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Apresentando narrativas de:

Stephen Crane, F. Marion Crawford e Arthur Conan Doyle

Os contos presentes neste e-book são obras de


domínio público, conforme a legislação brasileira vigente.

Tradução:
Diego Quadros

www.ficcoespulp.com

@ficcoespulp

Brasil – 2021
SUMÁRIO

Apresentação

O rosto voltado para cima

Stephen Crane

O mensageiro do rei

F. Marion Crawford

O fiasco de Los Amigos

Arthur Conan Doyle

O selo Ficções Pulp!

Outras publicações
APRESENTAÇÃO

Nesta edição de n° 3, trazemos a vocês contos de um autor


celebrado mundialmente, outro relativamente conhecido por estas
bandas por suas (poucas, mas ótimas) histórias perturbadoras e um
terceiro praticamente ignorado no Brasil.
Quem é qual? Tentem adivinhar!
Os horrores da guerra mostram sua face na primeira história
deste e-book. Em “O rosto voltado para cima”, de Stephen Crane,
dois oficiais precisam testar sua moralidade sob fogo cerrado e
enterrar um companheiro morto, cujo rosto voltado para cima, de
olhos abertos, enche-os de pavor.
Curta e direta, “O mensageiro do rei”, de F. Marion Crawford,
é uma história um tanto filosófica de horror que lida com a infame
superstição de que a primeira pessoa a se levantar de uma mesa
com treze morrerá em um ano.
Por fim, em “O fiasco de Los Amigos”, Arthur Conan Doyle
debocha da arrogância do homem em decorrência do
conhecimento. Os cidadãos de Los Amigos resolvem abolir os
métodos bárbaros de execução dos prisioneiros e adotam um
recurso tecnológico muito mais “humano”: a eletrocussão. Todavia,
logo na primeira tentativa, tudo dá errado...
“Clássicos do horror, do estranho e do sobrenatural” é
uma série de pequenas antologias que, a cada edição, apresenta
três narrativas inéditas de autores clássicos da literatura estrangeira
com traduções exclusivas.
Que tenham uma divertida e perturbadora leitura!
O ROSTO VOLTADO PARA CIMA

Stephen Crane

— O que vamos fazer agora? — perguntou o ajudante,


perturbado e agitado.
— Enterre-o — respondeu Timothy Lean.
Os dois oficiais olharam para a ponta dos pés, onde jazia o corpo
de seu camarada. O rosto estava azul-giz. Olhos brilhantes fitavam
o céu. Acima das duas figuras eretas, ouvia-se o som de balas
tempestuosas. No topo da colina, a exausta companhia de infantaria
de Spitzbergen, à qual pertencia Lean, disparava rajadas
moderadas.
— Você não acha que seria melhor... — começou o ajudante. —
Podemos deixá-lo aqui até amanhã.
— Não — disse Lean. — Não consigo manter esse posto por
mais uma hora. Tenho que recuar, e precisamos enterrar o velho
Bill.
— Claro — respondeu o ajudante, imediatamente. — Seus
homens têm ferramentas de escavação?
Lean gritou para sua pequena fileira. Dois homens vieram
lentamente, um com uma picareta e outro com uma pá. Eles
andavam no raio de alcance dos atiradores de elite de Rostina. As
balas zuniam perto de suas orelhas. “Cave aqui”, ordenou Lean,
rispidamente. Deste modo, os homens, obrigados a baixar o olhar
para a relva, ficaram apressados e amedrontados simplesmente
porque não podiam enxergar de onde vinham as balas. A batida
maçante da picareta, ao atingir a terra, soava em meio ao estampido
seco das balas próximas. Logo, o outro soldado começou a cavar.
— Suponho — disse o ajudante, devagar —, que seja melhor
examinarmos as roupas dele... os pertences.
Lean acenou com a cabeça. Juntos, em abstração curiosa,
fitaram o corpo. Então, Lean mexeu os ombros de repente,
despertando.
— Sim — comentou. — É melhor vermos o que ele tem. —
Ajoelhou-se e suas mãos se aproximaram do corpo do oficial morto.
Mas elas vacilaram sobre os botões da túnica. O primeiro botão
estava vermelho por causa do sangue seco e ele não parecia ousar
tocá-lo.
— Continue — disse o ajudante, com voz rouca.
Lean esticou a mão hesitante e seus dedos remexeram os
botões manchados de sangue. Por fim, levantou-se com o rosto
pálido. Juntara um relógio, um apito, um cachimbo, uma bolsa de
tabaco, um lenço, uma caixinha de cartões e papéis. Olhou para o
ajudante. Houve silêncio. O ajudante sentiu que fora covarde ao
obrigar Lean a cuidar de todo o trabalho sombrio.
— Bem — disse Lean. — Isso é tudo, eu acho. Você está com a
espada e o revólver?
— Sim — respondeu o ajudante, com o rosto tenso, e então
explodiu numa fúria repentina e estranha contra os dois soldados
rasos. — Por que vocês não se apressam com essa cova? O que
estão fazendo, afinal? Depressa, ouviram? Nunca vi dois soldados
tão estúpidos...
Mesmo enquanto ele clamava em sua paixão, os dois homens
laboravam por suas vidas. Sempre acima, as balas continuavam
cuspindo.
A cova foi terminada. Não era uma obra-prima — uma cova rasa
modesta. Lean e o ajudante novamente se entreolharam em uma
curiosa comunicação silenciosa.
De repente, o ajudante coaxou uma risada estranha. Era uma
risada terrível, que tinha sua origem naquela parte da mente
impulsionada pelo badalar dos nervos. — Bem — disse ele, com
humor, para Lean. — Suponho que seria melhor descê-lo.
— Sim — respondeu Lean. Os dois soldados esperavam,
curvados sobre suas ferramentas. — Suponho — observou Lean —,
que seria melhor se o descêssemos nós mesmos.
— Sim — disse o ajudante. Então, aparentemente lembrando-se
de que havia feito Lean revistar o corpo, ele se abaixou com grande
firmeza e agarrou as roupas do oficial morto. Lean se juntou a ele.
Ambos fizeram questão de que seus dedos não sentissem o
cadáver. Eles o puxaram. O cadáver foi erguido e jogado na cova, e
os dois oficiais, endireitando-se, olharam um para o outro —
estavam sempre olhando um para o outro. Suspiraram de alívio.
O ajudante falou: — Suponho que devemos... devemos dizer
algo. Você sabe a cerimônia, Tim?
— Eles não fazem a cerimônia até que a cova esteja pronta —
respondeu Lean, pressionando os lábios em uma expressão
acadêmica.
— Não? — disse o ajudante, chocado por ter cometido o erro.
— Ah, bem — gritou ele, de repente. — Vamos... vamos falar
alguma coisa... enquanto ele pode nos ouvir.
— Certo — respondeu Lean. — Você sabe a cerimônia?
— Não consigo me lembrar de uma linha sequer — disse o
ajudante.
Lean estava extremamente hesitante. — Posso repetir umas
duas linhas, mas...
— Bem, faça isso — disse o ajudante. — Vá o mais longe que
puder. É melhor do que nada. E estamos ao alcance exato das
feras.
Lean olhou para seus dois homens. — Atenção — berrou. Os
soldados rasos prestaram atenção num estalo, parecendo muito
aflitos. O ajudante baixou o capacete até o joelho. Lean, com a
cabeça descoberta, parou em frente ao túmulo. Os atiradores de
elite de Rostina dispararam abruptamente.
— Oh, Pai, nosso amigo afundou nas águas profundas da morte,
mas seu espírito saltou em direção a Ti quando a bolha surgiu dos
lábios do afogamento. Perceba, nós imploramos, oh, Pai, a pequena
bolha flutuante e...
Lean, embora rouco e envergonhado, não hesitara até aquele
ponto, mas parou com uma sensação de desesperança e olhou para
o cadáver.
O ajudante moveu-se inquieto. — E de Tuas alturas soberbas...
— ele começou, e então também chegou ao fim.
— E de Tuas alturas soberbas — falou Lean.
O ajudante de repente se lembrou de uma frase na parte de trás
do serviço funerário de Spitzbergen, e a explorou com a maneira
triunfante de um homem que recorda tudo e é capaz de prosseguir.
— Oh, Deus, tenha misericórdia...
— Oh, Deus, tenha misericórdia... — disse Lean.
— Misericórdia — repetiu o ajudante, em um rápido fracasso.
— Misericórdia — disse Lean. E, então, foi movido por uma
violência de sentimento, pois voltou-se repentinamente para seus
dois homens e falou como um tigre: — Joguem a terra.
O fogo dos atiradores de elite de Rostina era preciso e
ininterrupto.

***

Um dos aflitos soldados avançou com a pá. Ergueu sua primeira


porção de terra e, por um momento de inexplicável hesitação, a pá
foi mantida suspensa acima do cadáver, que, com seu rosto azul-
giz, olhava fixamente da cova. Em seguida, o soldado esvaziou a
pá... sobre os pés.
Timothy Lean sentiu como se toneladas fossem retiradas de sua
cabeça. Pensara que talvez o soldado esvaziasse a pá... sobre o
rosto. Fora esvaziada sobre os pés. Houve um grande ponto a favor
ali... há, há!... a primeira pá fora esvaziada sobre os pés. Que
satisfação!
O ajudante começou a balbuciar. — Bem, é claro... um homem
com quem lidamos por todos esses anos... impossível... você não
pode, sabe, deixar seus amigos íntimos apodrecendo no campo. Vá
em frente, pelo amor de Deus, e o enterre.
O homem com a pá agachou-se repentinamente, agarrou seu
braço esquerdo com a mão direita e olhou para seu oficial em busca
de ordens. Lean catou a pá do chão. — Vá para a retaguarda —
disse ele ao ferido. Da mesma forma, dirigiu-se ao outro soldado. —
Você se esconda também. Eu vou terminar esse negócio.
O ferido esgueirava-se com dificuldades para chegar ao topo da
colina, sem olhar para a direção de onde vinham as balas, e o outro
homem o seguia em passos iguais; mas este era diferente, porque
olhara ansiosamente para trás por três vezes.
Eis o caminho — frequentemente — entre o sucesso e o
fracasso.
Timothy Lean encheu a pá, hesitou e, em seguida, com um
movimento que parecia um gesto de repulsa, jogou a terra na cova.
Ao pousar, ela fez um barulho — plop. Lean parou de repente e
enxugou a testa — um trabalhador cansado.
—Talvez estejamos errados — disse o ajudante. Seu olhar
oscilava estupidamente. — Seria melhor se não o enterrássemos
agora. Claro, se continuássemos amanhã, o corpo estaria...
— Maldito seja — respondeu Lean. — Cale a boca. — Ele não
era o oficial sênior.
Lean encheu novamente a pá e jogou a terra. Ela sempre fazia
aquele som — plop. Por um espaço de tempo, Lean trabalhou
freneticamente, como se cavasse para escapar de um perigo.
Logo não havia nada para ser visto, exceto o rosto azul-giz. Lean
encheu a pá. — Meu Deus — gritou ao ajudante. — Por que você
não o virou de outra forma quando o pôs ali dentro? Isso... — Então,
Lean começou a gaguejar.
O ajudante entendeu. Estava pálido até os lábios. — Vá em
frente, homem — berrou, suplicante, quase num bramido. Lean
balançou a pá para trás. Ela avançou em uma curva pendular.
Quando a terra pousou, fez um barulho — plop.
STEPHEN CRANE

Setephen Crane (1871-1900) foi um poeta, romancista e contista


estadunidense. Prolífico ao longo de sua curta vida, escreveu obras
notáveis na tradição realista, bem como os primeiros exemplos do
naturalismo e do impressionismo dos Estados Unidos.
Ele é reconhecido pela crítica moderna como um dos escritores
mais inovadores de sua geração. Crane ganhou aclamação
internacional em 1895 por seu romance da Guerra Civil The Red
Badge of Courage, que escreveu sem ter nenhuma experiência em
batalha.
O MENSAGEIRO DO REI

F. Marion Crawford

Foi um jantar bastante escuro à luz do dia, lembro-me


perfeitamente, pois podia ver o brilho do pôr do sol sobre as árvores
do parque, através da janela alta na extremidade oeste da sala de
jantar. Eu esperava encontrar um grupo maior, creio eu, pois me
lembro de ter ficado um pouco surpreso ao ver apenas uma dúzia
de pessoas reunidas à mesa. Parecia-me que nos velhos tempos,
muito antes, em minha estadia naquela casa pela última vez, havia
cerca de trinta ou quarenta convidados. Reconheci alguns deles
entre uma série de belos retratos pendurados nas paredes. Tinha
espaço para muitos porque havia apenas uma enorme janela, em
uma extremidade, e uma grande porta na outra. Também fiquei
muito surpreso ao ver um retrato meu, evidentemente pintado cerca
de vinte anos antes por Lenbach. Parecia muito estranho eu ter
esquecido completamente o quadro e não ser capaz de me lembrar
de ter posado para ele. Éramos bons amigos, é verdade, e ele
poderia tê-lo pintado de memória, sem meu conhecimento, mas
certamente era estranho que nunca houvesse me contado sobre
isso. Os retratos pendurados na sala de jantar eram todos muito
bons e todos, devo dizer, dos melhores pintores da época.
Minha vizinha à esquerda era uma adorável jovem cujo nome eu
esquecera, embora a conhecesse havia muito tempo, e imaginei
que ela pareceu um pouco desapontada ao ver que eu estava ao
seu lado. À minha direita, um assento vago, e, além dele, uma
senhora idosa com feições tão duras quanto os diamantes
opressivamente esplêndidos que usava. Seus olhos me fizeram
pensar em bolas de gude opacas cimentadas em uma máscara de
pedra. Era estranho que o nome dela também me escapasse, pois
eu a encontrava com frequência.
A mesa parecia irregular e contei os convidados mecanicamente
enquanto comia a sopa. Éramos apenas doze, mas a cadeira vazia
ao meu lado era o décimo terceiro lugar.
Suponho que não tenha sido muito delicado de minha parte
mencionar isso, mas queria dizer algo à bela garota à minha
esquerda, e nenhum outro assunto para uma observação geral veio
à mente. No momento em que ia falar, lembrei-me de quem ela era.
— Senhorita Lorna — disse eu, para chamar sua atenção, pois
ela desviava o olhar de mim em direção à porta. — Espero que você
não seja supersticiosa sobre haver treze à mesa, não é?
— Somos apenas doze — respondeu, com a voz mais suave do
mundo.
— Sim, mas alguém mais está vindo. Há uma cadeira vazia aqui
ao meu lado.
— Oh, ele não conta — disse a Srta. Lorna, calmamente. — Pelo
menos, não para todos. Quando você chegou aqui? Bem na hora do
jantar, suponho.
— Sim — respondi. — Tenho sorte de estar ao seu lado. Parece
que faz um século que estivemos aqui juntos.
— É verdade — suspirou a Srta. Lorna, e olhou para os retratos
na parede oposta. — Eu vivi uma vida inteira desde que encontrei o
senhor pela última vez.
Sorri com o exagero.
— Quando tiver trinta anos, a senhorita não vai falar de sua vida
ter ficado para trás — comentei.
— Nunca chegarei aos trinta — respondeu a Srta. Lorna, com um
ar tão estranho de convicção que não pensei em nada para dizer. —
Além disso, a vida não é feita de anos, meses ou horas, ou de
qualquer coisa que tenha a ver com o tempo — continuou. — O
senhor deveria saber disso. Nossos corpos são algo melhor do que
meros relógios de corda, feitos para mostrar nossa idade a cada
momento, através de nossos cabelos ficando grisalhos e nossos
dentes caindo e nossos rostos se tornando enrugados e amarelos,
ou inchados e vermelhos. Olhe para o seu próprio retrato ali. Não
me importo em dizer que o senhor devia ser vinte anos mais jovem
quando ele foi pintado, mas tenho certeza de que é exatamente o
mesmo homem hoje, melhorado pela idade, talvez.
Ouvi uma risada doce ecoando, que parecia muito distante. E, na
verdade, não poderia jurar que saiu dos belos lábios da Srta. Lorna,
pois, embora estivessem separados e sorridentes, minha impressão
era que não se moviam, mesmo que os lábios da maioria das
mulheres sejam movidos pelo riso.
— Obrigado por achar que melhorei. — Eu disse. — Penso que a
senhorita mudou um pouco também. Eu ia dizer que parece mais
triste, mas a senhorita riu nesse momento.
— Eu ri? Suponho que seja a coisa certa a fazer quando a
brincadeira termina, não?
— Se foi uma brincadeira divertida — respondi, alegrando-a.
Os maravilhosos olhos violetas se dirigiram a mim, cheios de luz.
— Não foi uma brincadeira ruim. Eu não reclamo.
— Por que a senhorita fala como se houvesse terminado?
— Vou lhe contar, porque tenho certeza de que o senhor vai
guardar meu segredo. Vai, não vai? Sempre fomos tão bons amigos,
o senhor e eu, mesmo há dois anos, quando era jovem e tola. O
senhor promete não contar a ninguém até eu partir?
— Partir?
— Sim. O senhor promete?
— Claro que sim. Mas...
Não terminei a frase, porque a Srta. Lorna se inclinou para mais
perto de mim, no intuito de falar em tom bem mais baixo. Enquanto
ouvia, senti seu hálito jovem e doce em minha bochecha.
— Vou embora esta noite com o homem que vai se sentar ao seu
lado — disse ela. — Ele está um pouco atrasado. Frequentemente
se atrasa, porque é tremendamente ocupado. Mas ele virá logo, e,
depois do jantar, vamos simplesmente passear no jardim e nunca
mais voltar. Esse é o meu segredo. O senhor não vai me trair, vai?
Novamente, enquanto ela olhava para mim, eu ouvi aquela
risada prateada e distante, suave e baixa — eu estava quase
surpreso demais com o que ela havia me contado para notar como
seus lábios estavam entreabertos, mas isso retorna para mim agora,
com muitos outros detalhes.
— Minha querida Srta. Lorna — falei —, pense em seus pais
antes de dar esse passo.
— Já pensei neles — respondeu. — Claro que eles nunca
consentiriam, e lamento muito deixá-los, mas não há como evitar.
Neste momento, como costuma acontecer quando duas pessoas
estão falando em voz baixa em uma grande mesa de jantar, houve
uma calmaria momentânea na conversa geral, e fui poupado do
trabalho de dar qualquer outra resposta ao que a Srta. Lorna havia
me dito tão inesperadamente, e com profunda confiança em minha
discrição.
Para dizer a verdade, muito provavelmente ela não teria
escutado, quer minhas palavras expressassem simpatia ou protesto,
pois ficou subitamente pálida e seus olhos estavam arregalados e
escuros. A calmaria na conversa à mesa devia-se ao surgimento do
homem que ocuparia o lugar vago ao meu lado.
Ele havia entrado na sala muito silenciosamente e não fez
nenhum pedido elaborado de desculpas pelo atraso, enquanto se
sentava, inclinando a cabeça de forma cortês para nossa anfitriã e
seu marido, e sorrindo gentilmente enquanto acenava para os
outros.
— Por favor, me perdoem — disse ele, calmamente. — Fui
detido por um funeral e perdi o trem.
Só depois de ocupar seu lugar, ele virou-se para a Srta. Lorna e,
por cima de mim, trocou um olhar de reconhecimento com ela.
Reparei que a senhora de rosto severo e diamantes esplêndidos,
que estava do outro lado, afastou-se um pouco, como se não
quisesse nem mesmo deixar a manga dele roçar em seu braço
despido. Ao mesmo tempo, ocorreu-me que a Srta. Lorna
provavelmente desejasse que eu estivesse em qualquer outro lugar
que não entre ela e o homem com quem estava prestes a fugir, e
desejei, por eles e por mim, poder trocar de lugar com ele. Ele
certamente não era como os outros homens. Embora poucas
pessoas o chamassem de bonito, havia algo em si que
imediatamente chamava a atenção. Ainda que a Srta. Lorna fosse
de uma beleza rara, quase todos o teriam notado primeiro ao entrar
na sala, e a maioria das pessoas, suponho, ficaria mais interessada
em seu rosto do que no dela. Eu poderia muito bem imaginar que
algumas mulheres seriam capazes de amá-lo, mesmo à distração,
embora fosse tão fácil compreender que outras poderiam sentir forte
repulsa, e até mesmo temê-lo.
De minha parte, não tentarei descrevê-lo como se descreve um
homem comum, com uma dúzia ou mais de adjetivos que não
deixam nada para a imaginação, mas ainda assim nenhuma
imagem que se possa apreender. Meu instinto era mais temê-lo do
que pensar nele como um possível amigo, mas não pude deixar de
sentir uma admiração instantânea, como se sente à primeira vista
por qualquer coisa que seja muito completa, harmoniosa e forte. Era
moreno e pálido, de uma palidez sombria que nunca vi em nenhum
outro rosto. As feições do três vezes maior Hermes não seriam
modeladas em uma simetria mais perfeita. Seus olhos luminosos
não eram indelicados, mas havia neles algo fatal, e estavam
inseridos bem fundo sob as grandes sobrancelhas brancas. Não
podia imaginar sua idade, mas deveria chamá-lo de jovem. De pé, vi
que era alto e musculoso, e, agora que estava sentado, tinha a
aparência inconfundível de um homem acostumado a ter autoridade,
a ser ouvido e obedecido. Suas mãos eram brancas, seus dedos
retos, magros e muito fortes.
Todos à mesa pareciam conhecê-lo, mas, como costuma
acontecer entre as pessoas civilizadas, ninguém o chamava pelo
nome ao falar com ele.
— Começávamos a temer que você não chegasse aqui — disse
nosso anfitrião.
— Mesmo? — O Décimo Terceiro Convidado sorriu baixinho,
mas balançou a cabeça. — Você já soube de alguma vez em que
faltei a um compromisso, sob qualquer circunstância?
O dono da casa riu, embora não muito cordialmente, supus.
— Não — respondeu. — Sua reputação de manter seus
compromissos é proverbial. Até mesmo seus inimigos devem admitir
isso.
O Convidado acenou com a cabeça e sorriu novamente. Miss
Lorna inclinou-se para mim.
— O que o senhor acha dele? — perguntou, quase em um
sussurro.
— Tipo de homem muito marcante — respondi, em voz baixa. —
Mas estou inclinado a ter um pouco de medo dele.
— Eu também estava, no início — disse ela, e ouvi a risada
prateada novamente. — Mas isso logo passa — continuou. — O
senhor o conhecerá melhor algum dia.
— Conhecerei?
— Sim, tenho certeza. Ah, não finjo que me apaixonei à primeira
vista. Passei por uma fase de sentir medo dele, como quase todo
mundo passa. Veja, quando as pessoas o encontram pela primeira
vez, não têm como saber o quão amável e gentil pode ser, embora
seja tão forte. Já o ouvi ser chamado de cruel, implacável e frio, mas
não é verdade. Não mesmo. Ele pode ser tão gentil quanto uma
mulher, e é o amigo mais verdadeiro em todo o mundo.
Eu ia pedir a ela que me dissesse o seu nome, mas só então vi
que olhava para ele, através de mim, e me sentei o mais recuado
que pude na cadeira, para que pudessem falar um com o outro, se o
desejassem. Seus olhos se encontravam e havia uma luz de desejo
em ambos. Não pude deixar de espiá-los, e os doces lábios da
senhorita Lorna moveram-se quase imperceptivelmente, embora
nenhum som saísse deles. Já vi jovens amantes fazerem aquele
pequeno sinal um para o outro, mesmo do outro lado da sala, o sinal
de um beijo dado e devolvido nos pensamentos do coração.
Se ela fosse menos bonita e jovem, se o homem que amava não
fosse tão magnificamente másculo, isso teria me irritado, mas
parecia natural que se amassem e não se envergonhassem disso, e
eu só esperava que ninguém mais à mesa notasse a pequena
contração ternamente trêmula da boca requintada da jovem.
— Você se lembrou — disse o homem, tranquilamente. —
Recebi sua mensagem esta manhã. Obrigado.
— Espero que não seja muito difícil — murmurou a Srta. Lorna,
sorrindo. — Não que fizesse alguma diferença se fosse —
acrescentou, mais pensativa.
— É a coisa mais fácil da vida — disse ele. — E prometo que
você nunca se arrependerá.
— Eu confio em você. — A jovem respondeu simplesmente.
Então ela se virou, pois, sem dúvida, sentiu o constrangimento
de falar com ele através de mim sobre um segredo que me
confidenciara sem que ele soubesse. Voltei-me instintivamente para
ele, sentindo que havia chegado o momento de desconsiderar as
formalidades e conhecê-lo, já que éramos vizinhos à mesa na casa
de um amigo e eu conhecia a Srta. Lorna havia muito tempo. Além
disso, é sempre interessante conversar com um homem que está
prestes a fazer algo muito perigoso ou dramático e não presume
que você sabe do que se trata.
— Suponho que o senhor veio dirigindo da cidade para cá, como
disse que perdeu o trem — falei. — É uma boa estrada, não é?
— Sim, eu literalmente voei — respondeu o homem moreno, com
seu sorriso gentil. — Espero que o senhor não seja supersticioso
sobre haver treze à mesa?
— Nem um pouco — respondi. — Em primeiro lugar, sou fatalista
sobre tudo o que não depende da minha vontade. Como não tenho
a menor intenção de fazer nada para encurtar a minha vida, ela
certamente não terá um fim abrupto por qualquer autossugestão
decorrente de uma superstição boba como essa do número treze.
— Autossugestão? Essa é uma nova luz sobre as velhas
crenças.
— E em segundo lugar — continuei —, não acredito na morte.
Não existe tal coisa.
— Mesmo? — Meu vizinho pareceu muito surpreso. — O que o
senhor quer dizer? — perguntou. — Creio que não entendi.
— Tenho certeza que eu não — disse a Srta. Lorna, e a risada
prateada se seguiu. Ela ouvira a conversa, e alguns dos outros
convidados estavam ouvindo também.
— Não se mata um livro traduzindo-o — falei, bastante feliz por
expor minhas opiniões. — A morte é apenas uma tradução da vida
para outra língua. É isso que quero dizer.
— Esse é um ponto de vista muito interessante — observou o
Décimo Terceiro Convidado, pensativo. — Nunca pensei no assunto
dessa forma antes, embora já tenha visto a expressão 'traduzida' em
epitáfios. Tem certeza de que não está se entregando a um pouco
de paronomásia?
— O que é isso? — indagou a senhora de rosto severo, com todo
o desprezo que uma palavra erudita merece em uma sociedade
educada.
— Significa trocadilho — respondi. — Não, eu não estou fazendo
um trocadilho. Assuntos graves não se prestam a formas vulgares
de humor. Garanto ao senhor, estou falando sério. A morte, no
sentido comum, não é um fenômeno real, desde que exista vida no
universo. É um nome que aplicamos a uma mudança que apenas
parcialmente compreendemos.
— Discussões eruditas são uma chatice terrível — disse a
senhora de rosto severo, de forma muito audível.
— Não o aconselho a discutir a questão com demasiada
veemência com o seu vizinho aí — riu o dono da casa, inclinando-se
para a frente e falando comigo. — Ele vai extrair o melhor de você.
É um especialista no que você chama de “traduzir pessoas para
outro idioma.”
Se o homem ao meu lado era um cirurgião famoso, como talvez
quisesse dizer nosso anfitrião, pareceu-me que a observação não
era de muito bom gosto. Ele assemelhava-se mais um soldado.
— Nosso amigo quer dizer que o senhor está no exército e que é
uma pessoa perigosa? — perguntei a ele.
— Não — respondeu calmamente. — Sou apenas um
Mensageiro do Rei e, na minha opinião, não sou nada perigoso.
— Deve ser uma vida bastante ativa — disse eu, para dizer algo.
— Indo e vindo constantemente, suponho?
— Sim, constantemente.
Senti que a Srta. Lorna estava observando e ouvindo, e me virei
para ela, apenas para descobrir que estava novamente olhando
para além de mim, para meu vizinho, embora ele não a visse.
Lembro-me claramente de seu rosto como era então. A recordação
é, de fato, a última impressão que tenho de sua beleza
incomparável, pois nunca mais a vi depois daquela noite.
Ter visto uma das mulheres mais bonitas do mundo olhando para
o homem que era mais para ela do que a vida e tudo o que ela
continha, é algo que não consigo esquecer. Mas ele não devolveu o
olhar naquele momento, pois havia entrado na conversa geral, e,
logo depois, praticamente a absorveu.
F. MARION CRAWFORD

Francis Marion Crawford (1854-1909) foi um escritor e historiador


americano conhecido por seus muitos romances, especialmente
aqueles ambientados na Itália, e por suas histórias clássicas
estranhas e fantásticas.
H. Russel Wakefield, em um ensaio sobre histórias de
fantasmas, elegeu “The Upper Berth” (1886) como a “melhor” das
narrativas do gênero. H.P. Lovecraft a considerou “uma das maiores
histórias de terror de toda a literatura.”
O FIASCO DE LOS AMIGOS

Arthur Conan Doyle

Eu costumava ser o principal clínico geral de Los Amigos. Claro,


todo mundo já ouviu falar sobre o grande aparato de geração
elétrica de lá. A cidade é muito extensa, e existem dezenas de
pequenos vilarejos e aldeias em volta que recebem seu
abastecimento do mesmo centro, de modo que as atividades
ocorrem em larga escala. A população de Los Amigos diz que é a
maior do mundo, mas afirmamos isso para tudo em Los Amigos,
exceto a prisão e a taxa de mortalidade. Estas são considerados os
menores.
Agora, com um abastecimento elétrico tão bom, parecia um
desperdício pecaminoso de forcas que os criminosos de Los Amigos
morressem à moda antiga. E então veio a notícia das eletrocussões
no Oriente, e de como os resultados, afinal, não eram tão
instantâneos como se esperava. Os engenheiros ocidentais
ergueram as sobrancelhas ao lerem sobre os fracos choques pelos
quais esses homens haviam morrido, e juraram em Los Amigos que,
quando um irrecuperável aparecesse em seu caminho, deveria ser
tratado com generosidade e receber a descarga de todos os
grandes dínamos. Não deveriam economizar, disseram os
engenheiros. Deveriam utilizar toda a energia de que dispunham.
Qual seria o resultado disso ninguém era capaz de prever, exceto
que poderia ser absolutamente devastador e mortal. Nunca antes
um homem recebera uma descarga tão grande de eletricidade como
eles o fariam. Seria atingido pela intensidade de dez raios. Algo de
combustão profetizada com desintegração e desaparecimento.
Esperavam ansiosamente para resolver a questão por meio de uma
demonstração real, e foi exatamente naquele momento que Duncan
Warner apareceu.
Warner era procurado pela justiça, e por mais ninguém, havia
muitos anos. Fora da lei, assassino, ladrão de trens e salteador, era
um homem além dos limites da piedade humana. Merecia uma
dúzia de mortes, e o povo de Los Amigos ressentia-se de um
elemento tão espalhafatoso como aquele. Ele parecia se sentir
indigno disso, pois realizou duas tentativas frenéticas de fuga. Era
um homem forte e musculoso, com uma cabeça de leão, cabelos
negros emaranhados e uma barba extensa que cobria seu peito
largo. Quando foi julgado, não havia cabeça mais atraente em toda
a lotada corte. Não é nenhuma novidade encontrar o rosto mais
bonito no banco dos réus. No entanto, sua boa aparência não
conseguia equilibrar suas más ações. Seu advogado fez tudo o que
podia, mas as cartas estavam contra ele, e Duncan Warner foi
entregue à mercê dos grandes dínamos de Los Amigos.
Eu estava na reunião do comitê quando o assunto foi discutido.
O conselho municipal escolhera quatro especialistas para cuidar dos
arranjos. Três deles eram admiráveis. Havia Joseph M'Conner, o
próprio homem que projetara os dínamos, e Joshua Westmacott,
presidente da Los Amigos Electrical Supply Company Limited.
Depois, eu era o médico-chefe e, por último, um velho alemão
chamado Peter Stulpnagel. Os alemães eram uma forte presença
em Los Amigos e todos votaram em seu homem. Foi assim que ele
entrou no comitê. Dizia-se que fora um eletricista maravilhoso em
sua terra natal, e que trabalhava eternamente com fios, isoladores e
garrafas de Leiden. Mas, como parecia nunca avançar, ou obter
qualquer resultado que valesse a pena publicar, acabou por ser
considerado um excêntrico ingênuo que fizera da ciência seu hobby.
Nós três, homens práticos, sorrimos quando soubemos que fora
eleito nosso colega e, na reunião, resolvemos tudo muito bem entre
nós mesmos, sem pensar no velho que estava sentado com as
orelhas apoiadas nas mãos, pois ele era um pouco difícil de ouvir,
não participando dos procedimentos mais do que os cavalheiros da
imprensa que rabiscavam suas anotações nos assentos ao fundo.
Não demoramos para resolver tudo. Em Nova York, uma força de
cerca de dois mil volts fora usada, e a morte não foi instantânea.
Evidentemente, o choque foi muito fraco. Los Amigos não devia
incorrer nesse erro. A descarga seria seis vezes maior e, portanto,
óbvio, seria seis vezes mais eficaz. Nada poderia ser mais lógico.
Toda a força concentrada dos grandes dínamos seria empregada
em Duncan Warner.
Então, nós três chegamos a uma decisão, e já havíamos nos
levantado para finalizar a reunião, quando nosso companheiro
silencioso abriu a boca pela primeira vez.
— Senhores — disse ele. — Vocês me parecem demonstrar uma
ignorância extraordinária sobre o assunto da eletricidade. Vocês não
dominam os princípios básicos de suas ações sobre um ser
humano.
O comitê estava prestes a dar uma resposta furiosa a esse
comentário brusco, mas o presidente da Electrical Company bateu
na testa para reclamar sua indulgência pela irritabilidade do orador.
— Por favor, diga-nos, senhor — respondeu, com um sorriso
irônico —, o que há em nossas conclusões que o senhor considera
falho?
— A sua suposição de que uma elevada descarga de eletricidade
simplesmente aumentará o efeito de uma pequena descarga. Os
senhores não acham possível que obtenham um resultado
totalmente diferente? Os senhores sabem alguma coisa, por
experiência prática, do efeito de tão poderosos choques?
— Sabemos disso por analogia — disse o presidente,
pomposamente. — Todas as drogas aumentam seu efeito quando
aumentam sua dose. Por exemplo... por exemplo...
— Uísque — disse Joseph M'Connor.
— Exatamente. Uísque. Você vê isso por aí.
Peter Stulpnagel sorriu e balançou a cabeça.
— Seu argumento não é muito bom — observou. — Quando eu
tomava uísque, achava que um copo me excitava, mas seis me
faziam dormir, o que é exatamente o oposto. Agora, suponha que a
eletricidade também agisse de maneira oposta, e então?
Nós três, homens práticos, desatamos a rir. Sabíamos que nosso
colega era esquisito, mas nunca pensamos que seria tão esquisito
assim.
— E então? — repetiu Peter Stulpnagel.
— Vamos nos arriscar — respondeu o presidente.
— Por favor, considerem — disse Peter —, que operários que
tocaram os fios, e que receberam choques de apenas algumas
centenas de volts, morreram instantaneamente. O fato é bem
conhecido. No entanto, quando uma força muito maior foi usada
sobre um criminoso em Nova York, o homem lutou por algum tempo.
Os senhores não veem claramente que quanto menor a descarga,
mais letal ela é?
— Acho, senhores, que esta discussão já se arrasta há bastante
tempo — disse o presidente, levantando-se novamente. — A
questão, suponho, já foi decidida pela maioria do comitê, e Duncan
Warner será eletrocutado na terça-feira com a força total dos
dínamos Los Amigos. Não é?
— Concordo — disse Joseph M'Connor.
— Concordo. — Eu disse.
— E eu protesto — disse Peter Stulpnagel.
— Então a moção é aprovada, e seu protesto será lavrado em
ata — respondeu o presidente, e assim a sessão foi encerrada.
O comparecimento à eletrocussão foi muito pequeno. Nós, os
quatro membros do comitê, estávamos, é claro, presentes com o
carrasco, que deveria agir sob nossas ordens. Os outros eram um
delegado federal dos Estados Unidos, o diretor da prisão, o capelão
e três membros da imprensa. A sala era uma pequena câmara de
tijolos, formando um anexo da estação elétrica central. Havia sido
usada como lavanderia e tinha uma fornalha e cobre em um lado,
mas nenhum outro móvel, exceto uma cadeira para o condenado.
Uma placa de metal, pela qual passava um fio espesso e isolado, foi
posicionada de modo que ficasse sob seus pés. Acima, outro fio
pendia do teto. Poderia ser conectado com uma pequena haste
metálica projetada de um capacete que seria posto sobre sua
cabeça. Quando essa conexão foi estabelecida, a hora de Duncan
Warner havia chegado.
Houve um silêncio solene enquanto esperávamos a chegada do
prisioneiro. Os técnicos pareciam um pouco pálidos e mexiam
nervosamente nos fios. Mesmo o insensível delegado federal estava
pouco à vontade, pois um mero enforcamento era uma coisa, e
aquela explosão de carne e sangue seria muito diferente. Quanto
aos jornalistas, seus rostos estavam mais brancos do que as folhas
de papel diante deles. O único homem que dava a impressão de
não sentir a influência desses preparativos era o pequeno e
excêntrico alemão, que passeava de um para o outro com um
sorriso nos lábios e malícia nos olhos. Mais de uma vez, chegou ao
extremo de cair na gargalhada, até que o capelão o repreendeu
severamente por sua leviandade inoportuna.
— Como pode agir de maneira imprópria, Sr. Stulpnagel — disse
ele —, a ponto de brincar na presença da morte?
Mas o alemão foi bastante descarado.
— Se eu estivesse na presença da morte, não zombaria —
respondeu. — Mas como não estou, posso fazer o que quiser.
Essa resposta impertinente estava prestes a atrair outra, além de
uma reprovação mais severa do capelão, quando a porta se abriu e
dois guardas entraram, trazendo Duncan Warner consigo. Ele olhou
em volta com uma expressão impassível, avançou resolutamente e
sentou-se na cadeira.
— Ligue-a! — disse ele.
Foi bárbaro mantê-lo em suspense. O capelão murmurou
algumas palavras em seu ouvido, o assistente pôs o capacete em
sua cabeça e então, enquanto todos prendíamos a respiração, o
arame e o metal entraram em contato.
— Por Deus! — gritou Duncan Warner.
Ele saltou em sua cadeira quando o choque terrível atingiu seu
sistema. Mas não estava morto. Pelo contrário, seus olhos
brilhavam muito mais intensamente do que antes. Houve apenas
uma mudança, mas foi singular. O preto havia passado por seu
cabelo e sua barba como a sombra por uma paisagem. Ambos
estavam brancos como a neve. Apesar disso, não havia nenhum
outro sinal de danos. Sua pele era lisa, polpuda e lustrosa como a
de uma criança.
O delegado fitou o comitê com um olhar de reprovação.
— Parece haver algum empecilho aqui, senhores — disse ele.
Nós, três homens práticos, entreolhamo-nos.
Peter Stulpnagel sorriu, pensativo.
— Acho que outro deve resolver — falei.
Novamente a conexão foi estabelecida, e novamente Duncan
Warner saltou em sua cadeira e gritou, mas, na verdade, mesmo
que não houvesse permanecido na cadeira, nenhum de nós o teria
reconhecido. Seu cabelo e sua barba se desfiaram em um instante,
e a sala pareceu uma barbearia em uma noite de sábado. Lá estava
ele, sentado, os olhos ainda reluzindo, a pele radiante com o brilho
da saúde perfeita, porém com o couro cabeludo tão liso quanto um
queijo holandês e o queixo sem nenhum traço de penugem. Ele
começou a girar um dos braços, lenta e hesitantemente no início,
mas com mais confiança à medida que prosseguia.
— Essa articulação — disse ele —, intrigou metade dos médicos
na encosta do Pacífico. Está boa como se fosse nova, e tão flexível
como um galho de nogueira.
— Você está se sentindo bem? — perguntou o velho alemão.
— Nunca estive melhor na minha vida — respondeu Duncan
Warner, alegremente.
A situação era revoltante. O delegado olhou feio para o comitê.
Peter Stulpnagel sorriu e esfregou as mãos. Os engenheiros
coçaram a cabeça. O prisioneiro careca girou o braço e pareceu
satisfeito.
— Acho que mais um choque... — começou o presidente.
—Não, senhor — disse o delegado. — Já tivemos tolices o
suficiente por uma manhã. Estamos aqui para uma execução, e uma
execução teremos.
— O que você propõe?
— Há um gancho à mão no teto. Busque uma corda e logo
resolveremos este assunto.
Houve outra demora embaraçosa enquanto os guardas partiam
para pegar a corda. Peter Stulpnagel curvou-se sobre Duncan
Warner e sussurrou algo em seu ouvido. O fora da lei sobressaltou-
se, surpreso.
— Você não disse? — perguntou.
O alemão acenou com a cabeça.
— O quê! De maneira nenhuma?
Peter balançou a cabeça e os dois começaram a rir como se
compartilhassem uma grande piada entre eles.
A corda foi trazida e o próprio delegado enfiou o laço no pescoço
do criminoso. Em seguida, os dois guardas, o assistente e ele
suspenderam a vítima no ar. Por meia hora, ela ficou pendurada —
uma visão terrível — no teto. Então, em um silêncio solene, eles o
baixaram e um dos guardas saiu para ordenar que o caixão fosse
trazido. Mas, ao tocar o solo novamente, qual foi nosso espanto
quando Duncan Warner levou as mãos ao pescoço, afrouxou o laço
e respirou longa e profundamente.
— As vendas de Paul Jefferson estão indo bem — observou. —
Pude ver a multidão lá de cima. — E acenou com a cabeça para o
gancho no teto.
— Subam com ele de novo! — gritou o delegado. — Vamos tirar
sua vida de alguma forma.
Em um instante, a vítima estava no gancho mais uma vez.
Mantiveram-no lá por uma hora. Quando desceu, contudo,
estava perfeitamente loquaz.
— O velho Plunket vai demais ao Arcady Saloon — disse. —
Esteve lá por três vezes em uma hora, e com a família. O velho
Plunket faria bem em desistir.
Era monstruoso e incrível, mas era. Não havia como contornar
isso. O homem estava lá conversando quando deveria estar morto.
Todos ficamos sentados, olhando com espanto, mas o delegado
federal Carpenter não era um homem que se deixasse enganar tão
facilmente. Fez um gesto para que os outros se afastassem, de
modo que o prisioneiro ficasse sozinho.
— Duncan Warner — disse lentamente —, você está aqui para
fazer a sua parte e eu estou aqui para fazer a minha. Seu jogo é
viver se puder, e o meu é cumprir a sentença da lei. Você nos
venceu na eletricidade. Ponto para você. E você nos venceu no
enforcamento, pois parece que se dá bem com isso. Mas é a minha
vez de vencê-lo agora, pois meu dever precisa ser cumprido.
Ele puxou um revólver de seis tiros do casaco enquanto falava e
disparou todas as balas no corpo do prisioneiro. A sala ficou tão
cheia de fumaça que não podíamos ver nada. Quando clareou, o
prisioneiro ainda estava lá, olhando com nojo para a frente de seu
casaco.
— Os casacos devem ser baratos no lugar de onde você vem —
disse. — Me custou trinta dólares, e olhe para ele agora. Seis
buracos na frente já são ruins, mas quatro das balas atravessaram,
e deve ter ficado em um belo estado na parte de trás.
O revólver do delegado caiu da mão e ele jogou os braços para
as laterais. Um homem derrotado.
— Talvez alguns de vocês, senhores, possam me dizer o que
isso significa — falou, olhando impotente para o comitê.
Peter Stulpnagel deu um passo à frente.
— Vou lhe contar tudo — respondeu.
— Você parece ser a única pessoa que sabe de alguma coisa.
— EU SOU a única pessoa que sabe de alguma coisa. Eu devia
ter avisado esses senhores. Mas, como não quiseram me ouvir,
permiti que aprendessem pela experiência. O que vocês fizeram
com sua eletricidade foi aumentar a vitalidade deste homem até que
ele pudesse desafiar a morte por séculos.
— Séculos!
— Sim, vai levar centenas de anos para exaurir a imensa energia
nervosa com a qual vocês o encharcaram. Eletricidade é vida, e
vocês o carregaram ao máximo. Talvez, em cinquenta anos,
consigam executá-lo, mas não estou otimista sobre isso.
— Por Deus! O que devo fazer com ele? — gritou o infeliz
delegado.
Peter Stulpnagel encolheu os ombros.
— Parece-me que não importa muito o que você faça com ele
agora — disse.
— Talvez pudéssemos drenar sua eletricidade novamente.
Suponha que o penduremos pelos calcanhares?
— Não, não, está fora de questão.
—Bem, ele não cometerá mais delitos em Los Amigos, de
qualquer maneira — disse o delegado, com decisão. — Irá para a
nova prisão. A prisão vai esgotá-lo.
— Pelo contrário — observou Peter Stulpnagel —, acho muito
mais provável que ele acabe com a prisão.
Foi um completo fiasco, e durante anos não conversamos mais
sobre isso, mas não é segredo agora e achei que você gostaria de
anotar os fatos em seu livro de registro de casos.
ARTHUR CONAN DOYLE

Arthur Conan Doyle (1859-1930) foi um escritor britânico mais


conhecido por sua ficção policial com o personagem Sherlock
Holmes. Em 1887, publicou Um estudo em vermelho, o primeiro de
quatro romances sobre Holmes e o Dr. Watson. Além disso,
escreveu mais de cinquenta contos com o famoso detetive. As
histórias de Sherlock Holmes são geralmente consideradas marcos
no campo da ficção policial. Doyle também escreveu muitas
histórias de terror e foi um mestre brilhante do gênero.
O SELO FICÇÕES PULP!

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Na tragicômica “El cantante del Diablo”, de Nícollas Lopes, um
zombeteiro violeiro, em plena inquisição, vai de taberna em taberna
apresentando seu repertório em troca de dinheiro e diversão.
Tamanha heresia, entretanto, não agrada ao Santo Ofício.

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trama repleta de originalidade e bom humor. Quando uma criatura
misteriosa (um chupa-cabra?) começa a atacar os bezerros de dois
boiadeiros em Embu da Peste, o único refúgio possível é o...
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R.R. Oliver, por sua vez, demonstra todo seu poder de concisão em
uma narrativa curta e certeira. Um casal, uma noite, um filme de
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A donzela vampira e outros contos

A série "Clássicos & Contemporâneos" traz em sua edição de n°


3 as seguintes histórias vampirescas:

“A donzela vampira”, de Hume Nisbet: rapaz decide se afastar da


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em cabana isolada, onde se apaixona pela estranha e enferma filha
da senhoria.

“O desaparecimento da nau de Vasco de Ataíde”, de Fabiana


Souza: durante a expedição da frota de Pedro Álvares Cabral que
descobriria o Brasil, a nau Capitânia leva em seu porão
passageiros... inesperados.

“Noite de caça”, de R.R. Oliver: Um vampiro português chegou às


terras tupiniquins, infiltrado na famosa expedição de Cabral. Quais
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“Bela Lugosi como Drácula”, de Diego Quadros: a obsessão do
ator Bela Lugosi em achar que é o próprio vampiro na filmagem de
“Drácula”, da Universal Pictures, começa a gerar desconforto entre
colegas de elenco e o resto da equipe.
Os triunfos de um taxidermista e outros contos de vocações
peculiares

Esta é uma pequena coletânea de narrativas curtas sobre


personagens com vocações peculiares, que exercem ofícios
inusitados, curiosos, singulares.

CONTOS PRESENTES NA OBRA:

– "Os triunfos de um taxidermista", de H.G. Wells;


– "Um mero escritor de propagandas", de Thomas P. Boettcher;
– "O médico de auras", de Fabiana Souza;
– "A sorte está lançada", de Nícollas Lopes;
– "A aposentadoria de Amábile", de Carol Trevelin;
– "A fonte de renda do casal Andrade", de Lucas Trindade;
– "O cheirador de automóveis", de Nill C. N. de Azevedo;
– "O preceptor de bonecos", de Diego Quadros.

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