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J.M. Darhower
#2 Reignite
Série Extinguish
Tradução e revisão: Lu
Data: 09/2016
~2~
SINOPSE
No momento que o pequeno Apocalipse acabou, a vida voltou ao
normal. Os mortais continuaram com suas vidas ignorantes enquanto a
Terra se curava e flores cresciam outra vez, a devastação rapidamente
deixando de existir. Foi como se nunca tivesse acontecido.
Mas aconteceu.
Serah acordou sem memória de onde ela veio ou quem ela era
antes desse momento. Lutando para se adaptar ao mundo como uma
mortal, ela é assombrada por um par de olhos azuis que parecem estar
sempre lhe observando. Ela não consegue afastar a sensação de que ele
poderia ser a sua salvação... se ao menos ela conseguir se lembrar dele
antes que seja tarde demais.
Lúcifer não perdeu sua Graça sozinho. Ele não é o único anjo com
um rancor, nem é o único fascinado pela sua bela mortal.
~3~
A SÉRIE
Série Extinguish
J.M. Darhower
~4~
Precisamos pagar caro pela imortalidade e morrermos várias
vezes enquanto ainda estamos vivos.
Friedrich Nietzsche
~5~
Prólogo
Baforadas de fumaça saíam da lâmina ardente enquanto a ponta
da espada estava enterrada no chão de mármore. Michael entrou na
câmara, seus pés descalços pesados e a cabeça baixa.
Michael abriu a boca para falar, mas as palavras não saíram. Era
inútil tentar explicar, de qualquer maneira. Seu Pai via e sabia tudo. Ele
assistiu tudo que aconteceu.
~6~
— Eu não entendo.
Exceto que... agora ele não tinha mais Serah em sua vida.
— O seu destino não era matar ele, Michael, — ele disse baixinho.
— Essa nunca foi a minha intenção. Na verdade, eu sequer tenho
certeza se você poderia ter feito isso. Há uma razão pela qual ele foi
aquele quem originalmente sentou ao lado do meu trono.
Michael olhou para Ele. Não tinha certeza? Ele era infalível. Ele
sabia tudo. Como Ele podia não ter certeza de algo como isso?
~7~
— Meu irmão?
— Sim. Lúcifer.
— Você amou, filho. E uma parte dela amou você. Mas há uma
razão pela qual eles dois receberam o mesmo nome.
Estrela da Manhã.
~8~
Capítulo Um
O enorme castelo abandonado foi tomado pelo mal.
Luce sempre exigiu que eles viessem a ele na forma humana, mas
a maioria agora ficava diante dele com a sua verdadeira natureza
exposta, a pura feiura em exibição para todos verem. Como eles
esqueciam fácil.
~9~
— Meu Senhor, — um demônio disse, um dos poucos que parecia
um mortal, uma solitária alma corajosa o bastante para entrar no seu
caminho e se dirigir a ele. Corajoso ou estúpido? O demônio baixou a
cabeça como sinal de respeito. — Bem-vindo de volta.
— Você vai ficar no lugar de Lire enquanto ele está no seu retiro
sabático, — Luce disse. — Mantenha os outros longe de mim e me
informe quando Michael se aproximar.
Ele uma vez disse a Serah que ele podia chorar, mas não fazia
isso. Depois de tudo, pelo que Satanás iria chorar? Nada.
~ 10 ~
Não importa o quanto ele lutasse, as lágrimas caíram dos seus
olhos, a umidade amarga e salgada escorrendo pelas suas bochechas,
alimentando a sua agressividade. Era assim que tinha que ser – ela era
um sacrifício que ele teve que fazer, um dano colateral na sua busca por
retaliação – mas não era como deveria acabar.
Tudo que ele tinha machucado, tudo que ele tinha matado foi
trazido de volta à vida, curado e arrumado como se ele nunca os tivesse
contaminado. Nunca os tivesse tocado.
~ 11 ~
— Por quê? — ele gritou, tão alto que tudo ao redor estremeceu
outra vez. — O que você quer de mim?
Mensagem recebida.
~ 12 ~
*****
Não havia ninguém, nada para lhe fazer companhia, exceto suas
lembranças incômodas. Ele ainda estava ligado à Rede dos Anjos, mas
eles agora sabiam que ele estava ouvindo. Os anjos o bloqueavam dos
seus pensamentos, silenciando suas conversas para mantê-lo no
escuro, sussurrando ocasionalmente em códigos para ele não entender.
Luce pensou que era isso que ele queria – o silêncio, a paz – mas
ele não antecipou a solidão. Ninguém o incomodava, ninguém vinha até
ele, ninguém parecia sequer preocupado com ele.
Por quê?
~ 13 ~
Um estalo alto de eletricidade estática abalou o ar atrás dele
quando ele estava considerando isso. Luce tencionou, esperando que o
cheiro desagradável do seu irmão assaltasse seus sentidos, como se
talvez ele tivesse se conjurado, mas em vez diz um peculiar perfume
picante chegou até ele.
Uísque e charuto?
Amigo.
Luce se virou, olhando para longe da água brilhante para ver seu
velho amigo pela primeira vez em eras. — Abaddon.
Abaddon era alto, vestia um terno azul escuro, suas asas brancas
brilhantes reluzentes na escuridão. Havia algo afiado nele, sua
mandíbula esculpida, seu nariz pontiagudo, suas sobrancelhas
arqueadas com condescendência.
E nem desculpas.
1 É uma frase que, em inglês, tem o sentido de ―eu não acredito nisso‖.
~ 14 ~
Um silêncio confortável se assentou entre eles por um momento,
antes de Luce deixar escapar um suspiro profundo. — O grande homem
enviou você?
— Sobre o quê?
~ 15 ~
Aí estava.
Insondável.
Há muito tempo atrás, antes que ele fosse preso na cova, antes
que ele perdesse tudo que lhe significava alguma coisa, Luce tinha
construído uma rede de seguidores, uma aliança de anjos rebeldes que
acreditavam na sua causa. Seu exército tinha sido forte, formidável,
tanto que ele acreditava no seu sucesso garantido.
~ 16 ~
— A hora não era certa, — Abaddon disse, tentando se defender.
— Nós estávamos destinados a perder.
— Você queria isso antes, mas precisa disso agora. Antes isso era
apenas sobre lutar pelo que você achava justo... mas agora é sobre
conseguir vingança por como você foi injustiçado.
~ 17 ~
Abaddon deve ter entendido o seu silêncio como o fim da
conversa, porque ele deixou escapar um suspiro exagerado e se virou,
começando a se afastar. Depois de alguns passos, ele parou. — Nós
ainda acreditamos, Lúcifer. Esse mundo deveria ser nosso, não deles.
Se você decidir lutar pelo que foi roubado de você... se você decidir
tomar uma posição... tenho certeza que você vai saber onde me
encontrar.
*****
— Nome?
— Serah… eu acho.
— Último nome?
— Data de nascimento?
~ 18 ~
Serah acenou. — Sim.
— Mas? — ela sabia que havia uma ‗mas‘. Ela podia ouvir na voz
dele.
~ 19 ~
— Opa, espere, você não quer ouvir o que é antes de comemorar?
— Parece maravilhoso!
— É?
— Totalmente.
Ela o observou, satisfação tomando seu corpo. Ela sabia que ele
iria ajudá-la. De alguma forma, ela sabia.
*****
Sete de paus.
Dez de copas.
Dois de espadas.
Rei de paus.
Seis de copas.
~ 20 ~
Seis de ouros.
Seis de espadas.
Literalmente.
Assim que o pensamento cruzou a sua mente, ele sentiu uma leve
essência familiar e uma centelha de energia no ar ao seu redor. Seus
olhos cuidadosamente estudaram o pátio e as ruas ao redor até que ele
a viu.
Serah.
~ 21 ~
sua alta tão fortemente que ele quase podia sentir a batida do coração
dela no seu próprio peito.
A atenção do anjo virou para ele quando ela sentiu ele tentando
invadir sua mente, seus olhos estreitados. — Você não pode roubar os
meus pensamentos, Satanás.
Satanás. Cara, ele ainda odiava esse apelido fodido. — É bom ver
você também.
— Bom? — ela bufou, uma hostilidade na voz que ele não sabia
que os da sua espécie eram capazes de possuir. — Não há nada de bom
na sua existência. A sua presença envenena o ar, ameaçando tudo que
eu jurei proteger.
~ 22 ~
Ele a encarou. Muito dramática?
Durante seu ataque de raiva, sua guarda baixou, e Luce foi capaz
de enxergar seus pensamentos descontrolados. Hannah era o seu
nome. Serah esteve ao seu lado desde o início dos tempos, e ela nutria
uma profunda indignação por ter perdido sua melhor amiga.
Ele não tinha motivos para segui-la, além dos que o estavam
deixando louco. Talvez ele ainda tivesse a sua dose de sofrimento a
passar, porque vê-la e não poder falar com ela, ou estar com ela, era,
sem dúvida, o pior tipo de tortura que existia. Poucas vezes ele pensou
em tocá-la. Ela não iria sentir, ou não ia saber o que tinha sentido, o
toque de um anjo era um pouco mais que uma cócega, ressonando
profundamente dentro deles, mas ele sentiria.
~ 23 ~
Ele a seguiu o dia todo enquanto ela caminhava para lá e para cá.
Ele podia ouvir alguns dos pensamentos daqueles que ela encontrava,
ouvir sua avaliação da jovem mulher que sempre sorria e nunca parecia
estar com pressa para chegar a lugar nenhum.
Eles pensavam que isso era estranho, como ela parava e cheirava
as flores quando encontrava algumas.
*****
Ele não era perfeito, mas ela não iria arriscar reclamar. Ela tinha
um trabalho e um lugar para ficar, duas coisas que ela acordou sem. O
tempo após o misterioso acidente que lhe deixou sem memória foi
preenchido com médicos e quartos de hospital estéreis, camisolas com
as costas abertas e centros de reabilitação. Eles a picaram e
monitoraram, interrogaram e investigaram, antes de simplesmente
colocá-la na rua e lhe desejar boa sorte.
— Toc, toc.
~ 24 ~
Serah olhou na direção da porta aberta quando Gilda Barnhart
entrou no quarto. Ela parecia muito com o filho, rechonchuda e amável,
com o cabelo na fronteira entre o loiro e o branco.
Serah puxou do bolso do vestido a chave que lhe foi dada quando
a contrataram. Era um cartão que, quando passado, abriria qualquer
porta no motel. Ela olhou para ele, passando os dedos pela faixa
magnética. — Obrigada.
Gilda lhe deu um rápido resumo do que fazer, o que eram serviços
de limpeza básicos, nada que Serah não podia lidar. A mulher saiu com
um sussurro de boa sorte, deixando Serah com as suas obrigações.
~ 25 ~
preto, com o cabelo escuro mais curto dos lados e dramático. Ele era
lindo de um jeito áspero, seus traços afiados, sua expressão estoica
como a de um guerreiro, mas não foi isso que a fez parar.
Havia algo de estranho nele, o jeito como ele estava parado tão
imóvel que era quase como se não estivesse respirando, um poste ao
longo da rua, vivo como as árvores, mas sem balançar com o vento. Ela
lembrava do seu rosto, um rosto que ela tinha visto antes, a encarando
quando ela acordou na rua, sua mente em branco. Sem nome, sem
identidade, sem senso de direção, mas os seus olhos eram tão
familiares como olhar para o seu próprio reflexo.
Mais uma olhada para o outro lado da rua e o homem tinha ido
embora, como se tivesse desaparecido no ar.
*****
Pecado.
Pecadores.
~ 26 ~
Era um lugar que ninguém com um mínimo de respeito próprio
iria colocar os pés, então Luce não se surpreendeu nem um pouco que
a essência de Abaddon estava por todos os lados. Enquanto anjos não
podiam tecnicamente sentir, as emoções dos seres humanos desinibidos
tendiam a ter um efeito nos Guardiões. Os pecados eram puro poder no
ar, o que os chamava como um sinal de emergência, alimentando a sua
energia.
Ninguém o via.
Verdade seja dita, Luce não sabia. Ele apenas estava cansado de
andar por aí sozinho. — Eu estava por perto.
~ 27 ~
Abaddon riu. — Não se pode dizer que um Arcanjo já andou por
essas partes antes.
— Sim.
~ 28 ~
Abaddon disse, sua voz monótona ao recitar as escrituras. — Talvez
você precise tirar a poeira da sua Bíblia, amigo.
Essa explicação não fez nada para acalmar a raiva de Luce. Era
por isso que ele tinha lutado, pelo que ele tinha perdido a sua Graça e o
que o fez ficar milhares de anos preso no Inferno, punido por ousar
questionar seu Pai, e assim que ele se foi, todos ganharam exatamente
o que ele queria. Como isso era justo?
~ 29 ~
perguntou. — Como é justo ela perder a sua Graça por amar alguém
incapaz de amar?
Ele podia fazer isso. Ele podia enfiar a faca e puxá-la de volta sem
sentir um pingo de dor de cabeça, livrando o Guardião da sua miséria.
Sua Graça explodiria e Luce podia sentir o formigamento de
antecipação em sua pele. Um pouco disso era absorvido pelo seu
sistema, e era algo que ele desejava, como um viciado precisando de
outra dose.
~ 30 ~
— Você pode não admitir em voz alta, mas posso ver em seus
olhos, — Abaddon disse. — A ideia de ter o mundo para você ainda o
intriga. Você quer isso... que o que roubaram de você.
~ 31 ~
Capítulo Dois
Seis meses é um piscar de olhos quando você é eterno.
Uma e outra vez, dia após dia. Nos últimos seis meses, seu
coração tinha batido mais de 16 milhões de vezes. Luce contava às
vezes, ouvindo mesmo quando não podia vê-la, seu pulso uma
constante recordação de que ela era real.
~ 32 ~
O som se tornou uma obsessão, uma necessidade, como se a
batida do seu coração fosse a única cosa que o impedisse de
desaparecer.
Mas Lúcifer não dava a mínima para o que isso parecia. Ele não
podia ter Serah, mas ele podia ter essa parte dela, e ninguém iria levar
isso embora.
Não havia nenhuma pressa quando não havia mais nada a fazer.
Mais seis meses? Seis anos? Outros seis mil? Ele não podia dizer.
Em meros sessenta anos, o mundo ao seu redor seria completamente
diferente, e a mulher que ele estava olhando provavelmente teria
deixado de existir. Um piscar de olhos para ele; uma vida inteira para
ela.
~ 33 ~
local, uma maldição que Lúcifer negou ao enterrar sua faca sobre ele,
tirando as suas asas.
Ele foi criado por uma razão – para manter a ordem, para liderar
os da sua espécie por um caminho de justiça, mas em vez disso ele os
tinha levado para longe disso. Ele os incitou a segui-lo, a se rebelar,
sendo o catalisador para os alados que tinham sido poupados no final.
O estalo de estática atrás de Luce foi alto. Ele não teve que virar a
cabeça para saber quem era. O fedor forte de água estagnada o acertou
com tanta força que ele estremeceu. Nojento. Seu interior se contorceu
com a repentina tensão, uma raiva que não existia a um momento atrás
se manifestando.
Michael.
Levou cada grama de força para Luce não reagir. Ele olhou
fixamente para frente, tentando focar no som da batida do coração,
enquanto sua mão lentamente alcançou a adaga de ouro que ele
mantinha guardada.
Michael, tão extraviado quando Luce acreditava que ele não era
um mentiroso. Não havia uma célula de dúvida dentro dele. Se ele disse
que não veio para lutar, então era verdade.
— Você não deveria estar aqui, — Luce disse, sua voz cheia de
veneno.
~ 34 ~
— Nem você, — Michael respondeu casualmente. — Mas isso não
o impede de visitá-la todos os dias.
Michael olhou para ele, a mesma raiva que Luce sentia refletida
nos olhos do seu irmão. — Eu faço isso porque eu devo.
~ 35 ~
— Então por que ela reconhece o seu rosto? — Michael
perguntou. — Como ela se lembra da sua imagem?
Luce guardou sua adaga, suas asas retraíram e ele se virou para
Serah bem quando a garotinha ia embora. A atenção de Serah mais
uma vez foi para o outro lado da rua, dessa vez centrada no lugar que
ele ocupava. Confusão apareceu nos traços dela.
*****
~ 36 ~
— Ira, — uma voz calma disse.
~ 37 ~
Michael deixou a cabeça cair em vergonha. Seis de sete? Só
faltava a preguiça.
— Estou com medo que eles sejam a mesma coisa, Pai, — Michael
admitiu. — Tenho medo que ele corrompa outra mortal inocente, e eu
não posso ficar aqui parado e não fazer nada dessa vez.
*****
— É incrível, não é?
~ 38 ~
Terra.
Eles sabiam o que isso era desde o início, mas o porquê não lhes
tinha sido explicado. Abençoado com conhecimento, mas nesse
momento, separado das explicações. Ele era o mais próximo do seu Pai,
o único que já passou algum tempo sozinho com Ele, mas mesmo ele
tinha apenas um pequeno palpite.
Lindo.
Um verdadeiro presente.
Lúcifer não podia esperar até que estivesse terminada. Ele estava
ansioso para chamar esse lugar de casa.
~ 39 ~
O dia quatro se foi, e então veio o quinto.
O peito de Lúcifer estava tão cheio de amor que ele sentia que iria
explodir se sentisse mais.
Pela primeira vez em dias, a voz do seu Pai pôde ser ouvida.
A voz era forte e gentil, não falada em voz alta, mas ouvida dentro
da mente. Lúcifer pensou que Deus estava falando com ele, um dos
poucos que eram abençoados o bastante para ouvir Sua voz, mas o
homem na Terra respondeu. — Obrigado, Pai.
Lúcifer podia ouvir seu Pai de novo, e então ouviu Seu devaneio
de como seu novo filho precisava de uma companhia. Adão estava
~ 40 ~
dormindo, e com a sua costela um segundo humano foi criado, uma
mulher chamada Eva.
Não era?
*****
~ 41 ~
faria evaporar. Ela não tinha nem ao menos certeza se ele existia, mas
ele era real para ela.
Serah caminhou pela rua, indo para longe do motel uma tarde,
vagando pelos mesmos bairros familiares pelos quais ela tinha passado
desde o dia do acidente. Ela cumprimentava as pessoas com afeto
quando passava por elas, seus olhos brilhando nas vitrines das lojas,
pegando um vislumbre de um reflexo estranho no vidro com ela, sempre
alguns passos atrás.
Ela sabia que se virasse, ele não estaria ali. Ninguém estaria.
*****
~ 42 ~
Igreja.
Será que ela percebeu que estava lá? Luce não sabia. Não
importava o quanto ele tentasse ler seus pensamentos, eles
continuavam confusos como alguém debaixo d‘água tentando falar.
— Não há bom.
Hannah.
Ele virou o olhar para a direita quando ela parou ao lado dele.
Seu olhar estava fixo nele, os olhos estreitados com desconfiança. Ele
não sentiu medo vindo dela, e sua raiva ainda estava presente, mas não
era tão forte como antes. Não, ela tinha dado algo mais forte – pesar.
~ 43 ~
Era fácil ficar puto, jogar a culpa em alguém, mas era completamente
diferente tentar chegar a um acordo com mágoa no coração.
— O que aconteceu?
Ela não respondeu, mas Lúcifer viu na sua mente quando ela
propositalmente baixou sua guarda para ele. Todas as cartas na mesa,
cada momento do pequeno Apocalipse, cada pedregoso detalhe que
Hannah tinha testemunhado. E ele viu a última memória como um
filme, Hannah ajudando Serah a escapar da floresta de Hellum
Township.
~ 44 ~
— Ou sim, — ela disse. — Ou a profecia estava errada ou você
não é o Satanás.
— Então quem é?
Assim que ele disse isso, percebeu que essa conversa era o
completo oposto da última vez que ele falou com Hannah, em que ela o
chamou de Satanás e ele rejeitou esse nome. Agora ela estava
considerando que ele não fosse o mal depois de tudo, e ele ainda estava
tentando provar que ela estava errada.
Um Dominion.
Lúcifer virou os olhos para o Dominion, vendo que ele estava lhe
encarando. — Você está brincando, não é?
~ 45 ~
chato pra caralho. — Mas você deve estar enganado, porque eu não sou
um dos seus drones para quem você pode sair dando ordens. Você não
pode me dizer o que fazer, nem antes, muito menos agora.
~ 46 ~
sermão seria focado no início dos tempos, na criação do homem e na
queda de Satanás.
Da última vez que Lúcifer esteve na Terra, eles eram apenas dois.
*****
Tum.
Tum.
Tum.
De novo e de novo.
Sangue.
~ 47 ~
Tão frágil.
Tão fraco.
A batida no seu peito tinha ficado mais alta, mais forte, mais
agitada quando isso aconteceu, como se algo em seu peito estivesse
amarrado à dor.
— É chamado coração.
— Para sempre.
Para sempre.
— Como o quê?
— O quê?
~ 48 ~
Lúcifer voltou-se para Adão, o observando interagir com Eva. Os
dois estavam repletos de amor – amor um pelo outro, amor pelo seu Pai.
— Qual é o propósito deles?
Lúcifer não teve que esperar seu Pai responder. Ele sabia a
verdade. Mas isso ainda quase o atingiu quando a resposta ecoou ao
seu redor. — Sim.
*****
~ 49 ~
ninguém, seu olhar indo direto para Serah, a tensão em seus músculos
diminuindo conforme era substituída por confusão.
Luce não podia fazer nada além de olhar. O bom senso lhe dizia
para se afastar, para colocar distância entre eles antes que ele fizesse
algo estúpido, mas era difícil ser lógico quando você é uma criatura
passional não conhecida por fazer a coisa certa.
Jamais.
Ele não esteve tão perto assim dela desde que ela acordou uma
nova pessoa... uma mortal. Ele podia sentir o seu cheiro, a doçura
natural e a leve fragrância de flores, com uma pitada de suor
remanescente em sua pele. E ele podia sentir o seu calor do ponto onde
estava, sentia isso irradiar dela e ser absorvido por ele. Sua batida do
coração era mais alta assim de perto, o tentando, o chamando.
Que mal iria fazer tocá-la mais uma vez? Só uma vez, um
arranhão em sua pele, poder ficar parado atrás do seu corpo e sentir o
seu cheiro. Ela nunca saberia, uma vez que ele estava disposto a deixar
assim.
De jeito nenhum.
~ 50 ~
Isso não era possível. Eles podiam estar no mesmo quarto, mas
estavam em planos completamente diferentes. Um humano não podia
ver um anjo, a menos que ele quisesse se mostrar, e ele nunca tinha
aparecido para um humano. Nunca.
Ela andou até a porta, tentando passar por ele. Por capricho,
Lúcifer deu um passo para ficar no seu caminho, ainda esperando que
ela passasse através dele, como os humanos sempre faziam, mas ela
parou de andar. Seu coração parou outra batida e ela engoliu em seco.
Ele podia sentir isso, algo que os anjos eram treinados para detectar, a
única coisa que o cercava dia após dia naquele buraco. Medo.
~ 51 ~
— Mas você pode me ver, — ele disse pela terceira vez, levantando
a voz. Ele ignorou a sua pergunta, a voz lá no fundo dele gritando ‗como
diabos você pôde esquecer?‘ — Você já me viu antes.
— Sim, claro, — ela disse, sua voz falhando quando ela deu um
passo para trás, enrolando os braços em volta do peito. — O que há de
errado com você?
Assim que ela se foi, ele olhou ao redor de novo, vendo que Serah
estava lhe observando com incredulidade do outro quarto. Ele ficou
parado na varanda, olhando para a vizinhança, vendo as pessoas
caminharem na calçada abaixo, outros passando pelo estacionamento.
Ele gritou, tentando chamar a atenção deles, mas sua voz não foi
percebida, a frequência errada para os ouvidos mortais.
— Você é louco, — ela disse, algo como terror cruzando seu rosto.
— Oh, Deus, talvez eu seja louca. Eu realmente sou louca, não sou? —
ela caiu na borda na cama, totalmente se esquecendo que ela estava na
metade do processe se arrumá-la. Ela deixou a cabeça cair nas mãos. —
Eu perdi a cabeça. Você não é real. Você não está aqui de verdade.
~ 52 ~
Lúcifer queria consolá-la, clarear as coisas e colocar sentido
nessa confusão, mas ele estava sem palavras. Como isso estava
acontecendo? Ele abriu a boca e fechou de novo.
— Você é...
Antes que ele pudesse terminar a frase, um forte tiro correu pela
sua espinha, um forte brilho o cercou. A luz explodiu em uma bola
brilhante branca, o cegando por um segundo antes que o mundo ao seu
redor clareasse.
— ...um anjo.
Ou em qualquer tempo.
Paraíso.
~ 53 ~
Seu Pai o encarou de volta, calmo, tranquilo. Seu comportamento
despreocupado só alimentou a sua raiva. Como Ele se atrevia a trazê-lo
aqui e o confinar como um animal raivoso precisando ser enjaulado. Ele
estava cansado de estar preso.
— Vá se foder.
Ele cuspiu o xingamento com tudo que havia nele, mas ainda não
era o bastante para conseguir uma reação. Michael, por outro lado,
estremeceu.
— Bom. Ótimo. Que bom que pudemos ter essa conversa. Agora
me coloque de volta no lugar de onde me tirou.
~ 54 ~
Michael começou a cuspir mais uma pepita de sabedoria bíblica,
mas seu Pai levantou a mão para silenciá-lo.
— Já basta, — a voz do seu Pai cantou pela sala, não alta, mas
segurando a força de um grito feroz. — Vocês dois parecem duas
crianças birrentas... ouso dizer, irmãos.
~ 55 ~
— Foi, — Ele disse, mais uma vez ouvindo seus pensamentos. —
Mas você o perdeu, abrindo mão do seu lugar no Paraíso.
— Eu sou o quê?
Você é um anjo.
Sim, porque isso iria acabar muito bem. Ela então iria ter certeza
de que era louca, ou ele iria parecer nada mais do que um pervertido
cheio de papo furado. Machucou quando você caiu do Céu? 4
4Geralmente a expressão original em inglês é usada para pessoas que usam cantadas
ruins, como essa que ele fala logo em seguida (mas que no caso faz todo sentido,
porque ela realmente caiu do Céu).
~ 56 ~
— Você está sonhando, — ele disse baixinho. — Eu não sou nada
mais que um filamento da sua imaginação.
Ela apagou como uma luz, caindo no sono. Ela acordaria depois
que ele tivesse ido, e todo esse encontro não seria nada mais que um
sonho distante.
Suspirando, ele olhou para ela mais um momento antes de ir. Ele
odiava quando aquelas malditas escrituras sagradas estavam certas.
*****
Livre arbítrio.
~ 57 ~
Lúcifer parou no meio do Jardim, debaixo da Árvore do
Conhecimento, a única coisa proibida para aqueles humanos. Lúcifer
viveu uma existência de obediência, e ainda assim a única regra para
essas criaturas com coração era ‗não toque nessa árvore‘.
Uma árvore.
Besteira.
~ 58 ~
— Mas...
Os novos filhos do seu Pai não eram tão perfeitos como Ele
esperava.
*****
~ 59 ~
Isso revirou o seu estômago.
O Inferno de Lúcifer.
Desolação.
Lire.
~ 60 ~
— Sim, tudo que você precisar, — Lire se virou para fugir para
longe, mas parou depois de alguns passos. — Meu Senhor, é ótimo ver
você, mas eu pensei que as coisas estavam boas na Terra. Nós fomos
informados que você estava andando livremente.
— Eu estava.
Luce não tinha resposta para isso. Com outro estalar dos dedos,
Lire desapareceu, sumindo da sua vista. Por que ele estava aqui? Ele
não sabia. Esse era o último lugar em que ele queria estar. Mas estar na
Terra, perto de Serah, e não ser capaz de tocá-la ou estar com ela?
*****
~ 61 ~
trabalhar no mesmo lugar não era bom para ela, mexia com a sua
cabeça, tanto que ela desmaiou em uma das camas semana passada,
caiu no sono no meio do trabalho.
Ela não tinha visto o estranho desde que tomou essa decisão.
Nada daquilo era real, de qualquer maneira. Ele não era real. Sua
imaginação estava correndo solta, conjurando fantasmas em seus
sonhos.
~ 62 ~
Ele acenou. — De nada, minha senhora. Mostre o caminho.
*****
— Meu Senhor!
Luce estava fora do seu assento e bem na frente de Lire antes que
o demônio pudesse dizer mais uma palavra. Agarrando o seu pescoço,
Luce o levantou do chão, o fazendo engasgar quando bateu as costas do
demônio contra a parede ao lado da porta. Ele voou, agarrando a mão
de Luce enquanto lutava contra o seu aperto. — Eu não me lembro de
permitir que você entrasse.
~ 63 ~
— Meu Senhor, — Lire disse de novo, sua voz tensa. — Há um
anjo no portão.
Lire saiu correndo, deixando Luce mais uma vez sozinho. Ele
voltou a jogar Paciência.
~ 64 ~
Antes que Lire pudesse terminar, Luce sentiu o formigamento
correndo por ele, a Graça poderosa, tão maldita familiar e convidativa,
se não fosse o cheiro pungente que a acompanhava. — Michael.
Michael zombou. Luce voltou a virar cartas, jogando seu jogo sem
dizer outras palavras. Depois de um momento, Michael entrou na sala.
— Lugar legal você tem aqui.
~ 65 ~
— Olhe, eu estou de volta aonde você me queria... o que mais você
espera? Que eu dê a porra de uma festa de inauguração para provar
que me acomodei?
— Bem, bom para eles, — Luce disse. — Talvez eles tenham mais
sorte que eu.
— E daí?
— E daí? — Michael deu um passo mais perto, sua voz cada vez
mais furiosa. — Você os amaldiçoou à mortalidade, e diz ‗e daí‘? Você
condenou anjos a caírem na Terra e então não se importa que a Terra
seja destruída? Nós vimos juntos tudo isso ser criado! Como você pode
não se importar? Como você pode não ligar quando ela está lá?
~ 66 ~
— Eu dei a ela uma segunda chance! — Luce disse. — Quando ela
morrer, vai voltar para o Paraíso, que é onde ela pertence. Você tentou
condená-la ao Inferno, o único lugar onde ela nunca deveria estar.
Então quem é cruel aqui, irmão? Quem é aquele que não se importa?
— Vá se foder.
Sua voz ecoou pela sala quando um trovão estalou acima deles, o
cenário mudando conforme sua raiva explodia. Chamas emergiram do
chão, os cercando. Lúcifer podia sentir o calor intenso, podia cheirar
tudo ao redor deles sendo chamuscado, mas sabia que Michael não
sentia nenhum dos dois. Michael não sentia nada. Ele não cheirava
nada.
~ 67 ~
Se virando, Michael andou até a saída quando as chamas
diminuíram, voltando a se retrair no chão. Ele parou quando alcançou
a porta, mas não olhou para trás. — Abaddon esteve aparecendo para
os humanos.
Abaddon não faria isso... não com ela. Não sabendo quem ela era,
não sabendo o que ele sabia sobre Luce.
Ele sabia disso. Se Michael disse, então ele pensava ser verdade.
Ele não estava sempre certo... porra, ele estava geralmente errado...
mas ele acreditava nisso.
Parece que seu velho amigo tinha arrancado uma página do seu
livro.
*****
~ 68 ~
Suspirando, ele puxou sua faca celestial e olhou para ela. Eu
sinceramente espero que isso não saia pela culatra. Ele não estava com
humor para ser aniquilado hoje. Claro, ele iria se regenerar, na pior das
hipóteses amanhã, ou no dia seguinte, se eles o destruíssem
completamente, mas doía pra caralho ser rasgado ao meio, pedaço por
pedaço.
A marca de Lúcifer.
Ele não tinha visto isso – não tinha usado isso – em muito tempo,
não desde que ela foi trocada pela marca de Satanás. Cada Arcanjo
tinha a sua própria marca. Ele apenas esperava que o bastante daquele
anjo ainda existisse dentro dele para que funcionasse. A marca pulsou,
a luz diminuiu, mas não desapareceu completamente.
Os ceifeiros mal notaram que ele estava mais uma vez do lado de
fora.
Abaddon.
~ 69 ~
espreitava nas proximidades, uma pedra silenciosa e imóvel a
observando. Ele era invisível aos olhos humanos – deveria ser invisível –
mas não havia como saber quando se tratava de Serah. Afinal, ela tinha
visto ele.
Don.
— Mas você fez isso antes, — Luce disse, dando um passo na sua
direção. — Você apareceu para ela.
Luce parou cara a cara com ele. — Não me faça ter que repetir,
Don. Eu não gosto de ser desrespeitado.
~ 70 ~
próximo nível depois desse era preto e então vermelho, os olhos que
encaravam Luce cada vez que ele via seu reflexo em vãos de água
cristalina ou cacos de vidro caídos pela sua cova. Eram os olhos da
maldade, os olhos de alguém que tinha passado do limite e se permitiu
ser consumido pela fúria.
Porra.
Ela apertou os olhos com força e contou até dez. Embora ela
sussurrasse, as palavras não mais que um sopro, Luce podia ouvi-la
claramente. Ela reabriu os olhos, encontrando os dele, e piscou várias
vezes antes de fazer isso de novo.
E de novo.
~ 71 ~
Ele provavelmente deveria desaparecer, sumir enquanto ela
estava de olhos fechados para ela pensar outra vez que ele não era real,
mas ele não podia.
— Estou bem, — sua voz era tão baixa que ela quase não ouviu.
— Volte para dentro.
Antes que ele pudesse reagir, suas mãos estavam nele, o tocando,
uma mão apertando seu braço enquanto a outra alcançava o seu peito.
Ele assobiou quando os dedos dela se conectaram com a sua pele nua.
Foi leve como uma pena, mas pareceu profundo como uma descarga
elétrica. Ele quase estremeceu.
— Estou bem, — ele disse pela terceira vez, mas era inútil. Ela o
puxou pelo braço, e embora ele fosse forte o bastante para resistir a ela,
ele não o fez. Ele a deixou carregá-lo na direção do motel e entrou com
ela. Ela o empurrou em uma cadeira e ele se sentou, balançando a
~ 72 ~
cabeça enquanto ela tropeçava ao redor atrás de alguma coisa,
desaparecendo rapidamente na sala ao lado.
Tum.
Tum.
Tum.
~ 73 ~
— Você não é louca.
— Eu sou real.
— Real mesmo?
— Eu tenho tempo.
Ou de volta lá embaixo.
— Eu sei.
— Sim.
~ 74 ~
— Quem sou eu?
— Eu estava lá?
— Quem?
~ 75 ~
O diabo usou você para começar o Apocalipse e então enfiou uma
faca no seu peito, mas eu juro que foi por amor.
— Sim.
~ 76 ~
— Como você conseguiu se curar tão rápido?
Ele não tinha certeza do que dizer, então não disse nada, se
afastando ainda mais dela ao se levantar. — Eu realmente não deveria
estar aqui, Serah.
Assim que ele saiu do motel, longe dos olhos dela, ele
desapareceu e reapareceu do lado de fora do velho bar onde ele tinha
rasteado Abaddon antes. Ele tentou sentir o seu velho amigo, porque
sua conversa não tinha terminado, mas a essência de Abaddon sumiu
assim que ele chegou.
*****
Luce.
~ 77 ~
O nome era peculiar, mas ainda assim familiar; como se fosse um
nome que Serah conhecia intimamente, um que ela tinha dito muitas
vezes antes. Luce.
Ela saltou, correndo para a porta quando ele saiu, não saindo
nem dez segundos depois nele no estacionamento escuro e
completamente vazio.
— Espere! — ela gritou, olhando ao redor. Ele não poderia ter ido
muito longe. — Volte!
— Procurando alguém?
Don.
~ 78 ~
formigamento ao longo da sua espinha. Ela podia sentir o homem
quando ele entrou atrás dela.
Ela tinha a sensação de que isso podia ser a chave para tudo.
~ 79 ~
Capítulo Três
A casa térrea era pitoresca, branca com janelas azuis, localizada
em um bairro tranquilo na direção da extremidade sul de Chorizon, a
apenas algumas quadras da escola primária. A placa de ‗aluga-se‘ ainda
estava presa na cama desgastada do jardim da frente, mas Serah já
tinha assinado seu nome na linha pontilhada, fazendo dela a inquilina
oficial.
Aquele que ela tinha certeza que era o seu nome agora, aliás.
~ 80 ~
O que ela sabia?
~ 81 ~
Ela abriu na página que estava rabiscando e mostrou para ele.
~ 82 ~
— Eu tenho, — Serah disse, surpresa pela criança se lembrar do
seu incidente. Nicki, ela lembrou seu nome. Ela tinha um pai chamado
Nicholas e uma mãe chamada Samantha. — Eles dizem que vou ter isso
para sempre.
Nicki se animou.
— Sim.
— O Sr. Johnson é quem morava aqui. Ele não era tão legal. Ele
ficou furioso quando a minha bola acertou o seu vidro, porque minha
mãe disse que ele não gostava de crianças. Mas então ele se casou com
uma linda rainha e se mudou para longe. Mamãe os chama de A Bela e
a Fera, porque ele era peludo e cruel, mas a Fera era um cara legal,
então eu acho que na verdade ele era o Gastão, — Nicki pausou para
respirar. — Oh! Talvez seja isso que você precisa!
Serah imaginou que talvez ela não fosse a única louca. — E como
um príncipe sapo vai me ajudar?
~ 83 ~
— Essa é a minha mamãe, — Nicki disse. — Eu tenho que ir. Fico
feliz que você se encontrou!
Nicki saiu correndo antes que Serah pudesse dizer alguma coisa.
Ela observou a garotinha desaparecer dentro de casa, sorrindo
suavemente. Algo na sua inocência era tão familiar, tão reconfortante.
*****
Ele não tinha certeza de porque estava aqui. Ele nem pensou
sobre isso. Ele rastreou Abaddon ao redor de todo o maldito globo,
pulando de um lugar para o outro, antes de finalmente acabar onde
tinha começado.
~ 84 ~
Ele pensava que isso deveria fazer sentido quando você só tem algumas
décadas garantidas para passar na Terra. Sessenta, setenta, oitenta
anos, se tiver sorte.
Ele gastou mais tempo que isso em uma longa partida de cartas.
O tempo sempre foi nada para ele. Mil anos eram um segundo.
Seis mil anos quase não foram o bastante para ele ficar completamente
irritado por ter sido preso na cova. Ele nunca percebeu como tinha
desperdiçado até estar sob o ponteiro de um relógio, o seu tempo com
ela cada vez menor.
Isso fez com que algo dentro dele se materializasse quando ele
deixou esse pensamento afundar, algo que ele nunca tinha sentido
antes. Culpa.
Culpa, porque só havia uma pessoa para culpar pela vida curta
dos humanos, e ao contrário da crença popular, não era Eva.
— Café?
Com ela.
~ 85 ~
— Não precisa ser café, — ela disse incerta. — Eu nem gosto de
café. Nós podemos tomar café da manhã na lanchonete no fim da rua.
Quero dizer, todo mundo tem que comer, certo?
Ela podia vê-lo, mas ele ainda não era visível para os outros, e ele
não podia ter ela parecendo certificadamente insana, conversando em
público com alguém que não estava ali.
Como se ela pudesse ler a sua mente, ela balançou para trás, sua
voz um sussurro desesperado. — Por favor? Eu não sou louca... eu não
sou.
Serah olhou para ele, para ter certeza de que ele estava
acompanhando, seus passos vacilaram, um olhar de surpresa tomou
suas feições quando ele andou em frente.
— O que é estranho?
~ 86 ~
— Você pareceu meio como se estivesse brilhando a um segundo
atrás, — ela disse, o corado desaparecendo. — Deve ter sido a luz ou
algo assim.
— Deve ter sido, — ele respondeu, surpreso que ela conseguiu ver
isso, embora não devesse. Ela estava vendo e sentindo coisas que não
deveria o tempo todo.
Ela se virou para olhar para ele, e Lúcifer sabia o que ela ia dizer
antes mesmo que dissesse algo. Ele tinha uma camiseta, sim, mas seus
pés estavam descalços.
~ 87 ~
Ela hesitou novamente, como se pensasse que ele podia estar lhe
enganando, mas escolheu confiar nele depois de um momento.
Oferecendo um sorriso, ela entrou na lanchonete, e Luce soltou a porta.
— Hm, não, — ela disse, olhando para ele. — Quero dizer, acho
que não foi nem um minuto. Você estava ali agora e eu acabei de me
sentar e... — ela se dobrou, olhando debaixo da mesa, antes de
encontrar seus olhos de novo. — Você está usando sapatos!
Não foi até que Serah sussurrou o seu nome que ele percebeu que
a mulher estava falando com ele.
~ 88 ~
— Água, — ele respondeu, olhando para Serah. — E uma maçã
para comer.
Não estava no cardápio, mas ele tinha certeza que um lugar como
esse teria uma.
Ele não pôde deixar de sorriso ao som do seu nome nos lábios
dela. Ela já o tinha dito duas vezes desde que eles se sentaram. — Você
pode me perguntar o que quiser.
— Faço o quê?
— Você lê?
— Sim.
~ 89 ~
Intuitiva. Luce olhou para ela, surpreso pela sua franqueza. Ela
colocou todas as cartas na mesa e pediu para ver as dele, mas ele ainda
não estava pronto para mostrar. — Não é natural.
— Longa história.
— Encurte.
~ 90 ~
— Ok, então o que você fazia?
— Eu era babá.
Essa resposta a fez rir, mais uma vez como se ele estivesse
brincando, mas ele estava falando sério. Ele fazia um glorioso trabalho
de babá lá na cova.
— Ok, nova tática, — ela disse, apontando para ele com o seu
garfo. — Uma vez que eu perdi a memória e você me disse que daria
tudo para um recomeço, por que nós não começamos daqui?
— Ok.
— O quê?
~ 91 ~
— Eu começo, — ela disse depois de um momento, voltando os
olhos de novo para o prato enquanto mexia em algumas batatas com o
garfo. — Eu amo o cheio de grama recém-cortada, mas isso me faz
espirrar.
A outra é que ele não tinha para onde ir, mas manteve isso para
si mesmo por enquanto.
~ 92 ~
Ele sabia que devia se oferecer para pagar.
— Claro.
Ele mordeu.
Ela era fresca, com um sabor afiado, intenso e doce. Ele mastigou
um pouco antes de engolir, dando de ombros enquanto jogava a maçã
de volta na mesa, a descartando.
Não era totalmente ruim, mas com certeza não valia colocar a sua
cabeça a prêmio.
*****
Sensação.
A voz do seu Pai soou bem ao seu lado, baixa e desolada. Luce
sorriu com satisfação, virando a cabeça, esperando ver sua raiva
direcionada para os Seus novos filhos desobedientes, mas seu foco
estava todo no Arcanjo. Seus olhos estavam cheios de dor, a mesma dor
que Luce tinha visto nos olhos de Adão quando ele se machucou.
~ 93 ~
— Seus filhos, — Luce disse, — foram seduzidos pelo mal.
A Ira de Deus foi sentida pela primeira vez naquela tarde. O céu
ensolarado foi varrido pela escuridão, e a primeira tempestade caiu
sobre a Terra. Luce ficou ali parado, ainda encostado contra a árvore, e
observou os humanos serem punidos.
— Por quê? — Ele perguntou baixinho. — Por que você fez isso?
— Eu queria que você visse que seus filhos não eram perfeitos, —
Lúcifer disse. — Eu queria que você visse que eles podiam ser
corrompidos, eles podiam ser infectados pelo mal.
*****
~ 94 ~
— Não é muita coisa, — a voz de Serah era um sussurro suave
enquanto ela juntava apressadamente algumas coisas na sua sala de
estar; um cobertor sobre o sofá, um copo vazio na mesinha ao lado, um
par de sapatos espalhados pelo chão. — Desculpe a bagunça.
Ele veio de boa vontade, mas agora que estavam aqui, ele parecia
desconfortável.
Ele sabia?
Quem era ele? Quem era ele para ela? Tudo que ela tinha era um
nome e uma história vaga, que ela não tinha como ter certeza se era
verdade. Mas ela tinha um sentimento inabalável em relação a ele, seus
instintos a acalmavam, a atraindo na sua direção. Era ao mesmo tempo
uma sensação de segurança e nervosismo.
~ 95 ~
Apenas os seus olhos já faziam o interior dela queimar.
Arrepios correram pela sua pele, da cabeça aos pés. Ele tinha
cheiro de menta e uma pitada de enxofre, como se tivessem riscado um
fósforo recentemente. Ele parou bem na frente dela, se inclinando para
ficar na altura dos seus olhos, sua expressão absolutamente séria.
— Você sente isso, não é? — ele perguntou, sua voz rouca, apenas
um sussurro. — Você ainda sente isso.
O quê?
~ 96 ~
Um lago claro como cristal. Risada. Um abraço. Uma mesa.
Mármore partido. Ele em cima dela, dentro dela, uma outra vez.
Violento e vicioso, apaixonado e fora de controle. Fogo. Um grito. Olhos
vermelhos vibrantes a encarando.
Ela o provocou com o que viu – um lago, uma mesa, chamas. Ela
disse que seus olhos eram vermelhos como o sangue, brilhando
enquanto a encaravam. Luce permaneceu imóvel, esperando que ela
acabasse.
Parte dela queria dizer a ele que isso não importava, mas ela
guardou isso para si. Luce se inclinou para baixo de novo, colocando
um rápido beijo em seus lábios, e então outro, e outro, cada vez mais
suave que o anterior.
~ 97 ~
*****
— Trégua?
— Curiosidade.
— Que jogo?
~ 98 ~
eles tentaram se misturar? Muitos. Você não pode ficar com ela, Lúcifer.
Ele não vai deixar.
— Qual é?
Luce apenas olhou para ele. Não era um plano diferente. Ele
tentou isso uma vez, com Eva.
~ 99 ~
maioria Potestades e Guardiões, vinham juntos para tomar a Terra. Eles
iam se levantar anunciar a sua existência. Tudo isso passou pela mente
de Luce – espetáculos públicos, com jornais e câmeras de televisão,
mostrando banhos de sangue e revoltas entre os mortais, morte e
destruição se espalhando por todo o globo. A onda de devastação se
moveria muito rápido, se disseminaria longe demais para que o seu Pai
conseguisse limpar toda a confusão com uma mão. Ele ocultaria o
motim dos anjos rapidamente para que não fosse descoberto, mas era
contra sua natureza intervir quando se tratava de livre arbítrio. Os
anjos iriam capitalizar o caos, e na frente e no centro do plano de
Abaddon, estava Lúcifer.
~ 100 ~
Sua tendência ao egoísmo, sua inclinação para a ganância, o
empurrou na direção de se juntar ao grande plano do seu velho amigo,
mas algo o impediu.
E empatia.
Era consideração.
~ 101 ~
— Enquanto ainda posso? Isso é uma ameaça?
Luce andou até ele, ficando cara a cara, peito com peito. — E eu
tenho uma sugestão para você.
— Qual?
— Tenha cuidado com o que você diz, — Luce diz. — Você é cheio
de promessas vazias, e um dia desses eu talvez finalmente decida fazer
você pagar por elas. Quando isso acontecer, você vai ter muitas coisas
para expiar. Então não se enterre muito fundo, ou você pode jamais
levantar do chão outra vez.
*****
Serah se levantou, indo diretamente até ela sem nem parar para
pensar duas vezes. Ela rapidamente se abaixou e juntou a
correspondência, se levantou e entregou tudo para a mulher. — Aqui
está.
~ 102 ~
— Sim, isso é algo que Nicki faria, — Samantha apertou a mão,
sorrindo. — Você gostaria de entrar e beber alguma coisa?
~ 103 ~
enquanto ela pegava a taça e cheirava. Parecia com uvas azedas. Ela
nunca tinha bebido vinho antes.
— Ele?
~ 104 ~
ausência era uma pílula difícil de engolir. Ele tinha sumido e não voltou
a aparecer.
— Ei! — ela disse animada, passando direto pela sua mãe para ir
correndo até Serah. — Eu acabei de desenhar você!
~ 105 ~
— Ela discutiu com você?
— Não.
— Sim.
*****
~ 106 ~
Anos.
Nada.
Então ele ficou longe, mas não durou muito, porque ele sentiu o
puxão a 5000 km de distância. Ele aparatou bem aqui, incapaz de
ignorar a atração, e a concentração de pecado quando o chutou na
bunda.
Luxúria.
~ 107 ~
Luce permaneceu parado, observando Serah sair da casa da
vizinha e tropeçar pelo jardim em direção à sua. Ela estava flutuando,
mas ao mesmo tempo um pouco bamba, acenando enquanto tropeçava
para longe. Ela levantou o olhar quando chegou à varanda, ofegando e
parando abruptamente. — Luce.
Seu nome foi um sussurro. Seu hálito tinha cheiro de vinho. Suas
bochechas estavam coradas pelo álcool, e a onda de desejo o acertou
com força. Seu próprio corpo começou a vibrar quando ele inalou o
aroma no fundo dos seus pulmões. Ele não precisava se ver para saber
que seus olhos estavam escurecendo, a pureza sendo drenada por ele.
Ele podia sentir a chamas queimando sob a sua pele, sua temperatura
subindo rapidamente.
Foi o tempo mais longo que Luce esteve longe dela em meses.
— Eu fui.
— Eu estou.
Ela o encarou, sua respiração ofegante. Ele podia ver que ela
tinha uma dúzia de perguntas, sua boca abrindo e fechando enquanto
ela lutava para formulá-las. Mas ela permaneceu em silêncio. As
palavras não saíram.
~ 108 ~
Luce começou a falar, mas as palavras foram roubadas quando
Serah ficou na ponta dos pés e esmagou os lábios contra os dele. No
momento em que se conectaram, todos os pensamentos foram varridos
da sua mente, e ele ficou em branco, sem sentir nada, sem ver nada,
exceto ela.
Era o bastante... o suficiente... para ele ter uma prova, para dar o
que ela desejava, mas não era o que Luce realmente queria. Ele a
queria. Toda ela. Luxúria não era o bastante. Ele queria puxar tudo de
dentro dela e se aquecer dentro.
~ 109 ~
próprios, negros como a noite. Pelo menos eles não estavam vermelhos.
Vermelho teria a aterrorizado, mas agora ela só parecia intrigada.
Ele tirou a mão bem quando ela falou. — Seus olhos são tão
escuros... e a sua pele está queimando. Eu sinto... sinto como se
estivesse vibrando. Como se a minha alma estivesse vibrando por causa
do seu toque.
*****
Ele não podia se mover ou falar. Ele não podia fazer nada. Ele era
feito de mármore. Ele foi esculpido em pedra.
~ 110 ~
A sala do trono esteve transmitindo imagens de Satanás por
meses. Elas passavam como se fossem um longo filme sem fim, um dia
após o outro. O mesmo enredo, os mesmos atores. Michael evitava a
maior parte delas, mas curiosidade levou a melhor sobre ele hoje. Serah
tinha sucumbido às tentações mortais, e Satanás foi arrastado
diretamente para ela.
— Há quanto tempo?
~ 111 ~
Sempre esteve destinado a ser assim? O tempo todo em que ele
esteve com Serah, Ele sabia que isso aconteceria? Ele tinha planejado
que fosse desse jeito?
— Sim.
— O quê?
— Livre arbítrio.
Michael se virou para o seu Pai. — Por que eu não posso ver isso?
— ele se concentrou, tentando sentir o futuro como ele fazia com os
mortais, mas não havia nada. Ele mudou, tentando sentir o de Serah,
mas o dela, também, estava em branco. Não posso ver o dela também.
Por quê? Michael se perguntou, mas seu Pai não respondeu. Não
dessa vez. Eles observaram a imagem de Satanás por mais um tempo
antes do anjo caído desaparecer. Seu Pai acenou com a mão e a imagem
de dissolveu.
~ 112 ~
— Então todos irão perder, — Ele respondeu. — Especialmente
eles dois.
*****
Serah sabia tudo isso porque ela estava sentada na frente da sua
nova amiga, a ouvindo desabafar. O fim do verão estava sobre elas. As
duas passaram as últimas semanas se conhecendo, passando as tardes
juntas antes de Serah sair à noite para o seu turno de trabalho no
motel.
~ 113 ~
— Relaxe, — Samantha gritou no seu caminho de volta para a
cozinha. — Eu estou aqui. O que você está fazendo em casa?
Luce.
— Não, sou eu, — ele disse. — Jesus não está por aqui.
— Era eu o quê?
— Batendo na porta.
Ele não precisou responder quando a batida veio mais uma vez.
Os olhos de Serah passaram por Luce e se fixaram na porta, suas
sobrancelhas se juntando. Claramente não tinha sido ele. Ela tinha
meia dúzia de perguntas, como de onde ele veio, onde ele esteve e como
no mundo ele acabou dentro da sua casa, mas as batidas frenéticas a
distraíram.
~ 114 ~
— Não, — Luce disse, olhando de relance para a porta. — Não era
eu.
Serah passou por ele e foi até a porta, a abrindo com cuidado.
Nicholas estava do outro lado, os olhos em pânico.
— Eu odeio fazer isso... odeio ter que pedir isso a você. Sei que
nós mal nos conhecemos, mas minha mulher realmente gosta de você, e
a minha filha também. Então eu estou me perguntando se você poderia
me fazer um favor, se você poderia cuidar de Nicki essa tarde para nós?
— Claro.
— Claro.
~ 115 ~
— Pergunta difícil.
*****
~ 116 ~
Foi com elas que Serah jogou com ele na cova.
— Tu tem seis?
Luce olhou para os dois seis na sua mão por um segundo antes
de mudar o olhar por cima das suas cartas, encontrado um par de
olhos castanhos selvagens. Nicki Barlow. A garotinha o encarava,
esperando tão pacientemente quanto alguém de nove anos de idade
podia.
— Reis.
~ 117 ~
— Isso foi o que eu pedi a você, — ele disse, seu tom tenso
enquanto olhava para a garota. — Você disse que não tinha nenhum.
Levou tudo dentro de Luce para não arrancar a carta da sua mão.
~ 118 ~
Assim que as palavras saíram dos seus lábios, Serah lhe deu uma
cotovelada na lateral. — Nossa, você não pode pedir?
Malvado?
— Pesque!
— Por quê?
Principalmente porque eles não podiam, ele não iria permitir, mas
ainda assim...
~ 119 ~
Como se pudesse sentir o seu olhar, um pequeno sorriso levantou
seus lábios, e suas bochechas coraram um pouco. — Que estranho, —
ela sussurrou.
— Ah, eu não sou tão estranho, — ele disse. — Não sou tão
diferente de você.
— Porque não era isso que eu estava pensando. Não acho que
você é louca, Serah. Acho que você é especial.
~ 120 ~
— Como você, — ela disse. — Você disse que nós não éramos
muito diferentes, afinal.
Ele sorriu para isso. Especial? Não havia como negar isso. Ele era
especial. Ele tinha sido criado com esse propósito. O debate sempre
tinha sido se era para o lado bom ou não.
— Eu sei.
~ 121 ~
— Você pode dizer isso?
— War.
— Muitas vezes.
— Eu ganhei?
— Uma vez.
*****
~ 122 ~
Nicholas saiu depois de agradecer mais algumas vezes. Serah
esperou até que eles se fossem para suspirar, fechar a porta e se
encostar contra ela. Eram quase três da manhã e Serah tinha faltado ao
trabalho. A sua chefe entendeu, mas ela ainda tinha um peso sobre si.
O olhar de Serah correu pela sala escura, a única fonte de luz era
uma lâmpada muito fraca. Luce ainda estava sentado no meio do sofá,
os cotovelos apoiados sobre os joelhos, os olhos nela. Ele ficou a noite
toda, nem uma vez reclamando sobre ter que estar em outro lugar.
— Fique.
Essa única palavra o fez parar. Ele ficou ali imóvel, a encarando
na escuridão, como se estivesse contemplando a proposta. Depois de
um momento, andou até ela, segurando seu rosto entre as mãos. Seus
polegares acariciaram levemente as suas bochechas.
Ela não tinha certeza das implicações disso, o que ele realmente
queria dizer, mas o pensamento dele partindo fez seu peito apertar.
Partes dela doeram, doeram para se readaptar com o que ela costumava
saber, o que ela costumava ser com ele. Era o mais perto de se lembrar
que ela chegou. Ela queria isso.
~ 123 ~
deixando que ele fizesse isso. Seus lábios viajaram pelo torso dela,
facilmente se livrando do resto das roupas.
Talvez ele fosse perigoso, mas por alguma razão, ela confiava nele.
~ 124 ~
— Está acelerado agora, — ele sussurrou. — Eu posso ouvir.
Ele fez amor com ela, empurrando uma e outra vez, se apoiando
sobre um braço enquanto a mão direita permaneceu sobre o seu peito.
Serah não apenas o sentia em seu corpo. Luce estava penetrando parte
da sua alma. Ele se agarrou com força a isso, não deixando ir,
reivindicando partes de Serah que ela nem tinha percebido que existiam
até que ele as acordasse. Do lado de fora, um trovão retumbou ao longe,
o vento bateu contra as janelas e uma tempestade teve início.
Luce.
*****
— NÃO!
~ 125 ~
Lúcifer gritou a palavra quando um espaço completamente branco
de nada se materializou ao seu redor, seus pés descalços plantados bem
no meio do círculo cercado por aqueles malditos sinais de
confinamento. Ele olhou para eles, a raiva crescendo em seu interior,
escorrendo como lava derretida.
— Porra!
Nojo?
Mágoa.
~ 126 ~
Quantas vezes ele tentou ferir seu irmão? Quantas vezes ele
tentou destruir Michael somente para decidir, no final, que o Arcanjo
não poderia ser ferido? Claramente, ele estava errado.
— Lúcifer.
~ 127 ~
As exigências de Luce foram ignoradas.
— Me leve de volta.
— Eu vou me segurar.
~ 128 ~
naquela época, forte, mas não era páreo para você, e ela é mortal agora.
Ela é fraca. Você é letal para ela.
~ 129 ~
— Durma um pouco, — ele sussurrou, mais para si mesmo que
para ela, porque ela estava inconsciente em segundos. — Você precisa
se recuperar.
~ 130 ~
Capítulo Quatro
Samantha Lauer ainda não conseguia dormir.
Mesmo com toda a perturbação, ela nunca viu nada tão adorável.
Sua voz angustiada vez Serah sorrir com simpatia. — Não, ele não
odeia. Crianças não odeiam os seus pais.
~ 131 ~
— Você parece uma encantadora de bebês.
Serah riu quando uma alta batida ecoou pela casa vinda da porta
da frente. O barulho assustou o bebê, que começou a chorar mais forte.
Samantha se levantou e começou a andar para a porta, mas parou ao
lado da cadeira de Serah.
— Quem?
~ 132 ~
— O proprietário, — ela gemeu. — Ele veio reclamar que a grama
não foi cortada por tipo, um ano. Eu disse a ele que Nicholas vai dar um
jeito assim que puder. Quero dizer, nós temos um filho recém-nascido,
e meu marido quase não para em casa... me desculpe se eu não estou
fazendo a droga do jardim uma prioridade. Eu não durmo há dias.
Havia algo na sua voz, algo fora do lugar. Estava tensa, como se
ele estivesse segurando algo. Ela correu para ele, ocasionalmente, nas
últimas semanas, mas fazia alguns dias desde que ela viu seu rosto.
Desde a sua noite juntos, ele manteve distância.
Quando ele parou na sua frente, ela podia dizer que seus
pensamentos estavam longe. Seus olhos continuavam vagando além da
sua cabeça e ao redor, como se estivesse procurando alguma coisa. Ela
olhou para o lado, curiosa, mas tudo que encontrou foram as normais
ruas de Chorizon.
— Estou bem.
~ 133 ~
— Você parece... distraído.
Pelo jeito que ele olhava para as pessoas que passavam, Serah
suspeitava que era mais ‗alguém‘ do que ‗algo‘. Ela começou a expressar
isso quando Luce de repente a agarrou. Ela tencionou, surpresa, mas
relaxou quando ele enrolou os braços em volta dela. Ele tinha um cheiro
quente, como terra, e uma leve pitada de enxofre em sua pele.
Ela acenou para ele antes de dar outro passo para trás e se virar
para entrar no saguão do motel.
Ela parou quando alcançou a porta, olhando para trás, mas ele já
tinha ido.
Serah não se importava com seu turno noturno, embora ele fosse
um pouco tedioso a maior parte do tempo. Especialmente nos finais de
~ 134 ~
semana, como hoje, quando poucas pessoas vinham para a cidade. Eles
tinham dois ocupantes, e ninguém entrou no saguão por horas.
— Olá.
A voz veio do seu lado, tão perto que os cabelos da sua nuca
arrepiaram, um arrepio correu pela sua coluna. O medo tencionou seus
músculos quando ela se girou a cadeira e ficou cara a cara com um
homem familiar. Levou alguns segundos do seu alarme para recordar
seu nome. — Don.
~ 135 ~
mal enxergando o homem na escuridão enquanto tropeçava para trás,
seus joelhos oscilando.
— Isso não é real, — ela entoou, sua voz instável quando ela
parou, a imagem dele desaparecendo e não reaparecendo, o
estacionamento ainda quieto... tão quieto... quieto demais. Não havia
uma brisa, nem um grilo cantando, nada. Era como se o mundo ao
redor tivesse sido pausado. — Isso não é real. Não pode ser. Isso não
está acontecendo.
Antes que ela pudesse reagir, antes que ela pudesse fugir ou
gritar, ou implorar por misericórdia, rezar para que Deus a salvasse,
mãos a agarraram rudemente e a escuridão tomou conta.
~ 136 ~
*****
Luce sabia os seus futuros, mas não sabia o de Serah. Ele deveria
ser capaz de dizer, quando ela abriu os olhos na rua aquele dia, o que
viria para ela, mas não havia nada. Nunca houve nada. Cada momento
é como se fosse o seu último, até que outro momento acontecia,
substituindo o último. Não havia vida, nem morte, nem futuro, apenas
o agora. Um agora que ela esteve vivendo por meses. O cano da arma
estava pressionado na sua têmpora, mas ninguém tinha puxado o
gatilho.
~ 137 ~
salvá-la. Mas ela parecia apenas destinada a existir, no momento. O
que iria acontecer quando seu coração parasse de bater?
Perigo.
Uma distração.
~ 138 ~
Luce balançou sua adaga, esfaqueando, agarrando, cortando,
fatiando e dilacerando cada pedaço de anjo que ele podia alcançar. Eles
o atacaram por todos os lados, a Graça o banhando quando ele enfiou a
adaga no peito de um anjo e puxou de volta. Ele mal teve tempo para
desfrutar da sensação, para se deliciar com a onda de energia, quando
uma faca o esfaqueou no lado. Ele resmungou na dor aguda,
balançando em direção a seu assaltante, uma pequena e bonita Virtude
em um vestido vermelho. Que pena.
Michael.
~ 139 ~
— Você não, raio de sol, — ele disse. — Não me diga que você é
um dos seguidores idiotas de Abaddon.
Assim que ele disse isso, outro estalo alto ecoou pela rua, fazendo
o chão tremer. Mais anjos apareceram, dessa vez Potestades enviadas lá
de cima. Luce riu para si mesmo. Seu pai tinha mandado ajuda.
Michael jogou para ela uma arma descartada e ela a pegou no ar.
Luce não hesitou mais, aparatando dali direto para o velho motel.
O lugar estava destrancado, a porta aberta, as luzes acesas, mas não
havia ninguém ao redor. Os batimentos cardíacos dela se foram, assim
como Abaddon. Ele tentou encontrá-los, voando de um lugar para o
outro, de cidade para cidade, de país para país, indo a todos os lugares
que ele sentia que Abaddon tinha estado, até que finalmente...
finalmente... ele o encontrou.
~ 140 ~
O Guardião estava em uma saliência no topo do Empire State
Building 7 , suas asas totalmente abertas, seus olhos negros como a
noite. Ele tinha um braço em volta do peito de Serah, sua mão livre
segurando uma faca. Ele a segurava contra a garganta dela, que tremia,
as lágrimas escorrendo pelas suas bochechas coradas. Ela mal estava
conseguindo se controlar. O aperto firme de Abaddon era a única coisa
que a mantinha de pé. — Ah, é só falar no diabo que ele aparece.
7O segundo maior arranha-céu de Nova York, o 5º mais alto dos Estados Unidos e o
29º do mundo.
~ 141 ~
— Aw, você não sabia, não é? — Abaddon perguntou, as palavras
cheias de compaixão falsa que não combinavam com a diversão
dançando em seus olhos. — Você não sabia que o seu amante era o
primeiro e único Lúcifer. O ardiloso Príncipe das Trevas. Ele deixou você
pensar que ele era uma espécie de Príncipe Encantado de contos de
fada, quando na verdade ele é o Rei do Inferno.
Satanás.
Luce não podia encarar seus olhos. Ele sabia que ela veria a
verdade nos seus.
— Veja, Serah, — Abaddon disse, — você uma vez foi como nós.
Certa vez, não muito tempo atrás, você tinha asas. Mas Lúcifer te
manipulou. Ele roubou tudo que você tinha, te deixou sangrando na
rua. E ele fez isso com essa mesma adaga aqui, essa caída no concreto
à sua frente. Você era inocente, até que o notório Lúcifer te rasgou em
pedaços, uma mentira sussurrada no tempo.
— Luce, — ela gritou, sua voz tremendo. — Por favor, me diga que
isso não é verdade. Me diga que não é real. Me diga alguma coisa... por
favor... me diga que eu não estou louca.
~ 142 ~
— Não, — ela sussurrou de novo. — Não me diga isso. Não... não
me diga que isso é real.
— Eu sou quem ele diz, — Luce diz. — Eu fiz o que ele disse.
Ela não podia fazer nada além de olhar para ele. Devastação
marcava a sua expressão. A derrota derrubou os seus ombros. As
lágrimas escorriam continuamente pelas suas bochechas, mas ele não
podia secá-las quando foi ele que as causou.
~ 143 ~
Gritos vinham de todos os lados das pessoas ao redor, todo o
quarteirão parando para assistir. Luce puxou o corpo dela em seus
braços, deixando a multidão histérica para trás quando ele aparatou,
desaparecendo no ar.
Michael afastou o olhar, e Luce sabia. Ele não ia fazer isso. Ele
não ia ajudar.
Luce não deveria estar surpreso. Ele sabia como isso funcionava.
Serah era uma mera mortal. Mais cedo ou mais tarde, ela iria morrer
mesmo. Desde aquele dia no Jardim, ele viu centenas de bilhões de
pessoas perecerem.
~ 144 ~
— Eu vou achar Abaddon, — Michael disse, sua voz forte e firme.
Nenhuma simpatia. — Ele vai pagar pelo que fez.
Sozinho.
Malditamente sozinho.
— Por que você está aqui agora? — Luce perguntou, uma ponta
de amargura em sua voz que ele não podia conter. Vinha de um lugar lá
no fundo do seu ser. — Eu não estou com humor para um ‗eu avisei‘.
Eu preferiria ficar sozinho com ela, para ter um momento... apenas um
momento... antes que eles a levem.
— Então ela não... — Luce olhou novamente para Serah. Ela não
vai para o Inferno...
~ 145 ~
— Não, ela não vai.
— Por quê?
Essa era uma pergunta feita a Ele com frequência, mas que Ele
costumava não responder. Essa vez, no entanto, Ele não a ignorou. Ele
ofereceu a Luce o que ele desejava – a verdade. — Vocês dois são tão
interligados que é difícil distinguir onde você termina e ela começa. O
futuro dela nunca esteve definido porque você não tinha decidido o seu.
Eu te dei o que você queria, Lúcifer. Permiti seu livre arbítrio. Cada
escolha que você fez alterou o que acontecia com ela.
Livre arbítrio. Não parecia tão livre quando Luce pensou que seria.
— Por agora.
— Qual?
Lúcifer O encarou.
~ 146 ~
Você vai ter um recomeço, algo que você pediu tanto nos últimos meses,
e não apenas dos outros. Você vai ter um recomeço para si mesmo
também.
Sua Graça.
~ 147 ~
— De nada, — ele se virou como se planejasse ir embora, mas
hesitou, gesticulando na direção de Lúcifer. — Antes de voltar para
casa, considere fazer algo sobre as suas roupas.
*****
Satanás estava na ponta da sua língua, mas ele não podia dizer.
Ele não podia chamá-lo assim. Satanás não tinha Graça. Satanás não
tinha a mesma configuração que ele.
— Me chame de Luce.
Michael sorriu pelo jeito que ele disse isso. Foi ele quem lhe deu
esse apelido, na verdade. — Luce.
~ 148 ~
Antes que Michael pudesse se mover, Luce o segurou, a palma
contra o seu peito, o empurrando para trás. — Me permita.
~ 149 ~
levantou por interesses próprios, não por justiça, e essa não é a lição
que eu aspirei ensinar.
— Nunca.
A Marca de Satanás.
~ 150 ~
— Desculpe, irmão, — Lúcifer disse, o azul mais uma vez
reaparecendo em seus olhos. — É difícil se livrar de velhos hábitos.
— Então por que você o mandou para lá? Por que não acabar com
ele agora?
— Qual?
~ 151 ~
entre os anjos da memória dos mortais. Michael se lembrava, no
entanto. Ele sempre se lembraria. Assim como seu irmão, ele se
lembrava de tudo. Ele se lembrava de como se sentiu quando feriu
Serah em uma rua não muito distante, a tristeza que ele sentiu pela
primeira vez em sua existência.
Ele tinha sentido isso outra vez, pouco tempo atrás, bem aqui
nesse lugar, quando não pôde curá-la outra vez. Ordens eram ordens, e
seu Pai tinha dito isso expressamente quando ele foi enviado para
ajudar Lúcifer.
Não importa o que aconteça com aquela que chamam Serah, você
não vai intervir.
O pesar por deixá-la morrer não era pela sua vida perdida. Era
porque ele e Lúcifer ainda estavam conectados, e ele sentia isso dentro
do seu irmão, uma tristeza como ele nunca viu antes.
~ 152 ~
Epílogo
Cores.
Sessenta anos.
Ele ficou aqui parado pelos últimos sessenta anos, sem pisar uma
vez lá embaixo, apenas observando enquanto a Terra continuava a
girar. Ela girava e girava, refletindo luz, sustentando a vida, ainda a
magnífica criação que seu Pai sonhou que seria.
~ 153 ~
trono, ao lado do seu Pai. Lúcifer não tinha colocado um pé ali desde
que chegou, não porque não foi convidado... mas porque ele não sentia
que realmente pertencia àquele lugar.
Só Deus sabe...
Noventa e nove...
Noventa e oito...
Noventa e sete...
— Será, — Lúcifer grunhiu. — Tudo tem seu tempo, blá blá blá,
as rodas do destino continuam a girar. Você está desperdiçando seu ar,
irmão. Eu já ouvi tudo isso antes.
Setenta e quatro...
Setenta e três...
Setenta e dois...
~ 154 ~
— É a verdade, — Michael disse.
Quarenta e seis...
Quarenta e cinco...
Quarenta e quatro...
Mas ele não tinha ideia para onde ela iria depois que chegasse
aqui.
Vinte...
Dezenove...
Dezoito...
~ 155 ~
consolo nessas palavras, mesmo que não tivesse certeza do que fazer
com elas. — Você acha que ela me ama? Eu sei que eu a amo, mas...
Ele realmente tinha feito alguma coisa para merecer o seu amor?
— Acho que nós vamos descobrir, — Michael disse, mais uma vez
dando um sorriso antes de desaparecer.
Três...
Dois...
Um...
O Céu dela.
Uma pracinha.
Cleome serrulata.
~ 156 ~
— Você estava certo, — sua voz era suave e ela olhou para longe
da flor, direto para ele. — Essas flores realmente têm um cheiro
horrível.
— Não era?
— Não.
~ 157 ~
— Serah, — ele disse, parecendo tão nervoso quanto ele disse
para Lúcifer não se sentir.
— Luce.
~ 158 ~
revestiam, pálida em alguns lugares, com sardas em outros. Seus lábios
eram naturalmente vermelhos.
Fim
~ 159 ~