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Curitiba
2008
2
Dedicatória
Para meu futuro esposo:
“Day by day as I become more fragile, I pray
you be kind and pave the star path home at the
same time as my wife´s [husband´s] journey
ends.”
Lee Maracle
3
Agradecimentos
Agradeço a meu Pai amado, que tem me
presenteado com os desejos do meu coração.
Agradeço a meus queridos professores, que me
ajudam a ultrapassar os obstáculos e fazer o
impossível.
4
O que faço com minha cara de índia?
E meus cabelos?
E minhas rugas?
E meus segredos?
Eliane Potiguara
5
SUMÁRIO
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES................................................................................................... 7
RESUMO .................................................................................................................................... 8
1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 9
2. BIOGRAFIAS .................................................................................................................. 12
2.1 DANIEL MUNDURUKU ................................................................................................... 12
2.2 LEE MARACLE.................................................................................................................. 14
3. FORTUNA CRÍTICA ..................................................................................................... 17
3.1 SOBRE DANIEL MUNDURUKU: .................................................................................... 17
3.2 SOBRE LEE MARACLE:................................................................................................... 17
4. A LITERATURA INDÍGENA BRASILEIRA.............................................................. 19
5. A LITERATURA INDÍGENA NORTE AMERICANA .............................................. 21
6. LITERATURA INFANTO-JUVENIL E A CULTURA INDÍGENA......................... 23
7. A TRADIÇÃO ORAL NA LITERATURA INDÍGENA ............................................. 25
8. HISTÓRIAS DE ÍNDIO................................................................................................... 27
8.1 RESUMO............................................................................................................................. 27
8.2 CONSTRUÇÃO .................................................................................................................. 27
8.3 HISTÓRIAS DE ÍNDIO COMO REPRESENTAÇÃO DA CULTURA INDÍGENA
BRASILEIRA ............................................................................................................................ 29
9. WILL’S GARDEN ............................................................................................................ 30
9.1 RESUMO............................................................................................................................. 30
9.2 CONSTRUÇÃO .................................................................................................................. 30
10. HISTÓRIAS DE ÍNDIO E WILL’S GARDEN – HISTÓRIAS DE INICIAÇÃO
AFIRMANDO A IDENTIDADE INDÍGENA ...................................................................... 32
11. CONCLUSÃO ................................................................................................................. 39
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................... 41
ANEXOS................................................................................................................................... 44
6
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES
7
RESUMO
ABSTRACT
8
1. INTRODUÇÃO
It´s all fiction honey, but it makes the same ole, same ole
interesting. You stop telling yourself stories you can´t live
anymore. You don´t learn to story up the mundane, and
love that, you can never be happy.
Lee Maracle
Para sabermos quem somos olhamos para nosso passado, nosso presente, e até
mesmo para nossos planos de futuro. Analisamos nossas características, comparamo-nos
com nossos semelhantes, ponderamos nossas tradições, e então concluimos, mesmo que
por um momento apenas antes de novas dúvidas e possíveis mudanças, quem somos.
A literatura em todo o mundo faz este processo constantemente. Cada nova obra
lança para o mundo um novo olhar, um novo posicionamento, uma nova história que faz
parte da intrincada teia de pensamentos que nos faz humanos.
Desde nossas primeiras histórias buscamos definir e perpetuar aquilo que somos
para novas gerações. Contamos histórias que afirmam tradições e culturas, que ensinam
sobre o passado e preparam para o futuro, primeiro oralmente, até que a escrita viesse
tornar possível a fixação destas histórias em papel.
Diversos povos tiveram sua chance de contar suas histórias, cada um a seu tempo.
Primeiramente, apenas os povos “brancos”, europeus, tinham a vantagem da escrita e
eternizaram seu ponto de vista em livros. Mas o interesse muda, e novas vozes têm a
oportunidade de compartilhar sua cultura com o mundo literário. É a voz das minorias,
dos povos oprimidos, dos conquistados, e não dos conquistadores, que tem obtido
momentum na literatura, gradativamente, desde meados dos anos 1970.
Em várias partes do globo, a literatura dos povos nativos tem conseguido
publicação e atraído o olhar de críticos literários e demais profissionais das artes sociais.
Embora em estágios diferentes, este movimento tem aparecido em praticamente toda ex-
colônia, abrindo ao mundo um novo leque de culturas nunca antes representadas em
obras de ficção sob o ponto de vista do nativo.
O povo brasileiro é formado pela mistura de culturas européias, africanas e a
daqueles indivíduos que primeiro ocuparam nosso território: os indígenas. Nossa cultura
foi sendo desenvolvida e fixada a cada período em uma forma diferente de literatura.
9
Nossas histórias foram contadas, criadas e re-criadas, mostrando a criatividade, as
tradições, movimentos, inovações. A arte literária serviu para afirmar opiniões, informar,
criar novos caminhos sociais, mas, como acontece em praticamente toda ex-colônia,
deixou de fora a versão dos primeiros povos. Nossos índios foram retratados de maneira
estereotipada e inferior, justificando sua exploração e tentativas de aniquilação, mas com
o crescente interesse pela defesa da ecologia, ou até o gosto pelo exótico, há uma
retomada pelos assuntos indígenas, alcançando um tempo em que a voz destes povos
consegue espaço para disponibilizar sua cultura para a população em geral.
Ao dominar a escrita da língua do colonizador, os índios obtêm acesso a uma
nova ferramenta para afirmação de sua identidade, podendo mostrar ao mundo sua versão
da História e sua verdadeira cultura. Assim como ASHCROFT, GRIFFITHS e TIFFIN
declaram, “A Literatura fornece uma das maneiras mais importantes em que (estas) novas
percepções são expressas e é na escrita, ou através de outras artes como pintura,
escultura, música e dança que as realidades do dia-a-dia experimentadas pelos povos
colonizados têm sido mais poderosamente codificadas e se tornado tão profundamente
influenciadoras”1 (ASHCROFT, GRIFFITHS E TIFFIN, 1989:1). A teoria literária abre
suas portas para apreciar a produção desses novos escritores, criando as noções da
literatura pós-colonial, um movimento de resistência à cultura do colonizador.
O processo de retomada cultural toma espaço em praticamente toda ex-colônia e
se encontra em diversos estágios. No Brasil não é diferente. Homens e mulheres, dentro e
fora das reservas, vêm produzindo uma literatura que desafia os conceitos da mainstream
literária. Com uma população de cerca de 460 mil índios de 225 povos2, vivendo em
territórios e reservas e ainda outros tantos descendentes e mestiços vivendo nas cidades, a
população indígena no Brasil produz escritores em diversas áreas, buscando afirmar sua
identidade através de ensaios, romances, poemas e contos.
Daniel Munduruku, brasileiro, e Lee Maracle, canadense, são representantes deste
novo grupo de escritores que, com seu estilo próprio, vão buscar nas tradições e histórias
de suas tribos o pano de fundo para mostrar ao mundo a realidade de seu povo. Nesta
1
Todas as traduções sao minhas. Cf. original: “Literature offers one of the most important ways in which
these new perceptions are expressed and it is in their writing, and through other arts such as painting,
sculpture, music and dance that the day-to-day realities experienced by the colonized peoples have been
most powerfully encoded and so profoundly influential” (ASHCROFT, GRIFFITHS E TIFFINE, 1989:1).
2
Fonte: Funai – Disponivel em:< http://www.funai.gov.br/> - Acesso em: 10/03/2008.
10
pesquisa, duas histórias de iniciação dos autores citados são colocadas lado a lado e
observadas com base nos textos de Homi K. Bhabba, O Local da Cultura (UFMG, 2003),
de Louis Owens, Mixedblood Messages (Oklahoma Press, 1998) e Other Destinies:
Understanding the American Indian Novel (Oklahoma Press, 1992) e de Edward Said,
Cultura e Imperialismo (Companhia das Letras, 1995), entre outros.
Um trabalho de continuidade
3
ALMEIDA, S. A Identidade Nativa em Daughters are Forever, da autora canadense Lee Maracle.
Curitiba, 2007. 57f. Monografia (Bacharelado em Letras: Estudos Literários) – Setor de Ciências Humanas,
Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.
11
2. BIOGRAFIAS
12
Devido à experiência que teve ensinando crianças na rede estadual e particular de
ensino, e ainda na Pastoral do Menor, em São Paulo, Daniel começou a escrever para
alcançar um público a quem ele acredita poder ensinar uma outra maneira de ver o índio.
“Trabalho essencialmente com a literatura infanto-juvenil porque é importante que as
crianças aprendam desde cedo a cultura e a sabedoria dos povos indígenas para assimilar
valores vitais para a nossa continuidade enquanto povo”, afirma Daniel (Munduruku,
2004).
Diretor presidente do Inbrapi (Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade
Intelectual), Comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República e
Pesquisador do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico), Daniel Munduruku recebeu alguns prêmio por seu trabalho como escritor.
Dentre eles, na categoria Reconto da Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil, em
2001, por As Serpentes que Roubaram a Noite e Outros Mitos e o prêmio para Obras
Voltadas a Preservação da Cultura Brasileira, do CNPq, em 2003. Também recebeu o
prêmio Jabuti por Coisas de Índio – Versão Infantil, em 2004, e ainda Meu Avô
Apolinário foi escolhido pela Unesco e recebeu menção honrosa em Literatura para
Crianças e Jovens na Questão da Tolerância.
Daniel exerce seu papel de “embaixador” munduruku entre os brancos com
dedicação. Mais de 30 de seus livros foram publicados4 e vários volumes foram
traduzidos para o inglês. Além disso, a participação do autor em eventos literários,
workshops e palestras são apenas parte da acessibilidade que ele faz questão de manter
para que todos tenham acesso a cultura de seu povo. Daniel dá muitas entrevistas e
mantém um website e blog onde publica textos de opinião própria e/ou de interesse
indígena5, e ainda tem participações como ator em quatro filmes (incluindo Tainá 2) e no
programa TV Xuxa6, na Rede Globo.
4
A lista completa dos livros publicados pelo autor encontra-se nos Anexos.
5
Disponível em: < http://www.danielmunduruku.com.br>
Acesso em: 29/02/08
6
Disponível em: <http://tvxuxa.globo.com/Tvxuxa/pordentrodoassunto/0,,AA1663487-8495,00.html>
Acesso em: 15/02/08
13
2.2 LEE MARACLE
14
Além de ter exercido a função de Diretora de Tradições Culturais no The Centre
for Indigenous Theater, Maracle lecionou na Western Washington University, University
of Waterloo e University of Guelf, atualmente mantendo a cadeira na University of
Toronto.
É de sua vivência entre dois mundos que Maracle obtém o estimulo e bagagem
para suas histórias. Mulher pós-moderna, Maracle vive a duplicidade de dona-de-casa e
profissional. Mas para ela, a carga vem ainda com a ambigüidade de estilos de vida muito
diferentes: o de seus ancestrais e o da sociedade de valores europeus a seu redor.
Em entrevista a Rachelle Cooper, da University of Guelf, Maracle declara: "Eu me
tornei estrangeira em meu próprio contexto e ainda mais estrangeira no contexto
canadense”7. Para ela, escrever foi uma saída para criar uma nova realidade a partir de
sua experiência, adaptando as histórias de seus ancestrais.
Este deslocamento teve inicio quando a pequena Lee Maracle foi enviada para
estudar em uma escola pública, junto com outros canadenses, e não nas escolas onde seus
primos e parentes de origem indígena estavam. Depois de sair da escola para juntar-se ao
movimento hippie e batalhar em movimentos políticos, Maracle retorna aos estudos na
Simon Fraser University. Em 1968, Maracle se casa com um dos fundadores do Red
Power Movement em Vancouver (PETRONE, 1990:150).
Através de seu trabalho como professora, sua obra literária e sua participação em
muitos eventos como palestrante, Lee Maracle atua contra as conseqüências da invasão
européia no continente americano. Sua obra literária procura alertar seu próprio povo
contra o racismo, a intolerância cultural, a pobreza e a negligência em que vivem. Como
ela mesma afirma: "Nós fomos forçados a buscar dentro de nós para encontrar palavras
que irão ensinar nossos filhos não a aprovar os europeus como são, mas a entender como
eles se tornaram o que são e como eles irão mudar8" (MARACLE, 1988:77). Assim, a
autora busca, através de seu trabalho, um despertar que poderá provocar um convívio
mais prazeroso.
7
Cf. original: “I became foreign in my own context and even more foreign in the Canadian context"
(MARACLE, L. Storyteller Lives Between Fiction and Myth. University of Guelf, Vol. 51, N.1. 17 de
Janeiro de 2007. Entrevista).
8
Cf. original: “We have been forced to reach down inside ourselves to find the words that will teach our
children not to approve of Europeans as they are, but to understand how they came to be and how they will
come to change8" (MARACLE, 1988:77).
15
Ao perceber as injustiças e o preconceito ao redor de suas próprias filhas, Maracle
percebeu que precisava se levantar e fazer seu papel para impedir que seu povo
continuasse "paralisado". "O resultado de sermos colonizados é a internalização da
necessidade de nos mantermos invisíveis"9 (MARACLE, 1988:8). Contra a invisibilidade
é que Maracle ergue sua voz: "Até que todos nós sejamos livres, os poucos que pensam
que são permanecem manchados com a escravatura"10 (1988:13). Com sábias e profundas
palavras Maracle obtém sucesso em provocar a inquietação e sede de mudanças dentro de
nós.
9
Cf. original: “The result of being colonized is the internalization of the need to remain invisible”.
(MARACLE 1988:8).
10
Cf. original: “Until all of us are free, the few who think they are remain tainted with enslavement".
(MARACLE 1988:13)
16
3. FORTUNA CRÍTICA
17
não deixa de incluir as publicações de Maracle em seu livro Native Literature in Canada
(1990).
Trabalhos sobre a autora têm surgido no Brasil no meio acadêmico,
principalmente estudando a figura do trickster e o feminismo em sua obra. A participação
de Maracle no VII Congresso Internacional da ABECAN (Associação Brasileira de
Estudos Canadenses), no Rio Grande do Sul em 2005, proporcionou o interesse em sua
obra e atuação social dentre os estudantes e docentes daquela região.
Algumas pesquisas estão em andamento e dissertações de mestrado e monografias
foram produzidas com foco na obra de Maracle, como o trabalho de Maira Lacerda (Life
and Writing in Works by Lee Maracle: A Native Canadian Woman's Search for
Development – Dissertação, UERJ, 2007) e de Rodrigo Cunha (Anti-colonialist tricks:
storytelling figures of resistance in Lee Maracle, Thomas King and Tomson Highway),
destacando-se a produção de Prof. Dra. Liane SCHNEIDER, da Universidade da Paraíba,
que já produziu diversos textos a respeito de Maracle. Um de seus trabalhos compara as
posições descentradas de Lee Maracle e Eliane Potiguara, autora indígena brasileira, “(...)
duas mulheres que enfrentaram as dificuldades relacionadas às conseqüências físicas ou
geográficas do deslocamento dos grupos indígenas, que viram na literatura uma
possibilidade de rever seus problemas de identidade étnica e de pertencimento nacional”
(SCHNEIDER, 2005:2). Schneider aponta elementos comuns nas obras das autoras
supracitadas, assim como a liderança social e política que ambas assumem. Além destas,
contamos com a monografia “A Identidade Nativa em Daughters are Forever, da
Canadense Lee Maracle” produzida por mim no segundo semestre de 2007, apontando as
características e, principalmente, o uso da ferramenta literária como afirmação da
identidade nativa no romance mencionado.
18
4. A LITERATURA INDÍGENA BRASILEIRA
A literatura de produção nativa no Brasil teve um início bem mais recente que na
América do Norte. Já que o domínio da escrita em Português e o interesse por parte do
mundo literário brasileiro ocorreram somente em meados da década de 1980, até então o
tema indianista pode somente ser encontrado na obra de escritores considerados
“brancos”, na chamada Literatura Indianista, ou Romances Indianistas, do século XIX,
que representava o índio como herói nacional, em um retrato estereotipado e irreal, como
O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874), de José de Alencar, além dos
relatos e textos jesuíticos, como a obra de Padre José de Anchieta.
É somente na década de 1980 que começamos a ver as primeiras produções de
autoria nativa no Brasil. Dentre estes novos autores encontramos Olivio Jekupe, Eliane
Potiguara, Graca Graúna, Daniel Munduruku, Luiz Karai, Giselda Jera e Kerexu Mirim,
entre outros.
Esta nova literatura busca expressar a verdadeira cultura dos povos nativos do
Brasil e luta por espaço e reconhecimento; por ser uma luta que está apenas começando,
um histórico formal e mais detalhado dessa produção está ainda por ser agregado.
Informações sobre a produção nativa brasileira ficam por conta dos próprios autores, que
buscam alcançar a comunidade através de websites e blogs, e tomando parte em todo
evento literário a que têm acesso.
Segundo o próprio Daniel Munduruku, existem dois grupos de escritores
indígenas no Brasil: “(...) os que estão criando uma literatura de ficção baseada na sua
experiência de aldeia e os que são memorialistas no sentido de que estão escrevendo
coisas a partir da memória tradicional de sua gente” (MUNDURUKU, s/d). Ainda
segundo ele, não há autores suficientes para suprir a demanda atual por textos de autoria
indígena, mostrando como o interesse passou de escasso à extremo nos últimos anos.
Algumas coleções de autoria indígena têm obtido publicação, como a “Memórias
Ancestrais”, formada por 12 livros, da Editora Fundação Peirópolis11. Além disso, a
Editora Palavra de Índio surge com o objetivo de propagar a cultura indígena trabalhando
11
Editora fundada em 1994, em São Paulo, capital, com o intuito de divulgar o programa de Educação em
Valores Humanos. Suas publicações têm como tema ética, cidadania, pluralidade cultural, e ecologia.
19
exclusivamente com autores de origem nativa, tendo a coordenação do próprio Daniel
Munduruku.
20
5. A LITERATURA INDÍGENA NORTE AMERICANA
12
Cf. original: “(...) one of the most demanding, challenging, and brilliant of American authors, [and]
continues to be admired by scholars and celebrated abroad (...)” (OWENS, 1998:68).
21
Alguns autores nativos canadenses de destaque, além de Maracle, são: Thomas
King, Cherokee canadense, autor de Medicine River (1990), Green Grass, Running Water
(1993), e The Truth about Stories (2003); Tomson Highway, de origem Cree, autor de
Kiss of the Fur Queen (1998); e Daniel David Moses, de origem Delaware, autor de The
Indian Medicine Shows (1996) e Pursued by a Bear: Talks, Monologues and Tales
(2005).
Até a finalização desta pesquisa, não foram encontradas publicações de origem
nativa canadense no Brasil e a obtenção de exemplares somente se dá através da
importação dos mesmos. Ironicamente, é a produção do “falso” índio que podemos
encontrar, até mesmo em tradução, no Brasil. O Aprendizado de Pequena Árvore [The
Education of Little Tree]13, de Forrest Carter, teve uma publicação de sucesso em todo o
mundo, apesar da controvérsia sobre a origem de seu autor. Carter afirmou ter origem
Cherokee e que este livro se tratava de suas memórias, porém esta informação é
contestada por críticos, estudiosos e membros da tribo Cherokee, já que o retrato que o
autor faz dos costumes, tradições e do índio desta tribo são errôneos e estereotipados. O
sucesso deste livro nos leva a perceber um interesse real dos leitores pela cultura
indígena, seja sua fonte autenticamente nativa ou não.
13
CARTER, F. O Aprendizado de Pequena Árvore. Tradução de Pinheiro Lemos. Rio de Janeiro: Record,
1976.
22
6. LITERATURA INFANTO-JUVENIL E A CULTURA INDÍGENA
Gosto de pensar nas crianças como pessoas que estão construindo seus sonhos. Adultos, não. Meu
desejo é colocar um dos meus sonhos dentro dos sonhos delas e assim possam [sic] transformar o
mundo em que vivem num jardim repleto de flores diferentes. Queria que as crianças entendessem
que o que torna belo o jardim é a diversidade das flores. E que as flores não brigam entre si para
provar quem é a mais bela. Há espaço para todas elas manifestarem a própria beleza.
(MUNDURUKU, 2007)
Ainda no Brasil, a escritora potiguar Graça Graúna (Maria das Graças Ferreira)
está em processo de preparação para publicação de sua tese “O imaginário dos Povos
Indígenas na Literatura Infantil”, infelizmente ainda não disponível até o final da
elaboração desta pesquisa.
Na América do Norte, as publicações para o público infantil é também ampla,
como se pode esperar. Porém, a representação do nativo nestas obras é ainda hoje
problemática, já que continua a afirmar os estereótipos e passar às crianças uma imagem
equívoca da população indígena. Para combater este problema, o próprio povo nativo tem
14
Disponível em: <http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno11-10.html>. Acesso em: 08/02/08
23
se levantado não só para produzir obras que tenham o índio real no centro de suas
histórias, como Lee Maracle, por exemplo, mas também para apontar e criticar o uso da
imagem errônea do índio na literatura infantil contemporânea. É o caso de Debbie Reese,
professora envolvida na tribo Nambe Pueblo do Novo México. Reese dedica um
website15 para estudar a imagem do índio nos livros infantis, e outro centrado em
discussões sobre a questão indígena na literatura infantil, no currículo escolar e na cultura
popular. Lendo os textos da Prof. Reese podemos perceber a grande distância que ainda
existe entre o índio real e o retratado na literatura infanto-juvenil contemporânea,
mostrando como esta busca por um reconhecimento do índio original ainda está por vir,
apesar de todos os esforços.
15
Disponível em: <http://americanindiansinchildrensliterature.blogspot.com/>. Acesso em: 06/05/08.
24
7. A TRADIÇÃO ORAL NA LITERATURA INDÍGENA
16
Cf. original: “the meaning of a work (or of a text) cannot be created by the work alone…” (BARTHES,
Critical Essays, xi – in OWENS 1998: 91)
17
Cf. original: “Conversive communication affects real transformational growth for all participants
through the synergy of interactive and co-creative relationships” (RAMIREZ, 1999: 156).
25
Citado por Penny Petrone (1990:26), Paul Le Jeune, missionário jesuíta no século
XVII, declarara que não há outro lugar no mundo onde a oratória seja mais importante
que no Canadá, já que a escolha do Cacique de cada tribo era baseada em sua habilidade
oral e o nível de obediência que recebia era proporcional a sua eloqüência. Daí a
importância que existe na continuidade da aplicação de elementos da oralidade nos textos
de autoria canadense, perpetuando o antigo valor que a habilidade de discurso recebia nas
comunidades indígenas.
Esta importância é herança rica na construção das narrativas nativas
contemporâneas. A valorização da sonoridade e dialogismo do texto fazem com que o
leitor, seja ele nativo ou não-nativo, participe, em maior ou menor grau, da experiência
tradicional do contar histórias, já que este ato está carregado de poder transformativo.
“Para apreciar a literatura nativa por completo o leitor deve reconhecer a diferença entre
literatura oral e escrita. A literatura oral é uma atuação especial; é única. É um momento
de uma tradição. Mesmo quando é escrita e se torna ‘fixa’, ainda é oral”18, conclui Agnes
GRANT (RAMIREZ, 1999:3), por isso devemos levar em consideração a oralidade do
texto ao lermos toda e qualquer obra de autoria nativa.
Em Will’s Garden e Histórias de Índio, o poder transformativo da narrativa está
estritamente ligado ao ritual de iniciação pelo qual ambos os jovens centrais dos textos
precisam passar. O ritual de iniciação é ato comum nas mais diferentes comunidades no
mundo, indígenas ou não, e marcam um ponto de passagem da infância para a
maturidade. Segundo Mircea ELIADE, o individuo “torna-se outro” (2004:14), passando
por um afastamento do jovem de sua comunidade e um renascimento em seu retorno.
Esta transformação das personagens fomenta um crescimento no leitor, nativo ou
não-nativo, em paralelo com a iniciação das personagens centrais, Will e Kaxi,
independente do grau de oralidade ou discursividade presente na obra de Maracle e
Munduruku.
18
Cf. original: “In order to fully appreciate Native literature, the reader must recognize the difference
between oral and written literature. Oral literature is a special performance; it is unique. It is one moment
of a tradition. Even when it is written down and becomes ‘fixed’, it is still oral”. (Agnes GRANT, Native
Literature, p. 61, in RAMIREZ 1999:3)
26
8. HISTÓRIAS DE ÍNDIO
8.1 RESUMO
Histórias de Índio (São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1996) é formado por
três partes. A primeira apresenta o conto “O menino que não sabia sonhar”, história do
menino Kaxi, escolhido para ser futuro pajé de sua aldeia. Kaxi é preparado pelo pajé
Karu Bempo, aprendendo os rituais necessários para a sobrevivência da aldeia, além de
ser educado como as outras crianças, pescando, caçando, fazendo artesanato, e acima de
tudo, respeitando as tradições e os mais velhos. Apesar de ser especial, Kaxi passa pelos
mesmos rituais que as outras crianças de sua comunidade, dentre eles, a iniciação à vida
adulta.
A segunda parte do livro apresenta crônicas e depoimentos do autor,
compartilhando as experiências que teve ao chegar a São Paulo, e a última parte
apresenta informações sobre povos indígenas como língua, hábitos, e curiosidades, além
de um glossário dos termos munduruku usados no conto.
8.2 CONSTRUÇÃO
Daniel Munduruku apresenta seu foco de forma direta, utilizando três partes
distintas para compartilhar com o leitor aquilo que é sua “missão”: trazer ao homem
“branco” a verdade sobre a cultura indígena, e em especial, munduruku.
Dentre os pontos de destaque deste livro, a linguagem se sobressae. Esta é
direcionada ao público infantil, obviamente, e se destaca pelo uso da língua munduruku
incluída no texto através da apresentação de vocabulário indígena ao decorrer da
narrativa. Assim, o autor utiliza do idioma do colonizador para alcançar o público não-
indígena, mas também introduz a este leitor mais do que somente a história que conta –
que é claramente embutida da cultura indígena – mas apresenta, também, novo
27
vocabulário para assimilação do leitor, como podemos ver nos trechos abaixo. O
significado de cada termo é listado ao final do livro, no Glossário19.
De repente, estancou, pois percebera um estranho kabido soprando acima de sua cabeça.
(MUNDURUKU, 12)
Os pariwat vêm até nós com as promessas na ponta da língua. Prometem manter nossa tradição e
nossos costumes, dizendo que são nossos oboré, que gostam dos índios, que somos os mais
importantes habitantes desta terra e os verdadeiros brasileiros, mas o que fazem é sempre o
contrário do que falam: destróem nosso povo e nossa cultura. (MUNDURUKU, 14)
- I´it, a gente fica aqui porque a muba´at não permite que a gente saia para pigãgãm ou caçar, ou
que sua mãe vá à roça tirar a musukta para fazer farinha. (MUNDURUKU, 15)
Conto
Crônicas e Depoimentos
Por vezes irônico (como em sua reação em sala de aula sobre o que os índios
fazem com os mosquitos: “O que fazer com os Mosquitos?”, pág. 40), outras triste,
(como o relato sobre a discussão com um grupo religioso nas terras Guarani, em
Parelheiros, SP, “Índio Nietzschiano”, pág. 37), ou simplesmente cômico, (como em
“Conversa com Crianças”, pág. 36), Daniel Munduruku compartilha certos eventos
ocorridos em sua chegada a São Paulo. Apresentando fatos sem comentá-los, o autor
deixa para seu leitor a tarefa de analisar e concluir sobre as diversas ocasiões em que
sofreu discriminação ou teve que lutar por reconhecimento e compreensão.
19
O Glossário foi inserido nos Anexos deste trabalho.
28
Os Povos Indígenas no Brasil
Histórias de Índio é uma obra de diversas formas desbravadora. Este livro vem
abrir um novo caminho para diversos outros que o seguem. Ele desbrava um campo novo,
em que o próprio nativo tem a oportunidade de erguer sua voz e combater a imagem
estereotipada que a população brasileira em geral tem do índio de nosso país. Seu autor
consegue trazer, de forma simples e didática, informações que vêm direto de dentro da
aldeia. Daniel Munduruku é um dos primeiros a iniciar esta luta para a aceitação do índio
real brasileiro.
29
9. WILL’S GARDEN
Another memory, another garden.
Lee Maracle
9.1 RESUMO
Will é um garoto Salish de 15 anos que vive com sua família em uma reserva
indígena no Canadá. O livro conta a preparação de Will para sua cerimônia de entrada na
vida adulta, detalhando os costumes e tradições de sua comunidade. Neste período, o
menino passa por verdadeiras provas de amizade e maturidade, tentando conquistar o
respeito de seus colegas de escola – brancos e mestiços – e aprendendo sobre o passado
de sua família.
9.2 CONSTRUÇÃO
30
A caracterização dos valores indígenas está presente em toda a narrativa através
da apresentação dos rituais e atitudes do protagonista, que busca preservar acima de tudo
sua honestidade e lealdade, preservando as tradições de sua tribo.
Ao contrário de Daniel Munduruku, Lee Maracle mantém o uso do idioma do
colonizador em todo o livro.
31
10. HISTÓRIAS DE ÍNDIO E WILL’S GARDEN – HISTÓRIAS DE
INICIAÇÃO AFIRMANDO A IDENTIDADE INDÍGENA
Lee Maracle e Daniel Munduruku são autores que vêem em sua obra a
oportunidade de colocar o índio como tema central, de mostrar ao mundo o índio como
realmente é, e não como observado pelo “outro”, o colonizador. Este é um dos aspectos
centrais das obras de autoria indígena, e um ponto de inovação, já que o mundo literário
sempre conheceu o índio através do olhar de seu opressor. Apesar dos diferentes
backgrounds dos autores, a consciência universal refletida em suas obras é comum a
autores indígenas de diferentes origens: a busca pela definição de identidade (OWENS,
1992:20). O próprio Daniel Munduruku confirma:
Se por muitos anos o indígena era apenas personagem dos contos, histórias e ficções do não-
indígena, de um tempo para cá ele passou a ser protagonista da história, de sua própria história.
Ele começou a criar e a oferecer para os pariwat20 seu próprio ponto de vista sobre a realidade em
que vive. (RICHE, 2005)
20
Em munduruku, pariwat significa ‘homem branco’, ‘não-índio’ (MUNDURUKU, 1996:65).
21
Cf. original: “…the First World is now having to come to terms with the fact that it is no longer always
positioned in the first person with regard to the Second and Third Worlds” (Robert YOUNG, White
Mythologies, 1990 in OWENS, 1998:4).
22
Cf. original: “More and more we will be required to read across lines of cultural identities around us
and within us”. (OWENS, 1998:11)
32
é inédito já que, quanto mais elaborada uma obra literária, mais ela dialoga com outras
obras e requer conhecimento prévio sobre diversos assuntos.
Apesar do ponto comum de posicionar o índio no centro do romance, Daniel
Munduruku e Lee Maracle tem escrito para públicos diferentes. Enquanto Lee Maracle
escreve para seu próprio povo, dentro e fora das reservas, Daniel Munduruku escreve
para o “não-índio”, exercendo sua função de “embaixador” do povo munduruku na
cidade dominada pelo colonizador. Em I am Woman (1988), Maracle declara no primeiro
capítulo:
Embora eu não guarde rancor em relação aos Europeus nesta terra, eu não pretendi escrever para
eles. Há muito tempo eu não tenho uma conversa íntima com meu próprio povo e outras pessoas
que não se ofendem por nossa verdade particular. É inevitável que europeus leiam meu trabalho.
Caso você sinta que não falo para você, não é porque eu esteja sendo rude – você apenas não é
meu foco no momento23. (MARACLE, 1988:10)
As pessoas evitam o preconceito com o conhecimento. Todos excluem menos quando convivem
com a diferença. Em tudo que faço ressalto o fato de os povos indígenas serem muito diferentes da
maioria da população brasileira, mas que essa diferença precisa ser aprendida para ser respeitada
(MUNDURUKU, 2004).
Com base nestes princípios, os dois autores divergem no uso da linguagem nas
duas narrativas em questão. Enquanto Lee Maracle apropria-se totalmente da linguagem
do colonizador, escrevendo em inglês, Daniel Munduruku insere em seu texto parte do
vocabulário munduruku, incluindo um glossário ao final do livro para esclarecimento dos
respectivos significados. Estas duas abordagens refletem as posições diferentes dos dois
autores. Claramente, ambos dominam o idioma do colonizador e fazem uso dele,
subvertendo-o para seus propósitos, como BAKHTIN aponta: “[o] processo de formação
23
Cf. original: “Though I hold no animosity toward the Europeans in this land, I did not intend to write for
them. My voice is for those who need to hear some truth. It has been a long time since I had an intimate
discussion with my own people and those who are not offended by our private truth. It is inevitable that
Europeans will read my work. If you do not find yourself spoken to, it is not because I intend rudeness –
you just don’t concern me now”. (MARACLE, 1988:10)
33
ideológica do ser humano é o processo de assimilação do discurso de outros”24
(1981:333). Ao subverter o discurso, o nativo demonstra sua própria ideologia, rejeitando
aquela imposta pelo colonizador. No caso de Daniel Munduruku, a tentativa de introduzir
um novo vocabulário é parte integrante do interesse do autor em formar uma ideologia de
assimilação do passado indígena pelo seu leitor “não-índio”.
Ao utilizar das ferramentas mencionadas, a posição de ambos os autores encontra-
se em um mesmo ponto: a afirmação da identidade nativa. Fixando e propagando sua
cultura pelo uso da literatura, autores indígenas moldam sua identidade perante o “outro”
e perante sua própria comunidade. Como SAID afirmara, “[a] cultura (...) é uma fonte de
identidade”, sendo por isto tão importante a aceitação destas obras literárias que carregam
os valores e tradições dos povos nativos. Explicando a função didática da literatura nativa
tradicional, Petrone (1990:04) aponta o uso das histórias para reafirmação e
fortalecimento de identidade, transmitindo conhecimento cultural específico e ajudando a
continuidade das tradições nativas.
Daniel Munduruku, em Histórias de Índio, coloca no menino Kaxi a
responsabilidade da continuidade de sua aldeia, carregando adiante as tradições e
costumes de seu povo. Kaxi é escolhido para ser pajé e isto implica a preparação do
menino para as responsabilidades futuras. O trecho a seguir ilustra isto:
O menino seria o herdeiro e o guardião da cultura que atravessou os séculos, passada de geração a
geração pela memória dos antepassados, que contavam as histórias da criação do mundo; por meio
dele os antepassados falariam ao povo e este obedeceria ao comando da sabedoria do guardião.
(MUNDURUKU, 1996:12)
O menino pode ser visto como um símbolo do escritor nativo, que tem a função
de conservar a memória e passá-la para as novas gerações através desta nova ferramenta
ao alcance do indígena. Assim como o índio é obrigado a aprender e se adaptar a
influência tecnológica e financeira do colonizador para dar continuidade a sua própria
cultura, também se adaptando à ferramenta ideológica da literatura ele estará utilizando a
influência do não-índio para benefício próprio. Kaxi, o nome escolhido para o menino,
significa “lua”, ou, nas palavras do texto, “Kaxi, a lua que brilha sobre os homens”
24
Cf. original: “The ideological becoming of a human being is the process of selectively assimilating the
words of others” (BAKHTIN, 1981:333).
34
(MUNDURUKU, 1996:14), trazendo à superfície a conotação implicita de que Kaxi
iluminará o caminho da tribo.
Daniel Munduruku utiliza seu espaço para difundir as injustiças causadas pela
invasão e expansão do colonizador, como ilustra o trecho abaixo:
Nosso povo não está e nunca estará terminado. Não adianta o homem branco nos exterminar,
querer nos matar, pois nós renasceremos das cinzas se preciso for para mantermos nossa história e
a memória de nossos irmãos que já morreram. Deixem que eles nos imaginem a míngua e
proclamemos bem alto que se um dia houver um último pôr-do-sol para os homens, nós, os filhos
da terra, estaremos sentados sobre os montes para vê-lo acontecer. (MUNDURUKU, 1996:14)
Tudo é diferente, mas o que temos por dentro é igual. Nossas leis não mudam só porque a
paisagem mudou. A gente se vira da mesma maneira respeitosa que nós fazemos tudo, não
fazendo nenhuma mudança sem cerimônia é tudo que temos que lembrar25. (MARACLE, 111)
25
Cf. original: “Everything is different but our insides are the same. Our laws don´t chance just because
the landscape does. You figure it out in the same respectful way we do everything, don´t make any changes
without ceremony is all you have to remember”. (MARACLE, 111)
26
Outro aspecto que pode ter definido esta diferença pode ter sido a idade do público-alvo, Daniel
Munduruku escrevendo para crianças mais jovens, enquanto Lee Maracle visava um leitor adolescente. No
entanto, ambos os livros são classificados como “literatura infanto-juvenil”, não apresentando uma
definição de faixa-etária específica.
35
aldeia, e Will, inserido na “cidade”, buscam definir e perpetuar a identidade nativa de que
são fruto e de que se orgulham.
De maneira bem-humorada e um tanto irônica, Will´s Garden apresenta a cultura
nativa canadense, como no trecho a seguir:
Eu penso em perguntar a eles sobre o que estão falando, mas não pergunto. Eu ajo da maneira
indígena e espero a história se desenvolver. Eu sei que vai acontecer. Nossas mulheres contam
histórias de uma certa maneira. O último fato ou resultado é contado primeiro. Se isto conseguir a
atenção dos ouvintes, o orador conta a história, do começo ao fim, caso contrário a informação
simplesmente morre. Tem algo a ver com cortesia27. (MARACLE, 8)
Nós somos índios e parece que nos damos bem em situações de crise28. (MARACLE, 11)
27
Cf. original: “I want to ask them what they are talking about but I don’t. I do the indian thing of waiting
for the story to unfold. I know it’ll happen. Our women tell stories in a certain way. The back end point or
result is thrown out first. If that gets the listener’s attention, the speaker tells the story; front to back,
otherwise the information just dies. It has something to do with courtesy”. (MARACLE, 8)
28
Cf. original: “We are natives and we all seem to do well in a crisis”. (MARACLE, 11)
36
conhecimento e de recuperação cultural, assim como Owens afirma, uma reconstrução
tentando recuperar a identidade e autenticidade através do uso do mundo da tradição oral
incorporado na literatura (OWENS, 1992:11).
O problema tem início quando comparamos a imagem do índio que os romances
do passado nos apresentaram com o índio real. Como mencionado anteriormente, os
romances Indianistas no Brasil do século XIX nos retrataram um índio herói nacional,
com características que nada tem a ver com o verdadeiro índio. Esta imagem nos afastou
da realidade, principalmente porque veio de uma literatura escrita por autores não-índios,
a partir de um olhar “de fora”. Descrito pelo discurso autoritário do colonizador, a
imagem do índio formada pelos romances daquele período provoca um conflito entre o
real e o imaginário, fazendo surgir um abismo entre a identidade real do índio e aquela
construída pelo “outro”.
A literatura de autoria indígena surge com o objetivo de corrigir esta imagem,
apresentando ao leitor, seja ele índio ou não-índio, o que é o índio verdadeiro, puro ou
mestiço, mas muito diferente daquele nativo considerado “autêntico”, que é justamente o
que se impõe aos padrões impostos pelo colonizador (OWENS, 1998:13). Nas palavras
de BHABHA (2003:79), “[n]o texto pós-colonial, o problema da identidade retorna como
um questionamento persistente do enquadramento, do espaço da representação, onde a
imagem (...) é confrontada por sua diferença, seu Outro”. Como no trecho abaixo, os
autores nativos contemporâneos buscam apontar as diferenças e os preconceitos,
delimitando sua própria cultura – diferente entre cada tribo – e apresentando sua real
identidade:
Por favor, Thomas, nao diga nada. Eu estou me divertindo com garotos brancos pela primeira vez
em dez anos de convivência no mesmo espaço que eles29. (MARACLE, 42)
29
Cf. original: “Please Thomas, don´t say anything. I am having fun with some white boys for the first time
in ten years of having to share the same air space with them”. (MARACLE, 42)
37
racial que envolve todos os cantos do mundo. Segundo Daniel Munduruku: “[O
brasileiro] precisa olhar para si mesmo e perceber-se índio, perceber-se negro na sua
constituição, na sua identidade. A partir disso, haverá uma reconquista de uma
ancestralidade indígena que é latente e que precisa ser reforçada para que vá apagando a
imagem negativa, os estereótipos” (MUNDURUKU, 2004). Seguindo este princípio,
todos nós temos a chance de se perceber um pouco índio, um pouco negro, um pouco
europeu, um pouco asiático - mistura que define a identidade desde país e o torna
encantador.
38
11. CONCLUSÃO
39
conhecimento e adentrar na cultura de suas próprias raízes, aprendendo com Kaxi e Will
a maneira de nossos antepassados.
40
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASHCROFT, B. et al. The Empire Writes Back: Theory and Practice in Post-Colonial
Literatures. London and New York: Routledge, 1989.
41
PETRONE, P. Native Literature in Canada: From the Oral Tradition to the Present.
Toronto: Oxford University Press, 1990.
POTIGUARA, E. Metade Cara, Metade Máscara. São Paulo: Editora Global, 2004.
SCHNEIDER, L. Lee Maracle and Eliane Potiguara: Canadian and Brazilian writers
speaking from decentered positions about their identity construction. 2005.
(Apresentação de Trabalho/Comunicação).
SITES:
<http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno11-10.html>. Acesso em: 08/02/08
<http://tvxuxa.globo.com/Tvxuxa/pordentrodoassunto/0,,AA1663487-8495,00.html>
Acesso em: 15/02/08
42
<http://www.civilization.ca/aborig/fp/images/fpz2a07b.jpg>. Acesso em: 18/05/08.
43
ANEXOS
44
Parece que Foi Ontem (Global, 2006)
Caçadores de Aventuras (Caramelo, 2006)
Catando Piolhos Contando Histórias (Brinque-Book, 2006)
As Peripécias do Jabuti (Mercuryo Jovem, 2007)
O Sonho que não Parecia Sonho (Caramelo, 2007)
O Homem que Roubava Horas (Brinque-Book, 2007)
O Olho Bom do Menino (Brinque-Book, 2007)
Uma Aventura na Amazônia (Caramelo, 2007)
A Primeira Estrela que Vejo É a Estrela do Meu Desejo (Global, 2007)
Outras Tantas Histórias Indígenas de Origem das Coisas e do Universo (Global, 2008)
Todas as Coisas São Pequenas (Arx, 2008)
A Palavra do Grande Chefe (Global, 2008)
Poesia
Prosa
Colaborações - Prosa
45
We Get Our Living Like Milk from the Land, com Jeannette Armstrong and Delphine
Derickson (Editors), Theytus Books, 1993-94.
Telling It: Women and Language Across Cultures, com Sky Lee, Betsy Warlland e
Daphne Marlatt (Author-Editors), Press Gang Publishers, 1994.
Reconciliation: The En'owkin Journal of First North American Peoples, (Gatherings,
13) com Leanne Flett Kruger (Author-Editors), Theytus Publishers.
Antologias
Gatherings, The En'owkin Journal of First North American Peoples: Two Faces:
Unmasking the Faces of Our Divided Nations, Volume 2, Theytus Books.
Gatherings, The En'owkin Journal of First North American Peoples, Mother Earth
Perspectives: Preservation Through Words, Volume 3, Theytus Books.
Gatherings, The En'owkin Journal of First North American Peoples, A Retrospective
of the First Decade, Volume 10, Theytus Books.
Satin Shorts, Status of Women Publication, Ottawa, Ontario.
Returning the Gaze: Essays on Racism, Feminism and Politics, Himani Bannerji
(Editor), Sister Vision Pr.
Give Back/First Nations Perspectives on Cultural Practice (Gallerie: Women Artists'
Monograms, No 11) Maria Campbell, Doreen Jensen, Joy Asham Fedorick, Gallerie
Pubns.
Bertha, Oxford University Press.
Voices: Being Native in Canada, Linda Jaine and Drew Hayden-Taylor (Editors),
University of Saskatchewan.
An Anthology of Canadian Native Literature in English, Daniel David Moses & Terry
Goldie (Editors), Oxford University Press.
Native Writers and Canadian Writing: Canadian Literature: Special Issue, William
New (Editor), UBC Press, Vancouver, British Columbia
Frictions: Stories by Women, Rhea Tregebov (Editor), Second Story Press.
First People First Voices, Penny Petrone (Editor), University of Toronto Press.
Children of the Dragonfly, Robert Bensen (Editor), University of Arizona Press.
Our Bit of Truth: An Anthology of Canadian Native Literature, Agnes Grant (Editor),
Pemmican Pub.
Reinventing the Enemy's Language: Contemporary Nativo American Women's
Writings of North America, Joy Harjo & Gloria Bird (Editors), W. W. Norton.
First Fish, First People: Salmon Tales of the North Pacific Rim, Judith Roche & Meg
McHutchison (Editors), Univ Washington Press.
46
75 Readings Plus, Santi V. Buscemi & Charlotte Smith (Editors), McGraw-Hill
Humanities/Social Sciences/Languages.
47
GLOSSARIO30
MUNDURUKU SIGNIFICADO
Uk´a Casa
Uru Rede
Kabido Vento
Kaxi Lua
Pariwat Homem branco (não-indio)
Oboré Amigo
Ibubutpupuat Dinheiro
Idibi Água; rios
Bio Anta
Dapsem Veado
Dajekco Caititu
Daje Queixada
Hai Paca
Poy-iayn Macacos
Pusowawa Quati
Wasuyu Pássaros
Paro Urutau
Parawá Arara
Uru Maracanã
Koru Curica
Ajora Arariranha
Ixi Mãe
Muba´at Chuva(s)
Ixiwe Embira
Kio´uk Bambu
Ictius Vasos
Bay bay Papai
I´it Filho
Pigãgãm Pescar
Sapokay Galinha
Musukta Mandioca
Bekitkit Crianças
Wexik´a Batata-doce
Akoba Banana
Kagã Cana
Ku Roça
Baripnia Parentes
Kaxinug Relógio
Jexeyxey Sonhar
Kasopta Estrelas
Cauxi Feitiço
Jakora Onça
Doti Roupas
Ekçá Casa dos homens
30
Glossário extraído de Histórias de Índio, de Daniel Munduruku (1996:65-66).
48
Galeria de Imagens
Ilustração 3 - Jaqueta com bordado nativo canadense. Alberta, 1905. Por Flora Loutit.
50
Ilustração 5 - Daniel Munduruku em lançamento de um de seus livros.
51
Ilustração 6 - Mapa demonstrando tribos indígenas no Brasil.
52
Ilustração 7 - Daniel Munduruku no programa Jô Soares, da TV Globo.
53