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Brasil – 2022
SUMÁRIO
Apresentação
Os Condenados de Ker-Ys
Joseph-Émile Poirier
No Ventre de Huitzilopochtli
Gustave le Rouge
A Boneca
Vernon Lee
P. Garay Costa
Sobre o Projeto
Outras Publicações
APRESENTAÇÃO
Gustave le Rouge
Sobre o terraço da villa que domina Belle-Isle-en-Mer, o
etnógrafo Bourdelier — primeiro a decifrar os hieróglifos dos templos
toltecas e chichimecas — e alguns convidados saboreavam bebidas
geladas, à sombra dos tamarindeiros carregados de flores rosa
coral, diante do mar imenso e azul.
O explorador americano, Miles Kennedy — o homem que
percorrera sozinho, durante cinco anos, a região desértica dos
Andes — fumava beatificamente, estendido em uma cadeira de
balanço. A dois passos dele, uma jovem inglesa permanecia
silenciosa, aninhada sobre as almofadas da cadeira de vime.
Os olhares da moça não conseguiam se desviar das mãos do
explorador, mãos de uma lividez cadavérica, de uma brancura de
cloro, que contrastavam bizarramente com o rosto marrom e
bronzeado como a pele de uma múmia.
— Srta. Rosy — disse bruscamente o americano —, posso
apostar que você está se perguntando de que doença fantástica de
pele sou acometido? Quero tranquilizá-la — continuou com
gentileza. — A inquietante descoloração de minha epiderme não é
resultado de uma doença, ela remonta ao dia em que fui devorado
pelo feroz Huitzilopochtli, o deus da guerra dos antigos Incas.
— Conte-me isso — murmurou a srta. Rosy, os olhos brilhando
de curiosidade.
— Foi uma aventura bastante especial — começou, sem mais
demora. — Há dois anos, estávamos perdidos na grande Cordilheira
dos Andes eu, meu guia, Necoxtla, e os três índios que nos faziam
escolta.
“Você não pode conceber, cara senhorita, o que são essas
paisagens diabólicas. Nenhuma árvore, nenhum vegetal, a não ser,
de longe em longe, um desses grandes eufórbios espinhosos que
parecem feitos de bronze verde. Um céu de chumbo ardente e, por
horizonte, ciclos de precipícios, fluxos de lava e picos nevados, que
parecem se repetir à medida que os ultrapassamos, como círculos
de um inferno de onde não se pode jamais sair.
“Seguíamos por um desfiladeiro tão estreito que éramos
obrigados a caminhar um atrás do outro. As superfícies polidas das
paredes basálticas pareciam concentrar sobre nós, como espelhos
ardentes, os raios ofuscantes do sol. Os três índios e as quatro
mulas que carregavam minha bagagem estavam extenuados, no fim
das forças, e eu, por minha vez, sentia que a sede, o calor e a
fadiga iriam me enlouquecer. Eu daria tudo que possuía por um gole
de água fresca.
“De súbito tudo mudou. O desfiladeiro sinistro abriu-se para um
vale verdejante, sombreado de palmeiras, mognos e bananeiras,
irrigado por riachos murmurantes. As ruínas de um templo com
colossais ídolos de granito vermelho serviam de fundo a essa
paisagem digna de Eldorado.
“Por algum tempo permaneci imóvel de felicidade e admiração,
mas qual não foi meu assombro ao ver meus índios fugirem à toda
velocidade dando sinais do mais enlouquecido terror. Para minha
grande indignação, Necoxtla, que me servia de guia havia meses e
em duas ocasiões já me salvara a vida, saltou atabalhoadamente
sobre uma das mulas e também me abandonou.
“Talvez eu fosse me decidir em seguir o exemplo de meus índios,
mas não tive tempo.
“Antes que eu pudesse fazer um gesto para me defender, me vi
cercado por uma trupe de Astecas hediondamente pintados; eles
me despojaram brutalmente de minhas vestimentas, amarraram-me
as mãos e me arrastaram para dentro do oásis.
“Puseram-me sentado à sombra das ruínas e mulheres velhas
me trouxeram bananas, uma cabaça de água e bolinhos de milho, e
me fizeram comer sem desamarrar as mãos. Cheguei a pensar que
não queriam me matar.
“Tive que assistir à pilhagem de minha bagagem, vi minhas
mulas infelizes serem abatidas a golpes de porretes de obsidiana,
depois esfoladas e carneadas com uma presteza surpreendente.
Desviei os olhos dessa carniçaria nauseante e os pousei sobre um
grupo de Astecas absorvidos em um trabalho que acompanhei, de
início com interesse, depois com uma vaga inquietação.
“Por sobre os galhos mais baixos de uma sequóia gigante, eles
lançaram duas cordas de cipó cujas extremidades estavam
solidamente fixadas em dois anéis de metal embutidos um pouco
abaixo do abdômen proeminente de uma das divindades de granito.
“Então, os Astecas puxaram a outra extremidade das cordas. Ao
fim de um minuto, a parte da frente do ventre se destacou e elevou-
se lentamente, deslizando em uma ranhura interior; um buraco
negro e quadrado apareceu no lugar do ventre, enquanto a placa de
granito erguida escondia inteiramente a face e o peito do deus.
“Enfim fui agarrado rudemente e forçado a entrar nessa espécie
de cela estreita.
“Sem compreender ainda que suplício pavoroso me era
reservado, eu morria de medo. Não ofereci nenhuma resistência aos
meus carrascos.
“Que lhe direi? A placa de pedra deslizou nas ranhuras com um
ruído surdo e retomou seu lugar. Fui emparedado vivo no ventre de
Huitzilopochtli!
***
“O nicho em que eu estava enclausurado era tão estreito que
quase não conseguia me mover. No entanto, como percebi acima de
mim um pouco de claridade, consegui subir de costas alguns
degraus esculpidos na pedra e, de repente, meus olhos
encontraram-se ao nível das duas pequenas janelas redondas que
deveriam corresponder aos olhos do ídolo; à altura da boca havia
outra abertura que se comunicava com o ar livre. Em minha situação
miserável, considerei uma alegria incomparável à facilidade com
que me deixaram respirar e ver.
“Uma angústia atroz me possuiu. Com muito esforço convoquei
todas as faculdades de meu pobre cérebro febril para adivinhar qual
tortura me afligiria. Pensei na Inquisição, nos carrascos chineses…
mas você verá que as imaginações mais loucas dos torturadores da
Idade Média eram ainda inferiores à realidade abominável.
“Eu seguia, no entanto, com o olhar perdido, as idas e vindas
dos meus inimigos e, precisamente porque não conseguia penetrar
em suas intenções, seus menores gestos me penetravam de uma
ansiedade tão lancinante quanto os mais dolorosos pesadelos.
“Em um canto do vale havia um maciço de plantas de aspecto
inquietante. Suas grandes folhas divididas por uma nervura eram
grossas, carnudas, de um verde azulado, com o interior forrado de
espinhos e ligeiramente côncavas.
“Um velho encheu um cesto com refugos de carne crua
proveniente da carneação das mulas e se aproximou com
precaução dos estranhos vegetais, depois lançou sobre os espinhos
um pedaço grosso de carne. Imediatamente, as duas metades da
folha se fecharam uma sobre a outra, aprisionando sua presa, com
um movimento seco que se assemelhava à mandíbula de uma fera.
“Eu estava na presença do vegetal carnívoro de gênero Dionaea
Muscipula, mas de talhe colossal, sem dúvida favorecido pela
alimentação abundante que lhe forneciam os Astecas que, talvez,
adorassem essas horríveis plantas vampiras.
“Detalhe repulsivo que não devo omitir, essas folhas vorazes
pareciam se refestelar com uma glutonaria ignóbil; uma espécie de
baba — ou melhor, um suco gástrico especial — escorria de suas
comissuras em um fluxo abundante. O que eu não conseguia
explicar era que numerosas cabaças foram colocados ao redor de
cada planta para recolher o suco que delas tombava em gotas
apressadas.
“A distribuição terminara. Empanturradas de carne, com as
folhas dobradas, os ogros vegetais digeriam.
“A noite chegara; os Astecas festejavam ao redor de grandes
fogueiras; ninguém parecia lembrar-se de mim. Era um tipo de
calmaria. Alquebrado de fatiga e de tão incômoda que era minha
posição, adormeci…
“Fui despertado pela algazarra infernal de uma orquestra em que
dominavam os címbalos, as trompas de cascas e as flautas feitas de
fêmures humanos. Meus inimigos dançavam e esvaziavam cabaças
de pulque e de aguardente.
“Terminada a digestão, as plantas vampiras estenderam
lentamente suas folhas, prontas para uma nova rodada. O velho que
lhes distribuíra o alimento retornou munido de uma grande jarra
onde começou a despejar o conteúdo das cabaças. Ele encheu uma
dezena de jarras que arranjou cuidadosamente em um canto.
Imaginei que os Astecas iriam empregar esse suco, tão
preciosamente recolhido, na fabricação de algum licor fermentado.
“O fim dessa colheita deu lugar a um redobramento da algazarra,
a uma explosão de gritos selvagens. O velho — eu soube depois
que ele era um sacerdote —, agora vestido em um manto de
plumas, o rosto pintado de vermelho e branco, avançou em direção
ao ídolo com um passo hierático. Ele carregava com grande esforço
uma das jarras, cheia até as bordas.
“Depois eu não o vi mais. Ele passou para trás da estátua.
Explicaram-me depois que ele escalou degraus escondidos nos
ornamentos das esculturas. Um minuto passou e, de repente, sua
hedionda face pintada apareceu na altura dos meus olhos.
Solenemente, ele despejou o conteúdo da jarra em um buraco
aberto no ombro do ídolo.
“Com um horror indizível, compreendi: eu seria digerido vivo pelo
deus Huitzilopochtli…
“O líquido corrosivo, o suco gástrico das plantas carnívoras, já
inundava por canais interiores minha estreita prisão, subia-me até
os joelhos, carcomendo-me a pele com a sensação ardente de um
vesicatório.
“O velho sacerdote despejou no orifício o conteúdo de uma
segunda jarra, depois de uma terceira. O líquido me subiu até as
coxas. Eu sofria de forma tão cruel quanto se me houvessem
mergulhado em uma caldeira de óleo fervente.
“Quando o sacerdote despejou a quarta jarra, dei um berro de
loucura e desmaiei…”
***
— Fique tranquila, senhorita Rosy — retomou o explorador,
confortando com um sorriso a moça, pálida de emoção. — Quando
retomei os sentidos, estava deitado em uma tenda, enfaixado dos
pés à cabeça com uma compressa de ervas amassadas e velado
por uma velha indígena. Estava à salvo.
“Necoxtla, meu guia, envergonhado por seu medo e covardia,
correra à toda brida até um posto de fronteira, felizmente pouco
afastado, e retornou com um destacamento de guardas peruanos,
justo a tempo de me salvar de uma morte atroz.
“Surpreendidos em plena orgia, os Astecas foram postos em
debandada rapidamente. Ao fim de um quarto de hora de esforços,
a placa de pedra foi levantada e eu fui arrancado de meu túmulo,
mas não apresentava sinais de vida e meu corpo estava coberto de
feridas.
“A ciência da velha squaw[1] que me tratou com compressas de
ervas aromáticas conservou a minha vida, mas não pôde restituir a
coloração natural à minha epiderme descorada pelo terrível suco.”
GUSTAVE LE ROUGE
[1] Em inglês no original. Squaw era um termo usado para designar mulheres
indígenas da América do Norte. Hoje é considerado ofensivo, misógino e racista quando
falado por não-indígenas.