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24 GUIA DE LÍNGUA PORTUGUESA ENTRE JOVENS | VOLUME 1

7. O poeta usou dois recursos para construir o sentido do poema, a descrição da figura feminina e o diálogo.
Com que objetivo o poeta usa tais recursos?

8. Ao discutirmos o tema da leitura, vimos que “ler é dialogar” com o texto, buscando construir um sentido
para ele. A compreensão da leitura como um diálogo está presente no soneto de Machado de Assis?
Justifique sua resposta.

Agora, você vai ler um conto de Clarice Lispector, publicado no livro Felicidade Clandestina, p.9-12, Rocco, 1989.

Felicidade Clandestina

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos Até o dia seguinte eu me transformei na própria
excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar
busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo.
bolsos da blusa, por cima do busto, com balas.
Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa
Mas possuía o que qualquer criança devoradora de
casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus
histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo.
aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de
ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar
do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas
mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa
do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam
palavras como “data natalícia” e saudade”. mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me
esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda
caí nenhuma vez.
era pura vingança, chupando balas com barulho.
Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto
imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico.
de cabelos livres. Comigo exerceu com calma No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa,
ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir
nem notava as humilhações a que ela me submetia: a resposta calma: o livro ainda não estava em seu
continuava a implorar-lhe emprestados os livros que poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia
ela não lia. eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama
do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu
Até que veio para ela o magno dia de começar
coração batendo.
a exercer sobre mim um tortura chinesa. Como
casualmente, informou-me que possuía As E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela
reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não
um livro grosso, meu Deus, era um livro para se escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara
ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às
completamente acima de minhas posses. Disse-me vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes
que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja
ela o emprestaria. precisando danadamente que eu sofra.
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Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada,
faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse
esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como
manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava
eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o
cavando sob os meus olhos espantados. contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em
casa, também pouco importa. Meu peito estava
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua
quente, meu coração pensativo.
casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa,
apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que
a aparição muda e diária daquela menina à porta não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas
de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas,
uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda
pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais mais indo comer pão com manteiga, fingi que não
estranho o fato de não estar entendendo. Até que sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por
essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades
enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca para aquela coisa clandestina que era a felicidade.
saiu daqui de casa e você nem quis ler! A felicidade sempre ia ser clandestina para mim.
Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia
E o pior para essa mulher não era a descoberta do
no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma
que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada
rainha delicada.
da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a
potência de perversidade de sua filha desconhecida Às vezes sentava-me na rede, balançando-me
e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase
das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se puríssimo. Não era mais uma menina com um livro:
refazendo, disse firme e calma para a filha: você era uma mulher com o seu amante.
vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim:
“E você fica com o livro por quanto tempo quiser.”
Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo
tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa,
grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

ATIVIDADES DE LEITURA

1. Em poucas linhas, resuma a história narrada no conto. Qual seria o tema desse conto?

2. Descreva a filha do dono da livraria. Qual é o papel dessa personagem na história?

3. Identifique o tipo de narrador e justifique a escolha deste recurso.


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4. Releia:

“Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como
casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.”

4.1. Explique o sentido da expressão destacada, “uma tortura chinesa”.

4.2. A expressão “ magno ” pode ser substituída sem alterar o sentido do texto por
a) terrível
b) inesperado
c) feliz
d) grande
e) triste

4.3. É um magno dia, porque


a) a filha do dono de livraria poderia ser gentil com a sua pobre amiga.
b) a filha do dono de livraria descobriu como torturar a menina leitora.
c) a inveja da filha do dono de livraria se transformaria em amizade.
d) as meninas iniciaram um pequeno diálogo, uma troca de livros.
e) a crueldade da invejosa teria fim, não mais faria a outra sofrer.

5. Como se resolve o conflito dessa narrativa? Resuma seu desfecho.


GUIA DO ALUNO 15

2 A LEITURA

1. ATIVIDADES DE LEITURA

A primeira atividade desta oficina propõe que você “leia” algumas


a imagem imagens.
a seguir: Comecemos com o texto
publicitário abaixo, publicado no jornal Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada, em 15 de março de 2009.
Considere-o atentamente.
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A Dama do livro – pintura de Roberto Fontana


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Você vai ler agora um poema que o escritor Machado de Assis escreveu, inspirando-se no quadro “A dama
do livro”, que ganhou de seus amigos.

SONETO CIRCULAR

A bela dama ruiva e descansada,


De olhos lânguidos, macios e perdidos,
Co’um dos dedos calçados e compridos
Marca a recente página fechada.

Cuidei que, assim pensando, assim colada


Da fina tela aos flóridos tecidos,
Totalmente calados os sentidos,
Nada diria, totalmente nada.

Mas, eis da tela se despega e anda,


E diz-me: - “Horácio, Heitor, Cibrão, Miranda,
C. Pinto, X. Silveira, F. Araújo,

Mandam-me aqui para viver contigo.”


Ó bela dama, a ordens tais não fujo.
Que bons amigos são! Fica comigo.

Machado de Assis

ATIVIDADES DE LEITURA

1. Como o poeta descreve a mulher do poema, na primeira estrofe?

2. Considere o verbete de dicionário abaixo.

lânguido
[Do lat. languidu.]
Adjetivo.
1.Sem forças; sem energia; frouxo, fraco, abatido, debilitado, extenuado, langoroso.
2.Mórbido, doentio.
3.Voluptuoso, sensual, langoroso:
olhares lânguidos. [Var. pros.: lânguido. Sin.: langue, languente.]
Fonte: Dicionário Aurélio, versão digital.

Qual é o melhor significado para a palavra “lânguidos”, na primeira estrofe?


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3. Releia a segunda estrofe do poema e responda: o que o poeta pensou em relação à mulher do quadro?

4. Releia:

“ Mas eis que da tela se despega e anda,


E diz-me: “ __Horácio, Cibrão, Miranda,
C. Pinto, X. Silveira, F. Araújo,
Mandam-me aqui para viver contigo.” ( 3ª estrofe)

4.1. No primeiro verso da estrofe acima - “ Mas eis que se despega e anda”- o verbo despegar-se, em
destaque, significa.
a) Despregar-se da tela.
b) Separar-se do livro.
c) Apegar-se à tela.
d) Mover-se na tela.
e) Desapegar-se da tela.

4.2. Quem se despega da tela?

4.3. O conector MAS expressa uma relação de:


a) causa
b) consequência
c) tempo
d) lugar
e) oposição

4.4. Observe, ainda, que o conector MAS relaciona a primeira e a segunda estrofes do poema, sinalizando
uma quebra de expectativa, um acontecimento inesperado. Qual era a expectativa do poeta e o que aconteceu?

5. Horácio, Cibrão, Miranda, C Pinto, X. Silveira, F. Araújo são os amigos que deram ao poeta, como um
presente, o quadro da dama ruiva. Retire do texto o verso que corresponde ao recado que eles mandaram
através da senhora do quadro?

6. Que resposta o poeta dá para a bela dama ruiva.?


24 GUIA DE LÍNGUA PORTUGUESA ENTRE JOVENS | VOLUME 1

7. O poeta usou dois recursos para construir o sentido do poema, a descrição da figura feminina e o diálogo.
Com que objetivo o poeta usa tais recursos?

8. Ao discutirmos o tema da leitura, vimos que “ler é dialogar” com o texto, buscando construir um sentido
para ele. A compreensão da leitura como um diálogo está presente no soneto de Machado de Assis?
Justifique sua resposta.

Agora, você vai ler um conto de Clarice Lispector, publicado no livro Felicidade Clandestina, p.9-12, Rocco, 1989.

Felicidade Clandestina

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos Até o dia seguinte eu me transformei na própria
excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar
busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo.
bolsos da blusa, por cima do busto, com balas.
Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa
Mas possuía o que qualquer criança devoradora de
casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus
histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo.
aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de
ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar
do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas
mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa
do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam
palavras como “data natalícia” e saudade”. mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me
esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda
caí nenhuma vez.
era pura vingança, chupando balas com barulho.
Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto
imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico.
de cabelos livres. Comigo exerceu com calma No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa,
ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir
nem notava as humilhações a que ela me submetia: a resposta calma: o livro ainda não estava em seu
continuava a implorar-lhe emprestados os livros que poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia
ela não lia. eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama
do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu
Até que veio para ela o magno dia de começar
coração batendo.
a exercer sobre mim um tortura chinesa. Como
casualmente, informou-me que possuía As E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela
reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não
um livro grosso, meu Deus, era um livro para se escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara
ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às
completamente acima de minhas posses. Disse-me vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes
que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja
ela o emprestaria. precisando danadamente que eu sofra.

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