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Apresentando narrativas de:

Joseph-Émile Poirier, Gustave le Rouge e Vernon Lee


Seleção e tradução:
P. Garay Costa
Edição, revisão e diagramação:
Diego Quadros
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Brasil – 2022
SUMÁRIO
Apresentação
Os Condenados de Ker-Ys
Joseph-Émile Poirier
No Ventre de Huitzilopochtli
Gustave le Rouge
A Boneca
Vernon Lee
P. Garay Costa
Sobre o Projeto
Outras Publicações
APRESENTAÇÃO

Na edição de nº 5 de “Clássicos do Horror, do Estranho e do


Sobrenatural” apresentamos uma conhecida e excelente escritora
britânica e dois escritores franceses desconhecidos por aqui.
Joseph-Émile Poirier (1875-1939) foi um poeta e escritor
francês muito popular em seu tempo, mas esquecido depois. Há
poucas informações disponíveis sobre ele. O conto aqui traduzido,
Os Condenados de Ker-Ys, é a narrativa de uma lenda bretã que
fala de um reino que foi punido com uma inundação e cujos
habitantes aguardam no fundo das águas pela sua libertação.
Gustave Le Rouge (1867-1938) foi um prolífico e diversificado
escritor francês que se aventurou pelo romance de capa e espada,
poesia, antologias, memórias, peças de teatro, roteiros de cinema,
ensaios e crítica. Notabilizou-se, porém, na produção de romances
populares de aventura, sempre empregando elementos do
fantástico, da ficção científica e do maravilhoso. No conto que
trazemos, No Ventre de Huitzilopochtli, um explorador
estadunidense, ao ver que suas mãos descoradas chamavam a
atenção de uma moça, resolve contar-lhe sua aventura nos Andes
quando sua pele se tornou daquela cor.
Vernon Lee (1856-1935), pseudônimo masculino de Violet
Paget, foi uma ensaísta e contista britânica, admirada pela sua
maestria no gênero horror e pelos seus textos sobre estética. No
conto aqui publicado, A Boneca, uma turista inglesa “caçadora de
antiguidades”, ao visitar a Itália, depara-se com um objeto singular:
uma boneca em tamanho natural de uma nobre italiana que viveu no
início do século XIX. Ao investigar a vida da mulher, desvela as
inúmeras opressões que ela sofreu e encontra um jeito de libertá-la
postumamente.
“Clássicos do Horror, do Estranho e do Sobrenatural” é uma
série de pequenas antologias que, a cada edição, apresenta três
narrativas inéditas de autores clássicos da literatura estrangeira com
traduções exclusivas.
Boa leitura.
P. Garay Costa
Escritor e tradutor
Maio de 2022
Título original: ‘Les Damnés de Ker-Ys’
Publicado em: 2 de mao de 1936 no jornal ‘Excelsior’
Referência: POIRIER, Joseph-Émile. Les Damnés de Ker-Ys. IN:
Les Contes d’Excelsior. Excelsior, ano 27, n° 9272, sábado, 2 de
maio de 1936.
OS CONDENADOS DE KER-YS
Joseph-Émile Poirier
Meu anfitrião baixou o lampião à luz da qual ele me conduzia
pelo vasto porão que se estendia sob a mansão.
— É aqui — ele disse. — Escute!
Um rumor poderoso, mas distante e confuso, subia até nós
através do solo.
Eu o olhei e ele, sem dúvida, leu nos meus olhos a interrogação
que eu formularia, pois se antecipou:
— É o som das ondas, provavelmente quando quebram no
interior da gruta chamada Inferno de Plogoff.
E acrescentou quase que imediatamente:
— A tradição diz que aqui havia uma abertura por onde se podia
penetrar no solo graças a uma escada em espiral. Um dos
proprietários da mansão mandou fechar esse poço, pois os
moradores da região acreditavam que o som era das almas
condenadas. Há mesmo uma lenda sobre isso…
E como eu insisti para que me contasse, ele prometeu fazê-lo à
noite, depois da janta.
Quando a lembrança me leva de volta à rústica região de
Cléden-Cap-Sizun, a dois passos do Raz, a primeira coisa em que
penso é nessa lenda. Ei-la, ainda que eu pouco possa recuperar do
encanto meio selvagem que ela teve para mim quando a ouvi em
uma mansão bretã sob a qual roncam as forças tempestuosas do
mar:
“Há mais de cem anos, o castelão de então tinha a seu serviço
um jovem criado chamado Alain. Era um rapaz naturalmente curioso
e ousado. O poço do porão era para ele o mais atraente dos
mistérios. Com frequência ele se inclinava sobre a abertura para
escutar o rumor estranho que subia do abismo. Dizia-se que havia
muitos e muitos anos duas tentativas de violar o segredo da terra
tinham custado a vida de dois companheiros audazes. Eles nunca
mais retornaram.
“No entanto, num domingo em que se encontrava quase sozinho
no castelo, seus senhores tendo partido para Quimper, o jovem
Alain não resistiu. Pôs o pé sobre o primeiro degrau da escadaria
estreita e úmida e, depois de um segundo de hesitação, arriscou-se
na noite do subsolo.
“Por longo tempo os passos do rapaz ecoaram nos degraus de
granito tibiamente iluminados pela chama vacilante de uma vela. Ele
começava a se amedrontar ouvindo sempre à mesma distância o
grande rumor abafado. Seu coração batia quase explodindo. De
repente, sentiu-se fatigado e sentou por um instante na pedra.
Nesse momento, um vento forte e frio, soprado pelo abismo, apagou
sua luz.
“Quanto tempo Alain permaneceu ali? O certo é que ele acabou
por distinguir em meio às trevas uma frágil e distante claridade que
parecia vinda de baixo. Então, recobrou a coragem e prosseguiu a
descida.
“Ao cabo de um momento, o rumor misterioso, que se fazia cada
vez mais forte, ficou nítido, transformou-se; logo tornou-se um amplo
canto solene, como se escuta nas igrejas nos ofícios das grandes
festas carrilhonadas. Um instante mais tarde, o jovem criado
chegava por degraus não mais de granito, mas de mármore, a um
santuário magnífico, iluminado por uma estranha luz verde-azulada.
No altar, onde círios ardiam em chamas verdoengas, um padre
oficiava. A assembleia — bastante numerosa, composta por
pessoas rica e curiosamente vestidas, mas que tinham, no entanto,
algo de irreal — ao ouvir o som dos passos do recém-chegado,
virou as cabeças num movimento sincronizado em direção a ele.
Intimidado, com o coração cheio de uma apreensão compreensível,
Alain recuou para trás de um pilar e não se moveu mais.
“De súbito, uma espécie de bedel, vestindo uma grande toga
negra, saiu do coro, com um prato na mão e começou a coleta na
primeira fila de fiéis. O jovem criado tateou os bolsos com
inquietação; não tinha com ele nenhum tostão. Que atitude teria
quando o estranho personagem de olhar inquisidor, exigente e
severo, solicitasse seu óbolo? Nesse momento, Alain concluiu que
sua experiência já havia durado demais. Um frio úmido caiu-lhe
sobre os ombros. Sob a luz de aquário, aquela humanidade orante
tinha um aspecto de fato sobrenatural. Ele retirou os sapatos
delicadamente e, sem barulho, recuou até a porta.
“Ali, uma velha de semblante encarquilhado, meio mendiga, meio
bruxa, como as que se vê na soleira das igrejas bretãs, estava
sentada nas lajes. Adivinhando a intenção do rapaz, ela estendeu
sua bengala de atravessado na porta.
“— Onde vai?
“Ele explicou que, vindo de cima, desejava retornar à casa.
“A bruxa, fixando sobre ele um olhar agudo, disse:
“— Você se meteu num problema, meu garoto. Não sabe que
aqui é a catedral de Ker-Ys, na cidade do rei Gradlon, que foi
outrora inundada pelo mar, por causa dos pecados de sua filha,
Ahès? Desde aquela hora fatal, esperamos sob as águas que algum
vivo obrigue o Oceano a se retirar. E ele só poderá fazer isso se
depositar um óbolo no prato da coleta. Dois homens já vieram aqui
antes de você: um há duzentos anos, o outro há um século. Mas
como nem um nem outro tinha como pagar por nossa redenção,
eles foram destroçados pelo povo furioso. Destino semelhante o
espera quando o coletor o abordar. No entanto, você é muito jovem
e tenho-lhe dó. Daqui a cem anos talvez teremos mais sorte. Para
que ninguém o veja saindo, tome essa medalha que o fará invisível.
“Pegando o talismã e agradecendo à velha de coração piedoso,
Alain retornou à escadaria em espiral sem ser percebido pelos fiéis.
“Quando, alguns dias mais tarde, o relato dessa aventura chegou
aos ouvidos do castelão, este apressou-se em fechar a abertura do
poço, temendo, talvez, que uma libertação eventual dos condenados
de Ker-Ys contrariasse a sentença divina. E é por isso que a cidade
maldita prossegue sem esperança sua vida submarina e que
somente Ahès, a princesa culpada, vem às vezes, nas noites de
luar, cantando uma ária triste, pentear sua loura cabeleira na
superfície das ondas.”
JOSEPH-ÉMILE POIRIER

Joseph-Émile Poirier (1875-1939) foi um escritor e poeta


francês.
Título original: ‘Dans le Ventre d’Huitzilopochtli’
Publicação: ‘Cinq Nouvelles Extraordinaires’, 1924
NO VENTRE DE HUITZILOPOCHTLI

Gustave le Rouge
Sobre o terraço da villa que domina Belle-Isle-en-Mer, o
etnógrafo Bourdelier — primeiro a decifrar os hieróglifos dos templos
toltecas e chichimecas — e alguns convidados saboreavam bebidas
geladas, à sombra dos tamarindeiros carregados de flores rosa
coral, diante do mar imenso e azul.
O explorador americano, Miles Kennedy — o homem que
percorrera sozinho, durante cinco anos, a região desértica dos
Andes — fumava beatificamente, estendido em uma cadeira de
balanço. A dois passos dele, uma jovem inglesa permanecia
silenciosa, aninhada sobre as almofadas da cadeira de vime.
Os olhares da moça não conseguiam se desviar das mãos do
explorador, mãos de uma lividez cadavérica, de uma brancura de
cloro, que contrastavam bizarramente com o rosto marrom e
bronzeado como a pele de uma múmia.
— Srta. Rosy — disse bruscamente o americano —, posso
apostar que você está se perguntando de que doença fantástica de
pele sou acometido? Quero tranquilizá-la — continuou com
gentileza. — A inquietante descoloração de minha epiderme não é
resultado de uma doença, ela remonta ao dia em que fui devorado
pelo feroz Huitzilopochtli, o deus da guerra dos antigos Incas.
— Conte-me isso — murmurou a srta. Rosy, os olhos brilhando
de curiosidade.
— Foi uma aventura bastante especial — começou, sem mais
demora. — Há dois anos, estávamos perdidos na grande Cordilheira
dos Andes eu, meu guia, Necoxtla, e os três índios que nos faziam
escolta.
“Você não pode conceber, cara senhorita, o que são essas
paisagens diabólicas. Nenhuma árvore, nenhum vegetal, a não ser,
de longe em longe, um desses grandes eufórbios espinhosos que
parecem feitos de bronze verde. Um céu de chumbo ardente e, por
horizonte, ciclos de precipícios, fluxos de lava e picos nevados, que
parecem se repetir à medida que os ultrapassamos, como círculos
de um inferno de onde não se pode jamais sair.
“Seguíamos por um desfiladeiro tão estreito que éramos
obrigados a caminhar um atrás do outro. As superfícies polidas das
paredes basálticas pareciam concentrar sobre nós, como espelhos
ardentes, os raios ofuscantes do sol. Os três índios e as quatro
mulas que carregavam minha bagagem estavam extenuados, no fim
das forças, e eu, por minha vez, sentia que a sede, o calor e a
fadiga iriam me enlouquecer. Eu daria tudo que possuía por um gole
de água fresca.
“De súbito tudo mudou. O desfiladeiro sinistro abriu-se para um
vale verdejante, sombreado de palmeiras, mognos e bananeiras,
irrigado por riachos murmurantes. As ruínas de um templo com
colossais ídolos de granito vermelho serviam de fundo a essa
paisagem digna de Eldorado.
“Por algum tempo permaneci imóvel de felicidade e admiração,
mas qual não foi meu assombro ao ver meus índios fugirem à toda
velocidade dando sinais do mais enlouquecido terror. Para minha
grande indignação, Necoxtla, que me servia de guia havia meses e
em duas ocasiões já me salvara a vida, saltou atabalhoadamente
sobre uma das mulas e também me abandonou.
“Talvez eu fosse me decidir em seguir o exemplo de meus índios,
mas não tive tempo.
“Antes que eu pudesse fazer um gesto para me defender, me vi
cercado por uma trupe de Astecas hediondamente pintados; eles
me despojaram brutalmente de minhas vestimentas, amarraram-me
as mãos e me arrastaram para dentro do oásis.
“Puseram-me sentado à sombra das ruínas e mulheres velhas
me trouxeram bananas, uma cabaça de água e bolinhos de milho, e
me fizeram comer sem desamarrar as mãos. Cheguei a pensar que
não queriam me matar.
“Tive que assistir à pilhagem de minha bagagem, vi minhas
mulas infelizes serem abatidas a golpes de porretes de obsidiana,
depois esfoladas e carneadas com uma presteza surpreendente.
Desviei os olhos dessa carniçaria nauseante e os pousei sobre um
grupo de Astecas absorvidos em um trabalho que acompanhei, de
início com interesse, depois com uma vaga inquietação.
“Por sobre os galhos mais baixos de uma sequóia gigante, eles
lançaram duas cordas de cipó cujas extremidades estavam
solidamente fixadas em dois anéis de metal embutidos um pouco
abaixo do abdômen proeminente de uma das divindades de granito.
“Então, os Astecas puxaram a outra extremidade das cordas. Ao
fim de um minuto, a parte da frente do ventre se destacou e elevou-
se lentamente, deslizando em uma ranhura interior; um buraco
negro e quadrado apareceu no lugar do ventre, enquanto a placa de
granito erguida escondia inteiramente a face e o peito do deus.
“Enfim fui agarrado rudemente e forçado a entrar nessa espécie
de cela estreita.
“Sem compreender ainda que suplício pavoroso me era
reservado, eu morria de medo. Não ofereci nenhuma resistência aos
meus carrascos.
“Que lhe direi? A placa de pedra deslizou nas ranhuras com um
ruído surdo e retomou seu lugar. Fui emparedado vivo no ventre de
Huitzilopochtli!
***
“O nicho em que eu estava enclausurado era tão estreito que
quase não conseguia me mover. No entanto, como percebi acima de
mim um pouco de claridade, consegui subir de costas alguns
degraus esculpidos na pedra e, de repente, meus olhos
encontraram-se ao nível das duas pequenas janelas redondas que
deveriam corresponder aos olhos do ídolo; à altura da boca havia
outra abertura que se comunicava com o ar livre. Em minha situação
miserável, considerei uma alegria incomparável à facilidade com
que me deixaram respirar e ver.
“Uma angústia atroz me possuiu. Com muito esforço convoquei
todas as faculdades de meu pobre cérebro febril para adivinhar qual
tortura me afligiria. Pensei na Inquisição, nos carrascos chineses…
mas você verá que as imaginações mais loucas dos torturadores da
Idade Média eram ainda inferiores à realidade abominável.
“Eu seguia, no entanto, com o olhar perdido, as idas e vindas
dos meus inimigos e, precisamente porque não conseguia penetrar
em suas intenções, seus menores gestos me penetravam de uma
ansiedade tão lancinante quanto os mais dolorosos pesadelos.
“Em um canto do vale havia um maciço de plantas de aspecto
inquietante. Suas grandes folhas divididas por uma nervura eram
grossas, carnudas, de um verde azulado, com o interior forrado de
espinhos e ligeiramente côncavas.
“Um velho encheu um cesto com refugos de carne crua
proveniente da carneação das mulas e se aproximou com
precaução dos estranhos vegetais, depois lançou sobre os espinhos
um pedaço grosso de carne. Imediatamente, as duas metades da
folha se fecharam uma sobre a outra, aprisionando sua presa, com
um movimento seco que se assemelhava à mandíbula de uma fera.
“Eu estava na presença do vegetal carnívoro de gênero Dionaea
Muscipula, mas de talhe colossal, sem dúvida favorecido pela
alimentação abundante que lhe forneciam os Astecas que, talvez,
adorassem essas horríveis plantas vampiras.
“Detalhe repulsivo que não devo omitir, essas folhas vorazes
pareciam se refestelar com uma glutonaria ignóbil; uma espécie de
baba — ou melhor, um suco gástrico especial — escorria de suas
comissuras em um fluxo abundante. O que eu não conseguia
explicar era que numerosas cabaças foram colocados ao redor de
cada planta para recolher o suco que delas tombava em gotas
apressadas.
“A distribuição terminara. Empanturradas de carne, com as
folhas dobradas, os ogros vegetais digeriam.
“A noite chegara; os Astecas festejavam ao redor de grandes
fogueiras; ninguém parecia lembrar-se de mim. Era um tipo de
calmaria. Alquebrado de fatiga e de tão incômoda que era minha
posição, adormeci…
“Fui despertado pela algazarra infernal de uma orquestra em que
dominavam os címbalos, as trompas de cascas e as flautas feitas de
fêmures humanos. Meus inimigos dançavam e esvaziavam cabaças
de pulque e de aguardente.
“Terminada a digestão, as plantas vampiras estenderam
lentamente suas folhas, prontas para uma nova rodada. O velho que
lhes distribuíra o alimento retornou munido de uma grande jarra
onde começou a despejar o conteúdo das cabaças. Ele encheu uma
dezena de jarras que arranjou cuidadosamente em um canto.
Imaginei que os Astecas iriam empregar esse suco, tão
preciosamente recolhido, na fabricação de algum licor fermentado.
“O fim dessa colheita deu lugar a um redobramento da algazarra,
a uma explosão de gritos selvagens. O velho — eu soube depois
que ele era um sacerdote —, agora vestido em um manto de
plumas, o rosto pintado de vermelho e branco, avançou em direção
ao ídolo com um passo hierático. Ele carregava com grande esforço
uma das jarras, cheia até as bordas.
“Depois eu não o vi mais. Ele passou para trás da estátua.
Explicaram-me depois que ele escalou degraus escondidos nos
ornamentos das esculturas. Um minuto passou e, de repente, sua
hedionda face pintada apareceu na altura dos meus olhos.
Solenemente, ele despejou o conteúdo da jarra em um buraco
aberto no ombro do ídolo.
“Com um horror indizível, compreendi: eu seria digerido vivo pelo
deus Huitzilopochtli…
“O líquido corrosivo, o suco gástrico das plantas carnívoras, já
inundava por canais interiores minha estreita prisão, subia-me até
os joelhos, carcomendo-me a pele com a sensação ardente de um
vesicatório.
“O velho sacerdote despejou no orifício o conteúdo de uma
segunda jarra, depois de uma terceira. O líquido me subiu até as
coxas. Eu sofria de forma tão cruel quanto se me houvessem
mergulhado em uma caldeira de óleo fervente.
“Quando o sacerdote despejou a quarta jarra, dei um berro de
loucura e desmaiei…”
***
— Fique tranquila, senhorita Rosy — retomou o explorador,
confortando com um sorriso a moça, pálida de emoção. — Quando
retomei os sentidos, estava deitado em uma tenda, enfaixado dos
pés à cabeça com uma compressa de ervas amassadas e velado
por uma velha indígena. Estava à salvo.
“Necoxtla, meu guia, envergonhado por seu medo e covardia,
correra à toda brida até um posto de fronteira, felizmente pouco
afastado, e retornou com um destacamento de guardas peruanos,
justo a tempo de me salvar de uma morte atroz.
“Surpreendidos em plena orgia, os Astecas foram postos em
debandada rapidamente. Ao fim de um quarto de hora de esforços,
a placa de pedra foi levantada e eu fui arrancado de meu túmulo,
mas não apresentava sinais de vida e meu corpo estava coberto de
feridas.
“A ciência da velha squaw[1] que me tratou com compressas de
ervas aromáticas conservou a minha vida, mas não pôde restituir a
coloração natural à minha epiderme descorada pelo terrível suco.”
GUSTAVE LE ROUGE

Gustave Henri Joseph Le Rouge (1867 - 1938) foi um escritor


francês que incorporou a evolução da ficção científica moderna no
início do século XX, afastando-a das aventuras juvenis de Júlio
Verne e incorporando pessoas reais em suas histórias, preenchendo
assim a lacuna entre a ficção científica verniana e wellsiana.
Título original: ‘The Doll’
Publicação: ‘For Maurice. Five Unlikely Stories’, 1927
A BONECA
Vernon Lee
Creio que essa será a última peça de antiquário que comprarei
em minha vida (ela disse, fechando o porta-joias renascentista) —
essa e o serviço para sobremesa chinês que recém usamos. Parece
que a paixão me abandonou por completo. Posso bem suspeitar o
porquê. Ao mesmo tempo em que comprei os pratos e o pequeno
cofre, também adquiri uma coisa — não sei bem se posso chamar
aquilo de coisa — que eliminou minha satisfação em perquirir as
posses de pessoas mortas. Sempre quis contar-lhe tudo sobre esse
caso, mas nunca o fiz por medo de parecer idiota. Às vezes, porém,
isso me pesa como se fosse um segredo; então, tola ou não, acho
que gostaria de lhe contar a história. Ali, mande vir mais lenha e
coloque essa tela na frente da lâmpada.
Foi no outono, há dois anos, em Foligno, na Úmbria. Eu me
hospedara sozinha numa pousada, pois, como você sabe, meu
marido é ocupado demais para me acompanhar em minhas buscas
por antiguidades, e a amiga que estava por vir me encontrar ficou
doente e só chegou mais tarde. Não se pode chamar Foligno de
lugar interessante, mas eu gostei. Há vários povoados pitorescos ao
redor e grandes montanhas selvagens de rocha cor-de-rosa,
cobertas de azevinho, de onde lenhadores lançam feixes de lenha
que rolam em direção ao leito da torrente, para serem
transportados. Há um rio caudaloso e rápido circundando um lado
dos paredões cobertos de hera; e há afrescos do século XV sobre
os quais, ouso dizer, você já deve saber tudo. Mas, o que mais me
encanta são os vários palácios, belos e antigos, com portões
esculpidos naquelas rochas cor-de-rosa e pátios com pilares e
lindas janelas gradeadas, a maioria em bom estado, pois Foligno é
uma cidade mercantil e um entroncamento, fazendo dela um tipo de
metrópole no vale.
Além disso, e principalmente, gostei de Foligno, pois descobri lá
um maravilhoso antiquário. Não quero dizer uma maravilhosa loja de
antiguidades, porque não havia nada que valesse mais de vinte
francos para vender, mas sim um maravilhoso e encantador senhor.
Seu nome de batismo era Orestes, e isso era o suficiente para mim.
Ele tinha uma barba longa e branca, gentis olhos castanhos e belas
mãos, e sempre carregava um braseiro de barro sob o capote. A
paixão por coisas belas e pelo passado de sua terra natal o levou
para o negócio de antiguidades, depois de ser mestre-de-obras.
Conhecia todas as crônicas antigas, contou-me a de Matarazzo, e
sabia o local exato onde tudo acontecera nos últimos seiscentos
anos. Falava dos Trinci, que foram déspotas locais, de Santa
Angela, a santa local, e dos Baglioni e de César Bórgia e Júlio II,
como se os conhecesse em pessoa. Mostrou-me onde São
Francisco pregou para os pássaros e o lugar onde Propércio —
Propércio ou Tibulo? — teve sua fazenda; e quando acompanhava
meus passeios em busca de antiguidades, ele parava nas esquinas
e sob os arcos e dizia: “Veja, por aqui foram levadas as freiras de
que lhe falei; lá foi onde apunhalaram o Cardeal. Esse é o lugar
onde eles devastaram o palácio depois do massacre e passaram a
relha do arado e salgaram o solo.” E falava sobre tudo isso com o
olhar melancólico, vago e distante, como se vivesse naquela época
e não na nossa. Também me ajudou a adquirir aquele cofre de
veludo com fechos de ferro, uma das coisas mais belas que temos
em casa.
Eu estava, pois, feliz em Foligno, dirigindo e perambulando o dia
inteiro, e à noite lendo as crônicas que Orestes me emprestava; e
pouco me incomodando em esperar tanto pela amiga que nunca
chegava. Em suma, eu estava perfeitamente feliz até três dias antes
de ir embora. E agora vem a história de minha estranha aquisição.
Uma manhã, Orestes veio informar, com um considerável dar de
ombros, que um certo nobre de Foligno queria me vender um
serviço de pratos chineses:
— Alguns estão rachados — ele disse —, mas, em todo caso,
você poderá ver o interior de um dos nossos mais belos palácios,
com suas salas intocadas. Nada de valoroso, mas sei que a signora
aprecia o passado onde quer que ele tenha sido deixado em paz.
O palácio datava, excepcionalmente, do fim do século XVII e
parecia uma caserna entre as pequenas residências renascentistas
alinhadas de forma elegante. Tinha imensas cabeças de leão sobre
todas as janelas, um portão por onde poderiam passar dois coches,
um pátio onde se poderia estacionar mais cem e uma escadaria
colossal com estátuas de virtudes de estuque nas suas curvas.
Havia um sapateiro na portaria, uma fábrica de sabão no térreo e,
na extremidade de um pátio ladeado por colunas, um jardim tomado
de decrépitas trepadeiras amarelas e girassóis mortos.
— Grandioso, mas bastante rústico. Quase século XVIII — disse
Orestes, enquanto subíamos os degraus baixos e barulhentos.
Algumas peças do serviço para sobremesa foram dispostas,
prontas para a minha apreciação, sobre um grande aparador
dourado em uma antessala decorada por brasões. Observei-as e
pedi que preparassem o resto para eu ver no dia seguinte. O
proprietário, uma pessoa muito nobre, mas quase falido — eu
deveria ter pensado que ele estava totalmente falido a julgar pelo
estado da casa — morava no interior e o único ocupante do palácio
era uma idosa, semelhante àquelas que erguem as cortinas para
você nas portas das igrejas.
O palácio era enorme. Havia um salão de bailes do tamanho de
uma igreja e algumas salas de recepção com os pisos sujos e
mobília do século XVIII, toda manchada e quebrada, um salão de
gala decorado de cetim amarelo e ouro, onde algum imperador
dormira; horríveis prateleiras com fotografias desbotadas nas
paredes, anteparos baratos e almofadas de lã de Berlim, atestando
a existência de habitantes mais modernos.
Deixei a idosa destrancar um postigo pintado e dourado atrás do
outro, janela após janela, cada uma preenchida por pequenos
painéis de vidro esverdeado, e a segui passivamente, bastante feliz
por vagar entre os fantasmas de pessoas mortas.
— Aqui no final temos a biblioteca — disse a idosa —, se a
signora não se importa de passar pelo meu quarto e pela sala de
engomagem; é mais rápido do que voltar pelo salão.
Assenti com a cabeça e me preparei para passar o mais rápido
possível através de um quarto de empregados de aspecto
desleixado, quando de súbito dei um passo atrás. Havia uma mulher
vestida com roupas de 1820 sentada do outro lado da sala, imóvel.
Era uma enorme boneca. Tinha um rosto ao estilo clássico de
Canova, como os retratos de Mme. Pasta e de Lady Blessington.
Estava sentada com as mãos cruzadas sobre os joelhos e o olhar
fixo.
— É a primeira esposa do avô do Conde — disse a idosa. —
Tiramos ela do armário hoje de manhã para limpar o pó.
A Boneca estava vestida até o mínimo detalhe. Usava meias de
seda com orifícios decorativos, sandálias e longas luvas de seda
bordadas. O cabelo era apenas pintado em lisos bandós estreitando
a fronte, dando-lhe um formato triangular. Ela tinha uma grande
abertura atrás da cabeça, mostrando que era feita de papelão.
— Ah — disse Orestes, meditativo —, a imagem da bela
condessa! Eu esquecera dela. Não a vejo desde quando era garoto
— e limpou algumas teias de aranha das mãos cruzadas da boneca
com seu lenço vermelho, infinitamente gentil. — Costumavam
mantê-la em sua alcova.
Orestes permaneceu pensativo enquanto me acompanhava de
volta para casa.
— Ela foi uma dama muito bonita — ele disse, tímido, quando
avistamos minha pousada —, quero dizer, a primeira esposa do avô
do Conde atual. Ela morreu dois anos depois do casamento. O
velho Conde, dizem, quase ficou louco. Mandou fazer a boneca
inspirada em uma pintura, guardou-a no quarto da pobre mulher e
todo dia passava horas junto dela. Mas acabou se casando
novamente, com uma empregada da casa, uma lavadeira, com
quem teve uma filha.
— Que história curiosa! — eu disse, e não pensei mais no
assunto.
Mas a Boneca retornou aos meus pensamentos, ela e suas
mãos cruzadas, olhos bem abertos, e o fato de seu marido ter se
casado, enfim, com uma lavadeira. No dia seguinte, quando
retornamos ao palácio para ver o serviço completo de pratos
chineses, eu senti um desejo estranho e repentino de ver a Boneca
mais uma vez. Aproveitei que Orestes, a idosa e o advogado do
Conde ocupavam-se em discutir se um certo prato que minha criada
derrubara já estava rachado antes ou não, e saí disfarçadamente,
indo em direção a sala de engomagem.
A Boneca ainda estava lá, é claro, e não tiveram tempo para
espaná-la. Seu vestido de cetim branco, com pequenos babados
nas bainhas, e o corpete curto se tornaram acinzentados por causa
do pó granuloso; o lenço negro debruado quase se avermelhara. As
pobres luvas e meias de seda branca, por outro lado, quase
enegreceram. Um jornal caíra de uma mesa adjacente sobre seus
joelhos, ou fora lançado por alguém, dando a impressão de que o
segurava para ler. Sobreveio-me, pois, o entendimento de que as
roupas que ela vestia eram as roupas reais pertencentes à modelo
morta. E quando encontrei sobre a mesa uma peruca hirsuta e
poeirenta, com bandós lisos na frente e um elaborado coque de
cachos atrás, eu soube de imediato que fora fabricada com os
cabelos reais da pobre mulher.
— É muito bem feita — eu disse, acanhada, quando ouvi o chão
rangendo sob os passos da idosa que, evidentemente, vinha à
minha procura.
Ela não teve outra ideia senão a de alimentar qualquer capricho
que pudesse lhe render uma comissão. Assim, deu um sorriso
horroroso e, para me mostrar que a figura era de fato digna de
minha atenção, começou, com gestos sinistros, a dobrar-lhe os
braços articulados e cruzar uma perna sobre a outra debaixo da saia
de cetim branco.
— Por favor, não faça isso! — gritei para a bruxa velha. Mas um
dos pobres pés, com sua sandália, continuou pendurado
balançando horrivelmente.
Preocupava-me impedir que minha criada me encontrasse
observando a Boneca. Senti que não poderia aguentar os
comentários dela sobre a figura. Então, mesmo fascinada pelo
negro olhar fixo em seu rosto de deusa de Canova ou Madonna de
Ingres, retornei à apreciação do serviço para sobremesa.
Não sei o que a Boneca fizera comigo; mas me peguei pensando
nela durante todo o dia. Era como se eu tivesse recém vivido um
novo encontro doloroso e interessante, e me precipitado em uma
amizade repentina com uma mulher cujo segredo surpreendi por
acidente, como acontece às vezes. Porque eu, de alguma forma,
sabia tudo sobre ela, e os primeiros itens de informação recebidos
de Orestes — eu estava, devo dizer, irresistivelmente compelida a
falar com ele sobre ela — em vez de elucidarem o caso, apenas
confirmaram o que já era de meu conhecimento.
A Boneca — já que eu não fazia nenhuma distinção entre a
modelo e a cópia — casou-se imediatamente após sair do convento
e, durante sua breve vida de casada, foi mantida em reclusão pelo
amor enlouquecido de seu esposo, permanecendo assim uma mera
criança tímida, orgulhosa e inexperiente.
Se ela amou-o, não disse nada sobre isso a princípio. Mas, aos
poucos, dei-me conta de que, de uma forma profunda e muda, ela
se importava mais com ele do que ele com ela. Ela não sabia como
corresponder à afeição fácil, transbordante, prolixa e vaidosa dele;
ele não conseguia silenciar seu amor por dois minutos e ela era
incapaz de encontrar uma palavra para expressar o seu, mesmo
que desejasse penosamente fazê-lo. Não que ele o quisesse; era
um homem do tipo brilhante, irresoluto e lírico, que nada sabia dos
sentimentos dos outros e preocupava-se apenas em banhar-se e
dissolver-se nos seus próprios. Durante os dois anos em que a
amou com esse amor enlevado, tagarela e absorto, ele não apenas
abjurou de toda a sociedade e negligenciou por completo os
negócios como nunca fez nenhuma tentativa de ensinar aquela
criatura jovem e crua a agir em companhia de outras pessoas nem
demonstrou qualquer curiosidade se seu ídolo tinha uma mente ou
uma personalidade própria. Ela creditava essa indiferença à sua
estúpida e inconcebível incapacidade de expressar sentimentos;
como ele poderia adivinhar esse seu desejo de saber, de
compreender, se ela mesma não era capaz de dizer o quanto o
amava? Por fim, o encanto partiu-se: quando as palavras e a força
para expressá-las chegaram, ela estava no leito de morte. A pobre
criatura morreu jovem ao dar à luz uma criança, tendo ela própria
apenas saído da infância.
Aí está! Sei que você acha isso tudo uma bobagem. Sei como as
pessoas são — como nós somos. Como é impossível fazer os
outros realmente partilharem de nossos sentimentos sobre o que
quer que seja. Você acha que eu poderia ter contado tudo isso
sobre a Boneca para o meu marido? No entanto, confiei-lhe tudo o
que me diz respeito e sei que ele não me faltaria com respeito e
seria muito gentil. Fui tola ao embarcar nessa história da Boneca
com outras pessoas; ela deveria ter permanecido um segredo entre
mim e Orestes. Ele, estou convencida, teria compreendido todos os
sentimentos da pobre dama a menos que já soubesse de tudo,
como eu. Bem, já que comecei, suponho que devo continuar.
Eu sabia tudo sobre a vida da Boneca — quero dizer, da dama
— e tinha que saber, da mesma forma, tudo sobre ela depois de sua
morte. Só não sei se contarei a você. Basta: o marido mandou fazer
a Boneca, vestiu-a com as roupas da esposa falecida e colocou-a
na alcova, onde tudo foi mantido exatamente como era no momento
de sua morte. Não permitia que ninguém entrasse e ele mesmo
limpava e tirava o pó e passava horas todo dia chorando e gemendo
diante da Boneca. Então, aos poucos, começou a observar sua
coleção de medalhas e retomou as corridas; mas nunca retornou à
sociedade e nunca deixou de passar uma hora na alcova com a
Boneca. Logo, veio o caso com a lavadeira. E então ele colocou a
Boneca no guarda-roupas? Ah, não, ele não era esse tipo de
homem. Era um idealista, sentimental e frágil, e o amor pela
lavadeira cresceu pouco a pouco à sombra da paixão inconsolável
pela esposa. Ele jamais se casaria com uma mulher de posição
igual à sua nem daria ao filho da primeira esposa uma madrasta (o
filho foi enviado para uma escola distante e lá degenerou). E
quando, enfim, casou-se com a lavadeira, estava entrando na
velhice e só o fez porque ela e os padres ameaçavam-no sobre a
questão da legitimidade da filha que tiveram. Ele continuou fazendo
visitas à Boneca por um longo tempo, enquanto o idílio com a
lavadeira perdurava pacificamente. Então, quando ficou velho e
preguiçoso, reduziu a frequência das visitas; outras pessoas eram
enviadas para espanar a Boneca até que, enfim, não mais lhe
tiravam o pó. Depois, morreu, brigado com o filho, e tendo vivido os
últimos anos como um rústico velho e frágil, passando a maior parte
do tempo na cozinha. O filho — o da Boneca — que se degenerou,
casou-se com uma viúva rica. Foi ela que reformou a alcova e
guardou a Boneca. Mas a filha da lavadeira, a ilegítima, tornou-se
uma espécie de governanta no palácio de seu meio-irmão e nutria
uma afeição persistente pela Boneca, em parte porque o velho
Conde fizera dela um escândalo, em parte porque devia ter custado
muito dinheiro e em parte porque a dama fora uma pessoa real.
Portanto, quando a alcova foi reformada, ela esvaziou um armário e
colocou a Boneca para viver lá e eventualmente trazia-a para fora
para espaná-la.
Enfim, enquanto tudo isso me passava em mente, recebi um
telegrama dizendo que minha amiga não viria a Foligno e me pedia
para ir encontrá-la em Perugia. O pequeno porta-joias renascentista
fora mandado para Londres; Orestes, a criada e eu empacotamos
com cuidado cada um dos pratos chineses e das tigelas e os
colocamos em cestos de palha. Encomendei um volume do
“Archivio Storico” como presente de partida para o caro velho
Orestes — não poderia jamais pensar em lhe oferecer dinheiro ou
alfinetes de gravata ou algo do tipo — e, dessa forma, não havia
mais desculpas para permanecer nem mais uma hora em Foligno.
Mais tarde, porém, fui acometida de um desânimo — suponho que
nós, pobre mulheres, não conseguimos ficar sozinhas seis dias em
uma pousada, mesmo tendo à mão um antiquário, crônicas e
criadas devotadas — e sabia que não me recuperaria até estar fora
daquele lugar. No entanto, estava achando difícil, não, impossível
partir. Confessarei de imediato: eu não conseguia abandonar a
Boneca. Não conseguia deixá-la, com o orifício na pobre cabeça de
papelão, com aquele semblante de Madonna de Ingres juntando
poeira na sala de engomagem daquela velha perniciosa. Mas, ainda
assim, deveria partir. Então, mandei chamar Orestes. Eu sabia
exatamente o que queria; mas parecia impossível e tinha, de certa
forma, medo de pedir a ele. Convoquei toda a coragem que possuía
e, como se fosse a coisa mais natural do mundo, disse:
— Caro signor Oreste, preciso de sua ajuda para fazer uma
última compra. Quero que o Conde me venda a… o retrato de sua
avó; quero dizer, a Boneca.
Eu preparara um discurso para fazer Orestes compreender
facilmente que uma figura em tamanho natural, vestida por completo
em roupas originais do passado, possuiria o maior interesse
histórico, etc. Mas senti que não precisaria nem me dispus a dizer
nada disso. Orestes, sentado no lado oposto da mesa — ele
aceitara apenas uma taça de vinho e uma fatia de pão, ainda que
lhe pedisse para compartilhar comigo o almoço do hotel —, acenou
com a cabeça lentamente, depois arregalou os olhos e pareceu
envolver-me inteira neles. Não foi surpresa. Estava avaliando a mim
e a minha oferta.
— Seria muito difícil? — perguntei. — Eu deveria pensar que o
Conde…
— O Conde — respondeu Orestes secamente — venderia a
própria alma, se tivesse uma, pelo preço de um pônei de trote.
Imagine o que faria com a avó.
Compreendi, portanto.
— Signor Oreste — respondi, sentindo-me uma criança sob o
olhar do caro velho —, nos conhecemos há pouco tempo, então não
espero que você confie em mim em muitos assuntos. E, talvez,
comprar mobília da casa de gente morta para enfiá-la na própria
casa não seja a melhor recomendação de caráter. Mas quero dizer-
lhe que sou uma mulher honesta dentro dos meus padrões e quero
que confie em mim nessa questão.
Orestes assentiu.
— Vou tentar induzir o Conde a vender-lhe a Boneca — disse.
Mandei enviá-la em uma carruagem fechada para a casa de
Orestes. Ele tinha, atrás de sua loja, um jardim que se abria para
uma pequena vinha, de onde você poderia ver o círculo das grandes
montanhas da Úmbria onde eu pousara meus olhos.
— Signor Oreste — eu disse —, vi alguns belos feixes de mirto e
louro na cozinha, você poderia fazer a gentileza de trazê-los para a
sua vinha; e posso pegar alguns dos seus crisântemos?
Empilhamos os feixes numa extremidade da vinha e colocamos
a Boneca entre eles, e as flores sobre os joelhos. Ela ficou sentada
lá com o vestido de cetim branco do tempo do Império que parecia
novamente alvo e fulgurante à luz radiosa do sol de Novembro.
Seus olhos negros fixos observavam como em um sonho as videiras
amarelas e os pessegueiros avermelhados, o gramado da vinha,
cintilante de orvalho sob a luminosidade da manhã azul, o azul
místico do anfiteatro de montanhas ao redor.
Orestes riscou um fósforo e ateou fogo à uma pinha; quando a
pinha ardia em chamas, ele me alcançou em silêncio. O louro seco
e o mirto chamejaram, estalando, com um fresco odor resinoso, e a
Boneca foi envolvida em um véu de labaredas e fumaça. Em poucos
segundos a fogueira colapsou, os feixes esfarelaram-se em brasas.
A Boneca se fora. Restou apenas, no lugar onde ela estava, em
meio aos tições, um objeto pequeno e brilhante. Orestes alçou-o e
entregou-me. Era o anel de casamento, à moda antiga, que estivera
escondido sob as luvas de seda.
— Fique com ele, signora — disse Orestes —, você pôs um fim
aos sofrimentos dela.
VERNON LEE

Vernon Lee era o pseudônimo da escritora britânica Violet


Paget (1856 - 1935). Ela é lembrada hoje principalmente por sua
ficção sobrenatural e seu trabalho sobre estética, e também
escreveu mais de uma dúzia de volumes de ensaios sobre arte,
música e viagens.
P. GARAY COSTA

P. Garay Costa é pai, gaúcho, nasceu em 1987 e gosta de


poesia, literatura clássica, ficção científica e literatura fantástica.
Sempre gostou de ler, porém só recentemente adquiriu o desejo de
escrever histórias. Também aventura-se na tradução do francês e do
inglês.
SOBRE O PROJETO
FICÇÕES PULP! é um selo digital que tem por objetivo trazer ao
Brasil obras em domínio público, inéditas ou pouco conhecidas, de
autores clássicos da literatura fantástica internacional mediante
traduções exclusivas, além de incentivar, através da publicação
independente, autores brasileiros contemporâneos.
Visitem o site oficial.
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Clássicos do horror, do estranho e do sobrenatural n° 1
“Clássicos do horror, do estranho e do sobrenatural” é uma série
de pequenas antologias que, a cada edição, apresenta três
narrativas inéditas de autores clássicos da literatura estrangeira com
traduções exclusivas.
Neste n° 1, apresentamos ao leitor brasileiro contos de autores
praticamente desconhecidos no País.
“Luz”, de Achmed Abdullah: ao perder sua fortuna em um
colapso financeiro, um homem é obrigado a viver em bairro pobre
de operários na cidade de Nova York, onde, todas as noites, ao
sentar-se na praça, observa fixamente a única janela com luz acesa
do prédio em que reside.
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padece no leito em seus momentos finais, sua aflita esposa aguarda
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retornar de uma pequena saída para a compra de mantimentos,
marido encontra sua esposa brutalmente atacada no acampamento
do casal; agora, tudo o que ele deseja é vingança.
Clássicos do horror, do estranho e do sobrenatural n° 2
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praticamente desconhecidos ao leitor brasileiro e uma história de um
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curtas em todos os tempos.
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acaba preso pela mão em uma armadilha da qual é impossível
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Clássicos do horror, do estranho e do sobrenatural n° 3
Nesta edição de n° 3, trazemos a vocês contos de um autor
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Quem é qual? Tentem adivinhar!
Os horrores da guerra mostram sua face na primeira história
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Curta e direta, “O mensageiro do rei”, de F. Marion Crawford, é
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superstição de que a primeira pessoa a se levantar de uma mesa
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Por fim, em “O fiasco de Los Amigos”, Arthur Conan Doyle
debocha da arrogância do homem em decorrência do
conhecimento. Os cidadãos de Los Amigos resolvem abolir os
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Clássicos do horror, do estranho e do sobrenatural n° 4
Na edição de n° 4 de “Clássicos do horror, do estranho e do
sobrenatural”, apresentamos narrativas curtas de três renomados
autores britânicos das eras vitoriana e eduardiana.
Em “O navio perdido”, de W.W. Jacobs, a população da
cidadezinha portuária de Tetby perde a esperança de regresso do
único navio construído e tripulado por seus habitantes, até que a
aparição de um de seus membros reacende as expectativas.
“Os lobos de Czernogratz”, de Saki, relata a descrença de uma
família de aristocratas a respeito da lenda que paira sobre os
antigos proprietários do castelo para o qual se mudaram: os
Czernogratz.
Já em “A história de minha amiga”, Catherine Crowe apresenta o
relato sobre uma aparição que causa pavor nas pessoas que ousam
visitar Belfry, uma residência comum num povoado do interior que
nem de longe lembra as casas mal-assombradas dos contos de
terror.

[1] Em inglês no original. Squaw era um termo usado para designar mulheres
indígenas da América do Norte. Hoje é considerado ofensivo, misógino e racista quando
falado por não-indígenas.

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