Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Tradução de
RACHEL GUTIÉRREZ
Rxccr
Titulo original
DONNA Dl PORTO PIM
preparação de originais
MARIA ALICE PAES BARRETO
CIP-Brasil. Cata!ogaçâo-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
CDD - 853
98-0998 CDU - 850-3
Sumário
Prólogo........................................................................ 7
Hespérides. Sonho em forma de carta........................ 11
7
além da minha disponibilidade à mentira, de uma
temporada que passei nas ilhas dos Açores. O tema
principal são as baleias que, mais do que animais,
pareceriam metáforas; e com elas os naufrágios, que
em sua acepção de atos malogrados e fracassos, pode
ríam igualmente parecer metafóricos. O respeito que
sinto pelas imaginações que conceberam Jonas e o
capitão Achab me salva, por sorte, da pretensão de me
insinuar, com a literatura, entre os mitos e os fantas
mas que povoam o nosso imaginário. Se falei de
baleias e de naufrágios é só porque nos Açores, umas
e outros gozam de uma inequívoca concretude.
Neste pequeno volume há, no entanto, duas
histórias que não seria totalmente impróprio definir
como ficções. A primeira é, em seus fatos essenciais, a
vida de Antero de Quental, grande e infeliz poeta que
mediu os abismos do universo e da alma humana com
o breve compasso do soneto. Diante da sugestão de
Octavio Paz de que os poetas não têm biografia e que
suas biografias são suas vidas, é a ele que devo o fato de
tê-la narrado como se se tratasse de uma vida imaginá
ria. Aliás, as vidas que se perdem pelo caminho, como
a de Antero, são talvez as que melhor toleram um
tratamento segundo os cânones do hipotético. Devo
a história que encerra o volume, por outro lado, a um
homem que suponho ter encontrado numa taberna
de Porto Pim, Não elimino a possibilidade de tê-la
modificado com os acréscimos e as razões próprias da
presunção de quem acredita estar extraindo da histó
ria de uma vida o sentido de uma vida. Talvez sirva de
8
atenuante confessar que naquele local bebidas alcoóli
cas eram consumidas em abundância e que me parece
indelicado negar-me aos costumes vigentes.
O fragmento de história intitulado Pequenas ba
leias azuis que passeiam pelos Açores pode ser conside
rado uma ficção dirigida, no sentido de que me foi
sugerida, à imaginação, por um trecho de conversa
que ouvi por acaso. Nem mesmo eu conheço o que
veio antes e o que se seguiu na história. Presumo
tratar-se de uma espécie de naufrágio: daí ter sido
incluído no capítulo em que foi incluído.
O trecho intitulado Sonho em forma de carta se
deve em parte a uma leitura de Platão e em parte ao
balanço de um ônibus lento que ia de Horta a
Almoxarife. Pode ser que ao passar do estado de sonho
para o estado de texto tenha sofrido péssimas altera
ções, mas cada um tem o direito de tratar os próprios
sonhos como lhe aprouver. Ao contrário, as páginas
intituladas Uma caçada não aspiram senão a ser uma
crônica e a única virtude que reivindicam é a de serem
fidedignas. Similarmente, muitas outras páginas, e
me parece supérfluo dizer quais, são meras transcri
ções do real ou do que outros escreveram. Por fim, o
escrito intitulado Uma baleia vê os homens, para além
de um velho vício meu de espiar as coisas pelo outro
lado, inspira-se, sem dissimulação, numa poesia de
Carlos Drummond de Andrade, que antes e melhor
do que eu soube ver os homens através dos olhos
dolorosos de um moroso animal. E a Drummond
aquele texto é humildemente dedicado, também como
9
recordação de uma tarde em Ipanema quando, na casa
de Plínio Doyle, ele me falou da sua infância e do
cometa Halley.
..... 10
Hespérides.
Sonho em forma de carta
11
jamais vi em outro lugar. As outras ilhas são mais
rochosas, mas sempre ricas de flores e de frutos; e
grande parte de seu sustento, os habitantes extraem
dos bosques: e, o resto, do mar, que tem águas mornas
e repletas de peixes.
Os homens são claros, os olhos atônitos como se
neles pairasse o espanto de um espetáculo visto e
esquecido, são silenciosos e solitários, mas não são
tristes, e riem amiúde e por nada, feito crianças. As
mulheres são belas e altivas, com as maçãs do rosto
salientes e a testa larga, andam com jarras na cabeça e
ao descer as escadas íngremes que levam à água, nada
de seus corpos se move, a ponto de parecerem estátuas
que tenham recebido de um deus o dom de andar.
Essa gente não tem rei e n|o conhece as castas. Não há
guerreiros porque não têm necessidade de guerrear,
não havendo vizinhos; há sacerdotes, mas de uma
forma muito especial, que lhe contarei adiante, e
qualquer um pode tornar-se sacerdote, até o mais
humilde camponês e o mendigo. O panteão deles não
é habitado por deuses como os nossos que presidem o
céu, a terra, o mar, os mundos inferiores, os bosques,
as colheitas, a guerra e a paz, e as coisas dos homens.
São, ao contrário, deuses do espírito, do sentimento e
das paixões; nove são os principais, como as ilhas, e
cada um tem o seu templo numa ilha diferente.
O deus da Saudade e da Nostalgia é um menino
com cara de velho. Seu templo se ergue na ilha mais
distante, num vale defendido por montanhas inaces
síveis, perto de um lago, em uma zona desolada e
selvagem. O vale está sempre coberto por uma bruma
12
tênue como um véu, o vento murmura nas altas faias
e o lugar é de uma grande melancolia. Para se chegar
ao templo é preciso percorrer uma senda escavada na
rocha que se assemelha ao leito de uma torrente
desaparecida: e pelo caminho, encontram-se estra
nhos esqueletos de animais enormes e desconhecidos,
talvez peixes, talvez pássaros; e conchas; e pedras
rosadas como a madrepérola. Chamei de templo uma
construção que melhor seria chamar de casebre: por
que o deus da Saudade e da Nostalgia não pode morar
num palácio ou numa casa suntuosa, mas em uma
morada pobre como um pranto que se instala entre as
coisas deste mundo com a mesma vergonha com que
uma dor secreta na nossa alma. Pois esse deus não se
refere apenas à Saudade e à Nostalgia, sua divindade
se estende a uma zona do espírito que hospeda o
remorso, a dor pelo que foi e que não causa mais dor
mas é somente a lembrança da dor e a dor por aquilo
que não foi mas poderia ter sido, e essa é a mais
pungente das dores. Os homens vão a ele vestidos de
andrajos miseráveis e as mulheres cobertas por mantos
escuros; todos ficam em silêncio e por vezes se ouve
chorar, na noite, quando a lua ilumina de prata o vale
e os peregrinos estendidos sobre a relva embalam a
saudade de suas vidas.
O deus do Ódio é um pequeno cão amarelo, de
aspecto macilento e o seu templo se ergue numa ilha
minúscula em forma de cone: e para chegar até lá são
necessários muitos dias e muitas noites de viagem; e só
o ódio verdadeiro, o que incha o coração de forma
intolerável e compreende a inveja e o ciúme, pode
13
induzir os infelizes a uma travessia tão árdua. Existem
também, o deus da Loucura e o da Piedade, o deus da
Magnanimidade e o do Egoísmo: mas eu nunca os
visitei e sobre esses só ouvi vagos e fantasiosos relatos.
De seu deus mais importante, que me parece ser
o pai de todos os deuses e do céu e da terra, ouvi
histórias muito diferentes e não pude ver seu templo
nem aproximar-me de sua ilha; não porque os estran
geiros ali não sejam tolerados, mas porque mesmo os
cidadãos dessa república só podem aceder à ilha após
terem atingido uma disposição de espírito que rara
mente se consegue - e depois não voltam mais. Em sua
ilha ergue-se um templo que os habitantes dessas
regiões denominam de um modo que eu poderia
traduzir como “As Maravilhosas Moradas”, que con
sistem numa cidade totalmente virtual, na medida em
que não existem edifícios, mas apenas a sua planta
traçada no terreno. Tal cidade tem a forma de um
tabuleiro circular que se estende por muitas milhas: e
todos os dias os peregrinos, com um mero giz, movem
a seu bel-prazer os edifícios como se fossem peças de
xadrez, portanto a cidade é móvel e variável e sua
fisionomia muda constantemente. No centro do ta
buleiro ergue-se uma torre, em cima da qual repousa
uma enorme esfera dourada, que lembra vagamente a
fruta que é abundante nos jardins dessas ilhas. E essa
esfera é o deus. Não me foi possível descobrir quem
seja exatamente esse deus: as definições que até agora
me deram são imprecisas e reticentes, e talvez pouco
compreensíveis para o estrangeiro. Deduzo que ele
tenha relação com a idéia da completude, da plenitu-
..... 14
de e da perfeição: uma idéia altamente abstrata e
pouco compreensível para o intelecto humano. E é
por isso que pensei tratar-se do deus da Felicidade:
mas a felicidade de quem compreendeu tão plena
mente o sentido da vida a ponto que a morte já não
tem importância alguma; e é por isso que os poucos
eleitos que vão homenageá-lo não regressam mais.
Velando esse deus, foi posto um idiota com cara de
bobo e fala desconexa, que talvez mantenha contato
com o deus por vias misteriosas que a razão desconhe
ce. Quando manifestei o desejo de render-lhe home
nagem, as pessoas riram de mim e, com um ar de afeto
profundo, que talvez contivesse uma ponta de com
paixão, me beijaram as faces.
No entanto, eu também pude render homena
gem ao deus do Amor, cujo templo se ergue numa ilha
de praias douradas e arqueadas, sobre a areia clara
levemente tocada pelo mar. E a imagem do deus não
é um ídolo nem qualquer coisa visível, mas um som,
o som puro da água marinha que irrompe no templo
através de um canal escavado na rocha, e que se quebra
numa piscina secreta: e ali, por causa da forma das
paredes e da amplitude da construção, o som se
reproduz num eco infinito que arrebata quem o ouve
e provoca uma espécie de embriaguez ou de vertigem.
E a vários e estranhos efeitos se expõe quem honra esse
deus, porque o seu princípio comanda a vida, mas é
um princípio bizarro e caprichoso; e se é verdade que
ele é a alma e a concórdia dos elementos, também
pode produzir ilusões, desvarios e visões. E eu assisti
nessa ilha a espetáculos que me perturbaram por sua
15
inocente verdade: a ponto de duvidar se tais coisas
existiam real mente ou se nâo seriam, antes, fantasmas
do meu sentimento que saíam de mim e, no ar, adqui
riam aparência real por eu ter me exposto ao som
feiticeiro do deus: e pensando assim, tomei uma senda
que leva ao ponto mais alto da ilha, de onde se pode
ver o mar por todos os lados. E então me dei conta de
que a ilha estava deserta, de que não havia templo
algum na praia e que as figuras e os vários rostos do
amor que eu tinha visto como quadros vivos e que
compreendiam múltiplas gradações do espírito como
a amizade, a ternura, a gratidão, o orgulho e a vaidade;
todos esses rostos, que eu acreditava ter visto em
forma humana, eram apenas miragens provocadas em
mim por sabe-se lá qual sortilégio. E assim cheguei
bem no alto do promontório e, ao observar o mar
infinito, enquanto me entregava ao desconforto o
desengano que provoca, uma nuvem azul caiu sobre
mim e me transportou num sonho: e sonhei que te
escrevia esta carta, e que eu não era o grego que zarpara
em busca do Ocidente para nunca mais voltar, mas
que estava apenas sonhando.
16 .......
I
Naufrágios, despojos,
passagens, distâncias
Pequenas baleias azuis
passeando pelos Açores.
Fragmento de uma história
19
para uma platéia de velhos safados, a grande trágica,
isso é o que fazia. Tornou a espantar o invisível inseto
da ponta do nariz. E ainda tenho as fotografias, disse.
O marinheiro que recolhia as passagens parou
diante deles e a mulher remexeu na bolsa. Pergunte-
lhe quanto tempo ainda demora, disse o homem,
estou me sentindo mal, esta banheira me embrulha o
estômago. A mulher esmerou-se em formular a per
gunta naquela língua estranha e o marinheiro respon
deu sorrindo. Uma hora e meia mais ou menos,
traduziu ela, a lancha faz uma parada de duas horas e
depois volta. Colocou novamente os óculos e arru
mou a echarpe. As coisas nem sempre são como
parecem, disse. Quais coisas?, perguntou ele. Ela deu
um vago sorriso. As coisas, disse. E depois continuou:
estava pensando em Albertine. O homem fez uma
careta de impaciência. ‘Albertine, disse como que
avaliando o nome, Albertine. Sabe como se chamava
a grande trágica no tempo da “Baguette”? Chamava-
se Carole, Carole Don-Don. Engraçadinho, não é?
Voltou-se para o mar com ar ofendido e não conteve
uma pequena exclamação: Olhe!, e apontou o sul com
o dedo. A mulher voltou-se e também olhou. No
horizonte via-se o cone verde da ilha emergindo
nitidamente da água. Estamos chegando, disse o
homem todo contente, acho que vamos levar menos
de uma hora e meia. Depois piscou os olhos e se
apoiou no parapeito. Tem rochedos também, acres
centou. Moveu o braço para a esquerda e indicou duas
saliências cor de turquesa, como dois chapéus pousa
dos sobre a água. Que rochas feias, disse, parecem
20
almofadas. Não estou vendo, disse a mulher. Lá, um
pouco mais à esquerda, bem em frente ao meu dedo,
está vendo?, disse Marcei. Passou o braço direito sobre
os ombros da mulher e manteve a mão apontada para
a frente. Bem na direção do meu dedo, repetiu.
O cobrador tinha se sentado num banco ao lado
do parapeito, terminara o seu turno e estava observan
do os movimentos deles. Talvez intuísse o significado
da conversa porque se aproximou sorrindo e falou à
mulher com ar divertido. Ela escutou com atenção e
depois exclamou: naãao!, e levou uma mão à boca com
jeito brejeiro e infantil como se contivesse o riso. Que
foi que disse?, perguntou o homem com aquele ar
ligeiramente aparvalhado de quem não acompanha
uma conversa. A mulher dirigiu ao cobrador um olhar
de cumplicidade. Ria com os olhos e era muito bonita.
Disse que não são rochedos, falou, mantendo, de
propósito, em suspense o que ficara sabendo. O
homem a olhou com um ar de interrogação e talvez
um pouco aborrecido. São pequenas baleias azuis
passeando pelos Açores, exclamou ela, foi exatamente
o que disse. E finalmente soltou a risada contida, uma
risada curta e estridente. Inopinadamente mudou de
expressão e ajeitou os cabelos que o vento jogava em
seu rosto. Sabe que no aeroporto confundi um outro
com você? disse revelando candidamente a sua associ
ação de idéias. Não tinha sequer estatura e usava uma
camisa incrível que você não usaria nem no carnaval,
não é estranho? O homem fez um gesto com a mão
para pedir a palavra: fiquei no hotel, você sabe, o prazo
se aproxima e o texto ainda precisa ser revisto. Mas ela
21
não se deixou interromper. Deve ser porque pensei
muito em você continuou, nestas ilhas, ao sol. Agora
falava quase baixo, como se falasse consigo mesma.
Não fiz outra coisa senão pensar em você, todo esse
tempo, choveu muito, eu via você sentado numa
praia, acho que foi uma longa demora. O homem
tomou-lhe a mão. Para mim também, disse, mas
estive pouco nas praias, mais do que qualquer outra
coisa, o que vi foi a máquina de escrever. E chove aqui
também, se chove!, nem vai acreditar como, cada
pancada. A mulher sorriu. Nem lhe perguntei se
conseguiu, e pensar que se a teoria valesse alguma
coisa, eu também teria escrito dez comédias, de tanto
imaginar a sua: diga-me como é, não agüento mais de
curiosidade. Oh, digamos que é uma releitura de
Ibsen, no gênero cômico, disse ele sem esconder um
certo entusiasmo, cômico mas um pouco azedo, como
costumam ser as minhas coisas, e do ponto de vista
dela. Em que sentido?, perguntou a mulher. Bem,
disse o homem com convicção, para começar me
parece que na atual situação, é oportuno ver as coisas
do ponto de vista dela, se eu quiser que se fale da
minha peça, embora eu não a tenha escrito por esse
motivo, evidentemente. A história, no fundo, é banal,
é o fim de um relacionamento, mas todas as histórias
são banais, o importante é o ponto de vista, e eu salvo
a mulher, é ela a verdadeira protagonista, ele é egoísta
e medíocre, nem sequer se dá conta do que está
perdendo. Compreende?
A mulher concordou. Acho que sim, disse, não
tenho certeza. De qualquer forma, escrevi outras
22
coisas, retomou ele, estas ilhas são de um tédio mortal,
para passar o tempo só resta escrever. E além disso eu
queria me testar numa dimensão diferente, tenho
escrito ficção a vida toda. A mim parece mais nobre,
disse a mulher, ao menos é mais gratuita, e por isso,
como dizer?, mais leve... Oh, sim, riu o homem, a
delicadeza: par délicatesse j’ai perdu ma vie. Mas num
dado momento é preciso ter a coragem de se avaliar
diante da realidade da nossa própria vida. Além disso,
veja, as pessoas estão sequiosas de vida real, estão
cansadas da fantasia dos romancistas sem fantasia. A
mulher perguntou bem baixinho: são memórias? Havia
uma vibração ligeiramente ansiosa em sua voz suave.
De certa forma, disse ele, mas sem a elaboração das
interpretações e da lembrança; os fatos nus e crus: são
esses que contam. Vai ser um escândalo, disse a
mulher. Digamos que dará o que falar, corrigiu ele. A
mulher ficou meio pensativa. Já tem título?, pergun
tou. Talvez Le regard sans école, disse ele, o que você
acha? Acho engraçado, disse ela.
A lancha deu uma virada muito larga e começou
a costear a ilha. Da pequena chaminé saíam lufadas de
fumaça escura com um forte cheiro de gasolina e o
motor assumira um ritmo pacato, como se marchasse
por complacência. Eis por que se leva tanto tempo,
disse o homem, o cais deve ficar no outro lado da ilha.
Sabe, Marcei, retomou a mulher como se perse
guisse uma idéia, neste inverno passei muito tempo
com Albertine. A lancha seguia em frente com peque
nos solavancos como se o motor estivesse falhando.
Passaram diante de uma igrejinha bem na beira do
23
mar e estavam tão próximos que quase podiam distin
guir a fisionomia das pessoas que estavam entrando na
igreja. Os sinos que chamavam para a missa de domin
go tinham um som desafinado, claudicante.
O quê? O homem espantou o seu inseto invisível
da ponta do nariz. Mas o que é que você está dizendo?,
disse. No seu rosto havia espanto e uma grande
decepção. Fizemos muita companhia uma à outra,
explicou ela. É importante fazer-se companhia na
vida, você não acha? O homem levantou-se e apoiou-
se no parapeito, depois sentou-se outra vez na poltro
na. Mas o que é que você está dizendo, repetiu, você
ficou louca? Parecia muito inquieto e não conseguia
manter as pernas paradas. É uma mulher infeliz e
generosa, disse ela, sempre acompanhando o próprio
raciocínio, acredito que gostou muito de você. O
homem abriu os braços num gesto desconsolado e
murmurou qualquer coisa incompreensível. Ouça,
deixemos isso para lá, disse enfim com esforço, e veja,
estamos chegando.
A lancha estava se preparando para atracar. Dois
homens de camiseta, na popa, desenrolavam a corda
da amarra e gritavam frases na direção de um terceiro
homem em pé sobre o atracadouro que os olhava com
as mãos à cintura. Uma pequena multidão de parentes
estava esperando os passageiros e fazia sinais de sauda
ção. Na primeira fila estavam duas velhotas de lenço
preto e uma menina vestida de primeira comunhão
pulando num pé só.
E para a comédia, perguntou subitamente a mu
lher como se tivesse se lembrado de repente de uma
24
pergunta esquecida, você já tem título para a comé
dia?, não me disse. Seu companheiro estava arruman
do jornais e uma pequena máquina fotográfica numa
bolsa com a sigla de uma companhia aérea. Pensei em
cem nomes diferentes e descartei todos, disse debru
çado sobre a bolsa, não há nenhum que sirva direito
é preciso um título sutil mas também muito sonoro
para uma coisa como essa. Ergueu-se e no seu olhar se
acendeu uma vaga expressão de esperança. Por quê?,
perguntou. Nada, disse ela, por nada, pensava num
título possível, mas talvez seja muito frívolo, destoaria
num cartaz de anúncio, e além disso nada tem a ver
com o enredo, resultaria totalmente incoerente. Mas
enfim, suplicou ele, mate-me ao menos a curiosidade,
quem sabe é genial. Bobagem, disse ela, é uma idéia
absolutamente esquisita.
Os passageiros foram se aglomerando para a saída
e Marcei foi sugado pela multidão que se empurrava.
A mulher se manteve à parte, agarrando-se à corda do
parapeito. Espero você no cais, gritou ele sem voltar-
se, preciso seguir o fluxo! Levantou um braço na selva
das cabeças e agitou a mão. Ela se apoiou no parapeito
e ficou olhando o mar.
25
Outros fragmentos
26
cresce a flor, como diria Bécquer; os dois ingleses
atravessaram uma paisagem inacreditável: uma laje de
pedra florida que de repente descortinava abismos
apavorantes, despenhadeiros, falésias íngremes sobre
o mar. No meio da viagem, detiveram-se para passar
a noite numa aldeia de pescadores. Era uma vila
minúscula incrustada no alto de uma falésia, cujo
nome os viajantes omitem, não por desatenção, acre
dito, dado que seu relato é sempre rigoroso e exausti
vo, mas talvez porque a vila nem nome tinha. Muito
provavelmente chamava-se só Aldeia, que quer dizer
“vilarejo” e, sendo o único lugar habitado no raio de
muitos quilômetros, bastava-lhe, como nome pró
prio, uma antonomásia. De longe ela lhes pareceu
graciosa e de harmoniosa geometria, como são habi
tualmente as pequenas aldeias de pescadores. As ha
bitações, no entanto, pareciam ter formas estranhas.
Ao entrarem na aldeia, compreenderam o porquê.
Quase todas as casas tinham como fachada a proa de
um navio: eram casas triangulares, algumas de madei
ra de lei, cuja única parede de pedra era a que fechava
os dois lados do triângulo. Algumas eram casas
belíssimas, contam os atônitos ingleses, cujos interio
res pouco se pareciam com casas, pois os utensílios -
lanternas, assentos, mesas e até camas - quase tudo
havia sido retirado do mar. Muitas tinham escotilhas
que serviam de janelas e como davam para o precipício
e para o mar em baixo, a impressão que se tinha era a
de estar num navio atracado em cima de uma monta
nha. Aquelas casas tinham sido construídas com res
tos de naufrágios que os rochedos de Flores e de Corvo
..... 27
ofereceram durante séculos às embarcações de passa
gem. Os ingleses encontraram hospitalidade numa
casa em cuja fachada destacavam-se, brancas, as letras
THE PLYMOUTH BALT1MORE, e talvez isso os tenha aj uda-
do a sentirem-se quase em casa. De fato passaram uma
noite restauradora e na manhã seguinte retomaram a
viagem na vela.
Os dois viajantes se chamavam Joseph e Henry
Bullar e a viagem deles merece ser contada.
Em novembro de 1838, o médico londrino Joseph
Bullar, que havia aplicado com pouco sucesso em seu
irmão Henry as terapias então conhecidas contra a
tuberculose, diante do agravamento da doença deci
diu viajar com Henry até a ilha de São Miguel. Apesar
da distância e da enorme solidão, São Miguel era,
entre todas as ilhas quentes do Atlântico, a única a
poder garantir uma constante comunicação com a
Inglaterra. Durante a estação das laranjas, isto é, de
novembro a maio, podia-se escrever para a Inglaterra
a cada semana e a resposta era recebida uns vinte dias
depois, porque o veleiro que levava as laranjas para a
Inglaterra também efetuava um serviço postal. São
Miguel era, então, um enorme laranjal do tamanho de
sua extensão e as laranjeiras chegavam à beira-mar.
Após uma viagem bastante agitada no veleiro das
laranjas, os dois irmãos chegaram a Ponta Delgada em
dezembro de 1838 e se demoraram em São Miguel até
abril de 1839. É de se supor que a saúde de mister
Henry tenha melhorado, pois naquela data os dois
irmãos decidiram embarcar em pequenos veleiros de
pescadores e visitar os Açores centrais e ocidentais. Da
28
sua permanência no arquipélago, especialmente em
Faial, em Pico e na perdida Corvo, resultou um
esplêndido diário de viagem que em 1841, de volta a
Londres, os irmãos Bullar publicaram numa edição de
John van Voorst: A Winter in the Azores and a Summer
at the Furnas. Hoje é lido com admiração e espanto,
mas afinal de contas, as coisas nos Açores não muda
ram muito.
29
espanhóis conseguiram desembarcar e o seu naufrágio
se consumou na ilha Terceira, em 1581, durante a
batalha da Salga. Os açorianos esperaram o exército
espanhol do alto de um outeiro e lhe lançaram mana
das de touros enfurecidos, o que o desbaratou. Entre
os combatentes encontravam-se Cervantes e Lope,
que recordou a selvageria da batalha num quarteto.
30
moluscos desconhecidos, estranhas formas de vida
com contornos vagos e incertos, peixes e algas. Sobre
os Açores deixou páginas muito vivas, mas acima de
tudo me impressionou a sua descrição do fim de um
cachalote - derrocada de um animal mastodôntico
que se revela tão majestosa e aterrorizante quanto o
naufrágio de um transatlântico:
Os baleeiros, para obedecer às habituais pres
crições das autoridades marítimas, se apressaram em
levar ao mar a carcaça do cachalote cuja decomposição
teria infectado rapidamente toda a região circunstan-
te. Esse não é um empreendimento fácil, porque
parecería suficiente transportar a carcaça para duzen
tos ou trezentos metros da margem e entregá-la a uma
correnteza favorável que a levasse embora, mas o
vento, que muda caprichosamente, pode logo trazê-la
de volta; e pode de fato acontecer que os baleeiros
tentem livrar-se da massa fedorenta por dias e dias sem
conseguir. Ademais, se o mar se enfurece, pode acon
tecer que as vagas acabem pregando os indesejáveis
detritos debaixo de falésias inacessíveis. Então, a in
tensidade do fedor constituirá um suplício para os
habitantes da região. Finalmente, num belo dia de sol,
o intestino grosso, cheio de gás, estoura fragorosamente
e recobre a região circunstante de resíduos que cons
tituem um apetitoso alimento para os multicoloridos
coveiros caranguejos. Por vezes esses animais sinistros
marcam encontro para o seu asqueroso five o'clock,
com elegantes caranguejas levando suas delicadas
antenas para passear sobre a enorme torta, se a maré
alta for gentil o bastante para funcionar como meio de
31
transporte. Seja qual for o desenrolar dos aconteci
mentos, em suma, o pobre cachalote percorre pro
gressivamente o caminho da derrota, desde a primeira
ferida que o homem lhe inflige até a ação das ínfimas
criaturas que a encaminham ao cumprimento do ciclo
fatal no qual se cumpre o destino dos seres viventes. A
morte dos cachalotes é majestosa como um enorme
desabamento, e na necrópole que os baleeiros apres-
tam nas pequenas enseadas, seus escombros se acumu
lam como ruínas de uma catedral.”
32
frase do farol lhe pertencesse. Ocorreu-me a idéia de
citar o trecho exato neste meu caderno, por isso reli Les
Natchez, mas não encontrei a minha frase. Primeiro
pensei que me tivesse escapado porque reli o livro com
a pressa de quem simplesmente procura uma citação.
Depois compreendí que não encontrar uma frase
como esta faz parte do sentido mais íntimo da própria
frase, e isso me consolou. Também me perguntei qual
parte poderia ter tido a força evocatória e sugestiva,
talvez inconsciente, dessa frase, que me chamava para
uma ilha onde não havia nada que me atraísse. Às
vezes os passos da nossa vida podem ser guiados
também pela combinação de algumas palavras.
Resta-me dizer que à noite, em Pico, não brilha
nenhum farol.
33
ticas. Então um dia pediu as contas, vendeu tudo o
que tinha e comprou este barco. Melhor ainda, man
dou construí-lo de acordo com o desenho de um
arquiteto naval nova-iorquino - e ao descer no Amadeus
compreendo que não se trata exatamente daquela
frágil casca de noz que parece quando visto da terra.
Breezy foi embora com ele e agora vivem no barco.
Bem-vindo à nossa casa, dizem rindo. Breezy tem um
rosto aberto e muito cordial, um sorriso esplêndido e
está com um vestido longo estampado com flores
como se fosse enfrentar um garden-party e não uma
travessia oceânica. O interior é de madeira de lei e
estofado em cores quentes que dão logo uma sensação
de conforto e segurança. Há uma pequena e bem
guarnecida biblioteca. Ponho-me a bisbilhotar;
Melville, naturalmente, e Conrad e Stevenson. Mas
também Henry James, Kipling, Shaw, Wells, os
Dubliners, Maugham, Forster, Joyce Cary, M. E.
Bates. Pego o Jacaranda Tree e inevitavelmente a
conversa recai sobre o Brasil. Eles só foram até Forta
leza no Ceará, descendo ao longo das costas da Amé
rica. Mas o Brasil fica reservado para uma outra vez,
antes Rupert deve tratar do aluguel do Amadeus para
um pequeno cruzeiro de luxo. É assim que vivem,
alugando o barco e freqüentemente Rupert permane
ce como marinheiro. O resto da vida é todo deles.
Erguemos um brinde à viagem. Que bons ventos
os levem, desejo, agora e sempre. Rupert corre a
portinhola de uma estante e coloca uma fita no
aparelho de som. É o Concerto K 271 para piano e
34
orquestra de Mozart, e só agora compreendo por que
o navio se chama Amadeus. Na estante há uma fitoteca
completa de Mozart, catalogada com extremo cuida
do. Acho que Rupert e Breezy atravessam os mares
acompanhados pelos cravos e pelas melodias
mozartianas e a coisa me parece de uma estranha
beleza, talvez porque sempre associei a música com a
idéia de terra firme, do teatro ou de uma sala acolcho
ada e na penumbra. A música toma um ritmo solene
e nos envolve. Os copos estão vazios, levantamo-nos
e nos abraçamos. Rupert aciona o motor, eu me enfio
pela escadinha e num pulo estou no cais. Há uma luz
suave sobre o conjunto de casas de Porto Pim. O
Amadeus dá uma larga guinada e parte veloz. Breezy
está no leme e Rupert está içando a vela. Fico dando
adeus com a mão até que o Amadeus, já com todas as
velas despregadas, lança-se ao largo.
35
Spray e vendo-o em fotografia, parece uma barcaça
pesada e insegura, mais adequada a uma navegação
fluvial do que a uma viagem ao redor do mundo.
Sobre os Açores, o capitão Slocum deixou algumas
páginas bastante bonitas. Leio-as no seu SailingAlone
around the World, em uma antiga edição cuja capa é
enfeitada por um festão de âncoras.
36
“Peter’s Bar” é um café no porto de Horta,
vizinho do clube náutico. É alguma coisa entre a
taberna, o ponto de encontro, uma agência de infor
mações e de correio. É freqüentado pelos baleeiros,
mas também pelo pessoal dos navios, que faz a traves
sia atlântica ou outros percursos maiores. E uma vez
que os navegadores sabem que Faial é um porto de
escala, por onde todos passam, o “Peter’s” tornou-se
o destinatário de mensagens precárias e casuais que
não teriam, de outro modo, para onde ir. No balcão
de madeira do “Peters” pregam-se bilhetes, telegra
mas, cartas à espera de alguém que venha reclamá-los.
For Regina, Peter’sBar, Horta, Azores, diz um envelope
com um selo canadense. Pedro e Pilar Vazquez Cuesta,
Peters Bar, Azores: uma carta da Argentina, e chegou
da mesma maneira. Um bilhete já um pouco amare
lado diz: Tom, excuse-moi, je suis partie pour le Brésil,
je ne pouvais plus rester ici, je devenais folie, Écris-moi,
viens, je t'attends. C/o Engenheiro Silveira Martins,
Avenida Atlântica 3026, Copacabana. Brigitte. E ou
tro implora: Notice. To boats bound for Europe. Crew
available!!! 1 am 24, with 26.000 miles of crewing/
cruising/cooking experience. If you have room for one
more, please leave word below! Carol Shepard.
37
Montes de fogo, vento e solidão. Assim descrevia
os Açores, no século XVI, um dos primeiros viajantes
portugueses que ali desembarcou.
..... 38
Antero de Quental. Uma vida
39
de uma casa importante, onde as mulheres manti
nham com elas as chaves dos armários e as janelas
tinham cortinas de renda grossa. Ele corria, dava
pequenos gritos alegres e era feliz. Amava muito o
irmão mais velho, no qual uma silenciosa loucura
ofuscava, por longos períodos, uma inteligência rara
e estranha: com ele, inventou um jogo que chamavam
de O Céu e a Terra, em que os peões eram pedrinhas
e conchinhas, que jogavam num tabuleiro circular
traçado na poeira.
Quando o filho atingiu a idade de aprender, o
pai chamou à sua casa o poeta português Feliciano de
Castilho e confiou-lhe a instrução do menino. Castilho
era tido então como um grande poeta, talvez em
virtude das suas traduções de Ovídio e Goethe, e
talvez também por causa de sua infeliz cegueira que
por vezes conferia aos seus versos um tom profético
muito apreciado pelos românticos. Na verdade, era
um erudito irritadiço e intratável que privilegiava a
Retórica e a Gramática. Com ele, o pequeno Antero
aprendeu o latim, o alemão e a métrica. E nesses
estudos chegou à adolescência.
Na noite de abril em que completou quinze anos,
Antero acordou sobressaltado e sentiu que precisava ir
para o mar. Era uma noite calma e de lua crescente.
Toda a casa dormia e o vento inflava as cortinas de
renda. Vestiu-se em silêncio e desceu na direção dos
penhascos. Sentou-se sobre uma rocha e olhou o céu,
procurando adivinhar o que o havia induzido a ir até
aquele lugar. O mar estava tranqüilo e respirava como
se estivesse dormindo, e a noite era igual a todas as
40 .......
outras noites. Só que ele sentia uma grande inquieta
ção, como uma ânsia que lhe oprimia o peito. Naque
le momento, percebeu um mugido surdo que provi
nha da terra, a lua se coloriu de sangue e o mar inchou
como um ventre enorme e se abateu sobre as rochas.
A terra tremeu e as árvores se curvaram pela força de
um vento impetuoso. Antero correu atônito para casa
e encontrou a família reunida no pátio; mas o perigo
já havia passado e nas mulheres o pudor por causa das
roupas de dormir já dominava o susto repentino.
Antes de voltar para a cama, Antero pegou uma folha
de papel e escreveu às pressas, sem conseguir contro
lar-se, algumas palavras. E enquanto escrevia se deu
conta de que as palavras iam se ordenando sobre o
papel, quase sozinhas, de acordo com a combinação
métrica do soneto: e ele o dedicou, em latim, ao deus
ignoto que o estava inspirando. Naquela noite dor
miu serenamente e ao amanhecer sonhou com uma
pequena macaca de focinho irônico e triste que lhe
estendia um bilhete. Ele o lia e compreendia um
segredo que a ninguém era dado saber e que só o
animal conhecia.
Estava se tomando um homem. Estudava astro
nomia e as geometrias, deixou-se seduzir pela hipótese
cosmogônica de Laplace, pela idéia da unidade das
forças físicas e pela concepção matemática do Espaço.
De noite escrevia os seus pequenos engenhos misteri
osos e abstratos nos quais traduzia em palavras a sua
idéia da máquina cósmica. Agora se acostumara a
sonhar com a macaquinha do focinho irônico e triste
e até se espantava nas noites em que ela não o visitava.
41
Quando chegou à idade dos estudos universitári
os, partiu para Coimbra, de acordo com a tradição
familiar e anunciou que havia chegado o momento de
deixar o estudo das leis cósmicas para se dedicar às dos
homens. Tornara-se um jovem alto e corpulento,
com uma barba loira que lhe conferia um aspecto
majestoso, quase soberbo. Em Coimbra conheceu o
amor, leu Michelet e Proudhon e ao invés de entusi-
asmar-se pelas leis que aplicavam a justiça de então,
entusiasmou-se pela idéia de uma justiça nova que
falava da igualdade e da dignidade dos homens.
Seguiu essa idéia com a paixão que lhe vinha de seus
antepassados ilhéus, mas também com a razão do
homem que era, porque estava convencido de que a
justiça e a igualdade participavam da geometria do
mundo. Na forma fechada e perfeita do soneto,
escreveu o ardor que o dominava e a sua ânsia de
verdade. Partiu para Paris e tornou-se tipógrafo, como
um outro podería ter-se tornado monge, porque
queria conhecer a fadiga do corpo e a concretude dos
utensílios. Depois da França, partiu para a Inglaterra
e para os Estados Unidos, viveu em Nova York e em
Halifax, para conhecer as novas metrópoles que o
homem estava construindo e as diversas maneiras de
se viver nelas. Quando retornou para Portugal, tinha-
se tornado socialista. Fundou a Associação Nacional
dos Trabalhadores, viajou e fez prosélitos, viveu entre
os camponeses, passou por suas ilhas como um tribuno
dos discursos incandescentes, conheceu a arrogância
dos poderosos, as lisonjas dos ardilosos, o temor dos
servos. Animava-o o desdém e escreveu sonetos de
42
sarcasmo e revolta. Conheceu também a traição de
certos companheiros e a alquimia ambígua de quem
consegue conjugar a vantagem própria com o bem
comum.
Compreendeu que devia deixar para os outros,
mais hábeis do que ele, a continuação da obra que
havia iniciado, como se essa não mais lhe pertencesse.
Era o momento dos homens práticos, e ele não era
prático: e isso deu-lhe um senso de desolação como
um menino que perde a inocência e descobre de
repente a vulgaridade do mundo. Não tinha ainda
cinquenta anos e o seu rosto já estava muito marcado.
Os olhos tinham ficado fundos e a barba começava a
branquear. Passou a sofrer de insônia e a dar gritos
abafados nos raros momentos de repouso. Às vezes
sentia que suas palavras não lhe pertenciam e
freqüentemente se surpreendia falando sozinho como
se houvesse outra pessoa conversando com ele. Um
médico de Paris diagnosticou-lhe histeria e prescreveu
um tratamento com choques. Antero escreveu que
sofria de infinito, talvez uma doença mais plausível
para ele. Talvez só estivesse cansado da forma transi
tória e imperfeita do ideal e da paixão, e a sua
ansiedade agora se voltava para uma outra ordem
geométrica. Em seus escritos, começou a aparecer a
palavra Nada, que lhe parecia a forma mais perfeita de
perfeição. Ia completar quarenta e nove anos e retornou
para a sua ilha.
Na manhã de 11 de setembro de 1891, saiu de sua
casa de Ponta Delgada, desceu a pé a rua íngreme e
sombria até a Igreja Matriz e entrou em uma pequena
..... 43
loja de armeiro. Vestia uma roupa preta e sobre a
camisa branca, uma gravata presa por um alfinete com
uma concha, O proprietário era um homem cordial e
obeso que gostava de cachorros e gravuras antigas.
Havia um ventilador de latão girando lentamente no
teto, O proprietário mostrou ao cliente uma bela
gravura seiscentista adquirida recentemente que re
presentava uma matilha de cães perseguindo um
cervo. O velho negociante tinha sido amigo de seu
pai, e Antero se lembrava de que, quando menino, os
dois homens o levavam à feira de Caloura, onde se
encontravam os cavalos mais bonitos de São Miguel.
Entretiveram-se falando longamente sobre cães e ca
valos, depois Antero comprou um pequeno revólver
de cano curto. Quando saiu da loja, os sinos da Matriz
badalavam onze horas. Ele percorreu lentamente toda
a orla marítima até a capitania e se deteve demorada-
mente no cais para olhar os veleiros. Depois atraves
sou a rua e entrou na praça da Esperança rodeada por
magros plátanos. O sol era feroz e tudo estava branco.
A praça estava vazia naquela hora, por causa do
intenso calor. Um burro triste, amarrado à argola de
um muro, bamboleava a cabeça. Enquanto atravessa
va a praça, Antero ouviu uma música. Parou e voltou-
se. Na esquina oposta, à sombra de um plátano, havia
um ambulante que tocava um realejo. O ambulante
lhe fez um sinal e Antero dirigiu-se a ele. Era um
cigano magro e tinha uma macaca sobre um ombro.
Era um ser pequenino de focinho irônico e triste e
usava uma farda vermelha com os botões dourados.
Antero reconheceu a macaca do seu sonho e compre
44
endeu quem era. O animal lhe estendeu a minúscula
mão preta e Antero deixou cair ali uma moeda. Em
troca, o animal pescou papelzinho colorido entre os
tantos que o cigano enfiara na fita do chapéu e o
ofereceu. Ele pegou-o e leu. Atravessou a praça e
sentou-se num banco ao fresco do muro do convento
da Esperança onde haviam pintado uma âncora azul
na parede caiada. Tirou o revólver do bolso, levou-o
à boca e apertou o gatilho. Teve um átimo de espanto
ao continuar vendo a praça, as árvores, o mar cintilan
te e o cigano tocando o seu realejo. Sentiu um fio
tépido escorrendo pelo pescoço. Soltou o mecanismo
do revólver e disparou uma segunda vez. Então o
cigano desapareceu com a paisagem e os sinos da
Matriz começaram a badalar meio-dia.
45
II
Baleias e baleeiros
Alto-mar
49
continuou viva ainda por muitos dias, apesar de
mostrar feridas horrendas.
Certa vez, meu amigo C.M. contou-me essa
história. Pensei que a tinha rechaçado da memória
mas ela voltou de repente quando desembarquei na
ilha de Pico e havia uma baleia flutuando morta perto
dos rochedos.
50
Existe uma pose adotada pelas baleias que os
pescadores designam pela expressão “baleia morta” e
que se verifica quase sempre com animais adultos e
solitários. Quando está “morta”, a baleia parece com
pletamente entregue à superfície do mar, flutuando
sem esforço aparente, como se estivesse entregue a um
sono profundo. Os pescadores afirmam que esse
fenômeno só se verifica em dias de bonança pesada ou
de soí intenso, mas as causas reais da catalepsia cetácea
permanecem desconhecidas.
51
rompimento do cordão umbilical que o liga ao siste
ma vascular materno. Como é sabido, os momentos
do parto e da cópula são os únicos da vida dos outros
mamíferos marinhos durante os quais eles parecem se
lembrar desua ancestralidade terrestre; tanto que vêm
à terra só para acasalar-se e para parir, aqui ficando
apenas o tempo indispensável às primeiras fases da
vida do filhote. Seria, pois, esse ato da vida terrestre o
último a esvair-se da memória fisiológica dos cetáceos,
que, entre todos os mamíferos aquáticos, são aqueles
nos quais a ancestralidade terrestre é mais remota.
52
magnífico aumenta infinitamente a sensibilidade ner
vosa. Assim se fica muito mais vulnerável, muito mais
capaz de sofrer e de gozar. Posto que a baleia não
possui absolutamente o sentido da caça, nem tem o
olfato e a audição muito desenvolvidos, tudo nela está
entregue ao tato. A gordura, que a defende do frio, na
verdade não a protege dos embates. Sua pele, disposta
com sofisticação em seis tecidos diferentes, treme e
vibra a cada estímulo. As tenras papilas que a reco
brem são instrumentos de delicadíssimo tato. E tudo
isso é animado, vivificado por um jorro de sangue
vermelho que, considerada também a massa do ani
mal, não é sequer comparável em abundância ao dos
mamíferos terrestres. A baleia ferida inunda o mar
num segundo, tinge-o de vermelho a uma boa distân
cia. O sangue que nós temos em gotas lhe foi prodi
galizado em torrentes.
“A fêmea carrega o filhote nove meses. Seu leite
saboroso, um pouco adocicado, possui o sabor tépido
do leite da mulher. Mas uma vez que aquela precisa
sulcar constantemente as ondas, se os mamilos fossem
situados no peito o filhote estaria exposto a todos os
embates possíveis; por isso são situados um pouco
mais abaixo, num lugar mais protegido, sobre o ventre
de onde saiu o pequeno. E o filho se refugia ali e goza
da onda que a mãe rompe para ele.” (Michelet, La
Mer, pág. 238.)
53
digerir e que se lhe acumula em certas partes do
intestino. Outros, porém, sustentam que é o resulta
do de um processo patológico, uma espécie de calculose
intestinal circunscrita. Hoje em dia, o âmbar-gris é
usado quase exclusivamente na fabricação de perfu
mes de luxo, mas na história de seu comércio teve
aplicações tão variadas quanto a imaginação humana:
foi bálsamo propiciatório em rituais religiosos, poma
da afrodisíaca, testemunho de dedicação religiosa
para os peregrinos muçulmanos que visitavam a Pedra
Negra de Meca. Conta-se que foi um aperitivo indis
pensável nos banquetes dos mandarins. Milton fala
do âmbar cinza no Paradise Lost. Shakespeare também
fala, não lembro onde.
54
"Ce qui rend cet hymen touchant et grave, c'est qu’il
y faut l'expresse volonté. Ils n'ont pas l'arme tyrannique
du requin, ces attaches qui maitrisent le plus faible. Au
contraire, leurs fourreaux glissants les séparent, les
éloignent. Ils se fuient malgré eux, échappent, par ce
désespérant abstacle. Dans un si grand accord, on dirait
un combat. Des baleiniers prétendent avoir vu cespectacle
unique. Les amants, d'un brúlant transport, par instants,
dressés et debout, comme les deux tours de Notre-Dame,
gémissant de leurs bras trop courts, entreprenaient de
s'embrasser. Ils retombaient d'un poids immense... L'ours
et 1’homme fuyaient êpouvantés de leurs soupirs. ”
(Michelet, La Mer, págs. 240-242.) Demasiado in
tenso e poético é este trecho de Michelet para merecer
o achatamento de uma tradução.
56
fosse o humor fecundante da Baleia da Groenlândia
que as três primeiras sílabas da palavra literalmente
significam. Naqueles tempos, além disso, o esper
macete era muitíssimo escasso e não era usado para
iluminar, mas apenas como ungüento e medicamen
to. Só se podia obtê-lo do farmacêutico, como se com
pra hoje uma onça de ruibarbo. Acho que, quando
reconhecida a verdadeira natureza do espermacete, os
comerciantes mantiveram seu nome original no in
tuito de aumentar seu valor, por meio dessa extrava
gante alusão à sua escassez.” (Melville, Moby Dick,
cap. XXXII, trad. de C. Pavese.)
..... 57
de cefalópodes que prosperam nas águas temperadas.
Além disso, no comportamento desses gigantes há
diferenças essenciais que os baleeiros aprenderam a
conhecer perfeitamente no interesse de sua própria
integridade. Enquanto as baleias são animais plácidos,
os velhos cachalotes machos, que se tornam solitários,
como é costume dos javalis, se defendem e se vingam.
Muitos barcos baleeiros apanhados entre as mandíbu-
las desses gigantes, depois da arpoação, foram despe
daçados; e muitas tripulações morreram durante a
caçada.” (Albert I, Príncipe de Mônaco, La carrière
d’un Navigateur, págs. 277-78.)
58
farnéis. Das cestas tiram abacaxis, bananas, garrafas de
vinho, peixes. Em Lajes há um pequeno museu das
baleias e quero vê-lo. Mas o ônibus hoje faz poucas
viagens porque é dia de festa, e Lajes fica a uns
quarenta quilômetros, na outra extremidade da ilha.
Sento-me pacientemente num banco, debaixo de
uma palmeira, diante da estranha igreja da pracinha.
Pensei em tomar um banho de mar, o dia está bonito
e a temperatura é agradável. Mas no ferry me alertaram
porque perto do recife há uma baleia morta e o mar
está cheio de tubarões.
Depois de uma longa espera no calor meridiano
vejo um táxi que após deixar um passageiro no peque
no porto está retornando. O motorista me oferece
uma carona até Lajes porque já fez a corrida e está
voltando para casa; o preço que o passageiro pagou
incluía a volta também, e ele não quer dinheiro que
não lhe pertence. Em Lajes só existem dois táxis, me
conta com satisfação, o dele e o do seu primo. A única
rua de Pico corre ao longo dos rochedos, com curvas
e solavancos, sobre um mar espumante. E uma rua
estreita em péssimas condições que atravessa uma
paisagem pedregosa e sombria, com raras casas isola
das. Desço na praça principal de Lajes, que é uma
cidadezinha silenciosa dominada pela incongruência
de um enorme convento setecentista e pela imponência
da coluna de um padrão, o sinal do domínio de pedra
que os navegadores portugueses plantavam por conta
do rei nos lugares onde aportavam.
O museu das baleias é na rua principal, no primei
ro andar de uma casa nobre restaurada. Serve-me de
59
guia um rapaz com um ar ligeiramente idiota que usa
uma linguagem óbvia e cerimoniosa. Interesso-me
particularmente pelos objetos de marfim que os bale
eiros lavravam antigamente, e também pelos diários de
bordo e por certos utensílios arcaicos de formas extra
vagantes. Há algumas velhas fotografias numa parede.
Em uma está escrito: Lajes, 25 de dezembro, 1919.
Como será que fizeram para transportar o cachalote
até o adro da igreja. Terão sido necessárias algumas
juntas de bois. É um cachalote espantosamente gran
de, é inacreditável. Há uns seis ou sete meninos que o
escalaram até a cabeça: apoiaram no focinho uma
escada de corda e de lá de cima abanam chapéus e
lenços. Os baleeiros estão enfileirados em primeiro
plano, com ar orgulhoso e satisfeito. Três usam um
gorro de lã com pompom, um está com um chapéu de
tecido encerado no estilo dos bombeiros. Todos estão
descalços, só um usa botas, deve ser o mestre. Acredito
que depois todos saíram da fotografia, tiraram os
chapéus e entraram na igreja, como se fosse a coisa
mais natural do mundo deixar uma baleia no adro.
Assim foi o Natal em Pico, em 1919.
Quando saio do museu uma surpresa me aguarda.
Do fundo da rua, sempre deserta, desemboca uma
filarmônica. São velhos e jovens vestidos de branco,
usando chapéu de marinheiro; os metais estão bri
lhando e refletem o sol, estão tocando de forma
excelente uma arieta melancólica que parece uma
valsa. São precedidos por uma jovenzinha que leva um
estandarte na extremidade do qual estão enfiados dois
pães e uma pomba de açúcar. Sigo o pequeno cortejo
60
em seu solitário desfile ao longo da rua principal até
uma casa de janelas azuis. A banda se dispõe em
semicírculo e ataca uma marchinha ousada. Abre-se
uma janela e aparece um velho com um ar distinto que
cumprimenta, faz uma mesura, sorri, desaparece e
reaparece pouco depois à soleira da porta. É recebido
por um pequeno aplauso, um aperto de mão do
diretor da banda, um beijo da menina. Certamente é
uma homenagem. A quem ou a que coisa, eu ignoro,
mas não faz muito sentido perguntar. A cerimônia
muito breve termina, a banda se dispõe de novo em
duas filas mas em vez de voltar atrás, dirige-se para o
mar, que é logo ali, no fim da rua. Ainda estão
tocando, e eu os sigo. Quando chegam no mar,
sentam-se sobre as rochas, pousam os instrumentos e
acendem cigarros. Conversam e olham o mar. Gozam
o domingo. A menina deixou o estandarte apoiado
num poste e brinca com uma colega. O ônibus buzina
do outro lado do vilarejo porque às seis fàz a única
viagem para Madalena, e faltam cinco minutos.
61
ocupa o centro da embarcação: é ali que os pedaços de
banha cortados do cachalote que está amarrado num
andaime sob a murada, se transformam em óleo
mediante um cozimento infernal agitado pelo balan
ço e pelo caturros, enquanto redemoinhos de fumaça
nauseabunda se espalham ao redor. E quando o mar
está agitado, durante essa operação, que espetáculo
selvagem! De fato, antes que renunciar ao fruto de
uma presa arrancada heroicamente do ventre do Oce
ano, eles preferem pôr em risco suas vidas. Para
duplicar os cabos que sustentam a baleia no andaime,
alguns homens se aventuram, com o risco da própria
vida, naquela enorme massa oleosa que o mar varre e
que, com sua mole sacolejada pelas ondas, ameaça
despedaçar os flancos da embarcação. Depois de ter
dobrado os cabos, espera-se, prolonga-se o risco até o
momento em que isso já não é tolerável. Então
cortam-se as amarras, e toda a tripulação, com
imprecações de cólera violenta acompanha a carcaça
que se afasta nas vagas deixando um terrível fedor no
lugar dos sonhos de riqueza que havia suscitado.
“A outra espécie de baleeiros é composta por
pessoas mais parecidas com os simples mortais. São os
pescadores das ilhas, ou mesmo agricultores de espí
rito aventureiro, e algumas vezes simples emigrantes
que retornaram ao seu país com o ânimo temperado
por outros temporais nas Américas. Formam tripula
ções de dez homens em dois barcos baleeiros que
pertencem a minúsculas sociedades com um capital
de cerca de trinta mil francos. Um terço dos ganhos
cabe aos acionistas, os outros dois terços são divididos
62
em partes iguais pela tripulação. As canoas baleeiras,
que são admiravelmente construídas para a velocida
de, são equipadas com velas, remos, pagaias, um
timão normal e um timão a remo. Os instrumentos da
caça consistem em vários arpões com a ponta cuidado
samente protegida por uma bainha, com várias lanças
de lâmina bastante afiada e quinhentos ou seiscentos
metros de corda dispostos em espiral dentro de cestos
dos quais desliza em direção a uma forquilha erguida
na proa da embarcação.
“Esses pequenos barcos ficam à espera escondidos
em pequenas praias ou nas enseadas rochosas daquelas
ilhotas inóspitas. Do alto da ilha, uma sentinela
perscruta continuamente o mar como fazem os gajeiros
nos veleiros; e quando avista a coluna do vapor aquoso
que os cachalotes emitem pelos seus respiradouros, a
sentinela reúne os baleeiros com um sinal combinado.
Em poucos minutos, as embarcações ganham o mar,
dirigindo-se para o local em que o drama será consu
mado.” (Albert I, Príncipe de Mônaco, La Carrière
d'un Navigateur, págs. 280-283.)
63
De um regulamento
1. Dos cetáceos
2. Das embarcações
64
utilizadas na caça propriamente dita para ar
poar ou matar os cetáceos.
b) Lanchas. Embarcações a propulsão mecânica
utilizadas para assistir às canoas baleeiras, para
o reboque de tais embarcações e dos cetáceos
mortos. Podem eventualmente desempenhar
funções de caça, circundando e arpoando os
cetáceos, quando for necessário e nos termos
do presente regulamento.
3. Do exercício da pesca
65
impeça a prestação de socorro mútuo em caso de
naufrágio.
Art. 56Em caso de naufrágio, todas as embarca
ções que se encontram nas proximidades do acidente
deverão prestar socorro às vítimas do acidente mesmo
que para tal seja necessário interromper a caça.
Art. 57. Se um homem da tripulação cair no mar
durante as operações de caça, o mestre da embarcação
na qual o acidente se verificou fará cessar todas as
operações, providenciando eventualmente o corte do
cabo e ocupando-se exclusivamente da recuperação
do náufrago.
Art. 57 A. Se no local do acidente se encontrar
uma embarcação comandada por um outro mestre,
essa não poderá recusar a assistência necessária.
Art. 57 B. Se o homem caído no mar for o mestre,
o comando passa ao arpoador, ao qual compete fazer
seguir o regulamento de acordo com o art. 57.
Art. 61. A direção da caça cabe ao mestre mais
antigo, salvo acordo contrário previamente declarado.
Art. 64. No caso de serem encontrados no mar ou
na costa cetáceos mortos ou agonizantes, quem os
encontra deve comunicar imediatamente o fato às
autoridades marítimas, as quais se encarregarão de
proceder à verificação para descobrir eventuais arpões
registrados. Em caso positivo, os cetáceos serão entre
gues aos legítimos proprietários dos arpões. Aquele
que encontrou o cetáceo terá direito a uma remune
ração que será liquidada nos termos do art. 685 do
Código Comercial.
66
Art. 66 É expressamente proibido lançar nos
cetáceos arpões soltos (não atrelados ao barco com
cabo ao barco) quaisquer que sejam as circunstâncias,
e quem o faz não adquire direito algum sobre o
cetáceo arpoado.
Art. 68. Nenhuma embarcação poderá, sem pré
via autorização, cortar os cabos de outra embarcação,
a menos que seja obrigada a isso por motivos de
perigo.
Art. 69. Arpões, cabos, sinais de registro etc.
encontrados num cetáceo por outras embarcações
serão restituídos aos legítimos proprietários sem que
isso implique algum tipo de remuneração ou de
indenização.
Art. 70. É proibido arpoar ou matar baleias do
gênero Balaena, vulgarmente denominadas baleias
francas.
Art. 71. É proibido arpoar ou matar as fêmeas
surpreendidas durante o aleitamento ou os filhotes
ainda em idade de aleitamento.
Art. 72. Para efeito da conservação da espécie e de
um melhor aproveitamento da caça, cabe ao ministro
da Marinha estabelecer as medidas dos cetáceos que
podem ser capturados, estabelecer épocas de interdi
ção da caça, limitar o número dos cetáceos caçáveis e
estabelecer outras medidas restritivas que julgar ne
cessárias.
Art. 73. A captura dos cetáceos para fins científi
cos pode ser efetuada somente com prévia autorização
ministerial.
67 ••
Art. 74. É expressamente proibido qualquer tipo
de caça esportiva.
(Regulamento da caça aos cetáceos, publicado no
Diário do Governo de 19. 5. 1954 e atualmente em
vigor.)
68 .
os Açores estão desertos, não viu? Sim, certamente,
pude perceber, digo, eu lamento. Por quê?, pergunta
ele. É uma pergunta embaraçosa. Porque eu gosto dos
Açores, respondo com pouca lógica. Então vai gostar
deles desertos, contrapõe: vai gostar. E depois sorri
como para desculpar-se de ter sido rude. De qualquer
forma, pense em fazer um seguro de vida, conclui, do
contrário não posso lhe dar a permissão, Eu me
encarrego do seu embarque, falarei com o senhor
Antonio José que talvez zarpe amanhã, parece que há
um grupo chegando. Mas não lhe prometo uma
permissão por mais de dois dias.
69
Uma caçada
70
marinheiro que está conosco, um homem magro e
esbelto, quase um rapaz, com os olhos muito inquie
tos e a pele escura. Vamos observar por nossa conta,
decide, e desliga o rádio. O marinheiro se encarapita
agilmente sobre o único mastro do barco e se empoleira
no cavalete da ponta cruzando as pernas. Ele também
aponta para direita com a mão, por um momento
penso que as tenha avistado, mas ignoro a semiologia
dos baleeiros, o senhor Carlos Eugênio me explica que
a mão aberta, com o indicador para cima, significa
“baleia à vista” e o avisador não fez esse aceno.
Dou uma olhada na chalupa que estamos rebo
cando. Os baleeiros estão tranquilos, riem e conver
sam entre eles mas as palavras não chegam até mim,
parece que estão em uma excursão, São seis, sentados
nas tábuas atravessadas sobre o convés. Mas o arpoador
está em pé e parece acompanhar com atenção os gestos
do nosso avisador: é um homem com uma barriga
enorme e barba cerrada, jovem, não mais de trinta
anos, ouvi que o chamam de Chá Preto, e trabalha
como estivador no porto de Horta. Pertence à coope
rativa baleeira de Faial e me disseram que é um
arpoador de habilidade excepcional.
Dou por conta da baleia quando eia está a menos
de trezentos metros: uma coluna de água jorrando
contra o azul como quando se rompe um cano na rua
de uma grande cidade. O senhor Carlos Eugênio
desligou o motor e a lancha continua avançando por
inércia em direção àquela curiosa forma negra que
parece um petardo enorme sobre a água. Na chalupa,
os baleeiros se preparam em silêncio para as operações
71 .......
de ataque: são tranqüilos e rápidos, resolutos, sabem
de cor os gestos afazer. Remam com braçadas vigoro
sas e pausadas, em um instante estão longe, comple
tam um largo círculo, apontam para a baleia de frente
para evitar a cauda e porque a aproximação pelos lados
os exporia aos olhos dela. Quando estão a uma cente
na de metros, recolhem os remos no barco e içam uma
pequena vela triangular. Todos manobram a vela e as
cordas: só o arpoador fica imóvel na ponta da proa: em
pé, com uma perna flexionada para diante e o arpão
abraçado como se o estivesse pesando, espera concen
trado o momento propício, aquele momento em que
o barco estará perto o bastante para que ele possa
atingir um ponto vital, mas longe o bastante para que
o barco não seja atropelado por um golpe de cauda do
cetáceo ferido. Em poucos segundos tudo se consuma
com rapidez espantosa. O barco dá uma guinada
repentina enquanto o arpão ainda está descrevendo
no ar a sua parábola. O instrumento da morte não é
lançado de cima para baixo, como eu esperava, mas de
baixo para cima, como um dardo; são enormes o peso
do ferro e a velocidade da queda a transformá-lo num
projétil mortal. Quando a enorme cauda se ergue e
fustiga primeiro o ar e depois a água, a chalupa já está
longe, os remadores recomeçaram a remar com fúria
e um estranho jogo de cordas, que até então se
desenvolvia debaixo d’água e que eu não tinha visto,
leva-me a compreender, de repente, que a nossa
lancha também está ligada ao arpão, enquanto a canoa
baleeira soltou o seu cabo. De um cesto de palha
colocado em uma valeta no meio da lancha, começa
72
a se desenrolar uma corda grossa que chia ao deslizar
por uma forquilha da proa, enquanto o marujo que é
pau para toda obra trata de refrescá-la com um balde
d’água para que não se rasgue com o atrito. Depois o
cabo se estica e nós partimos de repente, num salto,
atrás da baleia ferida que foge. O senhor Carlos
Eugênio segura o timão e mastiga a ponta de um
cigarro; o marinheiro com cara de menino vigia,
preocupado, os movimentos do cachalote: segura na
mão uma machadinha afiada, pronto para cortar o
cabo no caso de o cetáceo afundar porque nos arras
taria consigo para debaixo d’água. Mas a corrida
desenfreada dura pouco, talvez nem mesmo um qui
lômetro: a baleia pára de chofre, exausta, e o senhor
Carlos Eugênio precisa acionar a hélice ao contrário a
fim de que a inércia do empurrão não nos faça bater
no cetáceo imóvel. Foi um bom tiro, diz com satisfa
ção, e põe à mostra a sua dentadura brilhante. Como
para confirmar a sua afirmação, a baleia, assobiando,
ergue completamente a cabeça e respira; e o jato que
sibila no ar está rubro de sangue, sobre o mar se alastra
uma poça vermelha e uma poeira de gotas vermelhas,
levada pela brisa, chega até nós e nos suja os rostos e
as roupas. A canoa dos baleeiros se encostou ao lado da
lancha: Chá Preto larga na ponte os seus instrumentos
e depois pula para cima com uma agilidade deveras
insuspeitada para um homem de seu tamanho. Com
preendo que quer guiar o ataque seguinte da lancha,
mas o “mestre” parece não concordar: segue-se uma
confabulação exaltada da qual o marinheiro com cara
de menino não participa. Depois Chá Preto, que
evidentemente levou a melhor, se coloca na proa, na
sua posição de lançador de dardo, agora troca o arpão
por um instrumento de tamanho parecido mas com
ponta afiadíssima, em forma de coração alongado,
como uma alabarda. O senhor Carlos Eugênio avança
com o motor no mínimo, vamos na direção da baleia
que respira imóvel na poça de sangue enquanto a sua
cauda, inquieta, esbofeteia a água com movimentos
espasmódicos. Desta vez o instrumento da morte
baixa do alto, arremessado obliquamente e trespassa a
carne mole como se fosse manteiga. Um mergulho: a
massa enorme desaparece agitando-se sob a água.
Depois aflora de novo a cauda, impotente e dolorosa,
como uma vela negra. E finalmente a enorme cabeça
emerge e então ouço o grito de morte, um lamento
agudo como um assovio, estridente, aflitivo, insupor
tável.
A baleia está morta, flutua imóvel. O sangue
coagulado forma um atol como que de coral. Eu não
tinha me dado conta de que o dia estava acabando, e
o crepúsculo caindo me surpreende. Toda a tripula
ção está ocupada com a operação, faz-se apressada
mente um furo na nadadeira da cauda por onde
passam um cabo com um bastão que serve de trava.
Estamos a mais de dezoito milhas ao largo, me diz o
senhor Carlos Eugênio, vamos precisar de uma noite
inteira para retornar, é um cachalote de umas trinta
toneladas e a lancha terá de navegar em velocidade
muito reduzida. Em um estranho cortejo marinho
guiado pela lancha e encerrado pela baleia, nos dirigi
mos para a ilha de Pico, ao estabelecimento de São
74 .......
Roque. No meio está a canoa dos baleeiros e o senhor
Carlos Eugênio me convida a transferir-me para ela,
assim poderei repousar um pouco; o motor da lancha,
submetido a um grande esforço, faz um barulho
infernal e seria impossível dormir. Encostamos para o
transbordo e ele também vem comigo, confia a lancha
ao marinheiro jovem e a dois remadores que tomam
o nosso lugar. Os baleeiros me preparam uma enxerga
ao lado do leme; caiu a noite e na canoa acenderam
duas lanternas a querosene. Os pescadores estão aca
bados de cansaço, com os rostos tensos e sérios que a
luz das lanternas torna amarelos. Içam avela para não
sermos um peso passivo que aumenta o esforço da
lancha, depois se deitam desordenadamente pelo
assoalho e caem num sono profundo. Chá Preto
dorme de barriga para cima e ronca ruidosamente. O
senhor Carlos Eugênio oferece-me um cigarro e me
fala dos seus dois filhos, que emigraram para a Amé
rica e que ele não vê há seis anos. S ó voltaram uma vez,
me conta, talvez venham no próximo verão, queriam
que eu fosse para junto deles, mas quero morrer aqui,
na minha terra. Fuma lentamente e olha para o céu
estrelado. Mas o senhor, por que quis participar desta
jornada, me pergunta, por simples curiosidade? Hesi
to pensando na resposta: gostaria de responder dizen
do a verdade, mas o receio de que possa ser ofensiva me
detém. Deixo pender uma mão na água. Se esticasse
o braço, quase poderia tocar a enorme barbatana do
animal que estamos rebocando. Talvez porque vocês
estejam em extinção, finalmente lhe digo em voz
baixa, vocês e as baleias, acho que é por isso. Provavel-
75
mente adormeceu, não responde nada. Mas entre os
dedos, ainda brilha a brasa do cigarro. A vela estala de
modo lúgubre, os corpos imóveis no sono são peque
nos montes escuros e a canoa desliza sobre a água
como um navio-fantasma.
76
Mulher de Porto Pim. Uma história
77
que me convida para beber, pede vinho de cheiro
como se fosse um dos nossos, é estrangeiro e finge que
fala como nós, mas bebe pouco e além disso fica
calado e espera que eu fale. Você disse que é escritor
e talvez o seu ofício tenha alguma coisa a ver com o
meu. Todos os livros são tolos, há sempre pouca coisa
verdadeira, e no entanto li tantos nos últimos trinta
anos, não tinha outra coisa para fazer, li também
muitos italianos, naturalmente todos em tradução, o
de que mais gostei se chamava Canaviais no vento, de
uma certa Deledda, você conhece? Ademais, você é
jovem e gosta das mulheres, eu vi como olhava aquela
mulher muito bonita do pescoço comprido, você
olhou para ela a noite toda, não sei se está com ela, que
também olhava para você. Talvez lhe pareça estranho
mas tudo isso me fez lembrar de uma coisa, deve ser
porque bebi demais. Sempre escolhi o exagero na
vida, e isso é uma perdição, mas não se pode fazer nada
quando se nasce assim.
Defronte à nossa casa havia uma atafona, nesta
ilha se chamava assim, era uma espécie de nora que
girava em círculo, agora não existe mais, estou falando
de muito tempo atrás, você nem era nascido. Quando
penso, posso ouvir ainda o rangido, é um dos ruídos
da minha infância que ficou na memória, minha mãe
me mandava com a bilha pegar água e eu, para aliviar
o cansaço acompanhava o movimento com uma
canção de ninar e às vezes dormia mesmo. Além da
nora havia um muro baixo caiado, depois vinha o
precipício e no fundo, o mar. Éramos três irmãos e eu
era o mais moço. Meu pai era um homem lento,
78
comedido nos gestos e nas palavras, com os olhos tão
claros que pareciam de água, o seu barco se chamava
Madrugada, que era também o nome da casa de minha
mãe. Meu pai era baleeiro, como o tinha sido seu pai,
mas em certa época do ano, quando as baleias não
passam, praticava a pesca das moréias, e nós íamos
com ele, e nossa mãe também. Agora não se faz mais
assim, mas quando eu era pequeno era hábito usar um
rito que fazia parte da pesca. As moréias se pescam à
noite, no crescente da lua, e para atraí-las se usava uma
canção que não tinha palavras; era um canto, uma
melodia primeiro baixa e lânguida e depois aguda, eu
nunca ouvi um canto tão triste, parecia que vinha do
fundo do mar ou de almas perdidas na noite, era um
canto antigo como as nossas ilhas, agora ninguém sabe
mais, se perdeu, e talvez seja melhor assim porque
trazia consigo uma maldição ou um destino, como
uma magia. Meu pai saía com o barco, era de noite,
movia os remos devagar, na perpendicular para não
fazer barulho e nós, meus irmãos e minha mãe, nos
sentavamos na falésia e começávamos o canto. Algu
mas vezes os outros se calavam e pediam que eu fizesse
o chamado, porque diziam que a minha voz era mais
melodiosa do que todas as outras e que a ela as moréias
não resistiam. Não acredito que minha voz fosse
melhor do que a dos outros: queriam que eu cantasse
só porque eu era o mais moço e diziam que as moréias
gostam das vozes claras. Talvez fosse uma superstição
sem fundamento, mas isso não importa.
79
Depois crescemos e minha mãe morreu. Meu pai
se tornou ainda mais taciturno e às vezes, de noite,
sentava-se sobre o muro da falésia e olhava o mar.
Agora só saíamos para pescar baleias, nós três éramos
grandes e fortes, e meu pai nos confiou arpões e lanças,
como a sua idade exigia. Depois, um dia, meus irmãos
foram embora. O do meio foi para a América, só
contou que ia no dia da partida, eu fui ao porto para
me despedir, meu pai não foi. O outro foi ser cami
nhoneiro no continente, era um rapaz brincalhão que
sempre tinha gostado do barulho dos motores, quan
do a guarda republicana veio comunicar o acidente eu
estava só em casa e contei a meu pai no jantar.
Continuamos nós dois a pescar baleias. Agora era
mais difícil, era preciso contratar trabalhadores diaris
tas porque em menos de cinco não se pode sair, e meu
pai queria que eu me casasse porque uma casa sem
mulher não é uma verdadeira casa. Mas eu estava com
vinte e cinco anos e gostava de brincar de amor, todos
os domingos descia ao porto e trocava de namorada,
na Europa era a época da guerra e, nos Açores, gente
ia e vinha, cada dia um navio atracava aqui ou ali, e em
Porto Pim se falavam todas as línguas.
Eu a encontrei num domingo, no porto. Estava
vestida de branco, tinha os ombros nus e usava um
chapéu de rendas. Parecia saída de um quadro e não
de um daqueles navios carregados de pessoas que
fugiam para as Américas. Olhei para ela longamente
e ela também olhou para mim. É estranho como o
amor pode entrar dentro de nós. Em mim entrou ao
notar o indício de duas pequenas rugas que tinha em
80
torno dos olhos e pensei assim; já não é tão jovem.
Pensei assim porque talvez para aquele rapaz que eu
era, uma mulher madura parecesse mais velha do que
realmente era. Que tinha pouco mais de trinta anos só
soube muito mais tarde, quando saber a sua idade já
não adiantava. Dei bom-dia a ela e perguntei se podia
ser-lhe útil. Indicou-me a mala que estava a seus pés.
Leve-a ao Bote, disse na minha língua. O Bote não é
um lugar para senhoras, disse eu. Eu não sou uma
senhora, respondeu, sou a nova dona.
No domingo seguinte desci de novo à cidade. O
Bote naquela época era um lugar estranho, não era
propriamente uma hospedaria para pescadores e eu só
tinha entrado lá uma vez. Sabia que existiam dois
reservados nos fundos, diziam que ali se jogava a
dinheiro e a sala do bar tinha um arco baixo, um
espelho grande ornado com arabescos e mesinhas de
figueira. Os clientes eram todos estrangeiros, parece
ría que estavam todos de férias, na verdade passavam
o dia a se espionar, cada um fingindo ser de um país
que não era o seu, e nos intervalos jogavam cartas.
Faial, naqueles anos, era um lugar incrível. Atrás do
balcão ficava um canadense baixo, com as costeletas
pontudas, que se chamava Denis e falava o português
como os de Cabo Verde, eu o conhecia porque aos
sábados costumava ir ao porto para comprar peixe, no
Bote podia-se jantar, só aos domingos à noite. Foi ele
que mais tarde me ensinou o inglês.
Quero falar com a dona, eu disse. A senhora só
vem depois das oito, respondeu com superioridade.
Sentei-me a uma mesa e pedi o jantar. Por volta das
81
nove horas ela entrou, havia outros fregueses, me viu,
me saudou distraidamente e depois se sentou num
canto onde estava um velho senhor de bigodes bran
cos. Só então percebi o quanto era bonita, de uma
beleza que me queimava as têmporas, fora isso que me
atraíra para lá, mas até aquele momento eu não tinha
conseguido compreender com exatidão. E naquele
momento o que compreendi ficou tão claro dentro de
mim que quase tive uma vertigem. Passei a noite
olhando para ela, com a cabeça entre os punhos, e
quando saiu, eu a segui à distância. Ela caminhava
ligeiro, sem olhar para trás, como quem não se preo
cupa de estar sendo seguido, transpôs a porta da
muralha de Porto Pim e começou a descer a enseada.
No outro lado do golfo, onde termina o promontório,
isolada entre as rochas, entre um canavial e uma
palmeira, há uma casa de pedra. Talvez você já a tenha
visto, agora é uma casa desabitada e as janelas estão
caindo, tem qualquer coisa de sinistro, qualquer dia o
teto vai desabar, se é que já não desabou. Ela morava
lá, mas então era uma casa branca com alizares azuis
nas portas e janelas. Entrou e fechou a porta e a luz se
apagou. Eu me sentei sobre um rochedo e esperei. No
meio da noite uma janela se iluminou, ela se debruçou
e eu a olhei. As noites são silenciosas em Porto Pim,
basta sussurrar no escuro para ser ouvido à distância.
Deixe-me entrar, supliquei. Ela fechou a persiana e
apagou a luz. A lua estava surgindo, com um véu
vermelho de lua de verão. Eu sentia um tormento, a
água se agitava em torno de mim, tudo era tão intenso
e tão inalcançável que me lembrei de quando era
82
criança e à noite chamava as moréias da falésia: e então
me ocorreu uma fantasia, não soube me conter e
comecei a cantar aquele canto. Eu o cantei muito
suavemente como um lamento ou uma súplica, com
uma mão na orelha para guiar a voz. Pouco depois a
porta se abriu e eu entrei na escuridão da casa e me
encontrei entre os braços dela. Meu nome é Yeborath,
foi só o que disse.
Você sabe o que é a traição? A traição, a verdadei
ra, é quando você sente vergonha e quer ser um outro.
Eu quis ser um outro quando fui me despedir do meu
pai e seus olhos me seguiam enquanto eu pegava o
arpão e o recobria com a lona encerada e o pendurava
num prego da cozinha e punha a tiracolo a viola que
ele me dera pelos meus vinte anos. Decidi mudar de
profissão, disse rapidamente, vou cantar num local de
Porto Pim, venho visitá-lo no sábado. Mas naquele
sábado não fui, nem no sábado seguinte e, mentindo
a mim mesmo, me dizia que iria no próximo. E assim
chegou o outono, passou o inverno e eu continuava
cantando. Tinha também outras pequenas tarefas
porque às vezes certos fregueses bebiam demais e para
levantá-los e botá-los para fora era necessário um
braço robusto que Denis não possuía. E, além disso,
escutava o que diziam os fregueses que fingiam estar
de férias, é fácil escutar as confidências dos outros
quando se é cantor de taberna e, como você vê,
também é fácil fazê-las. Ela me esperava na casa de
Porto Pim e agora eu já não precisava bater à porta. Eu
lhe perguntava: quem é você, de onde veio?, por que
não vamos para longe desses indivíduos absurdos que
83
fingem jogar baralho, quero ficar com você para
sempre. Ela ria e me deixava intuir a razão daquela sua
vida, dizendo: espere um pouco mais e iremos embora
juntos, precisa confiar em mim, mais não posso lhe
dizer. Depois ficava nua na janela, olhava a lua e me
dizia: cante o seu chamamento, mas em voz baixa. E
enquanto eu cantava, me pedia que a amasse e eu a
possuía em pé enquanto ela olhava a noite como se
estivesse esperando alguma coisa.
Aconteceu em dez de agosto. Na noite de São
Lourenço o céu fica cheio de estrelas cadentes, contei
treze delas voltando para casa. Encontrei a porta
fechada e bati. Depois bati de novo, com mais força
porque a luz estava acesa. Ela veio abrir e ficou à porta
mas eu a afastei com um braço. Parto amanhã, disse,
a pessoa que eu esperava voltou. Sorria como se me
agradecesse, e quem sabe por que pensei que ela estava
pensando no meu canto. No fundo da sala uma figura
se mexeu. Era um homem idoso e estava se vestindo.
Que é que quer?, perguntou-lhe naquela língua que
agora eu compreendia. Está bêbado, disse ela, já foi
baleeiro mas deixou o arpão pela viola e durante a sua
ausência foi meu empregado. Mande-o embora, disse
ele sem olhar para mim.
Havia um reflexo claro na enseada de Porto Pim.
Percorrí o golfo como num sonho, quando a gente dá
por si já está na outra ponta da paisagem. Não pensei
em nada porque não queria pensar. A casa de meu pai
estava escura porque ele se deitava cedo. Mas não
estava dormindo, como acontece com freqüência
com os velhos que jazem imóveis no escuro como se
84
isso fosse uma espécie de sono. Entrei sem acender a
lanterna mas ele me ouviu. Você voltou, murmurou.
Eu fui até a parede do fundo e peguei o meu arpão. Eu
me movimentava à luz da lua. Não se pescam baleias
a esta hora da noite, disse ele da sua enxerga. É uma
moréia, disse eu. Não sei se compreendeu o que queria
dizer mas não respondeu e não se mexeu. Pareceu-me
que fizesse um gesto de saudação com a mão, mas
talvez tenha sido a minha imaginação ou um jogo de
sombras da penumbra. Não mais o revi, morreu
muito antes que eu tivesse cumprido a minha senten
ça. Também não revi meu irmão. No ano passado
recebi uma fotografia dele, é um homem gordo com
os cabelos brancos cercado por um grupo de desco
nhecidos que devem ser os filhos e as noras, estão
sentados na varanda de uma casa de madeira e as cores
são exageradas como nos cartões-postais. Dizia que se
eu quisesse ir para onde ele está que há trabalho para
todos e que a vida lá é fácil. Pareceu-me quase ridículo.
Que quer dizer uma vida fácil, quando a vida já se foi?
E se você se demorar ainda um pouco e a voz não
falhar, esta noite vou lhe cantar a melodia que selou o
destino desta minha vida. Nunca mais a cantei em 30
anos e pode ser que a voz não agüente. Não sei por que
o faço. É um presente para aquela mulher do pescoço
comprido e para aquela força que um rosto tem de
aflorar num outro, e isso talvez tenha me comovido.
E para você, italiano, que vem aqui todas as noites e
não esconde que está ávido de histórias verdadeiras
para transformá-las em papel, dou-lhe esta história
que acaba de ouvir, Pode até colocar o nome de quem
85
a contou, mas não aquele com o qual sou conhecido
nesta taberna, que é um nome para os turistas de
passagem. Escreva que esta é a verdadeira história de
Lucas Eduino, que matou com o arpão a mulher que
acreditou que era sua, em Porto Pim.
Ah!, só sobre uma coisa ela não tinha mentido
para mim, descobri durante o processo. Chamava-se
mesmo Yeborath. Se é que isso importa.
86
Post Scriptum
87 .......
vezes cantam, mas só para si, e o canto deles não é um
chamamento mas uma forma de lamento comovente.
Cansam-se depressa e quando a noite cai deitam-se
sobre as pequenas ilhas que os conduzem e talvez
durmam ou olhem a lua. Deslizam em silêncio e
percebe-se que estão tristes.
88
Apêndice
91
Uma nota
93
(jatos de vapor, gêiseres, fontes e charcos quentes, etc.) são
muitos os lagos vulcânicos, que ocuparam antigas crateras, e a
paisagem é freqüentemente interrompida por profundos sulcos
cavados na lava ardente. O interior e as montanhas são de uma
beleza selvagem e não raro lúgubre. O cume mais alto, com 2.345
metros, é o Pico, na ilha do mesmo nome. As erupções vulcânicas
de que temos notícia são inúmeras: os terremotos mais assusta
dores ocorreram em 1522, em 1538, em 1591, em 1630, em
1755, em 1810, em 1862, em 1884, e em 1957. Os efeitos do
terremoto de 1978, que que atingiram particularmente a ilha
Terceira, são bem visíveis para o viajante que faz sua parada em
Angra. No curso dessa incessante atividade vulcânica, a paisagem
dos Açores passou por notáveis mutações e incontáveis ilhotas
afloraram e desapareceram. O fato mais curioso a esse respeito foi
descrito pelo capitão inglês Tillard que, a bordo do baixei de
guerra Sabrina, assistiu, em 1810, ao nascimento de uma ilhazinha
sobre a qual ele fez desembarcar dois homens com a bandeira
inglesa, tomando posse em nome da Inglaterra e batizando-a
Sabrina. No dia seguinte, porém, antes de levantar âncora, o
capitão Tillard constatou desapontado que a ilha de Sabrina
havia desaparecido, tendo o mar retornado à tranquilidade de
sempre.
O clima dos Açores é ameno, com chuvas abundantes mas
de breve duração e verões muito quentes. A natureza é exuberante
e inúmeras as espécies vegetais. A uma flora de tipo mediterrâneo
no qual predominam o cedro, a laranja, a videira e o pinheiro,
sobrepõe-se a vegetação tropical na qual se destacam o abacaxi,
a banana, o maracujá e uma grande variedade de flores. São
abundantes os pássaros eas borboletas. Não se conhecem répteis.
A caça à baleia, segundoos métodos arcaicos descritos neste livro,
só é praticada atualmente nas ilhas Pico e Faial. Em nosso século,
uma forte emigração cujos motivos são de natureza essencial
mente econômica, despovoou bastante o arquipélago. Corvo,
Flores e Santa Maria estão quase desabitadas.
94
Alguns livros
95