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A compreensão sobre as questões identitárias — uma visão de que elas são

forjadas em relações desiguais — tem me ajudado a entender como


desconstruir relações naturalizadas (aquelas sobre as quais dizemos “sempre foi
assim”) que oprimem e subjugam e tiram das pessoas possibilidades de ação, de
formação, de desejo e de movimento.

Segundo Freire (1987), uma educação problematizadora, que rompe com a verticalidade da educação
bancária, só pode se dar por meio do diálogo entre educadoras/es, que são também educandas/os, com
educandas/os, que são também educadoras/es; entre educadoras/es e educan-das/os que crescem
juntos e têm como tarefa comum saber agir

Portanto, entendo educação linguística crítica como um processo es-


sencialmente formador, que conduza o aprendiz para muito além do mero
acúmulo de saberes. Isto é, que supere em todos os aspectos a prática de
educação bancária tão combatida por Paulo Freire. Mais ainda, uma edu-cação
calcada na problematização da vida cotidiana que se preocupe em apontar
caminhos para a transformação do indivíduo e, consequentemen-te, para
influenciar positivamente na sua ação diária como ser social. Uma educação que
leve ao questionamento constante de verdades arraigadas em todas as esferas
da vida e que abra espaços constantes para a produção (não reprodução) de
discursos e contradiscursos por aqueles que buscam enriquecer seu repertório
linguístico-cultural ao se desafiarem a aprender outra(s) língua(s).

Por um lado, portanto, uma formação crítica de professores de inglês deve ir


muito além de trabalhar competências, habilidades e metodologias. Por outro,
não deve tomar como pressuposta a ideia de que está voltada para a
emancipação do aluno, como se fosse o professor o responsável por isso. O
papel do professor seria — no próprio processo de ensino da língua inglesa —
problematizar e questionar, sempre em função dos contextos diversos e
cambiantes em que atua. Assim como apresentei nas questões anteriores, vejo
também que meu papel como professor não se destina a catequizar ou
emancipar alu-nos, mas problematizar sempre, procurando conscientizar os
graduandos de que não há uma fórmula acabada nem respostas únicas para os
pro-blemas. Tudo está em constante construção, e assim continuará sendo no
exercício da profissão, pois os contextos de atuação também estão continu-
amente mudando. Diante de todo o exposto aqui, e conforme já apontei, vejo a
educação linguística crítica em grande sintonia com alguns pressu-postos do
letramento crítico atualmente, com ênfase em aspectos como contextualização,
problematização, transitoriedade, transformação social e construção de
identidades. É, pois, uma prática que se constrói sobre um terreno altamente
mutante e movediço.

O caráter educativo não exclui o indispensável desenvolvimento linguístico;


ambos estão imbricados. Entendido desse modo, o componente curricular Língua
Inglesa na escola básica tem o papel de, por meio da ampliação do repertório
linguístico dessa língua, possibilitar às pessoas envolvidas nesse processo
(docentes, discentes, comunidade etc.) a expansão de pers-pectivas (MONTE
MÓR, 2013) sobre si e sobre o mundo que as cerca, o que exige
autoquestionamento, percepção crítica e engajamento. Nesse sentido,
problematizar o estatuto da língua inglesa local e globalmente também se torna
atividade premente nas aulas de inglês.9 Esse trabalho foi compilado em formato de livro
(SILVESTRE, 2017).
258perspeCtIVAs CrÍtICAs De e DUCAção LInGUÍstICA no BrAsILPor fim, mas não menos importante,
ao falar em educação linguística crítica é importante ressaltar a importância de
construir espaços de fala(SILVESTRE, 2016, 2017) nos quais a escuta empática
(REZENDE, 2017) seja exercida, contribuindo para a de(s)colonização do saber,
do ser, do poder e da linguagem. Isso porque o trabalho crítico se mostra como
um longo projeto de descentramento (PENNYCOOK, 2012) “que busca desa-fiar
diversas hegemonias e trazer vozes e ações insurgentes das margens”
(SILVESTRE, 2016, p. 63).

Grande parte desse processo sustentou-se também com as teorizações de


Derrida (1974, 1978, 1997), com os conceitos sobre desconstrução, origem e
suplemento. Na minha lógica, se as pesquisas haviam indicado o habi-tus
interpretativo dos alunos, as teorias derridianas em muito contribui-riam para
levá-los para além do que o fenômeno mostrava, ou seja, para a compreensão
de que as relações às vezes romântica e conflituosamente descritas e
desenroladas nos textos de um curso de Letras poderiam e de-veriam ser
entendidas também em suas perspectivas sociais, históricas, culturais e políticas
Percebe-se que o conceito de transculturalidade amplia os horizontes de
sentido no que se refere a uma prática pedagógica politicamente coerente com
os princípcios de uma “unidade plural”, pois enfatiza com mais força (em
relação ao inter e multiculturalismo) os mecanismos de “interpenetração” das
culturas, de modo que não somente a harmonia, mas também o confronto
propicie as bases para um encontro significativo e respeitoso entre os
indivíduos que partilham suas diferenças culturais num mesmo ambiente em
vista de um projeto comum.De fato, esta tem se constituído como um avanço
notável no que se refere à educação multicultural, pois ela insiste sobre a
interação e a troca, na busca de uma síntese cultural que seja significativa e
sensível ao contexto em que se dá, devendo se fazer presente de forma
evolutiva atodos os níveis do sistema educativo, desde o nível de decisões
políticas, até os professores e alunos na sala de aula. É neste sentido que nós
julgamos necessário ir além da educação intercultural. A educação transcultural
coloca em evidência a necessidade de queos indivíduos atravessemsuas
próprias fronteiras culturais, de que saiamde suas identidades esclerosadas,
que possam ir em direção ao Outro e se transformem,por esta mobilidade,no
encontro com a alteridade. Para além da interculturalidade (aceitação, troca,
contato) é pertinente refletir sobreuma transculturalidade no sentido de uma
transformação das representações, dos modos de pensar e dos
comportamentos de cada um. Este processo implica no reconhecimento do
confronto entreculturasdiferentes, fatoque implica em tensões, como conflitos
interiores ou exteriores que, positivamente, são considerados como motores de
evolução e, ao mesmo tempo, elementos indispensáveis à aprendizagem de
outra cultura (BLAISE, 2008). A transculturalidade implica num avanço de si
mesmo em relação ao outro, e do outro em relação a si mesmo, uma mudança
nessas representações, uma transformação que se opera no processo comum
de confronto com a realidade, com outras realidades e às realidades do mundo
contemporâneo.

Freire (2006) apregoa que o ponto de partida para uma análise o


tanto quanto possível sistemática da conscientização deve ser uma
compreensão crítica. Disso apreendemos que a escolha da palavra
crítica em sua obra não representa uma mera classificação; ao
contrário, o termo carrega conotações ideológicas e políticas,
demarcando o território teórico no qual o autor se assentou,
desmitificando o caráter necessariamente “neutro” de determinadas
posturas intelectuais.Para o autor, “somente homens e mulheres
como seres „abertos‟ são capazes de realizar a complexa operação
de, simultaneamente, transformando o mundo através de sua ação,
captar a realidade e expressá-la por meio de sua linguagem
criadora” (FREIRE, 1981, p.77). Essa asserção evidencia o caráter
libertário da obra freireana, bem como, respalda nossa
compreensão de que os atos de ler e escrever vão além das
palavras. Nesse sentido, tornar um sujeito consciente é muito mais
que alfabetizá-lo e vai muito além de moldá-lo „decodificador‟ de um
sistema alfabético. Para o autor
144Revista Línguas & Letras –Unioeste –Vol. 15 –Nº 28 –Primeiro
Semestre de 2014 e-ISSN 1981-4755A leitura mais crítica da realidade
dá-se num processo de alfabetização ou não associada, sobretudo a certas
práticas claramente políticas de mobilização e de organização, e pode
constituir-se num instrumento para o que Gramsci chamou de ação contra
hegemônica. Por isso que ler implica esforços no sentido de uma correta
compreensão do que é a palavra escrita, a linguagem, as suas relações
com o contexto de quem fala e de quem lê e escreve, compreensão,
portanto da relação entre „leitura‟ do mundo e leitura da palavra (FREIRE,
2008, p.21).A citação acima elucida que o ato de ler não deve ser
entendido como mera decodificação, mas, além disso, ler implica
entender também o contexto que cria e sustenta os significados da
leitura do mundo. Muitos autores do campo do letramento
associam-se à concepção do ato de ler de Freire. O linguista norte-
americano James Paul Gee (GEE, 1994), por exemplo, também
considera a leitura como um processo que deve emergir da cultura
e assevera que as crianças que são submetidas ao processo de
leitura para compreender o mundo, na perspectiva cultural podem
ter mais êxito na escola, diferentemente daquelas que são
submetidas ao ensino da leitura restrito ao contexto escolar, dentro
de uma perspectiva instrucional [domesticad

147Revista Línguas & Letras –Unioeste –Vol. 15 –Nº 28 –Primeiro


Semestre de 2014 e-ISSN 1981-4755[...] „analfabeto‟político –não
importa se sabe ler e escrever –é aquele que tem uma percepção ingênua
mágica da realidade, ao alfabetizar-se politicamente, tal percepção cede
lugar a uma visão objetiva, e deste aprofundamento resulta a tomada de
consciência da realidade social(FREIRE, 1987, p.74). Freire ilustra que um
sujeito, mesmo alfabetizado, conhecedor do alfabeto, ainda assim,
se não age criticamente na sua realidade é um analfabeto político.
Nessa perspectiva, ao sujeito não é possível fugir da realidade em
que atua, sem assumir, criticamente, sua presença nela. Mas,
observa-se nesse caso, que mesmo um cientista, por exemplo, sendo
instruído e tendo escolaridade, pode constituir-se um analfabeto político –
sobretudo quando tenta “esconder-se” no que considera a neutralidade de
sua atividade científica, indiferente ao uso que se faça de seus achados,
desinteressado em sequer pensar a serviço de quem trabalha. Quase
sempre, ao ser indagado sobre isto, responde vagamente que está a
serviço dos interesses da humanidade(FREIRE, 1981, p.106). Nesse
sentido uma abordagem crítica do letramento exige a elaboração de
políticas de alfabetização criativas, emancipatórias,
transformadoras, que refutem a concepção “mágica” da cultura
letrada, sustentada pelo mito da sociedade grafocêntrica como
modelo de desenvolvimento social desejado, em que a
alfabetização funciona como um projeto civilizatório salvacionista de
povos marginalizados, sendo a escola a única agência social capaz
de executar.

Autores como Muspratt, Luke, Freebody (1997) adotam os


letramentoscríticos classificando-os como letramento visual,
letramento multicultural,letramento midiático e letramento da
informática. Já Lankshear, Knobel (2008)utilizam novos
letramentos para tratar das diferentes formas de linguagem e
deconstrução de conhecimento suscitados pelo meio digital, ou seja,
letramentosdigitais. Takaki (2008) utiliza letramentos na forma
pluralizada para resumiros tipos de letramentos acima citados,
transpassados pela criticidades, aomesmo tempo em que sugere a
complexa rede de interconexão entre todos ostipos de letramentos. De
acordo com o modelo ideológico de letramentopostulado por Street
(1984), o letramento crítico refere-se a uma prática social de
linguagem, na qual os interlocutores utilizam formas de linguagem
dediversas fontes e recursos para construir e negociar significados
com uma variedade de interlocutores. Questões de raça, etnia,
sexualidade, gênero e
diversidade cultural, intensificam a luta por interesses próprios num
jogo de linguagem que mescla ideologias, paradoxos e relações
dinâmicas de poder.O citado autor enfatiza a necessidade de
constantemente fazermos uso doque denomina reflexividade por
meio da qual é possível refletir de formadialógica a respeito das
interações que emergem de uma determinada práticasocial. Street
(1984) bebe da fonte freiriana, na medida em que salienta o poder de
transformação da condição social do interlocutor por meio da
capacidade de renegociar significados na luta pelo poder. Embora
Freire (1998, 2005) não tenha usado o termo letramentos, sua
concepção de linguagem transpassa as práticas sociais. Estas
possibilitam aos agentes, usuários da linguagem, transformar a
suaprópria condição social, isto é, promover ações e deslocamentos
com escolhas informadas visando à mobilidade social. Nesse sentido,
constrói-se uma relação, a do Eu-outro(s), que pressupõe uma espécie
de caleidoscópio ético. Este implicana responsabilidade
incomensurável que esse Eu tem pelo outro não somente no contexto
de cada um, mas também na sociedade, como um modo de vida, de
acordo com Levinas (1978) e Caputo (1993).Cervetti, Pardales,
Damico (2001) ampliam o conceito de letramento crítico comparando-
o com a leitura crítica. Esta última, centrada no humanismo liberal,
busca a repetição e reprodução da intenção do autor de um
determinado texto. Essa vertente pauta-se pela crença na garantia de
umaverdade por trás das aparências de um texto, reforçando, assim, a
crença numaúnica ideia principal do texto. Perguntas típicas dessa
opção incluem: Qual éa intenção do autor? Qual é a ideia central do
texto? O letramento crítico assume linguagem, identidade,
conhecimento, cultura, poder, ensino-aprendizagem e realidade
como noções que se modificame se apresentam ideologicamente
porosas, motivo pelo qual estão sujeitas àsconstantes reinterpretações.
A linguagem não capta completamente a realidade, ecoando o
pensamento de Bakhtin (1977), devido a sua natureza heterogêneae
dinâmica. Ao contrário, ela constrói e reconstrói realidades de
formapluralizada. O conhecimento é sempre reconstruído localmente e
nunca estápronto como um produto fechado. É, antes, um processo
incompleto egerador de constantes modificações influenciado por uma
gama de valoresculturais, políticos, econômicos e sociais, que também
são passíveis demudanças. Cervetti, Pardales, Damico (2001),
McLaughlin, DeVoogd (2004)vão além de meras perguntas,
sugerindo, ao invés, o termo questionamentos.Nesse sentido, eles
retomam a agência do usuário da linguagem difundida porFr eire
(2005) por meio do exercício de desafios de interpretações já
consagradas14-Nara Takaki.p6503/12/2012, 21:14975
976RBLA, Belo Horizonte, v. 12, n. 4, p. 971-996, 2012 (e legitimadas por grupos

hegemônicos) para proceder a um raciocínio quereconstrua outras


visões/interpretações/versões historicamente silenciadas e,talvez,
romper com as relações rígidas de poder. Eis alguns exemplos
dequestionamentos que permearam as discussões dos textos no curso
emquestão:a)Quem está contando a história?b)Em nome de quem a história
está sendo contada?c)Que outras vozes/perspectivas/realidades estão faltando?
d)Um texto alternativo contaria que versão da história?e)A sua realidade está
incluída nesse texto? Por quê?f )Quais são as implicações de cada
interpretação da história?Os letramentos críticos requerem um professor
que crie espaço paradiálogos em que a voz do aluno e sua criatividade
sejam valorizadas tantoquanto o desenvolvimento linguístico. A
última pergunta caracteriza osletramentos críticos como sendo uma
oportunidade para que o aluno reflitaa respeito das consequências
locais e globais complexas de se posicionar de umaforma ou de outra,
num dado momento de sua construção crítica deconhecimento.Essa
maneira crítica de construir conhecimento considera as
diferentesformas de linguagem, fazendo-se presente, também, na
linguagem digital. Aintensidade de usos de tecnologia de penúltima
geração sempre se projeta nodevir e suas influências nas atividades
diárias de muitos aprendizes têm geradouma profusão de gêneros
transmutados, na concepção de Bakhtin (1999) eSwales (1990). Dito
de outra maneira, um gênero apresenta enunciadosrelativamente
estáveis, mas não fixos. Isso possibilita a criação de gêneroshíbridos
como telemensagens, mensagem de texto via telefone
celular,videoconferências, bate papo virtual, e-mails, aulas virtuais. É
a partir dessa baseque utilizo, neste artigo, gêneros híbridos.Uma das
consequências do trabalho da mídia digital é exatamente adiluição de
fronteiras rígidas entre a oralidade e a escrita, provocando
oaparecimento de gêneros híbridos, desafiando a capacidade leitora de
quem osarticula. Uma composição complexa de elementos concorre
para uma maiorintegração e, ao mesmo tempo, dispersão entre
semioses, isto é, um jogocomplexo e dinâmico composto por signos
verbais, sons, imagens e animações,14-Nara Takaki.p6503/12/2012, 21:14976
977RBLA, Belo Horizonte, v. 12, n. 4, p. 971-996, 2012 com determinado uso e

funcionalidade, conforme nos ensina Kress, VanLeuween (1996);


Manovich (2001). É o caso da publicidade, anúncios epropagandas,
gêneros que vêm ganhando destaque por sua frequência em,
porexemplo, exames públicos (em que a língua inglesa está presente),
nos quaisos candidatos são requisitados a ler e interpretar textos
acompanhados deimagens (charges animadas e tirinhas, por
exemplo).Observa-se, assim, uma intensa apelação a textos extraídos
de revistas,jornais, livros e sites. Desse modo, a linguagem torna-se
cada vez mais plásticae o espaço digital caracteriza-se por ser
semelhante ao silicone, na concepçãode Snyder (2008); Lankshear,
Knobel (2005) e Gee (1996, 2004). O quemuda quanto aos aspectos
estrutural, formal, discursivo, sóciohistórico eideológico de um
determinado texto lido num suporte digital e do “mesmo”texto lido no
papel? Os procedimentos didáticos para a leitura de textos noespaço
virtual-real, noção adotada por Castells (2006), suscitam, creio,
novasreflexões quanto ao ensino-aprendizagem de inglês instrumental.
Enfatiza-sea não linearidade de leitura, pois uma multiplicidade de
caminhos é ofertadaao leitor. O design de textos digitais não é neutro,
ou seja, ele é construído apartir de posicionamentos ideológicos de
quem os cria e hospeda, reservadasas limitações tecnológicas (Braga e
Busnardo, 2004).É nesse sentido que teóricos como Freire (2005),
Cervetti, Pardales,Damico (2001), Cope, Kalantzis (2003), Menezes
de Souza e Monte Mór(2006), Monte Mór (2007, 2009), Pennycook
(2007), Prinsloo (2005),Rajagopalan (2003), Street (1984), dentre
outros, sugerem a inclusão deleituras e procedimentos de leitura que
correspondam às novas demandas nocotidiano e no âmbito
profissional dos aprendizes. Caberá ao professor e aoaprendiz-
hiperleitor de cursos de inglês instrumental lidar com

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