. Até mesmo os vitrais
estavam novamente intactos. Ele apenas olhou, suas lágrimas há muito
tempo secas, sua raiva diminuindo pela exaustão.

Seu Pai estava limpando a sua bagunça outra vez.

Tudo que ele tinha machucado, tudo que ele tinha matado foi
trazido de volta à vida, curado e arrumado como se ele nunca os tivesse
contaminado. Nunca os tivesse tocado.

Tudo menos ela.

O mundo recomeçou, o quadro negro foi limpo uma e outra vez,


mas Serah ainda tinha ido, perdida para ele.

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— Por quê? — ele gritou, tão alto que tudo ao redor estremeceu
outra vez. — O que você quer de mim?

Um brilho laranja banhou a terra com calor quando a


luminosidade do sol começou a se levantar. Quando a voz de Luce
ecoou através do céu, flores se abriram no chão aos seus pés,
desabrochando como se fossem uma mensagem. Os talos de flores rosa-
arroxeadas cobriram a terra, um peculiar odor desagradável enchendo o
ar.

Fazendo uma careta, Luce se abaixou e arrancou um talo do


chão. Cleome serrulata. A última vez que ele viu uma, Serah tinha
trazido uma consigo e passou para ele através do portão. Tinha sido a
primeira vez que ele a tocou, a primeira vez que ele sentiu o
formigamento sob a pele, o aperto no seu peito que ele sabia que
também sentia.

A lembrança daquela tarde o acertou com força, forçando seu


espaço no seu cérebro, não importa o quanto ele tentasse esquecer,
suas próprias palavras o assombrando. Ele não podia escapar.

— Nosso Pai ofereceu mais liberdade a elas do que a nós. Essas


coisas fazem o que querem sem arrependimentos, crescem onde flores
não deveriam crescer, tomam conta de campos e passam por cima de
tudo que vive ali, matando tudo que vive ali, e ainda assim são
consideradas uma das suas mais magníficas criações. Uma maldita
planta tem mais clemência do que eu.

— Uma planta não pensa. Ela não faz decisões conscientes.

— E os mortais? — ele perguntou. — Os Seus amados humanos.


Sua criação favorita. Ele os absolve de tudo, basta eles pedirem. Por que
a mim não foi mostrada a mesma compaixão? Eu nem tive a chance de
me desculpar.

Serah o encarou. — Você teria se desculpado?

— Não. Eu não fiz nada de errado.

Luce riu amargamente para si mesmo, fechando a mão em um


punho, esmagando a flor antes de jogá-la no chão.

Mensagem recebida.

Mas se Deus estava esperando desculpas, ele ia esperar por um


maldito tempo muito longo.

~ 12 ~
*****

Incontáveis luzes coloridas ricocheteavam no Mar Vermelho essa


noite, cercando a cidade de Eilat como um arco-íris vibrante. Luce
estava ao longo da costa, olhando para a escuridão, observando como
as estrias de cor ondulavam e balançavam nas ondas. A água fria
lambia seus pés descalços em intervalos regulares, recuando antes de
correr de volta para ele, uma e outra vez.

Ele saboreou a sensação quando enviou os dedos dos pés na areia


molhada, se lembrando de um tempo, não muitos dias atrás, quando a
água fervia na sua presença, um mar de lodo sangrento que ele mesmo
havia criado.

Ele durou somente alguns dias, embora cada traço da sua


presença – cada traço da Grande Batalha que tinha sido travada nesse
solo sagrado – havia sido apagado. Removidos da existência e da mente
das pessoas que viviam e trabalhavam junto à costa. Eles todos já
tinham esquecido, enquanto Luce permanecia amaldiçoado a se
lembrar de tudo.

Cada detalhe sórdido, cada erro, cada segundo de dor de cabeça


havia sido marcado no seu cérebro, claro como no momento em que
aconteceu. O caos com que ele se acostumou nos últimos seis mil anos
– o choro por clemência, os gritos de dor agonizante que
constantemente tentavam sair do confinamento dentro da sua cabeça –
foi substituído por algo totalmente novo: silêncio absoluto.

Não havia ninguém, nada para lhe fazer companhia, exceto suas
lembranças incômodas. Ele ainda estava ligado à Rede dos Anjos, mas
eles agora sabiam que ele estava ouvindo. Os anjos o bloqueavam dos
seus pensamentos, silenciando suas conversas para mantê-lo no
escuro, sussurrando ocasionalmente em códigos para ele não entender.

Blá blá porra blá... nada além de besteiras.

Isso nunca tinha fim.

Luce pensou que era isso que ele queria – o silêncio, a paz – mas
ele não antecipou a solidão. Ninguém o incomodava, ninguém vinha até
ele, ninguém parecia sequer preocupado com ele.

Por quê?

~ 13 ~
Um estalo alto de eletricidade estática abalou o ar atrás dele
quando ele estava considerando isso. Luce tencionou, esperando que o
cheiro desagradável do seu irmão assaltasse seus sentidos, como se
talvez ele tivesse se conjurado, mas em vez diz um peculiar perfume
picante chegou até ele.

Uísque e charuto?

— Bem, eu vou ser amaldiçoado 1, — uma voz vagamente familiar


disse, baixa e rouca, com uma pitada de sotaque escocês.

Luce sorriu para si mesmo ao reconhecer. — Você quase já foi


amaldiçoado.

— Quase, — ele concordou. — Mas, diferente de você, eu criei


juízo.

— Não, diferente de mim, você perdeu a porra da coragem.

Uma gargalhada ressoou. — Touché, meu amigo.

Amigo.

Luce se virou, olhando para longe da água brilhante para ver seu
velho amigo pela primeira vez em eras. — Abaddon.

Abaddon era alto, vestia um terno azul escuro, suas asas brancas
brilhantes reluzentes na escuridão. Havia algo afiado nele, sua
mandíbula esculpida, seu nariz pontiagudo, suas sobrancelhas
arqueadas com condescendência.

Sua expressão parecia dura, mas diversão dançava em seus olhos


azul-claros, um forte contrate com sua pele bronzeada e cabelos pretos,
puxados para trás na altura da nuca.

— Luce, — ele disse. — Que grande entrada você fez, quase


destruindo o planeta quando se viu livre. Os caras lá em cima estavam
surtando. Eles pareciam pensar, por um momento, que você teria
sucesso.

— Aposto que sim, — Luce disse. — Mas, em minha defesa,


bem... esqueça. Foda-se. Eu não tenho defesa.

E nem desculpas.

Abaddon riu. — Você nunca teve.

1 É uma frase que, em inglês, tem o sentido de ―eu não acredito nisso‖.

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Um silêncio confortável se assentou entre eles por um momento,
antes de Luce deixar escapar um suspiro profundo. — O grande homem
enviou você?

Abaddon balançou a cabeça. — Não. Eu apenas queria te ver com


os meus próprios olhos.

Luce levantou as mãos a apontou para si mesmo. — Bem, dê uma


boa olhada, porque é só uma questão de tempo antes de eu ir embora
outra vez.

Para ser sincero, Luce estava surpreso por ainda estar na


superfície. Depois que Michael poupou Serah, ele esperava que seu
irmão o mandasse imediatamente de volta para o seu buraco. Ele não
teria lutado – lutar era inútil. Luce jogou sua última carta e perdeu a
partida final.

Mas em vez de bani-lo – em vez de puni-lo – Michael tinha


simplesmente partido. Um segundo antes dele desaparecer, um brilho
cintilante o cercou, se prendeu a ele e o levou para longe. Era algo que
Luce sabia que mais ninguém podia ver, nem mesmo os anjos
bastardos de baixo nível como Abaddon, mas o que ainda restava de
Arcanjo nele pôde detectar. Ele ainda podia sentir um pouco disso, a
sensação formigando em sua pele.

Seu Pai tinha chamado Michael.

E desde o seu acesso de raiva de mais cedo, Luce havia apenas


vagado pela Terra, pulando de um lugar para o outro enquanto
esperava Michael reaparecer para acabar o que eles começaram.

— Não, você não vai a lugar nenhum, — Abaddon disse. — Não é


como se você tivesse para onde ir, certo?

— Certo, — Luce soltou a palavra, encarando o anjo com


estranhamento. Ele podia detectar uma pitada de confusão na voz dele.
Ele sabia quando alguém estava buscando informações. Você não pode
enganar um vigarista. — Não venha com besteiras para mim, Don. Por
que você realmente está aqui?

Casualmente, Abaddon encolheu um ombro. — Curiosidade.

— Sobre o quê?

Uma hesitação de uma fração de segundo. — Sobre porque você


desistiu tão fácil.

~ 15 ~
Aí estava.

Luce encarou seu velho amigo enquanto a pergunta afundava. Ele


não disse isso, mas Luce sabia o que ele realmente queria dizer com
essas palavras. — Você quer saber se os rumores são verdade.

Apenas dos anjos tentando manter silêncio, alguns dos seus


sussurros podiam ser ouvidos. Ele ouviu as fofocas. O notório Lúcifer,
Rei do Inferno, afirmou conhecer o amor novamente.

Insondável.

— Então? — Abaddon perguntou. — Alguém realmente conseguiu


domar a fera?

Luce riu amargamente, se virando para longe do anjo intrometido


para olhar de novo para a água. — Por que isso importa?

— Porque é você, — Abaddon estava ao seu lado em um piscar de


olhos, o encarando. — Você é o guerreiro, o rebelde, o único corajoso o
bastante para lutar contra esse sistema arcaico sem arrependimentos.
Nós ainda acreditamos em você. Nós...

— Covardes, — Luce disse, o interrompendo. — Vocês são


malditos covardes. É isso tudo o que você são.

Há muito tempo atrás, antes que ele fosse preso na cova, antes
que ele perdesse tudo que lhe significava alguma coisa, Luce tinha
construído uma rede de seguidores, uma aliança de anjos rebeldes que
acreditavam na sua causa. Seu exército tinha sido forte, formidável,
tanto que ele acreditava no seu sucesso garantido.

Isso foi até os problemas começarem a aparecer e metade


daqueles ao seu lado se retirarem da batalha. Eles se renderam,
imploraram por misericórdia e lhes foi concedido perdão. Abaddon não
tinha sido apenas o segundo em comando de Luce, ele tinha sido seu
amigo mais próximo, e a sua deserção foi algo que Luce nunca
realmente aceitou.

Ele o abandonou quando as coisas ficaram difíceis.

Se Luce tivesse que ranquear os piores momentos da sua


existência, a traição de Abaddon estaria lá em cima, junto com o dia em
que ele foi jogado naquele buraco pelo seu próprio irmão.

Mas nada disso chegava perto da dor de perder Serah.

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— A hora não era certa, — Abaddon disse, tentando se defender.
— Nós estávamos destinados a perder.

— E o faz as coisas diferentes agora?

— Você tem incentivo.

— E eu não tinha antes?

— Você queria isso antes, mas precisa disso agora. Antes isso era
apenas sobre lutar pelo que você achava justo... mas agora é sobre
conseguir vingança por como você foi injustiçado.

A raiva cresceu dentro de Luce, revirando suas entranhas. Ele se


virou para Abaddon, sua expressão escurecendo. — Você não sabe nada
sobre como eu fui injustiçado.

Abaddon deu um passo para trás, levantando as mãos


defensivamente. — Você está certo. Eu só posso imaginar, e tenho
certeza que o meu maior pesadelo não chega nem perto de uma fração
da realidade. E é por isso que nós pensamos que era certo que você ia
vencer. Até mesmo eles pensaram que você ia vencer. Mas então você
apenas recuou, se retirou... por quê?

Fechando os olhos, o momento passou bem diante dele – o


momento em que Serah perdeu a sua Graça. — Eu tinha o que eu
queria.

— Ela? — Abaddon perguntou. — A Potestade? Serah? Me


desculpe se eu estou enganado, mas você não a tem agora, tem? Mais
uma coisa que eles tiraram de você.

Sua voz tinha uma nota de incredulidade que só fez a raiva de


Luce crescer ainda mais. Ele não quis dizer que tinha ela. Ele quis dizer
que teve a sua vingança, teve o seu sabor da liberdade, mas ouvir o
nome dela nos lábios de Abaddon despertou seu ressentimento. — Eu
desisti dela. Há uma diferença.

Abaddon lhe deu um tapa nas costas e balançou a cabeça. —


Continue dizendo isso a você mesmo, amigo.

Luce não disse nada em resposta, olhando para a água colorida


outra vez, tentando absorver um pouco da tranquilidade para acalmá-
lo, mas era inútil. Ele não podia tomar nenhuma luz quando tanto dele
ainda estava consumido pela escuridão.

~ 17 ~
Abaddon deve ter entendido o seu silêncio como o fim da
conversa, porque ele deixou escapar um suspiro exagerado e se virou,
começando a se afastar. Depois de alguns passos, ele parou. — Nós
ainda acreditamos, Lúcifer. Esse mundo deveria ser nosso, não deles.
Se você decidir lutar pelo que foi roubado de você... se você decidir
tomar uma posição... tenho certeza que você vai saber onde me
encontrar.

Com um estalo ele se foi, desaparecendo na atmosfera, deixando


Luce mais uma vez em silêncio... mais uma vez com a sua solidão.

*****

— Nome?

— Serah… eu acho.

— Último nome?

Serah deu de ombros. Será que ela já teve um?

— Data de nascimento?

— Eu não tenho certeza.

O homem olhou por cima do seu computador decrépito e estudou


Serah através de um par de óculos de aros de aço grossos que estava
empoleirado na ponta do seu nariz. Ceticismo marcava seu rosto
rechonchudo. — Você parece estar no começo dos vinte. Qual a sua
educação? Ensino Médio? Faculdade?

— Eu não faço ideia.

Ele suspirou exageradamente enquanto se inclinava para trás em


sua cadeira de escritório barulhenta. O pequeno cubículo, que
dificilmente tinha o tamanho de um closet, estava cheio com pilhas e
mais pilhas de papeis. — Me deixe ver se eu entendi direito; você não
tem certidão de nascimento, não tem CPF nem registro de identidade;
você nem ao menos tem total certeza do seu nome; você não tem
endereço anterior, nem endereço atual, e não tem meios de arranjar
um; você não tem nenhuma educação formal, zero referências e zero
experiência. Ainda assim, você esperava que eu encontre um trabalho
para você hoje?

~ 18 ~
Serah acenou. — Sim.

Isso parecia certo para ela.

Ele olhou para ela com descrença por um momento, antes de se


arrumar na cadeira, seu olhar voltando para a tela do computador. —
Eu vou ver o que posso fazer.

Serah se mexeu na desconfortável pequena cadeira cinza


enquanto o observava digitar algo no teclado. Algo no homem careca e
baixinho com calças marrons puxadas até a cintura a encantou no
momento em que ela pisou no Comitê do Emprego de Chorizon, tanto
que ela ficou sentada a tarde toda, se recusando a ser atendida por
mais alguém, enquanto esperava que ele estivesse disponível para
ajudá-la. Uma estranha intuição, lá no fundo, lhe disse que ele era o
único com quem ela deveria falar sobre emprego.

— Você tem alguma habilidade especial?

— Não que eu saiba.

— Você consegue digitar?

— Acho que eu posso tentar.

— Você já dirigiu um carro?

Uma risada fez cócegas no seu peito, inesperada e inexplicável. —


Sim, embora eu não lembre onde ou quando ou como, mas tenho
certeza de que já dirigi antes.

Ele digitou por mais um longo momento enquanto Serah


estudava sua pequena mesa de madeira, sobrecarregada com material
de escritório, sua placa de identificação desbotada com o nome Douglas
Barnhart. Grunhidos de frustração ecoaram dele por um tempo quando
ele desistiu do computador e voltou a lhe dar atenção. Ele a encarou, os
olhos estreitados como se ele a pudesse ler.

— Olhe moça, esse escritório não pode ajudar você.

— Mas? — ela sabia que havia uma ‗mas‘. Ela podia ouvir na voz
dele.

— Mas eu talvez consiga fazer algo.

Serah sorriu radiante enquanto saltava da cadeira e dava a volta


na mesa, surpreendendo o homem quando o apertou em um abraço. —
Muito obrigada, Sr. Barnhart.

~ 19 ~
— Opa, espere, você não quer ouvir o que é antes de comemorar?

— Oh, — ela voltou a se sentar. — Sim, é claro.

— Minha mãe é dona de um pequeno estabelecimento do outro


lado da cidade, o Motel Barnhart2. Ela mencionou que está contratando
alguém para ajudá-la. Não é nada glamoroso, você sabe... a principal
tarefa é limpar os quartos e coisas assim. E mesmo que não pague
muito, acho que consigo um lugar para você ficar.

— Parece maravilhoso!

— É?

— Totalmente.

Ele acenou enquanto pegava o seu telefone. — Eu vou ver isso


agora mesmo.

Ela o observou, satisfação tomando seu corpo. Ela sabia que ele
iria ajudá-la. De alguma forma, ela sabia.

*****

Sete de paus.

Dez de copas.

Dois de espadas.

Rei de paus.

Seis de copas.

2 Para entender melhor, esse lugar é tipo isso:

Nos EUA se chama motel, mas é


diferente do que nós entendemos como motel no Brasil. Lá é mais um lugar para se
passar uma noite rápida, mas sem a conotação sexual.

~ 20 ~
Seis de ouros.

Seis de espadas.

Luce riu amargamente de si mesmo, olhando para as cartas sujas


espalhadas no asfalto à sua frente. Ele se sentou ao lado da Escola
Primária de Chorizon, encostado contra a parede de tijolos e encarando
o pátio vazio.

Seis. Seus. Seis. Que piada de merda.

Ele jogou no chão o resto das cartas, descartando o baralho. Isso


era inútil. Não havia nenhum sentido em jogar sem um oponente.

Mas o que mais havia para fazer?

Ele tinha se perguntado isso por semanas, sozinho e totalmente


entediado, de alguma forma acabando aqui, onde tudo tinha começado.
Não era um lugar muito longe dos portões... tão perto, na verdade, que
Luce podia sentir a poderosa energia emanando deles. Havia uma
pulsação no ar que o alcançava, o tentando a voltar ao território
familiar.

Ele estaria mentindo se dissesse que não tinha considerado isso.


Ele era dez vezes mais forte agora que não estava mais marcado, não
estava mais amaldiçoado nem confinado por magia. Ele podia
voluntariamente passar pelos portões, direto para a cova escura, e
recomeçar de onde ele parou, fazendo da vida de todos ao seu redor um
inferno.

Literalmente.

Mas algo o impediu. Algo o parou, e o mantinha aqui em cima,


firme nessa pequena cidade.

Assim que o pensamento cruzou a sua mente, ele sentiu uma leve
essência familiar e uma centelha de energia no ar ao seu redor. Seus
olhos cuidadosamente estudaram o pátio e as ruas ao redor até que ele
a viu.

Serah.

Ela estava diferente agora, com as bochechas coradas e a batida


do coração tão forte que ele podia ouvir de onde estava sentado, mas
resquícios do anjo ainda apareciam no seu corpo. Sua essência estava
intacta, o chamando, de alguma forma se conectando com uma parte da

~ 21 ~
sua alta tão fortemente que ele quase podia sentir a batida do coração
dela no seu próprio peito.

Provavelmente porque você roubou a Graça dela, imbecil.

Permanecendo imóvel, sentando no chão sujo, Luce a observou


em silêncio. Ela estava casualmente passeando pela rua, aproveitando o
sol da tarde. Felicidade a cercava, como um brilho quente, um fato que
vez Luce sorrir e violentamente doer.

Acho que a ignorância é realmente uma benção.

Ela parou perto do centro comunitário, suas sobrancelhas se


juntando levemente enquanto ela olhava ao redor. Ela estava
procurando por algo, mas o que, Luce não sabia.

Ele não podia ouvir os seus pensamentos.

Ele sentia a conexão com ela, no entanto. O que ainda havia de


anjo nela reconheceu algo no ar. Luce podia dizer pelo jeito que o brilho
a cercando aumentou, como uma faísca pegando fogo.

Enquanto ele olhava para Serah, desesperadamente tentando


encontrar algo na sua mente em branco, um estalo de eletricidade
estática ecoou pelo parque. Ele forçou seu olhar naquela direção, pego
de surpresa pela presença de outro anjo, aparentemente uma mulher
de vestido vermelho e cabelo loiro cacheado. Uma Virtude, uma das
habitantes da natureza. Ela parou a apenas alguns metros dele, seu
olhar focado em Serah do outro lado da rua.

O anjo protegeu seus pensamentos, sua mente propositalmente


bloqueada para Luce. Ele forçou, seu protecionismo o obrigando a
tentar ter alguma ideia da sua missão, de descobrir o que diabos ela
queria de Serah, mas sem sucesso.

A atenção do anjo virou para ele quando ela sentiu ele tentando
invadir sua mente, seus olhos estreitados. — Você não pode roubar os
meus pensamentos, Satanás.

Satanás. Cara, ele ainda odiava esse apelido fodido. — É bom ver
você também.

— Bom? — ela bufou, uma hostilidade na voz que ele não sabia
que os da sua espécie eram capazes de possuir. — Não há nada de bom
na sua existência. A sua presença envenena o ar, ameaçando tudo que
eu jurei proteger.

~ 22 ~
Ele a encarou. Muito dramática?

— Você, cobra, é o maior inimigo da Terra, — ela continuou. —


Você é uma abominação. Um erro.

Ele inclinou uma sobrancelha para ela. — Eu pensei que o papai


não cometia erros.

Ela andou na direção dele, brilhando. Cara, ela estava furiosa. —


Você não tem compaixão, não tem remorso. Você pode estar livre no
momento, mas isso não vai durar para sempre, porque eu vou ter
certeza que você pague por tudo o que fez.

Durante seu ataque de raiva, sua guarda baixou, e Luce foi capaz
de enxergar seus pensamentos descontrolados. Hannah era o seu
nome. Serah esteve ao seu lado desde o início dos tempos, e ela nutria
uma profunda indignação por ter perdido sua melhor amiga.

— Cuidado, Hannah, — Luce disse baixinho, olhando para longe


dela. — A sua raiva está aparecendo.

Sem responder, Hannah evaporou, o estalo de estática alto. Luce


olhou de novo para a rua, e descobriu que Serah já tinha ido.
Suspirando, ele juntou suas cartas e as deslizou no seu bolso por
precaução, antes de se levantar e se afastar da escola, determinado a
encontrá-la.

Serah tinha focado sua atenção em outra área e seguiu


caminhando pela rua. Luce a seguiu, as mãos desnecessariamente
enfiadas nos bolsos da sua calça preta, os pés descalços se arrastando
contra o concreto.

Ele não tinha motivos para segui-la, além dos que o estavam
deixando louco. Talvez ele ainda tivesse a sua dose de sofrimento a
passar, porque vê-la e não poder falar com ela, ou estar com ela, era,
sem dúvida, o pior tipo de tortura que existia. Poucas vezes ele pensou
em tocá-la. Ela não iria sentir, ou não ia saber o que tinha sentido, o
toque de um anjo era um pouco mais que uma cócega, ressonando
profundamente dentro deles, mas ele sentiria.

E se ele a tocasse, suspeitava que não seria capaz de deixá-la ir.


Ele não tinha sido nem corajoso o suficiente para chegar tão perto a
ponto de isso poder acontecer.

Talvez ele fosse o covarde agora.

~ 23 ~
Ele a seguiu o dia todo enquanto ela caminhava para lá e para cá.
Ele podia ouvir alguns dos pensamentos daqueles que ela encontrava,
ouvir sua avaliação da jovem mulher que sempre sorria e nunca parecia
estar com pressa para chegar a lugar nenhum.

Eles pensavam que isso era estranho, como ela parava e cheirava
as flores quando encontrava algumas.

Luce pensava que isso não era nada além de lindo.

*****

Serah puxou o vestido preto justo enquanto se olhava no espelho,


casualmente arrumando o avental branco preso à cintura. Era um
grande contraste, o preto e o branco, a luz e a escuridão contra a sua
pele pálida.

Nem tudo é preto no branco.

As palavras peculiares ecoaram pela sua mente, sussurradas em


uma voz que não era a dela. Ela não tinha certeza de onde vieram, ou o
que significavam, mas as palavras a varreram como se fossem um
evangelho.

O quarto era apertado, mal tinha espaço o bastante para a velha


cama de casal. Havia um banheiro, no entanto, uma pequena televisão
e até mesmo um frigobar no canto. Ele tinha ar-condicionado e
calefação, além de água e energia, dando a Serah quase tudo que ela
precisava.

Ele não era perfeito, mas ela não iria arriscar reclamar. Ela tinha
um trabalho e um lugar para ficar, duas coisas que ela acordou sem. O
tempo após o misterioso acidente que lhe deixou sem memória foi
preenchido com médicos e quartos de hospital estéreis, camisolas com
as costas abertas e centros de reabilitação. Eles a picaram e
monitoraram, interrogaram e investigaram, antes de simplesmente
colocá-la na rua e lhe desejar boa sorte.

Comparado com isso? Aqui era praticamente o Paraíso.

— Toc, toc.

~ 24 ~
Serah olhou na direção da porta aberta quando Gilda Barnhart
entrou no quarto. Ela parecia muito com o filho, rechonchuda e amável,
com o cabelo na fronteira entre o loiro e o branco.

— Olá, — Serah a cumprimentou, sorrindo carinhosamente.

— Vejo que o uniforme serviu.

Alisando o material, Serah olhou para si mesma. — Com certeza


serviu.

— Então, eu trouxe o seu carrinho aqui para cima e o deixei no


corredor, — Gilda disse. — Há somente dois quartos ocupados hoje, 7A
e 21B. Você vai querer falar com a recepção pelas manhãs para saber a
lista de novos hóspedes, mas só para você saber, sua chave é universal.

Serah puxou do bolso do vestido a chave que lhe foi dada quando
a contrataram. Era um cartão que, quando passado, abriria qualquer
porta no motel. Ela olhou para ele, passando os dedos pela faixa
magnética. — Obrigada.

— Claro, — ela respondeu. — É ótimo ter você na equipe.

— É ótimo estar aqui, — Serah disse, querendo realmente dizer


isso.

Gilda lhe deu um rápido resumo do que fazer, o que eram serviços
de limpeza básicos, nada que Serah não podia lidar. A mulher saiu com
um sussurro de boa sorte, deixando Serah com as suas obrigações.

Nenhum dos quartos ocupados tinha gente quando Serah entrou


para limpá-los. Ela rapidamente arrumou os dois e terminou tudo em
uma hora. Ela retornou ao saguão do motel e se aproximou de Gilda,
que estava sentada atrás da mesa da recepção.

— E agora? — ela perguntou.

— Nada, — Gilda disse. — É isso.

Era isso? Não parecia muito trabalho para Serah. As pessoas


trabalhavam das nove às cinco, não era? Agora não eram nem dez
horas da manhã. — Você tem certeza?

— Claro, — Gilda disse. — Aproveite o resto do dia.

Dando de ombros, Serah saiu do saguão e estava a caminho do


seu quarto quando alguma coisa do outro lado da rua chamou sua
atenção. Seus passos vacilaram brevemente. Era um homem, todo de

~ 25 ~
preto, com o cabelo escuro mais curto dos lados e dramático. Ele era
lindo de um jeito áspero, seus traços afiados, sua expressão estoica
como a de um guerreiro, mas não foi isso que a fez parar.

O que a fez parar foi a faísca de reconhecimento.

Ela já o tinha visto antes.

Ele estava olhando para ela.

Havia algo de estranho nele, o jeito como ele estava parado tão
imóvel que era quase como se não estivesse respirando, um poste ao
longo da rua, vivo como as árvores, mas sem balançar com o vento. Ela
lembrava do seu rosto, um rosto que ela tinha visto antes, a encarando
quando ela acordou na rua, sua mente em branco. Sem nome, sem
identidade, sem senso de direção, mas os seus olhos eram tão
familiares como olhar para o seu próprio reflexo.

Seus lábios se abriram quando ela tentou pensar no nome dele.


Ela sabia... ela podia sentir... mas não conseguia lembrar, não
importava o quanto tentasse. Ela piscou rapidamente, tentando
recordar por pura força de vontade, mas escapou dela.

Assim como ele.

Mais uma olhada para o outro lado da rua e o homem tinha ido
embora, como se tivesse desaparecido no ar.

*****

Pecado.

Ele estava em todos os lugares.

Ganância. Raiva. Preguiça. Orgulho. Inveja. Gula. Luxúria.

Luce podia sentir isso permeando o ar como uma névoa, o


tornando mais denso enquanto ele se aproximava do par na periferia da
cidade. O lugar parecia decadente, como os restos de um saloon há
muito tempo abandonado, o antigo alpendre caindo aos pedaços, as
janelas quebradas, mas as pessoas ainda o frequentavam.

Pecadores.

~ 26 ~
Era um lugar que ninguém com um mínimo de respeito próprio
iria colocar os pés, então Luce não se surpreendeu nem um pouco que
a essência de Abaddon estava por todos os lados. Enquanto anjos não
podiam tecnicamente sentir, as emoções dos seres humanos desinibidos
tendiam a ter um efeito nos Guardiões. Os pecados eram puro poder no
ar, o que os chamava como um sinal de emergência, alimentando a sua
energia.

Quanto mais depravação, mais fortes os Guardiões.

Luce podia sentir os humanos porque ele foi amaldiçoado, caiu do


Paraíso, foi preso em sensações, mas Abaddon era o mais perto de um
mortal que os anjos tinham. Humanos muitas vezes representavam
Anjos da Guarda como salva-vidas, guias que os mantinham seguros,
mas com muito mais frequência os guardiões eram completos idiotas,
passando os dias se misturando com os humanos e rindo dos seus
erros. E eles certamente não eram bonitos como todas as pinturas os
retratavam.

Abaddon, por exemplo, parecia a porra de um pirata que não


tinha se preocupado em tomar banho em semanas.

Luce permaneceu do lado de fora do bar por um momento,


absorvendo as sensações desagradáveis, antes de finalmente entrar.
Seu olhar foi imediatamente para Abaddon, sentado casualmente sobre
o balcão, bem ao fim do bar, inclinado contra a parede, suas asas
totalmente abertas.

Filho da puta metido.

Ninguém o via.

Ninguém sabia que ele estava aqui.

Ele levantou o olhar quando Luce se aproximou, um sorriso


malicioso torcendo seus lábios. — Ora, ora, ora... se não é o Príncipe
das Trevas.

Luce sentou no banco à sua frente, se recusando a responder ao


título. Era quase tão ruim quanto Satanás. — Don.

— O que o traz aqui?

Verdade seja dita, Luce não sabia. Ele apenas estava cansado de
andar por aí sozinho. — Eu estava por perto.

~ 27 ~
Abaddon riu. — Não se pode dizer que um Arcanjo já andou por
essas partes antes.

— Sim, bem, eu não sei se eu conto, — Luce disse. — Eu sou


mais um híbrido hoje em dia.

Curiosidade brilhou nos olhos de Abaddon. — Você ainda tem


suas asas, certo?

— Sim.

— Então você conta.

Luce não concordava, mas não discutiu. Arcanjos eram sagrados,


e Luce estava tão longe disso quanto possível. Ele se encaixava mais
aqui, com esses ingratos, do que com os tipos divinos alados.

Uma mulher andou até eles, sentando no banco bem ao lado de


Luce, chamando o garçom distraidamente. Ela pediu duas doses de
tequila para ela e suas amigas, e ficou ali, batendo suas longas unhas
cor de rosa no bar enquanto esperava. Seu cabelo loiro platinado era
provocativo, seu vestido preto era justo e curto, e um grande decote
mostrava os seios.

Luxúria a cobria como um perfume.

Abaddon permaneceu no seu lugar no bar, seu olhar fixo nos


seios da mulher, que balançavam e saltavam sempre que ela se mexia.
Luce balançou a cabeça para o desejo óbvio do anjo, e não precisava ler
seus pensamentos para saber o que o seu velho amigo estava pensando.

— Então, como você faz isso? — Luce perguntou, levantando uma


sobrancelha.

— Faço o quê? — Abaddon perguntou sem sequer olhar para ele.

— Mantém a sua Graça, — Luce disse. — Sua mente é tão


corrompida quanto a de qualquer um nesse lugar.

— Ah, eu penso sobre isso, mas não ajo, — Abaddon disse, se


virando para ele quando a mulher se levantou e saiu com o seu álcool.
— Meus pensamentos podem ser impuros, mas eles ficam para mim e
eu resisto à tentação, então Ele perdoa o meu mau comportamento.

— Não é assim que funciona.

— Se confessamos os nossos pecados, Ele é fiel e justo, nos


perdoa por nossos pecados e nos purifica de toda a injustiça, —

~ 28 ~
Abaddon disse, sua voz monótona ao recitar as escrituras. — Talvez
você precise tirar a poeira da sua Bíblia, amigo.

Uma faísca de raiva subiu pela espinha de Luce. — Eu não


preciso ler isso. Eu vivi isso. Perdão é para eles, não para nós.

— Você está errado, — Abaddon disse. — É um mundo diferente


agora do que quando você foi mandado lá para baixo. As coisas
mudaram.

— Por quê? — a pergunta deixou os lábios de Luce como um


rosnado. — Por que é diferente agora?

— Por sua causa, — Abaddon disse. — Perder alguém especial


muda você. Se o filho favorito de Deus pôde ir tão longe, cair tão
duramente, então ninguém estava imune. Acho que Ele percebeu que
nós não éramos infalíveis como ele gostaria, e se Ele não nos estendesse
a mesma cortesia, o mesmo perdão, Ele acabaria perdendo muito mais
do que podia suportar.

Essa explicação não fez nada para acalmar a raiva de Luce. Era
por isso que ele tinha lutado, pelo que ele tinha perdido a sua Graça e o
que o fez ficar milhares de anos preso no Inferno, punido por ousar
questionar seu Pai, e assim que ele se foi, todos ganharam exatamente
o que ele queria. Como isso era justo?

— Não é justo, — Abaddon concordou, entrando nos


pensamentos de Luce quando sua guarda baixou, sua raiva abrindo a
sua mente. — E ainda não é o bastante, francamente. Sim, nós somos
livres para pensarmos o que queremos, mas ainda somos punidos
quando fazemos o que queremos. Se eu escorregasse e agisse pelos
meus impulsos, Michael apareceria aqui para me aniquilar. Quantos
irmãos e irmãs nós já perdemos como vítimas da tentação? Azreal,
Dinah, Benjamin, Luna, Maylin, Samuel...

Luce o cortou. — Samuel escolheu cair.

— Pior ainda, — Abaddon zombou. — Olhe o que aconteceu com a


sua irmã.

Luce tencionou com a menção à Serah, a dor amarga correndo


profundamente.

— Sexo é perdoável... esperado... entre aqueles que estão


apaixonados, comprometidos um com o outro, mas o que acontece
quando aquele que você ama não pode te amar de volta? — Abaddon

~ 29 ~
perguntou. — Como é justo ela perder a sua Graça por amar alguém
incapaz de amar?

Aquelas palavras foram como uma faca em seu peito, cortando


algo dentro de Luce. Ele saltou do banco, agarrou o colarinho de
Abaddon e o arrancou do bar em um piscar de olhos. Abaddon atingiu o
chão com força, a corrente de energia do impacto derrubando o banco,
o que fez as pessoas no bar olharem assustadas. Eles não viam o
Guardião preso ao chão, não viam o anjo caído em cima dele,
pressionando sua lâmina dourada celestial na garganta do seu velho
amigo.

Abaddon deitou imóvel, os olhos arregalados de surpresa. As asas


pretas enormes de Luce brotaram das suas costas, derramando o bar
em sombras, como se a luz tivesse diminuído. A eletricidade falhou e as
luzes piscaram lá fora, um trovão foi ouvido ao longe, enquanto Luce
colocava a raiva para fora, sem domar a energia negativa que
novamente tinha começado a crescer dentro dele.

Ele geralmente cuidava disso na cova, dia após dia, torturando os


habitantes do Inferno. Aqui em cima isso não tinha para onde ir, fervia
dentro dele, estalava sobre a sua pele. Suas narinas queimaram, os
olhos pretos como a cova, brilhando vermelhos enquanto ele mirava
Abaddon, a lâmina quase cortando a pele.

Ele podia fazer isso. Ele podia enfiar a faca e puxá-la de volta sem
sentir um pingo de dor de cabeça, livrando o Guardião da sua miséria.
Sua Graça explodiria e Luce podia sentir o formigamento de
antecipação em sua pele. Um pouco disso era absorvido pelo seu
sistema, e era algo que ele desejava, como um viciado precisando de
outra dose.

Sim, ele podia fazer isso.

Talvez ele fizesse.

Lentamente um sorriso curvou os lábios de Abaddon, enquanto


ele relaxava as costas contra o chão. — Esse é o Lúcifer que eu me
lembro... cheio de paixão, nada de fingimento.

Luce olhou para ele por um momento antes de afastar a lâmina


do seu pescoço e colocá-la em segurança. Ele se levantou, suas asas
desapareceram e Abaddon pulou de pé. O anjo arrumou suas roupas
enquanto balançava a cabeça, voltou para o bar e se sentou no balcão.

~ 30 ~
— Você pode não admitir em voz alta, mas posso ver em seus
olhos, — Abaddon disse. — A ideia de ter o mundo para você ainda o
intriga. Você quer isso... que o que roubaram de você.

A mulher de antes reapareceu, levantou o banco derrubado e se


sentou, sem notar que roçou contra Luce. Ela pediu mais doses e a
atenção de Abaddon voltou para ela, seus olhos estudando seu corpo
como se estivesse analisando uma obra de arte.

— E tudo que eu estou dizendo, — Abaddon disse, — é que tão


bom quanto olhar pode ser, um dia eu gostaria de poder tocar.

— E o que isso tem a ver comigo?

Abaddon esperou até a mulher se afastar novamente para olhar


para Luce. — Tudo.

~ 31 ~
Capítulo Dois
Seis meses é um piscar de olhos quando você é eterno.

Horas se tornaram dias, que se tornaram semanas, que se


tornaram meses. Luce mal tinha registrado o passar do tempo. Depois
do inverno veio a primavera, que de alguma maneira se transformou no
verão. A frieza branca que tinha levado Serah dele estava longe agora,
quando tudo tinha se tornado vivo e verde.

Luce vagou e andou por aí, ocasionalmente visitando Abaddon


por pura curiosidade de ver o que o Guardião estava planejando, mas
escondia para si na maior parte.

Ainda assim, ninguém o incomodou.

Ele se encontrou continuamente sendo puxado de volta para


Chorizon, puxado pela mulher que nem ao menos lembrava da sua
existência. Ele passou incontáveis horas, dias, semanas observando
Serah se ajustar à sua vida mortal. Ela era o seu próprio indício vivo de
que o mundo seguiu em frente. Ela estava viva, respirando e pensando,
visível para todos, seu coração batendo ritmadamente.

Uma vez por segundo.

Sessenta batidas por minuto.

3.600 vezes por hora.

Uma e outra vez, dia após dia. Nos últimos seis meses, seu
coração tinha batido mais de 16 milhões de vezes. Luce contava às
vezes, ouvindo mesmo quando não podia vê-la, seu pulso uma
constante recordação de que ela era real.

De que tudo tinha sido real.

Ele se tornou em sintonia com o ritmo, como se fosse uma


melodia secreta produzida apenas para ele. Ele podia dizer quando ela
estava feliz ou triste, podia dizer quando ela estava empolgada ou
agitada, tudo pelo som que seu coração fazia.

~ 32 ~
O som se tornou uma obsessão, uma necessidade, como se a
batida do seu coração fosse a única cosa que o impedisse de
desaparecer.

Talvez isso fosse patético.

Talvez ele fosse patético.

Mas Lúcifer não dava a mínima para o que isso parecia. Ele não
podia ter Serah, mas ele podia ter essa parte dela, e ninguém iria levar
isso embora.

Não por agora, pelo menos.

Não enquanto ele pudesse evitar.

Era metade da tarde de um dia quente de verão. Lúcifer estava


caminhando pelas ruas de Chorizon, as mãos nos bolsos, aproveitando
a brisa que ele estranhamente começou a apreciar ser capaz de sentir
de novo. Ele podia facilmente ir para qualquer outro lugar, mas qual era
o ponto?

Não havia nenhuma pressa quando não havia mais nada a fazer.

Ele passou por pessoas correndo, crianças brincando, cachorros


passeando... os animais eram os únicos que reagiam a ele. Os gatos
assobiavam, os cachorros latiam, e sempre aparecia um humano para
mandá-los calar a boca porque não havia nada ali, ninguém por perto,
ignorantes do fato de que aquele que eles consideravam o diabo, o mal
final, estava tão perto que podia ouvir as suas palavras.

Isso divertia Lúcifer.

Ele se perguntou quanto tempo isso iria durar.

Mais seis meses? Seis anos? Outros seis mil? Ele não podia dizer.
Em meros sessenta anos, o mundo ao seu redor seria completamente
diferente, e a mulher que ele estava olhando provavelmente teria
deixado de existir. Um piscar de olhos para ele; uma vida inteira para
ela.

Ele parou do lado de fora do centro comunitário, ouvindo a sua


batida do coração do outro lado da rua.

O que ele teria quando não tivesse mais isso?

Essa tarde marcava exatamente seis meses... seis meses desde


que Michael esculpiu o temido símbolo no peito de Serah bem neste

~ 33 ~
local, uma maldição que Lúcifer negou ao enterrar sua faca sobre ele,
tirando as suas asas.

Ele foi criado por uma razão – para manter a ordem, para liderar
os da sua espécie por um caminho de justiça, mas em vez disso ele os
tinha levado para longe disso. Ele os incitou a segui-lo, a se rebelar,
sendo o catalisador para os alados que tinham sido poupados no final.

Ele se escondeu ali, observando enquanto Serah parou na


calçada, se inclinando contra o tronco de uma velha árvore. As crianças
da escola estavam saindo, mas Serah mal parecia notar, sua atenção
presa no centro de comunicação próximo a Luce.

O estalo de estática atrás de Luce foi alto. Ele não teve que virar a
cabeça para saber quem era. O fedor forte de água estagnada o acertou
com tanta força que ele estremeceu. Nojento. Seu interior se contorceu
com a repentina tensão, uma raiva que não existia a um momento atrás
se manifestando.

Michael.

Levou cada grama de força para Luce não reagir. Ele olhou
fixamente para frente, tentando focar no som da batida do coração,
enquanto sua mão lentamente alcançou a adaga de ouro que ele
mantinha guardada.

— Isso é desnecessário, — a voz de Michael era áspera enquanto


a mão de Luce se fechava ao redor da arma. — Eu não vim aqui para
lutar.

— Então por que você veio?

— Pela mesma razão que você, eu suspeito.

Michael andou para frente, parando ao lado de Luce, apenas


alguns metros separando os dois. A mão de Luce permaneceu no cabo
da sua lâmina, preparado para se defender, mas lá no fundo ele sabia
que não era necessário.

Michael, tão extraviado quando Luce acreditava que ele não era
um mentiroso. Não havia uma célula de dúvida dentro dele. Se ele disse
que não veio para lutar, então era verdade.

Mas Luce ainda estava no limite com a sua presença.

— Você não deveria estar aqui, — Luce disse, sua voz cheia de
veneno.

~ 34 ~
— Nem você, — Michael respondeu casualmente. — Mas isso não
o impede de visitá-la todos os dias.

Luce virou o olhar para ele. — Você esteve me vigiando.

— Claro, — Michael disse. — Você esperava algo menos?

Não, ele não esperava. — Negócios ou pessoal?

Michael se virou para ele, seus olhos se encontrando. — Como é?

— Você foi ordenado a me vigiar? — Luce perguntou. — Porque


babá nunca esteve entre as atribuições do trabalho de um Arcanjo.

Michael olhou para ele, a mesma raiva que Luce sentia refletida
nos olhos do seu irmão. — Eu faço isso porque eu devo.

Luce balançou a cabeça e se virou. Isso não respondia a sua


pergunta, mas conseguir mais informações do seu irmão iria requerer
tortura, e Luce não estava com humor para isso hoje. — Bem, eu não
convenci ninguém a morder uma maçã ultimamente, então acho que
estamos bastante seguros por agora.

— Nós não estaremos seguros até que você esteja de volta ao


buraco ao qual pertence, seu miserável.

Os lábios de Luce se torceram com diversão. — Eu senti saudades


de você também, irmão.

Pelo canto do olho, Luce viu Michel estremecer com a palavra


‗irmão‘, mas não discutiu sua relação dessa vez. Michael olhou para ele
por mais um momento antes de voltar a se concentrar do outro lado da
rua.

Os dois observaram em silêncio quando uma garotinha parou


para falar com Serah, fazendo perguntas sobre quem ela era e se estava
perdida.

— Você apareceu para ela? — Michael perguntou depois de um


momento, sua voz um rugido baixo.

— Você me diz, — Luce diz. — Você esteve me vigiando, lembra?

— Você pode ter feito isso quando eu não estava olhando, —


Michael acusou. — Você apareceu para ela. Você está tentando
corrompê-la!

— Eu não fiz isso.

~ 35 ~
— Então por que ela reconhece o seu rosto? — Michael
perguntou. — Como ela se lembra da sua imagem?

Luce tencionou. — Ela não lembra.

Antes que Luce pudesse reagir, Michael o agarrou, a espada de


fogo cortando o ar fino. Ele jogou Luce no chão, a ponta da lâmina
pressionada contra o seu peito, bem onde um coração deveria estar
batendo... se ele tivesse um. — Ela lembra! Eu acabei de ver!

Luce não teve nenhum tempo de deixar essas palavras afundarem


antes de agir defensivamente. Ele empurrou Michael para longe,
puxando sua faca. Ele foi rápido, e quando o pegou, quase o esfaqueou,
quando um repentino calor brilhante cercou Michael segundos antes
dele desaparecer no ar. Um formigamento persistente cobriu a pele de
Luce enquanto ele permaneceu ali, de repente sozinho. — Porra.

Chamado de volta bem na hora.

Filho da puta sortudo.

Luce guardou sua adaga, suas asas retraíram e ele se virou para
Serah bem quando a garotinha ia embora. A atenção de Serah mais
uma vez foi para o outro lado da rua, dessa vez centrada no lugar que
ele ocupava. Confusão apareceu nos traços dela.

Luce estava tão confuso quanto ela.

Ela podia se lembrar dele?

Será que isso era possível?

*****

Michael parou na sala do trono com a cabeça abaixada, seu olhar


em seus pés descalços. Ele respirava pesadamente, seu peito subindo e
descendo com agitação, não pela falta de oxigênio. Ar não era nada para
ele. Ele não era humano.

Ele nunca seria.

Sua dedicação e lealdade ao seu Pai eram eternas, mas uma


sensação pouco familiar cresceu em seu peito, o prendendo, o
sufocando. Ele estava com raiva.... com muita raiva.

~ 36 ~
— Ira, — uma voz calma disse.

Michael se virou, seus olhos encontrando os do seu Pai. Ele


estava sentado em Seu trono, casualmente observando Michael, uma
visão da rua projetada ao redor deles. A atmosfera estava calma, assim
como Satanás.

— Lúcifer, — seu Pai disse. — Você pode chamá-lo pelo nome,


filho.

Michael O encarou. Ele podia sentir a raiva que irradiava do seu


corpo. Ira? Impossível. Michael não era um pecador, mas ira era um
pecado. Como ele podia ser afetado por isso?

— O seu irmão tende a ter esse efeito naqueles ao seu redor, —


Ele disse, acenando para o lugar ao lado do Seu trono, dizendo sem
palavras que Michael deveria sentar.

Pela primeira vez em sua existência, o Arcanjo não se mexeu para


obedecer imediatamente. — O que está acontecendo comigo?

Um sorriso compreensivo e suave o cumprimentou. — Sente-se


Michael.

Michael não hesitou dessa vez, se sentando. Silenciosamente, sua


atenção se focou na imagem projetada. Satanás olhava para Serah com
saudade, sem se mostrar, mas Michael sabia que Serah sentia a mesma
atração. Ele tinha visto em sua mente, a queda dela na direção daquele
todo de preto que consumia seus pensamentos e visitava seus sonhos.
Ela sentia falta dele, o desejava, embora não soubesse porque, o tipo de
desejo que Michael ainda sentia quando olhava nos seus olhos.

Outra sensação agitou Michael, vagamente como a raiva, mas


mais focada. Concentrada.

— Inveja. Eu ousaria dizer com um pouco de luxúria?

Sete pecados capitais, e seu Pai estava sentindo quase metade


deles emanando dele agora?

— Mais da metade, — ele disse calmamente, lendo os


pensamentos de Michael. — Gula, por você querer reivindicá-la
desnecessariamente para si mesmo, e avareza, porque você não quer
compartilhar... e não se esqueça do orgulho, porque você acredita que a
merece muito mais que o seu irmão.

~ 37 ~
Michael deixou a cabeça cair em vergonha. Seis de sete? Só
faltava a preguiça.

— Ninguém pode acusá-lo de ser preguiçoso, filho, — ele se


abaixou e colocou uma mão no ombro de Michael, o simples toque
enviando uma onda de calma por ele. De uma só vez Michael sentiu seu
ressentimento desaparecer, uma sensação de paz o tranquilizando. —
Você mal tirou um tempo para descansar nesses últimos seis meses.

— Como eu posso descansar com ele solto por aí?

— É com ele solto que você se preocupa? Ou é com ela?

— O que você quer dizer?

— Quero saber se você tem mais medo do seu irmão tendo


sucesso ou dela falhando?

Michael considerou isso, seu olhar fixo na imagem projetada.


Nada parecia importar mais para Satanás do que ouvir o coração de
Serah. Isso se tornou uma obsessão para o anjo caído, algo que
aterrorizava Michael.

Ele se lembrou da última vez que Satanás se tornou obcecado


com uma batida de coração.

Foi isso que mudou tudo.

— Estou com medo que eles sejam a mesma coisa, Pai, — Michael
admitiu. — Tenho medo que ele corrompa outra mortal inocente, e eu
não posso ficar aqui parado e não fazer nada dessa vez.

*****

— É incrível, não é?

Lúcifer estava sentado sozinho em uma vasto espaço em branco


do Paraíso. Ou, pelo menos, ele pensou que estava sozinho. Mas a voz
atrás dele interrompeu o momento de paz silenciosa, o tirando dos seus
pensamentos profundos.

Ele olhou para o lado enquanto seu irmão se sentava. Michael


parecia espantado, o olhar fixo na mais nova criação do seu Pai depois
deles.

~ 38 ~
Terra.

Era metade do terceiro dia desde que o projeto tinha começado.


Com uma abundância de verde crescendo na terra, a primeira forma de
vida apareceu. Lúcifer esteve lá sentando desde que tudo começou,
observando cada momento com sentimentos conflitantes.

— Sim, — ele disse. — Com certeza é alguma coisa.

— Eu me pergunto porque Ele está fazendo isso, — Michael disse.


— Você tem alguma ideia?

Eles sabiam o que isso era desde o início, mas o porquê não lhes
tinha sido explicado. Abençoado com conhecimento, mas nesse
momento, separado das explicações. Ele era o mais próximo do seu Pai,
o único que já passou algum tempo sozinho com Ele, mas mesmo ele
tinha apenas um pequeno palpite.

Ele foi tirado da sala do trono quando tudo começou, como se


fosse para ser uma surpresa. Ele tinha algumas teorias, e a atual o
esmagava com pensamentos de amor.

— Acho que é um paraíso, — Lúcifer disse baixinho. — Uma casa


para os Seus filhos.

— Casa, — Michael repetiu. — Eu gosto do som disso.

A primeira faísca de cor começou a surgir, o que Lúcifer parecia


instintivamente saber que eram flores. Embora anjos não fossem
oniscientes, possuíam um conhecimento inato graças a conexão com
seu Pai. Lúcifer observou com fascinação mórbida quando as plantas
brotaram, pontilhando a paisagem.

Lindo.

Seus lábios lentamente formaram um sorriso. — Eu também.

Michael sentou ao lado dele em silêncio por um longo tempo,


observando a paisagem mudar quando outro dia raiou. Cercando a
Terra, o Sol e a Lua se formaram, as estrelas apareceram no céu, as
estações foram criadas bem diante dos seus olhos. Era incrível, cheio do
amor do seu Pai.

Um verdadeiro presente.

Lúcifer não podia esperar até que estivesse terminada. Ele estava
ansioso para chamar esse lugar de casa.

~ 39 ~
O dia quatro se foi, e então veio o quinto.

Ondas bateram contra a terra, a água agora cheia de vida. Lúcifer


observou assombrado. Milhares e milhares de diferentes criaturas
surgiram bem diante dos seus olhos, cada uma delas únicas e
fascinantes. A ingenuidade do seu Pai ia muito além do que Lúcifer
imaginava. Havia aqueles com a habilidade de criar, outros que podiam
voar; desde um gigante gentil no oceano até a mais ínfima criatura no
céu.

O peito de Lúcifer estava tão cheio de amor que ele sentia que iria
explodir se sentisse mais.

O dia acabou, mas a criatividade não. Criaturas apareceram na


terra, animais de todos os tipos, todos elaborados e de tirar o fôlego. Ele
observou assombrado, seu irmão silencioso ao seu lado, enquanto o
tempo passava e o mundo florescia.

Com quanto mais seu Pai poderia abençoá-los?

Foi durante o sexto dia, em um glorioso jardim, que outra


criatura foi criada, moldada a partir do barro. Diferente dos seres de
quatro patas e daqueles que tinham guelras e barbatanas, esse se
parecia quase como Ele.

Lúcifer observou chocado quando o primeiro humano veio à vida.

Pela primeira vez em dias, a voz do seu Pai pôde ser ouvida.

Bem-vindo, meu filho.

A voz era forte e gentil, não falada em voz alta, mas ouvida dentro
da mente. Lúcifer pensou que Deus estava falando com ele, um dos
poucos que eram abençoados o bastante para ouvir Sua voz, mas o
homem na Terra respondeu. — Obrigado, Pai.

Confusão correu por Lúcifer.

Ele só podia ficar de boca aberta enquanto o humano conversava


com Deus. Adão era o seu nome, e ele ganhou a tarefa de nomear todas
as outras criaturas vivas, um trabalho que ele assumiu alegremente.
Gados e gatos; peixes e aves. A nomeação durou mais de um dia, até
que eles acabaram e Adão ficou sozinho.

Lúcifer podia ouvir seu Pai de novo, e então ouviu Seu devaneio
de como seu novo filho precisava de uma companhia. Adão estava

~ 40 ~
dormindo, e com a sua costela um segundo humano foi criado, uma
mulher chamada Eva.

Uma esposa para Adão.

— Crescei e multiplicai-vos, encham e subjuguem a terra, — Ele


os disse. — Dominem sobre os peixes no mar, sobre as aves no céu e
sobre todos os animais que se movem pela terra3.

Uma sensação que Lúcifer nunca tinha sentido se remexeu dentro


dele. Ele se sentiu amarrado em nós, puxado em diferentes direções,
como se parte dele tivesse quebrado. De jeito nenhum ele tinha acabado
de ouvir aquilo. Ele devia ter interpretado errado. Tinha que ser um
erro.

De jeito nenhum seu Pai tinha acabado de dar a Terra a esse


humano.

— Casa, — Michael disse. — Para os Seus filhos.

Lúcifer olhou para o seu irmão. Michael estava sorrindo, ainda


observando tudo com admiração. Ele parecia genuinamente
maravilhando com tudo que estava acontecendo, enquanto Lúcifer
sentia exatamente o oposto.

Esse paraíso deveria ser para eles.

Não era?

*****

O ar da tarde era quente, o sol brilhante no céu, nem uma única


nuvem lá em cima. O azul ia além do que Serah podia ver, limpo e
claro. A cor lhe lembrava um par de olhos que frequentava seus sonhos,
um par de olhos que a observava quando ela estava acordada, a caçava.

Eram olhos que continham inúmeros segredos, olhos que


contavam milhares de histórias, mas nenhuma delas Serah podia
entender. Eles falavam com ela, imploravam, mas ela não podia ouvir o
que eles diziam. Era como um sussurro de memória; ele era uma
aparição, estava lá em um segundo e não mais no seguinte,
desaparecendo no ar como se fosse poeira, e o mais suave suspiro o

3 Gênesis, 1.28 – para quem quiser saber a referência 

~ 41 ~
faria evaporar. Ela não tinha nem ao menos certeza se ele existia, mas
ele era real para ela.

Se ela ao menos pudesse se lembrar do seu nome.

Ele estava na ponta da língua, mas não passava dali.

Ela se perguntou se estava louca... se tinha se tornado


legitimamente o que os médicos chamavam de louca. Ela ainda não
sabia nada da pessoa que tinha sido, nada sobre o lugar de onde tinha
vindo ou que deveria estar.

A única coisa que ela conhecia era ele.

Mas de novo, ela nem ao menos o conhecia, considerando que


não sabia o seu nome, ou se ele era apenas mais um engano da sua
imaginação.

Ugh, talvez eu esteja louca.

Serah caminhou pela rua, indo para longe do motel uma tarde,
vagando pelos mesmos bairros familiares pelos quais ela tinha passado
desde o dia do acidente. Ela cumprimentava as pessoas com afeto
quando passava por elas, seus olhos brilhando nas vitrines das lojas,
pegando um vislumbre de um reflexo estranho no vidro com ela, sempre
alguns passos atrás.

Ela sabia que se virasse, ele não estaria ali. Ninguém estaria.

Ela estava passeando quando chegou ao centro comunitário, a


porta aberta para deixar o ar entrar enquanto vocês chegavam à rua.
Serah parou na frente do prédio, examinando-o por um momento. Ela
sentia uma certa atração pelo lugar que não podia explicar, como se
tivesse estado ali antes.

Curiosa, ela entrou. O lugar era iluminado, repleto de fileiras de


cadeiras de metal – talvez três dúzias, mas menos da metade estava
sendo usada. Serah se sentou na mais perto da porta, passando
despercebida. Um homem parado à frente falava suavemente, as
palavras correndo por Serah. Ela o ouviu em silêncio, as mãos unidas
em seu colo.

Algo sobre tudo isso era familiar para ela.

*****

~ 42 ~
Igreja.

Ela entrou em uma maldita igreja.

Será que ela percebeu que estava lá? Luce não sabia. Não
importava o quanto ele tentasse ler seus pensamentos, eles
continuavam confusos como alguém debaixo d‘água tentando falar.

A mente humana sempre foi um mistério para ele.

Ele parou no meio da rua, no exato mesmo lugar onde tinha


perdido ela, e olhou para o centro comunitário, ouvindo a voz que vinha
de dentro.

... Satanás se transforma em anjo de luz...

... O diabo peca desde o princípio...

... Satanás quer você...

Sempre mau, nunca bom.

— Não há bom.

Lúcifer fechou os olhos com aquelas palavras, faladas por alguém


na calçada ao lado dele. Ele sentiu a sua essência na área quando
seguiu Serah aqui, mas esperava que ela estivesse muito ocupada para
se incomodar com ele.

Hannah.

— Ler lábios é uma abominação para o Senhor, — Lúcifer disse,


uma estranha faísca de satisfação aparecendo profundamente dentro
dele. Oh, que ironia... ele estava recitando as escrituras para repreender
alguém que ainda tinha a sua Graça.

— Eu não minto, — Hannah disse, parando na calçada ao lado


dele. — Não há bondade em Satanás. Ele é o inimigo, a cobra
mentirosa, pura maldade que precisa ser erradicada. O nome já diz por
si só.

— Eu ouço você, irmã. Ouvi da última vez, também. Você só está


desperdiçando sua maldita saliva nesse momento.

Ele virou o olhar para a direita quando ela parou ao lado dele.
Seu olhar estava fixo nele, os olhos estreitados com desconfiança. Ele
não sentiu medo vindo dela, e sua raiva ainda estava presente, mas não
era tão forte como antes. Não, ela tinha dado algo mais forte – pesar.

~ 43 ~
Era fácil ficar puto, jogar a culpa em alguém, mas era completamente
diferente tentar chegar a um acordo com mágoa no coração.

Anjos não deveriam lamentar pela sua própria espécie.

— Por que você está aqui, Hannah? — ele perguntou desconfiado.


— A sua espécie não pensa duas vezes depois que nós caímos. Vocês
nos tratam como se nunca tivéssemos existido.

— Sim, nós tratamos, — ela concordou. — Mas algo aconteceu.

— O que aconteceu?

Ela não respondeu, mas Lúcifer viu na sua mente quando ela
propositalmente baixou sua guarda para ele. Todas as cartas na mesa,
cada momento do pequeno Apocalipse, cada pedregoso detalhe que
Hannah tinha testemunhado. E ele viu a última memória como um
filme, Hannah ajudando Serah a escapar da floresta de Hellum
Township.

— Eu não sou nada. Eu sucumbi à tentação da serpente. Eu soltei


Satanás.

— Você estava encantada por Lúcifer, — Hannah suspirou,


balançando a cabeça. — Ele era um Arcanjo, Ser, o mais glorioso já
criado. Eu não posso te culpar por cair de amor por ele.

— Eu caí, — ela sussurrou. — Literalmente.

Uma corrente de sombras negras passou correndo por elas, percorrendo a


terra tão longe onde seus olhos podiam ver. O oxigênio parecia ser
sugado da atmosfera enquanto Serah ofegava em agonia, lutando para
respirar.

— Michael soltou os ceifeiros, — Hannah disse, observando as


criaturas mórbidas descerem sobre a Terra. — É apenas uma questão de
tempo antes que eles o encontrem.

— E então o quê? — Serah perguntou.

— Você conhece a profecia: Satanás será destruído de uma vez por


todas.

Lúcifer se virou para longe dela. Ele não precisava – ou queria –


ver mais nada. Mas ele pegou o ponto de Hannah, sabia exatamente o
que tinha mudado tudo: ele ainda estava aqui. — A profecia não se
concretizou.

~ 44 ~
— Ou sim, — ela disse. — Ou a profecia estava errada ou você
não é o Satanás.

— Então quem é?

— Eu ainda não decidi, — ela admitiu. — Serah acreditava que


não o suficiente para se apaixonar por você.

Lúcifer balançou a cabeça. — Se eu não fosse ele, ela não teria


caído.

Assim que ele disse isso, percebeu que essa conversa era o
completo oposto da última vez que ele falou com Hannah, em que ela o
chamou de Satanás e ele rejeitou esse nome. Agora ela estava
considerando que ele não fosse o mal depois de tudo, e ele ainda estava
tentando provar que ela estava errada.

Claramente, não havia vencedores.

Luce olhou para a porta do centro comunitário em silêncio por


um momento, ouvindo o pregador falar sobre resistir às tentações. Seus
pensamentos divagaram, seus olhos em Serah, que estava sentada
junto à porta, até que um estalo alto ecoou pela rua e uma grande
massa cinza bloqueou sua visão abruptamente.

Um Dominion.

— Porra, você só pode estar brincando, — ele murmurou, dando


um passo para o lado para ver além do anjo monocromático. Esses
filhos da puta alados sempre o irritaram.

— É, hm... uma nova missão? — Hannah perguntou, o


nervosismo marcando a sua voz. Ser pega com Luce claramente não
fazia parte dos planos dela.

— Sim, — o Dominion disse.

— Qual é? — ela perguntou. — O que eu preciso fazer?

— Nada, — o Dominion disse. — A missão não é para você,


Virtude.

Lúcifer virou os olhos para o Dominion, vendo que ele estava lhe
encarando. — Você está brincando, não é?

— O Dominion não brinca.

— Não diga, — eles foram criados sem nenhum senso de humor.


Tudo sobre trabalho e nada sobre brincadeiras deram origem a um anjo

~ 45 ~
chato pra caralho. — Mas você deve estar enganado, porque eu não sou
um dos seus drones para quem você pode sair dando ordens. Você não
pode me dizer o que fazer, nem antes, muito menos agora.

O Dominion olhou para ele. Lúcifer ouviu a amargura da sua


mente, palavras que ele nunca verbalizaria. A arrogância dos Arcanjos é
surpreendente, mas essa escória caída leva isso a outro nível.

Lúcifer sorriu com isso, divertido, e balançou a cabeça quando se


virou de costas para o anjo. — Vá correndo contar ao papai que eu não
estou interessado em seja lá qual tarefa sem importância que Ele está
tentando empurrar para mim.

Essa claramente não era a resposta que o Dominion queria, mas


em vez de pressionar a questão, o anjo acenou em concordância e
desapareceu.

— As missões dos Dominions não são negociáveis, — Hannah


disse. — É a vontade de Deus.

— E daí? — Lúcifer disse. — Foi a vontade Dele que me vez


passar seis mil anos no Inferno, mas isso não me impediu de achar um
jeito de escapar.

Um jeito que roubou a amiga de Hannah como consequência.


Lúcifer ouviu as palavras, faladas em pensamento. Ele olhou
diretamente para a frente quando o culto da igreja acabou e alguns dos
participantes começaram a sair. Serah permaneceu em sua cadeira por
um momento antes de se levantar e sair, andando pela rua sem nunca
realmente participar.

Lúcifer a observou até ela desaparecer de vista. Ele ainda podia


ouvir seu coração, batendo de forma constante.

Ele não disse nada para Hannah, não se despediu ou disse


quaisquer palavras de bem-querer. Eles não eram amigos. Uma coisa os
conectava, e essa coisa não sabia mais nada sobre nenhum dos dois.
Ele andou até o centro comunitário e entrou, seus passos metódicos.

O que você sabe? Eu não peguei fogo.

O pastor ainda estava parado na frente, distraidamente folheando


a sua Bíblia já gasta, tomando notas.

Lúcifer parou bem na frente dele, seus rostos a apenas alguns


centímetros de distância. Ele estava olhando o Gênesis, seu próximo

~ 46 ~
sermão seria focado no início dos tempos, na criação do homem e na
queda de Satanás.

Seria fácil, muito fácil apenas estalar os dedos e se tornar visível,


literalmente lhe dando um susto de morte. Mas qual era o ponto? Outro
humano morto, que se foi do mundo, mas ainda havia sete bilhões mais
exatamente como ele.

Da última vez que Lúcifer esteve na Terra, eles eram apenas dois.

*****

Tum.

Tum.

Tum.

De novo e de novo.

Uma e outra vez.

Era a primeira vez de Lúcifer na Terra. Ele estava parado no


fundo do Jardim do Éden, protegido dos fracos olhos humanos,
observando aquele chamado de Adão.

Para criaturas que se pareciam muito com ele na superfície, Adão


parecia muito inferior. Ele não era nem ao menos avançado o bastante
para sentir um anjo na sua frente. Por que ele merecia um presente
como o Paraíso?

As batidas vinham do peito de Adão, fortes e constantes. A


maioria das outras criaturas vivas na Terra tinham o mesmo som
rítmico ecoando delas, mas o de Adão era mais alto. Era a sua força de
vida. Onde Lúcifer era preenchido com Graça, o brilho de energia
quente e radiante que queimava com tanta força quanto as estrelas
agora vistas acima dele, Adão era preenchido com algo mais.

Sangue.

Lúcifer tinha visto isso, tinha observado quando o homem


acidentalmente picou seu dedo em um espinho e derramou uma gota
vermelha na terra. Isso causou dor ao homem, algo tão inocente quanto
uma roseira tinha lhe machucado.

~ 47 ~
Tão frágil.

Tão fraco.

A batida no seu peito tinha ficado mais alta, mais forte, mais
agitada quando isso aconteceu, como se algo em seu peito estivesse
amarrado à dor.

— É chamado coração.

Lúcifer virou para longe de Adão ao som da voz do seu Pai,


descobrindo que Ele estava ali no Jardim. Ele ouviu seus pensamentos.
Ele esteve observando.

— O som que você ouviu é a sua batida do coração, — Ele


continuou e chegou mais perto. — É o que mantém Adão vivo.

— Quanto tempo ele vai viver?

— Para sempre.

Para sempre.

Inferior, mas ainda abençoado com a mesma vida eterna que


Lúcifer.

— Eu não diria que humanos são inferiores, — Ele disse. —


Apenas diferentes. Eles têm fraquezas que você não possui, mas eles
também têm qualidades. Eles não podem te sentir, mas podem sentir
coisas que você não pode.

— Como o quê?

Seu Pai gesticulou na direção da roseira, a mesma na qual Adão


tinha se machucado. — Cheire isso.

— O quê?

— Coloque seu nariz na flor.

Lúcifer fez o que foi dito, mas nada aconteceu.

— Você não pode sentir o cheiro, — Ele explicou. — Tudo ao seu


redor têm uma fragrância. Você pode ver essas coisas – essas flores,
essas árvores – mas Adão pode experimentá-las. Ele as respira, ele as
prova, ele as vive. Ele é único na Terra; você é único no Paraíso. Vocês
são criaturas diferentes, Lúcifer.

~ 48 ~
Lúcifer voltou-se para Adão, o observando interagir com Eva. Os
dois estavam repletos de amor – amor um pelo outro, amor pelo seu Pai.
— Qual é o propósito deles?

— Existir, amar e adorar, — Ele disse. — Eles são os meus filhos.

Lúcifer hesitou. — E qual o meu propósito?

— Você sabe qual é.

Ver a vontade do seu Pai, servi-Lo e obedecê-Lo. — Essa vontade


inclui esses humanos? Servir você significa servir... eles?

Lúcifer não teve que esperar seu Pai responder. Ele sabia a
verdade. Mas isso ainda quase o atingiu quando a resposta ecoou ao
seu redor. — Sim.

Lúcifer olhou para os humanos. Alguns momentos atrás ele os


tinha visto como inferiores, mas agora se sentia diferentes. Se alguma
coisa, estava claro agora que ele era o subordinado aqui.

— Não é isso tudo, meu filho, — Ele interviu.

— Filho, — Lúcifer disse baixinho. — Eu sou seu filho?

— Claro que você é.

— Mas não parece, — ele balançou a cabeça, se virando para


longe de Adão para olhar o seu Pai. — Não mais.

*****

O coração de Serah estava batendo apressado, pressionando suas


costelas como um martelo. Luce ouviu isso no momento em que
apareceu no estacionamento do lado de fora do motel. Ele vinha de um
quarto no fim do corredor do segundo andar. Ele tencionou, afinando
seus sentidos, tentando dar sentido para a excitação dela, mas era um
quebra-cabeças que não poderia ser terminado sem ver a figura.

Ele tinha que ver.

Ele tinha que saber.

Em um flash ele estava no andar de cima, parando do lado de


dentro modesto quarto com a porta aberta. Ele não sentiu mais

~ 49 ~
ninguém, seu olhar indo direto para Serah, a tensão em seus músculos
diminuindo conforme era substituída por confusão.

Ela estava dançando.

Ele mal podia notar a música ao longe, que ia diretamente para


ela através dos pequenos fones de ouvido. Ela dançava na batida do
som, balançando e girando, ignorando tudo ao redor enquanto
distraidamente mudava os lençóis da cama.

Luce não podia fazer nada além de olhar. O bom senso lhe dizia
para se afastar, para colocar distância entre eles antes que ele fizesse
algo estúpido, mas era difícil ser lógico quando você é uma criatura
passional não conhecida por fazer a coisa certa.

Jamais.

Ele não esteve tão perto assim dela desde que ela acordou uma
nova pessoa... uma mortal. Ele podia sentir o seu cheiro, a doçura
natural e a leve fragrância de flores, com uma pitada de suor
remanescente em sua pele. E ele podia sentir o seu calor do ponto onde
estava, sentia isso irradiar dela e ser absorvido por ele. Sua batida do
coração era mais alta assim de perto, o tentando, o chamando.

Que mal iria fazer tocá-la mais uma vez? Só uma vez, um
arranhão em sua pele, poder ficar parado atrás do seu corpo e sentir o
seu cheiro. Ela nunca saberia, uma vez que ele estava disposto a deixar
assim.

Em um momento de fraqueza, ele deu um passo para ela, bem


quando ela girou na sua direção. Seu olhar correu para a porta e ela
abruptamente parou de dançar, seus olhos arregalados. Seu coração
parou, o breve momento de silêncio parecendo um grito alto para
Lúcifer, o rasgando por dentro. Seu maior medo aconteceu, mesmo que
por um segundo: o coração de Serah não estava batendo.

Ele sentiu a dor apertando o seu próprio peito.

Mas então seu coração deu um chute, batendo violentamente


enquanto ela admirava, tirando os fones de ouvido. Um ofego ecoou pelo
quarto quando seus lábios se partiram. Ela olhou diretamente através,
ao redor dele, para algo perto dele, mas de jeito nenhum ela estava
olhando para ela.

De jeito nenhum.

~ 50 ~
Isso não era possível. Eles podiam estar no mesmo quarto, mas
estavam em planos completamente diferentes. Um humano não podia
ver um anjo, a menos que ele quisesse se mostrar, e ele nunca tinha
aparecido para um humano. Nunca.

— É você, — ela sussurrou.

Lúcifer olhou para ela em descrença. Eu?

— Eu, hm... me desculpe, — ela disse rapidamente. — Eu não


sabia que havia alguém aqui... eu não sabia... quero dizer, eu pensei...
bem, o check-out foi a uma hora atrás, e todas as suas coisas se foram,
e eu não percebi...

Ela continuou gaguejando. Lúcifer estava estupefato,


permanecendo em silêncio e olhando para ela como se estivesse vendo
um fantasma.

— Eu posso ir e voltar depois, — ela continuou. — Quero dizer, se


você ainda precisa do quarto, é isso. Eu não quero ficar no caminho.

Ela andou até a porta, tentando passar por ele. Por capricho,
Lúcifer deu um passo para ficar no seu caminho, ainda esperando que
ela passasse através dele, como os humanos sempre faziam, mas ela
parou de andar. Seu coração parou outra batida e ela engoliu em seco.
Ele podia sentir isso, algo que os anjos eram treinados para detectar, a
única coisa que o cercava dia após dia naquele buraco. Medo.

— Você pode me ver? — ele perguntou, arqueando uma


sobrancelha de interrogação.

Ela olhou para ele em branco por um momento, e ele ainda


pensava que talvez ela estivesse vendo através dele, até que ela
lentamente acenou com a cabeça. — Claro.

— Você me vê, — ele disse de novo. — Você me conhece?

— Sim, — ela disse hesitante, seus batimentos tão frenéticos que


eram quase como um tambor. Lúcifer se encheu de esperança. Ela
realmente se lembrava dele. — Bem, não... eu não conheço você. Eu já
te vi, mas não sei quem você é.

Seu estômago afundou. — Não sabe?

— Hm, não... eu deveria?

~ 51 ~
— Mas você pode me ver, — ele disse pela terceira vez, levantando
a voz. Ele ignorou a sua pergunta, a voz lá no fundo dele gritando ‗como
diabos você pôde esquecer?‘ — Você já me viu antes.

— Sim, claro, — ela disse, sua voz falhando quando ela deu um
passo para trás, enrolando os braços em volta do peito. — O que há de
errado com você?

Ele estava lhe assustando. Fechando os olhos, ele tentou se


acalmar, mas era inútil. De jeito nenhum isso podia estar acontecendo.
Isso era um sonho, ou um maldito pesadelo, uma punição do seu Pai.
Ele não tinha escapado da cova... talvez esse fosse o seu novo Inferno,
eternamente provocado e tentado pela existência dela, perto mais ainda
tão longe.

Se virando, ele saiu pela porta aberta e olhou ao redor,


congelando quando viu alguém vindo pela varanda na sua direção. Ele
parou na frente deles quando se aproximaram do próximo quarto com a
porta trancada. Lúcifer acenou a mão na cara da mulher, mas ela não
reagiu, encostando nele sem nem ao menos notar sua presença.

Assim que ela se foi, ele olhou ao redor de novo, vendo que Serah
estava lhe observando com incredulidade do outro quarto. Ele ficou
parado na varanda, olhando para a vizinhança, vendo as pessoas
caminharem na calçada abaixo, outros passando pelo estacionamento.

Ele gritou, tentando chamar a atenção deles, mas sua voz não foi
percebida, a frequência errada para os ouvidos mortais.

Serah estremeceu, no entanto, cobrindo os ouvidos e


choramingando quando ele se virou na sua direção. Ele caminhou até
ela, apontando para ela, enquanto ela se recolhia de volta no quarto.

— O que há de errado com você? — ele rosnou, ecoando a


pergunta dela. Claramente não era ele que estava fodido – era ela.
Mortais não podiam vê-lo, não podiam ouvi-lo, senti-lo, mas ela estava
aqui falando com ele como se isso fosse normal. — Como você pode me
ver?

— Você é louco, — ela disse, algo como terror cruzando seu rosto.
— Oh, Deus, talvez eu seja louca. Eu realmente sou louca, não sou? —
ela caiu na borda na cama, totalmente se esquecendo que ela estava na
metade do processe se arrumá-la. Ela deixou a cabeça cair nas mãos. —
Eu perdi a cabeça. Você não é real. Você não está aqui de verdade.

~ 52 ~
Lúcifer queria consolá-la, clarear as coisas e colocar sentido
nessa confusão, mas ele estava sem palavras. Como isso estava
acontecendo? Ele abriu a boca e fechou de novo.

O que ele poderia dizer?

— Você não é louca.

Ela riu alto em descrença. — Então o que eu sou?

— Você é...

Antes que ele pudesse terminar a frase, um forte tiro correu pela
sua espinha, um forte brilho o cercou. A luz explodiu em uma bola
brilhante branca, o cegando por um segundo antes que o mundo ao seu
redor clareasse.

— ...um anjo.

Ele terminou a sua declaração baixinho, as palavras sem sentido.


Ele estava tão longe que ela nunca ouviria. Seus pés estavam plantados
em um lugar onde ele não esteve por milhares de anos, um lugar que
ele nunca mais esperava ver sob essas circunstâncias... uma sala que
ele não previu receber um convite para visitar em qualquer momento
próximo.

Ou em qualquer tempo.

Paraíso.

Era exatamente como ele se lembrava. Lúcifer parou em frente ao


trono, seus olhos encontrando os do seu Pai pela primeira vez desde a
sua queda. Ao Seu lado estava sentado Michael, no lugar que ele tinha
criado para Lúcifer. A raiva cresceu dentro dele, cada centímetro seu
apertando e se retorcendo, tão tenso que ele não podia se mover.
Literalmente.

Seu olhar caiu para os seus pés. Símbolos estavam incrustrados


no chão ao seu redor, as mesmas marcas que não muito tempo atrás
manchavam a sua pele, o prendendo no Inferno. Ele riu secamente e
baixinho. Inacreditável, porra. Preso no Paraíso.

Convidado, mas claramente sem nenhuma confiança. Ele estava


confinado em uma caixa de espaço encantando, impedido de sair dela
ou machucar qualquer um do lado de fora.

Os olhos de Luce voltaram para o trono. Ele arqueou uma


sobrancelha em interrogação, mas não disse nada.

~ 53 ~
Seu Pai o encarou de volta, calmo, tranquilo. Seu comportamento
despreocupado só alimentou a sua raiva. Como Ele se atrevia a trazê-lo
aqui e o confinar como um animal raivoso precisando ser enjaulado. Ele
estava cansado de estar preso.

— Você tem algo a dizer, filho?

— Vá se foder.

Ele cuspiu o xingamento com tudo que havia nele, mas ainda não
era o bastante para conseguir uma reação. Michael, por outro lado,
estremeceu.

— Aquele que blasfema o nome do Senhor deve ser morto, —


Michael declarou.

Luce se virou para ele. — Bem, vá se foder você também.

Seu Pai balançou lentamente a cabeça, apenas um olhar fazendo


Luce sentir o mesmo desapontamento descontente que tinha sentido no
Jardim do Éden. — Você ainda guarda muita raiva.

— Você pode me culpar?

Pergunta retórica, mas Ele respondeu assim mesmo. — Sim.

— Bom. Ótimo. Que bom que pudemos ter essa conversa. Agora
me coloque de volta no lugar de onde me tirou.

— Acredite no Senhor com todo o seu coração, — Michael disse,


— e não se prenda ao seu próprio desconhecimento.

Luce piscou desnecessariamente algumas vezes e encarou seu


irmão enquanto ele recitava as escrituras. Ele teve o bom livro recitado
para ele mais vezes do que se importou em contar desde que escapou
do buraco, como se aquelas palavras devessem significar algo para ele.
Luce estava cansado de ouvi-las.

— Não é um fã de literatura? — Ele perguntou, ouvindo os


pensamentos de Luce. Claro. Ele ouvia tudo, sabia tudo, via tudo...
Luce estava certo de que Michael podia sacar uma dúzia de escrituras
afirmando exatamente isso.

— Sou mais fã de Stephen King.

— Então você prefere a fantasia à realidade?

Luce encolheu um ombro. — A realidade é subjetiva. Lá embaixo


na cova tudo é real.

~ 54 ~
Michael começou a cuspir mais uma pepita de sabedoria bíblica,
mas seu Pai levantou a mão para silenciá-lo.

— Não é isso o que eu queria para você, filho.

— Mas é o que você me deu, — ele respondeu. — Então, se você


não se importa, eu apreciaria se você me colocasse de volta onde me
encontrou.

— Eu vou alegremente te levar de volta para o lago de fogo, —


Michael interferiu. — Seria um prazer.

— Um prazer? — Luce perguntou, arqueando uma sobrancelha


para ele.

Michael acenou em confirmação. — Nada me daria mais prazer.

— Nada? — Luce riu zombeteiro. — Eu vou te dizer, Michael, se é


assim que você se diverte hoje em dia, sugiro encontrar outro anjo para
cuidar desse papel. Você sabe, uma vez que você perdeu o último.

Michael saltou do seu lugar, se aproximando hostilmente em um


piscar de olhos. Ele parou bem na frente de Luce, meros centímetros de
espaço entre os dois. Luce permaneceu imóvel como uma estátua,
apenas esperando Michael chegar um pouco mais perto... apenas
esperando ele atravessar os símbolos para poder colocar suas mãos
nele.

— Você fez isso com ela, — Michael rosnou. — Você a destruiu.

— Não fui eu quem tentou mandar ela para o Inferno.

— Mas foi sua culpa que isso aconteceu!

— Já basta, — a voz do seu Pai cantou pela sala, não alta, mas
segurando a força de um grito feroz. — Vocês dois parecem duas
crianças birrentas... ouso dizer, irmãos.

Michael não pareceu gostar dessa declaração e tentou falar. —


Mas...

— Eu disse que já basta, — Ele disse, acenando para o lado do


trono. — Tome o seu lugar, Michael.

Hesitante, Michael recuou, se sentando novamente. Luce olhou


para ele, as palavras de seu Pai correndo por ele do jeito errado. Tome o
seu lugar, Michael. O lugar que tinha sido criado para ele, não para
Michael.

~ 55 ~
— Foi, — Ele disse, mais uma vez ouvindo seus pensamentos. —
Mas você o perdeu, abrindo mão do seu lugar no Paraíso.

— Então por que eu estou aqui? — Luce perguntou. — Me


repreenda, me castigue, faça o que quiser comigo, mas estou cansado
dessa conversa, então ande com isso e me deixe ir.

Seu Pai o encarou, contemplando. Quando Ele finalmente falou,


Suas palavras foram tranquilas. — Você pode não querer machucá-la,
filho, mas você sabe o que dizem sobre as boas intenções.

Em um instante, Lúcifer foi preso em outra bola branca de luz


brilhante, reaparecendo exatamente onde tinha estado parado no
quarto do motel. Quando o quarto se refez ao redor dele, tudo entrou
em foco, e as Suas palavras finais correram pela mente de Lúcifer.

A estrada para o Inferno é pavimentada de boas intenções.

Nesse caso, provavelmente, era literal.

— Eu sou o quê?

O olhar de Luce se virou para a cama, onde Serah ainda estava


sentada, olhando para ele. Parecia como se ele estivesse estado fora por
uma hora, mas ele sabia que tinha sido apenas uma fração de segundo
para ela. Ela nunca teria percebido que ele se foi, nunca teria o visto ir
e voltar.

Ela o encarou, esperando que ele terminasse o que estava dizendo


antes de ser interrompido.

Você é um anjo.

Sim, porque isso iria acabar muito bem. Ela então iria ter certeza
de que era louca, ou ele iria parecer nada mais do que um pervertido
cheio de papo furado. Machucou quando você caiu do Céu? 4

Claro que sim, imbecil. Eu sangrei deitada na maldita rua.

Ele balançou a cabeça, empurrando isso para o lado, enquanto


andava lentamente na direção dela. Ela não se afastou dele, mais
curiosa que medrosa. Com os olhos arregalados, ela o encarou quando
ele parou na sua frente.

4Geralmente a expressão original em inglês é usada para pessoas que usam cantadas
ruins, como essa que ele fala logo em seguida (mas que no caso faz todo sentido,
porque ela realmente caiu do Céu).

~ 56 ~
— Você está sonhando, — ele disse baixinho. — Eu não sou nada
mais que um filamento da sua imaginação.

Ele pressionou um único dedo na testa dela, sentindo a energia


pulsar pela sua pele. Só durou um segundo, um mero segundo para
tocá-lo de novo, antes que ela caísse na cama.

Ela apagou como uma luz, caindo no sono. Ela acordaria depois
que ele tivesse ido, e todo esse encontro não seria nada mais que um
sonho distante.

Suspirando, ele olhou para ela mais um momento antes de ir. Ele
odiava quando aquelas malditas escrituras sagradas estavam certas.

*****

Os humanos tinham tudo.

Eles se derramavam sobre a terra, inocentes e justos, com a vida


eterna garantida no paraíso. Adão e Eva se amavam, seu amor
santificado por Deus, e eles se tratavam com carinho. Eles eram
criaturas obedientes, assim como Lúcifer sempre tinha sido, exceto que
eles tinham algo que ele não.

Livre arbítrio.

Esse era um novo conceito que ele não conseguia parar de


pensar. Os anjos foram criados por uma razão específica, para executar
as missões ditadas pelo Dominion, as ordens do seu Pai. Isso era
inegável, inegociável. Ele falava e eles obedeciam.

Mas os humanos foram criados e viviam livres. Seu trabalho era


simplesmente existir, com a esperança de sempre ter o amor de Deus
como benção.

Isso fazia algo se retorcer dentro de Lúcifer, uma mudança na sua


mente, pensamentos e sentimentos estranhos invadindo o mundo do
Arcanjo. Ele era um irmão invejoso, se perguntando porque seu Pai
amava um filho diferente mais do que a ele.

Ele se ressentia de Adão.

O humano tinha tudo.

~ 57 ~
Lúcifer parou no meio do Jardim, debaixo da Árvore do
Conhecimento, a única coisa proibida para aqueles humanos. Lúcifer
viveu uma existência de obediência, e ainda assim a única regra para
essas criaturas com coração era ‗não toque nessa árvore‘.

Uma árvore.

Lúcifer correu os dedos pela casca suave. Não tinha nada de


especial, nada de diferente das outras árvores do jardim. Se Deus não a
tivesse assinalado como especial, nenhum deles a teria notado. Era um
teste, Lúcifer sabia... era o jeito do seu Pai de garantir a obediência
deles, dos impecáveis e perfeitos humanos que ele tanto amava.

Besteira.

A mulher chamada Eva se aproximou, sem saber da presença


dele. Ela jogava olhares para a árvore, mas nunca se aventurou muito
perto. Talvez tenha sido por amor, como seu Pai acreditava, mas Lúcifer
detectou algo mais. Era a primeira vez que ele sentia isso. Medo. Medo
do que aconteceria se ela a tocasse, medo dos segredos guardados na
fruta. Lúcifer a observou por um tempo, sua frustração aumentando a
cada segundo.

Ele se inclinou contra a árvore, cruzando os braços sobre o peito.


Uma serpente verde se enroscou em um galho acima dele, chamando a
atenção de Eva.

Coma da árvore, ele pensou, projetando o sentimento diretamente


para ela. Ela tencionou como se suas palavras silenciosas tivessem
soado altas e claras pelo jardim. Seus olhos correram ao redor, seu
medo crescendo, antes do seu olhar voltar para a serpente.

Ela pensou que a criatura estava falando com ela.

Experimente a fruta, ele pensou. É a melhor que há.

Eva andou na sua direção, se aproximando da árvore mais que já


tinha antes. Seus batimentos eram selvagens, o eco de um tambor nos
ouvidos de Lúcifer.

A voz dela era baixa, seus olhos hesitantes na serpente. — Nós


não devemos comer da árvore. Deus disse a Adão...

Besteira, Lúcifer pensou, a cortando. Essa é a Árvore do


Conhecimento. Você não acha que ter sabedoria é algo bom? Você não
quer mais conhecimento? Você não quer estar mais perto Dele?

~ 58 ~
— Mas...

Experimente, ele pensou de novo. Toque. Prove. Coma a fruta.

Ela hesitou, olhando fixamente para a árvore, antes de se


aproximar ainda mais, seu corpo involuntariamente tocando no de
Lúcifer. Estendendo a mão, ela pegou uma maçã do galho mais próximo
da serpente e a levou aos lábios, hesitando um momento antes de dar a
primeira mordida.

Um gemido suave escapou dos lábios da mulher e ela fechou os


olhos, o suco da maçã escorrendo pelo seu queixo. Um sorriso curvou
os lábios de Lúcifer enquanto ele a observava saborear a fruta proibida.

Ele se perguntou que gosto teria.

A Árvore do Conhecimento. Ele não tinha certeza do que a


humana tinha ganhado com isso, mas ele certamente aprendeu alguma
coisa.

Os novos filhos do seu Pai não eram tão perfeitos como Ele
esperava.

*****

Só havia uma coisa pior que o Inferno.

O Inferno sem um Rei.

No momento em que Lúcifer passou pelo sexto portão, um


turbilhão o sugou de volta para a cova, e o caos o cumprimentou. O
borrão do ambiente ao seu redor se clareou, o sétimo portão podendo
ser tocado. Ele era diferente agora, o escudo mágico translúcido mais
forte, os símbolos que uma vez marcaram a pele de Lúcifer agora
estavam inscritas diretamente no portão. Era o único jeito de manter os
demônios do lado de dentro, de impedir o mal de cruzar o limite e ir
diretamente para a Terra na ausência de Lúcifer.

Ele pausou a alguns metros de distância, observando a loucura.


Ele não esteve por perto para manter a ordem – tudo amarrado, por
assim dizer – então isso estava um pouco mais do que um poço sem
fundo de anarquia. O fogo rugia enquanto demônios corriam livremente,
lutando e fodendo, torturando e provocando. Cada Inferno que existia
convergiu em um pesadelo gigante de explodir a mente.

~ 59 ~
Isso revirou o seu estômago.

Eles eram selvagens.

Luce se aproximou lentamente, o portão ao alcance dos seus


dedos. Tudo do lado de dentro estava preso lá, os ceifeiros
constantemente atacando os que chegavam muito perto, os cortando
em pedaços como tinham feito com Luce muitas vezes antes. Ele
observou por um momento do lado protegido do portão, contemplando
hesitante, antes de soltar um suspiro profundo e entrar.

No segundo em que ele entrou no Inferno, o cenário mudou. Era


como se uma correnteza passasse, levando a loucura e apagando os
incêndios, a lava incandescente endurecendo, o Inferno voltando a ser o
que Serah tinha visto no dia em que se aproximou do portão.

O Inferno de Lúcifer.

Desolação.

Raios brilharam, trovões ecoaram, fazendo o chão estremecer, e


os demônios saltarem. As asas de Lúcifer tinham emergido, ofuscando
tudo, obscurecendo o Inferno em sombras. Os demônios imediatamente
pararam o que estavam fazendo e se curvaram enquanto ele
permaneceu ali, os olhos passando sobre todos, a raiva crescendo
dentro dele.

Ele não disse nada.

Com um estalar dos dedos, eles desapareceram. De volta para as


suas jaulas, forçados de volta ao seu tormento quando Lúcifer os
prendeu novamente.

Todos exceto um.

Lire.

O demônio não estava muito longe à sua frente, curvado


obedientemente. Lúcifer andou até ele, chutando o seu lado com força.
— Se levante.

Lire tropeçou para levantar. — Meu Senhor.

— Tenha certeza que todos estejam presos novamente, — Lúcifer


disse. — Se você encontrar qualquer retardatário, me deixe saber e eu
vou fazer com que se arrependam por me desobedecer.

~ 60 ~
— Sim, tudo que você precisar, — Lire se virou para fugir para
longe, mas parou depois de alguns passos. — Meu Senhor, é ótimo ver
você, mas eu pensei que as coisas estavam boas na Terra. Nós fomos
informados que você estava andando livremente.

— Eu estava.

Lire o encarou. — Então por que você está aqui?

Luce não tinha resposta para isso. Com outro estalar dos dedos,
Lire desapareceu, sumindo da sua vista. Por que ele estava aqui? Ele
não sabia. Esse era o último lugar em que ele queria estar. Mas estar na
Terra, perto de Serah, e não ser capaz de tocá-la ou estar com ela?

Bem, talvez houvessem duas coisas piores que o Inferno.

Luce começou a andar pela longa e sinuosa estrada de terra, indo


diretamente para o castelo decrépito, sem passar por nenhuma outra
alma pelo caminho. Ele entrou, foi direto para a sala de conferências e
se sentou no seu trono esculpido em mármore na frente da longa mesa.
Se curvado, ele soltou um suspiro exasperado e puxou o velho baralho
de cartas do bolso.

Ele não jogou War hoje.

Hoje, ele jogou Paciência.

*****

As sacolas plásticas mordiam a pele de Serah, cortando a


circulação enquanto ela tentava andar carregando uma dúzia delas,
presas com firmeza em suas mãos e ao redor dos pulsos.

Fazer compras no supermercado era um saco. Literalmente.

Ela passou o estacionamento em direção ao motel, tentando


carregar tudo, mas acabou sendo demais. Gemendo, ela largou as
sacolas no meio do terreno e flexionou os dedos, vermelhos brilhantes
do esforço.

Ela precisava de um carro.

Ela podia comprar um com todo o dinheiro que economizou


trabalhando e morando no motel. Na verdade, ela juntou tanto nos
últimos meses que poderia se mudar para o seu próprio lugar. Morar e

~ 61 ~
trabalhar no mesmo lugar não era bom para ela, mexia com a sua
cabeça, tanto que ela desmaiou em uma das camas semana passada,
caiu no sono no meio do trabalho.

Isso não era nada do seu feitio.

Ela tinha sonhado com o homem de novo, o homem que estava


sempre por perto, sem estar ali realmente. Foi peculiar, e ela podia se
lembrar dele tão vividamente, cada detalhe do seu rosto, cada som da
sua voz. Foi a primeira vez de todas que ela o viu que ele falou com ela
de verdade.

Sua chefe lhe ofereceu um novo trabalho, um tipo de promoção,


trabalhando horas regulares atrás do balcão de recepção à noite, então
Serah imaginou que estava na hora de seguir em frente, achar uma
rotina normal, tentar reconstruir uma vida.

Ela não tinha visto o estranho desde que tomou essa decisão.

Nada daquilo era real, de qualquer maneira. Ele não era real. Sua
imaginação estava correndo solta, conjurando fantasmas em seus
sonhos.

Ou talvez você é realmente louca, como os médicos suspeitavam.


Quem tem uma vida inteira de memórias arrancada durante uma maldita
tempestade de raios?

Suspirando, Serah se abaixou para pegar as sacolas novamente


quando uma voz nas proximidades cortou o ar, a chamando. — Aqui,
me deixe ajudar você.

Ela rapidamente olhou para o lugar de onde vinha a voz


desconhecida com um pouco de sotaque, e viu um homem que nunca
tinha visto antes. Ele vestia um terno azul, seu longo cabelo estava
puxado para trás. Ele tinha uma aparência incomum, seus traços
afiados como uma pedra esculpida até o nariz pontudo. Ele sorriu
gentilmente, porém, uma sensação de formigamento rastejou ao longo
da sua espinha quando ela olhou nos seus olhos. Azul brilhante,
brilhante... estranhamente azul... o tipo de azul que lhe parecia
familiar, como o lago com a mais fria e pura água.

Isso a deixou em transe por um momento. O homem não era


particularmente atraente, mas aqueles olhos eram.

— Hm, ok, — ela disse, piscando para sair do seu estupor


enquanto estremecia com um arrepio. Ela devolveu o sorriso quando ele
facilmente pegou todas as sacolas. — Obrigada.

~ 62 ~
Ele acenou. — De nada, minha senhora. Mostre o caminho.

Ela continuou pelo estacionamento, indo diretamente para o seu


quarto, e abriu a porta. O homem colocou as sacolas dentro, parando
perto da porta, e sendo educado ao não entrar sem permissão.

— Eu agradeço isso, — ela disse de novo. — Mesmo.

— Não diga isso, — ele disse. — É o que um cavalheiro faria.

Nos últimos seis meses, Serah não tinha encontrado muitos


cavalheiros. Ela tinha sido assediada, chamada e até azucrinada, mas
não foram muitos os que saíram do seu caminho para abrir portas e
carregar coisas para ela.

Essa era com certeza uma boa mudança.

— Eu sou Sarah, — ela disse educadamente, estendendo a mão


para ele. — Ou, bem, você pode me chamar de Sarah. É assim como
todos me chamam agora.

Ele a olhou com peculiaridade por um momento antes de estender


a mão e apertar a dela, levando-a até a boca, pressionando um beijo
leve que quase fez Serah corar.

— Sarah, — ele disse. — Você pode me chamar de Don.

*****

— Meu Senhor!

As portas duplas da sala de conferências abriram


inesperadamente. Lire entrou correndo sem bater. Luce levantou os
olhos das suas cartas, a irritação pela interrupção aparecendo em sua
expressão. Luce esteve fora por seis meses, é verdade, mas isso não era
nada comparado aos seis mil anos que ele passou aqui embaixo antes.
Como eles esquecem rápido.

Luce estava fora do seu assento e bem na frente de Lire antes que
o demônio pudesse dizer mais uma palavra. Agarrando o seu pescoço,
Luce o levantou do chão, o fazendo engasgar quando bateu as costas do
demônio contra a parede ao lado da porta. Ele voou, agarrando a mão
de Luce enquanto lutava contra o seu aperto. — Eu não me lembro de
permitir que você entrasse.

~ 63 ~
— Meu Senhor, — Lire disse de novo, sua voz tensa. — Há um
anjo no portão.

Luce olhou para ele por um momento, afinando seus sentidos


para tentar sentir a presença celestial, mas o portão estava muito mais
forte. Ele mal podia sentir qualquer coisa além dele. Michael tinha se
superado dessa vez. Não havia como escapar dessa mágica. — Que
anjo?

— Um Dominion, — Lire disse.

Ah. Luce soltou Lire. O demônio caiu no chão duramente


enquanto Luce se virava e voltava para o seu trono de mármore,
sentando nele. Ele acenou a mão bruscamente, gesticulando para Lire
sair quando o demônio conseguiu ficar de pé. — Mande ele embora.

Lire levantou as sobrancelhas com surpresa. — Você não quer


falar com ele?

Luce balançou a cabeça. No passado ele tinha se divertido com os


seus visitantes angelicais, se entretendo ao provocá-los, tentá-los,
persuadi-los... mas não havia mais sentido. Ele podia convencer
centenas dos seus irmãos e irmãs a cair, mas isso não iria fazer
diferença. Isso não mudaria merda nenhuma.

Além disso, o Dominion o irritava demais.

Lire saiu correndo, deixando Luce mais uma vez sozinho. Ele
voltou a jogar Paciência.

Todos os dias, pontualmente, o Dominion aparecia no portão. E


todos os dias, um minuto depois, Lire o mandava embora. Isso durou
uma semana – uma longa e tediosa semana em que Luce quase não
saiu do seu trono. Nada mais o atraía.

Era o sétimo dia, e Luce virava cartas na mesa quando as portas


da sala abriram outra vez. Luce fechou os olhos, suspirando
exasperadamente, quando Lire explodiu sala adentro.

— Meu Senhor, — ele gritou. — O anjo...

— Eu juro, Lire, se você veio até mim por causa do Dominion


outra vez, eu vou te estripar todos os dias pelo resto da sua existência
miserável.

— Não o Dominion, — Lire disse, sua voz quase frenética. — É...

~ 64 ~
Antes que Lire pudesse terminar, Luce sentiu o formigamento
correndo por ele, a Graça poderosa, tão maldita familiar e convidativa,
se não fosse o cheiro pungente que a acompanhava. — Michael.

Dentro de segundo, o cheiro de água estagnada encheu o ar e Lire


engasgou com as palavras. Luce abriu os olhos outra vez, olhando na
direção da porta para encontrar o demônio empalado no final da espada
de Michael. Ele puxou a lâmina e o demônio explodiu em fumaça e fogo,
todos seus traços desaparecendo do ambiente.

Balançando a cabeça, Luce se voltou de novo para as suas cartas,


misturando as que estavam em sua mão. — Isso foi inútil. Ele vai estar
completamente regenerado amanhã.

— Inútil, talvez, — Michael disse, — mas ainda satisfatório.

— Autoindulgência, — Lúcifer disse. — Isso não é algo que aquele


bom livro condena?

— Não é autoindulgência quando é para um bem maior, —


Michael disse. — Ele era mau.

— Mas ele não machucou você, — Luce apontou. — Na verdade,


ele estava anunciando a sua chegada. Você deveria agradecer a ele. Ele
parece pensar que você é grande coisa, irmão. Ele provavelmente teria
organizado um desfile em sua honra se você pedisse.

Michael zombou. Luce voltou a virar cartas, jogando seu jogo sem
dizer outras palavras. Depois de um momento, Michael entrou na sala.
— Lugar legal você tem aqui.

Luce parou o que estava fazendo e olhou para Michael, sentindo o


sarcasmo na sua voz. Tão fora do papel do Arcanjo linha-dura. — Por
que você está aqui, Michael? Não me entenda mal, isso é audacioso.
Antes de hoje, Serah foi a única que teve coragem de entrar aqui, e ela
só fez isso porque estava desesperada. Então eu não posso evitar me
perguntar o que você quer de mim.

Michael olhou para ele, sua expressão estoica. — O Dominion


esteve chamando você por uma semana, mas você não respondeu.

— Sim, bem, eu não estava com humor para companhia.

— Você tem uma missão, — Michael disse, ignorando o


comentário zombeteiro.

~ 65 ~
— Olhe, eu estou de volta aonde você me queria... o que mais você
espera? Que eu dê a porra de uma festa de inauguração para provar
que me acomodei?

— Uma missão diferente, — Michael explicou. — Uma importante.

— Importante o suficiente para o meu irmãozinho se aventurar ao


lugar mais infeliz da Terra para entregar a mensagem? — Luce se
inclinou para trás em seu trono, colocando os pés sobre a mesa
enquanto olhava para Michael com curiosidade. Ele acenou na direção
da cadeira na outra ponta da mesa. — Sente-se.

Michael não se sentiu. — Existe uma revolta entre os anjos.


Alguns dos seus antigos seguidores, aqueles que foram perdoados pela
sua libertinagem, estão planejando outro levante.

— Libertinagem, — Luce ecoou. — É assim que nós estamos


chamando?

— Como você chamaria?

— Eu chamaria de ter opiniões divergentes... com reservas.

Michael o encarou. — Não importa como nós chamamos. Eles


estão planejando terminar o que você começou.

— Bem, bom para eles, — Luce disse. — Talvez eles tenham mais
sorte que eu.

— Você não vê as implicações disso? O que pode acontecer se eles


tiverem sucesso? O mundo seria destruído, consumido pelo pecado, os
humanos seriam corrompidos além da salvação.

— E daí?

— E daí? — Michael deu um passo mais perto, sua voz cada vez
mais furiosa. — Você os amaldiçoou à mortalidade, e diz ‗e daí‘? Você
condenou anjos a caírem na Terra e então não se importa que a Terra
seja destruída? Nós vimos juntos tudo isso ser criado! Como você pode
não se importar? Como você pode não ligar quando ela está lá?

À menção de Serah, sem que sequer seu nome tenha sido


pronunciado, cada centímetro de Luce endureceu. Seus olhos se
estreitaram para o seu irmão. — Você tem muita coragem mesmo para
me falar dela.

— Eu? — Michael perguntou incrédulo. — E o que você fez com


ela?

~ 66 ~
— Eu dei a ela uma segunda chance! — Luce disse. — Quando ela
morrer, vai voltar para o Paraíso, que é onde ela pertence. Você tentou
condená-la ao Inferno, o único lugar onde ela nunca deveria estar.
Então quem é cruel aqui, irmão? Quem é aquele que não se importa?

— Eu estava fazendo o meu trabalho.

— E isso é sempre o que importa para você, — Luce disse. —


Trabalho, trabalho, trabalho... mas eu quero viver. Eu queria viver.

Michael olhou para ele por um momento antes de olhar ao redor


da sala. — Vida legal você tem aqui.

— Vá se foder.

— Enquanto você senta aqui no seu exílio autoimposto, eu vou


limpar a sua bagunça mais uma vez, — Michael disse. — Eu sabia que
você era corrompido, escória, mas nunca percebi como poderia ser
covarde.

— Saia daqui, — Luce rosnou.

— Você não me dá ordens, — Michael disse, permanecendo firme


no seu lugar, o encarando desafiadoramente.

Com raiva, Luce bateu o punho na longa mesa, a força fazendo o


chão rugir e o mármore rachar, uma fratura em forma de raio irregular
correndo até o centro. — Saia daqui!

Sua voz ecoou pela sala quando um trovão estalou acima deles, o
cenário mudando conforme sua raiva explodia. Chamas emergiram do
chão, os cercando. Lúcifer podia sentir o calor intenso, podia cheirar
tudo ao redor deles sendo chamuscado, mas sabia que Michael não
sentia nenhum dos dois. Michael não sentia nada. Ele não cheirava
nada.

Até onde Lúcifer sabia, ele não era nada.

Hesitante, Michael deu um passo para trás, acenando. Michael


podia não sentir medo dele, e ele geralmente não recuava, mas Luce
tinha a vantagem aqui. Tudo que ele precisava era estalar os dedos e
Michael seria trancado em uma jaula em algum lugar, vivendo seu pior
pesadelo.

Luce estava tentado. Ele se perguntou qual seria.

Provavelmente, desapontar Deus.

~ 67 ~
Se virando, Michael andou até a saída quando as chamas
diminuíram, voltando a se retrair no chão. Ele parou quando alcançou
a porta, mas não olhou para trás. — Abaddon esteve aparecendo para
os humanos.

— Não me surpreende nem um pouco, — Luce murmurou. Não


era uma regra, por assim dizer, mas com certeza era altamente
desaprovado se mostrar sem uma razão. — Ainda não entendo o que
isso tem a ver comigo.

— Ele apareceu para ela, — Michael disse. — De todos os


humanos no mundo, por que você acha que ele a escolheu?

— Você está mentindo.

Abaddon não faria isso... não com ela. Não sabendo quem ela era,
não sabendo o que ele sabia sobre Luce.

— Eu não minto, — Michael disse. — Você sabe disso.

Ele sabia disso. Se Michael disse, então ele pensava ser verdade.
Ele não estava sempre certo... porra, ele estava geralmente errado...
mas ele acreditava nisso.

Michael andou sem dizer mais nenhuma palavra, deixando Luce


sozinho. Ele voltou sua atenção para as suas cartas, as jogando sobre a
mesa e as fazendo voar pela sala, chicoteando pelo ar como um tornado.

Luce se lembrou de muito tempo atrás, quando ele encantou uma


humana ingênua a fazer o seu lance, a tentando sem seu conhecimento,
a usando como um peão no seu jogo.

Parece que seu velho amigo tinha arrancado uma página do seu
livro.

*****

Lúcifer parou no portão, a apenas alguns centímetros de


distância dos encantamos mágicos que prendiam todos do lado de
dentro. Ele podia sentir a energia pulsando, pressionando a sua pele,
tentando o forçar para longe. Acima, os ceifeiros voavam, sentindo a
sua presença, observando e esperando para ver o que ele iria fazer.

~ 68 ~
Suspirando, ele puxou sua faca celestial e olhou para ela. Eu
sinceramente espero que isso não saia pela culatra. Ele não estava com
humor para ser aniquilado hoje. Claro, ele iria se regenerar, na pior das
hipóteses amanhã, ou no dia seguinte, se eles o destruíssem
completamente, mas doía pra caralho ser rasgado ao meio, pedaço por
pedaço.

Tirando sua camisa preta, ele a colocou sobre o seu ombro


enquanto trazia a faca onde deveria estar seu coração. Ele estremeceu
quando a lâmina cortou a pele, o sangue vazando para a superfície, as
gotas escorrendo pelo seu peito nu, o cobrindo com filamentos
vermelhos. Luz irradiou da ferida profunda, a dor quase insuportável.
Ele apertou os dentes enquanto esculpia o símbolo elaborado no peito.

A marca de Lúcifer.

Ele não tinha visto isso – não tinha usado isso – em muito tempo,
não desde que ela foi trocada pela marca de Satanás. Cada Arcanjo
tinha a sua própria marca. Ele apenas esperava que o bastante daquele
anjo ainda existisse dentro dele para que funcionasse. A marca pulsou,
a luz diminuiu, mas não desapareceu completamente.

Apertando a faca com força, Lúcifer se encaminhou direto para o


portão. Ele resistiu, a dor da marca irradiando pelo seu corpo como
uma explosão de eletricidade, torrando o seu interior, mas os
encantamentos cederam, o empurrando para o outro lado. Na verdade,
o empurrou com tanta força que ele perdeu o equilíbrio, quase caindo,
quando soltou um suspiro profundo de alívio.

Os ceifeiros mal notaram que ele estava mais uma vez do lado de
fora.

Luce não olhou para trás, seguiu em frente, se aventurando pelos


portões e voltando para a Terra. Ele foi direto para Chorizon, direto para
o pequeno motel nos limites da cidade. Assim que chegou lá, ele a
sentiu, mas ela não era a única.

Abaddon.

— Filho da puta, — Luce murmurou, olhando na direção do


saguão principal do motel em descrença. Ele estava realmente ali. Luce
foi em frente, parando do lado de fora e olhando pela janela com a placa
fluorescente de temos vagas presa a ela.

Serah estava sentada à mesa da recepção, cantarolando para si


mesma, os pés para cima e uma revista em seu colo. Abaddon

~ 69 ~
espreitava nas proximidades, uma pedra silenciosa e imóvel a
observando. Ele era invisível aos olhos humanos – deveria ser invisível –
mas não havia como saber quando se tratava de Serah. Afinal, ela tinha
visto ele.

Don.

Luce o chamou em pensamento, o nome ecoando alto e claro da


sua mente. Abaddon imediatamente arrumou sua postura, olhando na
direção da janela um segundo antes de desaparecer do saguão. Ele
apareceu no estacionamento, um sorriso iluminando o rosto do anjo
quando ele o cumprimentou. — Luce, que bom ver você outra vez.

Luce o encarou. — O que você pensa que está fazendo?

Abaddon levantou as sobrancelhas. — Só andando por aí.

— Com Serah? — Luce perguntou incrédulo. — Você pensou que


isso era sábio? Que eu estaria bem com isso?

Abaddon levantou as mãos defensivamente. — Relaxe, irmão. Ela


não podia me ver.

— Você tem certeza disso? — Luce perguntou.

O olhar de Abaddon para o motel foi de confusão, antes de olhar


novamente para Luce. — Sim, positivo. Ela não tinha ideia de que eu
estava ali. Eu não apareci para ela.

— Mas você fez isso antes, — Luce disse, dando um passo na sua
direção. — Você apareceu para ela.

Abaddon riu levemente, encolhendo os ombros como se isso não


fosse grande coisa. — Ela precisava de ajuda. É o que Anjos da Guarda
fazem, não é? Ajudam os humanos.

— Ela não é apenas uma humana, — Luce disse. — Ela é


diferente e você sabe. Fique longe dela.

— Ah, vamos lá... não seja assim.

Luce parou cara a cara com ele. — Não me faça ter que repetir,
Don. Eu não gosto de ser desrespeitado.

A postura de Abaddon endureceu, sua expressão brincalhona


desaparecendo. Se foi o velho amigo que Luce uma vez conheceu, os
olhos do anjo escureceram até virarem sombras, o profundo azul se
transformou um roxo peculiar. Era uma cor que Luce conhecia bem... o

~ 70 ~
próximo nível depois desse era preto e então vermelho, os olhos que
encaravam Luce cada vez que ele via seu reflexo em vãos de água
cristalina ou cacos de vidro caídos pela sua cova. Eram os olhos da
maldade, os olhos de alguém que tinha passado do limite e se permitiu
ser consumido pela fúria.

O azul era puro; azul era a cor da benevolência.

Quando o pecado entrava, tomando cada célula do seu corpo,


escurecendo a sua alma, o mundo se transformava em vermelho.

Abaddon estava a apenas alguns passos do ponto sem retorno.

— Cuidado, Don, — Luce avisou. — Não faça nada que você vá se


arrepender depois.

Abaddon zombou. — Eu não me arrependo de nada.

— Nada? — Luce perguntou. — Você não se arrepende de ter me


traído? De ter me dados as costas? De ter me deixado para encarar as
consequências sozinho? E os seus pecados, hm? Você não se arrepende
mais?

Se inclinando para a frente, Abaddon estreitou os olhos,


indignado, um sorriso zombeteiro torcendo os cantos da sua boca. —
Nada.

Com um estalo alto de estática, o anjo se foi e deixou Luce


sozinho no estacionamento. Antes que ele pudesse reagir, um ofego alto
ecoou pelo ar ao seu redor. Ele rapidamente virou a cabeça na direção
do som, tencionando quando viu Serah o encarando pela porta de vidro.
Seus olhos estavam fixos nele. Enquanto ele não podia ver seu próprio
reflexo no vidro, sabendo que mais ninguém estava ali, ele podia dizer
que ela o viu.

Porra.

Ela apertou os olhos com força e contou até dez. Embora ela
sussurrasse, as palavras não mais que um sopro, Luce podia ouvi-la
claramente. Ela reabriu os olhos, encontrando os dele, e piscou várias
vezes antes de fazer isso de novo.

E de novo.

Ela esperava que ele desaparecesse.

~ 71 ~
Ele provavelmente deveria desaparecer, sumir enquanto ela
estava de olhos fechados para ela pensar outra vez que ele não era real,
mas ele não podia.

Michael estava errado. Ele não era um covarde. Mas ele um


patético filho da puta que não podia deixar ela ir.

Balançando a cabeça, ele riu secamente de si mesmo antes de ir


na direção da porta. Os olhos de Serah se arregalaram quando
desceram do seu rosto e foram para o seu peito, e ela ofegou
novamente. Ele olhou para baixo, percebendo que estava sem camisa, e
embora a ferida que ele tinha infligido a si mesmo já tivesse começado a
se curar lentamente, sangue cobria o seu peito.

A porta do motel se abriu e Serah saiu para o estacionamento


escuro.

— Olá? — ela chamou. — Você está bem?

— Estou bem, — sua voz era tão baixa que ela quase não ouviu.
— Volte para dentro.

— Você está sangrando, — ela disse, ignorando a sua ordem


enquanto se aproximava lentamente. — Você precisa de ajuda? Precisa
que eu chame alguém?

— Estou bem, — ele repetiu. — Volte para dentro.

Mais uma vez, ela o ignorou, fechando a distância que ainda


havia entre eles. Lúcifer exalou audivelmente, o cheiro dela o fazendo
arrepiar quando ele pôde senti-lo outra vez. Flores. Ela tinha o cheiro
das malditas flores. Como ele sentiu falta...

Antes que ele pudesse reagir, suas mãos estavam nele, o tocando,
uma mão apertando seu braço enquanto a outra alcançava o seu peito.
Ele assobiou quando os dedos dela se conectaram com a sua pele nua.
Foi leve como uma pena, mas pareceu profundo como uma descarga
elétrica. Ele quase estremeceu.

— Oh, Deus, eu não machuquei você, não é? — ela perguntou,


tirando as mãos. — Você está ferido. Nossa, você está queimando! Eu
sinto muito. Eu só... vamos lá, entre. Eu vou conseguir ajuda.

— Estou bem, — ele disse pela terceira vez, mas era inútil. Ela o
puxou pelo braço, e embora ele fosse forte o bastante para resistir a ela,
ele não o fez. Ele a deixou carregá-lo na direção do motel e entrou com
ela. Ela o empurrou em uma cadeira e ele se sentou, balançando a

~ 72 ~
cabeça enquanto ela tropeçava ao redor atrás de alguma coisa,
desaparecendo rapidamente na sala ao lado.

Ela voltou com um pano úmido e imediatamente começou a


limpar o sangue da sua pele. Lúcifer ficou tão imóvel quanto possível, a
observando em descrença enquanto ela divagava sem parar. — O que
aconteceu com você? Você se cortou com alguma coisa? Alguém fez isso
com você? Isso se parece com algo, como uma marca ou algo assim... já
está começando a se curar, no entanto. Há quanto tempo aconteceu?
Ainda dói? O que aconteceu com você?

As mesmas perguntas feitas em círculos.

Lúcifer não respondeu nenhuma delas, apenas a observando,


maravilhando por estar tão perto outra vez. Ela era absolutamente
linda... a perfeita pele cremosa e os mais profundos olhos castanhos. O
azul era puro, claro, como o céu acima deles, mas seus olhos castanhos
eram ricos e quentes como a terra. Havia algo reconfortante neles. Certa
vez ele invejou os humanos porque lhes foi dada a Terra, mas olhando
para ela, ele se perguntou se o Paraíso poderia ser encontrado em uma
pessoa e não em um lugar.

— O que é isso? — ela perguntou, passando o pano na ferida. —


É algo pontudo, como um triângulo com um gráfico, e um gancho e um
V. Eu, hm... eu já vi isso antes. Quem fez isso com você? O que é isso?

Levantando a mão, Luce a pousou sobre a sua bochecha, o toque


dele fazendo os olhos dela flutuarem antes de encontrar seu olhar outra
vez.

— Eu estou bem, — ele disse. — Você deveria ter ficado aqui


dentro.

Ela o encarou nos olhos, sua ansiedade diminuindo enquanto os


ombros relaxavam. Ela parou o pano perto do seu pescoço, e o único
movimento era o subir e descer do seu peito, o piscar dos seus olhos e a
batida do seu coração.

Tum.

Tum.

Tum.

Lúcifer ouviu o ritmo constante e se regozijou no som.

— Me diga que eu não sou louca, — ela sussurrou.

~ 73 ~
— Você não é louca.

— Me diga que você é real.

— Eu sou real.

— Real mesmo?

Ele sorriu, seu polegar acariciando gentilmente a bochecha dela.


— Tão real quanto você.

— Quem é você? — ela perguntou tentativamente, mordendo o


lábio inferior. — De onde você vem?

Ele riu secamente. — É uma longa história.

— Eu tenho tempo.

— Não o suficiente, — ele respondeu. — Nunca há tempo


suficiente.

Para ela, pelo menos. Luce tinha todo o tempo do mundo. A


eternidade. Mas a sua vida seria apenas um piscar de olhos no grande
esquema das coisas, e então ela estaria no Paraíso e ficaria lá. Ele ainda
estaria aqui.

Ou de volta lá embaixo.

— Eu tenho que estar louca, — ela sussurrou, mais para si


mesma que para alguém enquanto se afastava dele. Ela caiu na cadeira
ao seu lado, jogando o pano molhado na mesa. Ela passou as mãos pelo
rosto, se protegendo enquanto baixava a cabeça. — Você não é real. Eu
estou sonhando de novo. Acorde, Sarah. Hora de acordar.

— Serah, — ele sussurrou, puxando as mãos do seu rosto. — O


seu nome é Serah. E você não está louca... não tão louca quanto você
pensa, pelo menos.

Louca por se apaixonar por ele, talvez.

Com os olhos arregalados, ela encontrou seu olhar outra vez. —


Você sabe o meu nome?

— Eu sei.

— Você me conhecia? — ela perguntou, hesitando antes de


consertar. — Você me conhece?

— Sim.

~ 74 ~
— Quem sou eu?

— Essa é outra longa história.

Ela suspirou frustrada, sussurrando seu nome para si mesma,


como se estivesse o testando. Luce observou sua boca se mover,
murmurando a palavra. Porra, como ele queria beijar aqueles lábios...

— Você estava lá? — ela perguntou, a questão tirando Luce da


sua vontade de beijá-la antes que ele escorregasse e agisse por impulso.
Quem diria que ele tinha tanto autocontrole?

— Eu estava lá?

— Na rua, — ela disse. — No dia em que eu acordei. Você estava


lá? Porque eu me lembro de você... eu me lembro dos seus olhos.

Ele acenou lentamente. — Eu estava lá.

— O que aconteceu comigo? — ela perguntou. Que pergunta


difícil. Luce estava prestes a dizer que era outra longa história quando
ela o cortou. — Por favor, não importa quanto tempo leve, eu quero
saber. Eu preciso saber.

Ele considerou por um momento, considerou inventar uma


mentira, alguma história entediante e crível que iria acalmar a sua
curiosidade, mas não conseguiu. Mentir era fácil para ele, e ainda
assim, ele não podia mentir para ela sobre isso.

— Foi um erro, — ele disse baixinho. — Você estava em um lugar


onde não deveria ter ido, foi pega no meio da briga de outras pessoas e
acabou ferida por causa disso.

— Como? — ela perguntou. — Como eu me feri?

Luce ficou em silêncio por um momento, a encarando enquanto


finalmente afastava as mãos, seus dedos deixando a pele dela. — Você
confiou em alguém que não deveria ter confiado.

— Quem?

— Alguém que quase te destruiu.

Ela balançou a cabeça. — Você sempre fala tão enigmaticamente?

Ele encolheu um ombro. Ele estava tentando convencê-la de que


ela não era louca. Mais detalhes do que isso e ela iria se internar em um
hospício imediatamente.

~ 75 ~
O diabo usou você para começar o Apocalipse e então enfiou uma
faca no seu peito, mas eu juro que foi por amor.

— Você já considerou que talvez seja melhor não saber? — ele


perguntou. — Que talvez haja uma razão para você não se lembrar de
nada?

— E se fosse você? — ela perguntou. — Como você se sentiria?

Ele riu secamente. — Eu daria qualquer coisa para um total


recomeço.

— Mas eu só... eu só quero saber quem eu sou. Quero saber de


onde eu vim. Eu tenho família? Amigos? Alguém que se importe
comigo? Alguém que sente a minha falta, ou se lembra de mim ou ao
menos pensa em mim?

— Eu penso, — ele respondeu baixinho.

— E quem é você? — ela perguntou, o interrompendo quando ele


tentou escapar. — Eu sei que você disse que é uma longa história, mas
podemos tentar a versão mais curta? Um sobrenome? Qualquer coisa?

Ele considerou isso por um momento. — Luce.

— Luce, — ela repetiu, as sobrancelhas franzidas. — Isso é um


nome encurtado?

— Sim.

Ele não explicou mais. Ela não empurrou a questão. Ela o


encarou enquanto sua boca se movia novamente, dizendo o nome dele
dessa vez, um pequeno sorriso marcando os seus lábios. Porra, ele
realmente queria beijá-la...

Seus olhos finalmente deixaram os dele, o estudando, analisando


seu rosto e seu peito nu antes de encontrar seu olhar novamente. Ela
levantou uma sobrancelha, estendendo a mão. — Bem, Luce,
aparentemente eu sou Serah.

Lúcifer pegou a mão dela e apertou. — Eu sei.

— Sorte a sua que a minha memória é curta, o que significa que


isso é começar do zero para mim. Estou aprendendo tudo do início,
tentando fazer o mundo ter sentido novamente, mas tenho uma
pergunta que talvez clareie algumas as coisas.

Ele hesitou. — Estou ouvindo.

~ 76 ~
— Como você conseguiu se curar tão rápido?

Ele olhou imediatamente para baixo, percebendo que a ferida no


seu peito agora já tinha fechado. Tudo que restava era uma leve cicatriz
circular que a lâmina celestial queimou em sua pele. — A ferida era
superficial.

— E a cicatriz redonda? — ela perguntou. — De onde isso veio?

— Eu realmente não posso dizer.

— Que pena, — ela disse, puxando a gola da sua camisa para


expor um pedaço de pele. — Porque eu tenho uma dessas marcas,
também.

Lúcifer olhou para a cicatriz no seu peito. A sua ferida sumiria


totalmente amanhã, quando ele se regenerasse por completo, mas ela
era humana agora. As marcas permaneciam nos humanos. A dela se
tornou permanente no momento em que ele tirou as suas asas.

Ele não tinha certeza do que dizer, então não disse nada, se
afastando ainda mais dela ao se levantar. — Eu realmente não deveria
estar aqui, Serah.

Ele se virou para partir, ignorando seus protestos fracos lhe


pedindo para ficar. Ele não deveria estar aqui; ele não deveria estar
falando com ela ou tocando nela. A verdade só iria lhe machucar no
final.

Assim que ele saiu do motel, longe dos olhos dela, ele
desapareceu e reapareceu do lado de fora do velho bar onde ele tinha
rasteado Abaddon antes. Ele tentou sentir o seu velho amigo, porque
sua conversa não tinha terminado, mas a essência de Abaddon sumiu
assim que ele chegou.

Ele conhecia esse jogo.

O anjo estava fugindo dele.

*****

Luce.

~ 77 ~
O nome era peculiar, mas ainda assim familiar; como se fosse um
nome que Serah conhecia intimamente, um que ela tinha dito muitas
vezes antes. Luce.

Isso passou repetidamente pelos seus pensamentos, saltando fora


da sua língua depois de meses preso por lá. Fazia sentido,
relativamente falando, considerando que nada nessa situação toda era
verdadeiramente compreensível.

Ela se perguntou se estava sonhando de novo.

Em um piscar de olhos, o seu visitante estava fora da cadeira,


suas palavras não sendo registradas por ela até que ele já estava quase
na porta. Eu não deveria estar aqui. — Espere, — ela chamou. — Fique,
por favor!

Ela saltou, correndo para a porta quando ele saiu, não saindo
nem dez segundos depois nele no estacionamento escuro e
completamente vazio.

Ele tinha ido.

— Espere! — ela gritou, olhando ao redor. Ele não poderia ter ido
muito longe. — Volte!

— Procurando alguém?

Ela saltou com a voz inesperada e próxima. Um homem estava


parado na esquina a apenas alguns metros de distância. Como ela não
o tinha visto até agora? Não era Luce, mas quando ele se aproximou, ela
o reconheceu. Ela o encontrou antes, não muito tempo atrás: era o
homem que tinha carregado as suas compras.

Don.

— Hm, sim, — ela disse rapidamente. — Você não viu ninguém


passar por aqui?

— Não, — ele disse. — Eu deveria?

— Eu, hm... eu não sei, — balançando a cabeça, ela olhou para o


estacionamento mais uma vez, não vendo sinal dele em lugar algum.
Era como se ele tivesse desaparecido no ar outra vez. Típico. — Acho
que não.

Suspirando, ela se virou e entrou novamente no saguão do motel,


tentando afastar a sensação peculiar subindo pela sua pele, o

~ 78 ~
formigamento ao longo da sua espinha. Ela podia sentir o homem
quando ele entrou atrás dela.

— Eu posso te ajudar com alguma coisa? — ela perguntou,


pegando o pano ensanguentado da mesa, a única evidência que ela
tinha que seu visitante tinha sido real.

— Eu estava esperando que sim.

— Você precisa de um quarto? — ela perguntou, levantando as


sobrancelhas com curiosidade. — Nós temos alguns vagos.

— Não, eu receio que não preciso desse tipo de ajuda.

— Que tipo de ajuda você precisa?

— O tipo que eu acredito que somente você pode dar.

Ele sorriu, uma espécie de sorriso astuto que fez as defesas de


Serah levantarem. Ela se virou para longe dele, cuidadosamente
dobrando o pano e o deixando sobre a cesta de roupas para lavar pela
manhã. — Eu não tenho certeza se posso te ajudar, senhor, mas eu...

Ela se virou novamente, parando no meio da frase quando


percebeu que estava sozinha. Ela olhou para o ponto que ele tinha
acabado de ocupar, e uma sensação cresceu dentro dela, fez seu
estômago revirar, seu coração bater selvagemente. Ela não ouviu a
porta abrir, não o ouviu sair, mas ele não estava mais lá.

Eu estou perdendo a cabeça.

Depois de uma rápida olhada no saguão para se certificar de que


estava realmente sozinha, ela voltou ao seu assento junto à mesa,
tentando ignorar o mal-estar crescente no seu interior. Havia algo muito
errado, algo acontecendo que ela não conseguia entender.
Distraidamente, sua mão subiu ao peito e ela esfregou a cicatriz através
da camisa.

Ela tinha a sensação de que isso podia ser a chave para tudo.

~ 79 ~
Capítulo Três
A casa térrea era pitoresca, branca com janelas azuis, localizada
em um bairro tranquilo na direção da extremidade sul de Chorizon, a
apenas algumas quadras da escola primária. A placa de ‗aluga-se‘ ainda
estava presa na cama desgastada do jardim da frente, mas Serah já
tinha assinado seu nome na linha pontilhada, fazendo dela a inquilina
oficial.

Ou parte do seu nome.

Aquele que ela tinha certeza que era o seu nome agora, aliás.

Sua chefe, Gilda, conhecia os proprietários e a ajudou a alugar a


casa, apesar da sua falta de história, crédito ou qualquer outra coisa
que as pessoas precisavam para ter o seu próprio lugar.

Esse era dela agora – pelo próximo ano, pelo menos.

Era uma quente manhã de domingo, o sol já brilhava forte às


nove da manhã. Serah saiu de casa usando um leve vestido de verão e
sapatilhas brancas, seu longo cabelo preso em um rabo de cavalo. Ela
não tinha planos, nenhum lugar para ir ou algo para fazer, então ela
vagou pela cidade como sempre, observando as ruas enquanto pensava
em cada dia dos últimos meses. Tudo estava muito movimentado para
um domingo, as ruas explodindo de pessoas a caminho da igreja. Havia
muitas igrejas pela cidade, desde catedrais elaboradas até pequenas
construções peculiares fechadas como celeiros, mas Serah sempre
acabava indo ao centro comunitário da cidade em vez desses lugares.

Ela tinha se sentado na igreja algumas vezes – parecia a ser a


coisa a se fazer aqui, e algo nisso sempre lhe era familiar, como se ela
estivesse em casa ao sentar na cadeira dobrável de metal enferrujado no
centro comunitário recém reformado. Ela conhecia as escrituras, sabia
as histórias que o pastor recontava, algumas vezes quase corrigindo o
homem quando ele interpretava algo errado. Ela se forçava a ficar em
silêncio, no entanto, apenas ouvindo. Afinal de contas, ele era a
autoridade no assunto.

~ 80 ~
O que ela sabia?

Ela tinha acabado de aprender seu próprio nome.

O espaço estava meio cheio hoje, os visitantes habituais


ocupando suas cadeiras. Serah se sentou na frente e ouviu o pastor
falar sobre o Grande Dilúvio. Ela passou pelas margens da sua nova
Bíblia – um presente de casa nova de Gilda, que apenas lhe deu uma
das que sobraram do pedido que fizeram para colocar nas mesas de
cabeceira dos quartos do motel. Sua mente vagava... ela conhecia essa
história como a sua própria mão... enquanto ela distraidamente
desenhava um símbolo geométrico peculiar, uma renderização da marca
que ela tinha visto não fazia muito tempo. Um triângulo invertido que
envolvia dois ganchos, um X cortando através dele, com a letra V por
baixo de tudo. Ela tinha desenhado isso muitas vezes na última
semana, tentando achar significado para as formas, que ela
provavelmente poderia reproduzi-lo dormindo. O que era isso? O que
significava?

Por que isso estava marcado na pele dele?

Era uma marca persistente, uma marca que ela também


carregava.

Aquela marca esteve alguma vez na sua pele, também?

Quando o sermão terminou, ela se levantou para sair quando o


pastor a parou. — Sabe, algumas pessoas acreditam que é errado
escrever em Bíblias. As revelações nos dizem para não somar nem
diminuir nada das palavras de Deus.

Ela sorriu suavemente. — Isso não é para ser interpretado


literalmente.

Suas sobrancelhas se levantaram. — Não?

— É apenas um livro, — ela disse, levantando a sua Bíblia. — É


só papel e tinta. Ele é o meio, não o fim.

— É um jeito de olhar para isso, — ele disse, levantando sua


própria Bíblia com um sorriso, a página toda com trechos em destaque
e rabiscos de anotações. — Eu tendo a concordar.

— Além disso, eu não estava escrevendo, — ela disse. — Estava


desenhando.

— Oh? O que você estava desenhando?

~ 81 ~
Ela abriu na página que estava rabiscando e mostrou para ele.

A expressão do pastor caiu lentamente enquanto olhava o


desenho. — Não posso dizer que eu tenho um desses no meu livro. Não
posso dizer que algum diria colocaria uma marca dessas no meu livro.

As sobrancelhas de Serah se juntaram. — Você já viu isso antes?

— Claro, — ele disse, fechando sua Bíblia antes de limpar a


garganta, se virando para longe dela. Seus olhos calorosos de repente
ficaram gelados. — Me desculpe.

Ele começou a se afastar quando ela parou na frente dele no


altar. — Espere um segundo... onde você viu isso antes?

Ele somente parou por uma fração de segundo. — Essa é uma


das marcas de Satanás, uma que ele possuía antes da sua queda.

Serah apenas ficou ali parada enquanto o homem saía apressado.


Satanás? Balançando a cabeça em descrença, ela olhou para o seu
desenho antes de fechar a Bíblia outra vez.

Ele deveria estar enganado.

Suspirando, ela saiu do centro comunitário e andou pela rua,


indo na direção da casa nova.

Seu bairro estava vivo com atividades quando ela chegou, as


pessoas faziam jardinagem, as crianças brincavam, outros
aproveitavam o sol. Alguns garotos jogavam basquete algumas casas
abaixo, o homem do outro lado da rua estava cortando a grama. Serah
se aproximou de casa, carregando a sua Bíblia debaixo do braço,
quando uma bola vermelha de repente passou voando por ela, quase a
acertando antes de parar no seu jardim.

Com as sobrancelhas juntas, ela se abaixou e pegou a bola


quando uma voz aguda cortou o ar às suas costas. — Você ainda está
perdida?

Serah se virou para ver uma pequena criança com o cabelo


castanho revolto e olhos grandes. Ela se lembrava vagamente dela,
recordando seu encontro do lado de fora da escola primária não muito
tempo atrás. — Não, eu me achei, — ela disse, sorrindo calorosamente
enquanto entregava a bola. — É sua?

A garotinha acenou entusiasmada, pegando a bola dela. — Você


ainda tem amnésia?

~ 82 ~
— Eu tenho, — Serah disse, surpresa pela criança se lembrar do
seu incidente. Nicki, ela lembrou seu nome. Ela tinha um pai chamado
Nicholas e uma mãe chamada Samantha. — Eles dizem que vou ter isso
para sempre.

— Então você não se lembra de nada?

— Eu me lembro de algumas coisas, — ela disse. — Eu me lembro


de conhecer você, por exemplo.

Nicki se animou.

— Oh, e eu me lembro do meu nome agora, — ela disse. — Ou


melhor... alguém me disse o meu nome. É Serah.

— O meu ainda é Nicki, — a garota disse. — Você mora aqui


agora?

— Sim.

— O Sr. Johnson é quem morava aqui. Ele não era tão legal. Ele
ficou furioso quando a minha bola acertou o seu vidro, porque minha
mãe disse que ele não gostava de crianças. Mas então ele se casou com
uma linda rainha e se mudou para longe. Mamãe os chama de A Bela e
a Fera, porque ele era peludo e cruel, mas a Fera era um cara legal,
então eu acho que na verdade ele era o Gastão, — Nicki pausou para
respirar. — Oh! Talvez seja isso que você precisa!

Serah arregalou os olhos. — Uma fera?

— Não, boba, um sapo.

Serah a fitou incrédula. — Um sapo?

— Você nunca leu contos de fadas? Você beija um sapo e ele se


torna um príncipe!

Serah imaginou que talvez ela não fosse a única louca. — E como
um príncipe sapo vai me ajudar?

Nicki encolheu os ombros. — Eles sempre ajudam as princesas


nas histórias.

Antes que Serah pudesse responder, uma voz feminina veio da


casa ao lado. Levantando o olhar, Serah viu uma mulher nos degraus
da frente, uma pequena morena com a barriga crescida. Suas mãos
descansavam sobre o ventre enquanto ela as observava, sua expressão
gentil. — Nicki, hora do almoço!

~ 83 ~
— Essa é a minha mamãe, — Nicki disse. — Eu tenho que ir. Fico
feliz que você se encontrou!

Nicki saiu correndo antes que Serah pudesse dizer alguma coisa.
Ela observou a garotinha desaparecer dentro de casa, sorrindo
suavemente. Algo na sua inocência era tão familiar, tão reconfortante.

*****

Lúcifer parou no estacionamento silencioso, apoiado de costas no


velho motel. Já era quase de manhã, o céu ainda escuro, apenas um
leve brilho laranja marcando o horizonte. A cidade estava quieta, a
maioria das pessoas dormindo.

Todos exceto ela.

Ela ainda estava trabalhando.

Ele não tinha certeza de porque estava aqui. Ele nem pensou
sobre isso. Ele rastreou Abaddon ao redor de todo o maldito globo,
pulando de um lugar para o outro, antes de finalmente acabar onde
tinha começado.

Ele era um fraco.

Ela era a tentação.

Luxúria era o seu pecado favorito, mas ele estava começando a


desgostar da sua contraparte, a ganância. Porque ele era insaciável,
especialmente no que dizia respeito à ela. Ele queria mais e mais e
mais. Nunca era o suficiente.

Ele se perguntou se algum dia seria.

Tinha que ser.

Ele sabia que deveria se afastar, que ele precisava se afastar,


manter distância, mas ele não conseguia. Por mais que ele tentasse,
sempre acabava de volta aqui. Os cuidados que se danassem...

O sino da porta do motel soou e suaves passos vieram pelo


estacionamento. Seis da manhã em ponto, Lúcifer sabia. Provavelmente
nem um minuto depois. Humanos eram bons com o tempo. Era
peculiar a forma como eles monitoravam cada hora, minuto, segundo,
se obrigando a aproveitar cada pecadinho de tempo que lhes foi dado.

~ 84 ~
Ele pensava que isso deveria fazer sentido quando você só tem algumas
décadas garantidas para passar na Terra. Sessenta, setenta, oitenta
anos, se tiver sorte.

Ele gastou mais tempo que isso em uma longa partida de cartas.

O tempo sempre foi nada para ele. Mil anos eram um segundo.
Seis mil anos quase não foram o bastante para ele ficar completamente
irritado por ter sido preso na cova. Ele nunca percebeu como tinha
desperdiçado até estar sob o ponteiro de um relógio, o seu tempo com
ela cada vez menor.

Isso fez com que algo dentro dele se materializasse quando ele
deixou esse pensamento afundar, algo que ele nunca tinha sentido
antes. Culpa.

Culpa, porque só havia uma pessoa para culpar pela vida curta
dos humanos, e ao contrário da crença popular, não era Eva.

— Café?

Ele fechou os olhos rapidamente, deixando que o som da voz dela


corresse pelo seu corpo, antes de se virar lentamente. Serah estava
parada a alguns metros, os olhos fixos nele. Embora ele soubesse, lá no
fundo, que ela o via, seus olhos ainda vagaram pelo estacionamento,
certo de que tinha que ter alguém – qualquer pessoa – com quem ela
estava falando. Mas eles estavam sozinhos.

— Café? — ele perguntou. — O que tem isso?

— Você quer tomar café?

Ele franziu o cenho. — Para quê?

— Para beber, — ela disse hesitante. — E, eu não sei, pensei que


talvez nós pudéssemos sair e... conversar, eu acho.

Café. Beber. Sair. Conversar.

Com ela.

Lúcifer a encarou por um momento. A lógica lhe disse para se


virar e ir embora, mas a maldita ganância se manifestou, implorando
para que ele aproveitasse cada segundo da curta vida que ela podia
oferecer a ele. Ela já tinha dado tanto, afinal de contas. Se ele dissesse
não agora, ela podia não lhe oferecer mais.

~ 85 ~
— Não precisa ser café, — ela disse incerta. — Eu nem gosto de
café. Nós podemos tomar café da manhã na lanchonete no fim da rua.
Quero dizer, todo mundo tem que comer, certo?

— Certo, — ele disse, arrastando a palavra. Exceto que ele não


era ‗todo mundo’... ele era um ninguém, ou alguém, dependendo do
ponto de vista. Um ninguém que não existia, não de verdade, não aqui,
mas dizer sim significava que ele precisava ser alguém. Ele teria que
quebrar a sua regra, a única regra que ele manteve por tanto tempo, a
única regra que ele jurou nunca quebrar. A única que ele nunca quis
quebrar. Não até esse momento, pelo menos.

Ele ia ter que se mostrar para os humanos.

Ela podia vê-lo, mas ele ainda não era visível para os outros, e ele
não podia ter ela parecendo certificadamente insana, conversando em
público com alguém que não estava ali.

Como se ela pudesse ler a sua mente, ela balançou para trás, sua
voz um sussurro desesperado. — Por favor? Eu não sou louca... eu não
sou.

— Eu sei que você não é, — ele disse. — E sim... nós podemos


tomar café da manhã.

Seus ombros pareceram sacudir de alívio, um pequeno sorriso


aparecendo nos seus lábios com a resposta dele. — Ótimo, hm... bem,
vamos lá.

Ela acenou com a cabeça na direção da lanchonete antes de se


virar de costas para ele. No momento em que isso aconteceu, ele deu
uma rápida olhada no estacionamento, se certificando de que não havia
uma viva alma por perto, antes de baixar a guarda completamente. O ar
ao seu redor estalou, como se consumido pela estática, seu corpo
formigou com um brilho suave e ele se tornou visível.

Serah olhou para ele, para ter certeza de que ele estava
acompanhando, seus passos vacilaram, um olhar de surpresa tomou
suas feições quando ele andou em frente.

— O quê? — ele perguntou, levantando as sobrancelhas enquanto


ia até ela, parando bem ao seu lado.

— Oh, hm, nada, — ela disse, um tom de rosa suave esquentando


suas bochechas. — É só que... eu não sei. Estranho.

— O que é estranho?

~ 86 ~
— Você pareceu meio como se estivesse brilhando a um segundo
atrás, — ela disse, o corado desaparecendo. — Deve ter sido a luz ou
algo assim.

— Deve ter sido, — ele respondeu, surpreso que ela conseguiu ver
isso, embora não devesse. Ela estava vendo e sentindo coisas que não
deveria o tempo todo.

Eles caminharam em silêncio até a lanchonete, o sol nascendo, o


brilho laranja se expandindo e cobrindo tudo com uma luz suave. Eles
estavam tão próximos que seus braços quase se encostavam, mas Luce
se certificou de não tocar nela. Quando ela se movia, ele se movia, se
mexendo a uma fração de centímetro de distância, como se fossem imãs
desencontrados. Ele podia sentir isso, no entanto – a atração na direção
dela, o formigamento na sua pele que lhe lembrava de ser banhado pela
sua Graça.

Porra, ele tinha feito tudo errado com ela.

Uma e outra vez.

Não me deixe fazer isso de novo.

A lanchonete era bem iluminada, mas havia somente algumas


pessoas sentadas a essa hora. Serah parou quando alcançou a porta,
fazendo uma careta para a pequena placa no vidro.

Não permitimos a entrada de pessoas sem camisa e sem sapatos.

Ela se virou para olhar para ele, e Lúcifer sabia o que ela ia dizer
antes mesmo que dissesse algo. Ele tinha uma camiseta, sim, mas seus
pés estavam descalços.

Os olhos dela foram para a calçada e estudaram os seus pés. —


Você é um sem-teto?

Silêncio os rodeou por um momento. Luce podia dizer que ela


estava ansiosa para perguntar isso, podia sentir a sua apreensão, mas
suas palavras soaram engraçadas para ele. Ele riu, incapaz de se
conter.

Porque sim, ele era um sem-teto, relativamente falando. Ele com


certeza não tinha nenhum maldito lugar para chamar de casa.

— Entre e se sente, — ele disse, passando por ela para abrir a


porta. — Eu volto em um minuto.

~ 87 ~
Ela hesitou novamente, como se pensasse que ele podia estar lhe
enganando, mas escolheu confiar nele depois de um momento.
Oferecendo um sorriso, ela entrou na lanchonete, e Luce soltou a porta.

No segundo em que teve certeza de que não havia ninguém


olhando, ele sumiu e reapareceu na quadra ao lado. Em um instante,
botas pretas se materializaram em seus pés. Com um estalo, ele voltou
exatamente ao mesmo lugar em que tinha estado antes. Abrindo a
porta, ele entrou na lanchonete bem quando Serah estava se sentando
em uma cabine. Ela olhou para ele com os olhos arregalados quando ele
deslizou no banco à sua frente. — Você já voltou?

— Sim, — ele disse. — Eu disse que voltaria em minuto. Não


demorei mais do que isso, sim?

— Hm, não, — ela disse, olhando para ele. — Quero dizer, acho
que não foi nem um minuto. Você estava ali agora e eu acabei de me
sentar e... — ela se dobrou, olhando debaixo da mesa, antes de
encontrar seus olhos de novo. — Você está usando sapatos!

— Sim, — ele disse de novo.

— Como você fez isso? É impossível! Eu não consigo colocar tão


rápido assim nem os chinelos que estão bem na minha frente!

Ele deu de ombro, fazendo uma nota mental para desacelerar da


próxima vez que isso acontecesse. Humanos, tão obcecados com o
tempo, certamente faziam tudo devagar.

Ela ainda estava o estudando quando a garçonete apareceu,


deslizando dois cardápios na mesa à sua frente. Lúcifer pegou um, sem
nenhum interesse na comida. Ele nunca tinha comido, nunca se
incomodou em tentar. Ele certamente podia, no entanto. Afinal de
contas, era tudo a criação do seu Pai. Seu corpo iria meramente
absorver, convertendo tudo em energia.

— O que vocês querem para beber? — a garçonete perguntou.

— Suco de laranja, — Serah disse imediatamente.

Lúcifer continuou apenas olhando para o cardápio.

— E para você, querido? — a garçonete perguntou.

Não foi até que Serah sussurrou o seu nome que ele percebeu que
a mulher estava falando com ele.

— Luce? — Serah disse. — Para beber?

~ 88 ~
— Água, — ele respondeu, olhando para Serah. — E uma maçã
para comer.

Ela franziu o cenho. — Apenas uma maçã?

— Sim, — ele confirmou. — Uma maçã.

Não estava no cardápio, mas ele tinha certeza que um lugar como
esse teria uma.

Ela piscou algumas vezes, deu de ombros, pegou o cardápio dele e


colocou sobre o dela. Ela fez os pedidos para os dois... apenas uma
maçã para ele, enquanto ela pediu uma vasta gama de coisas.

A garçonete se afastou então, demorando tempo demais para


deixá-los sozinhos. Serah o estudou cautelosamente, mas permaneceu
em silêncio até que as suas bebidas foram trazidas para a mesa.
Mexendo o canudo em seu copo, ela tomou um gole, os olhos nunca
deixando os dele. — Posso perguntar uma coisa, Luce?

Ele não pôde deixar de sorriso ao som do seu nome nos lábios
dela. Ela já o tinha dito duas vezes desde que eles se sentaram. — Você
pode me perguntar o que quiser.

— Como você faz isso?

— Faço o quê?

— Desaparece, — ela disse, sua voz baixa. — Em um segundo


você está aqui, e no outro se foi. É como... mágica. Você não é um
feiticeiro, é?

Ele riu. — O que você sabe sobre feiticeiros?

Ela deu de ombros, seu rosto corando enquanto ela evitava os


seus olhos, como se estivesse envergonhada. — Eu leio livros.

— Você lê?

— Sim.

— Só porque você leu sobre isso, não torna real.

— Eu sei, — ela disse, se mexendo em seu assento. — Eu sei que


feiticeiros não são reais, mas às vezes eu me pergunto o que você é,
também. Até que a garçonete falou com você, eu estava meio que
esperando que ela não te visse. Mais ninguém parece te ver... e eu
apenas me pergunto por quê. Isso não é natural.

~ 89 ~
Intuitiva. Luce olhou para ela, surpreso pela sua franqueza. Ela
colocou todas as cartas na mesa e pediu para ver as dele, mas ele ainda
não estava pronto para mostrar. — Não é natural.

— Sim, — ela disse. — Sabe... não é normal.

Luce a observou em silêncio enquanto ela tomava outro gole do


suco de laranja, seus olhos grudados nele.

— É porque eu não sou, — ele disse. — Eu não sou normal.

— O que você é então?

Ele riu secamente. — Uma abominação, aparentemente.

Ela revirou os olhos, como se ele estivesse brincando. Se ela


soubesse...

Nenhum dos dois falou novamente até a comida chegar – dois


pratos para Serah, uma maçã solitária para Luce. Ele a pegou, a rolou
na palma da mão e observou. Era bem parecida com aquela que Eva
tinha comido no Jardim do Éden, o mesmo tom de vermelho profundo.

— Então, — Serah engatou quando começou a comer. — Como


você me conheceu?

— Longa história.

— Encurte.

Luce soltou um suspiro profundo. — Trabalho.

Seus olhos se arregalaram e ela mastigou lentamente, o


encarando. Luce percebeu depois de um momento que ela esperava que
ele continuasse.

Aparentemente essa resposta tinha sido curta demais.

— Nós trabalhávamos em lados opostos, — ele explicou, tentando


usar metáforas, assim ela entenderia sem que ele tivesse que realmente
lhe contar a verdade. Era uma situação delicada, uma que ele tinha
certeza que iria acabar fodendo. — Era seu trabalho me convencer a ir
para o seu lado.

— Lados opostos do quê? — ela perguntou. — Com o que você


trabalha, Luce?

— Nada, agora, — ele disse. — Eu fui, hm... despedido.

~ 90 ~
— Ok, então o que você fazia?

— Eu era babá.

Essa resposta a fez rir, mais uma vez como se ele estivesse
brincando, mas ele estava falando sério. Ele fazia um glorioso trabalho
de babá lá na cova.

— Eu supervisionava os presos, — ele disse. — E você trabalhava


para aqueles que devem manter o mundo seguro, que garantem que o
mal fique bem trancado em algum lugar.

— Então você era uma espécie de guarda, — ela disse. — E eu era


o quê? Um dos poderes constituídos?

— Hm... — Luce riu da sua formulação. Ela não poderia ter


chegado mais perto se tentasse. — Basicamente.

— Interessante, — ela disse. — E eu consegui trazer você para o


nosso lado?

— Discutível, — ele disse. — Você usou argumentos fortes, no


entanto, o que é um testamento da minha presença aqui.

— Uau, — ela comeu um pouco mais em silêncio, o ar entre eles


confortável. Luce apenas a observou, sem interromper, sem dizer nada.
Finalmente ela empurrou o prato para o lado e limpou a garganta. —
Você sabe que nada disso faz sentido para mim, certo? Eu ainda estou
confusa.

— Eu sei que sim, — ele disse baixinho. — Se serve de consolo,


eu também estou confuso.

— Ok, nova tática, — ela disse, apontando para ele com o seu
garfo. — Uma vez que eu perdi a memória e você me disse que daria
tudo para um recomeço, por que nós não começamos daqui?

— Ok.

— Ok, bom, — ela acenou com firmeza. — Então me conte algo.

— O quê?

— Qualquer coisa, — ela disse. — Apenas me conte alguma coisa,


algo que você gostaria que eu soubesse sobre você... não importa o que
seja. Podemos começar com algo leve.

— Hm... — Luce não tinha certeza do que dizer. Ela estava


levando tudo isso bastante bem, muito melhor do que ele esperava.

~ 91 ~
— Eu começo, — ela disse depois de um momento, voltando os
olhos de novo para o prato enquanto mexia em algumas batatas com o
garfo. — Eu amo o cheio de grama recém-cortada, mas isso me faz
espirrar.

Luce sorriu para ela, uma pequena surpresa pela declaração


aleatória sem sentido, mas ele não estava totalmente admirado com a
informação. Ela sempre foi fascinada pelo sentido do olfato. — Eu amo
ar fresco.

— É por isso que você passa tanto tempo na rua?

— Como você sabe disso?

— Porque eu passo muito tempo na rua e vejo você quase todos


os dias.

— Essa é uma das razões.

A outra é que ele não tinha para onde ir, mas manteve isso para
si mesmo por enquanto.

— Bem, como você pode ver, eu amo comida, — ela disse,


gesticulando na direção dos seus pratos. — Quando eu acordo, sinto
como se não tivesse comido nunca. As pessoas sempre dizem que a
comida de hospital é horrível. Quando descobriram que eu passei
semanas no hospital, foi a primeira coisa que me disseram – que a
comida devia ser horrível. Mas eu não podia ter o bastante daquilo.

— Como era estar no hospital? — Luce perguntou.

— Horrível, — ela disse. — Menos a comida, claro. Eles não


conseguiram achar nada de errado fisicamente comigo, então disseram
que tinha que ser psicológico, mas o psicólogo disse que eu não era um
perigo para ninguém, então me deram alta.

— Então você foi embora.

— Então eu fui embora, — ela concordou, — e aqui estou.

Ela terminou de comer em silêncio enquanto a garçonete


retornava com a conta, jogando um olhar peculiar para Luce. Serah
olhou para o papel e pegou algum dinheiro, jogando as notas na mesa.
Um sentimento afundou na boca do estômago de Luce. Ele não tinha
pensado direito nisso. Ele não sabia muito sobre o uso do dinheiro, mas
conhecia alguns hábitos humanos depois de todos os anos de
observação no seu buraco.

~ 92 ~
Ele sabia que devia se oferecer para pagar.

Ele só não tinha certeza de como fazer isso.

Antes que ele pudesse materializar algum dinheiro ou se oferecer


para pagá-la de volta depois ou algo assim, Serah se levantou. —
Pronto?

— Claro.

Luce se levantou quando ela passou por ele a caminho da porta.


Hesitando, Luce olhou para a maçã na sua mão antes de levá-la
lentamente até os lábios.

Ele mordeu.

Ela era fresca, com um sabor afiado, intenso e doce. Ele mastigou
um pouco antes de engolir, dando de ombros enquanto jogava a maçã
de volta na mesa, a descartando.

Não era totalmente ruim, mas com certeza não valia colocar a sua
cabeça a prêmio.

*****

Algo aconteceu naquela tarde no Jardim.

Quando Eva consumiu a maçã e pegou mais uma da Árvore do


Conhecimento para dividir com Adão, o ar mudou. Um frio rolou pela
espinha de Lúcifer, fazendo sua pele arrepiar. Ele estremeceu com a
sensação inesperada, piscou algumas vezes, observando um rubor
subir pela carne nua de Eva. Era como se o sangue tivesse se movido
para a superfície, lhe dando um tom cor de rosa, uma sensação que
ecoou nele.

Sensação.

— O que você fez?

A voz do seu Pai soou bem ao seu lado, baixa e desolada. Luce
sorriu com satisfação, virando a cabeça, esperando ver sua raiva
direcionada para os Seus novos filhos desobedientes, mas seu foco
estava todo no Arcanjo. Seus olhos estavam cheios de dor, a mesma dor
que Luce tinha visto nos olhos de Adão quando ele se machucou.

~ 93 ~
— Seus filhos, — Luce disse, — foram seduzidos pelo mal.

— Se foi o mal que os seduziu, — Ele perguntou, — então o que


isso faz de você?

A pergunta chocou Luce. Ele apenas encarou seu Pai enquanto


Ele se afastava.

A Ira de Deus foi sentida pela primeira vez naquela tarde. O céu
ensolarado foi varrido pela escuridão, e a primeira tempestade caiu
sobre a Terra. Luce ficou ali parado, ainda encostado contra a árvore, e
observou os humanos serem punidos.

Dor e sofrimento foram jogados sobre eles, os condenando ao


tormento pela sua desobediência. Arrancados da sua inocência, seus
corações estavam agora infectados, corações que não mais bateriam
pela eternidade. Eles desprezaram o Seu presente, Ele disse, então Ele o
estava tomando de volta. Eles não mais viveriam para sempre. Algum
dia, e logo, seus corações seriam tirados deles.

Lúcifer sentiu uma pequena pontada de satisfação quando eles


foram expulsos dos jardins, agora meros mortais banidos do Paraíso.
Eles não eram confiáveis a ponto de não comer da Árvore do
Conhecimento, muito menos para não tentar reaver a sua imortalidade.
A agitação durou todo o dia, raios e trovões ecoaram, a chuva caiu em
ondas. Quando tudo finalmente acalmou, o ar do jardim se acomodou.
Lúcifer e seu Pai estavam sozinhos.

A raiva tinha diminuído, e quando Ele se virou para Lúcifer, o


Arcanjo mais uma vez viu a Sua desolação.

— Por quê? — Ele perguntou baixinho. — Por que você fez isso?

— Eu queria que você visse que seus filhos não eram perfeitos, —
Lúcifer disse. — Eu queria que você visse que eles podiam ser
corrompidos, eles podiam ser infectados pelo mal.

— Eu vi, — Ele disse, olhando diretamente para Lúcifer. — Eu vi


a corrupção. Eu vi o mal. Eu vi tudo isso, meu filho, e começou com
você.

*****

~ 94 ~
— Não é muita coisa, — a voz de Serah era um sussurro suave
enquanto ela juntava apressadamente algumas coisas na sua sala de
estar; um cobertor sobre o sofá, um copo vazio na mesinha ao lado, um
par de sapatos espalhados pelo chão. — Desculpe a bagunça.

Ela lançou um sorriso nervoso na direção da porta da frente. Isso


era uma bagunça? Ela não tinha certeza. Com certeza ela tinha visto
quartos piores no motel.

Luce parou na porta aberta, bloqueando a luz do sol às suas


costas, como se estivesse com medo de ir adiante. Isso foi um erro? Ela
estava pensando que poderia ter sido. Ela via o homem pela cidade,
sempre olhando para ela, e depois de duas conversas estranhas ela o
convidou para ir à sua casa.

Ele veio de boa vontade, mas agora que estavam aqui, ele parecia
desconfortável.

— Então, hm, você pode entrar, se quiser, — ela disse,


gesticulando com as mãos. — Sinta-se em casa.

Ele sorriu quando fechou cuidadosamente a porta e entrou na


sala de estar. Suas botas recém adquiridas eram pesadas contra o chão
de madeira, ecoando nas paredes vazias. Serah podia sentir seu coração
batendo mais forte, junto com o som. Luce a observou por um
momento, apenas parado na sua frente.

— Isso é perigoso, — ele disse baixinho, seus olhos correndo ao


redor da sala. — Você deveria ter cuidado com quem convida para
entrar em casa.

— Eu tenho, — ela sussurrou. — Eu nunca... ninguém nunca...


você sabe.

Ele sabia?

Ela realmente não sabia.

Ela não tinha família; ela não tinha amigos.

Ela não tinha ninguém para convidar, além dele.

Quem era ele? Quem era ele para ela? Tudo que ela tinha era um
nome e uma história vaga, que ela não tinha como ter certeza se era
verdade. Mas ela tinha um sentimento inabalável em relação a ele, seus
instintos a acalmavam, a atraindo na sua direção. Era ao mesmo tempo
uma sensação de segurança e nervosismo.

~ 95 ~
Apenas os seus olhos já faziam o interior dela queimar.

O azul parecia escuro como o céu da meia-noite nesse momento,


um brilho fazia parecer que ele segurava todas as estrelas em seu olhar.
Ele tinha um sistema solar dentro dele, um universo de segredos que
Serah estava ansiosa para explorar.

Ela não tinha certeza porque, mas tinha a sensação de já ter


estado lá antes. Quanto mais perto ele chegava dela, maior era essa
sensação. Familiar... tão familiar.

Ele parecia ser parte dela.

Arrepios correram pela sua pele, da cabeça aos pés. Ele tinha
cheiro de menta e uma pitada de enxofre, como se tivessem riscado um
fósforo recentemente. Ele parou bem na frente dela, se inclinando para
ficar na altura dos seus olhos, sua expressão absolutamente séria.

Seus lábios estavam a apenas alguns centímetros de distância.

— Você sente isso, não é? — ele perguntou, sua voz rouca, apenas
um sussurro. — Você ainda sente isso.

O quê? Ela queria perguntar, as palavras na ponta da sua língua,


mas não saíram. O que é isso que estou sentindo entre nós?

As costas da sua mão escovaram contra a bochecha corada dela,


enviando faíscas pela sua pele. Sua respiração engatou, seu coração
pulou uma batida com a sensação. Talvez fosse a sua imaginação, mas
ela podia jurar que os olhos dele escureceram e um rosnado vibrou em
seu peito.

— Eu posso dizer que você sente, — ele disse, se aproximando


mais. — Você pode não se lembrar, mas ainda está aí.

O quê?

Ela desejava saber.

O nariz de Luce roçou o dela antes dele inclinar a cabeça. O


coração dela batia freneticamente. Seus lábios tocaram os dela
levemente, mal se encostando em um beijo, mas reacendeu algo dentro
dela, queimando uma chama até então apagada.

Ele aprofundou o beijo, gemendo na sua boca. Ela inalou com


força, flashes dele a atacando vindo de lugar nenhum.

~ 96 ~
Um lago claro como cristal. Risada. Um abraço. Uma mesa.
Mármore partido. Ele em cima dela, dentro dela, uma outra vez.
Violento e vicioso, apaixonado e fora de controle. Fogo. Um grito. Olhos
vermelhos vibrantes a encarando.

Ofegando, Serah o empurrou, se afastando. Luce congelou, a


observando incrédulo enquanto ela tentava recuperar o fôlego. Ela
olhou para ele, seu corpo vibrando com o tiro de medo que corria pelo
seu sistema.

A expressão de Luce suavizou, seus olhos derretendo para um


azul gelado, do mesmo tom do lago. Ela já esteve lá... eles estiveram lá.
— O que... o que foi isso?

Ele ficou imóvel por um momento, estoico, sua voz hesitante. —


Por que você não me diz?

Ela o provocou com o que viu – um lago, uma mesa, chamas. Ela
disse que seus olhos eram vermelhos como o sangue, brilhando
enquanto a encaravam. Luce permaneceu imóvel, esperando que ela
acabasse.

Assim que ela terminou, ele caminhou na sua direção, cobrindo a


sua bochecha com a mão. Ela não se moveu, não recuou. Ela se
inclinou contra o seu toque involuntariamente.

— Eu queria poder te contar tudo que você quer saber, — ele


disse, — mas então eu não teria mais o meu começo em branco.

Parte dela queria dizer a ele que isso não importava, mas ela
guardou isso para si. Luce se inclinou para baixo de novo, colocando
um rápido beijo em seus lábios, e então outro, e outro, cada vez mais
suave que o anterior.

Serah fechou os olhos.

Se afastando, ele sussurrou a apenas alguns centímetros dos


seus lábios. — Eu tenho que ir.

Ela sentiu uma brisa suave, um formigamento ao longo da sua


pele. Ela abriu os olhos e encontrou a sala vazia.

Luce tinha ido.

Ela estava sozinha outra vez.

~ 97 ~
*****

— Trégua?

Lúcifer olhou para o Guardião desalinhado. Abaddon tinha as


duas mãos levantadas em um sinal de rendição simulada, um sorriso
divertido em seus lábios.

Trégua? Sem trégua. Nunca haveria trégua. Não havia empate –


ou você ganhava, ou perdia. Ele teve muitos anjos lhe dizendo essa
palavra ao longo das eras, apenas para ele acabar rindo deles, mas Luce
não estava achando nada engraçado hoje.

Ele sentiu a presença do seu velho amigo do lado de fora da casa


de Serah, espionando pela vizinhança. Luce o pegou com a guarda
baixa e o atacou na rua.

— O que você está fazendo aqui? — Luce perguntou.

— Curiosidade.

— Você parece estar cheio disso ultimamente.

— O que eu posso dizer? — ele deu de ombros casualmente. —


Esse é um mundo curioso em que nós vivemos, e eu não posso deixar
de me perguntar quanto Serah sabe. Será que ela percebe que está
vivendo ao lado do seu irmão celestial? Será que ela tem alguma ideia?

— Não, — Luce disse. — Ela não se lembra de nada.

— Com exceção de você, — Abaddon o corrigiu. — Ela


estranhamente se lembra de você. Foi um showzinho legal o seu lá, por
falar isso. Me diga uma coisa, velho amigo... ela tem um gosto tão doce
como mortal como tinha como anjo? Ou beijar ela foi apenas parte do
seu jogo?

— Que jogo?

— O jogo que você está jogando.

— Ela não é parte de jogo nenhum, — Luce disse.

Abaddon acenou, abaixando as mãos enquanto seu sorriso


sumia. — Então a sua tentativa de brincar de casinha com uma mortal
é genuína? Por quanto tempo você acha que Ele vai tolerar isso? Você
sabe quantos anjos seu irmão teve que punir na sua ausência, porque

~ 98 ~
eles tentaram se misturar? Muitos. Você não pode ficar com ela, Lúcifer.
Ele não vai deixar.

A pele de Luce formigou, os pelos nos seus braços se levantaram


com aquelas palavras enquanto a raiva que ele tentava controlar
começou a se agitar em seu interior. Deixar Serah ir era impossível. Ele
tentou e falhou e tentou e falhou e não queria tentar de novo. Ele não
queria a deixar ir. Ele não queria perdê-la. Ele já tinha perdido o
bastante.

Mas ele sabia para onde as coisas estavam indo.

Ele sabia como elas iam acabar.

— O que você quer de mim, Abaddon? — a voz de Luce era baixa


e ameaçadora. Ele já estava cansado dessa conversa.

Abaddon deu um passo à frente, mais perto da calçada em que


Luce estava parado. — Você sabe o que eu quero. Se junte a nós, irmão.
Se junte a mim. Juntos nós podemos assumir o controle e então
ninguém vai poder nos dizer nada. Apenas imagine, poder fazer suas
próprias escolhas, não ter que viver sob as regras de alguém.

— É um sonho legal, mas é só isso... um sonho. Eu tentei e falhei.

— É porque você se baseou na força, — Abaddon disse. — Você


tentou tomar o poder fisicamente, mas nós temos outro plano, um
plano diferente que é quase garantido que vai funcionar.

— Qual é?

— Nós vamos envolver os humanos.

Luce apenas olhou para ele. Não era um plano diferente. Ele
tentou isso uma vez, com Eva.

— Eu sei o que você está pensando, — Abaddon disse. — Você


está pensando no que aconteceu no Jardim do Éden, mas esse é um
mundo diferente agora. Você seduziu uma humana. Nós estávamos
falando de seis bilhões.

— E como exatamente esse plano vai funcionar?

— Vamos nos mostrar para eles, — Abaddon sorriu. — Para todos


eles.

Abaddon deliberadamente baixou a guarda e deixou seus


pensamentos fluírem para Lúcifer observar. Uma horda de anjos, a

~ 99 ~
maioria Potestades e Guardiões, vinham juntos para tomar a Terra. Eles
iam se levantar anunciar a sua existência. Tudo isso passou pela mente
de Luce – espetáculos públicos, com jornais e câmeras de televisão,
mostrando banhos de sangue e revoltas entre os mortais, morte e
destruição se espalhando por todo o globo. A onda de devastação se
moveria muito rápido, se disseminaria longe demais para que o seu Pai
conseguisse limpar toda a confusão com uma mão. Ele ocultaria o
motim dos anjos rapidamente para que não fosse descoberto, mas era
contra sua natureza intervir quando se tratava de livre arbítrio. Os
anjos iriam capitalizar o caos, e na frente e no centro do plano de
Abaddon, estava Lúcifer.

Lúcifer, o líder, parado no meio tudo, apenas observando o


mundo desmoronar ao seu redor.

— Parece que você tem tudo resolvido, — Luce disse. — O que


você quer de mim?

— Esses humanos, a maioria deles não me conhece... eles não


conhecem Hagith, ou Morael ou Nanael também. Mas você? Todos eles
conhecem você. Lúcifer é um nome que eles aprendem ainda crianças.
Satanás... o diabo proverbial... imagine a reação deles se soubessem
que você estava caminhando na Terra. Imagine se eles soubessem que
você se misturou entre eles. Eu sou muito próximo dos humanos, então
conheço o que está em seus corações. Metade deles já não acredita mais
em Deus, mas eles têm medo de estarem errados – não porque eles
temem o nosso Pai, mas porque têm medo de você. Eles têm medo que
você exista. Imagine se eles soubessem.

Um formigamento de excitamento subiu pela espinha de Lúcifer.


Exatamente quantas vezes durante a sua estada na cova ele tinha
sonhado com isso? Era tudo que ele sempre quis... era, até o dia em
que ele a conheceu.

Desde o curto período de tempo em que Serah apareceu nos


portões, as prioridades de Luce mudaram. Ele não tinha certeza de
quando aconteceu, nem porque, mas finalmente a sua luta contra o
mundo se tornou em uma luta por uma alma, uma alma que quase foi
amaldiçoada por ele. Ele nunca antes tinha sentido arrependimento...
os anjos que tinham caído junto com ele, ou depois, tinham feito isso
por escolha própria, tinham guiado suas próprias ações, aceitaram tudo
de livre e espontânea vontade. Todos eles, exceto Serah. Ele tinha
roubado a Graça dela, a jogado nessa nova vida, e agora ele estava
contemplando tirar o mundo dela também.

~ 100 ~
Sua tendência ao egoísmo, sua inclinação para a ganância, o
empurrou na direção de se juntar ao grande plano do seu velho amigo,
mas algo o impediu.

Algo que parecia irritantemente com compaixão.

Algo que parecia muito com lealdade.

Algo que parecia simpatia.

E empatia.

Era consideração.

Maldito coração mole.

Quem diria que ele tinha um?

— Obrigado, — Luce disse, — mas não.

A expressão de Abaddon caiu, seus olhos escureceram. Essa não


era a resposta que ele esperava. Não era a resposta que ele queria. —
Você está se recusando?

— Estou declinando educadamente, — Luce elucidou quando


uma onda de raiva passou pelo seu corpo. Ele podia sentir as pontas
dos seus dedos formigando, desesperados para entrar em ação, o céu
acima deles escurecendo quando uma repentina nuvem os cobriu e
uma brisa chicoteou por eles. — Era uma proposta, certo? Uma oferta.
Você estava tão ultra confiante a ponto de achar que podia exigir algo
de mim? Porque eu não respondo a ninguém, Guardião... nem a você,
nem a Michael, nem mesmo a Ele.

— Era uma oferta, — Abaddon disse rispidamente. — Uma que eu


não entendo porque você não aceita.

— Porque eu não vou ser o peão de ninguém, — Luce disse. — Eu


deixei isso claro desde o início dos tempos. Você pode dizer palavras
bonitas, mas eu não sou idiota. Você quer um rosto para a sua
campanha, um bode expiatório para assumir a culpa depois, e quem
melhor que o maior vilão de todos, certo? Quem melhor que Satanás
para assumir esse papel? Mas eu estou cansado... estou cansado de
lutar uma batalha perdida pelo controle desse planeta de merda que eu
não quero mais. Eu queria o Paraíso, mas olhe ao seu redor, Don. O
Paraíso se foi.

Os olhos de Abaddon se estreitaram. — Eu imploro que você


mude de ideia enquanto ainda pode.

~ 101 ~
— Enquanto ainda posso? Isso é uma ameaça?

— Apenas uma sugestão, — Abaddon disse. — O mundo está


mudando rápido, Lúcifer. Quando as cartas forem mostradas, você vai
querer ser o vencedor, especialmente se quiser ela a salvo.

Luce andou até ele, ficando cara a cara, peito com peito. — E eu
tenho uma sugestão para você.

— Qual?

— Tenha cuidado com o que você diz, — Luce diz. — Você é cheio
de promessas vazias, e um dia desses eu talvez finalmente decida fazer
você pagar por elas. Quando isso acontecer, você vai ter muitas coisas
para expiar. Então não se enterre muito fundo, ou você pode jamais
levantar do chão outra vez.

*****

— Ugh! — o gemido pareceu ecoar pelos jardins. — Sério?

Serah olhou na direção da casa ao lado, de onde vinha a voz,


enquanto plantava flores no caminho de terra ao lado da sua pequena
varanda. Na casa vizinha, junto à caixa de correio, uma mulher grávida
segurava a barriga enquanto tentava se abaixar para pegar os envelopes
que tinha derrubado.

Serah se levantou, indo diretamente até ela sem nem parar para
pensar duas vezes. Ela rapidamente se abaixou e juntou a
correspondência, se levantou e entregou tudo para a mulher. — Aqui
está.

— Muito obrigada, — ela disse, pegando os envelopes. — Você foi


enviada pelos anjos.

Serah sorriu para isso.

— Eu sou Samantha, — a mulher disse. — Você deve ser a nova


vizinha de quem a minha filha não para de falar.

— Serah, — ela estendeu a mão, sorrindo ao usar o nome que


Luce deu a ela. Parecia normal, como se o nome tivesse lhe dado um
pedaço da sua identidade de volta. — A sua filha é um doce. Ela tentou
me ajudar quando pensou que eu estava perdida.

~ 102 ~
— Sim, isso é algo que Nicki faria, — Samantha apertou a mão,
sorrindo. — Você gostaria de entrar e beber alguma coisa?

— Oh, não, eu não quero dar trabalho.

— Não é trabalho nenhum.

— Se você tem certeza...

— Eu tenho, — ela disse, determinada. — Eu daria qualquer coisa


para ter uma conversa um pouco mais adulta.

— Bem, ok, então, — Serah disse. — Parece ótimo.

Assim que Serah entrou na pequena casa, uma estranha


sensação fez sua pele formigar e a acalmou. Era como se ela já tivesse
estado lá antes.

— Se sente, — Samantha disse, gesticulando na direção da


pequena mesa redonda na cozinha. Serah deslizou em uma cadeira
enquanto Samantha procurava uma garrafa de vinho na geladeira, e
duas taças. Não era nada chique – as taças eram de plástico vermelho,
o vinho foi pego diretamente da prateleira de uma loja de departamento,
a etiqueta de preço ainda colada na garrafa.

Samantha tirou facilmente a rolha, derramou um pouco em uma


taça e apenas um tanto na outra. Ela empurrou a que estava quase
cheia para Serah.

— Eu sei, eu sei, — Samantha disse rapidamente. — Mulheres


grávidas não deveriam beber, e eu não bebo... não bebi uma gota desde
que descobri que ia ter um bebê. Mas depois de hoje, preciso de uma
dose... apenas o gostinho de... algo.

Serah sorriu tristemente. — Dia ruim?

— Isso é um eufemismo, — ela disse, caindo na cadeira bem em


frente à Serah. De perto, a mulher parecia exausta, mas um sorriso
caloroso marcava os seus lábios assim mesmo. — Estou tão cansada,
não consigo dormir, não tenho energia suficiente nem para cuidar de
Nicki, e meu marido ligou essa manhã para dizer que eles vão começar
a assumir turnos de doze horas. O que é ótimo, você sabe, porque
precisamos do dinheiro, mas eu gostaria que ele estivesse mais
presente.

— Tenho certeza que ele gostaria de estar mais presente também,


— Serah disse, as palavras voando dos seus lábios sem pensar

~ 103 ~
enquanto ela pegava a taça e cheirava. Parecia com uvas azedas. Ela
nunca tinha bebido vinho antes.

— Sim, eu sei, — Samantha concordou, tomando a sua pequena


dose. Fechando os olhos e jogando a cabeça para trás, ela fez um
bochecho com o vinho um momento antes de cuspir de volta na taça.
Ela sorriu timidamente antes de colocar a taça para o lado e continuar.
— Nicholas, meu marido, trabalha duro, e ainda que eu aprecie isso,
tudo que eu pareço sentir esses dias é o que ele não consegue fazer. Ser
pai, cuidar da casa, cuidar do jardim... eu estava bamboleando por um
caminho de grama até o joelho antes do meu acidente com as contas na
caixa de correio. Bamboleando, é claro, graças a esse daqui.

Samantha esfregou a barriga por cima da blusa.

— De quanto tempo você está? — Serah perguntou curiosamente.

— Oito meses, — ela disse. — Ele deve chegar em quatro


semanas.

— Ele?

— Sim, é um menino, — ela disse. — Samuel.

O nome acertou Serah como uma parede de tijolos. Seu interior


parecia em chamas, o calor se espalhando por ela. — Samuel, — ela
sussurrou. Ela não entendia o motivo, mas o nome parecia tão familiar
quanto o seu próprio a primeira vez que o ouviu.

— Ele foi uma surpresa, — Samantha continuou. — Não íamos


ter mais filhos depois de Nicki, mas acho que Deus tinha outros planos
para nós. Enfim, eu só fico falando de mim. Me fale sobre você, vizinha.

Serah ficou em silêncio por um momento, olhando para o líquido


vermelho escuro na sua taça. — Acho que não tenho muito para dizer.

Serah contou o que podia, fazendo uma pequena versão de si


mesma. Algumas poucas frases para resumir toda uma vida esquecida.

— Uau, isso é... uau, — Samantha olhou para ela, impressionada.


— Você não se lembra de nada antes da grande tempestade?

— Nada, — Serah respondeu, mas um formigamento em seu peito


lhe disse que ela estava mentindo. Imagens atravessaram a sua mente,
as mesmas imagens que tinham lhe pego de surpresa quando Luce a
beijou na sala de estar. Tinha sido apenas alguns dias atrás, a sua

~ 104 ~
ausência era uma pílula difícil de engolir. Ele tinha sumido e não voltou
a aparecer.

Ela ainda estava questionando a sua sanidade.

— Coitadinha, — Samantha pegou a mão de Serah, e o contato


enviou uma vibração que fez seu coração acelerar. Era como ter sido
eletrocutada no peito. — Eu não posso nem imaginar como é.

Antes que Serah pudesse responder, um som veio do quarto dos


fundos, como pequenos passos correndo pelo corredor. Serah se virou
para ver Nicki entrando na cozinha, segurando um caderno. A
garotinha estava murmurando algo sobre um desenho, mas congelou, e
seus olhos se arregalaram quando ela viu Serah sentada ali.

— Ei! — ela disse animada, passando direto pela sua mãe para ir
correndo até Serah. — Eu acabei de desenhar você!

Serah ficou tensa quando Samantha soltou uma gargalhada.


Nicki escalou a cadeira ao lado de Serah e bateu o caderno na mesa em
frente a elas. Serah olhou para a imagem e começou a rir com
Samantha quando viu: uma mulher usando um longo vestido colorido e
segurando uma mancha verde nas mãos.

— É um sapo, — Nicku exclamou, apontando. — Você já achou o


seu?

— Eu não sei, — Serah disse hesitantemente.

— Que pena, — Nicki disse casualmente, dando de ombros. —


Talvez você encontre ele hoje.

A garotinha foi embora, correndo até a porta enquanto gritava


para sua mãe que ia sair para brincar. Samantha gritou para ela
amarrar os sapatos, tomar cuidado, falou algo sobre segurança, mas
Nicki já tinha saído sem ouvir nada disso. Gemendo, Samantha se
levantou. — Eu queria ter metade da energia dela.

— Felizmente, eu tenho, — Serah disse, se levantando também. —


Me permita.

Samantha parecia querer discutir, mas desistiu e voltou a se


sentar. Serah foi para fora e encontrou Nicki no jardim da frente, a
grama quase batendo na sua pequena cintura. Serah ajudou a menina
a amarrar os sapatos e repetiu as mensagens da sua mãe antes de
voltar para dentro. Ela retomou seu lugar à mesa, pegando a taça de
vinho ainda intocada, enquanto Samantha a olhava peculiarmente.

~ 105 ~
— Ela discutiu com você?

— Não.

— Ela ouviu você?

— Sim.

Um sorriso apareceu nos lábios de Samantha. — Serah, eu acho


que nós vamos ser ótimas amigas.

Serah riu enquanto levava a taça aos lábios, tomando um


pequeno gole hesitante do vinho. Ele era amargo e um pouco quente,
mas desceu suavemente. Serah afastou a taça e olhou dentro antes de
tomar outro gole.

Três goles depois, seu corpo estava formigando.

Mais quatro e ela se sentiu flutuando acima da cadeira.

As duas conversaram sentadas à mesa da cozinha, e o fim da


tarde se tornou o começo da noite. Serah bebeu vinho e ouviu feliz
Samantha despejar as suas frustrações. Quando a noite chegou, Nicki
se sentou com elas, colorindo desenhos com satisfação. As duas
mulheres estavam relaxadas, um peso parecia ter saído dos ombros de
Samantha, enquanto Serah sentia seu corpo zumbir.

*****

Todos os mortais tinham pecado dentro deles.

Em algum, mal era mensurável, pequenas gotas de depravação


que nunca minha à superfície, ficavam enterradas no fundo dos seus
corpos. Outros vestiam seus pecados como tatuagens, marcas que eles
irresponsavelmente mostravam a quem chegasse perto.

Luce tinha encontrado todos eles – os egoístas mais tomados pela


ganância, os preguiçosos cheios até a borda na sua preguiça, os maus
alimentados pela ira, os ciumentos consumidos pela inveja, os vaidosos
com seu orgulho inflado e os glutões com o seu exagero para comer e
beber – mas ele sempre foi atraído por aqueles banhados na luxúria.
Feromônios os revestiam como um perfume intoxicante. No passado, ele
raramente resistia ao cheiro. Ele se afogava nele, às vezes por dias...
semanas... meses.

~ 106 ~
Anos.

Ele ia para as orgias do pecado, cheias daqueles mais mortais,


seus olhos brasas ardentes, sua pele pulsando. No final ele se sentia
um ser indestrutível, o vilão monstruoso que o mundo criou. Ele não
pensava duas vezes naqueles que tinha destruído durante a sua fúria,
nas almas que ele rasgou, na tortura que infligiu.

Ele era um viciado, pura e simplesmente...

E ele não teve uma dose em meses.

Luce parou na frente da casa de Serah. As luzes estavam


apagadas, ninguém em casa, mas ele podia sentir a sua essência forte
na casa ao lado. Era uma concentração poderosa, zumbindo como
motor, a vibração tão intensa que Luce podia sentir o chão tremendo
sob seus pés. A energia dela ainda tinha uma frequência ainda mais
alta que a dos outros esta noite, era mais alta.

Estava praticamente gritando.

Ele tinha estado a meio mundo de distância, em outro continente,


no velho castelo onde os demônios ainda estavam instalados, passando
seu tempo sentado no trono e mexendo na sua adaga. Ele mandou seus
asseclas ficarem de olho em Abaddon, e eles voltaram algumas horas
depois contando o que ele estava fazendo.

Nada.

Ele não estava fazendo porra nenhuma.

Luce não era idiota, no entanto. O anjo estava esperando antes de


colocar seu plano em ação. E Luce estava esperando que seu velho
amigo fizesse isso, mas ele não queria que a luta chegasse em nenhum
lugar perto dela.

Então ele ficou longe, mas não durou muito, porque ele sentiu o
puxão a 5000 km de distância. Ele aparatou bem aqui, incapaz de
ignorar a atração, e a concentração de pecado quando o chutou na
bunda.

Luxúria.

Ela tinha fabricado pequenas doses disso quando era um anjo.


Ele pôde sentir. Ele desejou isso. Mas agora? Era diferente de tudo que
ele já tinha sentido nela antes.

~ 107 ~
Luce permaneceu parado, observando Serah sair da casa da
vizinha e tropeçar pelo jardim em direção à sua. Ela estava flutuando,
mas ao mesmo tempo um pouco bamba, acenando enquanto tropeçava
para longe. Ela levantou o olhar quando chegou à varanda, ofegando e
parando abruptamente. — Luce.

Seu nome foi um sussurro. Seu hálito tinha cheiro de vinho. Suas
bochechas estavam coradas pelo álcool, e a onda de desejo o acertou
com força. Seu próprio corpo começou a vibrar quando ele inalou o
aroma no fundo dos seus pulmões. Ele não precisava se ver para saber
que seus olhos estavam escurecendo, a pureza sendo drenada por ele.
Ele podia sentir a chamas queimando sob a sua pele, sua temperatura
subindo rapidamente.

Pecadores eram quentes porque estavam destinados a queimar.

Era o jeito do Inferno de os chamar para casa.

— Serah, — ele disse baixinho, sua voz tensa direcionada a ela.

— Luce, — ela disse de novo. — Eu não tenho visto você.

— Eu não estive por perto.

Foi o tempo mais longo que Luce esteve longe dela em meses.

— Eu sei. Você foi embora.

— Eu fui.

— Mas você está aqui, — ela disse, andando na direção dele. —


Você está aqui agora.

— Eu estou.

Ela o encarou, sua respiração ofegante. Ele podia ver que ela
tinha uma dúzia de perguntas, sua boca abrindo e fechando enquanto
ela lutava para formulá-las. Mas ela permaneceu em silêncio. As
palavras não saíram.

Cuidadosamente, Luce passou os dedos pela sua bochecha


corada, sentindo o calor emanando da sua pele. Tocar nela era perigoso.
A sua dose de droga estava bem na sua frente, brilhando como um
farol, o chamando. Ele podia saciar a sua necessidade e se livrar da
vontade acumulada, puxando a luxúria para fora dela enquanto ela o
convidava para entrar. E ela convidaria. Ela o desejava. Ele podia sentir
isso com mais força do que jamais sentiu no buraco do Inferno.

~ 108 ~
Luce começou a falar, mas as palavras foram roubadas quando
Serah ficou na ponta dos pés e esmagou os lábios contra os dele. No
momento em que se conectaram, todos os pensamentos foram varridos
da sua mente, e ele ficou em branco, sem sentir nada, sem ver nada,
exceto ela.

Energia explodiu dentro dele. Agarrando Serah, ele a arrastou


para dentro, nunca quebrando o beijo. Ele a puxou pela casa,
frustração se misturando com a poderosa sensação. Era malditamente
difícil não ser capaz de aparatar com ela em qualquer lugar.

Ele encontrou o quarto e facilmente a levantou pelos quadris, a


colocando sobre os lençóis frios e ásperos da pequena cama. Seu
vestido ficou enrolado em volta da cintura quando ele se acomodou
entre as suas pernas, a beijando profundamente, provando o vinho dos
seus lábios.

As mãos dele correram pelo seu corpo, acariciando a pele,


tateando a sua carne. Ele empurrou contra ela, o tecido ainda os
separando, mas a fricção era o suficiente para levar Serah ao limite. Ela
gemeu na sua boca, seus suspirando se tornando gritos em que Luce se
banqueteou, devorando avidamente cada gemido enquanto ele
empurrava, empurrava, empurrava. Ele quase a tirou da cama pela
força, a cabeceira batendo contra a parede enquanto ele a fodia sobre a
roupa, nem uma vez interrompendo o beijo.

Era o bastante... o suficiente... para ele ter uma prova, para dar o
que ela desejava, mas não era o que Luce realmente queria. Ele a
queria. Toda ela. Luxúria não era o bastante. Ele queria puxar tudo de
dentro dela e se aquecer dentro.

Ele empurrou mais forte, sentindo seu corpo estremecer sob o


dele quando ela começou a gozar. Ela chamou por ele, o grito rouco de
prazer saindo dela e fluindo por ele. Seu corpo acendeu de dentro para
fora, o fazendo formigar da cabeça aos pés, quando um repentino e
inesperado estouro de trovão retumbou, iluminando o lado de fora da
janela.

Ele jogou a cabeça para trás, absorvendo isso tudo.

— Oh Deus, — ela choramingou. A mão de Luce tapou a sua


boca, cortando as palavras. Ela abriu os olhos, surpresa, e o encarou.

— Cuidado com quem você invoca, — ele disse baixinho, seu


corpo se esfregando contra o dela, a fazendo atravessar o orgasmo,
enquanto a encarava nos olhos. Ele podia ver o reflexo dos seus

~ 109 ~
próprios, negros como a noite. Pelo menos eles não estavam vermelhos.
Vermelho teria a aterrorizado, mas agora ela só parecia intrigada.

Ele tirou a mão bem quando ela falou. — Seus olhos são tão
escuros... e a sua pele está queimando. Eu sinto... sinto como se
estivesse vibrando. Como se a minha alma estivesse vibrando por causa
do seu toque.

É isso, Lúcifer pensou. Ele recarregou as energias dela ao fazê-la


gozar. A luxúria ainda estava amarrada a ela, cercando os dois, mas ele
tinha aliviado a maior parte.

Sem responder, ele cobriu o rosto dela com as mãos. Luce a


beijou de novo, a beijou profundamente, enquanto seu corpo começava
a relaxar na cama.

— Você está dormindo, — ele sussurrou contra os seus lábios. —


Você está sonhando, anjo. Isso não aconteceu.

Se afastando, ele pairou sobre ela e a encarou nos olhos. Ela


segurou seu olhar por um momento enquanto ele passava os dedos pela
sua testa.

Seus olhos se fecharam.

Inconsciente para a noite.

*****

Tensão cercava a sala do trono.

Michael nunca tinha se sentido tão sufocado antes, seu peito


apertado como se seus pulmões precisassem de ar, mas ele não
conseguisse respirar. Ele agarrou firme a bainha da sua espada com as
suas mãos, a ponta arrastando no chão.

Ele não podia se mover ou falar. Ele não podia fazer nada. Ele era
feito de mármore. Ele foi esculpido em pedra.

Por dentro, ele sentia que estava rachando.

— Eu avisei, — seu Pai disse gentilmente.

Michael baixou a cabeça e fechou os olhos. — Eu sei.

~ 110 ~
A sala do trono esteve transmitindo imagens de Satanás por
meses. Elas passavam como se fossem um longo filme sem fim, um dia
após o outro. O mesmo enredo, os mesmos atores. Michael evitava a
maior parte delas, mas curiosidade levou a melhor sobre ele hoje. Serah
tinha sucumbido às tentações mortais, e Satanás foi arrastado
diretamente para ela.

Claro. Até mesmo Michael sentiu a atração, a tentação do pecado,


de muito longe. Serah não estava acostumada com as emoções
humanas. Quando ligaram o interruptor dentro dela, foi extremo.

Michael ficou parado no Céu, no entanto, e apesar das


advertências do seu Pai, ele quis assistir. Michael queria testemunhar o
mal, mas o que ele viu foi uma cena completamente diferente. Satanás
tinha purgado isso dela, se deleitando com o próprio pecado, mas a
deixou intacta depois de tudo.

Ele não manchou mais a sua alma.

— Isso é porque ela é mortal agora? — Michael perguntou


baixinho. — É por isso que ela responde a ele?

Em todo o tempo em que estiveram juntos, Michael nunca tinha


visto Serah tão aberta, tão apaixonada. Ele nunca tinha ouvido esses
gritos de prazer.

— Em parte, — ele respondeu. — É a combinação deles juntos,


filho. Lúcifer é ácido sulfúrico, às vezes perigoso, mas ainda valioso.
Serah, por outro lado, é água, pacífica e pura. Misturados, os dois são
muito bons, desde que você adicione o ácido lentamente. Caso
contrário, você está se encaminhando para a destruição. Despejar água
diretamente no ácido, sem cuidado, pode fazer tudo explodir.

Fazia sentido, assim por cima, mas Michael tinha dificuldades


para aceitar.

Por que eles? Por que não ele?

Por quê? Por quê? Por quê?

— Você sabe porque, — ele disse, facilmente entrando nos


pensamentos de Michael. — Estava destinado.

— Há quanto tempo?

~ 111 ~
Sempre esteve destinado a ser assim? O tempo todo em que ele
esteve com Serah, Ele sabia que isso aconteceria? Ele tinha planejado
que fosse desse jeito?

— Estava escrito nas estrelas no dia em que Lúcifer caiu, — Ele


disse. — Ela estava destinada a salvar ele de si mesmo.

— E ela fez isso? — Michael perguntou. — Ele foi salvo?

Seu Pai inclinou a cabeça para o lado, olhando para a projeção de


Lúcifer. Ele estava parado do lado de fora da casa de Serah outra vez,
enquanto ela dormia na sua cama. — Eu não tenho certeza.

A hesitação na voz de seu Pai assustou Michael. Essa era a


segunda vez que Ele tinha vacilado, a segunda vez que Ele parecia não
saber. — Como você pode não saber? Você sabe tudo. Vê tudo.

— Sim.

— Então você pode ver o futuro.

— Posso, — ele disse. — Mas Lúcifer possui algo imprevisível.

— O quê?

— Livre arbítrio.

Michael ficou chocado. Livre arbítrio?

— Ele é um tipo único, — Ele disse. — Ele caminha livremente,


controlando o próprio destino, mas ainda não conhece a si mesmo. Sua
mente não está feita. Ela muda a cada segundo, alterando o futuro de
maneiras muito diferentes.

Michael se virou para o seu Pai. — Por que eu não posso ver isso?
— ele se concentrou, tentando sentir o futuro como ele fazia com os
mortais, mas não havia nada. Ele mudou, tentando sentir o de Serah,
mas o dela, também, estava em branco. Não posso ver o dela também.

— Eu não deixei você ver, — Ele disse.

Por quê? Michael se perguntou, mas seu Pai não respondeu. Não
dessa vez. Eles observaram a imagem de Satanás por mais um tempo
antes do anjo caído desaparecer. Seu Pai acenou com a mão e a imagem
de dissolveu.

— E se ela não salvou ele? — Michael respondeu. — E se ele fizer


a escolha errada?

~ 112 ~
— Então todos irão perder, — Ele respondeu. — Especialmente
eles dois.

*****

Era meio da tarde de uma terça-feira. Samantha Lauer estava


sentada à mesa da cozinha, os pés em cima da cadeira ao seu lado,
descalça e usando um pijama velho. Seus tornozelos estavam inchados,
suas costas doíam e ela daria seu seio esquerdo para a azia ir embora.

Serah sabia tudo isso porque ela estava sentada na frente da sua
nova amiga, a ouvindo desabafar. O fim do verão estava sobre elas. As
duas passaram as últimas semanas se conhecendo, passando as tardes
juntas antes de Serah sair à noite para o seu turno de trabalho no
motel.

As janelas estavam abertas, a brisa quente se espalhava pelo


ambiente. O suor se acumulava na testa de Serah, escorria pela sua
nuca e para baixo pelas suas costas.

— Ugh, esse garoto, — Samantha gemeu, segurando a barriga


enquanto se levantava. — Você pensa que eu estou dando à luz Charlie
Watts5 pelo jeito que ele batuca na minha bexiga o dia todo.

Serah riu, terminando a sua limonada enquanto Samantha se


arrastava pelo corredor até o banheiro pela quinta vez em uma hora.
Serah se levantou e levou o copo vazio até a pia quando a porta da
frente se abriu. Ela viu o marido de Samantha, Nicholas, entrar. Ele
começou a falar, mas ficou mudo quando viu que não era sua esposa
que estava ali.

— Oh, olá, — ele disse, acenando educadamente.

Serah sorriu. — Olá.

Ela não tinha contato muito com Nicholas, só o encontrou


algumas vezes quando ele estava em casa, mas ele parecia um bom
homem.

— Onde está Sam? — ele perguntou, levantando uma


sobrancelha, uma pitada de preocupação em sua voz. — Ela...?

5 É o baterista dos Rolling Stones.

~ 113 ~
— Relaxe, — Samantha gritou no seu caminho de volta para a
cozinha. — Eu estou aqui. O que você está fazendo em casa?

— Pensei em passar para ver você, — ele disse, — então vim em


casa para almoçar.

Samantha beijou o marido antes de ir até a geladeira. — Eu estou


bem. Agora se sente que eu vou preparar alguma coisa.

Serah pegou a deixa para sair, ignorando as suas declarações de


que ela devia ficar para comer pelo menos um sanduíche. Ela fez seu
caminho pela grama alta até sua casa e foi direto para o banheiro,
tirando as roupas para tomar um banho frio.

Ela ficou debaixo dos jatos d‘água, deixando que a cascata a


limpasse, esfriando sua pele quente. Seus olhos estavam fechados, mas
se abriram de repente alguns segundos depois quando uma batida veio
da entrada da casa.

Alguém estava batendo na porta.

Suspirando, Serah desligou a água e interrompeu seu curto


banho quando a batida ecoou pela casa outra vez. Ao sair, ela se
enrolou em uma toalha e abriu a porta do banheiro. No momento em
que fez isso, quase bateu direto em alguém. Ofegando, segurando o
peito, ela quase perdeu a toalha quando recuou.

Luce.

Ele estava dentro da sua casa, parado no corredor do lado de fora


do banheiro. — Jesus!

— Não, sou eu, — ele disse. — Jesus não está por aqui.

Serah revirou os olhos, apertando a toalha com mais força. — Era


você?

— Era eu o quê?

— Batendo na porta.

Ele não precisou responder quando a batida veio mais uma vez.
Os olhos de Serah passaram por Luce e se fixaram na porta, suas
sobrancelhas se juntando. Claramente não tinha sido ele. Ela tinha
meia dúzia de perguntas, como de onde ele veio, onde ele esteve e como
no mundo ele acabou dentro da sua casa, mas as batidas frenéticas a
distraíram.

~ 114 ~
— Não, — Luce disse, olhando de relance para a porta. — Não era
eu.

Serah passou por ele e foi até a porta, a abrindo com cuidado.
Nicholas estava do outro lado, os olhos em pânico.

— Nicholas? O que há de errado?

— Eu odeio fazer isso... odeio ter que pedir isso a você. Sei que
nós mal nos conhecemos, mas minha mulher realmente gosta de você, e
a minha filha também. Então eu estou me perguntando se você poderia
me fazer um favor, se você poderia cuidar de Nicki essa tarde para nós?

— Hm, claro, — Serah disse. — Sem problemas.

— Ela está no acampamento. O ônibus vai trazê-la em uma hora.


Se você puder ficar de olho nela por um tempinho, eu vou ser
eternamente grato.

— Claro.

— Nós podemos pagar, — ele continuou.

— Não, — ela disse. — Vai ser um prazer.

— Obrigado, — alívio marcou a sua voz. — Sério, muito obrigado.

— Claro.

Nicholas começou a se afastar, mas Serah o chamou.

— Espere, — Serah disse. — Tem algo acontecendo?

Ele olhou para ela, sua expressão se iluminando, empurrando


para trás o medo. — A bolsa da Sam estourou. Nós vamos ter um bebê!

Um sorriso apareceu nos lábios de Serah quando ela observou


Nicholas correr para casa. Ela ficou parada na porta, apenas encarando
a rua, até que uma voz atrás dela a tirou do seu devaneio. — Isso é um
pouco indecente, você não acha?

Ela se virou, encarando Luce a alguns metros de distância. — O


quê?

— Você, — ele disse. — Vestindo apenas isso, bem aqui, bem


agora.

Olhando para baixo, ela sentiu suas bochechas esquentarem


enquanto rapidamente fechava a porta. — De onde você veio?

~ 115 ~
— Pergunta difícil.

— Como você chegou aqui?

— Não tenho certeza se você quer saber.

Ela o olhou hesitante enquanto ele se evadia em responder suas


perguntas. — Eu não me lembro de ter convidado você para entrar.

— Ah, mas você convidou, — ele disse. — Semanas atrás.

— Isso não conta.

— Por que não?

— Porque foi naquela época e agora é agora.

Luce apenas a encarou. Serah podia sentir o vermelho em seu


rosto ficando mais forte com o escrutínio intenso, e se mexeu um
pouco, agarrando a toalha com mais força para se manter coberta. Ela
fingia estar aborrecida com a sua companhia, irritada com a sua
presença, mas na verdade ela se sentia tranquila com ele em casa. Ela
estava apenas surpresa, nem um pouco incomodada.

Mas ela deveria estar, no entanto.

Isso deveria incomodá-la. Assustá-la.

Não havia nada de normal nessa situação, nada seguro nessas


circunstâncias, mas ela parecia não conseguir se obrigar a ficar
irritada.

Isso parecia natural, como se ele sempre tivesse estado ali.

— Você quer que eu vá embora? Luce perguntou quando ela


andou até ele.

— Não, — ela sussurrou, parando perto dele. — Eu não quero.

*****

Luce encarou, concentrado nas cartas gastas na sua mão. As


pontas estavam amassadas e o branco tinha se tornado um tom sujo de
cinza. Elas tinham visto muitos jogos ao longo do tempo, e ele
definitivamente precisava de um novo baralho, mas ele tinha um
carinho especial por elas.

~ 116 ~
Foi com elas que Serah jogou com ele na cova.

O baralho tinha sido usado em milhares de partidas de War,


tinha visto centenas de partidas de Paciência, mas nenhuma delas
tinha sido tão enérgica como a batalha que estava acontecendo agora.

— Tu tem seis?

Os olhos de Lúcifer estavam fixos na sua mão. — Tu tens seis, —


ele repetiu, murmurando a maldita correção gramatical baixinho.

— Sim, — a voz dela era séria... muito, muito séria. — Tu tens?

Luce olhou para os dois seis na sua mão por um segundo antes
de mudar o olhar por cima das suas cartas, encontrado um par de
olhos castanhos selvagens. Nicki Barlow. A garotinha o encarava,
esperando tão pacientemente quanto alguém de nove anos de idade
podia.

Pesque6. Essas palavras estavam na ponta da sua língua. Se fosse


qualquer outra pessoa, ele teria dito. Se fosse qualquer outra pessoa,
ele teria mentido. Mas ela olhava para ele com a mesma reverência que
uma vez ele sentiu por seu Pai. Ela confiava implicitamente que ele iria
dizer a verdade.

Relutantemente, Luce puxou os dois seis e os entregou. Gritando


animada, Nicki formou um conjunto, colocando todos os quatro seis na
sua frente. Ela estava ganhando agora, dois a um.

— Você tem alguma rainha? — ela perguntou, indo em frente.

Luce não precisou olhar para a sua mão. — Pesque.

Nicki puxou uma carta da pilha.

— Me dê os seus reis, — Luce disse.

Nicki não precisou pensar antes de dizer. — Pesque.

Luce puxou uma carta da pilha e estava a arrumando na sua mão


quando ela falou. — Você tem reis?

Luce congelou, nenhuma parte dele se mexendo, exceto os olhos,


que correram para ela. — O que foi que você acabou de pedir?

— Reis.

6 É pegar outra carta da pilha. Faz parte das regras do jogo.

~ 117 ~
— Isso foi o que eu pedi a você, — ele disse, seu tom tenso
enquanto olhava para a garota. — Você disse que não tinha nenhum.

Ela balançou a cabeça, determinada. — Nuh-uh. Mas eu tenho.


Viu?

Ela pegou um rei e mostrou para ele.

Levou tudo dentro de Luce para não arrancar a carta da sua mão.

Inacreditável, porra. Ele não detectou nada além de inocência


dentro dela, uma benevolência sob a sua pele, mas mesmo assim ela
tinha acabado de mentir na sua cara. Ele não teve uma criatura o
confundindo tanto desde Serah. Crianças, para ele, eram uma entidade
desconhecida. Crianças não iam para o Inferno.

Essa pequena mortal não sentia vergonha por manipulá-lo, não


tinha remorso por mentir para ganhar o jogo.

Esse era o modus operandi dele.

Ele tinha que admitir, isso foi impressionante. Cuidadosamente,


ele pegou os reis da sua mão e os passou para ela sem dizer nada,
deixando que ela, por agora, saísse impune pela sua trapaça.

O jogo durou mais alguns minutos antes de Serah entrar na sala


de estar onde eles estavam, Luce no sofá e Nicki com as pernas
cruzadas no chão no lado oposto da mesinha de café do centro.

— Quem está ganhando? — Serah perguntou casualmente.

— Eu! — Nicki exclamou.

Se aproximado, Serah caiu no sofá ao lado de Luce, sentando tão


perto que seu corpo encostou no dele. Ela se inclinou, descansando a
cabeça no seu ombro enquanto olhava as cartas na sua mão. Luce ficou
tenso com o contato, tentado a todo custo ignorar isso e focar no jogo. O
toque dela era mais forte com as suas defesas abaixadas, o que o
permitia ficar visível.

As coisas que ele fazia por ela...

— Você tem quatros? — Nicki perguntou.

Luce virou um quatro para ela, embora ele tivesse certeza


absoluta de ter pedido o mesmo para ela não muito tempo atrás. Ela
pediu por outro rei e pegou uma carta da pilha enquanto Luce limpava
a garganta. — Me dê os seus dois.

~ 118 ~
Assim que as palavras saíram dos seus lábios, Serah lhe deu uma
cotovelada na lateral. — Nossa, você não pode pedir?

Luce virou o olhar para ela. — Quê?

— Me dê os seus dois, — ela zombou dele, as palavras baixas e


graves enquanto ela tentava imitar a sua voz. — Você soa tão exigente...
tão malvado.

Malvado?

Se ela soubesse com quem estava falando...

— Certo, — Luce disse. — Você tem dois?

— Pesque!

O jogo durou mais algumas rodadas antes de Luce ganhar o


suficiente para empatar. Faltava ele se livrar de duas cartas para
ganhar quando Nicki de repente saltou de pé, colocando o resto das
suas cartas na mesa. — Eu cansei de brincar.

Luce olhou para ela. — Você não pode estar cansada.

— Por quê?

— Porque eu estou prestes a ganhar.

Nicki deu de ombros, virando sua atenção para Serah. — Eu


posso ir lá fora brincar? Por favor?

Serah hesitou antes de sorrir. — Claro, apenas fique em um lugar


onde eu possa te ver.

Luce olhou a garotinha correr para fora, desaparecendo pela porta


da frente. Ela não esteve ali por uma hora e Luce já estava exausto por
causa dela. Seu olhar foi para as cartas descartadas. Ninguém jamais
tinha desistido de um jogo com ele antes.

Principalmente porque eles não podiam, ele não iria permitir, mas
ainda assim...

Se inclinando, Luce pegou todas as cartas da mesa e começou a


embaralhar. Ele mexeu o corpo levemente, se virando na direção de
Serah, que continuava ao seu lado. Ela estava olhando diretamente
para frente, observando através da grande janela Nicki correr pelo
jardim da frente.

~ 119 ~
Como se pudesse sentir o seu olhar, um pequeno sorriso levantou
seus lábios, e suas bochechas coraram um pouco. — Que estranho, —
ela sussurrou.

Luce com certeza concordava com isso. — Crianças são criaturas


estranhas.

Ela se virou para ele. — Eu estava me referindo a você.

— Ah, eu não sou tão estranho, — ele disse. — Não sou tão
diferente de você.

— As pessoas acham que eu sou estranha, — ela disse.

— Elas te dizem isso? — Luce perguntou curioso, seu instinto


protetor estalando dentro dele. Ele sabia que os humanos podiam ser
cruéis. Ele não estava sempre por perto para ouvir o que eles diziam
para ela.

— Não, mas eu sei que eles acham, — ela disse baixinho. — Eu


posso sentir.

Sua resposta surpreendeu Luce.

— Eu sei o que você está pensando, — ela disse logo em seguida,


continuando. — Que eu sou louca por pensar que posso sentir isso,
mas eu posso. Eu sinto muitas coisas, e talvez esteja tudo na minha
cabeça... eu não sei. Mas eu tenho sensações sobre coisas que não
consigo afastar.

— Que tipo de sensações?

Ela suspirou. — Todos os tipos. Eu sei coisas, coisas que eu não


deveria. Posso dizer quando alguém está sendo sincero ou quando estão
apenas achando graça de mim. Eu posso andar por uma sala cheia e
ser automaticamente atraída por alguém, uma pessoa entre dezenas, e
tenho essa necessidade esmagadora de falar com ela. Eu ando pelas
ruas e me encontro indo a algum lugar que não tinha planejado, como
se uma força me empurrasse para lá. É como se eu tivesse um tipo de
radar.

— Talvez você tenha, — Luce disse, — mas ele não é infalível.

— E como você sabe?

— Porque não era isso que eu estava pensando. Não acho que
você é louca, Serah. Acho que você é especial.

~ 120 ~
— Como você, — ela disse. — Você disse que nós não éramos
muito diferentes, afinal.

Ele sorriu para isso. Especial? Não havia como negar isso. Ele era
especial. Ele tinha sido criado com esse propósito. O debate sempre
tinha sido se era para o lado bom ou não.

— Nós somos semelhantes, — ele disse, continuando a


embaralhar. — A diferença é que eu gostaria de poder esquecer tudo
que você não lembra mais.

— E eu queria poder lembrar.

— Eu sei.

— Eu queria que você me dissesse.

— Eu queria poder dizer.

Ela ficou quieta por um momento, apenas o observando


embaralhar. — Eu sinto coisas sobre você também, sabe.

— Eu ficaria surpreso se você não sentisse.

Ela estreitou os olhos contemplativamente enquanto observava


suas mãos, antes de encarar seu olhar. — Você é um estranho para
mim, Luce. Na minha cabeça, eu realmente não sei nada sobre você.
Você anda descalço, acha sapatos do nada, pede uma maçã de café da
manhã e não come, e você está sempre lá. Para onde eu olho, você está
lá, e então se foi outra vez. Isso não é normal.

Normal é relativo, ele queria dizer. Foda-se o normal, de qualquer


maneira.

Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, no entanto, ela


continuou.

— Você é um estranho para mim, — ela disse de novo, — mas de


alguma forma eu te conheço. Eu vejo você aparecer do nada, acho você
de pé no meu corredor ou espionando do lado de fora do meu trabalho,
e meu coração começa a correr, mas não porque estou com medo. Ele
acelera porque te conhece. Ele pula uma batida porque sabe que você
está ali. Meu coração te conhece, mesmo que o resto de mim não.

Os olhos de Luce caíram rapidamente para o seu peito antes de


olhar para as cartas de novo. Seu coração estava batendo de forma
constante, melodicamente. — Ele não está acelerado agora. Ele esteve
calmo hoje.

~ 121 ~
— Você pode dizer isso?

Ele deu de ombros e começou a dividir as cartas distraidamente,


entregando uma pilha para ela. — Você que jogar?

Cuidadosamente, ela pegou as cartas. — O que nós vamos jogar?

— War.

— War, — ela repetiu, começando a virar suas cartas, mas Luce


agarrou sua mão, a parando antes que ela pudesse ver o que tinha. Ele
rapidamente explicou as regras básicas do jogo enquanto ela olhava
para a mão dele sobre a dela. Quando ele acabou, ela olhou nos seus
olhos. — Eu já joguei isso antes.

Ela disse como uma declaração, mas Luce podia ver o


questionamento nos seus olhos. — Sim, você jogou.

— Eu já joguei com você?

— Muitas vezes.

— Eu ganhei?

— Uma vez.

Ela acenou, se mexendo para ficar de frente para ele enquanto


sorria. — Bem, Luce, está prestes a ser tornar duas vezes.

Ele riu, divertido, quando começaram a jogar.

Vinte minutos depois, Serah ganhou o jogo.

*****

— Muito obrigado mesmo, — Nicholas suspirou, de pé na varanda


da frente, com uma Nicki sonolenta enrolada no seu colo, caída sobre o
seu ombro. — Sério, eu não posso agradecer o bastante.

— Eu disse que seria um prazer, — Serah disse. — Se você


precisar de mais alguma coisa, eu estou aqui.

Nicholas sorriu. — Você pode viver para se arrepender disso.

Serah riu. — Nunca.

~ 122 ~
Nicholas saiu depois de agradecer mais algumas vezes. Serah
esperou até que eles se fossem para suspirar, fechar a porta e se
encostar contra ela. Eram quase três da manhã e Serah tinha faltado ao
trabalho. A sua chefe entendeu, mas ela ainda tinha um peso sobre si.

O olhar de Serah correu pela sala escura, a única fonte de luz era
uma lâmpada muito fraca. Luce ainda estava sentado no meio do sofá,
os cotovelos apoiados sobre os joelhos, os olhos nela. Ele ficou a noite
toda, nem uma vez reclamando sobre ter que estar em outro lugar.

Ele tinha? Ela não podia deixar de se perguntar. Onde ele ia


quando saía?

Como se tivesse pegado a dica, ele se levantou. — Eu deveria ir.

— Fique.

Essa única palavra o fez parar. Ele ficou ali imóvel, a encarando
na escuridão, como se estivesse contemplando a proposta. Depois de
um momento, andou até ela, segurando seu rosto entre as mãos. Seus
polegares acariciaram levemente as suas bochechas.

— Você é tão bonita, anjo, — ele sussurrou. — Tem certeza que


quer que eu fique?

Ela assentiu com a cabeça.

Ela não tinha certeza das implicações disso, o que ele realmente
queria dizer, mas o pensamento dele partindo fez seu peito apertar.
Partes dela doeram, doeram para se readaptar com o que ela costumava
saber, o que ela costumava ser com ele. Era o mais perto de se lembrar
que ela chegou. Ela queria isso.

Talvez ela quisesse ele.

Se inclinando, ele a beijou suavemente, o mais leve toque em seus


lábios. Sem aprofundar, ele a levantou e Serah gemeu em sua boca
quando ele a carregou pela casa. Ele a levou diretamente para o único
quarto e a deitou no centro da cama.

Serah relaxou quando os lábios de Luce deixaram os dela para


explorar a sua pele. Ele beijou seu rosto, sua mandíbula, seu pescoço,
enviando arrepios pelo seu corpo enquanto a beijava sem parar.

Suas mãos percorreram seu corpo, a acariciando gentilmente. Ele


puxou o vestido por cima da cabeça quando ela levantou as mãos,

~ 123 ~
deixando que ele fizesse isso. Seus lábios viajaram pelo torso dela,
facilmente se livrando do resto das roupas.

A boca dele encontrou o ápice das suas coxas. Faíscas explodiram


dentro dela quando ela arqueou as costas, suas mãos no cabelo dele.
Era macio, muito mais macio do que ela esperava de alguém constituído
com linhas tão duras e feições escuras. Ele a beijou, provou, acariciou a
sua pele com a língua.

O prazer a atravessou, o orgasmo a segurando quando seus


músculos contraíram. Ela gritou, e ele não soltou, continuou com seus
movimentos até que as sensações se acalmaram e ela relaxou outra vez.

Ela ficou ali deitada, respirando com dificuldade, seu corpo


formigando enquanto ele tirava as próprias roupas rapidamente. Seus
olhos se arrastaram pela sua forma nua, hipnotizada pelas suas linhas
e contornos. Ele era impressionante, absolutamente perfeito, sem falhas
ou manchas, nada fora do lugar. Mesmo a marca que pouco tempo
atrás tinha sido esculpida no seu peito se foi, totalmente curada,
desaparecido.

Luce olhou para ela, algo brilhando em seus olhos,


inesperadamente escuros. As costas dela se arrepiaram com a sensação
de perigo, mas o desejo empurrou isso para o lado.

Talvez ele fosse perigoso, mas por alguma razão, ela confiava nele.

— Tão linda, — ele disse de novo, sua voz áspera e rouca


enquanto suas mãos massageavam seus seios. — Você tem certeza
disso?

Tudo que precisou foi de outro aceno com a cabeça.

Ela não precisou nem falar.

Luce se acomodou entre as suas coxas, encontrando seus lábios


outra vez quando empurrou dentro dela. Serah gemeu quando ele a
encheu, uma sensação esmagadora correndo por ela. Ela se sentiu
quente, tão quente, como se ele estivesse colocando fogo em seus ossos.
Ele se moveu lentamente no começo, deixando que ela se acostumasse
com a sensação, antes de aumentar um pouco o ritmo.

Quebrando o beijo, ele se afastou, sua mão indo parar no peito


dela, sobre a cicatriz circular em cima do seu coração. Sua palma
parecia em brasas, chamas queimando, enquanto o coração dela batia
freneticamente contra o peito.

~ 124 ~
— Está acelerado agora, — ele sussurrou. — Eu posso ouvir.

Ele fez amor com ela, empurrando uma e outra vez, se apoiando
sobre um braço enquanto a mão direita permaneceu sobre o seu peito.
Serah não apenas o sentia em seu corpo. Luce estava penetrando parte
da sua alma. Ele se agarrou com força a isso, não deixando ir,
reivindicando partes de Serah que ela nem tinha percebido que existiam
até que ele as acordasse. Do lado de fora, um trovão retumbou ao longe,
o vento bateu contra as janelas e uma tempestade teve início.

Outro orgasmo a tomou, e então outro, prazer sem fim a enviando


sobre o limite. Ela mal podia respirar enquanto ele a levava para
lugares que ela não tinha certeza se um corpo humano era capaz de
estar. O nome dele caía dos seus lábios, um sussurro de satisfação que
ela não podia conter.

Luce.

— Tão linda, — ele sussurrou de novo, sua boca encontrando seu


ouvido quando ela fechou os olhos, o abraçando com força, o segurando
mesmo que machucasse. Um ardor irrompeu na sua pele, alfinetes e
agulhas torturantes que deixavam um caminho de fogo em seu
caminho. Parecia a luz do sol, a deixando em carne via, fazendo com
que lágrimas enchessem o canto dos seus olhos.

Ele se moveu mais rápido, empurrando mais fundo, murmurando


em seu pescoço sobre estar perto. Serah podia sentir, podia sentir o
corpo dele tencionando, seus movimentos mais frenéticos. A dor dentro
dela se intensificou e ela apertou os olhos com força, uma lágrima
escorreu pela sua bochecha.

— Não, — Luce rosnou. — Não... não... não...

Tudo de uma vez, a escuridão foi arrancada com uma explosão de


luz, queimando o sangue vermelho por trás das suas pálpebras quando
outro orgasmo a rasgou. Ela ofegou, lutando por ar. Era como se fosse
uma explosão dentro do seu peito, ricocheteando por todo o corpo. Seus
olhos estalaram abertos, e talvez fosse sua imaginação, mas ela podia
jurar que ele estava brilhando de novo.

*****

— NÃO!

~ 125 ~
Lúcifer gritou a palavra quando um espaço completamente branco
de nada se materializou ao seu redor, seus pés descalços plantados bem
no meio do círculo cercado por aqueles malditos sinais de
confinamento. Ele olhou para eles, a raiva crescendo em seu interior,
escorrendo como lava derretida.

Ele sentia que podia explodir.

Ele podia sentir o peculiar formigamento de ser convocado, mas a


raiva ofuscou isso, a concentração de pecado dentro dele intensa
demais para fazer seu corpo vibrar. Ele fechou as mãos em punhos,
tentando se segurar, a forçar de volta, mas isso tinha sido construído
por tempo demais.

Não tinha lugar nenhum para ir.

— Porra!

A maldição foi um rugido em seus lábios, os sentimentos se


derramando dele de uma só vez. Fazia muito, muito tempo desde que
ele se abriu e deixou sair, libertando tudo que esteve engarrafado. A
liberação de energia foi tão intensa que o chão tremeu, por um
momento tudo ao seu redor escureceu, como o brilho do Céu tivesse
sido ofuscado por todo o seu pecado. Tudo voltou ao normal tão rápido
quanto aconteceu, o solo se estabilizou quando tudo foi sugado para
longe.

O olhar furioso de Lúcifer se levantou dos sinais o cercando, o


prendendo, e foi para o trono a alguns metros. Seu Pai estava sentado
passivamente, relaxado, apenas o observando com uma expressão de
tédio no rosto. Michael, por outro lado, estava sentado curvado, pesado
com a derrota, seu rosto marcado por preocupação e um pouco de outra
coisa.

Nojo?

— Você já acabou? — seu Pai perguntou calmamente. — Ou quer


mais uma sessão de birra?

Birra. Luce odiava quando falavam com ele como criança.

Luce não entreteve essa pergunta condescendente com uma


resposta, mantendo os olhos em Michael. Não, não era nojo, nem raiva.
Era mágoa.

Mágoa.

~ 126 ~
Quantas vezes ele tentou ferir seu irmão? Quantas vezes ele
tentou destruir Michael somente para decidir, no final, que o Arcanjo
não poderia ser ferido? Claramente, ele estava errado.

Ele finalmente tinha o machucado.

Luce não se sentiu tão bem sobre isso hoje.

Ele sabia, pela expressão de Michael, que ele tinha testemunhado


o que acabou de acontecer, que ele tinha visto cada segundo da sua
noite com Serah. Que tipo de voyeur doente masoquista assistiria
àquilo?

— Lúcifer.

A voz do seu Pai era forte, uma borda de autoridade que


instintivamente levou seus olhos até Ele. Luce de repente se sentiu
extremamente exposto, parado no meio do Céu em frente à sua família
disfuncional usando nada mais do que o cheiro de Serah e um monte
de pecado, sua mente um livro aberto.

Lúcifer tentou conjurar algumas roupas, mas os encantamentos


ao seu redor o impediram. Gemendo, ele olhou para o seu Pai. — Me dê
algumas roupas.

— Roupas? — Ele perguntou casualmente. — Você nunca foi


modesto. Você parece encontrar muito prazer na sua forma nua.

— Sim, bem, eu estou tendo muito prazer em ter meu irmão


invejando o meu pau.

Michael entrou na conversa, descontente. — Nunca!

Seu Pai levantou a mão, silenciando Michael antes que ele


pudesse responder. Com um giro do pulso, roupas se materializaram
em Luce, as mesmas roupas que ele tinha usado a muito tempo atrás,
roupas que combinavam com as de Michael – um terno limpo e claro,
tão branco que se misturava com os seus arredores.

Luce levantou uma sobrancelha para o traje. — Sério?

Seu Pai simplesmente sorriu.

— Me leve de volta, — Luce ordenou. — Você não tem nada que


me chamar aqui, não tem que ficar me observando, não tem que se
meter no que eu estou fazendo. Ela tem livre arbítrio. Não há nada que
a impeça de estar comigo, se ela quiser. Então me leve de volta. Agora.

~ 127 ~
As exigências de Luce foram ignoradas.

— Você sabe por que anjos estão proibidos de se relacionarem


com humanos? — seu Pai perguntou.

— Por que você é um babaca?

— Porque vocês são poderosos, — ele disse, ignorando o insulto


como sempre. — Você especialmente, Lúcifer. Você é o mais poderoso
que eu já criei. Com exceção do seu irmão, poucas criaturas poderiam
causar o caos que você cria. E mesmo que ele seja capaz do mesmo
nível de destruição, ele não tem isso dentro dele para seguir em frente.
Não como você.

As palavras foram constritas, como mãos ao redor da garganta de


Lúcifer. — Acho que eles estavam errados, hm? Seus filhos amados
pensam que Deus não comete erros.

— Eu não cometo, — Ele disse com firmeza. — Você não é um


erro.

— O que eu sou, então? Um experimento que deu errado? A porra


de um brinquedo com que você se diverte?

— Você é você, — Ele disse, como se isso explicasse tudo. — Você


é meu filho, Lúcifer.

Luce apenas o encarou. Ele tinha um argumento sólido contra


isso, mas não tinha mais o que precisava para entrar nessa outra vez.

— Me leve de volta.

— Você é forte demais para ela.

— Eu vou me segurar.

— Você não pode.

— Não me diga o que fazer! — Lúcifer estalou. — Eu não aceito


ordens de ninguém!

Tudo ficou quieto por um momento, a tensão na sala crescendo e


então aliviando quando seu Pai enviou uma onda de calma pelo ar que
mal afetou Luce.

— Ninguém o subestima como você mesmo, — Ele disse. — O seu


poder já eliminou com a maior parte da Graça dela uma vez. Mesmo
contido, você arrancou a maior parte da sua inocência. Ela era um anjo

~ 128 ~
naquela época, forte, mas não era páreo para você, e ela é mortal agora.
Ela é fraca. Você é letal para ela.

— Eu vou ser cuidadoso.

— Você quase explodiu o seu coração, — Ele disse


tranquilamente. — Se eu não tivesse trazido você para cá, seu poder
teria tirado a vida dela. Ele teria a drenado até que não sobrasse nada.

Luce não queria acreditar nisso.

O machucava apenas pensar nisso.

— Eu vou levar você de volta, — Ele continuou. — Se é isso o que


você realmente quer.

Luce assentiu. — Eu certamente não quero estar aqui.

Com um estalar de dedos, tudo se foi, a escuridão do quarto de


Serah o cercou outra vez. Ele estava profundamente dentro dela, tão
profundamente que podia sentir o seu fogo, podia sentir o batimento
cardíaco frenético que pulsava através dele. Um orgasmo a sacudiu, tão
forte que seu coração parou por um momento e então caiu fora de
ritmo.

Ela abriu os olhos, encontrando os dele, suas íris queimando em


vermelho. Porra. Luce saiu de dentro dela um instante antes de ir longe
demais, aliviando o aperto na sua pele. Ele chegou perto. Perto demais,
porra. Ele esteve tão perdido nas sensações que não tinha sentindo a
aflição crescente dela. Ela o olhou em choque, piscando rapidamente
depois de um segundo. — O que foi isso?

A terra ainda estava tremendo ao seu redor, a tempestade lá fora


batendo neles agora. Foi ele, Luce percebeu. A liberação de emoções
tinha causado isso. Ele se foi por apenas uma fração de segundo, não o
bastante para Serah detectar, mas ela certamente sentiu as
consequências posteriores.

— É só uma tempestade, — ele disse. — Raios e trovões.

O coração de Serah se acalmou um pouco, seus olhos suavizando


para o castanho habitual, um leve brilho em sua pele. Ele se abaixou e
lhe deu um beijo suave, apenas o toque de uma pena antes de levar os
lábios até sua testa.

~ 129 ~
— Durma um pouco, — ele sussurrou, mais para si mesmo que
para ela, porque ela estava inconsciente em segundos. — Você precisa
se recuperar.

~ 130 ~
Capítulo Quatro
Samantha Lauer ainda não conseguia dormir.

Não era a azia ou os tornozelos inchados os responsáveis. Ela


tinha algo mais invasivo agora: um bebê chorando.

Ele era uma coisinha pequena, a menor pessoa que Serah já


tinha visto, mas gritava alto. Ele se encaixava perfeitamente na dobra
do braço da sua mãe, quase invisível se não fosse o choro de furar os
tímpanos. Serah se sentou na frente deles à mesa da cozinha, seus
olhos no rostinho redondo.

Mesmo com toda a perturbação, ela nunca viu nada tão adorável.

Isso a maravilhava, algo que vinha do nada, desenvolvendo e


envolvendo a menor das células, o universo respirando vida no corpo da
mulher. Ela nunca pensou em ter filhos, ou pelo menos ela não se
lembrava disso, mas ver o pequeno Samuel nos braços da sua mãe fez
uma parte de Serah balançar.

— Ele é lindo, Samantha.

— Ele é infeliz, — Samantha disse. — Ele me odeia.

Sua voz angustiada vez Serah sorrir com simpatia. — Não, ele não
odeia. Crianças não odeiam os seus pais.

— Você tem certeza disso?

— Claro, — ela disse. — Ele só está tentando se comunicar.

— Sim, bem, alguma ideia do que ele está dizendo? — Samantha


perguntou, uma ponta de desespero na sua voz. — Porque isso soa
como ‗eu odeio você‘ às três da manhã.

— Ele está tentando se acostumar com o mundo, — Serah disse.


— Ele é apenas novo nisso tudo, sabe? Completamente indefeso e
inocente.

~ 131 ~
— Você parece uma encantadora de bebês.

Serah riu quando uma alta batida ecoou pela casa vinda da porta
da frente. O barulho assustou o bebê, que começou a chorar mais forte.
Samantha se levantou e começou a andar para a porta, mas parou ao
lado da cadeira de Serah.

— Você pode, hm...? — ela parou quando bateram outra vez. —


Você pode segurar ele um segundo?

Antes que ela pudesse responder, o bebê foi jogado em seus


braços. Serah o segurou, os olhos arregalados, e encarou o garotinho.
Samantha o soltou, deu um passo para trás, as mãos para cima como
se para ter certeza de que Serah estava com ele antes de baixar a
guarda.

Serah sorriu, o acomodando em um braço enquanto acariciava a


sua bochecha com a ponta do dedo. Sua pele parecia elétrica, fazendo o
dedo formigar. Ele se acalmou com o toque, seus gritos se tornaram
choramingos, e segundos depois pararam completamente.

— Puta merda, — Samantha disse. — Você é uma encantadora de


bebês.

A terceira batida foi mais alta que as outras duas. Gemendo,


Samantha gritou para eles aguentarem um minuto que ela estava a
caminho. Serah olhou para o bebê tranquilo quando ele abriu os olhos e
olhou para ela. Ele fazia três semanas hoje, e era a primeira vez que
Serah o segurava ou o via tão de perto, sem ser chorando nos braços da
sua mãe.

— Olá, Samuel, — ela sussurrou quando continuou a acariciar


sua bochecha quente. — Eu sou Serah.

Ele apenas a encarou.

— Seus pais são boas pessoas, — ela continuou. — A sua irmã


também. Umas das melhores pessoas que eu já conheci. Você é um
garotinho sortudo por ter eles, então você precisa lhes dar uma folga. A
sua mãe precisa dormir um pouco.

— Ugh, — a voz de Samantha chegou enquanto ela fechava a


porta da frente outra vez. — Eu juro, ele é tão babaca.

— Quem?

~ 132 ~
— O proprietário, — ela gemeu. — Ele veio reclamar que a grama
não foi cortada por tipo, um ano. Eu disse a ele que Nicholas vai dar um
jeito assim que puder. Quero dizer, nós temos um filho recém-nascido,
e meu marido quase não para em casa... me desculpe se eu não estou
fazendo a droga do jardim uma prioridade. Eu não durmo há dias.

— Por que você não dorme agora?

— Porque Samuel... — ela hesitou. — ...não está chorando. Ele


não está chorando. Como você fez isso?

— Eu não fiz nada.

— Encantadora de bebês, — ela disse de novo, sorrindo enquanto


pegava Samuel cuidadosamente. Ela o observou com expectativa, como
se esperasse que ele voltasse a chorar, mas ele continuou quieto. — Oh,
Deus, Nicki só vai chegar do acampamento daqui algumas horas. Talvez
eu consiga dormir. O que você acha?

Serah riu. — Acho que sim.

Samantha murmurou desculpas sobre não ser uma melhor


companhia, mas Serah cortou isso, abraçando sua amiga antes de sair.

Ela tomou banho e jantou cedo sozinha antes de ir para o


trabalho algumas horas depois. Ela foi caminhando, andando
despreocupadamente, seus passos diminuindo quando ela se
aproximou do velho motel e viu a forma familiar parada do lado de fora.
— Luce?

Ele se virou, seus olhos a estudando com cuidado. — Serah.

Havia algo na sua voz, algo fora do lugar. Estava tensa, como se
ele estivesse segurando algo. Ela correu para ele, ocasionalmente, nas
últimas semanas, mas fazia alguns dias desde que ela viu seu rosto.
Desde a sua noite juntos, ele manteve distância.

Quando ele parou na sua frente, ela podia dizer que seus
pensamentos estavam longe. Seus olhos continuavam vagando além da
sua cabeça e ao redor, como se estivesse procurando alguma coisa. Ela
olhou para o lado, curiosa, mas tudo que encontrou foram as normais
ruas de Chorizon.

Talvez ele só estivesse evitando me encarar...

— Você está bem? — ela perguntou hesitante.

— Estou bem.

~ 133 ~
— Você parece... distraído.

Ele ofereceu a ela uma tentativa de sorriso. — Você não é a única


que pode sentir coisas.

— O que você sente?

— Algo que não deveria estar aqui.

Pelo jeito que ele olhava para as pessoas que passavam, Serah
suspeitava que era mais ‗alguém‘ do que ‗algo‘. Ela começou a expressar
isso quando Luce de repente a agarrou. Ela tencionou, surpresa, mas
relaxou quando ele enrolou os braços em volta dela. Ele tinha um cheiro
quente, como terra, e uma leve pitada de enxofre em sua pele.

Serah passou os braços ao redor da sua cintura, o abraçando


enquanto ele lhe dava um beijo no topo da cabeça. O abraço não durou
muito antes dele se afastar. — Você deveria ir trabalhar antes que se
atrase.

— Sim, — ela disse, dando um passo para trás, os olhos ainda


nele. — Ei, Luce? Você pode me fazer um favor?

Ele hesitou. — O quê?

— Você poderia cortar a grama dos meus vizinhos? — ela


perguntou. — A minha é responsabilidade do proprietário, mas a
deles... bem, o proprietário deles não é tão legal quanto o meu.

Ele olhou para ela. — Você quer que eu corte a grama?

— Sim, — ela disse. — Se você não se importar.

Ele não respondeu, mas assentiu levemente, a única resposta que


ela imaginou que ia conseguir.

— E tente ser silencioso, — ela disse a ele. — Você sabe, já que


eles têm o bebê e tudo mais.

— Silencioso, — ele disse. — Entendi.

Ela acenou para ele antes de dar outro passo para trás e se virar
para entrar no saguão do motel.

Ela parou quando alcançou a porta, olhando para trás, mas ele já
tinha ido.

Serah não se importava com seu turno noturno, embora ele fosse
um pouco tedioso a maior parte do tempo. Especialmente nos finais de

~ 134 ~
semana, como hoje, quando poucas pessoas vinham para a cidade. Eles
tinham dois ocupantes, e ninguém entrou no saguão por horas.

Estava escuro lá fora, se aproximando da meia-noite, e Serah


estava sentada ao lado da mesa, lendo um romance barato que ela
achou em uma gaveta. Ela assumiu que pertencia a Gilda. Ela estava
lendo uma cena particularmente indecente, suas bochechas corando
com a obscenidade, quando a porta abriu, o sino tocando. Serah fechou
ansiosamente o livro, o jogando de volta na gaveta, e disse um ‗bem-
vindo‘ enquanto olhava para cima. Seu sorriso derreteu rapidamente e
desapareceu quando ela percebeu que não havia ninguém ali.

Ela olhou ao redor do saguão, confusa. — Olá?

— Olá.

A voz veio do seu lado, tão perto que os cabelos da sua nuca
arrepiaram, um arrepio correu pela sua coluna. O medo tencionou seus
músculos quando ela se girou a cadeira e ficou cara a cara com um
homem familiar. Levou alguns segundos do seu alarme para recordar
seu nome. — Don.

Ele sorriu. — Você se lembra.

— Hm, sim, — ela disse tentativamente, se levantando e se


afastando, indo para o meio do saguão enquanto o homem se apoiava
na mesa da recepção. Sinos e sirenes tocaram na sua cabeça. Algo não
estava certo. As palavras de Luce mais cedo ecoaram na sua cabeça.
Algo que não deveria estar aqui. — Posso ajudar?

— Como eu disse antes, pode, — ele disse, lentamente dando a


volta na mesa. — Você pode me ajudar de jeitos que mais ninguém
pode.

Isso não estava certo. As defesas de Serah a fizeram arrepiar


enquanto seus olhos corriam ao redor. Era tão tarde, a cidade estava
morta a essa hora, nem uma alma acordada para ouvir se ela gritasse
por ajuda. Serah contou até três em sua cabeça, seu coração frenético,
antes de se virar e correr para a porta, ouvindo uma voz gritar atrás
dela. — Ah, não seja assim!

Ela agarrou a maçaneta da porta e o sino acima soou quando ela


correu para a noite, olhando por cima do ombro para ter certeza de que
ele não estava a seguindo. Ela se virou bem a tempo de colidir com
alguma coisa, um grito borbulhou dentro dela. Ela levantou o olhar,

~ 135 ~
mal enxergando o homem na escuridão enquanto tropeçava para trás,
seus joelhos oscilando.

— Por que você fugiria? — Don perguntou. — Eu não ia machucar


você.

— Como...? — ela gaguejou, chocada, olhando de novo para o


prédio. Ele não a seguiu para fora. Ela tinha certeza. — Você estava... e
agora você está....

Em um piscar de olhos, ele sumiu da frente dela e apareceu a 30


metros de distância, antes de desaparecer outra vez e reaparecer na sua
frente por tempo suficiente para que ela soltasse um grito afiado. Ele
pulou redor sem parar, desaparecendo bem diante dos seus olhos e
reaparecendo outra vez. Ela girou em um círculo, aterrorizada enquanto
ele saltava de um lado a outro ao seu redor.

— Isso não é real, — ela entoou, sua voz instável quando ela
parou, a imagem dele desaparecendo e não reaparecendo, o
estacionamento ainda quieto... tão quieto... quieto demais. Não havia
uma brisa, nem um grilo cantando, nada. Era como se o mundo ao
redor tivesse sido pausado. — Isso não é real. Não pode ser. Isso não
está acontecendo.

— Ah, mas está.

A voz era apenas um sussurro enquanto as sombras a cobriam,


bloqueando a fraca fonte de luz oferecida pela placa luminosa do motel.
Sua respiração ficou presa, seu corpo tremia enquanto ela lentamente
se virava, ficando cara a cara com a figura misteriosa. Ela gritou, terror
se agarrando ao seu interior. Seu rosto duro estava torcido pela raiva,
apesar do seu sorriso, seus olhos eram poços de escuridão. O breu o
camuflava, sombras escuras o cercavam. Esse era Don, mas era algo
mais agora... algo antinatural.

Algo não humano.

— Oh, Deus, — ela gritou. — O que você é?

— Você sabe o que eu sou, — ele disse, — e eu acho que está na


hora de você se lembrar.

Antes que ela pudesse reagir, antes que ela pudesse fugir ou
gritar, ou implorar por misericórdia, rezar para que Deus a salvasse,
mãos a agarraram rudemente e a escuridão tomou conta.

~ 136 ~
*****

Luce apareceu na frente da casa de Serah.

Estava tudo escuro, um antigo relógio na vizinhança marcava


exatamente meia-noite. A hora do pesadelo, eles diziam, a hora em que
o folclore humano dizia que bruxas, demônios e fantasmas eram mais
poderosos, em que a magia negra era mais forte, em que o mundo era
mais perigoso.

O que as pessoas pareciam não notar, no entanto, é que ele era


sempre perigoso. Não era apenas com o mundo sobrenatural que eles
tinham que se preocupar. Quando você é mortal, a vida não é nada
mais que um jogo chamado Roleta Russa. Cada momento é um giro do
cilindro da arma, cada decisão apontando o cano para a sua cabeça.
Uma e outra vez, de novo e de novo, você puxa o gatilho, esperando que
não seja a sua última rodada no jogo.

Anjos foram abençoados com o conhecimento de qual seria a


última partida, qual decisão levava a bala que acabaria com tudo. Luce
podia ver a de cada mortal e sabia quando eles teriam seu último
suspiro e o que aconteceria com as suas almas depois disso.

Luce sabia os seus futuros, mas não sabia o de Serah. Ele deveria
ser capaz de dizer, quando ela abriu os olhos na rua aquele dia, o que
viria para ela, mas não havia nada. Nunca houve nada. Cada momento
é como se fosse o seu último, até que outro momento acontecia,
substituindo o último. Não havia vida, nem morte, nem futuro, apenas
o agora. Um agora que ela esteve vivendo por meses. O cano da arma
estava pressionado na sua têmpora, mas ninguém tinha puxado o
gatilho.

Suspirando, Luce desviou o olhar da casa silenciosa, se virando


para a dos vizinhos. Ele podia sentir a essência de Samuel por todo o
lugar. Seu futuro era fácil de ver, uma vida longa e feliz antes que ele
ascendesse de volta para o Céu, onde sua alma tinha sido originada.
Luce queria poder ver isso para Serah.

Porra, ele queria poder ver alguma coisa para ela.

Se ela estava destinada a ir para o Céu, ele podia se afastar,


deixar ela em paz com a vida que ele a forçou a ter. Se ela estava
destinada a ir para o Inferno, ele iria lutar com unhas e dentes para

~ 137 ~
salvá-la. Mas ela parecia apenas destinada a existir, no momento. O
que iria acontecer quando seu coração parasse de bater?

Ele acenou com a mão na direção do jardim ao redor da casa dos


Barlow. A grama murchou, encolhendo até estar do mesmo tamanho da
de todos os outros. Ele estava observando isso quando uma peculiar
pontada subiu pela sua espinha, um sentimento que o consumiu o dia
todo.

Era como uma facada nas costas.

Perigo.

Ele procurou por Serah, se concentrando para senti-la do outro


lado da cidade, e congelou quando pegou levemente a melodia do seu
batimento cardíaco. Seu coração batia febrilmente, tão forte que ele
podia ouvir o eco das batidas contra as suas costelas, tentando escapar
desesperadamente. No segundo que o som o atingiu, outro se juntou, e
ele sacudiu quando o estalo de estática ricocheteou pelo bairro, tão alto
que os cães começaram a latir, um carro de alarme próximo de repente
desatou a apitar.

Luce se virou e viu uma dúzia de anjos, alguns que ele


reconheceu, poucos com armas, a maioria desarmada. Os filhos da puta
alados estavam visíveis, suas proteções totalmente abaixadas. Qualquer
mortal poderia olhar pela janela e vê-los pousando na vizinhança. Ele
procurou na multidão por Abaddon, mas seu velho amigo não estava
em lugar algum. Luce tentou encontrá-lo, uma inquietação na boca do
seu estômago.

A raiva se agarrou a ele.

O Guardião estava perigosamente perto do batimento cardíaco


frenético.

Os anjos avançaram em direção a Luce quando ele alcançou sua


arma, a agarrando com força. Ele tinha a vantagem, uma vez que podia
arrancar as suas asas, mas eles poderiam feri-lo o bastante para o
impedir de partir. Alguns deles hesitaram quando ele puxou sua adaga,
mas uma Potestade corajosa avançou na sua direção. Eles eram lentos
e indisciplinados, claramente não eram os melhores lutadores que havia
lá em cima. Eles não foram enviados para parar ou machucar ele. Eles
eram apenas um estorvo.

Uma distração.

Aquele filho da puta.

~ 138 ~
Luce balançou sua adaga, esfaqueando, agarrando, cortando,
fatiando e dilacerando cada pedaço de anjo que ele podia alcançar. Eles
o atacaram por todos os lados, a Graça o banhando quando ele enfiou a
adaga no peito de um anjo e puxou de volta. Ele mal teve tempo para
desfrutar da sensação, para se deliciar com a onda de energia, quando
uma faca o esfaqueou no lado. Ele resmungou na dor aguda,
balançando em direção a seu assaltante, uma pequena e bonita Virtude
em um vestido vermelho. Que pena.

Luce agarrou seu braço, torcendo-o, puxando a faca da sua


mão. Ele a esfaqueou com ela, diretamente no estômago, trazendo sua
própria lâmina para baixo através de suas costas quando ela se curvou.
Ela explodiu em uma bola de luz, o cercando, o formigamento aliviando
um pouco da queimadura da ferida.

Porra, ele odiava como se curava devagar.

— Michael, — ele gritou, olhando para o céu noturno enquanto se


defendia de outro ataque, recebendo um corte na bochecha. — Irmão,
se há um momento para você tentar intervir na minha maldita
existência, é agora.

Ele girou ao redor, pegando o desgraçado alado que o cortou.


Outra mulher. Ele cortou outro, girando quando um alto estalo de
estática ecoou pelo bairro.

Os olhos de Luce imediatamente encontraram um par familiar.

Michael.

— Graças à porra do Céu, — Luce grunhiu.

— Eu não estou fazendo isso por você, — Michael disse,


balançando sua espada, pegando dois de uma vez.

— Eu sei, — Luce disse. — Eu só estou feliz que você está fazendo


isso.

Mais estática agitou a noite, mais anjos apareceram. — Reforços,


— Luce murmurou. — Lindo.

Houve um estalo bem ao seu lado, a apenas alguns metros de


distância. Ele se virou, prestes a enterrar sua faca em quem quer que
estivesse ali, mas hesitou com ela levantada. Outra bonita Virtude, mas
essa ele conhecia. Hannah.

~ 139 ~
— Você não, raio de sol, — ele disse. — Não me diga que você é
um dos seguidores idiotas de Abaddon.

Ela congelou, genuinamente chocada pela visão, antes de seu


rosto se torcer de nojo. — Nunca.

— Bom saber, — Luce disse, a empurrando para fora do caminho


para pegar um anjo atrás dela. — Então o que você está fazendo aqui?

— Serah, — ela disse, sua voz urgente. — Ela está com


problemas.

Luce assentiu, girando ao redor, arremessando sua adaga até


metade do jardim para empalar uma Potestade corpulenta bem no meio
da testa. Ele girou o punho e a adaga voltou voando para ele, o anjo
explodindo em uma nuvem de Graça. Ele se virou para Michael e viu
que seu irmão estava ocupado. Não era uma questão de ganhar ou
perder. Eles ganhariam... sem dúvida. Arcanjos nunca perdiam. Era só
uma questão de batalha, de resistência, de se sobressair em relação ao
outro lado.

Michael olhou para ele, acenando. — Vá.

— Você tem certeza?

Assim que ele disse isso, outro estalo alto ecoou pela rua, fazendo
o chão tremer. Mais anjos apareceram, dessa vez Potestades enviadas lá
de cima. Luce riu para si mesmo. Seu pai tinha mandado ajuda.

— Eu tenho agora, — Michael disse, se virando para Hannah. —


Você sabe usar uma faca, Virtude?

Hannah assentiu. — Samuel me ensinou a muito tempo atrás.

Michael jogou para ela uma arma descartada e ela a pegou no ar.

— Não se segure, — ele disse a ela. — Eles não vão.

Luce não hesitou mais, aparatando dali direto para o velho motel.
O lugar estava destrancado, a porta aberta, as luzes acesas, mas não
havia ninguém ao redor. Os batimentos cardíacos dela se foram, assim
como Abaddon. Ele tentou encontrá-los, voando de um lugar para o
outro, de cidade para cidade, de país para país, indo a todos os lugares
que ele sentia que Abaddon tinha estado, até que finalmente...
finalmente... ele o encontrou.

~ 140 ~
O Guardião estava em uma saliência no topo do Empire State
Building 7 , suas asas totalmente abertas, seus olhos negros como a
noite. Ele tinha um braço em volta do peito de Serah, sua mão livre
segurando uma faca. Ele a segurava contra a garganta dela, que tremia,
as lágrimas escorrendo pelas suas bochechas coradas. Ela mal estava
conseguindo se controlar. O aperto firme de Abaddon era a única coisa
que a mantinha de pé. — Ah, é só falar no diabo que ele aparece.

Serah gritou alto, horrorizada quando Luce apareceu na frente


dela. Ele congelou no lugar, a alguns metros de distância, e seus olhos
encontraram os dela. Ele podia sentir o seu medo, a sensação tão
esmagadora que quase o derrubou. Ele sabia o que ela viu quando
olhou para ele. Suas asas enormes completamente abertas, a adaga
firme em sua mão. Sangue escorria pela sua bochecha e cobria sua
camisa rasgada na lateral.

— Fico feliz que você conseguiu chegar aqui, — Abaddon disse,


sua voz calma. — Você pode me fazer o favor de jogar essa adaga para o
lado, sim?

Lúcifer hesitou antes de largar a faca. Ela caiu entre ele,


ruidosamente batendo no concreto do chão. — Você que pensa que está
fazendo, Don?

— O que é preciso, — Abaddon respondeu imediatamente. — Eu


não queria que as coisas chegassem a esse ponto, mas você não me deu
escolha.

— Você sempre teve escolha, — Luce disse. — Você escolheu se


juntar a mim muito tempo atrás, e então escolheu me abandonar
quando isso serviu melhor para você. Você escolheu ficar por perto
enquanto eu era punido pelas suas indiscrições. Então não me fale de
escolhas, porque você tem e fez as suas. Mas agora, velho amigo, você
limitou severamente as minhas.

Um sorriso lento se espalhou pelos seus lábios. — É aí que você


se engana, Lúcifer.

No segundo que Abaddon disse seu nome, ele fechou os olhos e


ouviu Serah puxar o ar, uma exclamação de surpresa. — Lúcifer?

Abaddon riu, parecendo realmente divertido quando Luce abriu


os olhos outra vez. Serah estava lhe encarando, chocada. Ele podia ver
as suas perguntas, perguntas que Abaddon também sentiu.

7O segundo maior arranha-céu de Nova York, o 5º mais alto dos Estados Unidos e o
29º do mundo.

~ 141 ~
— Aw, você não sabia, não é? — Abaddon perguntou, as palavras
cheias de compaixão falsa que não combinavam com a diversão
dançando em seus olhos. — Você não sabia que o seu amante era o
primeiro e único Lúcifer. O ardiloso Príncipe das Trevas. Ele deixou você
pensar que ele era uma espécie de Príncipe Encantado de contos de
fada, quando na verdade ele é o Rei do Inferno.

Os lábios de Serah se partiram, a próxima palavra um mero


sussurro, mas segurava tanto poder que Lúcifer quase caiu do telhado.
— Satanás.

Satanás.

Ele odiava esse maldito nome.

Abaddon puxou Serah rudemente, rasgando o tecido da sua


camisa com a mão que mantinha ao seu redor, expondo parte do seu
peito. Seus dedos contornaram a cicatriz. Suas palavras foram dirigidas
a Serah, mas Luce sabia que o significado delas era para ele, para feri-
lo de um jeito que nenhuma adaga poderia.

— Quem você acha que te deu essa cicatriz? — Abaddon


perguntou enquanto pressionava a palma contra o seu peito. — Quem
você acha que apagou a sua memória?

— Não, — ela sussurrou, balançando a cabeça. — Não.

Luce não podia encarar seus olhos. Ele sabia que ela veria a
verdade nos seus.

— Veja, Serah, — Abaddon disse, — você uma vez foi como nós.
Certa vez, não muito tempo atrás, você tinha asas. Mas Lúcifer te
manipulou. Ele roubou tudo que você tinha, te deixou sangrando na
rua. E ele fez isso com essa mesma adaga aqui, essa caída no concreto
à sua frente. Você era inocente, até que o notório Lúcifer te rasgou em
pedaços, uma mentira sussurrada no tempo.

— Luce, — ela gritou, sua voz tremendo. — Por favor, me diga que
isso não é verdade. Me diga que não é real. Me diga alguma coisa... por
favor... me diga que eu não estou louca.

Luce encontrou seus olhos, bebendo na dor que aquelas palavras


tinham causado. Aquele coração, o coração no qual ele se deliciava a
cada batida, estava se quebrando por causa dele. — Você não é louca.
Nunca foi.

~ 142 ~
— Não, — ela sussurrou de novo. — Não me diga isso. Não... não
me diga que isso é real.

— Eu sou quem ele diz, — Luce diz. — Eu fiz o que ele disse.

— Não, — ela quase entrou em colapso enquanto os soluços a


atravessavam. — Não diga isso!

— É a verdade, — Luce continuou, tentando ignorar a dor que as


suas palavras causavam. — Eu levei metade dos anjos para baixo
comigo quando eu caí, e levei você também. E eu fui cruel. Você confiou
em mim. Você acreditou em mim. Vou pensou que todos estavam
errados em me chamar de Satanás, mas eu provei que eles estavam
certos, fazendo você cair também.

— Você é louco, — ela chorou.

— Não, eu só sou um pecador, — Luce disse. — E um mentiroso.


E uma serpente. Eu comandei o Inferno por seis mil anos até que você
me ajudou a escapar.

Ela não podia fazer nada além de olhar para ele. Devastação
marcava a sua expressão. A derrota derrubou os seus ombros. As
lágrimas escorriam continuamente pelas suas bochechas, mas ele não
podia secá-las quando foi ele que as causou.

— Eu sou um monte de coisas ruins, Serah, mas isso não é tudo


que eu sou, nem é por isso que nós estamos aqui, — Luce continuou. —
Veja, há mais uma coisa que eu sou, algo que Abaddon sabe.

— O quê? — ela perguntou. — O que você é?

— Eu sou apaixonado por você, — Luce disse baixinho. — Ele


descobriu a minha fraqueza.

Serah nunca teve a chance de responder. Antes que a última


sílaba saísse dos lábios dele, um grito de dor ecoou pelo ar quando a
lâmina de Abaddon cortou a garganta de Serah. Sangue escorreu da
ferida quando ele a soltou, a empurrando pela borda do edifício.

Faça a sua escolha, irmão, e faça depressa.

As palavras de Abaddon ecoaram na mente de Lúcifer quando ele


hesitou por uma fração de segundo. Uma fração de uma sessão,
praticamente um piscar, mas quase que foi tempo demais. Ele se atirou
do topo do prédio, descendo o mais rápido que podia, agarrando Serah
apenas um segundo antes dela bater no chão.

~ 143 ~
Gritos vinham de todos os lados das pessoas ao redor, todo o
quarteirão parando para assistir. Luce puxou o corpo dela em seus
braços, deixando a multidão histérica para trás quando ele aparatou,
desaparecendo no ar.

Ele fez a sua escolha.

Ele escolheu Serah.

Ele deixou Abaddon vivo.

Ele não tinha outro segundo para desperdiçar.

Luce voltou para Chorizon, bem em frente à casa de Serah. O


caos tinha diminuído, os anjos rebeldes foram derrotados graças a
Michael. No momento em que Luce apareceu, Hannah correu até ele,
frenética, mas ele olhava apenas para o seu irmão.

— Salve ela, — ele disse. — Eu imploro a você, Michael.

Michael encarou Luce, seu olhar correndo para Serah, caída e


sangrando em seus braços. Seus olhos encontraram os de Luce mais
uma vez. Segundos se passaram, longos e torturantes, que foram
acentuados pelos batimentos cardíacos fracos de Serah.

Ele estava desperdiçando esses segundos, perdendo tempo


demais.

— Michael, — ele gritou. — Por favor!

Michael afastou o olhar, e Luce sabia. Ele não ia fazer isso. Ele
não ia ajudar.

Não outra vez.

Luce não deveria estar surpreso. Ele sabia como isso funcionava.
Serah era uma mera mortal. Mais cedo ou mais tarde, ela iria morrer
mesmo. Desde aquele dia no Jardim, ele viu centenas de bilhões de
pessoas perecerem.

Ela era apenas uma vida.

Mas ela era importante para ele.

Lúcifer se sentiu drenado, a energia escorrendo do seu corpo


enquanto ele se agarrava a Serah. Caindo de joelhos, ele se sentou no
jardim, olhando para ela. Devastação o fez oscilar e o único sentimento
que ele jamais se acostumou a sentir o invadiu. Remorso.

~ 144 ~
— Eu vou achar Abaddon, — Michael disse, sua voz forte e firme.
Nenhuma simpatia. — Ele vai pagar pelo que fez.

Em um instante, Michael tinha ido, toda a esperança


desaparecendo com ele. Os anjos remanescentes foram lentamente
sumindo, deixando Lúcifer sozinho.

Sozinho.

Malditamente sozinho.

Ele ainda não estava acostumado com isso.

— Você não está sozinho.

A declaração inesperada fez a espinha de Luce arrepiar quando


veio de trás dele. Luce fechou os olhos quando a voz varreu seu corpo.

Quando ele abriu os olhos novamente, Ele estava na sua frente.


Seu Pai, em toda Sua glória, pisando em solo terreno mais uma vez.
Fazia muito tempo desde que Ele tinha se aventurado aqui embaixo.
Muito, muito tempo.

— Desde aquela tarde no Jardim, — Ele disse, acrescentando aos


pensamentos de Luce. — Foi a última vez que eu vim.

— Por que você está aqui agora? — Luce perguntou, uma ponta
de amargura em sua voz que ele não podia conter. Vinha de um lugar lá
no fundo do seu ser. — Eu não estou com humor para um ‗eu avisei‘.
Eu preferiria ficar sozinho com ela, para ter um momento... apenas um
momento... antes que eles a levem.

Um ceifeiro pairava acima deles. Luce não precisou olhar para


cima, provavelmente nem veria nada na escuridão se ele olhasse, mas
ele podia sentir a proximidade. Ele não queria considerar o que isso
significava nesse momento. Ceifeiros só levavam almas para um lugar.

Ela não merecia isso.

Seu Pai olhou para o céu acima, encarando por um momento


antes de olhar novamente para Lúcifer. — Ele não está aqui por ela.

Lúcifer encontrou Seus olhos. — Não?

Ele balançou a cabeça. — Muitos anjos caíram essa noite, Lúcifer.

— Então ela não... — Luce olhou novamente para Serah. Ela não
vai para o Inferno...

~ 145 ~
— Não, ela não vai.

Lúcifer fechou os olhos, alívio correndo por ele enquanto absorvia


a informação. — Eu não tinha certeza. Eu não posso ver o futuro dela.
Eu nunca consegui.

— Eu sei, — ele disse. — Ninguém pode. Eu mantive isso para


mim.

— Por quê?

Essa era uma pergunta feita a Ele com frequência, mas que Ele
costumava não responder. Essa vez, no entanto, Ele não a ignorou. Ele
ofereceu a Luce o que ele desejava – a verdade. — Vocês dois são tão
interligados que é difícil distinguir onde você termina e ela começa. O
futuro dela nunca esteve definido porque você não tinha decidido o seu.
Eu te dei o que você queria, Lúcifer. Permiti seu livre arbítrio. Cada
escolha que você fez alterou o que acontecia com ela.

Livre arbítrio. Não parecia tão livre quando Luce pensou que seria.

— Essa é a coisa sobre livre arbítrio, — Ele continuou, mais uma


vez lendo os pensamentos de Luce. — Decisões têm consequências. Elas
não impactam apenas você, mas todos ao seu redor. Cada escolha que
você fez, de alguma maneira, alterou o que acontecia com ela.

— Então eu fiz isso, — Luce disse. — Eu a destruí outra vez.

Seu Pai se aproximou. — Ela ainda está respirando.

— Por agora.

— Sim, por agora, — Ele concordou. — Então você tem uma


decisão a fazer, filho, e não vai ser fácil.

— Qual?

— Se você quer ou não manter as suas asas.

Lúcifer O encarou.

— Você pode mantê-las, — Ele explicou, — e será bem-vindo


novamente em casa.

— E o quê? Se eu desistir delas, vou ser jogado de volta no


buraco?

— Você tem uma segunda chance, Lúcifer, — seus olhos se


voltaram para a residência dos Barlow. — Assim como Samuel teve.

~ 146 ~
Você vai ter um recomeço, algo que você pediu tanto nos últimos meses,
e não apenas dos outros. Você vai ter um recomeço para si mesmo
também.

— Isso não é uma opção, — Luce disse, tirando o cabelo do rosto


pálido de Serah. — Eu não quero existir um único momento sem me
lembrar do som da batida do coração dela.

Seu Pai assentiu. — Então, asas serão.

Deus pressionou a mão na testa de Lúcifer. Instantaneamente,


um calor intenso o encheu, consumindo cada pedaço. Era familiar, a
sensação era como a viagem de uma droga que ele tentou se livrar.

Sua Graça.

No momento que seu Pai tirou a mão, Lúcifer pressionou a


própria palma no peito de Serah. Por favor, não seja tarde demais. Ele
se concentrou, empurrando seu poder diretamente para ela. Suas
feridas se fecharam, seu corpo brilhou radiante enquanto Lúcifer a
curava com a sua Graça.

A levantando, ele carregou Serah para dentro da casa e a levou


para o quarto. Ele a deitou na cama, seu corpo mole, inconsciente, mas
ela acordaria logo, se sentindo renovada.

— Me perdoe, — ele sussurrou, — mas você tem que esquecer


tudo que aconteceu. Você tem que viver essa vida sem se lembrar de
mim.

Ele beijou a sua testa e se levantou para partir quando imagens


passaram por ele, o acertando com tanta força que ele tropeçou para
trás. Serah. Uma vida longa e feliz, cheia de amor e amigos, morando
bem ao lado do seu irmão celestial, o observando crescer, antes de
sucumbir a uma morte pacífica no final da estrada. Ele olhou para a
porta, um sorriso se formando nos seus lábios.

Agora isso ela merecia.

Quando ele saiu, seu Pai ainda estava esperando.

— Obrigado, — Lúcifer disse, a palavra ficando presa na sua


garganta. Ele não estava certo nem se conseguiu pronunciá-la em voz
alta, mas seu Pai ouviu.

~ 147 ~
— De nada, — ele se virou como se planejasse ir embora, mas
hesitou, gesticulando na direção de Lúcifer. — Antes de voltar para
casa, considere fazer algo sobre as suas roupas.

Lúcifer riu. — A menos que você chame Moisés aqui e transforme


‗tu vestirás branco‘ em um mandamento, não há nenhuma maldita
chance que eu vá voltar a usar aquele terno branco.

*****

Abaddon estava de joelhos, sua cabeça levantada com orgulho,


nem uma pitada de remorso dentro dele. O final da lâmina de fogo de
Michael estava apontado para o peito do Guardião, ainda que o anjo
não demonstrasse nenhum medo.

Michael estava perto de enterrar a espada, perto de tirar as asas


de Abaddon, quando o ar atrás dele se mexeu, outro anjo apareceu. A
poderosa familiaridade atingiu Michael imediatamente, ele nem
precisou olhar. Ele conhecia essa Graça. Ele a conhecia porque a
compartilhava. Impossível.

Virando a cabeça, ele observou, chocado, Lúcifer caminhar


poucos passos na sua direção. Definitivamente impossível, mas ainda
assim estava ali. Sua pele brilhava, seu corpo estava curado, os
pecados eu o tinham contaminado embotados ao mínimo. Eles não
tinham ido embora por completo, e provavelmente nunca iriam, mas ele
tinha sua Graça outra vez. Ele estava mantendo as suas asas.

— Michael, — Lúcifer disse em um cumprimento casual.

Satanás estava na ponta da sua língua, mas ele não podia dizer.
Ele não podia chamá-lo assim. Satanás não tinha Graça. Satanás não
tinha a mesma configuração que ele.

Ele acenou depois de um momento. — Lúcifer.

— Me chame de Luce.

Michael sorriu pelo jeito que ele disse isso. Foi ele quem lhe deu
esse apelido, na verdade. — Luce.

— Tocante, — Abaddon grunhiu. — Se vocês dois acabaram, eu


gostaria de continuar com isso. Faça o que você veio fazer, Príncipe.

~ 148 ~
Antes que Michael pudesse se mover, Luce o segurou, a palma
contra o seu peito, o empurrando para trás. — Me permita.

Michael recuou, baixando a espada. Lúcifer certamente tinha


conquistado o direito de ser aquele que puniria Abaddon, mas cabia a
Michael ficar atento. Fazia muito, muito tempo desde que Lúcifer teve
poder em qualquer lugar acima do solo.

Michael puxou a faca dourada que achou com Abaddon e a jogou


para Lúcifer. Pegando a lâmina celestial, Lúcifer olhou para ela em
silêncio, e Michael ficou alarmado pelo repentino sorriso que apareceu
no seu rosto.

Lúcifer virou seu foco para Abaddon, girando a faca na mão


enquanto fechava a distância entre eles.

Ainda assim, Abaddon não demonstrou medo.

— Como está a sua mortal? — Abaddon provocou.

Michael esperava que Lúcifer explodisse com a pergunta, mas ele


mal reagiu. — Ainda viva.

— Interessante. Ela não parecia muito bem da última vez que a


vi, — os olhos de Abaddon foram para Michael. — Estou curioso para
saber como isso aconteceu.

Michael não respondeu. Não tinha sido ele.

— Você sempre parece estar curioso por alguma coisa, Abaddon.

Abaddon deu de ombros casualmente. — Culpado.

— Culpado, — Lúcifer repetiu. — Com certeza você é... culpado


como o pecado.

A ponta da faca de Lúcifer pressionou o peito de Abaddon. O


Guardião gritou quando a faca afundou, se enterrando na sua pele.

— É você que está dizendo, — Abaddon grunhiu através dos


dentes cerrados. — Onde você acha que eu aprendi tudo, hm? Quem
você acha que me ensinou todos os meus truques?

— Você não aprendeu nada comigo, — Lúcifer disse. — O que eu


tentei ensinar a você foi força, respeito e lealdade... eu tentei ensinar a
levantar sozinho, a lutar pelo que era justo e verdadeiro... mas tudo que
você sabe, Don, é covardia. Tudo que você conhece é o mau. Você se

~ 149 ~
levantou por interesses próprios, não por justiça, e essa não é a lição
que eu aspirei ensinar.

Abaddon encarou Lúcifer, seus olhos escuros queimando ainda


mais vermelhos quando Lúcifer girou a lâmina da faca, a enterrando
um pouco mais fundo. Michael considerou pará-lo, pôr um fim ao que
Lúcifer estava fazendo. Eles não torturavam. Isso era para ser uma
punição. Mas a expressão calma de Lúcifer o impediu de intervir. Isso
não estava sendo feito com um intento sinistro. Essa era apenas a
marca da penitência do Arcanjo. Seus olhos eram puros, de um azul tão
brilhante quanto o céu da tarde tinha sido antes dos ceifeiros cercarem
a área, cobrindo o céu com uma espécie de escuridão que normalmente
só era trazida pela noite.

— Você é um inimigo da humanidade, — Lúcifer disse, sua voz


mais tranquila do que Michael jamais tinha ouvido. — Você não mostra
remorso nenhum. Se arrependa, Don, antes que seja tarde demais. Peça
por misericórdia e eu vou mostrá-la.

— Nunca.

Por um momento, um pequeno momento, parecia que o mundo


tinha ficado imóvel. Ninguém se mexeu. O ar estava desprovido de sons.
Mas tão rápido quanto isso veio sobre eles, foi quebrado pela tranquila
voz estoica. — Eu estava esperando que você dissesse isso.

Um grito de agonia ecoou pelo ar quando a lâmina da faca de


Lúcifer se enterrou o peito de Abaddon. Ele não chegou a atravessar,
não foi fundo o bastante para remover suas asas, apenas arranhou a
superfície e extraiu o que restava da sua Graça. Em um piscar de olhos,
um antigo símbolo apareceu, uma estrela presa em um círculo queimou
no peito do Guardião.

A Marca de Satanás.

Lúcifer puxou a lâmina de volta, seus olhos queimando


vermelhos. Tão, tão vermelhos. Isso fez a espinha de Michael arrepiar
quando a espada de fogo explodiu em chamas em resposta à cena,
enquanto Lúcifer chutou Abaddon com força, fazendo o anjo derrapar
de costas por alguns metros. Largando sua faca, Lúcifer levantou as
mãos defensivamente e se virou antes que Michael pudesse reagir. O
sorriso estava de volta ao seu rosto, o vermelho diminuindo enquanto
os ceifadores desciam do céu, o pranto de Abaddon ficando mais alto
enquanto ele era atacado pelas massas negras.

~ 150 ~
— Desculpe, irmão, — Lúcifer disse, o azul mais uma vez
reaparecendo em seus olhos. — É difícil se livrar de velhos hábitos.

Michael ficou mudo, apontando sua espada para Lúcifer,


enquanto observava Abaddon ser carregado para longe. O céu clareou
quando os ceifeiros desapareceram, deixando o mundo ao seu redor
silencioso outra vez.

Lentamente, Michael baixou a lâmina. — Ele se foi.

— Por agora, — Lúcifer disse, — mas não para sempre.

— Como você sabe?

— Porque eu estou aqui, — Lúcifer disse. — Eu sei o que estar no


buraco faz com você. Dê a ele alguns milhares de anos para ficar
adequadamente puto e ele vai achar um jeito de dar o fora de lá.

— Então por que você o mandou para lá? Por que não acabar com
ele agora?

— Porque quando eu o pegar, irmão, não quero que ele esteja de


joelhos, — Lúcifer disse, pegando sua faca e a girando por um
momento. Michael observou com fascínio quando Lúcifer cortou a
própria mão com a lâmina. Não havia sangue, simplesmente uma linha
de luz brilhante quando um pouco de Graça escapou antes da ferida
fechar. Lúcifer olhou para baixo, sorrindo, antes de encontrar os olhos
de Michael. — Quando eu o pegar, quero que aprenda uma lição que ele
é estúpido demais para aprender hoje.

— Qual?

Lúcifer andou até Michael e ele tencionou, agarrando o cabo da


espada mais forte, mas não se moveu. O sorriso de Lúcifer ficou maior
quando ele percebeu isso, seus olhos brilhando rapidamente sobre a
espada enquanto ele disse, — Ninguém fode com um Arcanjo. Ninguém.

Michael balançou a cabeça enquanto Lúcifer ria, o estalo de


estática cortando o som divertido quando o Arcanjo desapareceu.
Michael ficou ali parado por um momento enquanto algo nadava dentro
dele, algo que ele tentou afastar, mas que finalmente levou a melhor:
curiosidade.

Ele aparatou bem na frente da pequena casa em Chorizon. Serah


estava lá dentro, dormindo profundamente. Michael ficou parado na rua
por um momento, olhando ao redor. Tudo estava como tinha sido no dia
anterior, todos os resquícios tinham desaparecido, removendo a luta

~ 151 ~
entre os anjos da memória dos mortais. Michael se lembrava, no
entanto. Ele sempre se lembraria. Assim como seu irmão, ele se
lembrava de tudo. Ele se lembrava de como se sentiu quando feriu
Serah em uma rua não muito distante, a tristeza que ele sentiu pela
primeira vez em sua existência.

Ele tinha sentido isso outra vez, pouco tempo atrás, bem aqui
nesse lugar, quando não pôde curá-la outra vez. Ordens eram ordens, e
seu Pai tinha dito isso expressamente quando ele foi enviado para
ajudar Lúcifer.

Não importa o que aconteça com aquela que chamam Serah, você
não vai intervir.

O pesar por deixá-la morrer não era pela sua vida perdida. Era
porque ele e Lúcifer ainda estavam conectados, e ele sentia isso dentro
do seu irmão, uma tristeza como ele nunca viu antes.

Michael deu uma última olhada na casa antes de se virar. Não


havia restado nada que o fizesse querer ficar. Ela o tinha deixado há
muito tempo. Agora era hora dele ir.

~ 152 ~
Epílogo
Cores.

Mortais tinham milhares de nomes para elas, diferentes tons de


diferentes cores, apenas sutilmente alterados em relação ao anterior.
Eles tinham cores em alta conta, misturando e combinando,
coordenando suas roupas e pintando seus carros e indo tão longe ao
ponto de alterar a cor dos seus gramados. Cores, para eles, eram
simbólicas... eles ficavam vermelhos de raiva, se sentiam verdes de
inveja ou azuis quando estavam com fome.

Isso confundia Lúcifer.

Cores, tecnicamente falando, eram ondas de luz. Os olhos apenas


detectam a luz que o item reflete mais. Não há nada metafórico nisso. O
tom da grama não a faz mais ou menos útil. Tulipas rosas não cheiram
melhor que as roxas. Se eles davam tanto valor para luz refletida,
deveriam idolatrar o branco, que refletia todas as cores, enquanto o
preto simplesmente as absorvia.

Era por isso que os anjos geralmente eram vistos de branco,


especialmente os Arcanjos. Luz os cerca. Eles são puros. É por isso
também que Lúcifer estava parado no meio da vasta imensidão branca
que ele mais uma vez começou a chamar de ‗lar‘ vestindo seu habitual
traje preto dos pés à cabeça.

Sessenta anos.

Ele ficou aqui parado pelos últimos sessenta anos, sem pisar uma
vez lá embaixo, apenas observando enquanto a Terra continuava a
girar. Ela girava e girava, refletindo luz, sustentando a vida, ainda a
magnífica criação que seu Pai sonhou que seria.

— Parece que foi ontem, não é?

Lúcifer virou a cabeça ao som da voz familiar, vendo Michael


parado ao lado. Ele via seu irmão ocasionalmente, uma vez por mês ou
algo assim. Michael ainda passava a maior parte do tempo na sala do

~ 153 ~
trono, ao lado do seu Pai. Lúcifer não tinha colocado um pé ali desde
que chegou, não porque não foi convidado... mas porque ele não sentia
que realmente pertencia àquele lugar.

Talvez em outros sessenta anos.

Só Deus sabe...

— Parece que foi ontem eu e você sentados aqui, — Michael


continuou, — observando o primeiro ser humano respirar pela primeira
vez.

— Foi praticamente ontem, — Luce respondeu, se virando quando


Michael deu alguns passos à frente, parando mais próximo ao seu lado.

Michael acenou, olhando diretamente para a imagem projetada à


frente, a mesma imagem que esteve passando nesse lugar por décadas.
Serah deitada na cama, assim como da última vez que Lúcifer a viu em
carne e osso, só que muito mais velha agora.

— Isso não vai demorar, — Michael disse.

Lúcifer sussurrou, — Eu sei.

O coração dela tinha batido quase um milhão de vezes desde que


ele a deixou. Ele tinha contado cada um. E ele sabia que ela só tinha
mais cem antes que não batesse mais.

Noventa e nove...

Noventa e oito...

Noventa e sete...

— Você não deveria estar preocupado, — Michael disse. — O que


tiver que ser...

— Será, — Lúcifer grunhiu. — Tudo tem seu tempo, blá blá blá,
as rodas do destino continuam a girar. Você está desperdiçando seu ar,
irmão. Eu já ouvi tudo isso antes.

Em vez de ficar aborrecido, Michael sorriu. Isso fez Lúcifer revirar


os olhos. Ele queria arrancar o sorriso daquela cara de santinho.

Setenta e quatro...

Setenta e três...

Setenta e dois...

~ 154 ~
— É a verdade, — Michael disse.

— É besteira, — Lúcifer rebateu, gesticulando com a cabeça na


direção em que ficava a sala do trono. — Ele sabe o que vai acontecer,
mas o resto de nós está no escuro.

— Eu não acho que Ele sabe.

— De novo, — Lúcifer disse, — besteira.

— Estou falando sério, — Michael disse. — O Céu é uma ideia.


Ele não o criou. Eles o criaram. Eles passam a eternidade onde são
mais felizes, onde suas almas estão mais à vontade. Ela já foi como nós,
irmão, mas ela tem livre arbítrio agora. Ela vai ir para onde sua alma
escolher

Quarenta e seis...

Quarenta e cinco...

Quarenta e quatro...

Lúcifer olhou a imagem, observando seus batimentos diminuírem,


ficando mais fracos, inconsistentes. Ele sabia que ela não iria sentir
nada quando o fim chegasse. Ela partiria pacificamente durante o sono.
Ela nunca se casou, nunca teve filhos, mas achou uma família em seus
amigos. Ela se tornou professora, liderou a Escola Dominical de uma
igreja local e dedicou seu tempo a ajudar os outros. Ela era a definição
de pureza, a sua alma imaculada foi marcada para ir direto para o Céu.

Mas ele não tinha ideia para onde ela iria depois que chegasse
aqui.

Não tinha ideia de quem ela seria, ou o que ela veria.

Não tinha ideia se ela sequer iria se lembrar dele.

Vinte...

Dezenove...

Dezoito...

— O amor suporta todas as coisas, acredita em todas as coisas,


espera todas as coisas, resiste a todas as coisas, — Michael disse. — O
amor nunca morre.

Lúcifer geralmente zombava do seu irmão por recitar as


escrituras, mas ele não tinha isso nele no momento. Ele encontrou

~ 155 ~
consolo nessas palavras, mesmo que não tivesse certeza do que fazer
com elas. — Você acha que ela me ama? Eu sei que eu a amo, mas...

Ela nunca tinha lhe dito isso.

Ele realmente tinha feito alguma coisa para merecer o seu amor?

Ele achava que não.

— Acho que nós vamos descobrir, — Michael disse, mais uma vez
dando um sorriso antes de desaparecer.

Lúcifer olhou para a imagem dela mais uma vez quando se


encontrou sozinho, então fechou os olhos, focando somente no seu do
seu coração.

Três...

Dois...

Um...

O silêncio que o encontrou então era ensurdecedor. Seu peito


apertou. Ele apertou mais olhos, sentindo a essência dela ao seu redor.
Ele sentiu isso aparecendo, não muito longe, e aparatou naquele lugar.

O Céu dela.

Lentamente, ele abriu os olhos.

Uma pracinha.

Ele conhecia o lugar. Ele esteve lá algumas vezes antes, e


observou Serah ir até lá quase todos os dias ao longo dos anos. Escola
Primária de Chorizon. Tudo estava tranquilo, somente uma brisa suave
corria pela pracinha. Depois de um momento, um guincho ecoou pelo
ar, a moagem de uma corrente de metal enferrujada. Lúcifer se virou na
direção do balanço e congelou quando a viu. Ela estava muito mais
jovem do que nos últimos anos, absolutamente linda, usando um
vestido cor pêssego, seu longo cabelo castanho caindo em cascatas
pelos ombros. Pés descalços batiam no chão quando ela balançava
levemente de um lado para o outro, os dedos se enterrando na areia.
Sua mão esquerda agarrava a corrente, enquanto a direita segurava um
buquê de flores familiares.

Cleome serrulata.

~ 156 ~
— Você estava certo, — sua voz era suave e ela olhou para longe
da flor, direto para ele. — Essas flores realmente têm um cheiro
horrível.

A pressão no peito de Lúcifer diminuiu.

Depois de um momento ela estendeu a mão, as oferecendo para


ele silenciosamente.

Ele balançou a cabeça. — Eu não posso mais sentir cheiros.

— Imaginei, — ela disse. — Isso quer dizer que não há ninguém


mais perfeito para eu dar elas.

Lúcifer riu baixinho, andou na sua direção e pegou com cuidado


as flores da sua mão. Ele as olhou por um momento antes de encontrar
seus olhos outra vez. Nenhum dos dois disse nada. Lúcifer não tinha
certeza do que dizer. Ele sobreviveu a seis mil anos no Inferno, mas os
últimos sessenta sem ela foram os mais torturantes da sua existência.

— Eu não pensava... — ele começou. — Eu não esperava...

— Não esperava o quê?

— Que você se lembrasse de mim, — ele admitiu. — Eu errei com


você, Serah. Eu roubei tudo de você. Te machuquei. Eu pensei que eu
apareceria aqui e você não se lembraria de mim, porque eu não existiria
na sua eternidade... esse Paraíso, para você, seria um lugar onde eu
não poderia estar.

Ela o encarou por um momento antes de sua expressão suavizar.


Ela se balançou por mais um segundo antes de se levantar e andar até
ele. — Eu nunca esqueci você, Luce. Mesmo quando eu não te conhecia,
você assombrava os meus sonhos. Meu primeiro pensamento, quando
abri os olhos e me vi sentada nesse balanço, quando me lembrei de
cada segundo que já vivi, foi que alguém tinha me levado para o lugar
errado, porque não era aqui que eu queria estar.

— Não era?

— Não.

O ar mudou ao redor deles antes que ela pudesse elaborar, altos


estalos quando os outros apareceram na área. Serah se virou de costas
para ele bem na hora em que Hannah se atirou nela, puxando sua
amiga para um abraço emocionando, e a voz de Michael cortou o ar.

~ 157 ~
— Serah, — ele disse, parecendo tão nervoso quanto ele disse
para Lúcifer não se sentir.

Serah se afastou de Hannah para olhar para ele, sorrindo


amavelmente. — Michael.

Antes que qualquer um pudesse dizer mais alguma coisa, outro


estalo alto balançou o lugar. Todos eles se viraram, e Lúcifer congelou
quando viu Samuel aparecer em toda sua glória angelical. Seu corpo
mortal tinha morrido alguns meses atrás, e ele voltou para o Céu em
sua forma verdadeira. Lúcifer o tinha evitado, e Samuel não foi atrás
dele. Essa era a primeira vez que eles ficavam cara a cara desde o dia
em que ele o tinha visitado no portão muitos anos atrás.

Serah ofegou, correndo para o seu irmão. Ele a pegou e a girou


em um círculo enquanto a abraçava com força. — Eu disse a você, —
ele sussurrou para ela, apenas alto o bastante para Lúcifer ouvir. — Eu
sabia que nós teríamos muitos momentos maravilhosos chegando.

Serah sorriu e se agarrou a ele antes que Hannah a puxasse para


outro abraço. Samuel cumprimentou Michael casualmente com um
tapa nas costas e se virou para Lúcifer, acenando, antes de mais uma
vez roubar sua irmã para longe. Eles disputavam a sua atenção, e
Lúcifer se afastou, silenciosamente lhes dando espaço. Ele se virou para
partir quando de repente braços se enrolaram em volta dele por trás, o
impedindo. Suspirando, ele fechou os olhos e tomou um momento para
se deliciar com o seu toque. — Anjo.

— Luce.

Ele a puxou em seus braços e sussurrou. — Eu amo você.

— E eu amo você também, — Serah disse, o agarrando. —


Quando abri meus olhos, eu não queria estar aqui porque pensei que
você não estava aqui. Achei que você tinha voltado lá para baixo, para o
buraco, e eu preferiria uma eternidade no Inferno do que um único
segundo no Céu sem você.

Essas palavras levaram para longe todas as suas preocupações,


todas as suas dúvidas, o deixando com um brilho quente sob a pele. Ela
o amava. De verdade.

Ele se afastou um pouco, abrindo os olhos para olhar para ela.


Suas bochechas estavam coradas, seus brilhantes olhos castanhos com
manchas de uma tonalidade esverdeada. Tons de pêssego e cobre a

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revestiam, pálida em alguns lugares, com sardas em outros. Seus lábios
eram naturalmente vermelhos.

Se abaixando, ele a beijou suavemente.

Ele nunca tinha apreciado tanto as cores antes...

Fim

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