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Antonio Tabucchi

MULHER DE PORTO PIM

Tradução de
RACHEL GUTIÉRREZ

RIO DE JANEIRO - 1999

Rxccr
Titulo original
DONNA Dl PORTO PIM

Copyright © 1983 by Antonio Tabucchi

Direitos para a lingua portuguesa reservados


com exclusividade para o Brasil à
EDITORA ROCCO LTDA.
Rua Rodrigo Silva, 26 - 5? andar
20011-040 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: 507-2000 - Fax: 507-2244
Printed in lBrazillImpresso no Brasil

preparação de originais
MARIA ALICE PAES BARRETO

CIP-Brasil. Cata!ogaçâo-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

TI I8m Tabucchi, Antonio, 1943-


Mulher de Porto Pim I Antonio Tabucchi; tradução de
Rachel Gutiérrez. - Rio de Janeiro : Rocco, 1999

Tradução de: Donna di Porto Pim


ISBN 85-325-0906-1

I, Conto italiano. I. Gutién-ez, Rachel. II. Titulo.

CDD - 853
98-0998 CDU - 850-3
Sumário

Prólogo........................................................................ 7
Hespérides. Sonho em forma de carta........................ 11

I. NAUFRÁGIOS, DESPOJOS, PASSAGENS,


DISTÂNCIAS
Pequenas baleias azuis passeando pelos Açores.
Fragmento de uma história..................................... 19
Outros fragmentos...................................................... 26
Antero de Quental. Uma vida..................................... 39

II. BALEIAS E BALEEIROS


Alto-mar...................................................................... 49
De um regulamento.................................................... 64
Uma caçada................................................................. 70
Mulher de Porto Pim. Uma história............................ 77
Post Scriptum. Uma baleia vê os homens................ .. .87
Apêndice. Um mapa, uma nota, alguns livros. .......... 89
Prólogo

Tenho muito carinho pelos honestos livros de viagem


dos quais sempre fui assíduo leitor. Eles possuem a
virtude de oferecer um alhures teórico e plausível ao
nosso onde imprescindível e sólido. Mas uma lealdade
elementar me impõe a necessidade de alertar os que
poderiam esperar deste pequeno livro um diário de
viagem, gênero que pressupõe uma escrita tempestiva
ou uma memória inatingível pelas imaginações que a
memória produz - qualidade que por um senso de
realismo paradoxal desisti de perseguir. Tendo chega­
do a uma idade na qual me parece mais digno cultivar
ilusões do que veleidades, resignei-me ao destino de
escrever de acordo com a minha índole.
Posto isso, seria porém desonesto fazer passar
estas páginas como pura ficção: a musa que as ditou,
de tipo confidencial, diria quase de bolso, nem de
longe pode ser comparada àquela majestosa de
Raymond Roussel, que foi capaz de escrever suas
Impressions d'Afrique sem descer de seu iate. Com
efeito, coloquei o pé na terra e este livrinho se originou

7
além da minha disponibilidade à mentira, de uma
temporada que passei nas ilhas dos Açores. O tema
principal são as baleias que, mais do que animais,
pareceriam metáforas; e com elas os naufrágios, que
em sua acepção de atos malogrados e fracassos, pode­
ríam igualmente parecer metafóricos. O respeito que
sinto pelas imaginações que conceberam Jonas e o
capitão Achab me salva, por sorte, da pretensão de me
insinuar, com a literatura, entre os mitos e os fantas­
mas que povoam o nosso imaginário. Se falei de
baleias e de naufrágios é só porque nos Açores, umas
e outros gozam de uma inequívoca concretude.
Neste pequeno volume há, no entanto, duas
histórias que não seria totalmente impróprio definir
como ficções. A primeira é, em seus fatos essenciais, a
vida de Antero de Quental, grande e infeliz poeta que
mediu os abismos do universo e da alma humana com
o breve compasso do soneto. Diante da sugestão de
Octavio Paz de que os poetas não têm biografia e que
suas biografias são suas vidas, é a ele que devo o fato de
tê-la narrado como se se tratasse de uma vida imaginá­
ria. Aliás, as vidas que se perdem pelo caminho, como
a de Antero, são talvez as que melhor toleram um
tratamento segundo os cânones do hipotético. Devo
a história que encerra o volume, por outro lado, a um
homem que suponho ter encontrado numa taberna
de Porto Pim, Não elimino a possibilidade de tê-la
modificado com os acréscimos e as razões próprias da
presunção de quem acredita estar extraindo da histó­
ria de uma vida o sentido de uma vida. Talvez sirva de

8
atenuante confessar que naquele local bebidas alcoóli­
cas eram consumidas em abundância e que me parece
indelicado negar-me aos costumes vigentes.
O fragmento de história intitulado Pequenas ba­
leias azuis que passeiam pelos Açores pode ser conside­
rado uma ficção dirigida, no sentido de que me foi
sugerida, à imaginação, por um trecho de conversa
que ouvi por acaso. Nem mesmo eu conheço o que
veio antes e o que se seguiu na história. Presumo
tratar-se de uma espécie de naufrágio: daí ter sido
incluído no capítulo em que foi incluído.
O trecho intitulado Sonho em forma de carta se
deve em parte a uma leitura de Platão e em parte ao
balanço de um ônibus lento que ia de Horta a
Almoxarife. Pode ser que ao passar do estado de sonho
para o estado de texto tenha sofrido péssimas altera­
ções, mas cada um tem o direito de tratar os próprios
sonhos como lhe aprouver. Ao contrário, as páginas
intituladas Uma caçada não aspiram senão a ser uma
crônica e a única virtude que reivindicam é a de serem
fidedignas. Similarmente, muitas outras páginas, e
me parece supérfluo dizer quais, são meras transcri­
ções do real ou do que outros escreveram. Por fim, o
escrito intitulado Uma baleia vê os homens, para além
de um velho vício meu de espiar as coisas pelo outro
lado, inspira-se, sem dissimulação, numa poesia de
Carlos Drummond de Andrade, que antes e melhor
do que eu soube ver os homens através dos olhos
dolorosos de um moroso animal. E a Drummond
aquele texto é humildemente dedicado, também como

9
recordação de uma tarde em Ipanema quando, na casa
de Plínio Doyle, ele me falou da sua infância e do
cometa Halley.

Vecchiano, 23 de setembro de 1982

..... 10
Hespérides.
Sonho em forma de carta

Depois de ter velejado por muitos dias e por muitas


noites, compreendi que o Ocidente não tem fim mas
continua a se deslocar conosco, e que podemos segui-
lo a nosso bel-prazer sem jamais alcançá-lo. Assim é o
mar desconhecido que fica além das Colunas, mar
sem fim e sempre igual, do qual emergem, como a
pequena espinha dorsal de um colosso desaparecido,
pequenas cristas de ilhas, nós de rochas perdidos no
azul.
A primeira ilha que se encontra, vista do mar, é
uma extensão de verde em cujo centro frutos brilham
como gemas, e às vezes estranhos pássaros de penas
purpúreas se confundem com eles. As costas são ina­
cessíveis, de rocha negra habitada por falcões mari­
nhos que choram quando o crepúsculo desce e que
esvoaçam inquietos com um sinistro ar de tristeza. As
chuvas são abundantes e o sol impiedoso: e graças a
esse clima e a essa terra negra e rica as árvores são
altíssimas, os bosques luxuriantes e as flores copiosas:
grandes flores azuis e rosa, carnudas como frutos, que

11
jamais vi em outro lugar. As outras ilhas são mais
rochosas, mas sempre ricas de flores e de frutos; e
grande parte de seu sustento, os habitantes extraem
dos bosques: e, o resto, do mar, que tem águas mornas
e repletas de peixes.
Os homens são claros, os olhos atônitos como se
neles pairasse o espanto de um espetáculo visto e
esquecido, são silenciosos e solitários, mas não são
tristes, e riem amiúde e por nada, feito crianças. As
mulheres são belas e altivas, com as maçãs do rosto
salientes e a testa larga, andam com jarras na cabeça e
ao descer as escadas íngremes que levam à água, nada
de seus corpos se move, a ponto de parecerem estátuas
que tenham recebido de um deus o dom de andar.
Essa gente não tem rei e n|o conhece as castas. Não há
guerreiros porque não têm necessidade de guerrear,
não havendo vizinhos; há sacerdotes, mas de uma
forma muito especial, que lhe contarei adiante, e
qualquer um pode tornar-se sacerdote, até o mais
humilde camponês e o mendigo. O panteão deles não
é habitado por deuses como os nossos que presidem o
céu, a terra, o mar, os mundos inferiores, os bosques,
as colheitas, a guerra e a paz, e as coisas dos homens.
São, ao contrário, deuses do espírito, do sentimento e
das paixões; nove são os principais, como as ilhas, e
cada um tem o seu templo numa ilha diferente.
O deus da Saudade e da Nostalgia é um menino
com cara de velho. Seu templo se ergue na ilha mais
distante, num vale defendido por montanhas inaces­
síveis, perto de um lago, em uma zona desolada e
selvagem. O vale está sempre coberto por uma bruma

12
tênue como um véu, o vento murmura nas altas faias
e o lugar é de uma grande melancolia. Para se chegar
ao templo é preciso percorrer uma senda escavada na
rocha que se assemelha ao leito de uma torrente
desaparecida: e pelo caminho, encontram-se estra­
nhos esqueletos de animais enormes e desconhecidos,
talvez peixes, talvez pássaros; e conchas; e pedras
rosadas como a madrepérola. Chamei de templo uma
construção que melhor seria chamar de casebre: por­
que o deus da Saudade e da Nostalgia não pode morar
num palácio ou numa casa suntuosa, mas em uma
morada pobre como um pranto que se instala entre as
coisas deste mundo com a mesma vergonha com que
uma dor secreta na nossa alma. Pois esse deus não se
refere apenas à Saudade e à Nostalgia, sua divindade
se estende a uma zona do espírito que hospeda o
remorso, a dor pelo que foi e que não causa mais dor
mas é somente a lembrança da dor e a dor por aquilo
que não foi mas poderia ter sido, e essa é a mais
pungente das dores. Os homens vão a ele vestidos de
andrajos miseráveis e as mulheres cobertas por mantos
escuros; todos ficam em silêncio e por vezes se ouve
chorar, na noite, quando a lua ilumina de prata o vale
e os peregrinos estendidos sobre a relva embalam a
saudade de suas vidas.
O deus do Ódio é um pequeno cão amarelo, de
aspecto macilento e o seu templo se ergue numa ilha
minúscula em forma de cone: e para chegar até lá são
necessários muitos dias e muitas noites de viagem; e só
o ódio verdadeiro, o que incha o coração de forma
intolerável e compreende a inveja e o ciúme, pode

13
induzir os infelizes a uma travessia tão árdua. Existem
também, o deus da Loucura e o da Piedade, o deus da
Magnanimidade e o do Egoísmo: mas eu nunca os
visitei e sobre esses só ouvi vagos e fantasiosos relatos.
De seu deus mais importante, que me parece ser
o pai de todos os deuses e do céu e da terra, ouvi
histórias muito diferentes e não pude ver seu templo
nem aproximar-me de sua ilha; não porque os estran­
geiros ali não sejam tolerados, mas porque mesmo os
cidadãos dessa república só podem aceder à ilha após
terem atingido uma disposição de espírito que rara­
mente se consegue - e depois não voltam mais. Em sua
ilha ergue-se um templo que os habitantes dessas
regiões denominam de um modo que eu poderia
traduzir como “As Maravilhosas Moradas”, que con­
sistem numa cidade totalmente virtual, na medida em
que não existem edifícios, mas apenas a sua planta
traçada no terreno. Tal cidade tem a forma de um
tabuleiro circular que se estende por muitas milhas: e
todos os dias os peregrinos, com um mero giz, movem
a seu bel-prazer os edifícios como se fossem peças de
xadrez, portanto a cidade é móvel e variável e sua
fisionomia muda constantemente. No centro do ta­
buleiro ergue-se uma torre, em cima da qual repousa
uma enorme esfera dourada, que lembra vagamente a
fruta que é abundante nos jardins dessas ilhas. E essa
esfera é o deus. Não me foi possível descobrir quem
seja exatamente esse deus: as definições que até agora
me deram são imprecisas e reticentes, e talvez pouco
compreensíveis para o estrangeiro. Deduzo que ele
tenha relação com a idéia da completude, da plenitu-

..... 14
de e da perfeição: uma idéia altamente abstrata e
pouco compreensível para o intelecto humano. E é
por isso que pensei tratar-se do deus da Felicidade:
mas a felicidade de quem compreendeu tão plena­
mente o sentido da vida a ponto que a morte já não
tem importância alguma; e é por isso que os poucos
eleitos que vão homenageá-lo não regressam mais.
Velando esse deus, foi posto um idiota com cara de
bobo e fala desconexa, que talvez mantenha contato
com o deus por vias misteriosas que a razão desconhe­
ce. Quando manifestei o desejo de render-lhe home­
nagem, as pessoas riram de mim e, com um ar de afeto
profundo, que talvez contivesse uma ponta de com­
paixão, me beijaram as faces.
No entanto, eu também pude render homena­
gem ao deus do Amor, cujo templo se ergue numa ilha
de praias douradas e arqueadas, sobre a areia clara
levemente tocada pelo mar. E a imagem do deus não
é um ídolo nem qualquer coisa visível, mas um som,
o som puro da água marinha que irrompe no templo
através de um canal escavado na rocha, e que se quebra
numa piscina secreta: e ali, por causa da forma das
paredes e da amplitude da construção, o som se
reproduz num eco infinito que arrebata quem o ouve
e provoca uma espécie de embriaguez ou de vertigem.
E a vários e estranhos efeitos se expõe quem honra esse
deus, porque o seu princípio comanda a vida, mas é
um princípio bizarro e caprichoso; e se é verdade que
ele é a alma e a concórdia dos elementos, também
pode produzir ilusões, desvarios e visões. E eu assisti
nessa ilha a espetáculos que me perturbaram por sua

15
inocente verdade: a ponto de duvidar se tais coisas
existiam real mente ou se nâo seriam, antes, fantasmas
do meu sentimento que saíam de mim e, no ar, adqui­
riam aparência real por eu ter me exposto ao som
feiticeiro do deus: e pensando assim, tomei uma senda
que leva ao ponto mais alto da ilha, de onde se pode
ver o mar por todos os lados. E então me dei conta de
que a ilha estava deserta, de que não havia templo
algum na praia e que as figuras e os vários rostos do
amor que eu tinha visto como quadros vivos e que
compreendiam múltiplas gradações do espírito como
a amizade, a ternura, a gratidão, o orgulho e a vaidade;
todos esses rostos, que eu acreditava ter visto em
forma humana, eram apenas miragens provocadas em
mim por sabe-se lá qual sortilégio. E assim cheguei
bem no alto do promontório e, ao observar o mar
infinito, enquanto me entregava ao desconforto o
desengano que provoca, uma nuvem azul caiu sobre
mim e me transportou num sonho: e sonhei que te
escrevia esta carta, e que eu não era o grego que zarpara
em busca do Ocidente para nunca mais voltar, mas
que estava apenas sonhando.

16 .......
I

Naufrágios, despojos,
passagens, distâncias
Pequenas baleias azuis
passeando pelos Açores.
Fragmento de uma história

Deve-me tudo, disse o homem com veemência, tudo:


dinheiro e sucesso. Eu a fiz, eu a plasmei com estas
mãos, posso dizer. E enquanto falava, olhou para as
mãos abrindo e fechando os dedos num gesto estra­
nho, como se quisesse agarrar uma sombra.
A pequena lancha começou a mudar de direção e
uma rajada de vento desalinhou os cabelos da mulher.
Não fale assim, Marcei, eu lhe peço, murmurou
olhando os próprios sapatos, abaixe a voz, estão nos
observando. Era loira e usava grandes óculos de sol
com lentes esfumadas. O homem sacudiu ligeiramen­
te a cabeça, um sintoma de aborrecimento. Não
compreendem nada mesmo, retrucou. Jogou no mar
o toco de cigarro e tocou na ponta do nariz como para
afastar um inseto. Lady Macbeth, disse com ironia, a
grande trágica. Sabe como se chamava o lugar onde a
encontrei? Chamava-se “La Baguette”, e ela não era
propriamente a Lady Macbeth, sabe o que fazia? A
mulher tirou os óculos e os esfregou nervosamente na
camiseta. Por favor, Marcei, disse. Mostrava a bunda

19
para uma platéia de velhos safados, a grande trágica,
isso é o que fazia. Tornou a espantar o invisível inseto
da ponta do nariz. E ainda tenho as fotografias, disse.
O marinheiro que recolhia as passagens parou
diante deles e a mulher remexeu na bolsa. Pergunte-
lhe quanto tempo ainda demora, disse o homem,
estou me sentindo mal, esta banheira me embrulha o
estômago. A mulher esmerou-se em formular a per­
gunta naquela língua estranha e o marinheiro respon­
deu sorrindo. Uma hora e meia mais ou menos,
traduziu ela, a lancha faz uma parada de duas horas e
depois volta. Colocou novamente os óculos e arru­
mou a echarpe. As coisas nem sempre são como
parecem, disse. Quais coisas?, perguntou ele. Ela deu
um vago sorriso. As coisas, disse. E depois continuou:
estava pensando em Albertine. O homem fez uma
careta de impaciência. ‘Albertine, disse como que
avaliando o nome, Albertine. Sabe como se chamava
a grande trágica no tempo da “Baguette”? Chamava-
se Carole, Carole Don-Don. Engraçadinho, não é?
Voltou-se para o mar com ar ofendido e não conteve
uma pequena exclamação: Olhe!, e apontou o sul com
o dedo. A mulher voltou-se e também olhou. No
horizonte via-se o cone verde da ilha emergindo
nitidamente da água. Estamos chegando, disse o
homem todo contente, acho que vamos levar menos
de uma hora e meia. Depois piscou os olhos e se
apoiou no parapeito. Tem rochedos também, acres­
centou. Moveu o braço para a esquerda e indicou duas
saliências cor de turquesa, como dois chapéus pousa­
dos sobre a água. Que rochas feias, disse, parecem

20
almofadas. Não estou vendo, disse a mulher. Lá, um
pouco mais à esquerda, bem em frente ao meu dedo,
está vendo?, disse Marcei. Passou o braço direito sobre
os ombros da mulher e manteve a mão apontada para
a frente. Bem na direção do meu dedo, repetiu.
O cobrador tinha se sentado num banco ao lado
do parapeito, terminara o seu turno e estava observan­
do os movimentos deles. Talvez intuísse o significado
da conversa porque se aproximou sorrindo e falou à
mulher com ar divertido. Ela escutou com atenção e
depois exclamou: naãao!, e levou uma mão à boca com
jeito brejeiro e infantil como se contivesse o riso. Que
foi que disse?, perguntou o homem com aquele ar
ligeiramente aparvalhado de quem não acompanha
uma conversa. A mulher dirigiu ao cobrador um olhar
de cumplicidade. Ria com os olhos e era muito bonita.
Disse que não são rochedos, falou, mantendo, de
propósito, em suspense o que ficara sabendo. O
homem a olhou com um ar de interrogação e talvez
um pouco aborrecido. São pequenas baleias azuis
passeando pelos Açores, exclamou ela, foi exatamente
o que disse. E finalmente soltou a risada contida, uma
risada curta e estridente. Inopinadamente mudou de
expressão e ajeitou os cabelos que o vento jogava em
seu rosto. Sabe que no aeroporto confundi um outro
com você? disse revelando candidamente a sua associ­
ação de idéias. Não tinha sequer estatura e usava uma
camisa incrível que você não usaria nem no carnaval,
não é estranho? O homem fez um gesto com a mão
para pedir a palavra: fiquei no hotel, você sabe, o prazo
se aproxima e o texto ainda precisa ser revisto. Mas ela

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não se deixou interromper. Deve ser porque pensei
muito em você continuou, nestas ilhas, ao sol. Agora
falava quase baixo, como se falasse consigo mesma.
Não fiz outra coisa senão pensar em você, todo esse
tempo, choveu muito, eu via você sentado numa
praia, acho que foi uma longa demora. O homem
tomou-lhe a mão. Para mim também, disse, mas
estive pouco nas praias, mais do que qualquer outra
coisa, o que vi foi a máquina de escrever. E chove aqui
também, se chove!, nem vai acreditar como, cada
pancada. A mulher sorriu. Nem lhe perguntei se
conseguiu, e pensar que se a teoria valesse alguma
coisa, eu também teria escrito dez comédias, de tanto
imaginar a sua: diga-me como é, não agüento mais de
curiosidade. Oh, digamos que é uma releitura de
Ibsen, no gênero cômico, disse ele sem esconder um
certo entusiasmo, cômico mas um pouco azedo, como
costumam ser as minhas coisas, e do ponto de vista
dela. Em que sentido?, perguntou a mulher. Bem,
disse o homem com convicção, para começar me
parece que na atual situação, é oportuno ver as coisas
do ponto de vista dela, se eu quiser que se fale da
minha peça, embora eu não a tenha escrito por esse
motivo, evidentemente. A história, no fundo, é banal,
é o fim de um relacionamento, mas todas as histórias
são banais, o importante é o ponto de vista, e eu salvo
a mulher, é ela a verdadeira protagonista, ele é egoísta
e medíocre, nem sequer se dá conta do que está
perdendo. Compreende?
A mulher concordou. Acho que sim, disse, não
tenho certeza. De qualquer forma, escrevi outras

22
coisas, retomou ele, estas ilhas são de um tédio mortal,
para passar o tempo só resta escrever. E além disso eu
queria me testar numa dimensão diferente, tenho
escrito ficção a vida toda. A mim parece mais nobre,
disse a mulher, ao menos é mais gratuita, e por isso,
como dizer?, mais leve... Oh, sim, riu o homem, a
delicadeza: par délicatesse j’ai perdu ma vie. Mas num
dado momento é preciso ter a coragem de se avaliar
diante da realidade da nossa própria vida. Além disso,
veja, as pessoas estão sequiosas de vida real, estão
cansadas da fantasia dos romancistas sem fantasia. A
mulher perguntou bem baixinho: são memórias? Havia
uma vibração ligeiramente ansiosa em sua voz suave.
De certa forma, disse ele, mas sem a elaboração das
interpretações e da lembrança; os fatos nus e crus: são
esses que contam. Vai ser um escândalo, disse a
mulher. Digamos que dará o que falar, corrigiu ele. A
mulher ficou meio pensativa. Já tem título?, pergun­
tou. Talvez Le regard sans école, disse ele, o que você
acha? Acho engraçado, disse ela.
A lancha deu uma virada muito larga e começou
a costear a ilha. Da pequena chaminé saíam lufadas de
fumaça escura com um forte cheiro de gasolina e o
motor assumira um ritmo pacato, como se marchasse
por complacência. Eis por que se leva tanto tempo,
disse o homem, o cais deve ficar no outro lado da ilha.
Sabe, Marcei, retomou a mulher como se perse­
guisse uma idéia, neste inverno passei muito tempo
com Albertine. A lancha seguia em frente com peque­
nos solavancos como se o motor estivesse falhando.
Passaram diante de uma igrejinha bem na beira do

23
mar e estavam tão próximos que quase podiam distin­
guir a fisionomia das pessoas que estavam entrando na
igreja. Os sinos que chamavam para a missa de domin­
go tinham um som desafinado, claudicante.
O quê? O homem espantou o seu inseto invisível
da ponta do nariz. Mas o que é que você está dizendo?,
disse. No seu rosto havia espanto e uma grande
decepção. Fizemos muita companhia uma à outra,
explicou ela. É importante fazer-se companhia na
vida, você não acha? O homem levantou-se e apoiou-
se no parapeito, depois sentou-se outra vez na poltro­
na. Mas o que é que você está dizendo, repetiu, você
ficou louca? Parecia muito inquieto e não conseguia
manter as pernas paradas. É uma mulher infeliz e
generosa, disse ela, sempre acompanhando o próprio
raciocínio, acredito que gostou muito de você. O
homem abriu os braços num gesto desconsolado e
murmurou qualquer coisa incompreensível. Ouça,
deixemos isso para lá, disse enfim com esforço, e veja,
estamos chegando.
A lancha estava se preparando para atracar. Dois
homens de camiseta, na popa, desenrolavam a corda
da amarra e gritavam frases na direção de um terceiro
homem em pé sobre o atracadouro que os olhava com
as mãos à cintura. Uma pequena multidão de parentes
estava esperando os passageiros e fazia sinais de sauda­
ção. Na primeira fila estavam duas velhotas de lenço
preto e uma menina vestida de primeira comunhão
pulando num pé só.
E para a comédia, perguntou subitamente a mu­
lher como se tivesse se lembrado de repente de uma

24
pergunta esquecida, você já tem título para a comé­
dia?, não me disse. Seu companheiro estava arruman­
do jornais e uma pequena máquina fotográfica numa
bolsa com a sigla de uma companhia aérea. Pensei em
cem nomes diferentes e descartei todos, disse debru­
çado sobre a bolsa, não há nenhum que sirva direito
é preciso um título sutil mas também muito sonoro
para uma coisa como essa. Ergueu-se e no seu olhar se
acendeu uma vaga expressão de esperança. Por quê?,
perguntou. Nada, disse ela, por nada, pensava num
título possível, mas talvez seja muito frívolo, destoaria
num cartaz de anúncio, e além disso nada tem a ver
com o enredo, resultaria totalmente incoerente. Mas
enfim, suplicou ele, mate-me ao menos a curiosidade,
quem sabe é genial. Bobagem, disse ela, é uma idéia
absolutamente esquisita.
Os passageiros foram se aglomerando para a saída
e Marcei foi sugado pela multidão que se empurrava.
A mulher se manteve à parte, agarrando-se à corda do
parapeito. Espero você no cais, gritou ele sem voltar-
se, preciso seguir o fluxo! Levantou um braço na selva
das cabeças e agitou a mão. Ela se apoiou no parapeito
e ficou olhando o mar.

25
Outros fragmentos

Em abril de 1839, dois cidadãos britânicos desembar­


caram na ilha de Flores, que, junto de Corvo, é a ilha
mais perdida e isolada do arquipélago dos Açores.
Eram levados pela curiosidade, sempre um ótimo
guia. Aportaram em Santa Cruz, uma cidadezinha
situada na extremidade norte da ilha, que possuía um
pequeno porto natural e que até hoje é o local mais
seguro para o desembarque em Flores. De Santa Cruz,
iniciaram uma viagem pela costa, a pé e em liteira, até
Lajes de Flores que fica a uns quarenta quilômetros,
porque queriam ver uma igreja que os portugueses ali
haviam construído no século XVII. A liteira, que oito
homens do local carregavam nos ombros, fora feita da
vela de um navio e, pela descrição dos viajantes, mais
se parecia com uma maca amarrada em dois paus.
Como todas as outras ilhas do arquipélago, Flores
é de formação vulcânica, mas diferentemente de São
Miguel ou de Faial, por exemplo, que possuem praias
claras e bosques muito verdes, é uma enorme camada
de lava negra no meio do oceano. Sobre o vulcão bem

26
cresce a flor, como diria Bécquer; os dois ingleses
atravessaram uma paisagem inacreditável: uma laje de
pedra florida que de repente descortinava abismos
apavorantes, despenhadeiros, falésias íngremes sobre
o mar. No meio da viagem, detiveram-se para passar
a noite numa aldeia de pescadores. Era uma vila
minúscula incrustada no alto de uma falésia, cujo
nome os viajantes omitem, não por desatenção, acre­
dito, dado que seu relato é sempre rigoroso e exausti­
vo, mas talvez porque a vila nem nome tinha. Muito
provavelmente chamava-se só Aldeia, que quer dizer
“vilarejo” e, sendo o único lugar habitado no raio de
muitos quilômetros, bastava-lhe, como nome pró­
prio, uma antonomásia. De longe ela lhes pareceu
graciosa e de harmoniosa geometria, como são habi­
tualmente as pequenas aldeias de pescadores. As ha­
bitações, no entanto, pareciam ter formas estranhas.
Ao entrarem na aldeia, compreenderam o porquê.
Quase todas as casas tinham como fachada a proa de
um navio: eram casas triangulares, algumas de madei­
ra de lei, cuja única parede de pedra era a que fechava
os dois lados do triângulo. Algumas eram casas
belíssimas, contam os atônitos ingleses, cujos interio­
res pouco se pareciam com casas, pois os utensílios -
lanternas, assentos, mesas e até camas - quase tudo
havia sido retirado do mar. Muitas tinham escotilhas
que serviam de janelas e como davam para o precipício
e para o mar em baixo, a impressão que se tinha era a
de estar num navio atracado em cima de uma monta­
nha. Aquelas casas tinham sido construídas com res­
tos de naufrágios que os rochedos de Flores e de Corvo

..... 27
ofereceram durante séculos às embarcações de passa­
gem. Os ingleses encontraram hospitalidade numa
casa em cuja fachada destacavam-se, brancas, as letras
THE PLYMOUTH BALT1MORE, e talvez isso os tenha aj uda-
do a sentirem-se quase em casa. De fato passaram uma
noite restauradora e na manhã seguinte retomaram a
viagem na vela.
Os dois viajantes se chamavam Joseph e Henry
Bullar e a viagem deles merece ser contada.
Em novembro de 1838, o médico londrino Joseph
Bullar, que havia aplicado com pouco sucesso em seu
irmão Henry as terapias então conhecidas contra a
tuberculose, diante do agravamento da doença deci­
diu viajar com Henry até a ilha de São Miguel. Apesar
da distância e da enorme solidão, São Miguel era,
entre todas as ilhas quentes do Atlântico, a única a
poder garantir uma constante comunicação com a
Inglaterra. Durante a estação das laranjas, isto é, de
novembro a maio, podia-se escrever para a Inglaterra
a cada semana e a resposta era recebida uns vinte dias
depois, porque o veleiro que levava as laranjas para a
Inglaterra também efetuava um serviço postal. São
Miguel era, então, um enorme laranjal do tamanho de
sua extensão e as laranjeiras chegavam à beira-mar.
Após uma viagem bastante agitada no veleiro das
laranjas, os dois irmãos chegaram a Ponta Delgada em
dezembro de 1838 e se demoraram em São Miguel até
abril de 1839. É de se supor que a saúde de mister
Henry tenha melhorado, pois naquela data os dois
irmãos decidiram embarcar em pequenos veleiros de
pescadores e visitar os Açores centrais e ocidentais. Da

28
sua permanência no arquipélago, especialmente em
Faial, em Pico e na perdida Corvo, resultou um
esplêndido diário de viagem que em 1841, de volta a
Londres, os irmãos Bullar publicaram numa edição de
John van Voorst: A Winter in the Azores and a Summer
at the Furnas. Hoje é lido com admiração e espanto,
mas afinal de contas, as coisas nos Açores não muda­
ram muito.

As almas ou alminhas: uma cruz sobre um cubo de


pedra com um azulejo azul e branco, no meio, repre­
sentando São Miguel. No dia dois de novembro as
almas aparecem, porque São Miguel as pesca, com
uma corda, do purgatório. É preciso uma corda para
cada alma. São Miguel é cheia de cruzes, portanto de
almas que vagueiam pelos rochedos, entre os desfila­
deiros, pelas praias de lava onde o mar se enfurece. No
fim da tarde, ou muito cedo de manhã, se se presta
muita atenção, pode-se ouvir suas vozes. São
lamentações confusas, litanias e sussurros fáceis de
confundir, quando se é cético ou distraído, com o
rumor do mar ou o grito dos abutres. Muitas delas são
almas de náufragos.

Aqui se despedaçaram os primeiros veleiros dos


portugueses em viagens de exploração, os barcos pira­
tas de Sir Walter Raleigh e do Conde de Cumberland,
a frota espanhola de Dom Pedro de Valdez que queria
anexar os Açores à coroa filipina. Na verdade os

29
espanhóis conseguiram desembarcar e o seu naufrágio
se consumou na ilha Terceira, em 1581, durante a
batalha da Salga. Os açorianos esperaram o exército
espanhol do alto de um outeiro e lhe lançaram mana­
das de touros enfurecidos, o que o desbaratou. Entre
os combatentes encontravam-se Cervantes e Lope,
que recordou a selvageria da batalha num quarteto.

E depois os naufrágios ficaram na moda, e vira-


vam manchete de jornais ou periódicos. Eram as
peripécias dos viajantes ricos e extravagantes que se
faziam fotografar em seus navios de luxo quando
partiam de Nova York ou de New Bedford. Mechas
prateadas ao vento, blazers com botões dourados,
foulards. A rolha do champanhe pulava e o vinho
espumava para fora da garrafa. Imaginam-se foxtrote
e outras musiquetas. As naves têm nomes fantasiosos
como as vidas de seus proprietários: Ho Ho, Anahita,
Banana Split. Boa viagem, senhores, deseja uma
esquecível autoridade citadina vinda para cortar as
amarras com tesoura de prata.
O mundo também está naufragando, mas eles
não parecem se dar conta.

No fim do século XIX, Alberto I, príncipe de


Mônaco, passou por estas ilhas a bordo da sua
Hirondelle. Nestes mares realizou muitos de seus
excelentes estudos oceanográficos, mergulhou nas
águas mais profundas com o escafandro, catalogou

30
moluscos desconhecidos, estranhas formas de vida
com contornos vagos e incertos, peixes e algas. Sobre
os Açores deixou páginas muito vivas, mas acima de
tudo me impressionou a sua descrição do fim de um
cachalote - derrocada de um animal mastodôntico
que se revela tão majestosa e aterrorizante quanto o
naufrágio de um transatlântico:
Os baleeiros, para obedecer às habituais pres­
crições das autoridades marítimas, se apressaram em
levar ao mar a carcaça do cachalote cuja decomposição
teria infectado rapidamente toda a região circunstan-
te. Esse não é um empreendimento fácil, porque
parecería suficiente transportar a carcaça para duzen­
tos ou trezentos metros da margem e entregá-la a uma
correnteza favorável que a levasse embora, mas o
vento, que muda caprichosamente, pode logo trazê-la
de volta; e pode de fato acontecer que os baleeiros
tentem livrar-se da massa fedorenta por dias e dias sem
conseguir. Ademais, se o mar se enfurece, pode acon­
tecer que as vagas acabem pregando os indesejáveis
detritos debaixo de falésias inacessíveis. Então, a in­
tensidade do fedor constituirá um suplício para os
habitantes da região. Finalmente, num belo dia de sol,
o intestino grosso, cheio de gás, estoura fragorosamente
e recobre a região circunstante de resíduos que cons­
tituem um apetitoso alimento para os multicoloridos
coveiros caranguejos. Por vezes esses animais sinistros
marcam encontro para o seu asqueroso five o'clock,
com elegantes caranguejas levando suas delicadas
antenas para passear sobre a enorme torta, se a maré
alta for gentil o bastante para funcionar como meio de

31
transporte. Seja qual for o desenrolar dos aconteci­
mentos, em suma, o pobre cachalote percorre pro­
gressivamente o caminho da derrota, desde a primeira
ferida que o homem lhe inflige até a ação das ínfimas
criaturas que a encaminham ao cumprimento do ciclo
fatal no qual se cumpre o destino dos seres viventes. A
morte dos cachalotes é majestosa como um enorme
desabamento, e na necrópole que os baleeiros apres-
tam nas pequenas enseadas, seus escombros se acumu­
lam como ruínas de uma catedral.”

Durante muito tempo carreguei na memória


uma frase de Chateaubriand: Inutile phare de la nuit.
Acredito que sempre lhe atribuí um poder de consolo
desencantado: como quando nos agarramos a alguma
coisa que se revela um inutile phare de la nuit e no
entanto nos permite fazer alguma coisa só porque
acreditávamos em sua luz: a força das ilusões. Na
minha memória, essa frase se associava ao nome de
uma ilha longínqua e improvável: Ile de Pico, inutile
phare de la nuit.
Quando eu tinha quinze anos li Les Natchez, livro
incongruente e absurdo e a seu modo magnífico, Foi
presente de um tio meu que cultivou por toda a sua
não longa vida o sonho de ser ator e que provavelmen­
te amava em Chateaubriand a teatralidade e a ceno­
grafia. O livro me fascinou, tomou pela mão a minha
imaginação e a transportou com prepotência para os
bastidores da aventura. Lembro de algumas passagens
com muita exatidão e durante anos acreditei que a

32
frase do farol lhe pertencesse. Ocorreu-me a idéia de
citar o trecho exato neste meu caderno, por isso reli Les
Natchez, mas não encontrei a minha frase. Primeiro
pensei que me tivesse escapado porque reli o livro com
a pressa de quem simplesmente procura uma citação.
Depois compreendí que não encontrar uma frase
como esta faz parte do sentido mais íntimo da própria
frase, e isso me consolou. Também me perguntei qual
parte poderia ter tido a força evocatória e sugestiva,
talvez inconsciente, dessa frase, que me chamava para
uma ilha onde não havia nada que me atraísse. Às
vezes os passos da nossa vida podem ser guiados
também pela combinação de algumas palavras.
Resta-me dizer que à noite, em Pico, não brilha
nenhum farol.

Breezy e Rupert me convidam para um trago de


despedida em seu barco. Vão partir de tarde porque
para sair aproveitam a calma das sete, que aqui tam­
bém funciona. O Amadeus está ancorado defronte aos
depósitos de água, é azul e branco, oscila e me parece
impossível que um barco tão pequeno possa atravessar
os oceanos.
Rupert tem os cabelos muito ruivos, sardas, um
rosto engraçado de Danny Kaye. Talvez tenha me
dito que é escocês ou talvez eu o considere tal por causa
de sua fisionomia. Em Londres trabalhava em uma
companhia de navegação: ano após ano sentado a uma
mesa, com a luz elétrica acesa, sonhando com os
portos distantes de onde chegavam mercadorias exó-

33
ticas. Então um dia pediu as contas, vendeu tudo o
que tinha e comprou este barco. Melhor ainda, man­
dou construí-lo de acordo com o desenho de um
arquiteto naval nova-iorquino - e ao descer no Amadeus
compreendo que não se trata exatamente daquela
frágil casca de noz que parece quando visto da terra.
Breezy foi embora com ele e agora vivem no barco.
Bem-vindo à nossa casa, dizem rindo. Breezy tem um
rosto aberto e muito cordial, um sorriso esplêndido e
está com um vestido longo estampado com flores
como se fosse enfrentar um garden-party e não uma
travessia oceânica. O interior é de madeira de lei e
estofado em cores quentes que dão logo uma sensação
de conforto e segurança. Há uma pequena e bem
guarnecida biblioteca. Ponho-me a bisbilhotar;
Melville, naturalmente, e Conrad e Stevenson. Mas
também Henry James, Kipling, Shaw, Wells, os
Dubliners, Maugham, Forster, Joyce Cary, M. E.
Bates. Pego o Jacaranda Tree e inevitavelmente a
conversa recai sobre o Brasil. Eles só foram até Forta­
leza no Ceará, descendo ao longo das costas da Amé­
rica. Mas o Brasil fica reservado para uma outra vez,
antes Rupert deve tratar do aluguel do Amadeus para
um pequeno cruzeiro de luxo. É assim que vivem,
alugando o barco e freqüentemente Rupert permane­
ce como marinheiro. O resto da vida é todo deles.
Erguemos um brinde à viagem. Que bons ventos
os levem, desejo, agora e sempre. Rupert corre a
portinhola de uma estante e coloca uma fita no
aparelho de som. É o Concerto K 271 para piano e

34
orquestra de Mozart, e só agora compreendo por que
o navio se chama Amadeus. Na estante há uma fitoteca
completa de Mozart, catalogada com extremo cuida­
do. Acho que Rupert e Breezy atravessam os mares
acompanhados pelos cravos e pelas melodias
mozartianas e a coisa me parece de uma estranha
beleza, talvez porque sempre associei a música com a
idéia de terra firme, do teatro ou de uma sala acolcho­
ada e na penumbra. A música toma um ritmo solene
e nos envolve. Os copos estão vazios, levantamo-nos
e nos abraçamos. Rupert aciona o motor, eu me enfio
pela escadinha e num pulo estou no cais. Há uma luz
suave sobre o conjunto de casas de Porto Pim. O
Amadeus dá uma larga guinada e parte veloz. Breezy
está no leme e Rupert está içando a vela. Fico dando
adeus com a mão até que o Amadeus, já com todas as
velas despregadas, lança-se ao largo.

Para os navegadores que se detêm em Horta é


costume deixar sobre a muralha do cais um desenho,
um nome, uma data. É um muro com uma centena de
metros de comprimento onde são sobrepostos dese­
nhos de navios, cores de bandeiras, números, frases.
Cito uma, entre tantas: Nat, de Brisbane. Vou aonde
me leva o vento.

Em julho de 1895, os ventos impeliram até Horta


o capitão Joshua Slocum, o primeiro navegador so­
litário ao redor do mundo. O seu barco se chamava

35
Spray e vendo-o em fotografia, parece uma barcaça
pesada e insegura, mais adequada a uma navegação
fluvial do que a uma viagem ao redor do mundo.
Sobre os Açores, o capitão Slocum deixou algumas
páginas bastante bonitas. Leio-as no seu SailingAlone
around the World, em uma antiga edição cuja capa é
enfeitada por um festão de âncoras.

Os ventos também trouxeram aqui a única mu­


lher baleeira de que se tem notícia. Chamava-se Elisa
Nye, tinha dezessete anos e, para encontrar nos Açores
o avô materno, o naturalista Thomas Hickling, que a
convidara para passar um ano em sua casa de São
Miguel, não hesitou em embarcar no baleeiro Sylph,
que velejava de New Bedford às “Ilhas Ocidentais”,
como os americanos chamavam os Açores então. Miss
Elisa era uma moça empreendedora e esperta, educada
em uma família americana com hábitos puritanos e
frugais. No baleeiro, não desanimou e deu o melhor
de si para tornar-se útil. A sua viagem durou de dez de
julho a treze de agosto de 1847. No seu simpático
diário, redigido com desenvoltura e vivacidade, fala
do mar, do velho capitão Gardner, rude e paternal,
dos golfinhos, dos tubarões e, naturalmente, das
baleias. Nos momentos livres, além de se dedicar ao
diário, lia a Bíblia e The corsair de Byron.

36
“Peter’s Bar” é um café no porto de Horta,
vizinho do clube náutico. É alguma coisa entre a
taberna, o ponto de encontro, uma agência de infor­
mações e de correio. É freqüentado pelos baleeiros,
mas também pelo pessoal dos navios, que faz a traves­
sia atlântica ou outros percursos maiores. E uma vez
que os navegadores sabem que Faial é um porto de
escala, por onde todos passam, o “Peter’s” tornou-se
o destinatário de mensagens precárias e casuais que
não teriam, de outro modo, para onde ir. No balcão
de madeira do “Peters” pregam-se bilhetes, telegra­
mas, cartas à espera de alguém que venha reclamá-los.
For Regina, Peter’sBar, Horta, Azores, diz um envelope
com um selo canadense. Pedro e Pilar Vazquez Cuesta,
Peters Bar, Azores: uma carta da Argentina, e chegou
da mesma maneira. Um bilhete já um pouco amare­
lado diz: Tom, excuse-moi, je suis partie pour le Brésil,
je ne pouvais plus rester ici, je devenais folie, Écris-moi,
viens, je t'attends. C/o Engenheiro Silveira Martins,
Avenida Atlântica 3026, Copacabana. Brigitte. E ou­
tro implora: Notice. To boats bound for Europe. Crew
available!!! 1 am 24, with 26.000 miles of crewing/
cruising/cooking experience. If you have room for one
more, please leave word below! Carol Shepard.

É delgada, muito afuselada, foi construída com


material de primeira qualidade. Deve ter navegado
bastante. Neste porto chegou por acaso. De resto, as
viagens são um acaso. Chama-se Sinal Azul

37
Montes de fogo, vento e solidão. Assim descrevia
os Açores, no século XVI, um dos primeiros viajantes
portugueses que ali desembarcou.

..... 38
Antero de Quental. Uma vida

Antero veio ao mundo como o último dos nove filhos


de uma grande família dos Açores que possuía pasta­
gens e laranjais, e a sua infância conheceu a austera e
frugal abastança dos proprietários ilhéus. Teve entre
os seus antepassados um astrônomo e um místico,
cujos retratos, junto com o do avô, enfeitavam as
paredes de um salão escuro com cheiro de cânfora. Seu
avô se chamava André da Ponte Quental e havia tido
a experiência do exílio e do cárcere por ter participado
da primeira revolução liberal de 1820. Era o que lhe
contava o pai, um homem gentil que gostava de
cavalos e que tinha lutado na batalha de Mindelo
contra os absolutistas.
Seus primeiros anos tiveram por companhia pe­
quenos potros malhados e as antigas nênias das em­
pregadas que vinham dos montes de São Miguel,
onde as aldeias são de lava e têm nomes como Caldei­
ras e Pico do Ferro. Era um menino sereno e pálido,
de cabelos arruivados e olhos tão claros que às vezes
pareciam transparentes. Passava as manhãs no pátio

39
de uma casa importante, onde as mulheres manti­
nham com elas as chaves dos armários e as janelas
tinham cortinas de renda grossa. Ele corria, dava
pequenos gritos alegres e era feliz. Amava muito o
irmão mais velho, no qual uma silenciosa loucura
ofuscava, por longos períodos, uma inteligência rara
e estranha: com ele, inventou um jogo que chamavam
de O Céu e a Terra, em que os peões eram pedrinhas
e conchinhas, que jogavam num tabuleiro circular
traçado na poeira.
Quando o filho atingiu a idade de aprender, o
pai chamou à sua casa o poeta português Feliciano de
Castilho e confiou-lhe a instrução do menino. Castilho
era tido então como um grande poeta, talvez em
virtude das suas traduções de Ovídio e Goethe, e
talvez também por causa de sua infeliz cegueira que
por vezes conferia aos seus versos um tom profético
muito apreciado pelos românticos. Na verdade, era
um erudito irritadiço e intratável que privilegiava a
Retórica e a Gramática. Com ele, o pequeno Antero
aprendeu o latim, o alemão e a métrica. E nesses
estudos chegou à adolescência.
Na noite de abril em que completou quinze anos,
Antero acordou sobressaltado e sentiu que precisava ir
para o mar. Era uma noite calma e de lua crescente.
Toda a casa dormia e o vento inflava as cortinas de
renda. Vestiu-se em silêncio e desceu na direção dos
penhascos. Sentou-se sobre uma rocha e olhou o céu,
procurando adivinhar o que o havia induzido a ir até
aquele lugar. O mar estava tranqüilo e respirava como
se estivesse dormindo, e a noite era igual a todas as

40 .......
outras noites. Só que ele sentia uma grande inquieta­
ção, como uma ânsia que lhe oprimia o peito. Naque­
le momento, percebeu um mugido surdo que provi­
nha da terra, a lua se coloriu de sangue e o mar inchou
como um ventre enorme e se abateu sobre as rochas.
A terra tremeu e as árvores se curvaram pela força de
um vento impetuoso. Antero correu atônito para casa
e encontrou a família reunida no pátio; mas o perigo
já havia passado e nas mulheres o pudor por causa das
roupas de dormir já dominava o susto repentino.
Antes de voltar para a cama, Antero pegou uma folha
de papel e escreveu às pressas, sem conseguir contro­
lar-se, algumas palavras. E enquanto escrevia se deu
conta de que as palavras iam se ordenando sobre o
papel, quase sozinhas, de acordo com a combinação
métrica do soneto: e ele o dedicou, em latim, ao deus
ignoto que o estava inspirando. Naquela noite dor­
miu serenamente e ao amanhecer sonhou com uma
pequena macaca de focinho irônico e triste que lhe
estendia um bilhete. Ele o lia e compreendia um
segredo que a ninguém era dado saber e que só o
animal conhecia.
Estava se tomando um homem. Estudava astro­
nomia e as geometrias, deixou-se seduzir pela hipótese
cosmogônica de Laplace, pela idéia da unidade das
forças físicas e pela concepção matemática do Espaço.
De noite escrevia os seus pequenos engenhos misteri­
osos e abstratos nos quais traduzia em palavras a sua
idéia da máquina cósmica. Agora se acostumara a
sonhar com a macaquinha do focinho irônico e triste
e até se espantava nas noites em que ela não o visitava.

41
Quando chegou à idade dos estudos universitári­
os, partiu para Coimbra, de acordo com a tradição
familiar e anunciou que havia chegado o momento de
deixar o estudo das leis cósmicas para se dedicar às dos
homens. Tornara-se um jovem alto e corpulento,
com uma barba loira que lhe conferia um aspecto
majestoso, quase soberbo. Em Coimbra conheceu o
amor, leu Michelet e Proudhon e ao invés de entusi-
asmar-se pelas leis que aplicavam a justiça de então,
entusiasmou-se pela idéia de uma justiça nova que
falava da igualdade e da dignidade dos homens.
Seguiu essa idéia com a paixão que lhe vinha de seus
antepassados ilhéus, mas também com a razão do
homem que era, porque estava convencido de que a
justiça e a igualdade participavam da geometria do
mundo. Na forma fechada e perfeita do soneto,
escreveu o ardor que o dominava e a sua ânsia de
verdade. Partiu para Paris e tornou-se tipógrafo, como
um outro podería ter-se tornado monge, porque
queria conhecer a fadiga do corpo e a concretude dos
utensílios. Depois da França, partiu para a Inglaterra
e para os Estados Unidos, viveu em Nova York e em
Halifax, para conhecer as novas metrópoles que o
homem estava construindo e as diversas maneiras de
se viver nelas. Quando retornou para Portugal, tinha-
se tornado socialista. Fundou a Associação Nacional
dos Trabalhadores, viajou e fez prosélitos, viveu entre
os camponeses, passou por suas ilhas como um tribuno
dos discursos incandescentes, conheceu a arrogância
dos poderosos, as lisonjas dos ardilosos, o temor dos
servos. Animava-o o desdém e escreveu sonetos de

42
sarcasmo e revolta. Conheceu também a traição de
certos companheiros e a alquimia ambígua de quem
consegue conjugar a vantagem própria com o bem
comum.
Compreendeu que devia deixar para os outros,
mais hábeis do que ele, a continuação da obra que
havia iniciado, como se essa não mais lhe pertencesse.
Era o momento dos homens práticos, e ele não era
prático: e isso deu-lhe um senso de desolação como
um menino que perde a inocência e descobre de
repente a vulgaridade do mundo. Não tinha ainda
cinquenta anos e o seu rosto já estava muito marcado.
Os olhos tinham ficado fundos e a barba começava a
branquear. Passou a sofrer de insônia e a dar gritos
abafados nos raros momentos de repouso. Às vezes
sentia que suas palavras não lhe pertenciam e
freqüentemente se surpreendia falando sozinho como
se houvesse outra pessoa conversando com ele. Um
médico de Paris diagnosticou-lhe histeria e prescreveu
um tratamento com choques. Antero escreveu que
sofria de infinito, talvez uma doença mais plausível
para ele. Talvez só estivesse cansado da forma transi­
tória e imperfeita do ideal e da paixão, e a sua
ansiedade agora se voltava para uma outra ordem
geométrica. Em seus escritos, começou a aparecer a
palavra Nada, que lhe parecia a forma mais perfeita de
perfeição. Ia completar quarenta e nove anos e retornou
para a sua ilha.
Na manhã de 11 de setembro de 1891, saiu de sua
casa de Ponta Delgada, desceu a pé a rua íngreme e
sombria até a Igreja Matriz e entrou em uma pequena

..... 43
loja de armeiro. Vestia uma roupa preta e sobre a
camisa branca, uma gravata presa por um alfinete com
uma concha, O proprietário era um homem cordial e
obeso que gostava de cachorros e gravuras antigas.
Havia um ventilador de latão girando lentamente no
teto, O proprietário mostrou ao cliente uma bela
gravura seiscentista adquirida recentemente que re­
presentava uma matilha de cães perseguindo um
cervo. O velho negociante tinha sido amigo de seu
pai, e Antero se lembrava de que, quando menino, os
dois homens o levavam à feira de Caloura, onde se
encontravam os cavalos mais bonitos de São Miguel.
Entretiveram-se falando longamente sobre cães e ca­
valos, depois Antero comprou um pequeno revólver
de cano curto. Quando saiu da loja, os sinos da Matriz
badalavam onze horas. Ele percorreu lentamente toda
a orla marítima até a capitania e se deteve demorada-
mente no cais para olhar os veleiros. Depois atraves­
sou a rua e entrou na praça da Esperança rodeada por
magros plátanos. O sol era feroz e tudo estava branco.
A praça estava vazia naquela hora, por causa do
intenso calor. Um burro triste, amarrado à argola de
um muro, bamboleava a cabeça. Enquanto atravessa­
va a praça, Antero ouviu uma música. Parou e voltou-
se. Na esquina oposta, à sombra de um plátano, havia
um ambulante que tocava um realejo. O ambulante
lhe fez um sinal e Antero dirigiu-se a ele. Era um
cigano magro e tinha uma macaca sobre um ombro.
Era um ser pequenino de focinho irônico e triste e
usava uma farda vermelha com os botões dourados.
Antero reconheceu a macaca do seu sonho e compre­

44
endeu quem era. O animal lhe estendeu a minúscula
mão preta e Antero deixou cair ali uma moeda. Em
troca, o animal pescou papelzinho colorido entre os
tantos que o cigano enfiara na fita do chapéu e o
ofereceu. Ele pegou-o e leu. Atravessou a praça e
sentou-se num banco ao fresco do muro do convento
da Esperança onde haviam pintado uma âncora azul
na parede caiada. Tirou o revólver do bolso, levou-o
à boca e apertou o gatilho. Teve um átimo de espanto
ao continuar vendo a praça, as árvores, o mar cintilan­
te e o cigano tocando o seu realejo. Sentiu um fio
tépido escorrendo pelo pescoço. Soltou o mecanismo
do revólver e disparou uma segunda vez. Então o
cigano desapareceu com a paisagem e os sinos da
Matriz começaram a badalar meio-dia.

45
II

Baleias e baleeiros
Alto-mar

No fim da última guerra, uma baleia exausta e talvez


doente encalhou na praia de uma cidadezinha alemã,
não sei dizer qual. Como a baleia, a Alemanha tam­
bém estava exausta e doente, as cidades estavam
destruídas e o povo passava fome. Os habitantes da
cidadezinha acorreram à praia para ver aquele visitan­
te mastodôntico, que ali estava, forçado a uma imobi­
lidade antinatural e que respirava. Passaram-se alguns
dias mas a baleia não morreu. Todos os dias, o povo
ia ver a baleia. Naquela cidade ninguém sabia como
matar um animal que não é um animal mas um
enorme cilindro escuro e brilhante que até então só
tinham visto nas ilustrações, Até que um dia alguém
pegou um facão, aproximou-se da baleia, cortou um
pedaço daquela carne oleosa e a levou apressadamente
para casa. Toda a população começou a arrancar
pedaços de baleia. Iam de noite, às escondidas, porque
tinham vergonha uns dos outros, embora soubessem
que todos estavam fazendo a mesma coisa. A baleia

49
continuou viva ainda por muitos dias, apesar de
mostrar feridas horrendas.
Certa vez, meu amigo C.M. contou-me essa
história. Pensei que a tinha rechaçado da memória
mas ela voltou de repente quando desembarquei na
ilha de Pico e havia uma baleia flutuando morta perto
dos rochedos.

Quando as baleias bóiam no meio do oceano


parecem submarinos à deriva, atingidos por um tor­
pedo. E, na barriga delas, a gente imagina uma tripu­
lação de muitos Jonas pequeninos, cujo radar já não
funciona, que desistiram de fazer contato com outros
Jonas e esperam resignadamente a morte.

Li numa revista científica que as baleias se comu­


nicam por meio de ultra-sons. Têm um ouvido
aguçadíssimo e conseguem captar os chamados umas
das outras a centenas de quilômetros de distância.
Houve tempo em que os grupos se comunicavam das
mais longínquas posições do globo; em geral eram
chamados amorosos ou outros tipos de mensagens
cujo significado nos escapa. Agora que os mares estão
cheios de ruídos mecânicos e de ultra-sons artificiais,
as mensagens entre as baleias sofrem excesso de inter­
ferências para que possam ser captadas e decifradas.
Elas continuam a lançar inutilmente sinais e chama­
dos que vagam perdidos pelos abismos.

50
Existe uma pose adotada pelas baleias que os
pescadores designam pela expressão “baleia morta” e
que se verifica quase sempre com animais adultos e
solitários. Quando está “morta”, a baleia parece com­
pletamente entregue à superfície do mar, flutuando
sem esforço aparente, como se estivesse entregue a um
sono profundo. Os pescadores afirmam que esse
fenômeno só se verifica em dias de bonança pesada ou
de soí intenso, mas as causas reais da catalepsia cetácea
permanecem desconhecidas.

Os baleeiros afirmam que as baleias são totalmen­


te indiferentes à presença humana mesmo durante a
cópula e que deixam aproximar-se delas a ponto de se
poder tocá-las. O ato sexual se efetua por justaposição
ventral, como na espécie humana. Segundo os baleei­
ros, o casal emerge da água pelo focinho, mas os
naturalistas afirmam que a posição dos cetáceos é a
horizontal e que a posição vertical é apenas fruto da
imaginação dos pescadores.

Sobre as fases do parto das baleias e os primeiros


momentos da vida do filhote, as informações também
são bastante escassas. De qualquer modo, alguma
coisa de “diferente” do que se conhece dos outros
mamíferos marinhos deve acontecer para que o filho­
te não se afogue, ou não morra asfixiado na hora do

51
rompimento do cordão umbilical que o liga ao siste­
ma vascular materno. Como é sabido, os momentos
do parto e da cópula são os únicos da vida dos outros
mamíferos marinhos durante os quais eles parecem se
lembrar desua ancestralidade terrestre; tanto que vêm
à terra só para acasalar-se e para parir, aqui ficando
apenas o tempo indispensável às primeiras fases da
vida do filhote. Seria, pois, esse ato da vida terrestre o
último a esvair-se da memória fisiológica dos cetáceos,
que, entre todos os mamíferos aquáticos, são aqueles
nos quais a ancestralidade terrestre é mais remota.

“Nenhuma relação existe entre essa doce raça de


mamíferos que têm, como nós, o sangue vermelho e
o leite, e os monstros das eras anteriores, horríveis
abortos do limo primigênio. As baleias, muito mais
recentes, encontraram uma água purificada, o mar
livre e o globo em paz. O leite do mar, o seu óleo su-
perabundavam; a sua quentura gorda, animalizada,
fermentava com força incrível, queria viver. Elas
levitaram, se organizaram nesses colossos, enfants gâtés
da natureza que as dotou de força incomparável e do
que é mais precioso; do belo sangue vermelho-fogo.
Pela primeira vez o sangue fez a sua aparição. Eis a
verdadeira flor do mundo. Todas as criaturas de
sangue pálido, avarento, lânguido, vegetante, pare­
cem não ter coração se comparadas à vida generosa
que ferve nessa púrpura, quer circule ali cólera, quer
amor. A força do mundo superior, o seu encantamen­
to, a sua beleza é o sangue... Mas com esse dom

52
magnífico aumenta infinitamente a sensibilidade ner­
vosa. Assim se fica muito mais vulnerável, muito mais
capaz de sofrer e de gozar. Posto que a baleia não
possui absolutamente o sentido da caça, nem tem o
olfato e a audição muito desenvolvidos, tudo nela está
entregue ao tato. A gordura, que a defende do frio, na
verdade não a protege dos embates. Sua pele, disposta
com sofisticação em seis tecidos diferentes, treme e
vibra a cada estímulo. As tenras papilas que a reco­
brem são instrumentos de delicadíssimo tato. E tudo
isso é animado, vivificado por um jorro de sangue
vermelho que, considerada também a massa do ani­
mal, não é sequer comparável em abundância ao dos
mamíferos terrestres. A baleia ferida inunda o mar
num segundo, tinge-o de vermelho a uma boa distân­
cia. O sangue que nós temos em gotas lhe foi prodi­
galizado em torrentes.
“A fêmea carrega o filhote nove meses. Seu leite
saboroso, um pouco adocicado, possui o sabor tépido
do leite da mulher. Mas uma vez que aquela precisa
sulcar constantemente as ondas, se os mamilos fossem
situados no peito o filhote estaria exposto a todos os
embates possíveis; por isso são situados um pouco
mais abaixo, num lugar mais protegido, sobre o ventre
de onde saiu o pequeno. E o filho se refugia ali e goza
da onda que a mãe rompe para ele.” (Michelet, La
Mer, pág. 238.)

Dizem que o âmbar-gris é o resíduo da casca de


queratina dos crustáceos que a baleia não consegue

53
digerir e que se lhe acumula em certas partes do
intestino. Outros, porém, sustentam que é o resulta­
do de um processo patológico, uma espécie de calculose
intestinal circunscrita. Hoje em dia, o âmbar-gris é
usado quase exclusivamente na fabricação de perfu­
mes de luxo, mas na história de seu comércio teve
aplicações tão variadas quanto a imaginação humana:
foi bálsamo propiciatório em rituais religiosos, poma­
da afrodisíaca, testemunho de dedicação religiosa
para os peregrinos muçulmanos que visitavam a Pedra
Negra de Meca. Conta-se que foi um aperitivo indis­
pensável nos banquetes dos mandarins. Milton fala
do âmbar cinza no Paradise Lost. Shakespeare também
fala, não lembro onde.

"L ‘amour, chezeux, soumis à des conditiom difficiles,


veut un lieu de profonde paix. Ainsi que le noble
êléphant, qui craint les yeux profanes, la baleine n‘aime
qu'au désert. Le rendez-vous est vers les pôles, aux anses
solitaires du Groënland, aux brouillards de Behring,
sans doute aussi dans la mer tiède q u ' o n a trouvée près du
pòle même.
“La solitude est grande. Cést un théâtre étrange de
mort et de silence pour cette fete de l'ardente vie. Un ours
blanc, un phoque, un renard bleu peut-être, témoins
respectueux, prudents, observent à distance. Les lustres et
girandoles, les miroirs fantastiques, ne manquent pas.
Cristaux bleuâtres, pics, aigrettes de glace êblouissante,
neiges vierges, ce sont les témoins qui siégent tout autour
et regardent.

54
"Ce qui rend cet hymen touchant et grave, c'est qu’il
y faut l'expresse volonté. Ils n'ont pas l'arme tyrannique
du requin, ces attaches qui maitrisent le plus faible. Au
contraire, leurs fourreaux glissants les séparent, les
éloignent. Ils se fuient malgré eux, échappent, par ce
désespérant abstacle. Dans un si grand accord, on dirait
un combat. Des baleiniers prétendent avoir vu cespectacle
unique. Les amants, d'un brúlant transport, par instants,
dressés et debout, comme les deux tours de Notre-Dame,
gémissant de leurs bras trop courts, entreprenaient de
s'embrasser. Ils retombaient d'un poids immense... L'ours
et 1’homme fuyaient êpouvantés de leurs soupirs. ”
(Michelet, La Mer, págs. 240-242.) Demasiado in­
tenso e poético é este trecho de Michelet para merecer
o achatamento de uma tradução.

Imaginei que os dias de pesada bonança e de sol


intenso, quando sobre o oceano pesa um denso calor,
são os raros momentos que permitem às baleias retornar
com memória fisiológica à sua ancestralidade terres­
tre. Elas precisam de uma concentração tão intensa e
total que caem num sono profundo, como uma morte
aparente: e assim flutuando, como imensos troncos
brilhantes e cegos, elas conseguem recordar, como
num sonho, um passado extremamente remoto no
qual suas barbatanas desengonçadas eram membros
secos, próprios para sinais, saudações, carícias, corri­
das sobre a grama entre flores altas e arbustos, sobre
uma terra que era um magma de elementos ainda à
procura de uma combinação, uma hipótese.
Os baleeiros dos Açores contam que quando uma
baleia adulta é atingida pelo arpão a cinco ou seis
milhas de uma outra baleia, esta, mesmo se estiver
num estado de morte aparente, acorda bruscamente e
foge assustada. As baleias caçadas nos Açores são
principalmente cachalotes.

“ Cachalote. Esta baleia, vagamente conhecida entre


os antigos ingleses como Baleia Trumpa ou Fisiterio
ou Baleia da Cabeça de Bigorna, é a atual Cachalot dos
franceses, o Pottfisch dos alemães e a Macrocéfala das
palavras longas. É sem dúvida o maior habitante do
globo, a mais terrível de ser encontrada entre todas as
baleias, a do aspecto mais majestoso e, finalmente, de
longe a mais preciosa para o comércio, sendo a única
criatura da qual se pode retirar aquela preciosa subs­
tância que é o espermacete. Em muitos outros lugares
me deterei sobre todas as suas características; agora
preciso atentar especialmente para o seu nome: con­
siderado filologicamente é um nome absurdo. Há
alguns séculos, quando o cachalote era quase comple­
tamente desconhecido em sua verdadeira individuali-
dade e seu óleo era retirado apenas acidentalmente dos
peixes encalhados, naqueles dias, ao que parece, acre­
ditava-se vulgarmente que o espermacete provinha de
uma criatura idêntica à que agora se conhece na
Inglaterra como a Baleia da Groenlândia ou Franca.
Pensava-se também que esse mesmo espermacete

56
fosse o humor fecundante da Baleia da Groenlândia
que as três primeiras sílabas da palavra literalmente
significam. Naqueles tempos, além disso, o esper­
macete era muitíssimo escasso e não era usado para
iluminar, mas apenas como ungüento e medicamen­
to. Só se podia obtê-lo do farmacêutico, como se com­
pra hoje uma onça de ruibarbo. Acho que, quando
reconhecida a verdadeira natureza do espermacete, os
comerciantes mantiveram seu nome original no in­
tuito de aumentar seu valor, por meio dessa extrava­
gante alusão à sua escassez.” (Melville, Moby Dick,
cap. XXXII, trad. de C. Pavese.)

“Os cachalotes são grandes cetáceos que vivem


nas zonas dos dois hemisférios onde a temperatura da
água é bastante alta. Existem diferenças relevantes
entre sua conformação e as das baleias: os ossos que
guarnecem a boca destas últimas e que lhes servem
para triturar um alimento de pequenas dimensões, são
substituídos nos cachalotes por poderosos dentes so­
lidamente encravados no maxilar inferior e aptos a
morder grandes presas; a cabeça, uma massa enorme
que termina verticalmente como a proa de um navio,
ocupa um terço de todo o corpo. Essas divergências
anatômicas entre os dois grupos os colocam em reinos
distintos: as baleias encontram sobretudo nas águas
frias das regiões polares os densos aglomerados de
organismos microscópicos que as baleias absorvem
com a mesma naturalidade com que nós respiramos;
os cachalotes, ao contrário, se nutrem principalmente

..... 57
de cefalópodes que prosperam nas águas temperadas.
Além disso, no comportamento desses gigantes há
diferenças essenciais que os baleeiros aprenderam a
conhecer perfeitamente no interesse de sua própria
integridade. Enquanto as baleias são animais plácidos,
os velhos cachalotes machos, que se tornam solitários,
como é costume dos javalis, se defendem e se vingam.
Muitos barcos baleeiros apanhados entre as mandíbu-
las desses gigantes, depois da arpoação, foram despe­
daçados; e muitas tripulações morreram durante a
caçada.” (Albert I, Príncipe de Mônaco, La carrière
d’un Navigateur, págs. 277-78.)

“Muitos desses baleeiros provêm dos Açores, onde


os navios do Nantucket que se dirigem aos mares
longínquos aportam freqüentemente para aumentar
as tripulações com os corajosos camponeses dessas
costas rochosas. Não se sabe bem por quê, mas o fato
é que os ilhéus são os melhores baleeiros.” (Melville,
Moby Dick, cap. XXVII, trad. de C. Pavese.)

A ilha de Pico é um cone vulcânico que aflora de


repente do oceano: nada mais é do que uma alta
montanha íngreme pousada sobre a água. Lá estão três
vilarejos: Madalena, São Roque e Lajes; o resto é rocha
de lava sobre a qual cresce às vezes uma videira mirrada
e algum abacaxi selvagem. O pequeno ferry atraca no
cais de Madalena, é domingo e muitas famílias se
deslocam para as ilhas mais próximas com cestas e

58
farnéis. Das cestas tiram abacaxis, bananas, garrafas de
vinho, peixes. Em Lajes há um pequeno museu das
baleias e quero vê-lo. Mas o ônibus hoje faz poucas
viagens porque é dia de festa, e Lajes fica a uns
quarenta quilômetros, na outra extremidade da ilha.
Sento-me pacientemente num banco, debaixo de
uma palmeira, diante da estranha igreja da pracinha.
Pensei em tomar um banho de mar, o dia está bonito
e a temperatura é agradável. Mas no ferry me alertaram
porque perto do recife há uma baleia morta e o mar
está cheio de tubarões.
Depois de uma longa espera no calor meridiano
vejo um táxi que após deixar um passageiro no peque­
no porto está retornando. O motorista me oferece
uma carona até Lajes porque já fez a corrida e está
voltando para casa; o preço que o passageiro pagou
incluía a volta também, e ele não quer dinheiro que
não lhe pertence. Em Lajes só existem dois táxis, me
conta com satisfação, o dele e o do seu primo. A única
rua de Pico corre ao longo dos rochedos, com curvas
e solavancos, sobre um mar espumante. E uma rua
estreita em péssimas condições que atravessa uma
paisagem pedregosa e sombria, com raras casas isola­
das. Desço na praça principal de Lajes, que é uma
cidadezinha silenciosa dominada pela incongruência
de um enorme convento setecentista e pela imponência
da coluna de um padrão, o sinal do domínio de pedra
que os navegadores portugueses plantavam por conta
do rei nos lugares onde aportavam.
O museu das baleias é na rua principal, no primei­
ro andar de uma casa nobre restaurada. Serve-me de

59
guia um rapaz com um ar ligeiramente idiota que usa
uma linguagem óbvia e cerimoniosa. Interesso-me
particularmente pelos objetos de marfim que os bale­
eiros lavravam antigamente, e também pelos diários de
bordo e por certos utensílios arcaicos de formas extra­
vagantes. Há algumas velhas fotografias numa parede.
Em uma está escrito: Lajes, 25 de dezembro, 1919.
Como será que fizeram para transportar o cachalote
até o adro da igreja. Terão sido necessárias algumas
juntas de bois. É um cachalote espantosamente gran­
de, é inacreditável. Há uns seis ou sete meninos que o
escalaram até a cabeça: apoiaram no focinho uma
escada de corda e de lá de cima abanam chapéus e
lenços. Os baleeiros estão enfileirados em primeiro
plano, com ar orgulhoso e satisfeito. Três usam um
gorro de lã com pompom, um está com um chapéu de
tecido encerado no estilo dos bombeiros. Todos estão
descalços, só um usa botas, deve ser o mestre. Acredito
que depois todos saíram da fotografia, tiraram os
chapéus e entraram na igreja, como se fosse a coisa
mais natural do mundo deixar uma baleia no adro.
Assim foi o Natal em Pico, em 1919.
Quando saio do museu uma surpresa me aguarda.
Do fundo da rua, sempre deserta, desemboca uma
filarmônica. São velhos e jovens vestidos de branco,
usando chapéu de marinheiro; os metais estão bri­
lhando e refletem o sol, estão tocando de forma
excelente uma arieta melancólica que parece uma
valsa. São precedidos por uma jovenzinha que leva um
estandarte na extremidade do qual estão enfiados dois
pães e uma pomba de açúcar. Sigo o pequeno cortejo

60
em seu solitário desfile ao longo da rua principal até
uma casa de janelas azuis. A banda se dispõe em
semicírculo e ataca uma marchinha ousada. Abre-se
uma janela e aparece um velho com um ar distinto que
cumprimenta, faz uma mesura, sorri, desaparece e
reaparece pouco depois à soleira da porta. É recebido
por um pequeno aplauso, um aperto de mão do
diretor da banda, um beijo da menina. Certamente é
uma homenagem. A quem ou a que coisa, eu ignoro,
mas não faz muito sentido perguntar. A cerimônia
muito breve termina, a banda se dispõe de novo em
duas filas mas em vez de voltar atrás, dirige-se para o
mar, que é logo ali, no fim da rua. Ainda estão
tocando, e eu os sigo. Quando chegam no mar,
sentam-se sobre as rochas, pousam os instrumentos e
acendem cigarros. Conversam e olham o mar. Gozam
o domingo. A menina deixou o estandarte apoiado
num poste e brinca com uma colega. O ônibus buzina
do outro lado do vilarejo porque às seis fàz a única
viagem para Madalena, e faltam cinco minutos.

“É possível encontrar, nos Açores, duas espécies


de baleeiros. Os primeiros vêm dos Estados Unidos a
bordo de pequenas embarcações que comportam uma
centena de toneladas. Parecem tripulações de piratas,
graças à mistura de raças que as compõem: negros,
malaios, chineses, indivíduos indefiníveis, frutos de
cruzas cosmopolitas, se encontram misturados com
desertores e malandros que vão para o oceano para
fugir da justiça dos homens. Uma caldeira enorme

61
ocupa o centro da embarcação: é ali que os pedaços de
banha cortados do cachalote que está amarrado num
andaime sob a murada, se transformam em óleo
mediante um cozimento infernal agitado pelo balan­
ço e pelo caturros, enquanto redemoinhos de fumaça
nauseabunda se espalham ao redor. E quando o mar
está agitado, durante essa operação, que espetáculo
selvagem! De fato, antes que renunciar ao fruto de
uma presa arrancada heroicamente do ventre do Oce­
ano, eles preferem pôr em risco suas vidas. Para
duplicar os cabos que sustentam a baleia no andaime,
alguns homens se aventuram, com o risco da própria
vida, naquela enorme massa oleosa que o mar varre e
que, com sua mole sacolejada pelas ondas, ameaça
despedaçar os flancos da embarcação. Depois de ter
dobrado os cabos, espera-se, prolonga-se o risco até o
momento em que isso já não é tolerável. Então
cortam-se as amarras, e toda a tripulação, com
imprecações de cólera violenta acompanha a carcaça
que se afasta nas vagas deixando um terrível fedor no
lugar dos sonhos de riqueza que havia suscitado.
“A outra espécie de baleeiros é composta por
pessoas mais parecidas com os simples mortais. São os
pescadores das ilhas, ou mesmo agricultores de espí­
rito aventureiro, e algumas vezes simples emigrantes
que retornaram ao seu país com o ânimo temperado
por outros temporais nas Américas. Formam tripula­
ções de dez homens em dois barcos baleeiros que
pertencem a minúsculas sociedades com um capital
de cerca de trinta mil francos. Um terço dos ganhos
cabe aos acionistas, os outros dois terços são divididos

62
em partes iguais pela tripulação. As canoas baleeiras,
que são admiravelmente construídas para a velocida­
de, são equipadas com velas, remos, pagaias, um
timão normal e um timão a remo. Os instrumentos da
caça consistem em vários arpões com a ponta cuidado­
samente protegida por uma bainha, com várias lanças
de lâmina bastante afiada e quinhentos ou seiscentos
metros de corda dispostos em espiral dentro de cestos
dos quais desliza em direção a uma forquilha erguida
na proa da embarcação.
“Esses pequenos barcos ficam à espera escondidos
em pequenas praias ou nas enseadas rochosas daquelas
ilhotas inóspitas. Do alto da ilha, uma sentinela
perscruta continuamente o mar como fazem os gajeiros
nos veleiros; e quando avista a coluna do vapor aquoso
que os cachalotes emitem pelos seus respiradouros, a
sentinela reúne os baleeiros com um sinal combinado.
Em poucos minutos, as embarcações ganham o mar,
dirigindo-se para o local em que o drama será consu­
mado.” (Albert I, Príncipe de Mônaco, La Carrière
d'un Navigateur, págs. 280-283.)

63
De um regulamento

1. Dos cetáceos

Art. 1. O presente regulamento é válido para a


pesca dos cetáceos abaixo indicados, quando essa se
efetua nas águas territoriais de Portugal e das ilhas que
lhe pertencem:
Cachalote, Physeter catodon (Linnaeus)
Baleia comum, Baloenoptera physalus (Linnaeus).
Baleia azul, Baloenoptera musculus (Linnaeus).
Baleia anã, Baloenoptera acustorostrata (Linnaeus).
Baleia corcunda ou “Ampebeque”, Megaptera
nodosa (Linnaeus).

2. Das embarcações

Art. 2. As embarcações empregadas na caça são as


seguintes:
a) Canoas baleeiras. Embarcações de quilha des­
coberta, com propulsão a remo ou a vela,

64
utilizadas na caça propriamente dita para ar­
poar ou matar os cetáceos.
b) Lanchas. Embarcações a propulsão mecânica
utilizadas para assistir às canoas baleeiras, para
o reboque de tais embarcações e dos cetáceos
mortos. Podem eventualmente desempenhar
funções de caça, circundando e arpoando os
cetáceos, quando for necessário e nos termos
do presente regulamento.

Art 44. Em termos de lei, as dimensões das canoas


baleeiras são estabelecidas segundo as seguintes medi­
das: comprimento, de 10 a 11,50 metros; largura, de
1,80 a 1,95 metros.
Art. 45. As lanchas não podem ter um peso inferior
a 4 toneladas e uma velocidade inferior a 8 nós.
Art. 51. Além dos utensílios e dos aparelhos indis­
pensáveis à caça, todas as embarcações baleeiras de­
vem ter a bordo os seguintes objetos: uma machadinha
para cortar o cabo do arpão quando for necessário; três
bandeirolas: uma branca, uma azul e uma vermelha;
uma caixa de biscoitos; um recipiente com água doce;
três tochas luminosas do tipo Holmes.

3. Do exercício da pesca

Art. 54. É expressamente proibido praticar a caça


dos cetáceos com menos de duas embarcações.
Art.55. É proibido lançar o arpão quando as
embarcações se encontrarem a uma distância tal que

65
impeça a prestação de socorro mútuo em caso de
naufrágio.
Art. 56Em caso de naufrágio, todas as embarca­
ções que se encontram nas proximidades do acidente
deverão prestar socorro às vítimas do acidente mesmo
que para tal seja necessário interromper a caça.
Art. 57. Se um homem da tripulação cair no mar
durante as operações de caça, o mestre da embarcação
na qual o acidente se verificou fará cessar todas as
operações, providenciando eventualmente o corte do
cabo e ocupando-se exclusivamente da recuperação
do náufrago.
Art. 57 A. Se no local do acidente se encontrar
uma embarcação comandada por um outro mestre,
essa não poderá recusar a assistência necessária.
Art. 57 B. Se o homem caído no mar for o mestre,
o comando passa ao arpoador, ao qual compete fazer
seguir o regulamento de acordo com o art. 57.
Art. 61. A direção da caça cabe ao mestre mais
antigo, salvo acordo contrário previamente declarado.
Art. 64. No caso de serem encontrados no mar ou
na costa cetáceos mortos ou agonizantes, quem os
encontra deve comunicar imediatamente o fato às
autoridades marítimas, as quais se encarregarão de
proceder à verificação para descobrir eventuais arpões
registrados. Em caso positivo, os cetáceos serão entre­
gues aos legítimos proprietários dos arpões. Aquele
que encontrou o cetáceo terá direito a uma remune­
ração que será liquidada nos termos do art. 685 do
Código Comercial.

66
Art. 66 É expressamente proibido lançar nos
cetáceos arpões soltos (não atrelados ao barco com
cabo ao barco) quaisquer que sejam as circunstâncias,
e quem o faz não adquire direito algum sobre o
cetáceo arpoado.
Art. 68. Nenhuma embarcação poderá, sem pré­
via autorização, cortar os cabos de outra embarcação,
a menos que seja obrigada a isso por motivos de
perigo.
Art. 69. Arpões, cabos, sinais de registro etc.
encontrados num cetáceo por outras embarcações
serão restituídos aos legítimos proprietários sem que
isso implique algum tipo de remuneração ou de
indenização.
Art. 70. É proibido arpoar ou matar baleias do
gênero Balaena, vulgarmente denominadas baleias
francas.
Art. 71. É proibido arpoar ou matar as fêmeas
surpreendidas durante o aleitamento ou os filhotes
ainda em idade de aleitamento.
Art. 72. Para efeito da conservação da espécie e de
um melhor aproveitamento da caça, cabe ao ministro
da Marinha estabelecer as medidas dos cetáceos que
podem ser capturados, estabelecer épocas de interdi­
ção da caça, limitar o número dos cetáceos caçáveis e
estabelecer outras medidas restritivas que julgar ne­
cessárias.
Art. 73. A captura dos cetáceos para fins científi­
cos pode ser efetuada somente com prévia autorização
ministerial.

67 ••
Art. 74. É expressamente proibido qualquer tipo
de caça esportiva.
(Regulamento da caça aos cetáceos, publicado no
Diário do Governo de 19. 5. 1954 e atualmente em
vigor.)

Em Horta, no primeiro domingo de agosto,


festeja-se o dia dos baleeiros. Estes alinham os barcos
pintados de novo na baía de Porto Pim, o sino toca
rapidamente um breve toque rouco, chega o padre e
benze os barcos. Depois, organiza-se uma procissão
que sobe até o promontório que domina a baía, onde
está a capela de Nossa Senhora da Guia, Atrás do
padre, vêm as mulheres e as crianças, por último os
baleeiros, cada um com o seu arpão no ombro. Ficam
muito compungidos e se vestem de preto. Entram
todos na capela para assistir à missa e deixam os arpões
apoiados no muro externo, um ao lado do outro,
como em outros lugares ficam apoiadas as bicicletas.

A capitania está fechada, mas o senhor Chaves me


recebe assim mesmo. É um homem distinto e cortês,
com um sorriso aberto e ligeiramente irônico, os
olhos azuis de algum antepassado flamengo. Não
sobrou quase nenhum, me diz, não creio que seja fácil
conseguir um embarque. Pergunto se está se referindo
aos cachalotes e ele ri divertido. Não, estou falando
dos baleeiros, especifica, emigraram todos para a
América, todos os açorianos emigram para a América,

68 .
os Açores estão desertos, não viu? Sim, certamente,
pude perceber, digo, eu lamento. Por quê?, pergunta
ele. É uma pergunta embaraçosa. Porque eu gosto dos
Açores, respondo com pouca lógica. Então vai gostar
deles desertos, contrapõe: vai gostar. E depois sorri
como para desculpar-se de ter sido rude. De qualquer
forma, pense em fazer um seguro de vida, conclui, do
contrário não posso lhe dar a permissão, Eu me
encarrego do seu embarque, falarei com o senhor
Antonio José que talvez zarpe amanhã, parece que há
um grupo chegando. Mas não lhe prometo uma
permissão por mais de dois dias.

69
Uma caçada

É um grupo de seis ou sete, me diz o senhor Carlos


Eugênio pondo à mostra no sorriso satisfeito uma
dentadura tão brilhante que chego a pensar que tenha
sido feita só com marfim de cachalote. O senhor
Carlos Eugênio tem setenta anos, é ágil e ainda
conserva um ar juvenil, é “mestre baleeiro”, mas na
realidade é o capitão dessa pequena chusma e tem
poder de decisão absoluta sobre cada operação da
caça. A lancha a motor, que guia a expedição, é de sua
propriedade, é um velho barco de uma dezena de
metros que ele manobra com contenção e desenvoltu­
ra; com calma e também, a tal ponto que me diz: as
baleias estão brincando e não vão escapar. Mantém
contato pelo rádio com o observador que se encontra
no farol da ilha e que nos orienta com voz monótona
e, ao que me parece, ligeiramente irônica. Um pouco
mais à direita, Maria Manuela, diz a voz estridente,
está indo para onde lhe dá na telha. Maria Manuela é
o nome do barco. O senhor Carlos Eugênio faz um
gesto de irritação, rindo ainda, depois volta-se para o

70
marinheiro que está conosco, um homem magro e
esbelto, quase um rapaz, com os olhos muito inquie­
tos e a pele escura. Vamos observar por nossa conta,
decide, e desliga o rádio. O marinheiro se encarapita
agilmente sobre o único mastro do barco e se empoleira
no cavalete da ponta cruzando as pernas. Ele também
aponta para direita com a mão, por um momento
penso que as tenha avistado, mas ignoro a semiologia
dos baleeiros, o senhor Carlos Eugênio me explica que
a mão aberta, com o indicador para cima, significa
“baleia à vista” e o avisador não fez esse aceno.
Dou uma olhada na chalupa que estamos rebo­
cando. Os baleeiros estão tranquilos, riem e conver­
sam entre eles mas as palavras não chegam até mim,
parece que estão em uma excursão, São seis, sentados
nas tábuas atravessadas sobre o convés. Mas o arpoador
está em pé e parece acompanhar com atenção os gestos
do nosso avisador: é um homem com uma barriga
enorme e barba cerrada, jovem, não mais de trinta
anos, ouvi que o chamam de Chá Preto, e trabalha
como estivador no porto de Horta. Pertence à coope­
rativa baleeira de Faial e me disseram que é um
arpoador de habilidade excepcional.
Dou por conta da baleia quando eia está a menos
de trezentos metros: uma coluna de água jorrando
contra o azul como quando se rompe um cano na rua
de uma grande cidade. O senhor Carlos Eugênio
desligou o motor e a lancha continua avançando por
inércia em direção àquela curiosa forma negra que
parece um petardo enorme sobre a água. Na chalupa,
os baleeiros se preparam em silêncio para as operações

71 .......
de ataque: são tranqüilos e rápidos, resolutos, sabem
de cor os gestos afazer. Remam com braçadas vigoro­
sas e pausadas, em um instante estão longe, comple­
tam um largo círculo, apontam para a baleia de frente
para evitar a cauda e porque a aproximação pelos lados
os exporia aos olhos dela. Quando estão a uma cente­
na de metros, recolhem os remos no barco e içam uma
pequena vela triangular. Todos manobram a vela e as
cordas: só o arpoador fica imóvel na ponta da proa: em
pé, com uma perna flexionada para diante e o arpão
abraçado como se o estivesse pesando, espera concen­
trado o momento propício, aquele momento em que
o barco estará perto o bastante para que ele possa
atingir um ponto vital, mas longe o bastante para que
o barco não seja atropelado por um golpe de cauda do
cetáceo ferido. Em poucos segundos tudo se consuma
com rapidez espantosa. O barco dá uma guinada
repentina enquanto o arpão ainda está descrevendo
no ar a sua parábola. O instrumento da morte não é
lançado de cima para baixo, como eu esperava, mas de
baixo para cima, como um dardo; são enormes o peso
do ferro e a velocidade da queda a transformá-lo num
projétil mortal. Quando a enorme cauda se ergue e
fustiga primeiro o ar e depois a água, a chalupa já está
longe, os remadores recomeçaram a remar com fúria
e um estranho jogo de cordas, que até então se
desenvolvia debaixo d’água e que eu não tinha visto,
leva-me a compreender, de repente, que a nossa
lancha também está ligada ao arpão, enquanto a canoa
baleeira soltou o seu cabo. De um cesto de palha
colocado em uma valeta no meio da lancha, começa

72
a se desenrolar uma corda grossa que chia ao deslizar
por uma forquilha da proa, enquanto o marujo que é
pau para toda obra trata de refrescá-la com um balde
d’água para que não se rasgue com o atrito. Depois o
cabo se estica e nós partimos de repente, num salto,
atrás da baleia ferida que foge. O senhor Carlos
Eugênio segura o timão e mastiga a ponta de um
cigarro; o marinheiro com cara de menino vigia,
preocupado, os movimentos do cachalote: segura na
mão uma machadinha afiada, pronto para cortar o
cabo no caso de o cetáceo afundar porque nos arras­
taria consigo para debaixo d’água. Mas a corrida
desenfreada dura pouco, talvez nem mesmo um qui­
lômetro: a baleia pára de chofre, exausta, e o senhor
Carlos Eugênio precisa acionar a hélice ao contrário a
fim de que a inércia do empurrão não nos faça bater
no cetáceo imóvel. Foi um bom tiro, diz com satisfa­
ção, e põe à mostra a sua dentadura brilhante. Como
para confirmar a sua afirmação, a baleia, assobiando,
ergue completamente a cabeça e respira; e o jato que
sibila no ar está rubro de sangue, sobre o mar se alastra
uma poça vermelha e uma poeira de gotas vermelhas,
levada pela brisa, chega até nós e nos suja os rostos e
as roupas. A canoa dos baleeiros se encostou ao lado da
lancha: Chá Preto larga na ponte os seus instrumentos
e depois pula para cima com uma agilidade deveras
insuspeitada para um homem de seu tamanho. Com­
preendo que quer guiar o ataque seguinte da lancha,
mas o “mestre” parece não concordar: segue-se uma
confabulação exaltada da qual o marinheiro com cara
de menino não participa. Depois Chá Preto, que
evidentemente levou a melhor, se coloca na proa, na
sua posição de lançador de dardo, agora troca o arpão
por um instrumento de tamanho parecido mas com
ponta afiadíssima, em forma de coração alongado,
como uma alabarda. O senhor Carlos Eugênio avança
com o motor no mínimo, vamos na direção da baleia
que respira imóvel na poça de sangue enquanto a sua
cauda, inquieta, esbofeteia a água com movimentos
espasmódicos. Desta vez o instrumento da morte
baixa do alto, arremessado obliquamente e trespassa a
carne mole como se fosse manteiga. Um mergulho: a
massa enorme desaparece agitando-se sob a água.
Depois aflora de novo a cauda, impotente e dolorosa,
como uma vela negra. E finalmente a enorme cabeça
emerge e então ouço o grito de morte, um lamento
agudo como um assovio, estridente, aflitivo, insupor­
tável.
A baleia está morta, flutua imóvel. O sangue
coagulado forma um atol como que de coral. Eu não
tinha me dado conta de que o dia estava acabando, e
o crepúsculo caindo me surpreende. Toda a tripula­
ção está ocupada com a operação, faz-se apressada­
mente um furo na nadadeira da cauda por onde
passam um cabo com um bastão que serve de trava.
Estamos a mais de dezoito milhas ao largo, me diz o
senhor Carlos Eugênio, vamos precisar de uma noite
inteira para retornar, é um cachalote de umas trinta
toneladas e a lancha terá de navegar em velocidade
muito reduzida. Em um estranho cortejo marinho
guiado pela lancha e encerrado pela baleia, nos dirigi­
mos para a ilha de Pico, ao estabelecimento de São

74 .......
Roque. No meio está a canoa dos baleeiros e o senhor
Carlos Eugênio me convida a transferir-me para ela,
assim poderei repousar um pouco; o motor da lancha,
submetido a um grande esforço, faz um barulho
infernal e seria impossível dormir. Encostamos para o
transbordo e ele também vem comigo, confia a lancha
ao marinheiro jovem e a dois remadores que tomam
o nosso lugar. Os baleeiros me preparam uma enxerga
ao lado do leme; caiu a noite e na canoa acenderam
duas lanternas a querosene. Os pescadores estão aca­
bados de cansaço, com os rostos tensos e sérios que a
luz das lanternas torna amarelos. Içam avela para não
sermos um peso passivo que aumenta o esforço da
lancha, depois se deitam desordenadamente pelo
assoalho e caem num sono profundo. Chá Preto
dorme de barriga para cima e ronca ruidosamente. O
senhor Carlos Eugênio oferece-me um cigarro e me
fala dos seus dois filhos, que emigraram para a Amé­
rica e que ele não vê há seis anos. S ó voltaram uma vez,
me conta, talvez venham no próximo verão, queriam
que eu fosse para junto deles, mas quero morrer aqui,
na minha terra. Fuma lentamente e olha para o céu
estrelado. Mas o senhor, por que quis participar desta
jornada, me pergunta, por simples curiosidade? Hesi­
to pensando na resposta: gostaria de responder dizen­
do a verdade, mas o receio de que possa ser ofensiva me
detém. Deixo pender uma mão na água. Se esticasse
o braço, quase poderia tocar a enorme barbatana do
animal que estamos rebocando. Talvez porque vocês
estejam em extinção, finalmente lhe digo em voz
baixa, vocês e as baleias, acho que é por isso. Provavel-

75
mente adormeceu, não responde nada. Mas entre os
dedos, ainda brilha a brasa do cigarro. A vela estala de
modo lúgubre, os corpos imóveis no sono são peque­
nos montes escuros e a canoa desliza sobre a água
como um navio-fantasma.

76
Mulher de Porto Pim. Uma história

Todas as noites eu canto porque sou pago para isso,


mas as canções que você escutou eram pesinhos e
sapateiras para os turistas de passagem e para aqueles
americanos que estão rindo lá no fundo e que daqui a
pouco irão embora cambaleando. Minhas canções de
verdade são só quatro chamaritas, porque o meu
repertório é pequeno, e além disso estou quase velho,
e fumo muito, e a minha voz é rouca. Tenho de vestir
este balandrau açoriano que já foi moda em outra
época, porque aos americanos agrada o pitoresco,
depois voltam para o Texas e contam que estiveram
em uma taberna de uma ilha perdida onde havia um
velho vestido com uma capa arcaica, que cantava o
folclore da sua gente. Querem a “viola de arame” que
dá esse som de animal melancólico, e eu lhes canto
modinhas açucaradas nas quais a rima é sempre a
mesma, mas eles não chegam a compreender e, como
vê, bebem gim-tônica. Mas e você, que vem aqui todas
as noites, que é que está procurando? Você é curioso
e procura alguma outra coisa, porque é a segunda vez

77
que me convida para beber, pede vinho de cheiro
como se fosse um dos nossos, é estrangeiro e finge que
fala como nós, mas bebe pouco e além disso fica
calado e espera que eu fale. Você disse que é escritor
e talvez o seu ofício tenha alguma coisa a ver com o
meu. Todos os livros são tolos, há sempre pouca coisa
verdadeira, e no entanto li tantos nos últimos trinta
anos, não tinha outra coisa para fazer, li também
muitos italianos, naturalmente todos em tradução, o
de que mais gostei se chamava Canaviais no vento, de
uma certa Deledda, você conhece? Ademais, você é
jovem e gosta das mulheres, eu vi como olhava aquela
mulher muito bonita do pescoço comprido, você
olhou para ela a noite toda, não sei se está com ela, que
também olhava para você. Talvez lhe pareça estranho
mas tudo isso me fez lembrar de uma coisa, deve ser
porque bebi demais. Sempre escolhi o exagero na
vida, e isso é uma perdição, mas não se pode fazer nada
quando se nasce assim.
Defronte à nossa casa havia uma atafona, nesta
ilha se chamava assim, era uma espécie de nora que
girava em círculo, agora não existe mais, estou falando
de muito tempo atrás, você nem era nascido. Quando
penso, posso ouvir ainda o rangido, é um dos ruídos
da minha infância que ficou na memória, minha mãe
me mandava com a bilha pegar água e eu, para aliviar
o cansaço acompanhava o movimento com uma
canção de ninar e às vezes dormia mesmo. Além da
nora havia um muro baixo caiado, depois vinha o
precipício e no fundo, o mar. Éramos três irmãos e eu
era o mais moço. Meu pai era um homem lento,

78
comedido nos gestos e nas palavras, com os olhos tão
claros que pareciam de água, o seu barco se chamava
Madrugada, que era também o nome da casa de minha
mãe. Meu pai era baleeiro, como o tinha sido seu pai,
mas em certa época do ano, quando as baleias não
passam, praticava a pesca das moréias, e nós íamos
com ele, e nossa mãe também. Agora não se faz mais
assim, mas quando eu era pequeno era hábito usar um
rito que fazia parte da pesca. As moréias se pescam à
noite, no crescente da lua, e para atraí-las se usava uma
canção que não tinha palavras; era um canto, uma
melodia primeiro baixa e lânguida e depois aguda, eu
nunca ouvi um canto tão triste, parecia que vinha do
fundo do mar ou de almas perdidas na noite, era um
canto antigo como as nossas ilhas, agora ninguém sabe
mais, se perdeu, e talvez seja melhor assim porque
trazia consigo uma maldição ou um destino, como
uma magia. Meu pai saía com o barco, era de noite,
movia os remos devagar, na perpendicular para não
fazer barulho e nós, meus irmãos e minha mãe, nos
sentavamos na falésia e começávamos o canto. Algu­
mas vezes os outros se calavam e pediam que eu fizesse
o chamado, porque diziam que a minha voz era mais
melodiosa do que todas as outras e que a ela as moréias
não resistiam. Não acredito que minha voz fosse
melhor do que a dos outros: queriam que eu cantasse
só porque eu era o mais moço e diziam que as moréias
gostam das vozes claras. Talvez fosse uma superstição
sem fundamento, mas isso não importa.

79
Depois crescemos e minha mãe morreu. Meu pai
se tornou ainda mais taciturno e às vezes, de noite,
sentava-se sobre o muro da falésia e olhava o mar.
Agora só saíamos para pescar baleias, nós três éramos
grandes e fortes, e meu pai nos confiou arpões e lanças,
como a sua idade exigia. Depois, um dia, meus irmãos
foram embora. O do meio foi para a América, só
contou que ia no dia da partida, eu fui ao porto para
me despedir, meu pai não foi. O outro foi ser cami­
nhoneiro no continente, era um rapaz brincalhão que
sempre tinha gostado do barulho dos motores, quan­
do a guarda republicana veio comunicar o acidente eu
estava só em casa e contei a meu pai no jantar.
Continuamos nós dois a pescar baleias. Agora era
mais difícil, era preciso contratar trabalhadores diaris­
tas porque em menos de cinco não se pode sair, e meu
pai queria que eu me casasse porque uma casa sem
mulher não é uma verdadeira casa. Mas eu estava com
vinte e cinco anos e gostava de brincar de amor, todos
os domingos descia ao porto e trocava de namorada,
na Europa era a época da guerra e, nos Açores, gente
ia e vinha, cada dia um navio atracava aqui ou ali, e em
Porto Pim se falavam todas as línguas.
Eu a encontrei num domingo, no porto. Estava
vestida de branco, tinha os ombros nus e usava um
chapéu de rendas. Parecia saída de um quadro e não
de um daqueles navios carregados de pessoas que
fugiam para as Américas. Olhei para ela longamente
e ela também olhou para mim. É estranho como o
amor pode entrar dentro de nós. Em mim entrou ao
notar o indício de duas pequenas rugas que tinha em

80
torno dos olhos e pensei assim; já não é tão jovem.
Pensei assim porque talvez para aquele rapaz que eu
era, uma mulher madura parecesse mais velha do que
realmente era. Que tinha pouco mais de trinta anos só
soube muito mais tarde, quando saber a sua idade já
não adiantava. Dei bom-dia a ela e perguntei se podia
ser-lhe útil. Indicou-me a mala que estava a seus pés.
Leve-a ao Bote, disse na minha língua. O Bote não é
um lugar para senhoras, disse eu. Eu não sou uma
senhora, respondeu, sou a nova dona.
No domingo seguinte desci de novo à cidade. O
Bote naquela época era um lugar estranho, não era
propriamente uma hospedaria para pescadores e eu só
tinha entrado lá uma vez. Sabia que existiam dois
reservados nos fundos, diziam que ali se jogava a
dinheiro e a sala do bar tinha um arco baixo, um
espelho grande ornado com arabescos e mesinhas de
figueira. Os clientes eram todos estrangeiros, parece­
ría que estavam todos de férias, na verdade passavam
o dia a se espionar, cada um fingindo ser de um país
que não era o seu, e nos intervalos jogavam cartas.
Faial, naqueles anos, era um lugar incrível. Atrás do
balcão ficava um canadense baixo, com as costeletas
pontudas, que se chamava Denis e falava o português
como os de Cabo Verde, eu o conhecia porque aos
sábados costumava ir ao porto para comprar peixe, no
Bote podia-se jantar, só aos domingos à noite. Foi ele
que mais tarde me ensinou o inglês.
Quero falar com a dona, eu disse. A senhora só
vem depois das oito, respondeu com superioridade.
Sentei-me a uma mesa e pedi o jantar. Por volta das

81
nove horas ela entrou, havia outros fregueses, me viu,
me saudou distraidamente e depois se sentou num
canto onde estava um velho senhor de bigodes bran­
cos. Só então percebi o quanto era bonita, de uma
beleza que me queimava as têmporas, fora isso que me
atraíra para lá, mas até aquele momento eu não tinha
conseguido compreender com exatidão. E naquele
momento o que compreendi ficou tão claro dentro de
mim que quase tive uma vertigem. Passei a noite
olhando para ela, com a cabeça entre os punhos, e
quando saiu, eu a segui à distância. Ela caminhava
ligeiro, sem olhar para trás, como quem não se preo­
cupa de estar sendo seguido, transpôs a porta da
muralha de Porto Pim e começou a descer a enseada.
No outro lado do golfo, onde termina o promontório,
isolada entre as rochas, entre um canavial e uma
palmeira, há uma casa de pedra. Talvez você já a tenha
visto, agora é uma casa desabitada e as janelas estão
caindo, tem qualquer coisa de sinistro, qualquer dia o
teto vai desabar, se é que já não desabou. Ela morava
lá, mas então era uma casa branca com alizares azuis
nas portas e janelas. Entrou e fechou a porta e a luz se
apagou. Eu me sentei sobre um rochedo e esperei. No
meio da noite uma janela se iluminou, ela se debruçou
e eu a olhei. As noites são silenciosas em Porto Pim,
basta sussurrar no escuro para ser ouvido à distância.
Deixe-me entrar, supliquei. Ela fechou a persiana e
apagou a luz. A lua estava surgindo, com um véu
vermelho de lua de verão. Eu sentia um tormento, a
água se agitava em torno de mim, tudo era tão intenso
e tão inalcançável que me lembrei de quando era

82
criança e à noite chamava as moréias da falésia: e então
me ocorreu uma fantasia, não soube me conter e
comecei a cantar aquele canto. Eu o cantei muito
suavemente como um lamento ou uma súplica, com
uma mão na orelha para guiar a voz. Pouco depois a
porta se abriu e eu entrei na escuridão da casa e me
encontrei entre os braços dela. Meu nome é Yeborath,
foi só o que disse.
Você sabe o que é a traição? A traição, a verdadei­
ra, é quando você sente vergonha e quer ser um outro.
Eu quis ser um outro quando fui me despedir do meu
pai e seus olhos me seguiam enquanto eu pegava o
arpão e o recobria com a lona encerada e o pendurava
num prego da cozinha e punha a tiracolo a viola que
ele me dera pelos meus vinte anos. Decidi mudar de
profissão, disse rapidamente, vou cantar num local de
Porto Pim, venho visitá-lo no sábado. Mas naquele
sábado não fui, nem no sábado seguinte e, mentindo
a mim mesmo, me dizia que iria no próximo. E assim
chegou o outono, passou o inverno e eu continuava
cantando. Tinha também outras pequenas tarefas
porque às vezes certos fregueses bebiam demais e para
levantá-los e botá-los para fora era necessário um
braço robusto que Denis não possuía. E, além disso,
escutava o que diziam os fregueses que fingiam estar
de férias, é fácil escutar as confidências dos outros
quando se é cantor de taberna e, como você vê,
também é fácil fazê-las. Ela me esperava na casa de
Porto Pim e agora eu já não precisava bater à porta. Eu
lhe perguntava: quem é você, de onde veio?, por que
não vamos para longe desses indivíduos absurdos que

83
fingem jogar baralho, quero ficar com você para
sempre. Ela ria e me deixava intuir a razão daquela sua
vida, dizendo: espere um pouco mais e iremos embora
juntos, precisa confiar em mim, mais não posso lhe
dizer. Depois ficava nua na janela, olhava a lua e me
dizia: cante o seu chamamento, mas em voz baixa. E
enquanto eu cantava, me pedia que a amasse e eu a
possuía em pé enquanto ela olhava a noite como se
estivesse esperando alguma coisa.
Aconteceu em dez de agosto. Na noite de São
Lourenço o céu fica cheio de estrelas cadentes, contei
treze delas voltando para casa. Encontrei a porta
fechada e bati. Depois bati de novo, com mais força
porque a luz estava acesa. Ela veio abrir e ficou à porta
mas eu a afastei com um braço. Parto amanhã, disse,
a pessoa que eu esperava voltou. Sorria como se me
agradecesse, e quem sabe por que pensei que ela estava
pensando no meu canto. No fundo da sala uma figura
se mexeu. Era um homem idoso e estava se vestindo.
Que é que quer?, perguntou-lhe naquela língua que
agora eu compreendia. Está bêbado, disse ela, já foi
baleeiro mas deixou o arpão pela viola e durante a sua
ausência foi meu empregado. Mande-o embora, disse
ele sem olhar para mim.
Havia um reflexo claro na enseada de Porto Pim.
Percorrí o golfo como num sonho, quando a gente dá
por si já está na outra ponta da paisagem. Não pensei
em nada porque não queria pensar. A casa de meu pai
estava escura porque ele se deitava cedo. Mas não
estava dormindo, como acontece com freqüência
com os velhos que jazem imóveis no escuro como se

84
isso fosse uma espécie de sono. Entrei sem acender a
lanterna mas ele me ouviu. Você voltou, murmurou.
Eu fui até a parede do fundo e peguei o meu arpão. Eu
me movimentava à luz da lua. Não se pescam baleias
a esta hora da noite, disse ele da sua enxerga. É uma
moréia, disse eu. Não sei se compreendeu o que queria
dizer mas não respondeu e não se mexeu. Pareceu-me
que fizesse um gesto de saudação com a mão, mas
talvez tenha sido a minha imaginação ou um jogo de
sombras da penumbra. Não mais o revi, morreu
muito antes que eu tivesse cumprido a minha senten­
ça. Também não revi meu irmão. No ano passado
recebi uma fotografia dele, é um homem gordo com
os cabelos brancos cercado por um grupo de desco­
nhecidos que devem ser os filhos e as noras, estão
sentados na varanda de uma casa de madeira e as cores
são exageradas como nos cartões-postais. Dizia que se
eu quisesse ir para onde ele está que há trabalho para
todos e que a vida lá é fácil. Pareceu-me quase ridículo.
Que quer dizer uma vida fácil, quando a vida já se foi?
E se você se demorar ainda um pouco e a voz não
falhar, esta noite vou lhe cantar a melodia que selou o
destino desta minha vida. Nunca mais a cantei em 30
anos e pode ser que a voz não agüente. Não sei por que
o faço. É um presente para aquela mulher do pescoço
comprido e para aquela força que um rosto tem de
aflorar num outro, e isso talvez tenha me comovido.
E para você, italiano, que vem aqui todas as noites e
não esconde que está ávido de histórias verdadeiras
para transformá-las em papel, dou-lhe esta história
que acaba de ouvir, Pode até colocar o nome de quem

85
a contou, mas não aquele com o qual sou conhecido
nesta taberna, que é um nome para os turistas de
passagem. Escreva que esta é a verdadeira história de
Lucas Eduino, que matou com o arpão a mulher que
acreditou que era sua, em Porto Pim.
Ah!, só sobre uma coisa ela não tinha mentido
para mim, descobri durante o processo. Chamava-se
mesmo Yeborath. Se é que isso importa.

86
Post Scriptum

Uma baleia vê os homens

Sempre tão afobados, e com longos membros que


agitam com freqüência. E são tão pouco redondos,
sem a majestade das formas plenas e acabadas, e com
uma pequena cabeça móvel na qual parece se concen­
trar toda a sua estranha vida. Chegam deslizando
sobre o mar mas não a nado, quase fossem pássaros e
dão a morte com fragilidade e amável ferócia. Ficam
muito tempo em silêncio, mas depois, com fúria
repentina, gritam entre eles, num emaranhado de
sons que quase não varia e ao qual falta a perfeição dos
nossos sons essenciais: chamamento, amor, pranto de
luto. E como deve ser penosa a sua forma de amar: e
rude, quase brusca, imediata, sem uma fofa manta de
gordura, favorecida pela natureza filiforme deles que
não pressupõe a heróica dificuldade da união, nem os
magníficos e ternos esforços para consegui-la.
Não gostam da água, receiam-na, e não se enten­
de por que a freqiientam. Eles também andam em
bandos, mas não levam fêmeas, e se imagina que elas
fiquem em outro lugar, mas sempre invisíveis. Às

87 .......
vezes cantam, mas só para si, e o canto deles não é um
chamamento mas uma forma de lamento comovente.
Cansam-se depressa e quando a noite cai deitam-se
sobre as pequenas ilhas que os conduzem e talvez
durmam ou olhem a lua. Deslizam em silêncio e
percebe-se que estão tristes.

88
Apêndice

Um mapa, uma nota,


alguns livros
Um mapa

91
Uma nota

Em pleno oceano Atlântico, mais ou menos no meio do caminho


entre a Europa e a América, a uma latitude Norte que varia entre
36 graus 55’ e 39 graus 44’, e a uma longitude compreendida
entre 25 graus e 31 graus, está situado o arquipélago dos Açores,
formado por nove ilhas: Santa Maria, São Miguel, Terceira,
Graciosa, São Jorge, Pico, Faial, Flores, Corvo. O arquipélago se
estende por cerca de 600 km, em direção Noroeste-Sudeste. O
nome se deve a um erro dos primeiros navegadores portugueses
que tomaram por águias (em português “açores”) os numerosos
gaviões que povoam os rochedos das ilhas.
A colonização portuguesa teve início em 1432 e continuou
por todo o século XV, mas naquela época os Açores receberam
também uma considerável colonização flamenga, resultante de
casamentos que aparentavam o trono português com o das
Flandres. Os flamengos deixaram vestígios muito evidentes,
além das feições dos habitantes, na música popular e nas tradições
folclóricas em geral. A natureza do solo é de origem vulcânica. As
falésias costeiras são muitas vezes lençóis de lava duríssima,
enquanto que nas zonas chuvosas existem extensões de pedra-
pomes reduzida a pó. As características físicas da paisagem
revelam inequivocamente marcas de atividade vulcânica e sísmi­
ca. Além de toda uma série de atividades vulcânicas menores

93
(jatos de vapor, gêiseres, fontes e charcos quentes, etc.) são
muitos os lagos vulcânicos, que ocuparam antigas crateras, e a
paisagem é freqüentemente interrompida por profundos sulcos
cavados na lava ardente. O interior e as montanhas são de uma
beleza selvagem e não raro lúgubre. O cume mais alto, com 2.345
metros, é o Pico, na ilha do mesmo nome. As erupções vulcânicas
de que temos notícia são inúmeras: os terremotos mais assusta­
dores ocorreram em 1522, em 1538, em 1591, em 1630, em
1755, em 1810, em 1862, em 1884, e em 1957. Os efeitos do
terremoto de 1978, que que atingiram particularmente a ilha
Terceira, são bem visíveis para o viajante que faz sua parada em
Angra. No curso dessa incessante atividade vulcânica, a paisagem
dos Açores passou por notáveis mutações e incontáveis ilhotas
afloraram e desapareceram. O fato mais curioso a esse respeito foi
descrito pelo capitão inglês Tillard que, a bordo do baixei de
guerra Sabrina, assistiu, em 1810, ao nascimento de uma ilhazinha
sobre a qual ele fez desembarcar dois homens com a bandeira
inglesa, tomando posse em nome da Inglaterra e batizando-a
Sabrina. No dia seguinte, porém, antes de levantar âncora, o
capitão Tillard constatou desapontado que a ilha de Sabrina
havia desaparecido, tendo o mar retornado à tranquilidade de
sempre.
O clima dos Açores é ameno, com chuvas abundantes mas
de breve duração e verões muito quentes. A natureza é exuberante
e inúmeras as espécies vegetais. A uma flora de tipo mediterrâneo
no qual predominam o cedro, a laranja, a videira e o pinheiro,
sobrepõe-se a vegetação tropical na qual se destacam o abacaxi,
a banana, o maracujá e uma grande variedade de flores. São
abundantes os pássaros eas borboletas. Não se conhecem répteis.
A caça à baleia, segundoos métodos arcaicos descritos neste livro,
só é praticada atualmente nas ilhas Pico e Faial. Em nosso século,
uma forte emigração cujos motivos são de natureza essencial­
mente econômica, despovoou bastante o arquipélago. Corvo,
Flores e Santa Maria estão quase desabitadas.

94
Alguns livros

ALBERT I, PRÍNCIPE DE MÔNACO, La Carrihe dún


Navigateur, Mônaco, 1905 (sem indicação do editor).
RAÚL BRANDÃO, As ilhas desconhecidas, Bertrand, Rio-Paris
1926.
JOSEPH e HENRY BULLAR, A Winter in the Azores and a
Summer at the Fumas, John van Voorst, Londres, 1841.
Diário de Miss Nye, em “Insulana”, vol. XXIX-XXX, Ponta
Delgada, 1973-74.
J. MOUSINHO FIGUEIREDO, Introdução ao estudo da indús­
tria baleeira insular, Astória, Lisboa, 1945.
GASPAR FRUTUOSO, Saudades da Terra, 6 vols., Lisboa,
1569-1591 (uma edição moderna com ortografia atualizada:
Ponta Delgada, 1963-64).
JULES MICHELET, La Mer, Hachette, Paris, 1861.
ANTERO DE QUENTAL, Sonetos, Coimbra, 1861 (inúmeras
edições sucessivas).
Capitão JOSHUA SLOCUM, Sailing Alone around the World,
Rupert Hart-Davis, Londres, 1940 (1ª edição 1900).
BERNARD VENABLES, Baleia! The Whalers of the Azores, The
Bodley Head, Londres-Sydney-Toronto, 1968.

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Você também pode gostar